universidade católica de santosfaculdade de comunicação
1994
trabalho de conclusãodo curso de jornalismo
prof. orientadora: ivani ribeiro
interesse pelas palavras sempre existiu, desde que
me lembro por gente. O interesse pela crônica,
especificamente, apareceu há alguns anos através Odas atividades de relações públicas que desenvolvi na
empresa onde trabalhava.
Como era inevitável, acabei me envolvendo com a área de
jornalismo. Primeiro pequenas colaborações no jornal
empresarial, depois um boletim semanal (anexos), para cerca
de 2.000 pessoas que não estavam interessadas em ler. Era
preciso conquistar esse público arredio. A chave que abriu
este filão foi simplesmente a “conversa fiada”. Aquela
conversa de amigos regada a cerveja e tira-gosto, onde se
fala do que acontece, das
notícias do dia, dos sonhos,
da vida. Um ajuste aqui,
outro ali e os fatos mar-
cantes que aconteciam na
empresa chegavam aos
empregados através deste
bate-papo.
Foi uma ousadia colocar no
meio empresarial esta
linguagem tão distante do
estilo formal utilizado no
1
As pequenas crônicas começaram a aumentar em tamanho e
número. Daí para a faculdade de jornalismo foi um pulo. Já
que estava envolvida com a área dos impressos, por que não
aprender direitinho?
Mas este foi apenas um dos ângulos pelo qual a crônica me
“pegou”. Um dia alguém me diz que tem um recadinho para
mim no jornal A Tribuna. Estava lá, na coluna Gente e Coisas
da Cidade, da jornalista Lydia Federici. (anexos) Foi uma
emoção diferente receber um recado através de uma crônica,
sabendo que milhares de pessoas também estão lendo
aquelas palavras e, por um momento, você é a estrela
daquele acontecimento.
Eu me diverti, e são esses pequenos momentos de alegria que
compõem a felicidade da gente. Na verdade, esta não foi a
única vez em que achei algumas palvras para mim, na coluna
da Lydia, mais duas vezes ela tornou a mencionar meu nome.
Aliás, meu "nome de guerra": Nisia Maria. (anexos) É assim
que a grande maioria me conhece.
Eu estava irremediavelmente fisgada por este gênero
ambíguo , matreiro, arteiro, que, falando das coisas simples
do cotidiano, desafoga nossos sentimentos. De repente, eu
percebi que, do mesmo modo que as palavras de alguém me
emocionavam, eu também podia fazer rir ou chorar. Ainda
não consigo descrever com clareza aquilo que sinto quando
observo o rosto de um leitor. Só sei que faz bem, que gosto, e
que eles também gostam! Portanto, porque não dividir com
muitos minhas idéias, minhas palavras ? (1)
Decidi desenvolver este trabalho sobre a crônica porque o
assunto me encanta, é simples e complexo ao mesmo tempo;
porque percebi que quase não há literatura específica sobre o
1- Silva, Nisia Andrade. O Guarda Chuva. In: Antologia Literária. Best-Seller Literatura Maior. Litteris, Rio de Janeiro, 1994, pag. 118. (Anexos)
assunto. Existem capítulos
embutidos nos mais diversos
livros, o que dificulta muito o
apredizado sobre o tema,
além dele ser considerado
por muitos sem importância
e até um tanto marginal.
Entretanto, apesar do pre-
conceito, a crônica sobre-
vive, e gostem ou não muitos
autores e jornalistas ela tem
seu espaço garantido.
Não dá para suportar tanta
“realidade” sem um pouco de
tempero.
Este trabalho é baseado na
reunião das idéias de vários
autores e jornal istas,
entremeado com minhas
idéias; essencialmente didá-
tico, tentamos apresentá-lo
de forma agradável para
leitura, expondo concei-
tuação, gênero, fontes,
estrutura, linguagem, estilo
etc. Finalizando, a vivência
de um cronista conceituado:
Lourenço Diaféria. A inten-
ção é fornecer algum
subsídio para quem
possa se interessar sobre o
assunto.
2
A PALAVRA CRÔNICA
Do Grego chronikós (relativo ao
tempo), do Latim crhonica.
No começo da era cristã
o vocábulo designava
uma lista ou relação
de acontecimentos
Ordenados cronologicamente.
A crônica registrava
os eventos sem
aprofundar-se nas causas,
situando-se entre
os anais e
A História.
Atingiu o
ápice depois do
século XII, na França,
Inglaterra,
Portugal e Espanha, quando
aproximou-se da História mostrando
acentuados traços de ficção literária. A
partir da Renascença o termo crônica
cedeu vez à História.
Liberto da conotação histórica, o
vocábulo passou a revestir-se do
sentido literário, a partir do século
XIX, para finalmente encontrar
seu significado jornalístico,
como o conhecemos
hoje. (1)
1- Massaud, Moisés. A Criação Literária. Melhoramentos, SP, 1979, 9a. ed., pág. 245
3
A ORIGEM DA CRÔNICA MODERNA“Para qualquer brasileiro a palavra crônica
tem sentido claro e inequívoco, embora ainda
não dicionarizado: designa uma composição
breve, relacionada com a atualidade, publica-
da em jornal ou revista. De tal forma esse sig-
nificado está generalizado que só mesmo os
especialistas em historiografia se lembram de
outro sentido bem mais antigo, o
de narração histórica em
ordem cronológica.” (1)
Ora, no Brasil, a crônica é
o relato poético do real,
situada na fronteira entre
a informação da atuali-
dade e a narração literá-
ria. Um gênero plena-
mente definido, segundo
José Marques de Melo. (2)
O mesmo não ocorre em
outros países. No jornalismo
mundial a crônica está mais vin-
culada ao relato cronológico da
narrativa histórica. Sua natureza é
controvertida e varia de país para
país. Foi com o sentido de relato histórico
que a crônica chegou ao jornalismo.
Alberto Martinez atribui à crônica uma origem
latina (França , Espanha, Itália) semelhante
mas sem correspondentes precisos no jorna-
lismo alemão, inglês e norte-americano. (3)
Juan Gargurevich afirma que a crônica é a
antecessora imediata do jornalismo informa-
tivo.
