Elisa Motta de Souza Siqueira
Tecendo redes de aproximações simbólicas uma interpretação do Almanaque do Aluá n.1
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação da PUC-Rio.
Orientadora: Profa. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho Co-orientador: Prof. Marcello Sorrentino
Rio de Janeiro Julho de 2016
Elisa Motta de Souza Siqueira
Tecendo redes de aproximações simbólicas uma interpretação do Almanaque do Aluá n.1
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho
Orientadora Departamento de Educação – PUC-Rio
Prof. Marcello Sorrentino Co-orientador
Departamento de Educação – PUC-Rio
Profa. Maria Inês Galvão Flores Marcondes de Souza Departamento de Educação – PUC-Rio
Prof. Osmar Fávero
UFF
Profa. Monah Winograd Coordenadora Setorial do Centro de
Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 22 de julho de 2016
Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, da autora e dos
orientadores.
Elisa Motta de Souza Siqueira
Graduou-se em Pedagogia pela Universidade
Federal Fluminense (2009). Integra como
pesquisadora o Núcleo de Estudos e Documentação
em Educação de Jovens e Adultos (NEDEJA),
vinculado ao Programa de Pós Graduação em
Educação da Universidade Federal Fluminense e o
Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Museu,
Cultura e Infância (GEPEMCI), ligado ao
Departamento de Educação da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem
experiência na área de Educação, com ênfase na
coordenação pedagógica de programas e execução
de projetos de pesquisa que abordam como tema a
educação de jovens e adultos e processos culturais.
Ficha Catalográfica
CDD: 370
Siqueira, Elisa Motta de Souza Tecendo redes de aproximações e apropriações simbólicas : uma interpretação sobre o conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1 / Elisa Motta de Souza Siqueira; orientadora: Cristina Carvalho; co-orientador: Marcello Sorrentino. – Rio de Janeiro PUC, Departamento de Educação, 2016. v., 106 f.; il. color. ; 30 cm
1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Educação.
Inclui referências bibliográficas.
1. Educação – Teses. 2. Almanaque. 3. Educação popular. 4. Cultura. 5. Saber. 6. Negociação. I. Carvalho, Cristina. II. Sorrentino, Marcello. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Educação. IV. Título.
Dedico a meu bisavô, Seu Motta (in memorian) e à criança que carrego,
Heitor ou Iara, herdeiros das histórias de almanaque contadas pelo Biso.
Agradecimentos
À minha mãe Vania, cujo primeiro ensinamento foi amar;
A meu companheiro e amigo Wagner, obrigada pelo apoio e afeto.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro, a todos os professores do departamento e aos funcionários da
secretaria;
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à
PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não poderia ter
sido realizado.
À professora Cristina Carvalho, muito obrigada pelo acolhimento e carinho. Você
é muito querida!
Ao professor Marcello Sorrentino, grata pelas conversas instigantes. Você se
tornou um amigo estimado.
À professora Alícia Bonamino, obrigada pela gentileza.
Aos integrantes da banca avaliadora, Maria Inês Marcondes e Osmar Fávero, grata
por terem aceitado o convite;
Aos amigos Renato, Dimas, Renata, Diana e Valéria, muito obrigada pelos
momentos de descontração e generosidade da escuta;
Aos amigos do Núcleo de Educação de Adultos da PUC-Rio: Duarte, Ana e Maria
Luisa, obrigada pelo amparo;
Às amigas do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Museu, Cultura e
Infância da PUC-Rio: Rosana, Andrea, Isabel, Priscila, Thamiris, Roberta,
Clarisse, Késsia, Alina, Monique, Isabel Mendes, Taiane, Petro e Kethlin.
Aos companheiros de mestrado: Angela, Cintia, Roberta, Rômulo, Rosa, Laryssa,
Jéssica, João Paulo, Elio, Érika, Carolyna, Liliane, Calu, Carolina, Carla e Joyci,
grata pelos momentos de crescimento pessoal e intelectual.
A todos que de alguma forma contribuíram para a realização deste trabalho.
Obrigada por tudo!
Resumo
Elisa Motta de Souza Siqueira; Cristina Carvalho (Orientadora); Marcello
Sorrentino (Co-orientador). Tecendo redes de aproximaçãoes
simbólicas: uma interpretação do conteúdo do Almanaque do Aluá n.
1. Rio de Janeiro, 2016. 106p. Dissertação de Mestrado – Departamento de
Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Esta dissertação consiste na interpretação textual e pictórica do Almanaque
do Aluá n.1, livro de leitura utilizado como material didático na educação de
jovens e adultos. Elaborado pelo Serviço de Apoio à Pesquisa em Educação
(SAPÉ), em 1998, o Almanaque é um artefato cultural produzido a partir de
práticas educativas que remetem a uma forma específica de atuação desenvolvida
pelos movimentos de cultura e educação popular nos anos de 1960. Tomando
como ponto de partida a definição do conceito de cultura de Clifford Geertz,
enquanto teias ou estruturas de significados socialmente constituídas, a pesquisa
procura estabelecer e compreender redes de aproximações simbólicas entre o
conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1 e as categorias da educação popular –
Cultura, Cultura Popular, Saber, Poder e Negociação. Neste sentido, a referência
conceitual de Geertz – visão de mundo – é compreendida no contexto da educação
popular e, em particular, da ação cultural do SAPÉ. Assim, busco compreender a
relação entre os elementos conceituais do SAPÉ e os aspectos tipográficos do
almanaque, além de responder, principalmente, a seguinte questão: as mensagens
dos textos e imagens sugerem uma dinâmica de negociação nas páginas do
Almanaque? Seguindo os termos de Bardin e Bauer, utilizo como método a
análise documental e a análise de conteúdo. As categorias foram definidas através
da análise documental e a análise de conteúdo permitiu entender como os textos e
imagens evocam a visão de mundo dos movimentos de educação e cultura popular
dos anos de 1960 e a visão de mundo do SAPÉ.
Palavras-chave
Almanaque; educação popular; cultura; cultura popular; saber; poder;
negociação.
Abstract
Elisa Motta de Souza Siqueira; Cristina Carvalho (Advisor); Marcello
Sorrentino (Co-Advisor). Weaving nets of approximations symbolic: an
interpretation of the Almanac Aluá n. 1 content. Rio de Janeiro, 2016.
106p. MSc. Dissertation – Departamento de Educação, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This work consists on a textual and pictorial interpretation of Aluá
Almanac n.1’s content, a reading book used as didactic support material in kid and
adult education. Prepared by the Research on Education Supporting Service
(SAPÉ) in 1998, the almanac is a cultural artifact produced from educational
practices that refer to a specific way of education and performance developed by
education movements and popular culture in the 1960s. Starting from Clifford
Geertz’s definition of the culture concept as webs or socially constituted meaning
structures, the research tries to establish and understand networks of approaches
symbolics between the Aluá Almanac n. 1 and the categories of Popular
Education – Culture, Popular Culture, Knowledge, Power and Negotiation. In this
sense, Geertz’s conceptual references – worldview – are understood in the context
of popular education and, in particular, of the cultural SAPE action. Thus, i seek
to understand the relationship between the conceptual elements of SAPE and
typographic aspects of the almanac, and to answer mainly the following question:
Messages of texts and images suggest a dynamic trading in the pages of the
almanac? Following the terms of Bardin and Bauer, use as a method to document
analysis and content analysis. The categories were defined by document analysis
and content analysis enabled us to understand how texts and images evoke the
world view of education movements and popular culture of the 1960s and the
world view of Sape.
Keywords
Almanac; popular education; culture; popular culture; power; knowledge;
negotiation.
Sumário
1. Introdução 14
2. Almanaque: traços de um objeto 21
2.1. O que é? O que é? 22
2.2. A pedagogia do almanaque e seus temas de estudo no Brasil 28
2.3. SAPÉ: o almanaque do Aluá e a pedagogia da negociação 33
3. Categorias de análise da Educação Popular:
um percurso metodológico 39
3.1. Notas sobre a conjuntura política no Brasil (1958 a 1964) 43
3.2. Antecedentes conceituais: existencialismo cristão e culturalismo 48
3.3. Cultura, cultura popular e conscientização 51
3.4. Saber, poder e democratização 56
4. Interpretação pictórica e textual do Almanaque do Aluá n. 1 63
4.1. Enumeração e análise temática 66
4.2 Aproximações simbólicas entre as categorias e o conteúdo 85
5. Considerações finais 97
6. Referências bibliográficas 101
Lista de Ilustrações
Gráfico 1 – Frequência das unidades de registro
nos textos e imagens 84
Gráfico 2 – Espaço ocupado no Almanaque 84
Figura 1 – Capa do Almanaque 67
Figura 2 – Ocorrência Receita em destaque 68
Figura 3 – Ocorrência Artes em destaque 68
Figura 4 – Ocorrência Charada em destaque 69
Figura 5 – Ocorrência Biografia em destaque 69
Figura 6 – Ocorrência Divertimento em destaque 70
Figura 7 – Ocorrência Curiosidade em destaque 70
Figura 8 – Ocorrência Literatura em destaque 71
Figura 9 – Ocorrência Provérbio em destaque 71
Figura 10 – Texto de apresentação 72
Figura 11 – Grid tipográfico 74
Figura 12 – Tema Astrologia 76
Figura 13 – Tema Cadendário 77
Figura 14 – Tema Cadendário, linha do tempo 78
Figura 15 – Destaque Globalização 80
Figura 16 – Destaque Trabalho 81
Figura 17 – Tema Globalização 87
Figura 18 – Registro Globalização 87
Figura 19 – Registro Globalização 88
Figura 20 – Registro Trabalho 91
Figura 21 – Registro Trabalho 91
Lista de Tabelas e Quadros
Quadro 1 – Codificação e categorização dos dados 66
Quadro 2 – Grupo I: Calendário e Astrologia 75
Quadro 3 – Grupo II: Provérbio, Charada, Receita, Literatura,
Charge, Dica, Divertimento, Artes e Curiosidade 79
Quadro 4 – Grupo III: Mitologia, Costumes, Religião, Artigos,
Ciência, Trabalho, Política e Biografia 81
Quadro 5 – Coocorrência de Temas 82
Quadro 6 – Distribuição dos Temas em Grupos 83
Lista de abreviaturas
ABL Academia Brasileira de Letras
AP Ação Popular
CUT Central Única dos Trabalhadores
CEDI Centro Ecumênico de Documentação e Informação
CEI Centro Evangélico de Informação
CPC Centro Popular de Cultura
CEBs Comunidades Eclesiais de Base
GREPE Grupo de Estudos e Pesquisa
IBF Instituto Brasileiro de Filosofia
IHGB Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros
JUC Juventude Universitária Católica
MEB Movimento de Educação de Base
NEDEJA Núcleo de Estudos e Documentação sobre Educação de Jovens e Adultos
PT Partido dos Trabalhadores
PEJ Programa de Educação Juvenil
PNA Programa Nacional de Alfabetização
SAPÉ Serviço de Apoio à Pesquisa em Educação
UNE União Nacional dos Estudantes
Unicamp Universidade de Campinas
USP Universidade de São Paulo
UFF Universidade Federal Fluminense
Meu lunário é a memória
De um país que vai passando
Diante dos nosos olhos,
Rindo, mexendo, cantando.
Mestiço, latino, caboclo, nativo.
É velho, é criança, morreu e tá vivo...
Presente, mas até quando?
Meu lunário é conselheiro,
Meu folheto, é meu missal,
Atravessando os milênios,
Cada ponto cardeal.
De norte a sul, de pai para filho,
De lá para cá, meu livrinho andarilho,
Fabuloso romançal.
(Lunário Perpétuo, Antônio Nóbrega).
1 Introdução
Nos últimos quarenta anos, os estudos sobre os almanaques na Europa,
principalmente na França e em Portugal, buscaram compreender a riqueza dos
registros por eles apresentados sobre a vida cultural e política das sociedades que
os produziram, bem como a sua pedagogia, isto é, como a sua leitura divertia
ensinando, o que ensinava e como o fazia. Essas pesquisas também pretenderam
conhecer as particularidades da leitura dos almanaques e sua tipologia. Há trinta
anos, no Brasil, as pesquisas sobre a temática seguiram os mesmos caminhos.
Vale destacar que as pesquisas sobre almanaques no Brasil concentram-se
no final da década de 1980 e nos anos 1990, período em que foram publicadas
duas teses e em que foi organizado um colóquio internacional Os Almanaques
Populares: da Europa às Américas – Gênero, Circulação e Relação
Interculturais, realizado na Universidade de Campinas (Unicamp) e na Fundação
Memorial da América Latina, na cidade de São Paulo, em 1999. Para acompanhar
o encerramento do colóquio foi elaborada uma exposição de originais, de diversas
coleções particulares, e reproduções de almanaques divulgados desde o século
XVI até os anos 20001.
A alternativa para apresentar o almanaque como tema de pesquisa desta
dissertação foi recuperar, através da memória, quando teria surgido meu interesse
pelos almanaques e as minhas primeiras leituras. Nas minhas lembranças, o
primeiro contato com o livro foi na infância, lendo os almanaques de férias da
turma da Mônica2, no início dos anos de 1990. Na década seguinte, no curso de
Pedagogia da Universidade Federal Fluminense (UFF), conheci o almanaque
1 Aguns desses exemplares expostos foram publicados em um livro organizado por Meyer (2001). 2Foi idealizado pelo criador das personagens, Maurício de Souza e pela Editora Abril, publicado
em 1986 com o título, Superalmanaque do Maurício e no ano seguinte passou a se chamar
Almanacão de Férias. Foi publicado pela Editora Globo até o ano de 2006. Ainda em 1994 é
lançado o Almanacão Turma da Mônica, que encerrou também em 2006, quando a edição passou a
ser feita pela Editora Panini. São comercializados até hoje com os títulos Grande Almanaque de
Férias e Grande Almanaque Turma da Mônica.
Fonte: http://arquivosturmadamonica.blogspot.com.br/2013/04/hoje-vou-falar-sobre-colecao-
almanacao.html. Acesso em: fev. 2016.
15
Bandas d’Além, idealizado na disciplina eletiva de Educação Patrimonial,
ministrada pela professora Lygia Segala. Cursar essa disciplina foi fundamental
para despertar minha atenção para a temática da cultura popular no campo de
estudos da Educação.
Foi no Núcleo de Estudos e Documentação sobre Educação de Jovens e
Adultos (NEDEJA)3 que tive a oportunidade, ainda na graduação de Pedagogia,
de unir ensino à pesquisa, sendo então possível iniciar minha caminhada para
tornar-me pesquisadora. A curiosidade por desvendar, por meio do estudo, o que
as imagens, os textos e o objeto almanaque representam – o que eles têm a dizer
sobre o contexto histórico em que foram elaborados e que lógicas subjazem suas
assimilações e usos simbólicos – passaram a fazer parte do meu cotidiano.
A intenção deste trabalho de pesquisa é analisar e interpretar os elementos
textuais e iconográficos que compõem a trama do Almanaque do Aluá n.14. Para
tanto, busco estabelecer redes de aproximação simbólicas entre seu conteúdo e as
apropriações do conceito de cultura e cultura popular historicamente construídos
no campo da Educação Popular no Brasil e os desdobramentos dessas definições
em outras conceituações assumidas pela equipe de elaboração do livro.
Para atender a este objetivo, encontro na teoria da interpretação da cultura
sistematizada por Geertz (2008) elementos para fundamentar o método de análise.
Para o autor, cultura é definida como teias ou estruturas de significado
socialmente estabelecidas, e a compreensão dessas estruturas dentro de sua base
social e material é a interpretação, entendida como caminho para se decodificar os
possíveis sentidos de um fenômeno, evento, ato ou artefato cultural.
Geertz (2008) afirma que a cultura é um sistema de signos, a partir do
desenvolvimento do conceito de visão de mundo em seus estudos sobre as
dimensões culturais da política, da religião, dos costumes sociais e dos valores de
um povo. Neste sentido, a cultura é definida como um sistema simbólico de
organização social, controle, sentido, ordem etc.
O conceito de visão de mundo é visto pelo autor como os aspectos
cognitivos e existenciais que dão sentidos às ideias que abrangem a ordem social.
3 O NEDEJA é coordenado pelo professor Osmar Fávero. Foi criado em meados de 2000, com o
intuito de organizar o importante acervo documental sobre as campanhas de alfabetização e os
movimentos de cultura e educação popular (a partir da década de 1940). 4 Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me003417.pdf
16
Deste modo, a política, a religião, os costumes e os valores, enquanto categorias
que influiem na estrutura social, conservam ou estabelecem significados gerais,
pelos quais o indivíduo interpreta sua experiência e se conduz na sociedade. Esses
significados se expressam, no entanto, através de símbolos que materializam
comportamentos culturais e criam e recriam elementos de controle social.
Trabalhar com esses conceitos é entender a cultura como teia de
significados e que é pela cultura que se produzem o valor e o significado em uma
sociedade, ocorrendo, dessa forma, a organização da experiência e ação humana
através de meios simbólicos, fornecendo um sentido às ações dos indivíduos.
Assim como o conceito de visão de mundo de Geertz (2008), o texto do
Almanaque do Aluá n. 1 encerra em si perspectivas teóricas e diretrizes para a
ação que versam sobre uma ordem social ideal, aspirações profissionais e de
estilos de vida em geral, ideias de justiça, bem como o protagonismo de certos
atores sociais para a realização dessa visão de mundo em particular.
Nesse sentido, os elementos simbólicos presentes no conteúdo do
Almanaque do Aluá n. 1 se inserem em processos e construções de sentidos
específicos, que são condizentes à visão de mundo das experiências de cultura
popular e educação popular, tradutores da visão de mundo da instituição
idealizadora do livro. Com base nesses aspectos, os dados desta pesquisa, a partir
do conteúdo temático da publicação em análise, são concebidos como formas
simbólicas e situados como intencionais ou não intencionais, estruturais e
contextuais.
O Almanaque do Aluá n.1 (segunda edição, dentre três)5 foi produzido em
1997 e publicado para o ano de 1998, pelo Serviço de Apoio à Pesquisa em
Educação (SAPÉ)6, com o apoio da União Europeia
7. Contou também com a
parceria do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, vinculado ao
Ministério da Cultura para a tiragem de 5.000 exemplares. Os processos de
elaboração e implementação das edições do livro estão descritos em artigos e em
relatórios feitos pela equipe do SAPÉ (SAPÉ, 1994, 1998a; 2006; AGUIAR e
LEITÃO, 2001).
5 Cada edição obteve uma forma distinta de financiamento e distribuição dos originais. 6 Ver p. 33 e 34. 7 Através da intermediação e consultoria do programa internacional vinculado ao Instituto para o
Desenvolvimento da Pesquisa da Universidade de Amsterdam (Indra-UVA).
17
Algumas fontes documentais da ação cultural do SAPÉ estão reunidas no
NEDEJA, distribuídos em artigos, relatórios, revistas, almanaques, uma
dissertação e uma entrevista com a professora Aída Bezerra8, fundadora do SAPÉ,
juntamente com Rute Rios9. O histórico do SAPÉ foi elaborado a partir da leitura
da referida documentação. Segundo o relatório organizado pela equipe do SAPÉ
(1998a, p. 2) designada para a concepção e produção do livro, o Almanaque do
Aluá n.1 “corresponde a uma antiga preocupação da instituição em torno da
criação de materiais pedagógicos adequados a processos de autoformação de
educadores e, sobretudo, os destinados à educação de jovens e adultos”.
As partes que compõem a costura do Almanaque do Aluá n. 1 foram
selecionadas pela equipe do SAPÉ a partir do tema “Trabalhos em tempos de
globalização” e, em função dos assuntos específicos indicados pela pauta
temática, juntou-se ao grupo uma rede de colaboradores da América Latina,
África e Europa (SAPÉ, 1998a). A justificativa para estudar essa edição do
Almanaque é a de que os temas “trabalho” e “globalização” são recorrentes,
abordados segundo pontos de vista diferentes e utilizados com fins pedagógicos
distintos na educação de jovens e adultos e, especialmente, de esses temas
traduzirem os aspectos políticos-educativos condizentes com a visão de mundo do
SAPÉ, em especial, a possibilidade de ressignificar o sentido do trabalho humano
no cenário mundial.
Na tentativa de definir o Almanaque do Aluá n.1 como objeto de pesquisa
em uma perspectiva interdisciplinar, fez-se necessário refletir sobre o conteúdo
semântico nos âmbitos dos textos e das imagens, os quais englobam as
apropriações simbólicas de uma dada cultura, considerando-as a partir da visão de
mundo da educação popular apreendidos no Almanaque10
. Neste sentido, que
aspectos políticos, sociais e culturais são encontrados nas orientações discursivas
do Almanaque? Quais dimensões dos conceitos de cultura e cultura popular, tal
como desenvolvido historicamente no contexto da educação popular, estão
inseridos no Almanaque? Como os conceitos de cultura e cultura popular se
apresentam? De que forma podem ser analisados e quais são os sentidos de
apropriação e uso simbólicos? Como articular os conceitos de cultura e cultura
8 Ver p. 33 e 34. 9 Ver p. 33 e 34. 10 A palavra nessa formatação refere-se ao Almanaque do Aluá n. 1.
18
popular com as categorias que emergem da reflexão do trabalho educativo do
SAPÉ presente no Almanaque – saber, poder e negociação?
Para o desenvolvimento desta pesquisa, é necessária a compreensão do
contexto político, social e cultural que envolve as apropriações do conceito de
cultura e seus desdobramentos no Almanaque do Aluá n. 1, principalmente por se
tratar de um material de apoio didático utilizado em classes e grupos formados por
professores que atuam na educação de jovens e adultos. Busco contribuir para o
entendimento da tipologia do almanaque, considerando que os Almanaques do
Aluá nunca foram estudados e que, a rigor, o tema também foi pouco investigado,
como se poderá constatar a partir do levantamento bibliográfico realizado.
A investigação do Almanaque do Aluá n. 1, sob o aspecto da sua tipologia,
busca entendê-lo como artefato cultural e especificá-lo como produto da ação
cultural do SAPÉ, no qual, pela inferência de seu conteúdo, como veremos
adiante, é possível constatar que não se trata de um livro de uso didático
comumente elaborado. Vale ressaltar que, assim como outros materiais didáticos
produzidos por instituições que atuam na área da educação popular, o Almanaque
consiste em um material de apoio didático que não é normatizado por políticas,
diretrizes e parâmetros da educação no Brasil. Considerando esse aspecto, sua
circulação é reduzida se comparada a de materiais elaborados ou financiados pelo
Estado.
