UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA UFBA
FACULDADE DE COMUNICAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
COMUNICAO E CULTURA CONTEMPORNEAS
KYLDES BATISTA VICENTE
OS EPISDIOS DA VIDA ROMNTICA: MARIA ADELAIDE
AMARAL E EA DE QUEIRS NA MINISSRIE OS
MAIAS
Salvador
2012
2
Kyldes Batista Vicente
Os episdios da vida romntica: Maria Adelaide Amaral e Ea de
Queirs na minissrie Os Maias
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em
Comunicao e Cultura Contemporneas, Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do grau de Doutor.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Carmem Jacob de Souza
Salvador
2012
3
Ficha Catalogrfica
______________________________________________________
Vicente, Kyldes Batista
Os episdios da vida romntica: Maria Adelaide Amaral e Ea de Queirs na
minissrie Os Maias /
Kyldes Batista Vicente. Salvador: K. Vicente, 2012.
xxx p.
Orientadora: Professora Dra. Maria Carmem Jacob de Souza Tese (doutorado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Comunicao, 2012.
1. xxxxx. 2. xxxxx. 3. xxxx. 4. xxxxx. I. Universidade Federal da Bahia,
Faculdade de Comunicao. II. Souza, Maria Carmem Jacob de. III. Ttulo. CDU xxx
_____________________________________________________________________
4
Kyldes Batista Vicente
OS EPISDIOS DA VIDA ROMNTICA: MARIA ADELAIDE AMARAL E EA DE
QUEIRS NA MINISSRIE OS MAIAS
Tese apresentada como requisito para obteno do grau de Doutor em Comunicao e Cultura
Contemporneas, Universidade Federal da Bahia, pela seguinte banca examinadora:
Maria Carmem Jacob de Souza - Orientadora - _____________________________________
Doutora em Cincias Sociais, Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, PUC/SP, Brasil. Faculdade de Comunicao, Universidade Federal da Bahia, Brasil.
Carlos Antonio Alves dos Reis - _________________________________________________ Doutor em Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra, Portugal. Instituto de Lngua e Literatura Portuguesas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra,
Portugal.
Maria Cristina Palma Mungioli - ________________________________________________ Doutora em Cincias da Comunicao, Escola de Comunicaes e Artes ECA/USP, Brasil.
Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de So Paulo, Brasil.
Mirella Mrcia Longo Vieira Lima - _____________________________________________ Doutora em Letras, Teoria Literria e Literatura Comparada, Universidade de So Paulo,
USP, Brasil. Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Brasil.
Guilherme Maia de Jesus - _____________________________________________________
Doutor em Comunicao e Cultura Contempornea, Universidade Federal da Bahia, UFBA, Salvador, Brasil.
Universidade Federal do Recncavo da Bahia.
Salvador, Agosto de 2012.
5
A
Enedina Pereira Batista (in memorian), minha me, que me ensinou a acreditar nos sonhos e
que queria tanto ver esta tese pronta!
Joo Batista Vicente (in memorian), meu pai, para quem eu sempre fui a baiana.
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AGRADECIMENTOS
Professora Maria Carmem Jacob de Souza, por sua orientao, por sua amizade,
pela parceria, pela confiana e, sobretudo, por sua generosidade intelectual. Saliento,
agradecida, a riqueza das suas sugestes, o rigor nas revises e ainda a disponibilidade e
compreenso que sempre demonstrou.
A minha gratido vai igualmente ao professor Wilson Gomes, por seu
profissionalismo, ateno e amizade.
Aos professores Mirella Mrcia Longo Vieira de Lima, pesquisadora da literatura
portuguesa, e Guilherme Maia, pesquisador do audiovisual (e um Maia!), pela leitura atenta e
direcionamento ao meu trabalho na qualificao.
Maria Adelaide Amaral, pela simpatia e delicadeza em disponibilizar os roteiros
para a anlise; e ao professor Carlos Reis pela gentileza em apresentar-me a ela, pela
disponibilizao de textos e pela generosidade intelectual.
Ao amigo Eli Pereira da Silva, companheiro apaixonado pelas Letras portuguesas; e
Neusa Bohnen, pela cuidadosa leitura e interlocuo.
s amigas: Cristiane, Liliane, Lula, Martha, Silvana e Silvria, por estarem comigo
nos momentos crticos; Darlene e Paula, pelo companheirismo; Adriana, D. Ieda, Lcia, Nvia
e Luzia pela fora da amizade.
