Entretenimento e controle na metrópole moderna 1
""FEIJÓ, Filipe 2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/RJ """"Resumo: A proposta do artigo consiste em mapear as relações entre corpo, controle e entretenimento na virada do século. O cenário para tal investigação é a metrópole moderna, com suas fábricas, cenário urbano caótico e uma noção de entretenimento que produzirá reverberações e questionamentos até os dias atuais. """Palavras-chave: entretenimento; controle; metrópole ""Frequência específica
"Isolar o corpo enquanto um vetor fundamental para a compreensão das práticas
da comunicação é o mesmo que isolar o movimento enquanto um elemento
fundamental para os estudos sobre o dispositivo cinematográfico. Mesmo que a figura
humana esteja ausente como “tema” de um determinado meio , entendemos que a 3
manifestação engendrada por um corpo enquanto produtor comunicacional
(mobilizando o pensamento e recursos técnicos e tecnológicos) e pelo meio secretada,
“volta-se” para o corpo na condição do usuário. Pouco importa, nesse caso, a ruptura
com fronteiras antinômicas. Quem fez, quem consumiu, se quem fez consumiu, se
quem consumiu também fez. O que importa de fato é que os meios são “pelos” e “para”
os corpos e, sendo assim, atuam numa “freqüência” específica.
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! Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 3º 1
Encontro Regional Sudeste de História da Mídia, 2014.
! Doutorando do programa de pós-graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2
(PPGCOM – UERJ). Professor da pós-graduação em Design Digital da Escola Superior de Design Digital do instituto Infnet, lecionando as disciplinas de Conceitos de Fotografia e Cinema, e Roteiro.
! Por exemplo, uma vídeo-instalação que apresente as ondulações provocadas na água de uma bacia por 3
uma goteira enquanto uma goteira (dessa vez não virtual) cai atrás de um monitor.
Atuar numa freqüência específica nada mais é do que atuar na nossa “faixa”
sensorial. O que a audição pode captar é algo entre 20 e 20.000 Hertz de freqüência e
entre -10 e 90 decibéis de intensidade. Qualquer coisa aquém e além disso é
considerado infra e supra som respectivamente, sendo que nas intensidades mais
elevadas podemos ter nossos tímpanos estourados. Não somos capazes de enxergar a
luz infra-vermelha ou ultra-violeta, por exemplo e, de um modo geral, suportamos
incidências específicas de calor, frio, pressão, impacto, desgaste, desnutrição e
repetição. Tudo isso deveria ter sido levado em conta na formatação dos modos de
interação da humanidade com máquinas e processos de trabalho nos últimos séculos. E
foi, de certa maneira. Sabemos que, ao longo do processo denominado Revolução
Industrial, toda sorte de abusos ligados às condições de trabalho constituíram-se como
uma ameaça concreta à integridade física dos operários. Entretanto, num mesmo
período, estudos científicos viabilizaram descobertas relevantes acerca de nossa
fisiologia.
"Corpo; martírio, mensura e entretenimento
"
Ao longo de sua extensa carreira, Charles Chaplin destacou-se pela contribuição
com filmes e personagens notáveis. Porém, o vagabundo Carlitos em Tempos Modernos
mostra-se, indubitavelmente, como um dos pontos mais altos dessa trajetória. Munido
de trejeitos, espasmos, cacoetes, Chaplin notabilizou-se pela absoluta precisão e pelo
humor implacável. Tamanha habilidade na incorporação, seja do personagem ou das
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disposições físicas a que está submetido em suas desventuras, é o resultado não de um
exibicionismo fácil ou da gratuidade narcísica presente em certos atores e que alguns
chamam de técnica. Esses histrionismos são a consequência, em forma de ficção, das
tentativas de adaptar o corpo a uma ordem e às subseqüentes tarefas que desafiam a
motricidade humana. Podemos apontar algumas dessas práticas como típicas de um
capitalismo avançado e presentes, sem dúvida alguma, nos itinerários laborais da
Revolução Industrial. Nas diversas seqüências que retratam o cotidiano dos operários,
observamos ações não muito distantes das que os trabalhadores exerciam, circunscritos
nas formulações advindas do taylorismo e do fordismo . A repetição constante e 4
mecânica de uma tarefa muito específica implicava não apenas na maior facilidade em
substituir um funcionário ou na alienação marxista em relação à totalidade dos meios
de produção e, conseqüentemente, do produto, mas, sobretudo, se pusermos a questão
das afetações corporais em perspectiva, na deterioração daquilo que Bergson chamou
de placa sensório-motora . É milagroso o fato de um ser humano agüentar por tantas 5
horas esse tipo de atividade e o ator ilustra o que acontece quando o corpo “descarrila”
com um lirismo ácido e cruelmente cômico.
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! Provindos respectivamente do engenheiro Frederick Taylor e do empresário Henry Ford, ambos 4
americanos, esses termos designam modelos de racionalização do trabalho que visam o aumento da eficiência operacional. A divisão de funções calcada em pequenas operações ou pequenas etapas da produção, cuja linha de montagem na esteira rolante é o exemplo clássico, aparece como o cerne desse tipo de pensamento.