A pesquisa parte do Almanaque do Aluá n. 1 como objeto de estudo, tendo
como finalidade compreender as características tipográficas e, em particular, os
aspectos que contextualizam o conteúdo do Almanaque como um tipo específico
de publicação, a partir da técnica de análise temática. Conforme destacado
anteriormente, o Almanaque foi elaborado pelo SAPÉ para atender o público da
educação de jovens e adultos. Tradicionalmente, a organização concentrou sua
atuação no campo da educação popular; neste sentido, interessa-me recuperar, por
meio da análise documental, as principais tendências do campo, especialmente as
conceituações de cultura e cultura popular e os desdobramentos desses conceitos
em categorias de análise do objeto de pesquisa. Através da análise de conteúdo, o
Almanaque pôde ser compreendido enquanto artefato cultural de uma concepção
de educação popular como aquela que é produzida pelas classes populares ou para
as classes populares, em função de seus interesses de classe.
19
A dissertação é composta por cinco capítulos, incluindo a introdução e as
considerações finais. No segundo capítulo, a partir de um levantamento
bibliográfico, são considerados alguns aspectos que definem, ao longo da história,
o almanaque como um tipo específico de publicação e apresentadas pesquisas
consideradas de referência sobre a temática. Tendo como ponto de partida um
conto de Machado de Assis (2001), o qual indica a relação dos almanaques com a
contagem do tempo, dos dias, meses e anos, representada pelo calendário, busco
relacionar o ensaio literário com a etmologia do termo almanaque e com a
definição de Le Goff (2013), a qual considera que o almanaque seria uma
extensão do calendário. Os apontamentos realizados por Chartier (1995) em seu
estudo sobre os almanaques franceses do período do Antigo Regime ajudam na
compreensão das argumentações contrárias à caracterização do almanaque como
uma leitura popular, em oposição ao letrado. Chartier (1995) reconhece que foi o
público camponês que mais se apropriou desse tipo de leitura.
Ainda no segundo capítulo, são abordadas as categorias de análise de
conteúdo do Almanaque que caracterizam os principais elementos simbólicos da
visão de mundo do SAPÉ, a qual traduz esteticamente uma forma específica de
atuação educativa, formada pelas aspirações, comportamentos e interações sociais
ocorridas no interior de um grupo. Apropriando-me dessa argumentação e
entendendo o Almanaque como um artefato cultural que evoca os símbolos da
educação popular, identifico que os conceitos de saber, poder e negociação,
atribuídos à visão de mundo do SAPÉ, estão subordinados ao conceito de cultura
tal como desenvolvido pelos movimentos de cultura e educação popular.
Neste sentido, no terceiro capítulo é apresentado o levantamento dos
principais conceitos desenvolvidos na educação popular e são definidas as
categorias de análise da pesquisa. Parto das concepções desenvolvidas sobre o
conceito de cultura e cultura popular nos movimentos de educação na década de
1960 no Brasil, influenciados pelo projeto nacional-desenvolvimentista em curso.
A análise dos documentos do período permitui identificar duas matrizes de
pensamento: católica e marxista. Ambas conceituaram a cultura como sendo ao
mesmo tempo a natureza transformada e significada pelo homem e enquanto
transformação cultural e mobilização política. Os elementos teóricos e
metodológicos das argumentações auxiliam na síntese da análise: o Almanaque é
um artefato cultural da educação popular, seu conteúdo recupera as apropriações
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do conceito de cultura da matriz católica de pensamento e reflete a dinâmica de
negociação entre os diversos saberes evidenciando a escolha pela publicação de
tipo almanaque.
Tendo como objetivo verificar as afirmações feitas acima, no quarto
capítulo é aplicado o médoto de análise de conteúdo nos termos de Bardin (2011)
e Bauer (2008). Para a interpretação pictórica e textual do Almanaque foi
elaborado uma regra de contagem que permitiu quantificar a ocupação espacial de
cada temática no livro. A utilização da técnica de análise temática auxiliou na
enumeração do tipo de conteúdo e na ordenação dos temas de acordo com os
enunciados dos textos e imagens.
2 Almanaque: traços de um objeto
Este capítulo é dedicado à história dos almanaques, sua definição enquanto
um tipo específico de publicação e às principais pesquisas no Brasil sobre a
temática através de um levantamento bibliográfico. É apresentado, também, o
Almanaque do Aluá n. 1 como produto da ação cultural do SAPÉ na área da
educação popular.
No decorrer da história, o almanaque foi utilizado pelas populações de
várias maneiras: na contagem do tempo; para auxiliar na colheita e indicar as
festividades; para divertir, informar e previnir catástofres naturais; como manuais
da vida prática nas cidades, difusor das ideias nacionalistas, veículo de
propaganda de produtos farmacêuticos e de vulgarização de posicionamentos de
literatos e jornalistas.
O almanaque enquanto publicação literária sofreu, ao longo de sua
história, diversas modificações no formato editorial do livro, na qualidade da
impressão e na incorporação de novas temáticas. Na atualidade, o alamanaque é
comumente associado à uma única temática, como uma grande enciclopédia sobre
um determinado assunto e às cartilhas com ensinamentos de conduta, como por
exemplo: almanaque do futebol, de culinária, do samba, do estudante, do homem
do campo, entre outros.
Basta uma rápida leitura do Almanaque do Aluá n.1 para perceber que no
seu conteúdo há gêneros textuais diversificados e abordagens variadas de temas.
Difere, portanto, do tipo de publicação encontrada atualmente. No entanto, é
possível associar a maneira de leitura do Almanaque com a forma de leitura
rápida, de passatempo, encontrada hoje em dia, como a programação das tvs em
transportes públicos, elevadores e salas de espera.
22
2.1. O que é? O que é?
Em um conto intitulado “Como se inventaram os almanaques”, divulgado
originalmente no Almanack as Fluminenses, no ano de 1890, publicado
novamente em Meyer (2001, p. 25-28), Machado de Assis discorre sobre a criação
do almanaque como sendo uma história mítica de amor entre o Tempo e a
Esperança, na qual o Tempo, um velho de barbas brancas desde que nasceu, se
apaixona pela jovem Esperança, que o desprezou por ser um ancião. O Tempo, ao
ver a Esperança, sentiu que algo batia do lado esquerdo, a boca estremeceu e o
sangue correu mais depressa, e todo ele era outro. Sentiu que era amor; mas ao
olhar no vasto espelho que é o oceano, achou-se velho. Ficou pensando em como
achar um modo de fazer com que a Esperança visse sua mocidade passar com os
anos. “O tempo inventou o almanaque; compôs um simples livro, seco, sem
margens, sem nada; tão somente os dias, as semanas, os meses e os anos” (ASSIS,
1890; In: MEYER, 2001, p. 26). Toda a terra viu desabar, no mesmo instante,
uma chuva torrencial de almanaques. O almanaque trazia a língua das cidades e
dos campos em que caía.
O ensaio literário de Machado de Assis ilustra o que a etimologia da
palavra almanaque sugere ao apresentar como sendo originária de um tipo de
organização sempre relacionada ao tempo, ao dia, ao mês, à ordem dos números –
ao calendário. O termo almanaque apresenta matizes próprios, díspares, segundo
as diversas origens apresentadas na citação abaixo:
Etmologicamente, a palavra “almanach” pode ter e aparecer com várias origens.
Do árabe “al”, e “manach”, computar, contar. Ela pode ser a junção do árabe
“ocl-o” e do grego “mnu”, mês. Nas línguas orientais “almanha” significa estreia,
alvíssaras (boas novas). Em saxão, “al-monght” ou “al-monght” ou “al-monac” seria uma contração para “al-mooned” que significa contendo todas as luas.
Originalmente, nossos ancestrais traçaram o curso da lua sobre uma tábua de
madeira à qual chamaram “al-monagt” (para “al-mooneld”). Bollème (1965) define o almanaque etmologicamante como sendo a junção do árabe “al” e do
grego “men”, mês ou ainda “menás”, lua, latim “meusis” e do antigo indiano
“mas”, medir. (PARK, 1999, p. 46)
A hipótese mais difundida sobre a origem da palavra almanaque é a de que
o termo estaria ligado ao calendário lunar pela contagem do tempo, especialmente,
na tentativa de sua organização. “O almanaque pode ter sido no início, como
23
ordenação, a extensão de um calendário que já não comportava mais tudo o que se
queria dizer” (PARK, 1999, p. 41). Neste sentido, a partir do entendimento do
calendário enquanto objeto, pode-se atribuir também ao almanaque um caráter
simbólico-imagético, em que o sistema de calendário representa a ligação
estabelecida entre o ser humano e sua organização de espaço e tempo. O tempo do
calendário é inteiramente social, no entanto, está submetido aos ritmos do
universo.
O calendário, objeto científico, é também um objeto cultural. Ligado a crenças,
além de observações astronômicas (as quais dependem mais das primeiras do que
o contrário), e não obstante a laicização de muitas sociedades, ele é, manifestamente, um objeto religioso. Mas, enquanto organizador do quadro
temporal, diretor da vida pública e cotidiana, o calendário é sobretudo um objeto
social. (LE GOFF, 2013, p. 441-442)
De acordo com Le Goff (2013), o calendário como sistema circular de um
tempo que recomeça sempre, o qual institui à data, ao ano, ao mês e ao dia uma
cronologia dos acontecimentos, apresenta também uma característica que,
enquanto objeto social, pode oferecer ao pesquisador uma determinada narrativa
do cotidiano, da cultura material, das celebrações, dos modos de vida etc. Nesta
perspectiva, o almanaque é muitas vezes utilizado como sinônimo de calendário.
O desenvolvimento da tipografia no ocidente se confunde com a história
do almanaque, sendo o último um dos primeiros gêneros a serem publicados. O
primeiro almanaque foi impresso na Alemanha em 1455, e, em 1464, começam a
ser publicados os almanaques das corporações profissionais, sendo o primeiro um
almanaque para barbeiros. Foi a partir dos séculos XVII (período em que a
literatura popular de divulgação acolhe e difunde os almanaques) e XVIII que os
almanaques ganharam popularidade em toda a Europa, apesar de já circularem
pelas aldeias, principalmente na França, durante o século XVI (CHARTIER,
2002; LE GOFF, 2013).
Séculos antes da criação da tipografia, hebreus, egípcios, gregos, romanos,
hindus e chineses produziram seus almanaques seguindo lógicas particulares de
organização e representação do tempo e do espaço, relacionadas, principalmente,
às festividades e à cosmologia. Os fasti romanos – ilustrados sobre pedra e
mármore – continham explicações sobre os festivais de César, e os clogg ingleses
– decorados e entalhados nos quatro lados de blocos de madeira, nos bastões de
24
peregrinos, em espadas e ferramentas de agricultura – foram usados desde o
século VII em outras partes da Europa para denotar, principalmente, os dias do
ano, as estações e os ensinamentos do catolicismo. Essas obras constituem alguns
dos almanaques mais antigos. Os almanaques, ao longo da Idade Média, eram
copiados em pergaminhos de origem animal (sempre raros e caros) e passaram a
ser colocados entre as páginas dos livros eclesiásticos para indicar os feriados,
dias de festa e ciclo lunar e solar (STOWELL, 1977 apud GALZENARI, 1998, p.
48).
Ao final do século XV na Europa, os almanaques inserem-se na tradição
da literatura de colportage, caracterizada pela instrumentalidade da leitura. A
partir dos séculos XVI e XVII, foram amplamente difundidos e passam a se voltar
para as artes do calendário, com as medidas e frações do tempo, as festas
religiosas, as observações do céu, da lua, dos movimentos dos astros etc. Ainda
nesse período, continham previsões climáticas, prognósticos de enchentes,
terremotos e catástrofes coletivas, como guerras e epidemias. Entre os séculos
XVIII e XIX, temáticas específicas vão se incorporando aos almanaques, criando
diferentes modelos e formas: são almanaques agrícolas, de saúde, literários,
históricos, enciclopédicos, de família, de recreação, informativo, de cidades,
administrativos, de livraria, com espaço reservado para os calendários, sempre
com os dias santos e horóscopo (CHARTIER, 2002; BOLLÈME, 1965).
Independente da sua tipologia, o almanaque, depois dessa evolução, conservou
uma estrutura de organização temática, uma matriz textual, em que, ao lado do
calendário e das cronologias que o acompanham e do horóscopo, se fazem
presentes os preceitos morais, as biografias, as narrativas de eventos históricos, as ciências, seguidos de curiosidades, ditados, poemas, charadas, jogos, medicina
doméstica. (DUTRA, 2005, p. 17)
Na França, desde o século XVII, os almanaques faziam parte do catálogo
da bibliothèque blue, composta de livros de capa azul, com larga circulação em
outros territórios do continente europeu. Popularizaram-se por toda a Europa
como impressos de uma literatura de colportage, ou literatura de cordel, uma vez
que era considerado como uma leitura de fácil apreensão, de linguagem
simplificada e, sobretudo, por ser um livro barato devido à pouca qualidade da
impressão. Os almanaques eram tipicamente vendidos nas feiras e por vendedores
ambulantes (CHARTIER, 2002; DUTRA, 2005).
25
O almanaque era um dos poucos materiais impressos aos quais a
população tinha acesso, especialmente as rurais. Vale ressaltar que a leitura era
uma prática privilegiada dos grupos sociais ligados ao clero ou à nobreza e que,
segundo a abordagem de Chartier (1995; 2002), é pouco provável que os
almanaques se destinassem originalmente ao público camponês.
Segundo Chartier (1995), é possível identificar dois principais modelos
com propostas contrárias de definição, descrição e interpretação da cultura
popular. O primeiro percebe a cultura popular em suas dependências e carências
em relação à cultura dos dominantes, caracterizando o almanaque como uma
leitura popular, em oposição à cultura letrada. O segundo, com o intuito de contra
argumentar toda a forma de etnocentrismo cultural, denuncia a ausência de um
questionamento sobre a ambiguidade do objeto popular na historiografia, pois
concebe a cultura popular como “um sistema simbólico coerente e autônomo, que
funciona segundo uma lógica absolutamente alheia e irredutível à da cultura
letrada” (CHARTIER, 1995, p. 179).
A abordagem de Chartier (1995; 2002) procura refletir sobre essas
definições de cultura popular apresentadas acima; baseia-se nos estudos realizados
na Europa sobre a literatura e a religião e identifica que a “literatura da elite” ou a
“religião do clero” – que impõem seus repertórios – não são tão radicalmente
diferentes da “literatura popular” e da “religião popular”. Portanto, de acordo com
essa argumentação, seria inútil querer identificar o almanaque como supostamente
um objeto específico da cultura popular, já que, nesse tipo de literatra, houve a
ocorrência simultânea de elementos oriundos de costumes sociais distintos.
A composição de conteúdos do almanaque foi elaborada por diferentes
tradições literárias e sociais, assim como a distribuição e a difusão desse gênero
no meio de públicos bem diferentes.
Saber se pode chamar-se popular ao que é criado pelo povo ou aquilo que lhe é destinado é, pois, um falso problema. Importa antes de mais nada identificar a maneira como, nas práticas, nas representações ou nas produções, se cruzam e se
imbricam diferentes formas culturais.
[...] Estes cruzamentos não devem ser entendidos como relações de exterioridade entre dois conjuntos estabelecidos de antemão e sobrepostos (um letrado, o outro
popular), mas como produtores de ligas culturais ou intelectuais cujos elementos
se encontram tão solidamente incorporados uns nos outros como nas ligas
metálicas. (CHARTIER, 2002, p. 56-57)
26
Neste sentido, a “cultura popular” e a “cultura letrada” se tornam híbridos.
No entanto, é necessário ter o cuidado de não definir as práticas culturais como
um sistema neutro de diferenças, como um conjunto de práticas diversas, porém
equivalentes. Tanto os bens simbólicos como as práticas culturais continuam
sendo objeto de lutas sociais onde está em jogo sua classificação, hierarquização e
sua consagração ou desqualificação. Compreender a cultura popular é situar nesse
espaço de enfrentamento as relações que unem os mecanismos da dominação
simbólica às lógicas específicas de funcionamento nos usos e nos modos de
apropriação do que é imposto.
Ainda assim, a partir de noções rudimentares de leitura, foi o público
camponês que mais se apropriou dos almanaques, lendo de forma coletiva e
compartilhada os calendários, jogos, fábulas, poesias, dicas e regras de
comportamento. Desenvolveram práticas que podiam ir da citação à representação
das anedotas e historietas mais ou menos moralizantes (CHARTIER, 2002).
A partir do século XVIII, com a Revolução Francesa e seus ideais de
igualdade, começa na Europa um movimento de expansão da leitura,
proporcionando uma significativa ampliação social da leitura dos almanaques,
atingindo tiragens grandiosas, como por exemplo o Le grand calendrier des
Bergers11
, com 150 a 200 mil exemplares. Ao mesmo tempo em que surge um
movimento de reconhecimento da cultura camponesa, com a coleta das histórias e
fábulas narradas pelos camponeses, a expansão da leitura também atendia ao
projeto de generalização para toda a sociedade, das proibições, censuras e
controles, que valorizassem a maneira distinta de ser dos homens da corte
(CHARTIER, 2002).
Destacam-se as recolhas e registros dessas histórias dos camponeses pelo
francês Charles Perrault12
(1628-1703) e pelos irmãos alemães13
Jacob (1785-
1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859). As narrativas orais desenvolvidas por esse
11 De acordo com Bollème (1965), o almanaque Le grand calendrier compost des bergers foi o
mais importante da França e sua primeira publicação data de 1491. 12 Foi escritor e poeta. Estabeleceu bases para um novo gênero literário, o conto de fadas, além de
ter sido o primeiro a dar acabamento literário a esse tipo de literatura. Fonte:
http://brasilescola.uol.com.br/literatura/historia-dos-contos-fadas.htm. Acesso em: dez. 2015. 13 Os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos e folcloristas, são considerados, o primeiro, como
o criador da moderna filologia germânica, e o segundo, como o fundador do folclore moderno.
Fonte: http://www.infoescola.com/biografias/irmaos-grimm/. Acesso em: dez. 2015.
27
segmento foram muitas vezes retocadas para ganhar o formato escrito, pois,
segundo a corte, o que prevalecia no universo camponês era a obscenidade, a
violência, a heresia e a bruxaria (AGUIAR e LEITÃO, 2001). Os almanaques –
como vetores que traziam para a escrita os estilos da oralidade, o que atualmente é
chamado de oratura – tem a intenção de se fazer literatura com os ritmos da
oralidade: “repetir seguidas vezes uma mesma palavra significava dar ênfase a
uma narrativa; ao contrário, diminuir a ênfase narrativa e quase sussurrar ideias
era a forma de temas proibidos, como sexualidade, esoterismo e religião” (idem,
p. 113).
Os almanaques foram sendo apropriados pela Igreja em virtude da alta
circulação desse tipo de publicação, de seu caráter muitas vezes doutrinador e,
especialmente, de sua penetração e aceitação nos meios populares. Os almanaques
passaram a ser distribuídos em grande escala, contendo calendários dos dias
santos, provérbios, lições de vida, regras de comportamento e de convivência
humana, mas, ainda assim, não perderam sua característica lúdica, contendo
também jogos, brincadeiras e informações (AGUIAR; LEITÃO, 2001).
Nas últimas décadas do século XIX, os almanaques estavam difundidos
nas cortes e colônias dos países europeus distribuídos pelos continentes. No
Brasil, os primeiros almanaques vieram principalmente da França e de Portugal.
Foi nas primeiras décadas do século XX que os almanaques se popularizaram,
especialmente como veículo de propaganda de indústrias farmacêuticas,
laboratórios, produtos agrícolas e, também, da igreja católica – usualmente com
fins doutrinários, de convencimento, de conversão ao catolicismo. Uma
característica que se destaca desses primeiros almanaques foi a de promover os
dias santos, além de propor para cada dia uma leitura, um ensinamento, um
provérbio de sabedoria. Outra característica dos almanaques europeus é a de
“enciclopédia de vida prática” onde, além de calendários de plantio, havia também
receitas e dicas para a vida no campo ou na cidade (PARK, 1999; CASA NOVA,
1996).
A utilização dos almanaques no Brasil, em meados do século XX,
estendeu-se à educação de jovens e adultos como material de apoio didático,
oriunda de experiências de educação popular ou de programas governamentais.
28
Seus principais temas são a educação sanitária e a cultura popular regional, suas
festas, folguedos, costumes, culinária etc.14
Vale ressaltar que, no decorrer da história, as práticas e hábitos de leituras,
assim como a editoração e circulação dos almanaques, sofreram modificações que
contribuíram para ditar os princípios que nortearam – e ainda norteiam – as
representações simbólicas e práticas de dominação hegemônicas, no entanto
serviram para questionar, muitas vezes com humor, as formas de manutenção do
status quo.
O Almanaque do Aluá n. 1, no contexto desta dissertação, se apresenta
como um tipo de publicação com informação geral e de caráter enciclopédico, que
reúne como objeto e como livro de leitura temas que são modulados pelo tempo:
variações culturais traduzidas em pequenos contos, receitas culinárias, tradições
regionais, provérbios, jogos, horóscopo, imagens sobre as sociedades nas quais
foram publicados, entre outras, bem como o principal instrumento da cronologia
histórica, o calendário – temas que retomam o conteúdo dos almanaques que
circulavam na França entre os séculos XVIII e XIX, como foi visto anteriormente.
Essa publicação é também compreendida enquanto objeto de uma cultura inserido
em um tempo determinado que introduz suas práticas sob um modelo histórico e
socialmente estabelecido, onde os conteúdos literários e iconográficos englobam
as apropriações simbólicas de um grupo social, uma comunidade em um contexto
espaço-temporal específico. Neste sentido, tornou-se possível identificar, pela
inferência, os elementos simbólicos contidos nas mensagens tradutoras de uma
visão de mundo em particular.