Essa tese encontra respaldo na bibliografia
do jornalismo europeu de raízes latinas. (4)
Assim sendo, na Itália a crônica apro-
xima-se mais do sentido que no
Brasil atribuímos à repor-
tagem. Na França oscila entre
a reportagem setorial e o
colunismo. Na Espanha
combina notícia e o
comen-tário. No jorna-
lismo português a crô-
nica está bem próxi-
ma da sua caracteri-
zação no Brasil.(5)
Na Inglaterra exis-
tem dois gêneros
bem próximos da crô-
nica: actions stories e
essay, ambos relatos
poéticos do real. Na
Alemanha encontramos a
g l o- sa, comentário breve sobre o coti-
diano. Nos Estados Unidos alguns tipos de fea-
ture stories assemelham-se à crônica como a
entendemos e, na Espanha, a croniquilla pre-
4
tende ser uma espécie de crônica da vida diá-
ria, também chamada folhetin. (6)
É como folhetim que a crônica surge no jor-
nalismo brasileiro, no século XIX.Era publica-
da junto com pequenos contos, artigos, ensa-
ios breves, poemas em prosa. Um espaço
que os jornais reservavam para informar aos
leitores sobre os acontecimentos da sema-
na. Nomes ilustres foram pouco a pouco
transformando o folhetim, tornando-o um
gênero autônomo no jornalismo, transfor-
mando-o na crônica moderna. Para tanto
contribuíram Francisco Otaviano, José de
Alencar, Manuel Antonio de Almeida,
Machado de Assis, Raul Pompéia, Coelho
Neto e outros. (7)
Afrânio Coutinho afirma que a crônica adqui-
re personalidade com Machado de Assis, o
qual consagrou-se no gênero, contribuindo
consideravelmente para a sua evolução. (8)
“Machado de Assis ao praticar a crônica con-
siderava-se escrevendo "brasileiro", pois a
crônica exigia uma participação direta e movi-
mentada na vida mundana - reuniões da soci-
edade, teatro, parlamento - induzindo o cro-
nista a incorporar a linguagem coloquial à
sua narrativa, abandonando pouco a pouco o
estilo empolado e discursivo da prosa jorna-
lística e literária de então.” (9)
O perfil nacional da crônica, o gênero brasile-
iro firmou-se a partir de 1930, com nomes
como o de Mário de Andrade, Manuel
Bandeira, Carlos Drumond e Ruben Braga,
que, de certo modo, seria o cronista exclusi-
vo desse gênero.
A partir desta época o desenvolvimento da
imprensa assume proporções empresariais,
1- Rónai, Paulo. Um Gênero Brasileiro: A Crônica. In
: Hower, Alfred e Preto-Rodas, Richard, org.
Crônicas Brasileiras. Center for Latin American
Studies, University of Florida,1971.
2- Melo, José Marques. A Opinião no Jornalismo
Brasileiro. Vozes, RJ, 1985, Pág.111.
3- Martinez, Alberto José Luiz. Redaccíon
Periodística. ATE, Barcelona, 1974. Cap. VIII- A
Crônica Como Gênero Jornalístico.
4 - Gargurevich, Juan. Gêneros Periodísticos.
Ciespal, Quito, 1982, pág. 109-149.
5- Idem 2, pág.112,113.
6- Idem 2, pág. 113
7- Idem 2, pág. 114
8- Afrânio Coutinho. Ensaio e Crônica. In: A
Literatura no Brasil. Sul Americana, RJ, 2a. ed.
vol.VI, 1971, pág. 112
9- Idem 2, pág. 114
conduzido a uma diversi- ficação do seu con-
teúdo e à ampliação das seções permanentes,
para atender um leitor mais exigente. Nesse
âmbito a crônica adquire um lugar especial,
sendo o cronista o intérprete das mudanças
que ocorrem na sociedade.
5
or meio de assuntos de com-
posição aparentemente sol-P-ta, do ar de coisa sem importância
que costuma assu-
mir, a crônica se
ajusta à nossa sen-
sibi-lidade de todo
dia. Retratando a
vida, a crônica
serve a vida de per-
to, pois está perto
de nós.
Despretensiosa,
ela se humaniza e
aprofunda seu sig-
nificado.
A crônica nos ajuda
a estabelecer ou restabelecer a di-
mensão das coisas e das pesso-
as, quase sempre com humor.
Sua perspectiva não é grandilo-
qüente nem pomposa, mas do sim-
ples dia-a-dia.
A fórmula moderna reúne um fato
pequeno, uma notícia, um toque
de humor, uma pitada de poesia e
representa o encontro mais puro
da crônica com a vida real e com
seu cúmplice favorito, o leitor.
Mas, apesar de seu ar despreo-
cupado, de quem está falando
de coisas sem maior conse-
quência, a crônica penetra fundo
no significado dos atos e senti-
mentos do homem, aprofundan-
do a crítica social.
Aprende-se muito quando se
diverte e os traços simples, gra-
ciosos e breves da crônica são
um veículo privilegiado para mos-
trar de modo persuasivo muita coi-
sa, que, divertindo, atrai e faz
refletir, amadurecendo nossa
visão das coisas. Por meio de um
ziguezague de aparente conversa
fiada, a crônica pode dizer as coi-
sas mais sérias, como as descri-
ções da vida, o relato caprichoso
dos fatos, o desenho de certos
tipos humanos, o registro de algo
inesperado.
Tudo é vida, tudo é motivo de
experiência ou reflexão, diverti-
mento e esquecimento momentâ-
neo de si, sonho ou
piada que nos trans-
porta ao mundo da
imaginação, para
voltarmos um pouco
mais sábios. (1) A
função da crônica
portanto é aprofun-
dar a notícia e defla-
grar uma profunda
visão das relações
entre o fato e as pes-
soas, entre cada um
de nós e o mundo
em que vivemos.
CONCEITUAÇÃO DA CRÔNICA
6
1- Antonio Cândido. A vida ao rés-do-chão. In: Para gostar de Ler Crônicas. SP, Ática, 1979/80, vol 5, pág.12.
2- Diaféria, Lourenço. Depoimento -Escritor Brasileiro/81. Secretaria Municipal de Cultura, São Paulo, 1981.
Lourenço Diaféria traduz com sen-
timento e paixão o sentido brasilei-
ríssimo da crônica: "A crônica é a
reinvenção da lua abstraída das
violações científicas e espaciais,
é a metafísica dos postes e das
azaléias, é a lupa que permite con-
firmar com a palavra escrita, se o
sabonete Palmolive continua a
abrir os poros e manter a pele leve
e acetinada.
A crônica existe para dar creduli-
dade aos jornais, saturados de notí-
cias reais demais para serem leva-
das a sério.
A crônica descobre as pessoas no
meio da multidão de leitores. Ela
revela ao distinto público que,
atrás do botão eletrônico, existe
um baixinho resfriado e de nariz
pingando, que assoa e vocifera.
A crônica serve para mostrar o
outro lado de tudo - dos palanques,
das torres, de eclipses, das
enchentes, dos barracos, do poder
e da majestade. Ela não consta no
periódico por condescen-dência.
A crônica é a lágrima, o sorriso, o
aceno, a emoção, o berro, que não
tem estrutura para se infiltrar como
notícia, reportagem, editorial,
comentário ou anúncio publicitário
no jornal. E, contudo, é um pouco
de tudo isso. “ (2)
7
pesar da pressa característica da
crônica, ela é uma somatória de pes-Aquisa, seleção e inspiração. “Embora não
tenha preconceitos temáticos, a crônica
não aceita qualquer matéria: dentro de
seu campo de ação - o acidental (ou cir-
cunstancial episódico) captado quer num
flagrante de esquina, quer nas palavras
de uma criança ou incidente doméstico -
a crônica deve escolher um fato capaz de
reunir em si mesmo o disperso conteúdo
humano”(1), pois só assim ela pode cum-
prir o seguinte princípio: informar, ensi-
nar, comover, deleitar.
Existem quatro tentativas de classificar a
CLASSIFICAÇÃO DA CRÔNICA
crônica. Luiz Beltrão usa o critério jornalístico, Afrânio Coutinho toma
como base a tipologia literária, Moisés Massaud procura uma correspondência
com os gêneros literários e Antonio Cândido guia-se pela estrutura narrativa.
Luiz Beltrão (2) propõe duas classificações: quanto à natureza do tema e quanto ao tratamen-
to.