! A palavra deterioração é utilizada no lugar de quebra para evidenciar o teor negativo dos eventos 5
citados, bem como a ação do tempo nos organismos.
Tempos modernos é a síntese de uma época marcada pelo intenso
entrecruzamento de realidades e forças promotoras, em alguns casos literalmente, de
choques. Se algumas seqüências contém elementos claramente fantasiosos , outras são 6
uma amostra bastante fiel ao tipo de estímulo a que um funcionário de fábrica estava
submetido. Aliás, o termo hiperestímulo, cunhado por Michael Davis em 1910 e
utilizado por Ben Singer em Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo
popular, é mais adequado aos fenômenos tecnológicos, sensoriais e culturais típicos da
cidade moderna. O texto apresenta um panorama da passagem do século XIX para o
XX, ressaltado num viés mais neurológico que socioeconômico, sobretudo no que diz
respeito aos efeitos derivados das dinâmicas sensório-motoras presentes no dia-a-dia.
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! Como nas licenças poético-tecnológicas do aparelho de tele-comunicação com que o chefe monitora 6
seus empregados e da “máquina de almoçar” que pifa, numa das cenas mais hilariantes do filme.
Apoiado nos autores Georg Simmel, Siegfried Kracauer e Walter Benjamin , Singer 7
procura mostrar a pletora de manifestações, acontecimentos e relações presentes em
diferentes lugares. Nas ruas, por exemplo, a fragmentação, a velocidade e o caos
distribuíam-se em painéis, cartazes, anúncios,
ruídos, sinais de trânsito e tráfego que disputavam espaço com a multidão a se
acotovelar. Nos locais de trabalho, além do usual bombardeio de estímulos, havia a
iminência do perigo de ferimentos graves e morte com a utilização dos novos
maquinários e nas grandes edificações cuja vertiginosa altura permitia poucas chances
de sobrevivência em caso de queda. Além disso, o choque de elementos das realidades
modernas e pré-modernas ilustrado pela anacrônica imagem do cavalo que, num
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! No artigo “A metrópole e a vida mental”, Simmel apresenta as dinâmicas da metrópole em contraste 7
profundo com as da vida rural. A cidade foi por ele concebida como um bombardeio de estímulos e a intensificação desses estímulos nervosos, ocorrendo em inúmeras dimensões da experiência humana, promoveu uma transformação da experiência subjetiva psicológica e fisiologicamente. O texto influenciou profundamente Benjamin e Kracauer. O primeiro, ao apontar no flaneur, entretido com a pluralidade heterogênea das vitrines e no cinema, produtor maquínico de imagens-movimento, sintomas desse processo. O segundo, quando aborda amplamente uma estética da excitação superficial encontrada nos divertimentos por “distração” que, ao serem promovidos sistematicamente pela indústria do entretenimento, constituíam o panorama psíquico da cultura de massa.
! Edição do NewYork World de 1897.8
acidente, adentra um bonde , ajuda a caracterizar o descompasso urbano vivido por 8
aqueles habitantes.
O risco e a estimulação corporal tornaram-se presentes na vida diária não apenas
em forma de impressões por parte da população diante da cidade, mas através de
manifestações engendradas pelos mais diversos canais e atores sociais. Nos manifestos
estéticos de Fillippo Marinetti e Fernand Leger até ensaios acadêmicos e cartuns nas
revistas cômicas Punch, Judge, Life e jornais sensacionalistas como World e Journal de
Nova York, a ênfase recai sobre o caos vivido na experiência moderna. As imagens e
narrativas presentes nesses meios de comunicação disparam um imaginário fatalista em
que locomotivas estraçalham pessoas, incidentes violentos de natureza diversa, quase
metafísica, parecem surgir do nada, esqueletos representando a morte recolhem pilhas
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de vítimas. O macabro sensacionalismo, mais do que vender jornais, deflagrava o
aspecto vulnerável da urbe. Sensacionalismo, aliás, que pouco a pouco toma conta do
lazer, transformando-o, destacando o lado espetacular e surpreendente das atrações. Nas
apresentações múltiplas e fragmentadas do vaudeville encontramos uma fórmula
agitada para a demanda por diversão, e se o parque de diversões de Coney Island,
inaugurado em 1895, conta com atrações emocionantes como a montanha russa e a roda
gigante, outras opções de entretenimento já refletem um desejo algo mórbido por
excitação. Shows de aberrações, exibições perigosas tal “O globo a morte”, espetáculos
teatrais envolvendo acrobacias, ações violentas, explosões, edifícios em chamas e toda
a sorte de desastres “fabricados”. Podemos inferir que o suspense orquestrava essas
maquinações exercendo, ao menos, uma dupla função; manter o público “ligado” o
tempo inteiro nos acontecimentos e gerar um nível progressivo de tensão que
culminasse numa imensa catarse catastrófica. Com a paulatina hiperexcitação nervosa o
público, fosse aquele blasé entediado pelo excesso de inputs ou pela monotonia própria
do trabalho repetitivo, ou o que ainda não tinha recebido a dose suficiente, parecia
necessitar de cargas mais cavalares, tenebrosas e surpreendentes de estímulo. Havia
cada vez menos espaço para o melodrama vitoriano e suas narrativas de cunho patético
e moral naqueles dias.