2.2 A pedagogia do almanaque e seus temas de estudo no Brasil
Os trabalhos de pesquisa, aqui identificados como referências importantes
para o estudo sobre o tema, apontam para caminhos de investigação distintos:
práticas de leituras de almanaques de farmácia; análise semiótica de progragandas
nos almanaques de farmácia; exaltação da identidade nacional através dos
almanaques literários; identificação de aspectos liberais, positivistas e românticos
14 Existem alguns exemplares desses almanaques no NEDEJA.
29
no discurso de almanaques de cidade; apreensão das visões de história e de cidade
de um almanaque comemorativo; associações entre as representações do homem
do campo, veiculadas em um alamaque, e a produção de memória coletiva sobre a
imagética do sertanejo.
No entanto, a abordagem desses estudos indica uma trajetória comum: os
conteúdos dos almanaques analisados evocam o contexto sociohistórico em que
estão inseridos e configuram-se como artefato cultural que reforça as apropriações
simbólicas de um determinado grupo social. Este último aspecto é o que interessa
para esta dissertação, pois um dos objetivos é a verificação dessa afirmação pela
análise do conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1.
Neste sentido, o presente estudo procura argumentar que o Almanaque do
Aluá n.1, como teia de significados, carrega sentidos sobre temas que remetem aos
conceitos de cultura e cultura popular desenvolvidos no campo da educação
popular no Brasil.
Os almanaques são constantemente utilizados por pesquisadores, em sua
maioria historiadores, como fonte e referencial bibliográficos. Contudo, o
almanaque como tema de pesquisa no Brasil, constatado por meio da revisão de
literatura, é abordado em apenas três teses, duas dissertações e um estudo de pós-
doutorado. Aparecem, também, em poucos artigos publicados por pesquisadores
brasileiros, e parte expressiva das publicações são de pesquisadores europeus,
principalmente de universidades francesas e portuguesas. A consulta bibliográfica
das pesquisas no Brasil compreendeu um intervalo temporal de trinta anos. A
maioria das pesquisas se concentra no final da década de 1980 até a primeira
década dos anos 2000.
Os recortes temáticos das pesquisas são variados. No entanto, a forma pela
qual o texto evoca o contexto é o que aproxima as pesquisas; ou seja, prevalece
nas análises, apresentadas a seguir, o foco no almanaque como documento
histórico e cultural. Essas pesquisas revelaram-se produções de conhecimento
capazes de romper com práticas fragmentadas que utilizam o almanaque como um
objeto que reúne dados estatísticos e informações históricas objetivas, comumente
abordadas pelo método historiográfico, segundo aponta Galzenari (1998).
30
Os almanaques de indústrias farmacêuticas divulgados no Brasil são o
assunto das teses de Casa Nova (1996) e Park (1999)15
, e da dissertação de
Machado (2011). A pesquisa de Machado (2011) discute sobre relações entre as
representações do homem do campo, veiculadas pelo Almanaque Biotônico
Fontoura, e a produção de uma memória coletiva acerca do sertanejo.
O Almanaque Biotonico Fontoura, em especial as ediçoes que traziam a
historia da personagem Jeca Tatu, foram publicados no Brasil entre os anos de
1920 e 1982. Esse almanaque, com uma linguagem simples, associada
diretamente com as ilustraçoes que acompanharam os textos, tornava-o um
material de leitura de fácil acesso, compreendido tanto por aqueles que estavam
em processo de letramento como pelos não letrados. Assim, atrelar o texto escrito
a imagem visual e vice versa pode ter sido um recurso dos idealizadores do
almanaque para tornar a historia do Jeca Tatu compreensivel para o maior numero
possivel de sujeitos (PARK, 1999; MACHADO, 2011).
Os idealizadores16
do almanaque foram Monteiro Lobato (1822-1948) e
Cândido Fontoura (1885-1974) e esse almanaque não foi apenas um livreto de
divulgação medicamentosa. Distribuido, a principio, apenas em farmácias,
adentrou os muros das escolas, transformando-se em material de leitura de muitos
jovens e crianças, circulando, portanto, nos ambientes escolares como material de
apoio didático (idem). A hipotese inicial é a de que o almanaque, em particular a
história do Jeca Tatu, contribuiu para a implementação de um ideário de educação
que pretendia homogeneizar comportamentos a partir de um ideal de progresso e
desenvolvimento defendidos pela Republica. Outra hipotese é que o uso desse
almanaque na escola, ou em outros lugares, levou o Jeca a tornar-se conhecido em
praticamente todo o Brasil como representante caricatural do caboclo brasileiro. O
autor define o almanaque não apenas como documento, mas também como
monumento, entendido na terminologia de Le Goff (2013) de que monumento é
tudo aquilo que pode evocar o passado e perpetuar a recordação, construindo um
15 Ambas publicadas em forma de livro; utilizo aqui essas versões. 16 Monteiro Lobato é considerado um dos principais ícones da literatura brasileira. Foi editor,
tradutor, escreveu contos, ensaios, romances e muitos livros infantis que o tornaram popular.
Cândido Fontoura fundou o "Instituto Medicamento Fontoura" em 1915 e, posteriormente, as
“Indústrias Farmacêuticas Fontoura-Wyeth” dedicada à produção de penicilina, inseticidas, entre
outros (PARK, 1999; MACHADO, 2011).
31
legado à memória coletiva e ao poder de perpetuação das sociedades históricas,
sendo que essa perpetuação pode ser tanto voluntária ou quanto involuntária.
No outro estudo sobre os almanaques de indústrias farmacêuticas, Park
(1999) analisa a leitura e a escrita realizadas no Brasil sob o ponto de vista da
história e da sociologia do livro. A autora investiga o universo social das práticas
de leitura dos almanaques Laboratório Granado, Biotônico Fontoura, Iza e
Renascim Sadol, relacionados de acordo com a cronologia das edições publicados
em um período que corresponde de 1892 a 1997. Fundamentada no campo
disciplinar da história, Park (1999) busca relacionar a memória dos leitores com o
universo social das práticas de leituras dos almanaques e seguindo principalmente
os argumentos de Chartier (2002), procura superar a marginalidade imposta a esse
tipo de literatura: devido a qualificação de produto “popular” dada aos
almanaques, evidencia um sentido de “leitura menor”, sem importância.
Igualmente investigando a temática dos almanaques farmacêuticos, Casa
Nova (1996) elegeu as produções Biotônico Fontoura e A saúde da mulher. Para a
autora, o almanaque é compreendido como texto, no sentido específico atribuído,
principalmente, por Barthes (1983) e Derrida (1973): o lugar e o espaço onde se
realizam a dinâmica da produção de sentidos e sua transformação, onde a leitura
crítica dos sentidos manifestos produz, por meio de outros textos, outros sentidos,
assumindo a intenção de desconstruir tipos de representação e conceitos que a
cultura e a sociedade impuseram como signos, a partir de seus modelos
ideológicos, de caráter positivista, centrados na religião e na ciência. Propõe uma
leitura que revele os sentidos que persistem em um discurso voltado para a
propaganda de remédios. Casa Nova (1996), ao fazer um estudo semiótico dos
almanaques, explora o poder constitutivo das imagens iconográficas em tais
publicações, e nelas, os códigos visuais, interagindo com os verbais, mostram-se a
serviço de um código mais amplo: o moral.
Os almanaques de cidades são estudados nas pesquisas de Galzenari
(1998) e Lopes (2002). Galzerani (1998) localiza, durante o estudo dos
almanaques da cidade de Campinas (São Paulo) das décadas de 1870 e 1880, três
séries discursivas distintas, organizadas por jornalistas de notoriedade na
sociedade campineira. Os almanaques, segundo a autora, são identificados como
veiculadores de concepções liberais, positivistas, românticas, e como
conformadores de identidades sociais e práticas de leituras modernas. Entendendo
32
os almanaques como “documentos/monumentos” nos termos de Le Goff (1987),
procurou refletir sobre o avanço da modernidade capitalista no Brasil,
especialmente na segunda metade do século XIX. Para formar imagens modernas
da história de Campinas, a pesquisadora se utiliza de conceitos beijaminianos de
“memoria” e de “experiências vividas” como aportes metodológicos para
recuperar a história local. Segundo Galzenari (1998), a expansão de certo caráter
utilitário dos almanaques, marcado pela divulgação de informações sobre horários
de meios de transporte e dos correios ou sobre uma ampla gama de informações e
dados estatísticos sobre as cidades, pode se vincular ao desenvolvimento
capitalista, inclusive no Brasil em fins do século XIX.
Também na perspectiva de análise dos almanaques de cidade, Lopes
(2002) investigou o Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista, publicado em
1986 pelo poder público local em comemoração ao centenário da cidade de
Patrocínio Paulista, localizado no Estado de São Paulo. Interessou à autora
apreender as visões de história e de cidade que perpassam os textos dos
almanaques, assim como os aspectos pertinentes à sua elaboração e circulação,
buscando compreender a inserção do livro no universo escolar do município. Para
tanto, Lopes (2002) elaborou um questionário dirigido aos docentes, atendo-se às
referências feitas ao almanaque em suas práticas pedagógicas. Por considerar
importante o papel da instituição escolar e do poder público na preservação e
democratização da memória social, assim como na construção de identidades e
cidadania, a autora procurou problematizar as noções de história regional e
história local veiculadas no almanaque histórico.
Vale destacar que os almanaques eram concorridíssimos entre leitores
brasileiros durante o século XX, como por exemplo, o Almanaque Brasileiro
Garnier, publicado pela livraria Garnier nos anos de 1903 a 1914. Dutra (2005)
analisa essas publicações em seu estudo de pós-doutorado e, ao identificar o
projeto pedagógico e temas nele apresentados, afirma que o almanaque contribuiu
para a difusão do hábito de leitura no Brasil nesse período. A publicação era
voltada essencialmente ao público urbano, especialmente do Rio de Janeiro e de
São Paulo, que começava a se industrializar. Entre seus leitores estavam
funcionários públicos, profissionais liberais, comerciantes e estudantes
secundaristas e de escolas normais.
33
Essas edições, envolvendo homens de letras, cientistas e políticos,
transformaram-se, segundo Dutra (2005), em um instrumento pedagógico útil e
eficaz, capaz de instruir e divulgar conhecimento, estimulando a curiosidade e o
desejo de saber. A autora aborda o modo como a língua, os costumes, o folclore, a
literatura e a história foram usados nas páginas do Almanaque Brasileiro Garnier
para a definição de uma identidade nacional republicana, destacando, ainda, o
quanto a presença de grande número de intelectuais, muitos deles membros da
Academia Brasileira de Letras (ABL) e do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), na produção desse almanaque, fez dessa obra instrumento
poderoso para a construção da unidade (territorial, cultural e social) do país. A
pesquisadora conclui que seus editores, intelectuais engajados, converteram a
publicação em veículo de difusão e popularização do projeto político e educativo
defendido pelos republicanos, ressaltando o quanto propósito intelectual e político
caminham juntos.
Os almanaques se apresentam, portanto, como artefatos culturais que
contribuem, assim como outros objetos, para a criação imagética de uma nação, de
um “povo”, onde valores, aspirações, hábitos e comportamentos são
compartilhados.
2.3 SAPÉ: o Almanaque do Aluá e a pedagogia da negociação
O SAPÉ foi criado, em 1983, pelas educadoras Aída Bezerra e Rute Rios,
ambas com experiência em educação popular, desde o Movimento de Educação
de Base (MEB), nos anos de 1960. Aída Bezerra também participou
anteriormente, em 1973, do Nova – Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em
Educação, que tinha como principal objetivo aliar a atividade de assessoria a
movimentos de base que realizavam um trabalho educativo à atividade de estudo e
reflexão vinculada ao trabalho de assessoramento. A atuação de Aída Bezzera no
Nova durou cerca de dez anos. Rute Rios, por sua vez, participou da equipe que
formulou e implantou o Programa de Educação Juvenil (PEJ)17
, no final dos anos
17 Atualmente chama-se Programa de Educação de Jovens e Adultos (PEJA). Foi criado em 1983,
corresponde a uma das metas do Programa Especial de Educação (PEE) elaborado sob a
coordenação de Darcy Ribeiro, educador e vice-governador no primeiro governo de Leonel
Brizola no estado do Rio de Janeiro (1982-1986). Sua proposta pedagogica iniciava com a
34
de 1980, no município do Rio de Janeiro. A essas educadoras reuniram-se,
progressivamente, Cleide Leitão, Alexandre Aguiar, Maria do Socorro Calháu e
Renato Pontes (educadores com experiências diversas em educação popular e
alfabetização de adultos).
A proposta que consolidou a atuação do SAPÉ foi buscar, junto aos
professores, alternativas, especificamente na forma de realização de práticas
educativas na formação de professores que atuavam na educação de jovens e
adultos, partindo fundamentalmente do campo da antropologia como principal
orientadora das questões e reflexões. Essa escolha teórico-metodológica, segundo
Cleide Leitão (2002, p. 11), “permitiu ampliar as discussões para além dos
campos clássicos que informavam as experiências de educação popular”. O SAPÉ
considerava a existência de diferentes sistemas de conhecimento presentes nas
relações entre os agentes18
e grupos das práticas educativas.
Partindo dessa concepção de educação, a equipe do SAPÉ realizou seu
primeiro trabalho: uma pesquisa participante, com enfoque antropológico19
,
intitulada Confronto de Sistemas de Conhecimento na Educação Popular,
realizada em uma classe experimental noturna de alfabetização de adultos, na
Escola Senador Correia, situada no bairro de Laranjeiras, zona sul da cidade do
Rio de Janeiro.
Segundo Leitão (2004), inicialmente essa pesquisa foi planejada para ser
realizada em quatro ações distintas: alfabetização de adultos; educação política;
formas alternativas de produção e ensaios de organização de populações de rua.
No entanto, somente as duas primeiras foram realizadas. A autora sinaliza que o
envolvimento da equipe do SAPÉ com a alfabetização de adultos resultou na
consolidação e delimitação de um campo de trabalho específico na educação de
jovens e adultos, denominado “Formação/Autoformação de Educadores”. Foram
alfabetização, explorando leitura e escrita e ampliando-as para o conteudo especifico do ensino
elementar. Na perspectiva do direito a cidadania, organizava as primeiras quatro séries do Ensino
Fundamental de forma inovadora, embrião dos atuais ciclos de estudos (FÁVERO et al., 2007, p.
77-110). 18 Denominação adotada nos anos 1960 e, atualmente, amplamente utilizada para designar os
grupos de educadores compostos por mediadores, idealizadores e organizadores das atividades
educativas. Entre eles estão: o estudantado secundarista e universitário, intelectuais militantes
cristãos, artistas, dirigentes de agremiações e de partidos políticos. 19 No desenvolvimento da pesquisa, o SAPÉ contou com a assessoria da antropóloga Lygia Segala,
na ocasião vinculada ao Centro de Folclore e Cultura Popular da Fundação Nacional das Artes
(LEITÃO, 2002).
35
organizados, ao término da pesquisa, os Coletivos de Autoformação,
desenvolvidos nos seminários realizados com educadores que atuavam no campo
da escolarização de jovens e adultos nos estados de Pernambuco e Rio de Janeiro,
com a finalidade de confrontar e discutir os resultados de algumas experiências de
alfabetização de adultos realizadas nesses estados.
A partir desses seminários, foram idealizados um Boletim informativo
trimestral de circulação ampla entre os educadores participantes; um Grupo de
Estudos e Pesquisa (GREPE), com a função de aprofundar e subsidiar as
discussões ocorridas nos seminários; e a Rede BAM – Banco de Ajuda Mútua, que
tinha o objetivo de incentivar o registro da prática pedagógica e sua
sistematização pelas/os educadoras/es, socializando-as através dos Cadernos BAM
e de um banco de dados informatizado (LEITÃO, 2002).
Também como produto da pesquisa Confronto de Sistemas de
Conhecimento na Educação Popular, além da formação dos coletivos, foi
produzida a edição número zero do Almanaque do Aluá, com a finalidade de fazer
circular os resultados dos trabalhos desenvolvidos a partir da pesquisa. Nessa
investigação,
[...] o SAPÉ identificou a necessidade de investir na formação de educadores e de produzir material didático para seu desempenho, uma vez que a escassez quase
absoluta de material de leitura para jovens e adultos dificultava a formação de
novos leitores. Aida Bezerra afirma: “Ai não foi difícil de chegar ao Almanaque.
Toda pesquisa tinha sido feita numa perspectiva de mão dupla: confronto de saberes e poderes, negociação. A divulgação de seus resultados não poderia ser
diferente. Os alunos tinham direito à devolução da pesquisa. Não iríamos elaborar
artigos, criar mais uma publicação que circularia entre nós mesmos, os de sempre. Depois, queríamos alguma coisa diferente do eterno preto e branco em duas
colunas. Algo mais parecido com a nossa cultura mestiça: maracatu, abacaxi,
pimenta e cocares. Cores e expressão cultural, diversa como nós. Alguém disse na reunião em que discutíamos o destino da devolução: ‘Acho que vocês querem é
um almanaque’. Aí começamos a imaginar o que seria um almanaque com essas
características, que revelasse um pouco do espírito da pesquisa e, ao mesmo
tempo, se oferecesse como material de leitura cativante para responder um pouco à enorme carência de material de leitura na área de educação de jovens e adultos.
Fechamos com essa plataforma”. (VIEIRA, 2016, p. 207-208)
O almanaque, enquanto tipologia é compreendido pelo SAPÉ (1993) como
um material de difusão dos resultados de inúmeros trabalhos, pesquisas e
acontecimentos diversos. A intenção era elaborar um material de leitura
36
[…] que refletisse um pouco os múltiplos jeitos de ser e sentir que temos em
nosso país; sejam os já assimilados ou os que ainda nos parecem estranhos – como um esforço de nos fazer mais conhecidos uns dos outros; como uma pedra
na construção e no reforço das nossas identidades. Algo assim, circulante: não
basta o que um diz ou expressa a respeito de um assunto; queremos mais vozes, linguagens diferentes, mais imagens para enriquecer os nossos próprios
pensamentos e os nossos sentidos. E, sobretudo, queremos mais leitores nesse
país (SAPÉ, 1993, p. 7).
A partir do fragmento acima, é possível apreender alguns conceitos
considerados importantes para compor o almanaque: cultura, identidade,
diversidade e nação, relacionados ao contexto brasileiro, sobretudo ao campo da
educação popular. O Almanaque do Aluá n. 1, objeto de pesquisa desta
dissertação, cinco anos após a edição do número zero, em 1998, reafirma a ideia
de que o almanaque é um livro que tem por característica a diversificação de seu
conteúdo, distribuído em várias linguagens e, especialmente, a comunicação entre
os diversos saberes.
A pauta temática do Almanaque do Aluá n. 1 é o trabalho e a globalização,
na qual o livro é um espaço com a possibilidade de “abrir as janelas, conversar
com quem passa, chamar para dentro, conhecer mais de perto e se fazer conhecer.
Grande mundo, mundo pequeno” (SAPÉ, 1998, p. 5). Vale lembrar que o
Almanaque foi idealizado para ser utilizado como material de apoio didático na
educação de jovens e adultos e nos processos de autoformação dos educadores
que atuam nessa modalidade de ensino.
Neste sentido, na perspectiva das idealizadoras do projeto, o confronto
entre os diferentes sistemas de conhecimento poderia imprimir mais qualidade e
um melhor desempenho nas intervenções educativas. As práticas desenvolvidas
nesses termos possibilitariam a valorização dos saberes existentes e a construção
de novos saberes/conhecimentos. Nas palavras de Bezzera e Rios (1995, p. 35):
O confronto é apreendido, então, enquanto um movimento de reconhecimento da
diferença que interroga; e que, em decorrência, deve levar todos os atores envolvidos nesse confronto a uma releitura do seu próprio conhecimento/saber e
de seus valores implícitos. Se era evidente que na nossa intervenção residia uma
potencialidade de confronto nas relações entre diferentes e a escolha não era a do
aniquilamento de uma das partes pela superioridade/autoridade da outra, o caminho coerente era o da negociação: negociação de poderes, negociação de
conhecimentos/saberes, negociação dos interesses em jogo (traduzido do
espanhol).
37
Segundo Bezerra e Rios (1995), as práticas de educação popular realizadas
no Brasil nas décadas de 1960 a 1980 eram movidas, entre outras razões, pela
realização de um projeto de mudança estrutural inspirado nos ideais socialistas,
com o objetivo de constituir um coletivo formado pela massa mobilizada. Ainda,
conforme as autoras, as implicações dessa postura foram inúmeras e deixaram, na
maioria das vezes, de levar em conta o fato de que a emergência de um “nós” está
subordinada à construção das identidades pessoais. Esse foi o ponto de partida
para a realização da pesquisa Confronto de Sistemas de Conhecimento na
Educação Popular, citada anteriormente, e permaneceu como princípio norteador
das ações realizadas pelo SAPÉ.
As experiências de cultura popular e educação popular entendiam cultura
nos termos acima, enquanto mobilização política e transformação social. Essa
definição de cultura e o conceito de cultura popular como desdobramento dessa
definição são compreendidos nesta pesquisa como categorias primárias e estão
associados às categorias secundárias de análise: saber, poder e negociação. As
categorias secundárias emergiram da análise documental de textos sobre a ação
cultural do SAPÉ, realizada nesta seção da dissertação. A seguir no Capítulo 3
veremos como as categorias se relacionam com a análise de conteúdo do
Almanaque do Aluá n. 1.
No que se refere aos confrontos, a aposta do SAPÉ estava centrada no
reconhecimento das diferenças existentes entre os atores envolvidos no processo
educativo e nas reflexões que esta circunstância provocava. As educadoras Aída
Bezerra e Rute Rios, nesse primeiro momento do SAPÉ – de criação de uma nova
proposta pedagógica para alfabetizar adultos – estavam empenhadas na construção
do “nós” e, para tanto, colocaram em destaque a explicitação das diferenças, o que
resultava na emergência de outra forma de relação entre os participantes.
(BEZERRA e RIOS, 1995).
Construir um ambiente de alfabetização, onde os integrantes do curso se
reconhecessem como pertencendo a um determinado grupo formado por herdeiros de uma mesma cultura, ou seja, de um mesmo conjunto de traços
distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma
sociedade foi um desafio ao qual dedicamos uma enorme atenção, como investimento na construção do nós. Isto porque acreditamos que a
apropriação/valorização do patrimônio cultural, pelos grupos de diferentes
38
origens (e aí, estamos incluídas) que compõem nossa sociedade, é condição
essencial para a abertura à cultura do outro e que assim as relações poderiam se
dar em termos de contribuição na convivência entre identidades diferentes; e não em termos dos conflitos de supremacia e/ou submissão. (traduzido do espanhol)
(BEZERRA e RIOS, 1995, p. 25)
Neste sentido, o confronto existente na diversidade de olhares e valores
presentes no grupo se estabeleceu como um exercício de democratização do
poder; a intenção de construir conjuntamente os mecanismos de controle do
processo era o de criar um canal de expressão e um espaço do uso de poder de
negociação e avaliação do experimentado.