A partir da natureza do tema, são três espécies:
- Crônica Geral - sob uma forma gráfica determinada ou sob uma epígrafe geral aborda os
assuntos mais variados, ocupando espaço fixo no jornal. É chamada coluna ou seção especi-
al.
- Crônica Local - sempre sob a mesma epígrafe em página e coluna fixa, fala da vida cotidi-
ana da cidade, atuando como um tipo de receptor da opinião da comunidade onde se insere o
jornal. É chamada urbana ou da cidade.
- Crônica Especializada - integra página ou seção determinada, com apresentação gráfica
do texto diferente das demais matérias e focaliza assuntos referentes a um determinado cam-
po específico, como política, esportes, economia etc. Também é conhecida como comentá-
rio.
Quanto ao tratamento, surgem três modalidades:
- Analítica - a linguagem é sóbria, elegante e enérgica, os fatos são expostos com brevidade
e analisados com objetividade. O cronista dirige-se à inteligência ao invés do coração.
8
- Sentimental - a linguagem é vivaz de ritmo ágil, os fatos apresentam-se a partir de aspec-
tos pitorescos, líricos, épicos, capazes de comover e influenciar a ação. O cronista apela
para a sensibilidade.
- Satírico-Humorística - a linguagem é de duplo sentido com o objetivo de criticar, ridicu-
larizando ou ironizando fato, ações, personagens com a finalidade de advertir e entreter o lei-
tor.
Afrânio Coutinho (3) define cinco tipos de crônicas:
- Crônica Narrativa - estória ou episódio pró-
ximo do conto contemporâneo, que não
necessita obrigatoriamente de come-
ço, meio e fim ( ex.: Fernando
Sabino).
- Crônica Metafísica - são
reflexões sobre acontecimentos
e pessoas de cunho mais ou
menos filosófico (ex.: Carlos
Drummond, Machado de Assis).
- Crônica-Poema-em-Prosa -
de conteúdo lírico expressa os sen-
timentos do cronista ante o espetá-
culo da vida, das paisagens ou episó-
dios significativos (ex.: Ruben Braga,
Manoel Bandeira, Raquel de Queiroz).
- Crônica Comentário - crítica de acontecimentos
díspares, tomando o aspecto de “bazar asiático” (ex.:
Machado de Assis, José de Alencar)
- Crônica Informação - relata os fatos, fazendo ligeiros comentários impessoais (ex.:
Lourenço Diaféria, Flávio Rangel).
Moisés Massaud (4) propõe dois tipo de crônica baseado no ponto de vista da ambiguidade
do gênero:
- Crônica-Poema - prosa emotiva que chega ao verso (Carlos Drummond).
- Crônica-Conto - o cronista narra um acontecimento que provoca sua atenção como se fos-
se um conto, sendo ele apenas o estoriador.
9
Antonio Cândido (5), sem qualquer pretensão de criar categorias, sugere uma classificação
destacando diferenças entre os modernos cronistas brasileiros:
- Crônica-Diálogo - o cronista e seu interlocutor se revezam trocando pontos de vista e
informações (ex.: Carlos Drummond, Fernando Sabiano).
- Crônica-Narrativa - apresenta alguma estrutura de ficção, semelhante ao conto (ex.:
Ruben Braga).
- Crônica Exposição Poética - uma divagação sobre um fato ou personalidade, uma série
de associações (ex.: Paulo Mendes Campos).
- Crônica Biográfica Lírica - narrativa poética da vida de alguém (ex.:
1- Sá, Jorge de. A Crônica. Ática, SP, 1985, pág. 22.
2- Beltrão, Luiz. Jornalismo Opinativo. Sulina, Porto Alegre, 1980, pág. 68.
3- Coutinho, Afrânio. Ensaio e Crônica. In: A Literatura no Brasil, vol. VI, Sul Americana, RJ, 2a. ed. 1971.
4- Massaud, Moisés. A Crítica Literária. Melhoramentos, SP, 1979, 9a. ed., pág. 245-258.
5- Cândido, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: Para Gostar de Ler Crônicas. Ática, SP, 1979/80, vol. 5,
pág.12
6- Melo, José Marques de. A Opinião no Jornalismo Brasileiro. Vozes, RJ, 1985, pág.118.
“Mas não apenas os
teór icos do jor-
nalismo e da literatura
se preocuparam em
classificar a crôni-
ca. Os cronis-tas
também. Numa série
de crônicas sobre as
“definições da crôni-
ca”, Luis Fernando
Veríssimo oferece um esque-
ma classificatório, tomando
por ponto de referência a
qualidade. Ele divide a crôni-
ca em: crônica, croniqueta,
cronicão, cronicaço. Como
identificar cada uma?
Crônica é qualquer crô-
nica, ou uma crô-
n i ca qua l-
q u e r .
Croniqueta é o nome cien-
tífico da crônica curta, como
pode parecer. (...) Cronicão é a
crônica grande, substanciosa,
com parágrafos gordos. (...)
Grande crônica é o cronicaço. O
cronicaço é contagiador. Seu
autor sai na rua e deixa um ras-
tro de cochichos - É ele, é ele!”
(6)
10
crônica não é um gênero maior. Graças a Deus - seria o caso de dizer, porque assim Asendo ela fica perto de nós.” (1)
UM GÊNERO CONTROVERSO
“Tida como um ponto na
fronteira entre o jornalismo e
a literatura, área de superpo-
sição regida por dois grandes
astros do relato e em aparente
convivência pacífica, a crônica
vem sendo colocada em estre-
itos limites, aceitando com
humildade ser gênero menor,
jornalismo leve, o quase lite-
rário, quase jornalístico.” (2)
A crônica ao longo de seu per-
curso tem informado, comen-
tado e divertido com lingua-
gem leve e descompromis-
sada, afastando-se da lógica
argumentativa ou crítica polí-
tica para penetrar poesia
adentro. É o relato poético
do real o que a torna ambí-
güa e põe a descoberto a
briga antiga e mal resolvida
que existe entre literatura e
jornalismo.
A crônica se equilibra entre
o efêmero do cotidiano e o
imortal do fato literário,
ambigüidade que a transfor-
ma em um gênero difícil de
ser produzido, classificado ou
analisado, quer no texto jor-
nalístico, quer no texto literá-
rio.
Aceitar a crônica como um
ponto tenso implica reconhe-
cê-la como um contraponto
crítico para qualquer dos dois
lados. Na contradição, um
dos astros em combate reve-
la o outro pelo que não é.
Assim, as classificações que
aceitam a crônica como gêne-
ro jornalístico, longe de hon-
rá-la, a colocam na rabeira,
p ra t i c amen te desqua -
lificando-a, pois depois dela
só as cartas do leitor. A clas-
sificação no gênero literário
não é muito melhor. A imagi-
nação criativa dos grandes
roman-cistas e escritores a
diminuem e desprezam, pois
o cotidiano trivial tem pouco
valor poético para estes (3).
Literatura Jornalismo
11
Ora, se a crônica assume um
caráter de relato poético do
real, colocando-se na frontei-
ra entre infomação da atuali-
dade e narração literária, ela
se torna um gênero jornalísti-
co-literário. Como gênero jor-
nalístico é um comentário,
gênero nobre e, como litera-
tura, é poesia e prosa.