"O escrutínio do olho
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"A vivência do espaço metropolitano em todos os seus desdobramentos
proporcionou uma espécie complexa de treinamento em que o organismo, de maneira
geral, calibrou-se para os contextos de uma realidade muito mais acelerada. Entretanto,
seja nas ruas, nos ambientes de trabalho ou laser, o problema da atenção é que está em
pauta quando elencamos processos e atividades referentes a esse período. Até o século
XVIII, a câmara obscura ressaltava o escopo clássico da visualidade como um 9
referencial objetivo e preciso, justamente pela crença de que operava “fora” do corpo e
de suas subseqüentes limitações. O que se evidencia no século XIX é a passagem de 10
uma ótica geométrica para uma ótica fisiológica. Nessa perspectiva, a materialidade
corporal agregada aos estudos sobre a visão mostra que já não é possível ignorar a
dimensão subjetiva do olhar já que a objetividade da “câmara” estava relativizada,
nesse momento, enquanto paradigma. Havia uma necessidade econômica de que o olho
e a mão, na execução de tarefas repetitivas, pudessem coordenar-se de maneira rápida e
eficiente, e isso requeria um preciso conhecimento das capacidades óticas e sensoriais
humanas. Elevados índices de atenção mostravam-se indispensáveis para uma
racionalização do trabalho e as consequências da “inatenção”, além dos já conhecidos
martírios físicos, também incluíam implicações econômicas. É aí que aparece mais
claramente a demanda por conhecimentos sobre a adaptação de um ser humano aos
modelos industriais de produção. Os estudos quantitativos acerca do olho, pautados em
limites de estimulação, fadiga, tempo de reação, faziam parte de disciplinas recém
surgidas como a psicologia fisiológica. Maneiras de tornar úteis e dóceis grandes
grupamentos humanos (fossem trabalhadores, prisioneiros, estudantes ou pacientes
hospitalares) correspondiam a certa política do corpo, modalidade nova, específica, de
saber e poder. Em Vigiar e Punir, Michel Foucault faz um minucioso exame de
instituições disciplinares como a militar, escolas, prisões, no intuito de descrever como
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! Aparato inventado ainda na antiguidade capaz de projetar imagens que estão ao redor em seu interior 9
através de um feixe de luz. Muito utilizado para desenhos que requerem maior precisão de formas e proporções.
! Jonhathan Crary situa um processo de reorganização da visão no início do século XIX, mais 10
precisamente nas décadas de 1820 e 1830, capazes de produzir um novo tipo e observador. Esse novo regime, moderno e heterogêneo, redefiniu o status de um sujeito observador através de uma série de relações entre corpo, de um lado, e formas de poder institucional e discursivo, do outro.
o comportamento dos indivíduos é modificado e regulado pelas recém constituídas
ciências humanas. Um bom exemplo de pensamento voltado para o conteúdo
disciplinar também encontra-se na pedagogia de Johann Friedrich Herbart. Herbart,
com seu conjunto de práticas, visava, sobretudo, a obediência e a atenção, e acreditava
que uma série de idéias poderia ser inserida seqüencialmente em cabeças juvenis num
procedimento de quantificação psicológica. Portanto, os novos modos de produção 11
fabril demandavam um conhecimento mais detalhado acerca das dinâmicas de atenção
nos trabalhadores, bem como em sala de aula, em relação aos alunos, no que diz
respeito às dinâmicas de atenção.
Jonhathan Crary designa o termo “regime de visibilidade” para apontar o
momento em que a atenção e a visão ganham destaque nos estudos científicos. Esse
tipo de saber regulador da visão e da atenção coincide com um conhecimento capaz de
produzir aparatos óticos voltados para a diversão. Fenaquisticópio, stroboscópio,
zootrópio, caleidoscópio e estereoscópio (tão importante para os debates acerca da
disparidade binocular) são aparelhos que transitam entre a ciência e o entretenimento,
! 9! Ver Techniques of the Observer pg. 10211
bem como o farão a fotografia, o cinema, a televisão e o computador posteriormente.
Esta relação entre o corpo (mais precisamente o que se refere a motricidade e a
atenção) e os aparelhos que mobilizam diretamente a visão, possui complexos
desdobramentos técnicos e culturais. Isso evidencia, pelo menos, três coisas: o enorme
destaque dado ao sentido da visão no ocidente, como este sentido formatou relações
culturais, sociais, econômicas e psíquicas e a necessidade de um estudo arqueológico
bastante extenso e minucioso para a compreensão dessas relações.
"
""""""""Referências
"CRARY, Jonathan. Techniques of the observer. On vision and modernity in the
nineteenth century. Cambridge: MIT Press, 1992.
"SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, G. O. (org.). O fenômeno
urbano. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. p.11-25.
"SINGER, Ben. Modernidade e hiperestímulo. In: Charney L. e SCHWARTZ, V. (org.)
O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
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