A investigação busca compreender a relação entre os elementos
conceituais desenvolvidos na prática educativa do SAPÉ e os aspectos
tipográficos do almanaque. Nessa perspectiva, como os aportes teóricos, de
negociação entre os diversos saberes estão inseridos no Almanaque do Aluá n. 1?
Cabe considerar que, com o surgimento na década de 1960 das diversas
iniciativas pedagógicas voltadas para o aprendizado dos adultos analfabetos e de
pouca instrução, sobretudo os que viviam no campo ou nas periferias de cidades,
despontam também, grupos de aliança entre os agentes, responsáveis pela
concretização dos vários tipos de proposta, ainda hoje decorrentes dessas ações.
Nesse período, três esferas institucionais serviram de inspiração para os agentes
de educação nas perspectivas dominantes e nas formas de mediação junto aos
grupos populares: as universidades e o movimento estudantil; os partidos e as
organizações políticas de programas socialistas; e as igrejas, fundamentalmente a
católica.
3 Categorias de análise da Educação Popular: um percurso metodológico
Neste capítulo, são apresentadas as categorias de análise utilizadas na
dissertação: cultura, cultura popular, saber, poder e negociação. A
contextualização histórica das categorias aborda as principais tendências de
conceituação da educação popular no período de 1960 a 1980.
Primeiramente, é examinada a forma pela qual os movimentos de cultura
popular e educação popular dos anos de 1960 se apropriaram dos termos cultura e
cultura popular. Em um segundo momento são estudadas as reflexões realizadas
nas décadas de 1970 e 1980 sobre as experiências de educação popular da década
de 1960, as avaliações das atividades das décadas posteriores e as formulações de
questões em torno do saber e do poder surgidas a partir dessas análises. A
definição da categoria negociação feita pelo SAPÉ, explicitada no capítulo
anterior, está intimamente relacionada com essas conceituações de saber e poder.
Portanto, a partir dessa trajetória conceitual das categorias de análise, os
conceitos de cultura e cultura popular (categorias primárias) apresentam-se como
superiores aos conceitos de saber, poder e negociação (categorias secundárias),
indicando um desenvolvimento teórico-reflexivo da pedagogia da educação
popular. Essas categorias emergiram da análise documental e expressam
simbolicamente a visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação
popular e do SAPÉ, pois ressurgem com força e frequência no Almanaque.
Nesta perspectiva, o método de análise de conteúdo do Almanaque do Aluá
n. 1 busca, pela interpretação pictórica e textual do livro, relacionar as categorias
de análise ao conteúdo, mais especificamente às mensagens discursivas que
evocam uma narrativa com elementos comuns, possicionamentos regulares e
recorrência de definições e temas, o que poderia ser chamado de uma visão de
mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular e do SAPÉ.
A revisão apresentada a seguir constitui na leitura de documentos diversos
sobre o período destacado: textos elaborados pelos movimentos de cultura popular
40
e educação popular, pelas atividades de assessoramento às iniciativas de educação
popular e artigos produzidos a partir de reflexões sobre as práticas dessas
experências.
Essa análise documental permitiu identificar alguns termos recorrentes
utilizados pelos movimentos de cultura popular e educação popular na década de
1960, quando foram criados. O destaque é o aparecimento da definição adotada
por alguns movimentos do conceito de cultura como sendo antropológico, sem
qualquer referência a autores da antropologia. A hipótese levantada nesta
dissertação é que a definição do conceito de cultura da educação popular tenha se
difundido nos seminários realizados pela matriz católica de pensamento da
educação popular, como veremos a seguir.
A partir da análise dos documentos, é possível corroborar a afirmação de
Brandão (2002) que todos os movimentos de cultura popular e educação popular
partiam praticamente do mesmo conceito de cultura, ou seja, entendiam a cultura
como a transformação dialética do mundo natural, previamente dado, em um
mundo humano e historicamente construído. Brandão (2002, 0. 37) afirma que
“em tudo que os movimentos de cultura popular acrescentam novas ideas
destinadas à orientação de seus projetos está a palavra cultura, que tal como a
palavra história, a tudo amarra e dá sentido”. Nesta perspectiva, o conceito de
cultura é definido de acordo com o que se pretendia com a educação popular:
transformações progressistas e mobilização política por meio da conscientização
das massas.
Nesta dissertação, a análise de conteúdo e a análise documental são
compreendidas como métodos distintos, marcados por diferenças conceituais que
as definem e distinguem. A análise documental é entendida por Laurence Bardin
(2011) como uma operação ou um conjunto de operações com o objetivo de
representar o conteúdo do documento sob uma forma diferente da original, tendo
como finalidade facilitar um estado subsequente que apresente de outro modo a
informação contida nos documentos. A análise documental difere da análise de
conteúdo, pois esta última tem como principal recurso metodológico a inferência.
De modo geral, a documentação trabalha com documentos e seu principal objetivo
é a representação sintetizada da informação, enquanto a análise de conteúdo lida
com mensagens – comunicação e, tem como finalidade interpretar o conteúdo e a
expressão desse conteúdo.
41
Segundo Bardin (2011), o desenvolvimento histórico da análise de
conteúdo se apoia no desejo de rigor e na necessidade de ir além da superficial
aparência. A técnica foi usada inicialmente nos anos finais do século XIX para
analisar textos de artigos de jornais e revistas, propagandas, discursos políticos,
hinos, estórias folclóricas e enigmas. Foi nos Estados Unidos, nas quatro
primeiras décadas do século XX, que se desenvolveu como método, mas antes
mesmo das técnicas modernas de analisar comunicações terem sido
desenvolvidas, os conteúdos dos textos já eram abordados de diversas formas. A
hermenêutica, por exemplo, arte de interpretar os textos sagrados ou misteriosos, é
uma prática muito antiga.
Atualmente, a análise de conteúdo tem como objetivo ir além da
compreensão imediata e espontânea, e pressupõe a construção de ligações entre os
pressupostos de análise e os elementos que aparecem no conteúdo. Essa atividade
é essencialmente interpretativa, assumindo cada vez mais sua função primordial
de inferência, deixando de ser considerada fundamentalmente descritiva
(OLIVEIRA et al, 2003).
Vale destacar que o Almanaque do Aluá n. 1 é uma publicação que
apresenta em seu conteúdo uma variedade de textos e imagens. Traduzem os
aspectos político-educativos pertencentes à visão de mundo da equipe do SAPÉ
(1998), em especial, a tentativa de ressignificar o sentido do trabalho humano no
cenário global.
Deste modo, o levantamento quantitativo se justifica, na medida em que a
partir da enumeração das temáticas presentes no livro foi possível traçar um
caminho de estudo tendo como base a técnica de análise temática, englobando a
investigação dos temas e suas possíveis correlações. No capítulo 4 serão definidas
e descritas as etapas da técnica utilizada para a análise do Almanaque.
O Almanaque, entendido no contexto deste estudo como artefato cultural
ou símbolo cultural, apresentando em seu conteúdo uma teia de significados nos
âmbitos político e cultural, traços atribuídos a uma determinada sociedade, tem
como caminho de interpretação e análise a seguinte definição:
O conceito de cultura que eu defendo (...) é essencialmente semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a
42
sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas
como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 2008, p. 4)
Segundo Geertz (2008), a cultura não é particular, mas sempre pública.
Assim, é possível entender que os elementos que constituem as teias propostas por
Weber (1963), não têm criadores identificáveis. O conceito de cultura, para o
autor, denota um padrão de significados transmitido historicamente, incorporado
em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas
por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relaçào à vida. Neste sentido, a ênfase está nos
significados, dos quais os símbolos são as representações legíveis de tais
significados. Articulando o conceito ao tipo de texto cultural do Almanaque do
Aluá n. 1 é possível afirmar que o seu conteúdo contém valores, aspirações,
crenças, tramas, ideias de justiça que servem como um manual para a ação dos
atores sociais.
Ainda sobre o posicionamento de Geertz (2008), quando uma codificação
simbólica qualquer permite aos homens interpretar sua situação no mundo, ela se
torna para os indivíduos uma teia interpretativa – ferramenta para compreender o
real, por meio dos símbolos que produzem e que compõem a cultura do grupo.
O símbolo é “qualquer objeto, ato, acontecimento, qualidade ou relação
que serve como vinculo a uma concepção” (GEERTZ, 2008, p. 68). Os símbolos
são ferramentas que funcionam para tornar intelectualmente razoável a
representação de um tipo de vida idealmente adaptado aos aspectos morais,
estéticos e valorativos que a visão de mundo descreve e acomoda tal tipo de vida.
Nas palavras do antropólogo:
[…] o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e
disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do
que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias mais abrangentes sobre
ordem. (idem, p. 66-67)
O conceito de visão de mundo é utilizado neste trabalho de pesquisa como
orientador da análise do conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1, pois considero que
auxilia na inferência dos dados da pesquisa assim como na interpretação dos seus
resultados, em particular, acerca dos sentidos que expressam a visão de mundo do
43
SAPÉ com a intenção de relacioná-los às formas simbólicas, às proposições
inseridas no processo de construções que fazem referência – à visão de mundo das
práticas em educação popular. Não se trata, porém, de uma única visão de mundo,
mas de uma narrativa que possui elementos comuns, temas recorrentes e
posicionamentos regulares. Os temas que melhor exemplificam a evocação desses
conceitos no Almanaque são: Ciência, Política, Biografia, Trabalho e
Globalização, como veremos no Capítulo 4.
Neste sentido, o percurso de aproximação entre as definições de cultura da
educação popular e o conteúdo do Almanaque parte, inicialmente, do histórico do
período, passa pelo debate sobre os conceitos de cultura e cultura popular
presentes nos movimentos de cultura popular e educação popular da década de
1960, para então, chegar às categorias de análise do conteúdo, discutidas nas
décadas posteriores e assumidos pelo SAPÉ: saber, poder e negociação.
3.1 Notas sobre a conjuntura política no Brasil (1958 a 1964)
Para compreender o contexto histórico da educação popular no Brasil, é
necessário recuperar alguns aspectos do período que vai de 1958 a 1964. Utilizo
como marco inicial desse período a realização do II Congresso Nacional de
Educação de Adultos, viabilizado pelo Ministério da Educação e Cultura em 1958,
no Rio de Janeiro. Nesta ocasião do congresso foram revistas ações, que haviam
durado dez anos, da Campanha Nacional de Educação de Adultos, com o objetivo
de reunir órgãos oficiais de ensino, entidades particulares e educadores em geral,
para debater os problemas e desafios “relacionados com as finalidades, formas,
aspectos sociais, organização, administração, métodos e processos de educação de
adultos, visando ao seu aperfeiçoamento” (REIS, 1958, p. 5-6).
Destaca-se o episódio em uma das plenárias do Congresso, onde Paulo
Freire, como representante da Comissão de Pernambuco, apresentou pela primeira
vez a concepção de alfabetização que ficou popularmente conhecida. A partir da
análise da grave situação dos mocambos20
da cidade de Recife, o educador
afirmou que o maior problema brasileiro não era o analfabetismo, mas a maioria
20 Moradias populares em lugares alagados. São conhecidas também como “palafitas”.
44
da população marginalizada. A mera alfabetização não seria solução, fazendo-se
necessária uma ação econômica e social integrada, respaldada por uma ação
educativa participativa (ABE, 1958).
Porém, o governo de Juscelino Kubitscheck (JK) tinha outra orientação
para a educação de adultos, proposta no discurso de abertura do Congresso pelo
próprio presidente da república.
Cabe, assim, à educação dos adolescentes e adultos não somente suprir, na
medida do possível, as deficiências da rede de ensino primário, mas, também, e muito principalmente, dar um preparo intensivo, imediato e prático aos que, ao
iniciarem sua vida ativa, se encontrem desarmados dos instrumentos
fundamentais de produção e de vida, ou seja: ler, escrever, uma profissão ou, pelo
menos, uma iniciação profissional, uma conveniente integração social e política, ao lado de compreensão e prática dos valores espirituais da tradição e da cultura
brasileiras. (KUBITSCHECK, 1958, p. 3)
No entanto, nem as recomendações do referido Congresso, nem a nova
concepção de alfabetização trazida por Paulo Freire, foram consideradas no final
dos anos de 1950. No início dos anos 1960, os governos municipais de Recife e
Natal e instituições da sociedade civil (Igreja Católica, União Nacional dos
Estudantes, entre outras) criaram experiências inovadoras, designadas como
movimentos de cultura popular e educação popular. A cronologia dos movimentos
já foi sistematizada por Fávero (2006, p. 50-51):
- Maio 1960: MCP – Movimento de Cultura Popular, criado inicialmente no
Recife, depois estendido a várias outras cidades do interior de Pernambuco, quando Miguel Arraes era respectivamente prefeito da Capital depois governador
do Estado.
- Fev. 1961: Campanha “De pé no chão também se aprende a ler”, criada em Natal, na gestão de Djalma Maranhão na Prefeitura Municipal e Moacyr de Góes
na Secretaria de Educação.
- Mar. 1961: MEB – Movimento de Educação de Base, criado pela CNBB – Conferência Nacional de Bispos do Brasil, com apoio da Presidência da
República.
- Mar. 1961: CPC – Centro Popular de Cultura, criado por Carlos Estevam
Martins, Oduvaldo Viana Filho e Leon Hirzman, na UNE – União Nacional dos Estudantes e difundido por todo o Brasil pela UNE-Volante, em 1962 e 1963.
- Jan. 1962: Primeira experiência de alfabetização e conscientização de adultos,
feita por Paulo Freire no MPC (Centro Dona Olegarinha); logo depois, no início de sua sistematização no Serviço de Extensão Cultural da então Universidade do
Recife.
45
- Jan. 1962: CEPLAR – Campanha de Educação Popular da Paraíba, criada por
profissionais recém-formados, oriundos da JUC – Juventude Universitária
Católica, e por estudantes universitários. - Set. 1962: Campanha de Alfabetização da UNE, a partir de experiência iniciada
no então Estado da Guanabara, em out. 1961; depois do Movimento Popular de
alfabetização. - Jan. 1963: Experiência de Alfabetização de Adultos pelo Sistema Paulo Freire,
em Angicos, no Rio Grande do Norte.
- Jul. 1963: Experiência de Brasília, ponto de partida para a adoção do Sistema
Paulo Freire em vários Estados, no bojo das ações de Alfabetização e Cultura Popular patrocinada pelo Ministério de Educação e Cultura.
- Jan. 1964: Criação do Programa Nacional de Alfabetização, com implantação
iniciada na Baixada Fluminense, pertencente ao Estado do Rio de Janeiro.
A data que marca o término do período em destaque é o ano de 1964,
quando foi instaurado o Regime Militar no Brasil e, por esse motivo, as iniciativas
progressistas de educação popular foram interrompidas, permanecendo apenas
algumas propostas que tinham o apoio da Igreja Católica.
É importante destacar que o desenvolvimentismo, iniciado na década de
1930 apostando no processo de industrialização, se prolonga e ganha forças no
governo de JK, o que permitiu a emergência, como acentua Bezerra (1980, p. 17),
“quase acelerada, de um movimento de expressão popular em cujo interior se
inscreveram as mais diversas iniciativas de cunho educativo”.
As iniciativas educativas do início da década de 1960 assumem esse
projeto nacionalista de desenvolvimento econômico e social, buscando superar as
desigualdades culturais. Nessa tensão entre essas forças sociais, o nacional-
desenvolvimentismo surge como modelo hegemônico que serviria ao combate da
fase a ser ultrapassada pela sociedade. O projeto de nação nesses termos são
debatidos e difundidos pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em
particular pela corrente de pensamento culturalista, que mantém sua interpretação
tendo como base “os conceitos de época e de fase, situando a história do país na
história de sua cultura e ressaltando o papel desta na constituição das naçoes”
(PAIVA, 1979, p. 57).21
A proposta de rápida industrialização feita pelo governo de JK “cinquenta
anos em cinco” (com o reforço da entrada de capitais estrangeiros) e o “Programa
21 Destacam-se no período as publicações do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB),
órgão vinculado ao Ministério da Educação e Cultura (MEC), em especial de Álvaro Vieira Pinto e
Roland Corbisier (PAIVA, 1979).
46
de Metas” – previa basicamente geração de riquezas, melhorias na infraestrutura e
abundância de oportunidades – era visto como possibilidade para retirar a nação
do estágio de subdesenvolvimento. Com essa bandeira, o projeto nacional-
desenvolvimentista de JK prometia um futuro melhor. O progresso da nação
reforçava, ainda, os aspectos de liberdade e representatividade da democracia
liberal.
Os anos seguintes foram de crises e conflitos marcados por problemas
políticos e sociais cruciais, gerados pelo esgotamento do modelo de
desenvolvimento econômico adotado. O incremento dessa crise determinou a
transferência das tensões para o plano político. No período de 1961 a 1964,
durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart, a crise tornou-se grave,
tanto econômica quanto politicamente. É importante ressaltar que esses dois
níveis, o econômico e o político, influenciam-se reciprocamente, porém, cada um
adquiria significação especial conforme o contexto em que ocorria (BEZERRA,
1980; BRANDÃO, 2002).
Foi o clima de liberdade democrática desde meados dos anos 1950 que
permitiu a emergência do movimento popular no início dos anos de 1960, dando
vazão ao descontentamento do povo, que começa a se organizar para reivindicar
seus direitos. Como consequência, ocorreram ardorosas discussões e surgiram
muitas publicações sobre consciência nacional, cultura e ideologia. Uma geração
de intelectuais e estudantes22
passou a se dedicar a essas temáticas, afim de propor
um projeto que adotasse uma posição independente do modelo político em jogo
para o desenvolvimento nacional (BEZERRA, 1980).
Para os movimentos de cultura popular e educação popular do período foi
se evidenciando que a fase monopolista do capitalismo internacional tinha uma
racionalidade diferente, a qual “não podia ser regida pelos mesmos mecanismos
políticos, financeiros e administrativos que haviam possibilitado sua implantação
no pais” (BEZERRA, 1980, p. 16), ou seja, era necessária uma mobilização de
resistência ao tipo de “transformação que se anunciava como uma perda maior da
22 Muitos estudantes estavam vinculados à Juventude Universitária Católica (JUC) e à Juventude
Estudantill Católica (JEC) reunidos, a partir de 1962, em torno da Ação Popular. Outra parcela
filiava-se ao marxismo e atuava sob coordenação ou influência do Partido Comunista Brasileiro
(PCB). As duas parcelas reuniam-se na União Nacional dos Estudantes (UNE), nos sindicatos
urbanos dos grandes centros, nos sindicatos rurais e nas ligas camponesas, sobretudo no Nordeste
(FÁVERO, 2006).
47
autonomia econômica e política do país onde o acordo de classes que mantinha o
poder não serviria como base do contrato social” (idem, p. 20).
Estava presente nesse projeto uma nova postura nacionalista que previa a
valorização do movimento operário/camponês/estudantil como agentes de uma
política de contra-cultura, que se opunha ao capitalismo, especialmente à entrada
das multinacionais no cenário econômico brasileiro. Para esse projeto ter sucesso,
era preciso que se criasse uma identidade nacional de “luta”, “resistente”,
“mobilizada”, de caráter opositor ao tipo de transformação que se anunciava como
perda maior da autonomia econômica do País, quando o acordo de classes que
mantinha o poder já não mais serviria como base do contrato social (BRANDÃO,
2002).
Os aspectos políticos e educativos apresentados acima na contextualização
do período de 1958 a 1964 definiram o perfil de intervenção educativa adotada,
ficando conhecido anos depois como um novo modo de pensar a educação
popular,23
na qual prevaleciam as atividades de alfabetização, educação de base e
cultura popular. Essas atividades estavam fundamentadas por um discurso teórico
que contribuía para significar idealizações sobre as possibilidades da educação
(BEZERRA, 1980).
No pequeno domínio de teorias e trabalhos que pensamos haver inventado entre
1960 e 1964 e a que anos mais tarde demos o nome de educação popular, surgiu e por algum tempo floresceu um tipo relativamente inovador de prática
pedagógica. Ela recriou para sua identidade e uso um sentido novo para um nome
antigo: cultura popular. Envolveu pessoas como Paulo Freire e seus primeiros
companheiros nordestinos de trabalho e difundiu-se entre diferentes categorias de sujeitos sociais: o estudantado secundarista e universitário, intelectuais, militantes
cristãos, artistas eruditos e populares, dirigentes de agremiações e de partidos
políticos. Criou e multiplicou grupos, movimentos e outras agências. (BRANDÃO, 2002, p. 31)
Essas experiências de cultura popular e educação popular foram, cada uma
a seu modo, influenciadas pelo mesmo discurso teórico predominante no período,
especialmente, a conceituação do termo cultura. Derivam desse conceito de
cultura os conceitos de conscientização e cultura popular, este último definido de
forma distinta por duas matrizes: a católica e a marxista.
23 Cada forma de intervenção educativa trazia consigo uma história, uma experiência acumulada,
uma elaboração própria.
48
Vale destacar a tentativa de união e integração das diversas experiências de
educação popular reunidas no I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura
Popular, ocorrido em Recife, capital do estado de Pernambuco, no ano de 1963. O
objetivo da iniciativa era o de analisar as experiências de educação popular e
cultura popular, no sentido de poder compartilhar as dificuldades e as perspectivas
de trabalho, que tinham como meta comum a aprendizagem e o desenvolvimento
da consciência crítica do povo (SOARES e FÁVERO, 2009).
Na próxima seção são apresentadas as aproximações feitas por Paiva
(1979) entre tendências filosóficas e o conceito de cultura assumido por Paulo
Freire, cuja pedagogia influenciou tanto o grupo católico quanto o marxista que
assumiram a coordenação do Programa Nacional de Alfabetização (PNA) no
início de 1964.