Mas não é assim tão simples
aceitá-la. A crônica foge a
todas as regras do jornalismo,
embora “lide com informa-
ções jornalísticas, se realize
numa edição diária e efême-
ra, utilize a linguagem colo-
quial. Ela não participa do
ambiente do jornal, escapa do
processo de produção jorna-
lística convencional, indepen-
de da formação profissional
técnica, não obedece às
determinações de tempo e
espaço típicas, foge das
regras de interesse informati-
vo convencionalmente esta-
belecidas para o jornalismo”.
(4) A crônica é o lado arteiro
de um jornalismo que insiste
em ser crítico, libertário, ino-
vador e humanizado, o que
vem sendo sufocado pela téc-
nica industrializada.
Da mesma forma a crônica
suavizou sua linguagem, des-
casou-a dos adjetivos mais
retumbantes e das constru-
ções mais raras, como as que
ocorrem na poesia, prosa e
discurso. Na sua construção
não cabem a sintaxe rebus-
cada, com inversões fre-
quentes, nem o vocabulário
opolento para significar que é
variado, modulando sinôni-
mos e palavras tão raras
1- Antonio Cândido. A vida ao rés-do-chão. In: Para Gostar de Ler Crônicas. Ática, SP, 1979/80, vol.5, pág.5.
2- Guaraciaba, Andréa. In: Melo, José Marques de. Gêneros Jornalísticos Folha de São Paulo. FTD/ECA/USP,
São Paulo, 1987, pág. 85.
3- Idem 2, pág. 85.
4- Idem 2, pág. 86
5- Idem 1, pág. 8.
quanto soantes. Ela escapa
das regras literárias operan-
do milagres de simplificação
e naturalidade, num país que
costuma identificar supe-
rioridade intelectual e literá-
ria com grandiloqüência e
requinte gramatical. (5)
Enquanto o jornalismo não a
quer e a literatura a desde-
nha, ela prossegue seu cami-
nho fazendo cúmplices, con-
quistando espaços.
12
José Marques de Melo no livro “A Opinião no Jornalismo Brasileiro” afirma
que, ser a crônica um gênero jornalístico, é ponto pacífico.
“Produto do jornal, porque dele depende para sua expressão pública,
vinculada à atualidade, porque se nutre dos fatos do cotidiano, a crônica preenche as
três condições essenciais de qualquer manifestação jornalística: atualidade,
oportunidade e difusão coletiva”. (1) Em sua análise dos gêneros jornalísticos,
Marques de Melo coloca a crônica como um gênero opinativo.
Da mesma forma, Luiz Beltrão afirma que a crônica é a forma de expressão
do jornalista/escritor para transmitir ao leitor seu juízo sobre fatos, idéias, emoções
pessoais e coletivas, o que a coloca no nobre gênero do jornalismo opinativo. (2)
UM GÊNERO JORNALÍSTICO OPINATIVO
1- Melo, José Marques de. A Opinião
no Jornalismo Brasileiro. Vozes, RJ,
1985, pág. 118
2- Beltrão, Luiz. Jornalimo
Opinativo. Sulina, Porto Alegre,
1980, pág 66.ATUALIDADE OPORTUNIDADEDIFUSÃOCOLETIVA
CRÔNICA PRODUTO DO JORNAL
13
s fontes utilizadas pelo
cronista para realizar seu Atrabalho são: as idéias que flo-
rescem na comunidade; a
informação sobre fatos e situ-
ações; a própria notícia; as
emoções pessoais.
Ora, para estruturar o texto o
cronista deverá observar os
seguintes passos:
- Dominar o tema, calculando
seu tamanho, alcance, força,
inteirando-se de suas causas,
aspectos s ign i f i cat ivos,
sequência lógica, efeitos ime-
diatos e repercussão.
- Selecionar os dados levando
ao conhecimento do público o
que seja veraz, conveniente e
oportuno, não esquecendo das
normas práticas e éticas que
regem o exercício do jornalis-
mo.
- Redigir o texto em três fases
distintas e sucessivas: intro-
dução, argumentação e con-
clusão. (1)
A crônica deve interpretar o
tema utilizando argumentos
lógicos, sugestivos e persuasi-
vos, de modo ordenado que
leve o leitor a aceitar a opinião
final.
O aspecto informativo ou noti-
cioso da crônica vem na intro-
dução, onde o cronista coloca
o tema de forma sintética
(quem, que, quando).
O raciocínio e as idéias vêm
a seguir na argumentação,
desenvolvendo-se numa
sequência ritmada que per-
mite mais liberdade criado-
ra.
O cronista utiliza-se de cita-
ções, máximas, provérbios,
metáforas, alegorias, humor,
troca-dilhos. “Matiza o texto
com o jogo do maravilhoso -
que oferece sugestão de qui-
meras, sonhos, aspirações
cristalizadas em riquezas,
conquistas, vitórias e feitos
extraordinários; com o jogo
FONTE, ESTRUTURA E REDAÇÃO
QUE
O oni t ma iza o te to cr s a t x
com og o ra lh oo j o d ma vi os
e of estões derece sug e
qu os ..imeras e sonh ..
14
do comum, extraindo dados do cotidiano, do
terra-a-terra, das idéias simples aceitas por
todos; ou com revelações interiores dos pró-
prios sentimentos mostrando-se sincero,
melancólico, cético, apaixonado, rebelde, indi-
ferente, seguro, de acordo com a tônica recla-
mada pelo segmento." (2)
Nesse trecho o cronista deve ainda prevenir-
se dos argumentos contrários ao seu ponto de
vista.
Por fim, na conclusão é emitido o juízo do
cronista sobre o tema, que foi tão bem
exposto e debatido, que se torna
incontestável, não admitindo desacordo.
A crônica terá alcançado seu propósito
quando os efeitos dos seus juízos dão força
às correntes de opinião, conduzindo à ação.
1- Beltrão, Luiz. Jornalismo Opinativo. Sulina, Porto Alegre, 1980, pág. 69.
2- Idem 1, Pág. 20.
MetáforasAlegorias
Trocadilhos
Máximas
CitaçõesHumor
Provérbios
ITENS PARA REDAÇÃODA CRÔNICA
O cronista utiliza alguns ou até mesmo todos os itens para compor seu texto.
15
“ C r o n i s t a s e m e s t i l o p a r a c e
incongruência, entendido o estilo como
linguagem.” (1)
Direta, espontânea, jornalística, de
compreensão imediata, assim é a crônica, que destinada
ao jornal ou à revista vive o espaço de um dia, utilizando-
se do estilo como chamariz. Sendo ágil, simples e poética
ela atrai o leitor, distinguindo-se na página do jornal.
Oscilando entre o coloquial e literário,
casando a oralidade com os temas do cotidiano tratados
com uma gota de análise ou filosofismo, a crônica pode se
traduzir num prato de suave digestão, no meio de tantas
notícias duras.
Ambigüidade, brevidade, subjetividade,
diálogo, efemeridade são os requisitos indispensáveis
para a construção da crônica. (2)
1- Massaud, Moisés. A Crítica Literária. Melhoramento, SP, 9a. ed., 1979, pág. 256.2- Idem, pág. 257
ESTILO E LINGUAGEM
16
O cronista fala por nós
aquilo que não temos chance de
dizer!