A hipótese desta pesquisa é que os atributos que definem cultura para
Paulo Freire são os mesmos do SAPÉ e, por conseguinte, do conteúdo presente no
Almanaque do Aluá n.1, pois as apropriações simbólicas de ambos aproximam-se
esteticamente à matriz de pensamento católica da educação popular, conforme
verificado na análise dos dados, que será apresentada no próximo capítulo.
3.2 Antecedentes conceituais: existencialismo cristão e culturalismo
De acordo com Paiva (1979), as ideias pedagógicas de Paulo Freire
tiveram influência na corrente filosófica do existencialismo, segundo os princípios
do cristianismo que regem a relação com o próximo.
Ainda conforme a autora, estaria presente na pedagogia de Freire uma
síntese dos debates entre os grupos cristãos e os ideólogos do Instituto Superior de
Estudos Brasileiros (ISEB)24
, ao longo dos anos 1950, definida como “existencial-
culturalista”25
. Os debates dessas ideias ganharam destaque e oportunidade de
24 O aspecto filosófico da pedagogia de Paulo Freire é influenciado por Vieira Pinto e as reflexões
sobre cultura sofreram influência de Ronald Corbisier ao longo dos anos de 1950. Esses
pensadores procuraram interpretar a cultura e a vida brasileira (PAIVA, 1979). 25 Vanilda Paiva (idem) utiliza o termo criado por Hélio Jaguaribe para designar a confluência
entre o existencialismo e com o que o autor denomina de culturalismo. No Brasil, o culturalismo
teria sido iniciado nos anos de 1940 por Miguel Reale e a síntese entre existencialismo e
culturalismo ganhou destaque nos ensaios de Vicente Ferreira Pinto. Esses pensadores formam um
grupo denominado de isebianos históricos.
49
difusão após a criação, pela reitoria da Universidade de São Paulo (USP), em
1949, do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), responsável pela Revista
Brasileira de Filosofia e a organização de Congressos Nacionais de Filosofia.
A preocupação que prevalecia nos anos de 1950 está relacionada à
superação do subdesenvolvimento pela sociedade e à afirmação das nações do
terceiro mundo. Tal como ocorria com os isebianos históricos26
e com os
intelectuais católicos do período, o existencialismo, segundo Paiva (idem),
aparece nos escritos de Paulo Freire em íntima conexão com o historicismo e o
culturalismo, surgido igualmente ao lado de uma influência mais ou menos difusa
da heglianismo, referido diretamente ao problema da consciência.
Em Educação e realidade brasileira27
, Paulo Freire (1959) buscou
reconhecer a necessidade de pensar a educação dentro da realidade do país
naquele momento, buscando diretrizes e métodos que respondessem à
problemática nacional. Seguindo as pegadas dos isebianos históricos, quando
buscaram explicar historicamente como surgiram as características tradicionais da
sociedade brasileira, bem como a mudança que obrigava à reflexão sobre o
presente, o educador buscou refletir sobre a ausência de participação política do
brasileiro pela tradição política brasileira ao longo de sua história. Conclui que o
paternalismo e o autoritarismo, correspondentes à estrutura social e política,
haviam conduzido o brasileiro a um silenciamento e ao desinteresse pela
participação política (PAIVA, 1979).
Da mesma maneira que os teóricos do nacionalismo-desenvolvimentista,
Freire considerava que, em consequência da industrialização e da democratização,
o Brasil estava se tornando um “ser para si” – o “ser nacional”, que na década de
1950, amadurecia e se tornava “autêntico”, ou seja, consciente. Nas palavras de
Freire (1959, p. 49): “o nacionalismo verdadeiro é exatamente a corporificação da
autenticidade nacional e está intimamente ligado à consciência da realidade que se
assume do pais”.
A conexão com a corrente de pensamento católico está, segundo Paiva
(1979), no tratamento da relação pedagógica e na reflexão sobre democracia e
26 São chamados “isebianos historicos”, os integrantes que estavam bo ISEB desde sua criação. 27 Tese de concurso de Paulo Reglus Neves Freire, para a cadeira de História e Filosofia da
Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco, foi publicada por ele, no Recife, em 1959 e
publicada novamente em 2001 por Cortez Editora e Instituto Paulo Freire.
50
sociedades de massas. Combater a massificação significava conduzir, por meio de
um processo eminentemente educativo, os indivíduos pelos caminhos de
evidenciação de suas particularidades, da humanização, fazendo com que cada um
pudesse reconhecer o seu próprio valor como pessoa.
O papel social atribuído à educação nesse cenário expressa uma
preocupação com a democratização da cultura dentro do quadro da
democratização fundamental. Assim sendo, foram experimentados métodos,
técnicas e processos de comunicação com o objetivo de superar procedimentos
que viam a atuação educativa como fórmulas doadoras, impositivas. Tomava-se
por base a convicção de que somente nas bases populares e com elas que
poderiam realizar algo relevante e “autêntico”.
No contexto desta pesquisa, essas atribuições que definem cultura para
Paulo Freire aproximam-se das apropriações do conceito pelas experiências da
cultura popular e educação popular, em especial, as fomentadas pela matriz
católica, destacando as reflexões feitas pelo Pe. Henrique de Lima Vaz28
.
A juventude católica que se ligou a Paulo Freire no início dos anos de
1960 via igualmente a questão da massificação como central e encontra no
método elaborado por Freire e sua equipe um instrumento a favor do
personalismo29
contra a massificação. A pedagogia de Freire, profundamente
ligada ao existencialismo cristão, não pode ser desvinculada à sua interpretação da
realidade e a suas ideias sócio-políticos, elaboradas a partir da contribuição dos
intelectuais do ISEB (PAIVA, 1979).
Retomando a hipótese levantada na introdução deste capítulo de que Paulo
Freire, como integrante de uma geração ligada à matriz de pensamento católica,
muito possivelmente foi atingindo pelas ideias difundidas pelos seminários de Pe.
Vaz sobre o tema da cultura como um conceito da antropologia, no entanto, de
cunho existencialista, nos termos filosóficos e históricos. Uma das temáticas
centrais desses debates é que a “técnica como um instrumento de dominação da
natureza podia ser um fator de ‘domesticação’ do homem, mas poderia também
representar um passo no sentido da humanização” (PAIVA, 1979, p. 96). A
28 Foi sacerdote jesuíta, filósofo e humanista. 29 Destaca-se a perspectiva teórica difundida por Emmanuel Mounier a qual apresentava métodos
de ação para operar as transformações no mundo em um contexto político e social marcado pelo
pessimismo (PAIVA, 1979).
51
técnica, nessa abordagem, possui um sentido humano, devendo ser colocada a
serviço da comunicação entre os homens. Sendo esta a própria essência da
humanização e do papel atribuído à educação: nesse contexto, é essencialmente a
comunicação entre as pessoas – diálogo.
A relação dialógica se tornou um princípio almejado na prática educativa
presente nas atividades de educação popular e, para alcançá-la, os movimentos de
cultura popular e educação popular desenvolveram formas particulares de
intervenção pedagógica. Na próxima seção são destacadas as categorias que
emergem do debate sobre o conceito de cultura criado no campo da educação
popular.
3.3 Cultura e cultura popular
Os movimentos de cultura popular e educação popular encontraram na
política populista recursos para obter apoio e uma forma de colocar em ação uma
pedagogia transformadora a partir da conscientização voltada para a população
urbana e rural. As ações pedagógicas fundamentavam-se na consciência histórica,
conceito amplamante debatido pela geração de educadores durante a década de
1960. Por esta conceituação entende-se que a consciência do homem transcende o
mundo e o define como objeto que abrange a compreensão da realidade –
conscientização – e, por conseguinte, motiva a ação. A consciência histórica é,
pois, simultaneamente, reflexão e ação das necessidades num determinado
tempo/espaço, que permitam transformar a realidade.
Este princípio, educar e conscientizar, foi norteador das experiências do
período; indicava se eram “autênticas” ou “inautênticas” – se atentia ou não aos
interesses das camadas populares. Como mostra a citação abaixo da resolução da
Comissão A, elaborada no I Encontro Nacional de Alfabetização e Cultura
Popular:
Uma das dificuldades apresentadas pelos delegados é a atuação de grupos comprometidos com a estrutura vigente, a quem não interessa a conscientização
do povo, uma vez que isso implicaria na queda de seus privilégios. Desta maneira
organizam-se muitas vezes com o objetivo de ou combater diretamente nosso trabalho ou criar grupos concorrentes.
52
Certas atitudes de elementos do próprio povo são muitas vezes identificadas com
atitudes burguesas, são na realidade distorções resultantes de imposição de uma
cultura alienada e de valores totalmente estranhos às aspirações reais do povo, imposição esta que é feita através de toda uma rede de divulgação que serve aos
interesses do imperialismo, do latifúndio e demais forças reacionárias.
Dentro desta perpectiva é necessário que se desperte no povo a consciência crítica que permita superar estas distorções culturais e criar formas autênticas de
expressão. (SOARES e FÁVERO, 2009, p. 285-286)
Estava presente nesta concepção política da educação popular, baseada na
disputa da hegemonia política no Brasil, o interesse em ampliar o público eleitor
alfabetizado. No entanto, havia uma diferença significativa de outras campanhas:
para os movimentos de cultura popular e educação popular o voto era
explicitamente um meio de conquista, um instrumento de luta na organização das
classes populares.
A cultura popular estava inserida nesse contexto: a cultura vai ser
repensada na passagem de uma categoria criada pela ciência, sobretudo pela
antropologia, para uma categoria a ser recriada pela prática política radical dos
movimentos de cultura popular e educação popular.
Aparecem no Brasil, ao mesmo tempo, a crescente inserção de agências de
mediação do tipo “governo e povo” e outros tipos de programas de ação direta
junto às camadas populares, que segundo Brandão (2002, p. 36):
[...] denunciam a intenção de controle político dominante que se oculta sob as vestes das propostas “oficiais” de trabalho social com o povo e anunciam uma
alternativa popular de trabalho político através da ação social. Subordinam a ideia
de “desenvolvimento” à de “historia” e pensam a história como o lugar cujo horizonte é a libertação. Substituem “comunidade” por “classe”, “organização”
por “mobilização”, “participação” subalterna no “desenvolvimento” por “direção
popular” do “processo da historia”, “mudanças de atitudes” por
“conscientização”, “educação fundamental” por “educação libertadora”, “desenvolvimento de comunidade” por “educação popular”. Alteram a semântica
da prática.
De fato, a cultura não estava separada do caráter sociológico determinante
que pretendia servir de base a um projeto revolucionário de cultura popular. Ainda
nas palavras de Brandão (2002, p. 39):
Contra teorias funcionalistas que com boa fé ou má consciência separam a cultura
do processo da história ou então estabelecem entre as duas uma relação linear, os
documentos dos anos 60 querem descobrir a raiz do óbvio: a cultura é histórica,
53
no sentido de que a atividade humana que cria a história é aquele que faz cultura.
Assim, a própria história humana não é outra coisa senão a trajetória do processo
por meio do qual o trabalho social do homem opera a dialética da transformação da natureza em cultura. Opera a passagem de um mundo dado ao homem para um
mundo construído pelo homem. Portanto, a oposição do homem no mundo não é
de imersão, mas de oposição criadora.
Neste sentido, para os movimentos de cultura popular e educação popular,
a prática educativa devia promover, a partir da alfabetização, a integração social
do homem na cultura letrada (educação) e a compreensão da realidade
(conscientização). Educar e conscientizar eram partes integrantes da ação
pedagógica, ou seja, consciência é uma força permanente de reflexão sobre a
realidade que se apresenta pelo saber que foi conquistado e que está
constantemente sendo adquirido; educação será, nesse contexto, necessariamente
diálogo.
A organização didática de uma ação educativa deve então conscientizar,
motivar atitudes e proporcionar meios de ação. Esses elementos da prática
educativa dos movimentos sinalizam um modo próprio de atuação – visão de
mundo da educação popular. Neste sentido, cultura é compreendida pelos
movimentos enquanto modelo simbólico de resistência à dominação e de
enfrentamento das políticas conservadoras.
Duas matrizes de pensamento abordaram os conceitos de cultura e
formaram os agentes que atuavam nos movimentos de cultura popular e educação
popular. Do lado do grupo das universidades, inspirado pelo marxismo, está o
Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) e do
lado do grupo católico, as tentativas de definição tiveram origem nos seminários
realizados pelo padre jesuíta Henrique de Lima Vaz, para os militantes da
Juventude Universitária Católica (JUC) e assumidos pela Ação Popular (AP),
criada em 1962, após a crise da JUC com a hierarquia eclesiástica.
Essas duas matrizes conceituaram a cultura popular de forma distinta e
influenciaram as experiências de cultura popular e educação popular, formando
híbridos a partir dessas conceituações e em alguns casos tenderam para uma ou
outra vertente. No entanto, partiram da mesma apropriação do conceito de cultura
como sendo ao mesmo tempo a relação dialética entre o homem e a natureza,
transformação progresista da realidade social e mobilização política como meio da
54
ação político-educativa e cultura popular definida enquanto o modo de vida do
povo, seus costumes, saberes, crenças etc.
A matriz de pensamento católica dedicou-se à reflexão dos aspectos da
cultura, enquanto a matriz marxista definiu uma aplicação do princípio da cultura.
Do lado do grupo católico, foi concebida uma definição de cultura subordinando-a
às ideias de: trabalho, modo humano de ação consciente sobre o mundo; história,
campo de realização e produto do trabalho do homem; e dialética, a qualidade
constitutiva das relações entre o homem e a natureza e a dos homens entre si. A
cultura popular era entendida como obra da consciência da realidade social
brasileira e, portanto, um produto de classes sociais antagônicas (FAVERO,
1983).
Do lado do grupo marxista, foi definido o emprego de um princípio da
cultura inserido em um projeto de superação da desigualdade social e
humanização da cultura, a cultura de “todos”, no qual a cultura popular é o
produto da ruptura política da dominação (idem).
No contexto desta dissertação, interessa compreender como esses
conceitos foram definidos pelo grupo católico, já que são as apropriações que
mais se aproximam da forma como o conteúdo do Almanaque do Aluá n. 1,
pensado para ser um material de apoio didático. Nesta perspectiva, a corrente
católica de pensamento está inserida no contexto que evidencia a visão de mundo
dos movimentos de cultura popular e educação popular, na qual expressa e se
aproxima da visão de mundo do SAPÉ.
Pe. Vaz (1968) utiliza-se das temáticas sobre consciência e ideologia,
relacionadas ao tema cultura, para formular sua reflexão: considera a cultura
enquanto forma concreta da consciência histórica em uma determinada época, não
somente durante a criação dos homens nesse tempo-espaço, mas também
enquanto compreendida, vivida e compartilhada por esses mesmos homens.
Compreende que pela consciência histórica o homem reconhece o mundo
humano; pela cultura o constrói, afirmando-se nele como homem. Do ponto de
vista filosófico-antropológico, a natureza exprime o que é dado ao homem; a
cultura, o que é por ele feito. O mundo da cultura é, assim, o mundo propriamente
humano.
Ainda buscando explicar seu pensamento, Pe. Vaz (1968) considera que a
consciência contém dois planos que se complementam: o primeiro é o da intenção,
55
que, voltado para alguma coisa, quando tem sempre algo a enfrentar, está sempre
em luta; e o outro é o da expressão, que se constitui na recriação, é a forma nova
que o homem dá ao objeto do qual ele tem consciência para comunicar aos outros
homens. Em correspondência, a cultura tem dois aspectos: o subjetivo, que
exprime a cultura como desenvolvimento do sujeito que edifica o mundo cultural,
seja o indivíduo, sejam grupos sociais mais amplos, seja a humanidade, que tende
a constituir um sujeito cultural universal; e o objetivo, que exprime a cultura como
processo de desenvolvimento do mundo a ser transformado pelo homem, ou seja,
as obras culturais, que são formas de cultura.
Do mesmo modo que a consciência é sempre intenção/expressão, também
a cultura conjuga dialeticamente dois momentos análogos, em um processo que é
o próprio processo histórico: realização do homem e do mundo humano;
personalização e socialização. O aspecto subjetivo, por sua vez, desdobrar-se-ia
em duas dimensões, cuja origem é a mesma e única, ou seja, o ato de
transformação dialética do mundo: a dimensão de consciência que engloba ideias,
valores, projetos; e a dimensão do agir, que compreende os instrumentos e as
técnicas de transformação do mundo.
Com base nesses elementos, Pe. Vaz (1963) propõe uma definição de
cultura que passa a ser reproduzida e utilizada largamente pela AP e movimentos
por ela influenciados, particularmente pelo MEB, da qual se desdobram suas
propriedades:
Cultura é o processo histórico (e, portanto, de natureza dialética) pelo qual o homem, em relação ativa (conhecimento e ação) com o mundo e com os outros
homens, transforma a natureza e se transforma a si mesmo, constituindo um
mundo qualitativamente novo de significações, valores e obras humanas, e realizando-se como homem neste mundo humano. (AÇÃO POPULAR, 1963. In:
FÁVERO, 1983, p. 16)
A tarefa de criação cultural teria, então, ainda segundo Pe. Vaz (1963),
duas direções: transformação da natureza e comunicação com os outros homens.
A primeira direção sintetiza o aspecto da cultura como luta; é tarefa concreta em
relação à natureza e ao trabalho propriamente dito. A segunda identifica-se com
essa afirmação: toda obra de cultura é uma palavra dirigida ao outro.
56
Pe. Vaz (1963) ressalta que a polarização ideológica, característica da
cultura contemporânea, manifesta-se particularmente na oposição entre cultura
popular e cultura de elite. Esta última, entendida como a cultura aristocrática
ideologizada, embora se declare destinada a todos, serve aos interesses de uma
classe, afirmando como universais valores que são apenas dessa classe. Por sua
vez, a significação mais profunda da cultura popular não é a descoberta de valores
culturais “autênticos” no meio do povo, nem a valorização do folclore; é
precisamente entrar em tensão ideológica contra a cultura de uma classe. Só assim
se explica o aparecimento de movimentos de cultura popular no mundo todo, com
diferentes expressões, mas que apenas na esfera política encontram seu sentido
último.
3.4 Saber, poder e negociação
No período de 1970 a 1990, ocorreram transformações sócioeconômicas
no mundo, cujos desdobramentos ainda estão em curso. Em especial, para o
contexto desta dissertação, são destacados os impactos dessas mudanças nas
iniciativas pedagógicas no âmbito da educação popular ocorridas nas décadas de
1970 e 1980, particularmente as reflexões e avaliações das experiências do
período, realizadas pelo Nova – Pesquisa, Assessoramento e Avaliação em
Educação. Nesta investigação, foi feita uma aproximação simbólica entre essas
reflexões e a forma pela qual o SAPÉ formulou o entendimento sobre as questões
que envolvem as relações de poder estabelecidas na prática educativa, presentes
no Almanaque do Aluá n. 1 sob a forma dinâmica de confronto e negociação entre
os sistemas de saber dominante e popular.
O principal impacto dessas mudanças no domínio da educação popular é a
inserção de instituições internacionais como financiadoras de atividades
pedagógicas apoiadas pelas Igrejas católica e protestantes. Esse é o momento forte
da abertura da Igreja católica à população mais pobre, com as pastorais (dos
índios, dos negros, dos operários, da juventude...) e da rica experiência das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), alimentadas pela Teologia da Libertação
(KADT, 2007).
57
Esse momento da educação popular foi marcado pela definição de novas
formas de trabalho, com os movimentos sociais em geral e com os movimentos
sindicais e políticos, em particular a reorganização das bases sindicais, criação da
Central Única dos Trabalhadores (CUT) e do Partido dos Trabalhadores (PT), e
por uma abertura das agências e centros para com outros movimentos e
instituições da América Latina, em uma fértil parceria de estudos e troca de
experiências. Foi marcada também por um esforço de reflexão bastante
importante. Como nos diz Aída Bezerra e Rute Rios (1995, p. 11):
O período da ditadura militar, assim como ocorreu em vários países da América Latina, empurrou o que subsistiu dessa época – enquanto uma qualidade nova da
intervenção educativa junto às camadas populares – para a clandestinidade,
semiclandestinidade e para o isolamento. Foi uma fase que se caracterizou pela resistência às forças de repressão e pelo estudo do marxismo como apoio teórico
da ação desenvolvida (traduzido do espanhol).
Pretendia-se com esses estudos refletir sobre a prática de uma atividade. A
reflexão é considerada “condição para uma aproximação sempre maior entre o que
compete à educação popular e o que ela está fazendo de fato. A função da reflexão
é favorecer uma prática de nova qualidade” (COSTA, 1977, p. 4). O Nova
contribuiu para a sistematização desses debates e configurou-se como referência
importante da educação popular.
O Nova foi criado em 1973, período de forte repressão no Brasil e sua
preocupação fundamental consistiu em aliar assessoria a equipes locais que
realizam trabalhos educativos a uma atividade de estudo e reflexão vinculada e a
serviço deste tipo de trabalho. Sua equipe era formada por seis pessoas, dentre
elas a educadora Aída Bezerra, uma das fundadoras do SAPÉ, conforme
destacado anteriormente. Esses estudos foram editados inicalmente pelo Centro
Evangélico de Informação (CEI), depois Centro Ecumênico de Documentação e
Informação (CEDI)30
, e posteriormente pela Editora Vozes, na série Cadernos de
Educação Popular. São referenciais importantes para o entendimento dos
30 O CEDI nasceu da experiência do CEI, criado em 1964/1965 por militantes ligados à
Confederação Evangélica do Brasil, afastados de suas igrejas após o golpe civil-militar de 1964.
Em 1968, com a incorporação de militantes católicos, o CEI passou a denominar-se Centro
Ecumênico de Informação e, em 1974, institucionalizou-se como CEDI. A sede inicial foi no Rio
de Janeiro, mas a ampliação de suas atividades deu origem a uma subsede em São Paulo
(FÁVERO e MOTTA, 2015).
58
discursos atribuídos a uma forma peculiar de atuação educativa e, sobretudo, para
uma aproximação simbólica entre os conceitos desenvolvidos na prática de
assessoria do Nova e a ação cultural do SAPÉ.
De acordo com Costa (1977), o empenho em aprofundar o pensamento
sobre a educação popular enquanto prática presente na dinâmica social, nela
atuando e por ela sendo condicionada, permitiu avançar nas reflexões sobre essa
temática. Assim sendo, os aspectos que definem uma atividade como educação
popular são: realiza-se com as camadas populares e tem como objetivo contribuir
para a concretização dos interesses sociais destas camadas. Neste sentido, a
atribuição da educação popular no interior do processo social tem como principal
referência os interesses das camadas populares, no que diz respeito à apropriação,
pelas camadas populares, de um saber-instrumento.
Saber-instrumento entendido como meio que serve às camadas populares para que fortaleçam a sua participação na formulação e encaminhamento de propostas
para a modificação de suas condições sociais.
Apropriar-se no sentido de participar da elaboração do saber, incorporando-o à prática como instrumento de compreensão e ação frente aos acontecimentos e
situações sociais. (COSTA, 1977, p. 5)
No contexto da educação popular, não se trata do saber socialmente
estabelecido, dos conhecimentos, valores e atitudes convencionados que
sustentam a hegemonia política e o prestígio social. Trata-se do saber enquanto
conhecimento elaborado a partir da vivência e reflexão dos acontecimentos
sociais, aproximando-se da concepção de cultura dos movimentos de cultura
popular e educação popular equanto transformação social e mobilização política.
A participação das camadas populares na produção de um saber-
instrumento é o aspecto fundamental da educação popular. Para Costa (1977) esse
tipo de educação não se ocupa em distribuir às camadas populares um saber já
existente, um saber que corresponde a experiências e necessidades sociais de
outras camadas da sociedade e que, portanto, dificilmente poderá servir aos
grupos populares como instrumento de compreensão e ação frente à problemática
social. A educação popular ocupa-se em possibilitar às camadas populares a
apropriação de um saber-instrumento elaborado com a sua própria participação.
59
Neste sentido, na prática educativa, o saber-instrumento é elaborado a
partir de uma troca entre os grupos populares e os agentes: nasce de dentro do
saber anterior já apropriado por cada um (grupos populares e agentes); ou seja, do
saber que representa um novo saber e corresponde à experiência social que já
viveram e refletiram. Na medida em que vai sendo elaborado com a participação
de ambos, não representa mais apenas o saber dos agentes nem apenas o saber dos
grupos populares; mas o resultado de uma troca entre os saberes de ambos
(COSTA, 1977; GARCIA, 1980).
Assim sendo, esse saber é instrumento de compreensão e ação tanto para
as camadas populares como para os agentes. Ou seja, é um saber que serve a cada
um como instrumento que ajuda a aprofundar a compreensão da realidade social
existente e a encaminhar uma atuação que se identifique sempre mais com os
interesses das camadas populares.
Em confronto com a colocação acima, marcando a diferença entre o ponto
de vista do Nova em relação a outras atividades desenvolvidas na educação
popular, está a perspectiva de que, para ajudar os grupos participantes a
desenvolver uma atuação frente a seus problemas sociais, os agentes devem
transmitir a esses grupos uma explicação já sistematizada a respeito desses
problemas e de sua origem. No fundo, ainda que inadvertidamente, admite o
Nova, esta atitude guarda uma tendência assistencialista – o agente justifica a sua
proposta pelo não acesso dos grupos populares a um conhecimento mais preciso
das coisas –, mas repete os mesmos mecanismos de imposição do saber na qual o
povo absorve mas não elabora.
Outra posição, segundo Costa (1977), reconhece também que existem
elementos superficiais e distorcidos no modo como os grupos populares explicam
e se comportam com relação à realidade social. Reconhece igualmente que esses
grupos geralmente carecem de elementos teóricos já sistematizados que lhes
sirvam de instrumento para a apreensão do processo social e de suas
possibilidades de atuação nesse processo. A autora admite que, no campo da
educação popular é antiga a preocupação com uma pedagogia pela qual os agentes
não imponham seu saber aos grupos populares. Neste sentido, considerando a
ambivalência inerente à prática de atividades na educação popular:
60
[…] o povo retraduz as interpretações correntes a partir de sua experiência. Ou seja, a "experiência de vida" dos grupos populares vai produzindo um saber
popular – uma sabedoria sobre a realidade – que pouco se conhece mas que se
distancia razoavelmente do saber dos grupos sociais que não vivem a sua experiência; este saber popular, como já foi dito, contém muita ambiguidade.
Incorpora elementos que correspondem à experiência e interesses de outros
grupos sociais, e que são divulgados por toda a sociedade; o saber do agente não
é o saber popular – uma vez que em geral o agente não pertence às camadas populares; isto é, uma vez que sua experiência social é diferente da experiência
dos grupos com quem trabalha; o saber do agente também é distorcido, também
contém ambiguidades; seus conhecimentos, atitudes, valores também incorporam elementos que se impõem e difundem a todos os grupos sociais. (COSTA, 1977,
p. 17)
Os estudos e reflexões sobre a prática de assessoria do Nova junto a
atividades pedagógicas desenvolvidas na educação popular, concluem que os
grupos populares carecem de oportunidade para explicitar o seu saber, expressar a
sua experiência social, discuti-la, confrontá-la com a experiência de outros grupos
(semelhantes ou diferentes), esclarecê-la com a ajuda de elementos sistematizados
pelas ciências sociais.
Em depoimento, a educadora Aída Bezerra relata que, a partir dessas
reflexões no trabalho de assessoria no Nova, percebeu a necessidade de
aprofundar a análise que envolvia uma prática de alfabetização de adultos, tendo
decidido e desvincular-se do Nova para fundar o SAPÉ e dedicar-se à pesquisa
Confronto de Sistemas de Conhecimento na Educação Popular. A pesquisa,
conforme foi mostrado anteriormente, apresenta-se como uma proposta de troca
entre o saber popular e o saber da equipe; troca na qual os elementos mais
sistematizados que eles podem oferecer se transformem em instrumentos a serem
utilizados por ambos – grupos populares e agentes – na análise da realidade e das
possibilidades de modificá-la. Ou seja, transformarem-se em instrumentos de um
novo saber e de uma nova prática. Saber novo e, ao mesmo tempo, provisório,
uma vez que o saber se modifica e se aprofunda na medida em que se diversifica e
se aprofunda a prática e a vivência dos indivíduos e grupos (BEZERRA e RIOS,
1995).
Nesse momento, torna-se importante recuperar que a edição número zero
do Almanaque do Aluá foi um dos produtos dessa pesquisa, elaborado com o
desejo de avaliar o estudo e retornar aos educandos as reflexões acerca do
61
trabalho. Dessa forma, surge a ideia de publicar os resultados em um tipo de livro
que todos pudessem ler e que rompesse com a forma acadêmica de escrever
relatórios e, mais ainda, que seu conteúdo consistisse nas temáticas emergidas da
ação educativa, ocorriam as trocas entre o saber popular e o saber da equipe.
O Almanaque do Aluá n. 1, objeto de estudo desta dissertação, segue o
mesmo caminho de priorizar as trocas entre os saberes, em especial, a negociação
entre os saberes/poderes. Para tal, enfatiza o caráter identitário da educação
popular, seus sinais de resistência e fortalecimento das camadas populares.
Essa concepção de educação popular se desenvolve como prioridade da
ação educativa, amplamente discutita e difundida nas décadas de 1970 a 1990. No
entanto, há outra vertente teórica que definem o que seria na prática e as
atribuições da educação popular, com objetivo de redefini-la teoricamente. A
seguir veremos essas vertentes, tendo como finalidade compreender as diferentes
perspectivas e seus enfoques de análise.
De um lado está a perspectiva de análise da educação popular que se
baseia nas categorias de Antonio Gramsci (1978), as quais permitiriam às classes
subalternas elaborar e divulgar uma concepção de mundo organicamente
vinculada aos seus intereses e não como um instrumento ideológico empregado
pelas classes dominantes para a conquista ou manutenção de sua hegemonia. Uma
abordagem gramsciana da educação popular indica uma linha de reflexão e de
análise que é capaz de centrar sua atenção na educação enquanto processo que se
constrói a partir do embate ideológico-político travado entre essas classes,
permitindo, dessa forma, repensar a educação popular à luz dos intereses próprios
das classes subalternas (MANFREDI, 1980).
Em oposição está o enfoque da educação popular como sendo um
empreendimento do Estado brasileiro, no ámbito das suas várias práticas adotadas
(econômicas, sociais e político-jurídicas) para difundir a ideologia dominante e
garantir a reprodução das relações sociais de produção com objetivo de conduzir a
sociedade para o “desenvolvimento” (idem).
De acordo com Manfredi (1980), a dicotomização entre essas duas
perspectivas de análise pode ser justificada por uma série de razões, quando se
trata de pesquisas científicas em determinados períodos da história da educação
popular. No entanto, para a autora, para se ter uma visão histórico-dialética da
função que a educação popular pode desempenhar no processo de transformação
62
social, “seria necessário partir de um estudo que privilegie a otica das classes
subalternas, para, em um momento posterior, reintegrar ambas as perspectivas: a
da classe dominante versus a da classe dominada” (idem, p. 48).
Seguindo o caminho traçado a partir da perspectiva acima, está a
atribuição da educação popular em atender à democratização da cultura, que
igualmente entende por educação popular aquela que é produzida pelas classes
populares/ subalternas ou para as classes populares/ subalternas, em função dos
seus interesses de classe. Conforme Wanderley (1980), o processo de educação
popular democratizante deve considerar dois contextos de atuação: um referido às
grandes massas da nação e outro referido a uma educação de pequenos grupos de
lideranças (sindicatos, partidos, associação de moradores, centros eclesiais etc.).
Ambos os contextos em termos das mediações educativas de instituições da
sociedade política ou da sociedade civil, nos termos de Gramsci (1978).
Por sua vez, as reflexões em torno da questão do saber e da educação
popular realizadas por Garcia (1980; 1988) aproximam-se simbolicamente da
visão de mundo da atuação pedagógica do SAPÉ, conforme apresentado no ítem
2.4 do Capítulo 2, uma vez que refletir sobre o saber, nesta perspectiva, é buscar
atingir a essência da própria prática educativa (relação entre o saber popular e o
saber do agente). Neste sentido, o núcleo da questão é necessariamente político,
pois trata da questão do poder presente em dois níveis que se entrelaçam: “no
interior dela mesma, na relação agente/ grupos populares e na perspecitiva de um
projeto político que diga respeito a toda a sociedade” (GARCIA, 1980, p. 90).
4 Interpretação pictórica e textual do Almanaque do Aluá n. 1
O Almanaque do Aluá n. 1 possui em sua trama uma variedade de gêneros
de textos e imagens que traduzem os conteúdos que emergem de diferentes formas
de conhecimento. Pensado para ser utilizado como material de apoio didático em
classes de educação de jovens e adultos e de auto formação de educadores que
atuam nesse segmento, o Almanaque, enquanto um tipo específico de publicação
(difundido entre diferentes grupos sociais) é a tentativa de apresentar em seu
conteúdo esses saberes/ poderes de maneira horizontal, sem prevalecer um saber
sobre o outro, num modelo dinâmico de negociação.
Assim sendo, saber, poder e negociação são as categorias secundárias de
análise dos dados nesta pesquisa, pois esses conceitos surgem da ação pedagógica
vivenciada pelo SAPÉ, apresentadas nas seções 2.4 do Capítulo 2 e 3.4 do
Capítulo 3, e são resultantes das reflexões sobre as experiências de cultura popular
e educação popular na década de 1960. Nesse período as práticas educativas
dessas experiências foram idealizadas a partir de conceituações de cultura e
cultura popular, utilizadas nesta pesquisa como categorias primárias. As
categorias de análise, portanto, foram identificadas pela análise documental e são
definidas como portadoras de uma narrativa com posicionamentos regulares,
elementos comuns e recorrentes no conteúdo do Almanaque, como por exemplo,
os temas mais recorrentes: Ciência, Política, Biografia, Trabalho e Globalização.
As áreas temáticas e questões de investigação surgem a partir da
afirmativa que no Almanaque os saberes/ poderes estão em negociação. Neste
sentido, os objetivos da análise de conteúdo são:
identificar os temas e, para tanto, utilizo a técnica de análise temática –
tratamento quantitativo (elaboração de uma regra de contagem dos temas)
e qualitativo (os temas aplicados a discursos diretos) e;
relacionar os temas e os conteúdos dos textos e imagens às categorias
primárias e secundárias, buscando apresentar os sistemas de valores
(qualidades e condutas valorizadas e desvalorizadas), discursos próprios
64
que traduzem a visão de mundo da educação popular e a visão de mundo
do SAPÉ.
A análise de conteúdo será compreendida nos termos de Bauer (2008, p.
190) como sendo:
[…] um método de análise de texto desenvolvido nas ciências sociais empíricas. Embora a maior parte das análises clássicas de conteúdo culminem em descrições
numéricas de algumas características do corpus do texto, considerável atenção
está sendo dada aos “tipos”, “qualidades” e “distinçoes” no texto, antes que qualquer quantificação seja feita. Deste modo, a análise de texto faz uma ponte
entre um formalismo estatístico e a análise qualitativa dos materiais. No divisor
quantidade/qualidade das ciências sociais, a análise de conteúdo é uma técnica
híbrida que pode mediar esta improdutiva discussão sobre virtudes e método.
Na análise de conteúdo fez-se inicialmente uma leitura “flutuante” dos
documentos, para conhecer o texto deixando-se invadir por impressões e
orientações e criar um procedimento de preparação das informações, ou seja, a
organização da análise (BARDIN, 2011; GOMES, 2009). Nesta primeira etapa, na
abordagem desta dissertação, a leitura do Almanaque foi pouco a pouco se
adaptando em função da possível aplicação de técnicas de anáise que pudessem
dialogar com temas como objetivos, questões e pressupostos da pesquisa.
Juntamente com o procedimento de organização da análise, estão outros
procedimentos metodológicos da análise de conteúdo utilizados a partir da
perspectiva qualitativa (de forma exclusiva ou não): codificação, categorização,
descrição, inferência e interpretação. Esses procedimentos não ocorrem
necessariamente de forma sequencial. O caminho a ser seguido pelo pesquisador
vai depender dos propósitos da pesquisa, do objeto de estudo, da natureza do
material disponível e da perspectiva teórica por ele adotada (BARDIN, 2011;
GOMES, 2009). Nessa perspectiva, a análise de conteúdo, enquanto método, é
formada em seu conjunto por diversas técnicas, capazes de se adequarem ao
objetivo proposto na pesquisa: análise temática; análise de avaliação; análise da
enunciação; análise proposicional do discurso; análise da expressão; e análise das
relações (BARDIN, 2011).
Segundo Bardin (2011), a codificação é o processo pelo qual os dados
brutos são transformados sistematicamente; por recorte, agregação e enumeração
formam unidades, as quais permitem uma descrição e uma representação das
65
características pertinentes do conteúdo. A organização da codificação compreende
as seguintes etapas: recorte (escolha das unidades), enumeração (escolha das
regras de contagem) e classificação (escolha das categorias). Na primeira etapa, os
textos são diferenciados por unidades de registro; devem estar codificadas,
visando à categorização e unidades de contexto; servem para compreender a
significação dos conteúdos, de acordo com as categorias temáticas e para codificar
as unidades de registro. A segunda etapa é o modo de contagem das unidades de
registro; funcionam como um indicador de presença, frequência, intensidade,
distribuição e associação entre as unidades. Por último, a classificação é a divisão
das componentes das mensagens em categorias.
Bardin (2011) define a categorização como uma operação de classificação
de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por
reagrupamento segundo o gênero (analogia), com critérios previamente definidos.
As categorias temáticas reúnem um grupo de elementos (unidades de registro) sob
um título genérico. As categorias temáticas devem ser exaustivas, exclusivas,
concretas e adequadas. As categorizações podem partir de vários critérios:
semânticos, sintáticos, léxicos, expressivos. Uma vez definidos os temas e
identificado o material constituinte de cada um deles, é preciso comunicar o
resultado desse trabalho: a descrição é o primeiro momento dessa comunicação.
Seguindo as definições acima das etapas do método de análise de conteúdo
e através das diversas leituras do Almanaque, pude perceber que as informações
contidas nas mensagens dos textos e imagens precisariam ser reagrupadas para dar
início à análise, tendo por finalidade a interpretação dessas mesmas
comunicações. Neste sentido, os temas, identificados nesta dissertação enquanto
unidades de registro e unidades de contexto, foram sendo compilados
considerando os elementos dos textos e imagens e seguindo o caráter da
diferenciação e analogia. Os temas foram classificados a partir dos gêneros dos
conteúdos (poesia, conto, fábula, receita, provérbio, entrevistas, relatos, charada,
charge, ilustração etc.) e das mensagens presentes nos textos, de alguma frase ou
palavra (política, economia, profissão, trabalho, globalização, desemprego,
cidadania etc.).
66
4.1 Enumeração e análise dos temas
Na leitura preliminar do Almanaque (Figura 1) emergiram quarenta e seis
unidades de registros; ao longo de mais leituras, novos agrupamentos foram
definidos pelas unidades de contexto, passando em seguida para quarenta, vinte e
seis, vinte e quatro e, por último, vinte unidades de registro (temas). O objetivo
principal desses reagrupamentos foi trabalhar com o menor número possível de
ocorrência de unidades de registros (Quadro 1).
Quadro 1
Codificação e categorização dos dados
Ocorrência de temas
Unidades de
Registro
Unidades de
Contexto
1. Calendário anual, lunar
2. Astrologia horóscopo, zodíaco, exoterismo
3. Provérbio ditos populares, pensamentos, sentença com poucas palavras
4. Receita culinária, nutrição, medicina popular
5. Literatura trechos de romances, poesias, fábulas, letras de músicas
6. Charada diferenças, semelhanças; textos com o título o que é?
7. Charge imagem que não está como ilustração de texto
8. Dica aconselhamento, economia doméstica, cotidiano, simpatia
9. Divertimento passatempos, brincadeiras, piadas
10. Artes imagem que não está como ilustração de texto e não é charge
11. Curiosidade engraçadas, recordes, científicas; textos com o título você sabia?
12. Mitologia grega, africana, indígena
13. Costumes modos de vida regionais, nacionais, locais, globais
14. Religião católica, matrizes africanas, muçulmana, judaica
15. Artigo excerto de jornais e textos de opinião
16. Ciência biologia, geografia, história, antropologia, arqueologia, etnologia,
iconografia
17. Trabalho desemprego, profissão
18. Globalização sentenças com a palavra globalização
19. Política ideologia, democracia, cidadania
20. Biografia entrevistas, relatos de vida
Fonte: Elaboração própria.
A sequência numérica das unidades de registro corresponde a uma leitura
página à página como, por exemplo, a leitura convencional de um romance; no
67
entanto, a continuidade da leitura de um determinado texto foi remetido, algumas
vezes, a outra página. Em outros momentos, a leitura dos textos foi feita de forma
aleatória ou, ainda, em blocos de acordo com os temas, com o objetivo de
apreender os sentidos do conteúdo. Essas leituras serviram para conferir se as
unidades de registro correspondiam às mensagens dos textos e imagens e quando
os conteúdos referenciavam mais de uma unidade. Nesse caso, houve a
necessidade de estabelecer os contextos, ainda assim, houve textos em que
registraram mais de um tema simultaneamente (coocorrência). As Figuras
apresentadas a seguir (2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9) são exemplos de classificação do tema
a partir da mensagem ou gênero dos textos e imagens.
Figura 1: Capa (Fonte: SAPÉ, 1998)
68
Figura 2: À esquerda, ocorrência do tema Receita em destaque. À direita, marcação e página da
ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
Figura 3: À esquerda, ocorrência do tema Artes em destaque. À direita, marcação e página da
ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
69
Figura 4: À esquerda, ocorrência do tema Curiosidade em destaque. À direita, marcação e página
da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
Figura 5: À esquerda, ocorrência do tema Biografia em destaque. À direita, marcação e página da
ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
70
Figura 6: À esquerda, ocorrência do tema Divertimento em destaque. À direita, marcação e página
da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
Figura 7: À esquerda, ocorrência do tema Curiosidade em destaque. À direita, marcação e página
da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
71
Figura 8: À esquerda, ocorrência do tema Literatura em destaque. À direita, marcação e página da
ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
Figura 9: À esquerda, ocorrência do tema Provérbio em destaque. À direita, marcação e página da
ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
Foi possível identificar no texto de apresentação (Figura 10) do
Almanaque a estrutura lógica de condução dos temas. Os desafios propostos pelo
cenário global, impostos pelo modo de produção capitalista, é a base da
problematização sobre o tempo presente no almanaque. Podendo-se, a partir dele,
captar a dinâmica da produção de sentidos, na qual a relação vida e morte está
associada à exploração do trabalho humano pelo capital econômico.
72
Figura 10: À esquerda, trecho do texto de apresentação em destaque. À direita, marcação e página
da ocorrência. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 5)
A pauta temática – “Trabalho em tempos de globalização” – pensada pelo
SAPÉ para compor os principais textos e imagens do Almanaque segue a base
estrutural sinalizada no discurso de apresentação e evidencia a publicação como
artefato cultural da educação popular produzido para as classes populares em
função dos seus interesses de classe.
Vale considerar que os textos e imagens do Almanaque possuem duas
origens: foram elaborados pela equipe envolvida no projeto especificamente para
o livro e selecionados, também pela equipe, para comporem o almanaque,
conforme a bibliografia (fontes textuais e iconográficas) e relatório de elaboração
do livro (SAPÉ, 1998a). O uso frequente das imagens está associado ao
preenchimento de espaços nas colunas das páginas e à necessidade de
comunicação dos textos com outra linguagem – ilustração.
A análise das comunicações discursivas presentes nas imagens do
Almanaque, enquanto veiculadoras de mensagem através de uma linguagem
visual, portadora de múltiplos sentidos, nesta pesquisa, foi produzida pela minha
própria interpretação, imaginação e entendimento, considerando, segundo Vicente
(2000, p. 148) que,
a interpretação das imagens através das séries conexas permite o
reconhecimento das analogias entre as imagens. Analogias possíveis de serem detectadas devido ao nosso pré-conhecimento ou reconhecimento adquirido do
referente, do processo cultural que as produziu.