O
LI
R
CÍT
IC
ETU
A
R
A
A primeira leitura da crônica trata apenas de tomar conhecimento do assunto,
num breve momento. Lemos sem compromisso, sem nada esperar. A partir daí, o
texto nos atingirá ou não. De acordo com a intensidade das palavras repercutidas em nós,
faremos uma nova leitura, voltaremos atrás em um parágrafo, paramos um instante para
avaliar. Aí começa a leitura propriamente dita, quando substituímos aquela primeira leitura
“ingênua” pelo senso crítico.
Descobrimos, então, vários registros no discurso, interpretando cada passagem até alcançar
uma interpretação global que, por fim, nos conduz para uma determinada visão do mundo. O
leitor percebe o significado da crônica, que só então começa a ser valorizada, pois, uma vez
ultrapassado o consumismo imediato, ela nos solicita a participar como seu co-autor ou como
seu cúmplice, papéis que nos levam à fruição total do conteúdo do texto.
A carga emotiva da crônica atinge o leitor com maior profundidade, fundindo autor e leitor
numa única entidade. O cronista fala por nós aquilo que não temos a chance de dizer. É o
intérprete qualificado para nos devolver aquilo que a realidade sufocou. (1)
1- Sá, Jorge de. A Crônica. Ática, SP, 1985, pág.79
sg
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M
17
O EXERCÍCIO DA CRÔNICA
O exercício da crônica é o testemunho de
nosso tempo. A crônica conta conversas, recolhe frases,
observa pessoas, registra situações, tudo com um olhar lúdico
de quem quer superar a realidade sufocante. É como conversa
fiada onde todos os assuntos se encontram, sempre na base
do dialoguismo, bate-papo ou reunião de amigos. Compor
essa conversa fiada é realmente uma arte ingrata,
principalmente porque ela se escraviza à urgência da máquina
da empresa jornal, que tem hora para fechar. (2)
A crônica deve injetar um sangue novo em um
fato qualquer do cotidiano, trabalhando com um conceito de
verossimilhança que liga a coerência do texto com a coerência
do fato acontecido. A partir do real a crônica usa suas
artimanhas para alcançar uma dimensão mais profunda,
chegando à crítica social.
O familiar e gasto deve ser rompido através do
insólito e estranho a fim de que uma nova experiência nos
atinja intensamente e se torne nova experiência nossa,
verdadeira informação estética. De modo geral a crônica
amplia e enriquece a visão da realidade. Permite ao leitor a
vivência intensa e ao mesmo tempo a contemplação crítica
das condições e possibilidades da existência humana.
“Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista;
não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelos personagens e
situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais
fino.” (1)
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A crônica é o lugar privilegiado em que a experiência vivida e a contemplação
crítica coincidem num conhecimento singular, cujo critério não é exatamente a verdade e sim a
validade de uma interpretação profunda da realidade tornada experiência. Na fruição da
crônica podemos assimilar tal interpretação com prazer (vivendo-a) mesmo no caso dela, no
campo real, se nos afigurar avessa às nossas convicções e tendências.
Embora não transmitindo nenhum conhecimento preciso, capaz de ser reduzido
a conceitos exatos, a crônica suscita uma poderosa animação de nossa sensibilidade, da nossa
imaginação e do nosso entendimento , que resulta prazenteira. Este prazer pode acontecer
através da empatia com situações, emoções veementes, sofrimentos e choques dolorosos,
sem que deixe de ser prazer, já que tudo decorre em nível simbólico.
Nada tão simples, nem tão fácil quanto qualquer desavisado possa imaginar.
1- Moraes, Vinícius de. Para viver um grande amor. José Olympio, RJ, 1962, pág. 7.2- Sá, Jorge de. A Crônica. Ática, SP, 1985, pág. 75
19
A CRÔNICA E O JORNAL
ivemos hoje numa aldeia global,
estamos simultaneamente em todos os Vlugares e nossa individualidade se
universaliza de tal forma que os mais
distantes acontecimentos afetam nossas
vidas. Tudo nos atinge estampado num
gráfico que é o jornal.
Ora, a função do jornal é abrir uma janela
para o mundo, transmitir impressões sob a
forma de notícias, buscando o fato em si e
deixando em segundo plano aqueles que
participam da cena.
Neste contexto deve a crônica ensinar ao
leitor ver mais longe, além do factual,
elaborando uma linguagem que traduza as
muitas linguagens cifradas do universo.
A crônica deve “aprofundar a notícia e
deflagrar uma profunda visão das relações
entre o fato e as pessoas, entre cada um de
nós e o mundo em que vivemos e morremos,
tornando a existência mais gratificante.
Portanto o jornal nos dá notícias da vida e da
morte; a crônica nos faz compreender a
coexistência desses dois elementos que se
opõem, mas não se excluem.”(1)
Oscilando entre a reportagem e o lirismo,
entre o relato impessoal e sem cor de um
acontecimento e a recriação do cotidiano por
1- Sá, Jorge de. A Crônica. Ática, 1985, SP, pág. 56.2- Diaféria, Lourenço. Depoimento- Escritor Brasileiro 81. Secretaria Municipal de Cultura, SP, 1981.
meio da fantasia é exatamente dessa
ambiguidade que a crônica retira suas
qualidades e defeitos. Os jornais lhe
conferem a missão de colocar o dia-a-dia no
pequeno espaço dessa narrativa transitória,
destinada a durar o tempo de uma edição.
Entretanto, por obra e arte de uma força
mágica ela acaba repercutindo em cada um,
ultrapassando o consumo imediato.
A crônica por ser tão despretensiosa,
incitante e reveladora permite ao leitor sentí-
la na força de seus próprios valores, obtendo
um certo destaque que lhe permite não se
dissolver no contexto do jornal.
“A crônica é um
pedaço da imprensa,
onde se cultiva a
sensação de que o
mundo continua livre
como os pardais, as
nuvens e os vagalu-
mes” (2)
20
m sua batalha contra o envelhecimento
precoce, a crônica por vezes transfere-se Ede seu ambiente natural, o jornal, para o
ambiente do livro. la é, então, reelaborada, isto é, escolhida
pelo autor que seleciona seus melhores Etextos, dando-lhes uma sequência
cronológica temática capaz de mostrar ao
leitor um painel que se fragmenta nas páginas
do jornal. É como passar a vida a limpo. Isto
permite que se descubra as características de
cada cronista. esta mudança de ambiente a crônica sai
lucrando. As possibilidades de leitura Ncrítica se ampliam, o texto atua com maior
liberdade sobre o leitor, uma vez despido de
certas referencialidades e a partir da releitura
o leitor descobre novas possibilidades
interpretativas, ampliando sua visão humana
do homem na sua vida de todo dia.
“Assim, quando a crônica
passa do jornal para
o livro, amplia-se a
magicidade
do texto, permitindo ao
leitor dialogar com o cronista
de forma mais intensa,
ambos agora
mais cúmplices no solitário
ato de reinventar
o mundo pelas vias
da literatura.” (1)
1- Sá, Jorge de. A Crônica. Ática, SP, 1985, pág. 86.
21
DO JORNALPARA O LIVRO
uem narra a crônica é seu Qautor e tudo o que ele diz
parece ter acontecido de fato,
como se os leitores estives-
sem lendo uma reportagem.
Embora não seja densa, a crô-
nica demonstra a liberdade do
cronista que pode transmitir a
aparência de superficialidade
para desen-volver o seu
tema; os fatos acontencem
como se fossem por acaso. as, na verdade, o autor Msabe que nada é por
acaso na construção do texto,
pois o cronista que deseja
cumprir sua função de antena
do público, captando o que a
maioria não está preparada
para apreender, tem de
explorar as potencialidades
da língua, buscando constru-
ções de frases com várias sig-
nificações, descortinando
aos leitores uma paisagem
até então esmaecida ou igno-
rada.
cronista deve juntar har-Omoniosamente os dados
que a realidade vai lhe ofere-
cendo, usando a imaginação
para selecionar esses dados e
Na crônica tudo
é real, tudo parece ter
acontecido, de fato!
no modo como os substitui
no plano do texto por equi-
valentes, além de inventar
os que estão faltando. Sua
linguagem adquire logicida-
de e um ritmo próprio, repen-
sando constantemente pelas
vias da emoção, aliadas à
razão. É fundamental que o
cronista se defina em um
tempo e espaço compondo
uma cronologia, não limita-
dora, mas sim esclarecedora
de sua (nossa) relação com o
mundo.
ecriar os flagrantes de Rrua ou os incidentes
domésticos, colocar em cenas
pessoas semelhantes a tan-
tas outras que conhe-cemos
ou de quem já ouvimos falar é
a ligação com o real da qual
se utiliza o cronista, através
de diálogos engraçados, irô-
nicos, sem agressividade,
pois o texto deve ser leve mas
sempre com uma visão críti-
ca.
ão há dois cronistas iguais, Nnem duas crônicas idênti-
cas, porque a mudança eterna
do cotidiano determina a male-
abilidade do texto e porque a
crônica capta a variação emoci-
onal do autor. (1)
Paisagens esmaecidas tornam-se coloridas e
vibrantes para os leitores!
1- Massaud, Moisés. A Criação Literária. Melhoramentos, São Paulo, 1979, 9a.ed., pág. 251.
OCRONISTA
22
Os cronistas são os espiões
da vida, e muitos são os
bons cronistas brasileiros.
Seria impossível falar de
cada um. Então, nos
limitamos a uns poucos no
meio de tantos.
JOÃO DO RIO
Consagrou-se como cronista
mundano, que, ao invés de
um simples registro do
formal, fazia o comentário
dos acontecimentos que
tanto podiam ser do
conhecimento público quanto
da imaginação do cronista,
tudo examinado pelo ângulo
da recriação do real. Ele
inventava personagens e
dava aos seus relatos um
toque ficcional. (1)
FERNANDO SABINO
Sempre voltado para a busca
do pitoresco ou do irrisório
no cotidiano, ele nos mostra
que o cronista tem seu
“momento de escrever” e
que, apesar da pressa,
característica do ofício, ele
também recebe o impulso da
inspiração, seleciona e
pesquisa, trabalhando o
texto em suas diferentes
fases.
SÉRGIO PORTO
Traz a força total do humor
tipicamente brasileiro
expresso nas crônicas de
Stanislaw Ponte Preta. Além
de registrar a vida cotidiana,
ele critica aquele tipo inculto
que inventa palavras e
expressões, criando um
mundo de baboseiras (na
mira, Ibrahim Sued).
Influenciado por Manoel
Bandeira, consciente das
técnicas narrativas e dos
recursos da língua, Porto
recupera, através do humor,
a poesia. Foi um raro
criador de tipos que
representam a índole do
povo brasileiro, dando-lhes
sempre a preferência em
suas narrativas, um tanto
fatídicas. (2)
LOURENÇO DIAFÉRIA
Segue outra vertente do
humorismo: a precedência
dos fatos sobre os
personagens que os vivem,
vistos com um olhar mais
otimista. Consciente de que
sua função é prestar
atenção ao banal, ele vai
costurando retalhos de
informações até transformá-
los em um relato veros-
DA VIDA
Artur da
Távola
Lídia Federici
Eça de Queiroz
Carlos EduardoNovaes
João Carlos
de Oliveira
Mo cyr S liar
ac
gou
La Br nett
24
CRONISTAS FAMOSOS
símel, estruturado de acordo
com as leis da coerência do
texto, as peças ajustadas
como num quebra-cabeça.
Diaféria vai cumprindo o
exercício da crônica como um
testemunho do nosso tempo,
contando as tragicomédias
diárias, fazendo o leitor
recuperar seu senso crítico
enquanto se diverte,
alcançando o que está além
da banalidade. (3)
PAULO MENDES CAMPOS
É um caçador de imagens
perdidas nas lembraças.
Suas crônicas parecem
poema em prosa tentando
resgatar o tempo da infância
perdida, em um jogo de
analogias que envolve o
leitor num somatório de
emoções. Seu universo
imaginário aproxima-se do
real, permitindo ao leitor
suportar as pressões do
mundo convencional e partir
para buscar novos
horizontes, lembrando que
ainda vale a pena viver.
CARLOS HEITOR CONY
A experiência pessoal serve
como ponto de partida para o
trabalho deste cronista. Do
convívio com sua própria
família nascem as reflexões
que servem de pretexto para
formar uma visão crítica do
mundo. Transitando entre
textos despreocupados e
dramáticos, Cony demonstra
claramente sua preocupação
em mergulhar na alma de
seus personagens para
melhor compreender os
mistérios do ser,
aproveitando “a leveza da
crônica para buscar a
leveza do espírito, na
imagem do amor
eternamente retornando
ao homem e lhe
devolvendo o sentido da
humanidade”. (4)
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE
Seus textos apresentam a
magia da síntese, o ritmo
adequado, o jogo de
imagens e o fino humor
que revela o cansaço da
vida e sua reabilitação.
Drummond sabe que a
crônica também tem sua
“musa”, o objeto nomeado
para o nosso reencontro
com a essência, nosso
renascer. Dessa relação ele
tira o necessário
distanciamento para
compreender seus próprios
atos, confirmando o
encontro do homem com
alguma coisa que esta fora
dele.
VINÍCIUS DE MORAES
Apesar de considerar a
“prosa como uma arte
ingrata” ele mantém o
equilíbrio entre o não
ficcional e o ficcional,
usando artimanhas
peculiares. Transita entre
a poesia, a prosa e a
crônica usando
subjetivismo como forma
de apreensão do ser
humano. Um artista, no
sentido pleno da palavra.
RUBEN BRAGA
Dotado de uma
sensibilidade especial e um
lirismo reflexivo, Braga
conhece a importância dos
pequenos momentos que,
somados, completam o
quebra-cabeças da vida.
Certamente capaz de
produzir contos, novelas ou
romances, ele não se deixou
seduzir pelos chamados
"gêneros nobres" e tonou-
se essencialmente, cronista.
Ocupa lugar de destaque na
história da crônica
brasileira. Pertencendo à
linhagem do poeta Manuel
Bandeira, de quem recebeu
influência e de João do Rio,
antecessor de todos os
cronistas, Ruben Braga
através de valores que
recebeu em sua formação
situa-se como um indíviduo
num contexto social amplo.
Ele compõe, então, um
caminho claro, através do
qual o prazer da leitura
pode ser reencontrado,
mostrando, através de um
fato miúdo ou da estória
inventada, a nossa própria
estória. Ler Ruben Braga é
encantar-se com suas
palavras.