73
Neste sentido, analisar imagens envolve verificar, no caso particular do
Almanaque, que lógicas são possíveis, segundo a escolha das imagens para
compor o conteúdo do almanaque e quais as prováveis ligações com os textos. A
investigação da relação entre a imagem e sua representação transita nos diversos
sentidos incorporados pelo conceito de semelhança entre a imagem e a percepção
do que ela poderia significar, de uma maneira que forme um quadro em que
nenhum elemento pode ser considerado separadamente como necessário ou
suficiente, mas todos são elos relevantes no sentido de servir potencialmente para
uma aplicação adequada com o propósito de conceber uma representação
figurativa (NEIVA, 1993; VICENTE, 2000).
Considerando a variedade de temas, a quantidade e a ocupação espacial
dos textos e imagens no Almanaque, foi necessário adaptar o levantamento
quantitativo a essa especificidade tipográfica. São dois aspectos para serem
considerados na análise do conteúdo: a recorrência dos temas e o espaço ocupado,
utilizando um método de decupagem espacial elaborado especificamente para a
análise – unidade de contagem, pois uma unidade de registro pode ter um número
pequeno de ocorrências, mas ocupar um espaço total maior do que uma unidade
com mais ocorrências. Como por exemplo, o tema Provérbio que aparece oitenta e
nove vezes e ocupa 4,5% do espaço total do Almanaque.
Foi possível identificar uma estrutura de distribuição dos temas na
diagramação das páginas, seu sistema visual, sob o ponto de vista do design:
O projeto visual distribui unidades visuais que denotam por sua repetição, semelhança e diferenciação uma dada organização do conteúdo ali disposto,
definindo uma área como mais importante que outra, por exemplo. (MATTEONI,
2010, p. 74-75)
O formato do Almanaque é retangular de dimensões 20 cm de altura por
22,6 cm de largura. O livro aberto, portanto, alcança algo em torno de 46 cm. As
margens laterais da página são de 1,5 cm, a margem superior com 1,0 cm e a
margem inferior com 2,0 cm. Para fazer o levantamento quantitativo dos temas e a
maneira pela qual estão quantitativamente distribuídos no espaço de uma página,
procurei identificar o planejamento ortogonal que divide os textos nas páginas,
chamado pela área de design como grid tipográfico.
74
Deste modo, busquei definir, a partir das páginas do Almanaque, o grid ali
empregado, para ajudar na compreensão da ordenação espacial dos temas e a
forma de utilização dos textos e imagens. O grid é formado por quatro colunas e
quatro linhas, os cruzamentos de coluna e linha somam dezesseis unidades de
contagem por página (Figura: 11). Cada unidade de contagem possui 5 cm de
largura por 4,5 cm de altura.
Figura 11: Grid tipográfico (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 30)
Para quantificar o espaço destinado a cada texto e imagem desenhei o grid
em papel vegetal, devido sua transparência, e o sobrepus às páginas do
Almanaque. Assim, foi possível quantificar a área utilizada, considerando as
unidades de contagem de cada unidade de registro no todo do livro, que
corresponde a 93 páginas ou 1.488 unidades de contagem. A ocorrência dos temas
(unidades de registro) em cada texto e imagem também foi realizada e há
conteúdos que apresentam registros de mais de um tema. Essas coocorrências de
75
temas e os espaços sem texto somam-se ao total de unidades de contagem. Dessa
forma, ao somar as unidades de contagem dos temas invividualmente, foi possível
chegar ao percentual ocupado por cada tema no Almanaque.
Os temas foram classificados em quatro grupos. Foi verificado, pela
análise temática, que cada grupo possui uma função no Almanaque: Grupo I –
Calendário e Astrologia, são os temas relacionados à origem do termo almanaque;
Grupo II – Provérbio, Receita, Literatura, Charada, Charge, Dica, Divertimento,
Artes e Curiosidade, são as temáticas que identificam o gênero tipográfico; Grupo
III – Ciência, Política, Biografia, Trabalho, Globalização, Costumes, Religião
Mitologia e Artigo e Grupo IV – Coocorrência de temas, ou seja, textos e imagens
em que foram registrados mais de um tema, são os conteúdos que veiculam a
visão de mundo dos movimentos de educação popular e do SAPÉ.
Quadro 2
Grupo I: Calendário e Astrologia
Temas Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)
Calendário 14 14
Astrologia 3 3
TOTAL 17 17
Fonte: Elaboração própria.
As categorias do Grupo I (Quadro 2), Calendário e Astrologia, aparecem
logo nas primeiras páginas, e por serem temas recorrentes nos almanaques,
sinalizam, como características principais, a relação existente entre a definição do
termo almanaque estar associado à contagem do tempo e à observação dos astros
– ao calendário, conforme explicitado no Capítulo 2 sobre a história dos
almanaques.
76
Nesse grupo o número de ocorrências e a percentagem da ocupação
espacial dos temas Calendário e Astrologia são iguais porque cada texto
corresponde a uma página inteira do livro (Figuras 12 e 13). Assim como os
elementos do Calendário, o tema Astrologia marca a identidade com o gênero
almanaque; as observações dos ciclos das estações, dos movimentos planetários e
das posições das constelações no céu sempre estiveram presentes na tentativa do
homem se relacionar com o tempo.
Figura 12: Tema Astrologia. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 23)
77
Figura 13: Tema Calendário. (Fonte: SAPÉ, 1998, p.8)
O Calendário (Figura 13) aparece desde as primeiras páginas,
correspondendo espacialmente a aproximadamente 14% do total de páginas do
Almanaque, considerando a soma de suas unidades de contagem. Para cada mês
do ano de 1998, ano da publicação do Almanaque, é destinada uma página,
somando, portanto, doze. A sequência dos dias, semanas e fases da Lua ficam
abaixo dos dias destacados, seguido de um provérbio, em uma linha horizontal.
Os destaques são os dias feriados, santos católicos, orixás africanos, festas
religiosas (judaicas, católicas, umbandistas e candomblecistas), profissões, morte
de mártires ou heróis, dias internacionais e mundiais, aniversários dos
acontecimentos da história do Brasil e do mundo ocidental e, ainda, os dias dos
jogos do Brasil na Copa do Mundo de Futebol. Esses destaques vêm sempre com
notas explicativas, alguma curiosidade ou informação sobre diferentes hábitos das
78
celebrações e cultos religiosos; fatos históricos e aleatórios; etimologia de
palavras e definições de termos.
A presença do calendário marca a realidade cultural do Almanaque,
identificando-o como um tipo de publicação específica, tendo o calendário como
característica primordial, pois pode-se considerar que a origem da palavra
calendário e almanaque, tendo em vista o percurso de suas histórias, são palavras
praticamente sinônimas. “Contas e cômputo, seriam senas dos dois signos, que
passariam a significantes no tempo e no espaço cultural de cada povo” (CASA
NOVA, 1996, p. 30).
Regulador do tempo, o calendário no Almanaque traz uma qualidade de
tempo recuperável, puro, considerado no seu infindável retorno – tempo circular.
Figura 14: Tema Calendário, linha do tempo. (Fonte: SAPÉ, 1998a, p. 7)
Os eventos históricos listados cronologicamente demostram uma fixação
do tempo, acontecimentos que não devemos esquecer, ou melhor, no contexto
79
temático do Almanaque, devem ser lembrados. Blindados no tempo, são
considerados como marcas que mostram a contagem dos anos (Figura 14).
Quadro 3
Grupo II: Provérbio, Curiosidade, Literatura, Charge, Divertimento,
Receita, Charada, Dica e Artes
Temas Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)
Provérbio 89 4,5
Curiosidade 26 6,5
Literatura 25 6,5
Charge 16 3
Divertimento 12 2
Receita 9 1
Charada 9 0,8
Dica 6 1,2
Artes 5 0,5
TOTAL 197 26
Fonte: Elaboração própria.
No Grupo II (Quadro 3), estão as categorias de maior frequência nos textos
e imagens; no entanto, a distribuição espacial dos temas não corresponde ao
percentual mais elevado, segundo à soma das unidades de contagem. Ocupam, em
sua maioria, a linha inferior e as colunas à esquerda e à direita da página do
Almanaque, e estão distribuídos por todo o livro. Esse arranjo espacial permite
colocar em destaque os textos que abordam em seu conteúdo as principais
temáticas do livro: Trabalho e Globalização (Figura 15 e 16).
As unidades de registro desse grupo representam diferentes gêneros
textuais: Provérbio, Curiosidade, Literatura, Charge, Divertimento, Receita,
Charada e Dica. O tema Artes encontra-se nesse grupo porque, assim como os
outros temas do Grupo II, é explorado com a finalidade de destacar na página o
conteúdo principal. Com suas múltiplas linguagens, os temas do Grupo II marcam
o momento do riso, da diversão, da utilidade, da imaginação, proporcionando uma
leitura que ensina brincando, por meio da informação de fatos curiosos; dos usos
medicinais de plantas; de conselhos sobre a alimentação, com algumas receitas;
dos jogos de passa-tempo; das piadas e anedotas; de fragmentos de romances,
poemas e fábulas; e dos provérbios, presentes em quase todas as páginas do
Almanaque, sempre com um preceito moral.
80
Figura 15: Dica, Charge, Literatura e Charada nas colunas laterais e Globalização ao centro em
destaque. (Fonte: SAPÉ, 1998, p. 28)
A lógica da organização estrutural do Almanaque propõe uma leitura
particular do tempo, pensado como um instrumento que envolve e evidencia a
relação entre seus temas centrais – Trabalho e Globalização – e os temas
recorrentes nos almanaques desde os séculos XVII e XVIII, como foi mostrado no
Capítulo 2, agrupados em: calendários, festas religiosas, literatura, conselhos e
dicas, receitas, fatos estranhos e curiosos, religião, provérbios, monumentos
históricos (BOLLÈME, 1965).
81
Figura 16: Curiosidade, Divertimento e Receita nas linhas abaixo do destaque Trabalho. (Fonte:
SAPÉ, 1998, p. 51)
Quadro 4
Grupo III: Ciência, Política, Biografia, Trabalho, Globalização, Costumes,
Religião, Mitologia e Artigo
Temas Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)
Ciência 20 12
Política 14 10
Biografia 12 8,5
Trabalho 11 5,5
Globalização 10 5
Costumes 8 2,8
Religião 5 1,8
Mitologia 5 1,4
Artigo 3 1
TOTAL 88 48
Fonte: Elaboração própria.
82
Os temas do Grupo III (Quadro 4), Ciência, Política, Biografia, Trabalho,
Globalização, Costumes, Religião, Mitologia e Artigo, juntos ocupam
percentualmente o maior espaço no total no Almanaque, aproximadamnete 48%.
Essa concentração sinaliza uma maior ênfase desses conteúdos no Almanaque e
seus conteúdos são aproximados simbolicamente à visão de mundo dos
movimentos de educação popular e cultura popular, particularmente, à definição
de cultura enquanto mobilização política e transformação social, evidenciando a
visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular, conforme
a análise documental feita no Capítulo 3.
Quadro 5
Grupo IV: Coocorrência de temas
Temas Co-corrências (unid.) Ocupação espacial (%)
Trabalho e Globalização 5 2,2
Mitologia e Religião 3 2
Religião e Ciência 1 0,4
Astrologia, Receita e Dica 1 0,5
Costumes e Ciência 1 1,5
Astrologia, Mitologia e
Ciência
1 0,4
TOTAL 12 7
Fonte: Elaboração própria.
O Grupo IV (Quadro 5) é o grupo cujas frequências de temas estão em
menor número no Almanaque, aproximadamente 7%. Representam a visão de
mundo do SAPÉ, pois as mensagens dos textos e imagens evidenciam os diversos
saberes em um relação dinâmica de negociação. As presenças simultâneas de dois
ou mais temas na mesma mensagem – coocorrência – são analisadas com o
objetivo de aproximar a significação da mensagem e dos seus registros com as
categorias utilizadas, identificadas pela análise documental, conforme abordagem
do Capítulo 3 desta pesquisa.
Os conteúdos dos temas dos Grupos III e IV traduzem a visão de mundo
dos movimentos de cultura popular e educação popular e cultura popular e
evidenciam a visão de mundo do SAPÉ. As proposições, enunciados, sequências
de frases ou somente a palavra contidos nos textos, são produtos de um discurso
que elabora sentidos e que operam ações. Deste modo, o método de análise de
83
conteúdo no contexto deste estudo busca estabelecer redes de aproximações
simbólicas e não uma transposição mais evidente das opiniões, das atitudes e das
representações dos discursos dos movimentos de cultura popular e educação
popular e do SAPÉ atribuídos ao Almanaque.
A porcentagem equivalente à soma da frequência de registro dos temas e o
percentual em relação ao espaço utilizado no Almanaque (Gráficos 1, 2 e Quadro
6) seguiram os arranjos em grupos de temas e as finalidades de cada grupo no
livro: presença de elementos que se relacionam com a origem atribuída ao termo
almanaque, temáticas que identificam o gênero tipográfico e conteúdos que
veiculam a visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação
popular e a visão de mundo do SAPÉ. Os espaços sem texto foram somados ao
total das unidades de contagem, para chegar aos 100% de ocupação espacial do
Almanaque.
Quadro 6
Distribuição dos temas em grupos
Ocorrências (unid.) Ocupação espacial (%)
Grupo I 17 17
Grupo II 197 26
Grupo III 21 7
Grupo IV 67 41
Coocorrências 12 7
Sem texto - 2
TOTAL 314 100
Fonte: Elaboração própria.
84
Gráfico 1: Frequência das unidades de registro nos textos e imagens do
Almanaque (Fonte: Elaboração própria)
Gráfico 2: Espaço ocupado no Almanaque (Fonte: Elaboração própria)
A análise dos dados aponta para dois sentidos atribuídos ao Almanaque
enquanto um artefato cultural da educação popular que evidencia a visão de
mundo do SAPÉ: intencionalidade da escolha tipográfica e a elaboração de um
manual para a ação. Os dados do Gráfico 2 permitem inferir, por um lado, que
apesar da soma da quantidade de textos dos Grupos I e II (Gráfico 1) ser maior em
relação aos outros grupos, a ocupação espacial desses grupos somados equivalem
85
a menos da metade do livro, embora ocupem uma parte considerável (43%). Por
um lado, as temáticas recorrentes nos Grupos I e II confirmam e reafirmam a
identidade com o gênero tipográfico e, de outro, que o objetivo de servir como um
manual de ação de transformação social a favor das classes populares estão
presentes nas mensagens dos textos e imagens dos Grupos III e IV, conforme
veremos a seguir.
4.2 Aproximações simbólicas entre as categorias de análise e o conteúdo
No corpo do livro, o espaço para as seções de história (compreendendo
textos e imagens) é um dos maiores, evidenciando a preocupação com a temática
e o fato do Almanaque ser um livro que privilegia o conhecimento científico. Há
ainda conteúdos de astronomia, eletrônica, computação, medicina, arqueologia,
neurociência, sociologia, agronomia, antropologia, iconografia, biologia e
etnomatemática. Os textos e imagens do registro Ciência equivalem,
aproximadamente, a 12% do todo do livro. A analogia foi o critério utilizado para
reagrupar todas as frequências em um único tema, pois apesar de fazerem parte de
áreas de conhecimento distintas, correspondem a um mesmo gênero, o
conhecimento científico.
São privilegiados os eventos históricos ocorridos no Brasil que tiveram
como característica a resistência ao poder instituído. São fatos pouco divulgados
nos livros didáticos tradicionais, como por exemplo a Revolta dos Malês31
e a
história do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto32
, demonstrando a valorização da
cultura dos povos indígenas e a contribuição histórica do trabalho dos negros
africanos escravizados, em particular, os saberes que desenvolveram na lida com a
terra.
31 Movimento que ocorreu na cidade de Salvador (província da Bahia) entre os dias 25 e 26 de
janeiro de 1835. Os principais personagens dessa revolta foram os negros islâmicos que exerciam
atividades livres, conhecidos como negros de ganho (alfaiates, pequenos comerciantes, artesãos e
carpinteiros). Apesar de livres, sofriam muita discriminação por serem negros e seguidores do
islamismo (SAPÉ, 1998). 32 Comunidade religiosa, localizada no município de Crato, no cariri cearense. Liderada pelo beato
José Lourenço, descendente de negros alforriados e discípulo de Padre Cícero, ousou desafiar o
poder dos latifundiários e foi brutalmente massacrada (SAPÉ, 1998).
86
No Almanaque nos registros de Biografia, a própria pessoa ou outrem
relata nos textos o dia a dia no trabalho, sua profissão, dificuldades e soluções
geradas pelo desemprego, como personagens que narram diferentes modos de
vida. No pano de fundo das narrativas estão as condições de trabalho e
desemprego, seus variados ofícios e profissões, tais como: professores,
agricultora, vendedora de mercadorias à beira da estrada, compositor, escritor,
camelô, médica, artista autodidata, desempregado, ator e taxista. São doze textos
de Biografia, suas unidades de contagem equivalem aproximadamente a 8,5% do
total de páginas do Almanaque.
Por sua vez, a enumeração do tema Trabalho equivale à aproximadamente
5,5% das páginas do livro, distribuída em onze textos/imagens. Os saberes que
envolvem processos de trabalho, suas etapas e técnicas empregadas; a reflexão
sobre o sentido do trabalho humano ao longo da história; exemplos de iniciativas
coletivas voltadas para o desenvolvimento local e valorização da cultura popular;
desemprego; trabalho informal; trabalho infantil e migração são subtemas
propostos na trama do Almanaque.
Com uma proporção equivalente à soma das unidades de contagem
Trabalho, o registro Globalização representa cerca de 5% do todo do Almanaque:
são dez textos/imagem que trazem, como destaque do seu conjunto, os aspectos da
globalização no dia a dia das pessoas, em particular, da classe trabalhadora; e as
transformações econômicas, desde as rotas comerciais do século XVI ao
neoliberalismo na década de 1990 do século XX, enfatizando o avanço
tecnológico provocado pelo desenvolvimento global da economia (Figuras 17, 18
e 19).
87
Figura 17: Globalização. (Fonte: SAPÉ, 1998, p.63)
Figura 18: À esquerda registro Globalização. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:
SAPÉ, 1998, p. 64)
88
Figura 19: À esquerda registro Globalização. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:
SAPÉ, 1998, p. 66)
A unidade de registro Política corresponde à compilação por analogia de
outros subtemas presentes nas mensagens dos textos, tais como: democracia,
cidadania, economia, educação e relatos de experiências. São quatorze textos e
imagens e equivalem aproximadamente a 10% do total das páginas do
Almanaque.
Em destaque estão as iniciativas pedagógicas de organizações não
governamentais, entidades populares e governos, em particular municipais, de
partidos políticos comprometidos, segundo os textos, com o povo. Essas ações
relatadas, tomadas em seu conjunto, se referem às formas coletivas de estratégias
educativas que preconizam a inserção cidadã das populações marginalizadas com
o objetivo de construir uma sociedade na qual todos têm responsabilidades no
exercício democrático da governalibidade.
Neste sentido, o voto do cidadão ganha grande importância, entendido,
conforme os textos, como um instrumento eficaz para assegurar a participação no
controle do poder público. O entendimento do sistema político brasileiro, por
exemplo, se torna essencial para os cidadãos decidirem em quem confiar para
gerenciar a sociedade brasileira, principalmente durante o período eleitoral.
89
Destacam-se, ainda, as iniciativas políticas criadas por organizações da
ONU, não governamentais e setores da sociedade civil, com o objetivo de
combater o jogo de forças políticas envolvido no mecanismo eleitoral; ocasião em
que os setores dominantes da sociedade, inclusive os que estão no poder, se
utilizam de múltiplas formas de pressão, violentas ou dissimuladas, para conduzir
a episódios que beneficiem seus interesses (CHAPONAY, 1998).
A Assembleia Geral das Nações Unidas (...) declarou que 1998 seria o Ano
Internacional dos Oceanos, como homenagem a essa fonte de vida e civilização, e para lembrar, também que todos os cidadãos do mundo, da necessidade de
salvaguardar os direitos das futuras gerações e de assegurar a defesa da Terra.
(SAPÉ, 1998, p. 37)
As pessoas, quando respeitadas no seu ofício, produzem sentido e valor. Com ou
sem as coisas. Mas as coisas sem as pessoas são letra morta. Preferir coisas a pessoas não é realismo. É apenas conformismo. (SAPÉ, 1998, p. 48)
Nos últimos anos têm-se multiplicado as iniciativas de organizações populares empenhadas na criação de atividades econômicas como formas de luta pela vida.
(SAPÉ, 1998, p. 51)
Apesar de todos os limites dos processos eleitorais, não se pode relativizar a
profunda significação das eleições, pois o voto é o único recurso a que se tem acesso para assegurar a participação no controle do poder público. (SAPÉ, 1998,
p. 81)
As populações, atualmente, aceitam alfabetizar-se porque sentiram que esse é um
meio de ter acesso ao desenvolvimento. (SAPÉ, 1998, p. 87)
Devemos construir sistemas de formação fundados na ajuda mútua, onde todos
têm interesse no enriquecimento intelectual e moral de todos. (...) Se todos os cidadãos aceitam partilhar seus saberes, eles se tornam necessários e, ao mesmo
tempo, responsáveis pelas mudanças sociais. (SAPÉ, 1998, p. 56)
Os enunciados acima e a seguir (registro Política) traduzem a visão de
mundo da educação popular sob a forma da definição de cultura como um produto
da mobilização política e transformação social. A visão de mundo presente nos
elementos simbólicos dos textos aproxima-se, em particular, do pensamento da
matriz católica da educação popular, na qual a consciência da realidade social
recria dialeticamente classes sociais antagônicas. Partindo desse entendimento, a
90
educação deverá conscientizar, promover atitudes e criar meios de ação que visem
a transformação da realidade social.
Um país com 32 milhões de pessoas na indigência não é uma Nação, é uma
tragédia. A democracia não pode existir só para alguns: ou é para todos ou simplesmente é uma mentira que não resistirá ao tempo. (SAPÉ, 1998 p. 48)
Investir em construções não deve ser prioridade para nossos governos estaduais e
municipais. O conúbio de prefeito e empreiteira seria hoje um conluio. (SAPÉ,
1998 p. 48)
Um diretor de favela não pode ter ação repressiva como tem o governo, não é?