1- Sá, Jorge de. A Crônica. Ática, São Paulo, 1985, pág. 9. 2- Idem, pág. 31-37 3- Idem, pág. 39-47. 4- Idem, pág. 64
25
olicitado a colaborar com este trabalho, o paulistano do Sb a i r r o d o B r a z , Lourenço Diaféria, foi muito pres-
tativo, respondendo sem economia de palavras e
com seu modo espe- cial, perguntas sobre a crônica
e o cronista, tais como: conceituação, gênero,
fontes, estrutura, redação, linguagem, estilo,
crônica e jornal, leitura etc.
C o n s i d e ra n d o - s e namorado fiel e persistente anda-
rilho da Cidade de São Paulo, Diaféria observa os des-
vãos da cidade e seus habi- tantes anônimos, utilizando-os como
temas preferidos de suas crô- nicas, publicadas na imprensa nos últi-
mos trinta anos. Está, portanto, plena- mente habilitado para discorrer sobre o
assunto.
Diaféria conceituou a crônica como um texto aberto, que se completa com a imagina-
ção do leitor. Não afirmou, decididamente, que a crônica seja unicamente um gênero
jornalístico, mas confirmou que o jornal é seu território e que ela é uma derivante do
jornalismo.
Apontou que o cronista trabalha as informações de acordo com seu modo pessoal de
ser e garante que um dos segredos da crônica é o seu gancho inicial. É preciso encon-
trar a embocadura certa, o tratamento do assunto. No seu caso particular as informa-
ções, sensações e emoções são tratadas em banho- maria, são curtidas até que, de
repente, elas se transformam em inspiração ou pro- posta de texto
Diaféria acredita que a crônica necessita de uma linguagem específica, mais direta com o leitor,
mais sensível, mais coloquial, mas esta linguagem varia de acordo com o mês, o dia, a hora, a
estação do ano, o fígado, o humor, a disposição, o céu e o funcionamento da máquina de escre-
ver.
LOURENÇO DIAFÉRIA
27
Quanto ao estilo, o seu, se é que tem algum (ele o diz), é fotografar a rua, a cidade, a vida,
como um lambe-lambe de praça pública. Preocupar-se com coisas e pessoas sem importância.
Seu assunto são as antimanchetes.
Diaféria pensa que a função da crônica num jornal diário é fornecer leitura amena e vender os
exemplares, pois a crônica tem seus leitores. Sua leitura deve ser feita do modo que o leitor
queira fazê-lo: de manhã no café, depois do almoço, à noite em casa. A crônica é um texto ágil,
rápido, lépido, fugaz, um texto curto que não toma o tempo, nem enrola ninguém. É um zás.
Por fim, ele confirma que o cronista é o obervador de coisas minúsculas e de coisas imensas;
ambas estão na frente de todos e ninguém as vê.
As repostas em prosa de Lourenço Diaféria vêm confirmar tudo o que foi exposto até agora
neste trabalho. (Anexos)
A CRÔNICA, SEGUNDO LOURENÇO DIAFÉRIA
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28
CONCLUSÃO
S e u i n t e r e s s e p e l a
atualidade, sua difusão
coletiva, seu oportunismo na
transmissão de idéias e
emoções, a colocam como
um gênero jornalístico
opinativo.
Sozinha a crônica é efêmera,
dura o tempo de uma edição
de jornal. Reunidas, as
crônicas formam um painel
da vida que tanto pode ser
localizada, quanto abran-
gente.
É
o
grito de
liberdade
de um escre-
vente rebelde
que insiste em
temperar os fatos
diários, insiste em ver
o que a maioria deixou de
ver, insiste em revelar
emoções para outros tantos
que querem saber daquilo que na
sua correria deixaram de perceber.
Ela registra o momento,
fazendo emergir os contor-
nos do objeto, suas circuns-
tâncias, seus detalhes, que o
olhar comum e corrido não
havia registrado. A crônica é
um gênero "expressionista",
também. É a expressão da
impressão.
A crônica é um pequeno
oásis de prazer para quem a
escreve e para quem a lê.
Nem
tão simples,
nem tão fácil quanto
qualquer desavisado
possa imaginar!
A crônica é o resultado de um
modo muito pessoal de ser, algo
que oscila entre o objetivo e o
subjetivo, tendendo ora para um
lado, ora para o outro, e por isso
mesmo suas técnicas são
d i f í ce i s de desc rever.
Entretanto, é evidente que
tem traços estilísticos
próprios.
Elas registram
u m c e r t o lugar, num certo
t e m p o . E n t ã o , tornam-se duradouras.
A crônica assemelha-se a uma máquina fotográfica,
desfocando o ponto visado.
A crônica, com sua
simplicidade, tem conse-guido manter uma simbiose
perfeita entre autor e leitor, que a mantém viva. Nada conseguirá bani-la dos jornais e dos livros. Arte arteira, impertinente, sedutora, brasileira a
crônica prossegue conquistando seu espaço.
29
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar café ao
balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. gostaria de estar inspirado, de
coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no
cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida
diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência que a faz
mais digna de ser vivida. Visava ao cirscunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num
flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente
doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial.
Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café enquanto o
verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último
poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um útimo olhar fora de mim, onde vivem os assuntos
que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se numa das
últimas mesas de mármore ao longo da
olhos grandes de curiosidade ao redor.Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo,
porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente
retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo
sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente
ansiosa,como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta
para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A
meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão
apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - bolo simples,
amarelo-escuro, apena uma pequena fatia triangular.. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de coca-
cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a
comer? Vejo que os três, pai, mãe e
DIÁRIO
A ÚLTIMA CRÔNICA
30
além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas,
que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. e enquanto ela serve a
coca-cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto esaiado, a
menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando
as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas,
muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam
discretos; “parabéns pra você, parabéns pra você... Depois a mãe recolhe
finalmente as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente
e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com
ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe
cai no colo.O pai corre os olhos pelo botequim,
satisfeito como a se convencer intimamente do sucesso da celebração.
De súbito, dá comigo a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se
perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba
sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria a minha última crônica: que fosse pura como esse
sorriso.(1)
Esta crônica traduz, com simplicidade, os itens que foram discutidos neste trabalho.
Você consegue não se envolver?
1- Fernando Sabino. A Companheira de Viagem. Sabiá, Rio de Janeiro, 1972, 2a.ed., pág. 179-182.
31
BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Sulina, Porto Alegre, 1980.
CÂNDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: Para Gostar de Ler Crônicas. Ática, São Paulo, 1979/80.
COUTINHO, Afrânio. Ensaio e Crônica. In: A Literatura no Brasil. Sul Americana, Rio de Janeiro, vol VI, 2a. ed., 1971.
DIAFÉRIA, Lourenço. Depoimento-Escritor Brasileiro. Secretaria Municipal de Cultura. São Paulo, 1981.
GUARACIABA, Andréa. Crônica. In: MELO, José Marques de. Gêneros Jornalísticos na Folha de São Paulo. FTD/ECA/USP, São Paulo, 1987.
GARGUREVICH, Juan. Generos Periodísticos. Ciespal, Quito, 1982.
MARTINEZ, Albertos José Luiz. Redaccion Periodística. ATE, Barcelona, 1974.
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MELO, José Marques de. A Opinião no Jornalismo Brasileiro. Vozes, Rio de Janeiro, 1985.
MORAES, Vinícius de. Para Viver Um Grande Amor. José Olympio, Rio de Janeiro, 1962.