Reprime, chega a polícia, acaba, a justiça condena. Então, é preciso ter muito cuidado com isso, porque a associação de moradores deve ser o sacerdote dos
favelados, interceder junto às autoridades, substituindo os políticos, quero dizer, o
político profissional. (SAPÉ, 1998 p. 83)
Os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos fazem parte da
Constituição da maioria dos países (...) servem como referência para o exercício da cidadania. Mesmo assim, muitos direitos continuam sendo violados em todo o
mundo. (...) persistem as práticas de violência policial, a atuação de grupos de
extermínio, além de outras práticas que violam os direitos universais. (SAPÉ, 1998 p. 90)
O principal conteúdo político a ser aprendido no Almanaque seria
compreender a relação entre o poder democrático e o exercício cidadão como
meios de ação, através da conscientização da realidade social, para a realização de
um projeto educativo no âmbito da educação popular, ou seja, a favor dos
interesses das classes populares. Elementos comuns de uma narrativa condizente
com a visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular,
que versam sobre diretrizes e perspectivas teóricas de uma ordem social ideal,
protagonizada pelas classes populares.
De uma maneira geral, o conteúdo das mensagens dos temas Trabalho e
Globalização expressam que as transformações ocorridas na relação entre o lucro
e a produção estão fundadas no papel do dinheiro e da ganância. Este se torna o
centro do mundo, sendo recriado pela ideologia dominante, incentivado pelo
consumo, pelo avanço tecnológico e pela globalização dos processos de produção
do modelo econômico neoliberal (COMAROFF e COMAROFF, 2000). No
entanto, os significados presentes nos enunciados mostram formas de adaptação e
91
ajustamento a esse modelo através do entendimento da dinâmica social e da
realidade econômica, em particular, fundamenta-se na necessidade de
ressignificação do sentido do trabalho humano e na maneira pela qual as camadas
populares tomam parte nesta conjuntura: participam da atividade econômica e, ao
mesmo tempo, são atingidas pelas conseqüências da organização e do dinamismo
dessa atividade.
Os conteúdos do Almanaque, ao recuperarem, em particular, eventos
históricos ocorridos no Brasil pouco divulgados ou silenciados na narrativa da
memória social da Nação, apontam a valorização dessas identidades ofuscadas.
Como representantes dos grupos subalternizadas, por exemplo as mensagens
abaixo (Figuras 20 e 21):
As fotografias de Frond ressaltam na rotina do trabalho o poder disciplinador (...)
Numa sociedade em que viver de renda era sinônimo de liberdade, essas
fotografias dão o que pensar. (...) dividindo o chão e libertando os braços, consagram uma nova ética do trabalho, com espírito do povo, escrita na história
[...] A beleza das composições e dos acabamentos porém ultrapassa o sentido
documental. Valoriza e humaniza o escravo negro nas roças, nos engenhos e nos
serviços,, distinguindo-se das figuras comuns desenhadas nos álbuns de época onde é apreciado como “coisa” exotica, curiosa dos tropicos. (SAPÉ, 1998, p. 40)
Figura 20: À esquerda registro Trabalho. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:
SAPÉ, 1998, p. 41)
92
Figura 21: À esquerda registro Trabalho. À direita, marcação e página da ocorrência. (Fonte:
SAPÉ, 1998, p. 41)
Destaco abaixo alguns enunciados de registro Trabalho que remetem à
resistência ao modo de imposição de uma lógica hierárquica do capitalismo
evidenciando uma crítica à desvalorização do trabalho humano. A semântica da
mensagem aproxima-se da apropriação simbólica da ideia de cultura – natureza
transformada e significada pelo homem, trabalho como produto da ação humana
consciente sobre o mundo e constitutiva das relações entre os homens – tal como
concebida pela matriz de pensamento católica dos movimentos de cultura popular
e educação popular.
A comermos um delicioso chocolate amargo com frutas, ou batido no leite,
geralmente não nos damos conta das condições de seu plantio e dos trabalhadores
que foram envolvidos nas diversas operações para que ele chegue às nossas mãos. A sequência que vai do cacau ao chocolate começa pelo plantio. (SAPÉ, 1998, p.
32)
Vivendo hoje nesse tempo aberto, quase redondo, somos mais ricos de
possibilidades. Mas a questão que se derrama nessa mesma amplitude é: como
usamos essa riqueza? Quem a ela tem acesso? Como trabalhamos a nossa grande
aproximação simultânea e universal? (SAPÉ, 1998, p. 6)
Os enunciados destacados a seguir (registro Globalização) abordam o
impacto do modelo econômico atual nas relações entre os indivíduos em uma
sociedade. Reforçam a ideia da necessidade da conscientização dos aspectos que
envolvem as relações de dominação econômica presentes na realidade social,
93
como uma atribuição da cultura, nos termos dos movimentos de cultura popular e
educação popular.
Num piscar de olhos a circulação do capital financeiro traz o mundo na mão. (...)
a globalização atinge a todos, tenham ou não consciência do fenômeno. (...) A
globalização não é apenas econômica. É também cultural, o que inclui desde a informação globalizada até o predomínio inglês idioma desse novo tempo.
(SAPÉ, 1998, p. 27)
Acostumamos com o dia-a-dia das coisas e dos jeitos, nem atinamos para a sua
trança de história, jogo antigo de trocas entre gentes. (SAPÉ, 1998, p. 29)
Há um Brasil onde a vida transita em camadas do tempo, como mergulho num
álbum de fotografia. Um mundo povoado por andarilhos do trabalho. Gente em constante vai-e-vem, mas invisível numa modernidade em que o manual e
artesanal deixaram de ser passaporte para o mercado e a cidadania. Gente que
sobra. (...) Rostos, mãos, braços, relevos ásperos e rugosos destoam da emergente
textura digital. (SAPÉ, 1998, p. 66)
Com a televisão e o correio eletrônico, as pessoas do mundo todo podem estar
diariamente em contato com as outras. (...) com esses mesmos meios de
comunicação, os executivos dos bancos e das grandes empresas internacionais, podem comprar produtos nos Estados Unidos, contratar trabalhadores no Brasil e
negociar ações na bolsa de Tóquio. (SAPÉ, 1998, p. 71)
Nosso país é fantástico na diversidade de ritmos que traduzem diferentes formas
de estar no mundo, e a cultura das camadas populares é profundamente marcada pela linguagem musical. O desenvolvimento dos meios de comunicação de massa
quase alijou essa cultura, isolando-a em suas próprias localidades. Saí em campo
à procura dos criadores dessa linguagem. (...) Esses trabalhadores mostram sua
maneira de o mundo, de conhecer a felicidade e progresso, muito diferente das
visões que lhes são impostas. (SAPÉ, 1998, p. 59)
As mensagens do registro Biografia seguintes procuram valorizar do
sentido do trabalho e da vida das pessoas das classes populares. As situações de
desemprego e baixa renda reveladas evocam características de uma pobreza
estrutural globalizada, considerando que as personagens das biografias são de
nacionalidades distintas e de diferentes regiões do Brasil.
Professor, Milton Santos (...). Intelectual negro, de formação cosmopolita, ele
critica o enconomicismo dos que só enxergam o país com o olhar embaraçado
pelas leis da economia globalizada. (SAPÉ, 1998, p. 30)
94
Meu nome é Rosilda (...). Passei uns dois ou três anos desempregada, fazendo
biscate: faxina, limpeza de terreno. (...) Então voltei para a agricultura e não gosto da agricultura. Pego na enxada e ela nuca amadurece. Quebra uma, compro outra.
Agora, não quero estudar mais não. Mas o que posso oferecer ao meu filho é o
estudo, para amanha ou depois ele ter um trabalho que melhore a vida dele, que não seja na agricultura. (SAPÉ, 1998, p. 38)
Thérèse (...) é vendedora de peixe seco e frutas a beira de uma estrada, na África. A angústia de chegar atrasada no trabalho, ela desconhece. Mas conhece bem a
inquietação quando a renda da jornada foi muito curta, sobretudo se Désiré fica
doente porque os remédios custam caro. (SAPÉ, 1998, p. 42)
Sou compositor (...). Embora não tenha nenhum benefício trabalhista, nem mesmo salário fixo, tenho a situação de ser querido pelas pessoas e sei que meu
papel na sociedade e muito importante. (SAPÉ, 1998, p. 52)
Antes, eu ganhava bem mais como camelô, sem comparação. Mas esse
desemprego todo no Brasil, hoje, esta abalando a venda da gente à beça. (...) Se
eu pudesse falar com o presidente, ia dizer: o Plano Real só foi bom no começo. Hoje em dia a gente passa mais dificuldades do que antes. (SAPÉ, 1998, p. 64)
Sou José Geraldo, (...) Sou casado e tenho três filhas. Meu objetivo é tentar dar alimentação para que elas estudem. Eu mesmo, só estudei até à segunda série.
Tentei estudar em escola de governo, até dormi na fila, e nada de vaga. E escola
está igual à saúde: se não tiver dinheiro, a gente morre. (SAPÉ, 1998, p. 75)
Sou Ramon (...) Considero nata do ser humano a capacidade de transformação pelo trabalho. Se não há empregos, criaremos a necessidade deles por meio do
nosso trabalho digno e da nossa atividade político-cidadã. (SAPÉ, 1998, p. 78)
Aqui nesse ponto, todo mundo é ‘ex’ alguma coisa. A maior parte tem um certo
grau de instrução, diferente de outras pessoas que eu via por ai na praça, vindas
de ambiente inculto. Aqui é uma associação que escolhe seus membros, funcionando num sistema de cooperativa, com taxas quinzenais, levando a luta
por um sistema de radiofonia. (SAPÉ, 1998, p. 85)
Os argumentos de Santos (2010) auxiliam no entendimento do processo
pelo qual o desemprego é gerado. Segundo o autor, ao mesmo tempo em que o
poder público se ausenta das ações de proteção social, é legítimo supor que a atual
divisão “administrativa” do trabalho e a omissão do Estado, de sua missão social
de regulação, estejam contribuindo para uma produção científica, globalizada e
voluntária da pobreza. Nas palavras do autor:
95
A pobreza atual resulta da convergência de causas que se dão em diversos
níveis, existindo como vasos comunicantes e como algo racional, um resultado necessário do presente processo, um fenômeno inevitável, considerado até mesmo um fato natural.
A divisão do trabalho era, até recentemente, algo mais ou menos espontâneo. Agora não. Hoje, ela obedece a cânones científicos – por isso a consideramos
uma divisão do trabalho administrada – e é movida por um mecanismo que traz
consigo a produção das dívidas sociais e a disseminação da pobreza numa
escala global. Saímos de uma pobreza para entrar em outra. Deixa-se de ser pobre em um lugar para ser pobre em outro. Nas condições atuais, é uma
pobreza quase sem remédio, trazida não apenas pela expansão do desemprego,
como, também, pela redução do valor do trabalho. (SANTOS, 2010, p. 36)
A ênfase na história de vida de pessoas pertencentes a grupos sociais
distintos, mas igualmente subalternizados, onde a vida econômica e a vida cultural
sofrem influência direta ou indireta do processo de globalização, segundo as
enunciações destacadas, indicam que os indivíduos são atingidos de modo
semelhante por esses fenômenos.
Os textos dos Grupos III e IV, de uma maneira geral, evocam a visão de
mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular, podendo ser
aproximados à matriz católica de pensamento, na qual, igualmente para o SAPÉ,
há a preocupação de se ter consciência da realidade ecômica e social e como essa
realidade influencia no dia a dia das pessoas, sobretudo as das classes populares.
O pressuposto de que as camadas populares têm uma maneira particular de
pensar sua inserção na sociedade a partir de suas experiências de vida (trabalho,
vivência afetiva, religiosidade etc.) justifica a denominação de um saber popular.
É a partir desse saber que o grupo se identifica como tal, troca informações entre
si, interpreta a realidade em que vive. Como são várias as situações de vida, são
vários os saberes. O denominador comum desses saberes, é ser dominado. A
consciência dessa dominação é meio de ação para a mobilização política e
transformação social, conforme a análise das mensagens dos conteúdos do
Almanaque realizada.
Numa sociedade de classes os saberes dominante e dominado (ou popular) são faces de uma mesma moeda e se relacionam entre side forma dinâmica. Como,
enfim, classes sociais antagônicas numa mesma sociedade; o saber sendo uma das
expressões deste confronto. (GARCIA, 1980, p. 98)
96
Seguindo a argumentação em torno da definição do saber no âmbito da
educação popular, enquanto
modos de vida, ideias, formas de saber e de pensar não refletem apenas o efeito
de posições e relações de classe ou categorias sociais nos arranjos da sociedade.
A força do sentido que há neles torna-os, a seu modo, um modo de poder. Algo que não existe apenas nos “aparelhos oficiais” de inculcação de conhecimentos,
valores e hábitos, contra os quais nos reconhecemos sempre em luta, mesmo
quando algunas vezes nos achamos do lado de dentro deles. Mas alguma coisa que desigualmente se distribui em todo lugar de relações sociais onde se dá o
exercício cotidiano de producir e lidar com símbolos e significados, e lhe atribuí
tanto o poder daquilo que representa, quanto o poder daquilo que é. (BRANDÃO, 2002, p. 104-105)
De acordo com essa definição e aproximando-a à visão de mundo do
SAPÉ encontrada nos elementos semânticos dos conteúdos e da maneira pela qual
os temas estão distribuídos no Almanaque, foi possível verificar que as temáticas
presentes no livro, ao remeterem simbolicamente os diversos saberes, crenças,
modos de vida, aspirações profissionais etc. estão em uma situação de negociação
nas páginas do Almanaque.
A tentativa de produzir um material de apoio didático que refletisse a
prática educativa realizada pelo SAPÉ no domínio da educação popular –
circularidade entre os saberes/poderes e dinâmica de negociação entre os diversos
saberes/poderes – seguiu os termos definidos pelos movimentos de cultura
popular e educação popular durante a década de 1960 e refletidos nos anos
posteriores pelas agências de assessorias às atividades de educação popular. Foi
então verificado pela análise dos dados que o Almanaque é um artefato cultural da
educação popular elaborado pelo SAPÉ para servir como um manual para a ação,
contendo valores, crenças, ideias de justiça, aspirações profissionais e de estilo de
vida em geral.
5 Considerações finais
A presente investigação contou com uma abordagem interdisciplinar para
reunir elementos teóricos e metodológicos que permitissem a análise do objeto de
pesquisa – Almanaque do Aluá n. 1, seguindo o objetivo proposto de relacionar o
conteúdo do Almanaque aos conceitos de cultura e cultura popular elaborados no
campo da Educação Popular no Brasil e às conceituações assumidas pelo SAPÉ:
saber, poder e negociação. Para atender a este objetivo foram formuladas algumas
questões que nortearam o trabalho de pesquisa, a saber: que aspectos políticos,
sociais e culturais são encontrados nas mensagens do Almanaque? Quais
apropriações simbólicas dos conceitos de cultura e cultura popular, tal como
elaborado no contexto histórico da Educação Popular, são retomadas no
Almanaque? Como os conceitos de cultura e cultura popular se apresentam?
Como articular os conceitos de cultura e cultura popular com as categorias que
emergem da reflexão do trabalho educativo do SAPÉ presente no Almanaque –
saber, poder e negociação?
Partindo dessas indagações foi possível iniciar a trilha de investigação
buscando compreender, por meio de revisão bibliográfica, o Almanaque enquanto
um tipo específico de publicação literária, cuja origem estaria ligada ao calendário
lunar e representaria a relação entre o ser humano e sua organização de espaço e
tempo. Ao longo de sua trajetória, o Almanaque se configurou como um livro que
se caracteriza por trabalhar na fronteira entre a oralidade e a textualidade, bem
como pela diversidade textual que provoca múltiplas leituras. Pelo
desenvolvimento da tipografia, tornou-se amplamente difundido, contendo a
língua, os costumes e os manuais da vida prática de uma determinada sociedade.
O Almanaque é, portanto, um objeto que traduz um sistema simbólico de
organização social, controle, sentido, ordem etc. e traduz os aspectos cognitivos e
existenciais que dão sentido às ideias que abrangem a ordem social – símbolo
cultural ou artefato cultural que evoca uma visão de mundo particular.
98
Nesta perspectiva, o Almanaque do Aluá n. 1 é um artefato cultural que
remete à visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação popular
através do SAPÉ, pois a ação educativa e o conteúdo do livro corporificam muito
bem, em cada época, a explicação que os seus idealizadores tinham da sociedade e
do papel que atribuíam à educação popular nessa mesma sociedade, como aquela
que é produzida pelas ou para as camadas populares, em função de seus interesses
de classe.
Não se trata, porém, de uma única corrente de visão de mundo, mas de
uma narrativa que possui elementos comuns, temas recorrentes e posicionamentos
regulares que traduzem o que poderia ser chamado de uma visão de mundo do
Almanaque. Nesse caso, significam a projeção de um ponto de vista determinado,
já que elas não eram isoladas da justificativa que respaldava a sua concretização.
As categorias de análise desta pesquisa emergiram da análise documental
de textos elaborados sobre os movimentos de cultura popular e educação popular
ou produzidos pelos próprios movimentos. No âmbito dos movimentos de cultura
popular e educação popular a visão de mundo está associada simbolicamente aos
conceitos de cultura e cultura popular e na perspectiva da ação cultural do SAPÉ
a visão de mundo é definida a partir das apropriações dos conceitos saber, poder e
negociação.
Identificou-se duas matrizes de pensamento dos movimentos de cultura
popular e educação popular dos anos de 1960 que definiram os termos cultura e
cultura popular. Ambas compreendiam ao mesmo tempo a cultura enquanto
natureza transformada e significada pelo ser humano e como transformação
progressista e mobilização política; e cultura popular para as duas perspectivas são
os costumes, saberes, crenças, modo de vida do povo etc. No entanto, a aplicação
conceitual desses termos difere-se na reflexão e execução sobre o entendimento
do trabalho educativo.
De um lado, a corrente católica preocupava-se em definir os aspectos
pertencentes à cultura (trabalho, história e dialética). A conscientização das
camadas populares por meio da educação era a maneira de compreender a
realidade brasileira e entender a cultura popular como um produto de classes
sociais antagônicas.
De outro lado, a perspectiva marxista, ligada às experiências de
universidades e partidos políticos, buscava refletir sobre o princípio da cultura
99
como sendo a superação da desigualdade estrutural, baseado em um projeto de
humanização da cultura. A atividade educativa deveria voltar-se para a ruptura
política da dominação, definindo a cultura popular a partir desse aspecto e
enquanto uma estrutura universal “de todos”.
Esta pesquisa compreende as definições expostas acima como elementos
pertencentes de uma prática educativa particular da educação popular;
configuram-se como aportes para compreender os desdobramentos conceituais
assumidos nas décadas de 1970 a 1990 no campo da educação popular - período
em que são formuladas as principais conceituações assumidas pelo trabalho
educativo do SAPÉ.
Os principais conceitos definidos a partir da reflexão sobre as atividades
educativas do SAPÉ são: saber popular e saber dominante (conhecimentos e
experiências vivenciadas e experimentadas), poder (esses conhecimentos em
confronto) e negociação (a potencialidade do confronto nas relações entre os
diferentes saberes).
Neste sentido, busquei compreender a relação entre os elementos
conceituais do SAPÉ e os aspectos tipográficos do almanaque, partindo da
seguinte questão: as temáticas das mensagens dos textos e imagens sugerem uma
dinâmica de negociação nas páginas do Almanaque?
A técnica de análise de conteúdo utilizada foi a análise temática, com o
objetivo de quantificar a frequência, recorrência e elaborar uma regra de contagem
da distribuição espacial dos temas no Almanaque. Outro objetivo foi a
interpretação pictórica e textual do Almanaque, aliado à intenção de estabelecer
redes de aproximações simbólicas entre o conteúdo e as categorias de análise:
cultura, cultura popular, saber, poder e negociação.
Os principais conteúdos a aprender no Almanaque são a conscientização
das condições sociais existentes. O que parece influir de forma mais imediata nas
necessidades e possibilidades dos grupos populares é o lugar que cada grupo
ocupa no processo de produção e a necessidade de ressignificação do sentido do
trabalho humano nesse contexto. Esses conteúdos são evidenciados nas
mensagens discurssivas dos temas Ciência, Política, Biografia, Trabalho,
Globalização e Artigo.
A análise pictórica e textual do Almanaque permitiu constatar que essas
principais lições contidas no livro fazem parte de uma maneira específica de se
100
pensar a educação. Aproximam-se simbolicamente das apropriações dos
movimentos de cultura popular e educação popular, particularmente, da matriz
católica de pensamento, pois evidenciam os aspectos contidos na definição de
cultura, enquanto relação dialética de comunicação entre os homens, tendo por
objetivo a conscientização da realidade social e a elaboração de um instrumento
para a transformação cultural, por meio da mobilização política e execução de
meios de ação que atendam a essa finalidade.
Além da verificação que os conteúdos do Almanaque evocam a visão de
mundo dos movimentos de cultura popular por meio do SAPÉ, constatou-se,
também, que o Almanaque é um artefato cultural apropriado para evidenciar a
ação educativa do SAPÉ no âmbito da educação popular, pois as temáticas
representam os diversos saberes/poderes existentes e que a sua distribuição no
livro segue uma dinâmica de negociação.
Essa evidência aparece na conjugação da análise da quantidade dos
registros e a ocupação espacial dos registros, ou seja, os temas que representam a
identificação tipográfica do livro: Calendário, Astrologia, Provérbio, Receita,
Literatura, Charada, Charge, Dica, Divertimento, Artes e Curiosidade somam 214
textos e imagens e ocupam espacialmente aproximadamente 43% do Almanaque.
Apesar de, juntos, terem maior quantidade de textos e imagens ocupam
proporcionalmente o mesmo espaço das temáticas destacadas como as principais
tradutoras da visão de mundo dos movimentos de cultura popular e educação
popular. Assim sendo, foi possível verificar dois aspectos do Almanaque: a
intenção da escolha tipográfica e a tentativa de elaborar um manual de ação.
Ambos os aspectos versam sobre uma ordem social ideal, aspirações profissionais,
ideais de justiça e de estilo de vida em geral, bem como o protagonismo de certos
atores sociais para a realização dessa visão de mundo particular.
O Almanaque do Aluá n. 1 não se configura como um material de apoio
ditático comum: a maneira informal e lúdica como os conteúdos podem sem
visitados trazem para a educação de jovens e adultos uma originalidade no ensinar
e no aprender. Pode-se considerá-lo como um livro que auxilia no trabalho de
conscientização das camadas populares, além de suprir a carência de ditádicos
para esse seguimento de ensino.
.
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