SÁ, Jorge de. A Crônica. Ática, São Paulo, 1985.
SABINO, Fernando. A Companheira de Viagem. Sabiá, Rio de Janeiro, 2a.ed., 1972.
RÓNAI, Paulo. Um Gênero Brasileiro: A Crônica. In: HOWER, Alfred e PRETO RODAS, Richard, org. Crônicas Brasileiras. Center for Latin American Studies. University of Flórida, 1971.
BIBLIOGRAFIA
32
Prezada Nisia
Tenho vários conceitos de crônica. Vários conceitos, porque a crônica pode ser um quase-conto, uma quase-dissertação, um quase-poema, uma quase-reportagem, uma crônica e até, se me permite, uma quase-crônica. Existem vários tipos de crônica. A memorialística, a meditativa, a humorística e assim por aí vai. Mais de um autor já tentou - alguns conseguiram chegar perto - definir a crônica com precisão. Passo-lhe um definição do Dicionário de Comunicação, de Carlos Alberto Rabaça e Gustavo Barbosa: crônica é um texto jornalístico, livre e pessoal, criado a partir de fatos da atualidade. Pode ser crônica política, esportiva, artística, literária, de amenidades. Eu, pessoalmente, entendo a crônica como um texto aberto e que se completa com a imaginação do leitor. A crônica não é um fato seco, um episódio escrito. A crônica exige o pacto do leitor. O leitor completa a crônica. A crônica é o episódio embalado pela imaginação. Do cronista e do leitor.Não digo que a crônica seja um gênero unicamente jornalístico. Mas ela está tão ligada ao jornal - o jornal é seu território - que muitas vezes se confunde com o próprio jornalismo. Mas a crônica é um derivante do jornalismo. A crônica é como a estrada vicinal do jornalismo. Ela dá voltas, faz rodeios, circunvaga, flana, adeja, sobre os acontecimentos. Os acontecimentos que aconteceram, que podia ter acontecido e que jamais aconteceram. A crônica é a ficção jornalística do cotidiano.Depende do cronista e as fontes do cronistas podem ser o mar, a família, uma dor de dente, um filho, uma amiga, um resto de amor, uma montanha, um pássaro, um avião, um pedaço de telha, uma rua, as esquinas, o luar, um cadáver abandonado no asfalto enquanto o camburão do Instituto Médico legal não chega. Uma crônica como a definiu o cronista Artur da Távola, são os sustos do dia-a-dia. O cronista trabalha as informações de acordo com seu modo de viver e de olhar o mundo. Sem dúvida, um dos segredos da crônica é seu gancho inicial. O gancho que prende o leitor. O Luís Fernando Veríssimo, filho do Érico Veríssimo, escreveu que qualquer assunto é assunto de crônica. Mas é importante achar a embocadura. o tratamento do assunto. No meu caso, que nem sei se serve de exemplo, as informações - melhor diria, as sensações, as emoções - são tratadas em banho-maria. Remoendo. Muitas vezes, pensando as informações durante horas. Por vezes, a informação é recolhida dias antes, meses antes. E ficam curtidas, maceradas. De repente, elas tomam corpo. Se solidificam. Deixam de ser fumaças na cabeça. Mas não é um trabalho rigoroso, sistemático, disciplinado. Torna-se um hábito. As informações dia-a-dia vão para uma gaveta imaginária, um cofre imaginário, um cantinho da memória. Súbito, a informação se apresenta, como inspiração. Ou proposta de texto.A linguagem varia de acordo com o mês, o dia, a hora, a estação do ano, o fígado, o humor, a disposição, o céu e o funcionamento da máquina de escrever (para quem escreve sem computador). Acredito que a crônica necessita, sem, de uma linguagem específica. Mais direta com o leitor. Mais sensível. Mais coloquial. Se se aplicar 'a crônica a técnica jornalística - mas qual técnica? - a crônica poderá terminar sendo uma reportagenzinha, um comentariozinho, uma noticiazinha, um editorialzinho. A linguagem da crônica
é a linguagem cordial - no sentido de cor, coração - de quem se abre para o público. Costumo dizer que, com o tempo, a crônica se transforma no strip tease do cronista. Não sei. Nunca tive a preocupação de descobrir um estilo. Meu estilo é fotografar a rua, a cidade, a vida, como um lambe-lambe de praça pública. Eu me preocupo com as coisas e as pessoas sem importância. meu assunto são as antimanchetes.Eu penso que a importância da crônica num jornal diário é dar leitura amena ao leitor. è fazê-lo descobrir, sentir na própria pele, que a vida não é apenas grandes fatos, grandes acontecimentos, grandes títulos de primeira página. Uma viagem de ônibus, bairro a bairro, pode não ser notícia para ninguém. Mas é assunto de crônica. Quem já escorregou numa casca de banana, no meio da rua, mesmo sem ter fraturada nenhum osso, carrega a sensação por horas e até dias. A crônica pega a emoção do tombo sem fraturas. Pega a emoção banal da viagem de ônibus que vai da rua Tal 'a rua Tal e chega ao ponto final com as pessoas, os passageiros, vivos. A importância da crônica num jornal diário é, também, o fato simplório de que a crônica vende jornais. A crônica tem leitores. No dia em que a crônica não vender jornais, não tiver leitores, o cronista terá de vender batas na feira-livre do bairro.Como ler uma crônica? ora, do jeito que a pessoa gosta de ler. De manhã, no café da manhã. Depois do almoço, se é que a pessoa almoçou. De noitinha, quando chega em casa depois do trabalho. A crônica é um texto ágil, rápido, lépido, fugaz. Um texto muito curto. Sua leitura não toma tempo de ninguém. Essa é uma das características da crônica: texto curto, leve, ágil. Sem muita enrolação. Mas um texto que toque as pessoas. Como um gesto de mágica. Nada mais que isso. O leitor lê a crônica como queira ler. Mas tem que ler tudo, do começo ao fim. Não é como um romance, que pode ser lido aos pedaços. Não é como um biografia. A crônica não tem capítulos. è um zás.Acho que já expliquei, de certa forma, quem é o cronista. O cronista é o observador das coisas minúsculas, e o observador das coisas imensas - enormes - que ninguém vê. Nelson Rodrigues, com fina ironia, costumava escrever que o carioca não enxerga o Pão de Açúcar. O morro está lá, na cara, e o carioca não o vê. Tão comum, isso. Certa ocasião mataram um assaltante aqui perto, no bairro. De manhã cedo, o moço estava lá, estirado na calçada. As pessoas olhavam de longe, curiosas. Dois policiais militares montavam guarda ao defunto. O cadáver estava coberto com jornais. O defunto, o cadáver, era assunto para a seção de polícia dos jornais. Mas os jornais que o cobriam, as notícias estampadas no jornais que o cobriam, seriam um tema para crônica. Do cadáver, sob os jornais, aparecia apenas a ponta do pé, cor de cera. Um único pé. Imóvel. Hirto. Pacificado pela morte definitiva. O pé do assaltante morto é que era a crônica.Não sei se deu para entender. Tudo bem. Se você quiser, há um livro editado recentemente pela editora Scipione, de autoria da Flora Bender e da Ilka Laurito. Chama-se Crônica - história, teoria e prática. Procure esse livro. Vale a pena.
Abração e bom trabalhoCordialmente
Lourenço Diaféria1994