Dinda e Miranda, pelo incentivo; Rodrigues, Iraci e Tainara, pela compreenso e
cuidados; Patrik, Alexandre, Joo Nunes e Rodrigo, pelo afeto; ao amigo Fbio DAbadia,
pelas primeiras conversas e ao Joseano pelo apoio.
Agradeo especialmente aos meus irmos, Keides e Joo Filho, pela compreenso,
pela pacincia, pela torcida, pelo incentivo e pelo amor em tantos momentos de angstia e de
consternao. Agradecimento que tambm devido a toda a minha famlia e aos meus amigos
aqui no mencionados, mas lembrados em meu corao.
Aos companheiros do Grupo A-Tev, pela leitura e contribuio nas reflexes e
Michele, pelo bom humor de sempre.
Por fim, agradeo Unitins e CAPES, pelo apoio para a realizao do doutorado.
7
VICENTE, Kyldes Batista. Os episdios da vida romntica: Maria Adelaide Amaral e Ea de
Queirs na minissrie Os Maias. 287 f. il. 2012. Tese (Doutorado). Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Comunicao, Salvador, 2012.
RESUMO
Nesta pesquisa examinada a hiptese de que quando os romances de Ea de Queirs Os
Maias, A Relquia e A Capital foram adaptados para a minissrie Os Maias, a roteirista autora e o diretor geral objetivaram maior aproximao possvel ao estilo do autor portugus. Ao encontrar, na crtica minissrie, uma tendncia a consider- la pouco prxima ao estilo de
Ea de Queirs, este trabalho procurou questionar a posio dessa crtica, analisando o modo como foi possvel equipe de realizadores a criao de estratgias para a composio de
programas de efeitos que aproximassem a minissrie ao texto queirosiano, sem deixar de imprimir suas marcas no produto realizado.
As bases conceituais que nortearam esta investigao esto fundamentadas na ideia da adaptao como traduo ou transposio entre sistemas semiticos, desenvolvida por Plaza;
na ideia de dialogismo e intertextualidade em Bakhtin; e na teoria da adaptao proposta por Hutcheton. A teoria assinada por Bourdieu possibilita o entendimento e a anlise do contexto
de produo do campo literrio e do televisivo para compreender como a perspectiva autoral de Maria Adelaide Amaral e de Luiz Fernando Carvalho colaborou em uma adaptao de Ea de Queirs para a televiso brasileira, caracterizada por uma perspectiva autoral dos
adaptadores em que procuravam um resultado em que os traos do estilo de Ea pudessem ser reconhecidos.
Os resultados da pesquisa demonstram que a adaptao operada por Maria Adelaide Amaral e
Luiz Fernando Carvalho, autores da minissrie, apresentou aproximaes com o estilo de Ea de Queirs no que se refere conduo da narrativa, ao modo como a histria foi contada, ao
cuidado com a msica, apresentao dos pressgios e indcios. Neste caso, o objetivo dos adaptadores configurou-se em um grau elevado de aproximao, em que foram resguardados os traos do escritor portugus, atitude que colocou em risco a recepo da minissrie pelo
pblico.
O objeto de anlise desta tese foi constitudo pelos 42 captulos da minissrie Os Maias, exibida de tera a sexta-feira, pela Rede Globo de Televiso, de 09 de janeiro de 2001 a 23 de
maro de 2001, s 23h. A articulao entre a matriz metodolgica que orienta os trabalhos do Laboratrio de Anlise Flmica a Potica do Filme e as proposies advindas da anlise que examina as instncias de produo, fruio e consumo de telefico orientada por Bourdieu
fomentaram a anlise que observou os efeitos sensoriais, sentimentais e cognitivos que a obra pode produzir sobre o apreciador, nesse caso, a minissrie fruto da adaptao de
romances para a televiso brasileira.
Palavras-chave: Televiso. Literatura. Minissrie. Adaptao.
8
VICENTE, Kyldes Batista. Episodes of a romantic existence: Maria Adelaide Amaral and Ea
de Queirs in the miniseries Os Maias. 287 p. il. 2012. Thesis (Doctorate). Federal University of Bahia, Media School, Salvador, 2012.
ABSTRACT
This study investigates the hypothesis stating that when the novels Os Maias, A Relquia and A Capital, written by Ea de Queirs, were adapted to a miniseries called Os Maias, the scriptwriter and the director aimed to get as closer as possible to the style of this Portuguese
author. As we found out, in the miniseries reviews, a trend to consider it little close to Ea de Queirs style, this work question the position of these critics by analyzing how it was possible
for the team involved with the production of the miniseries to create strategies to set effects that brought the miniseries closer to the text written by Ea de Queirs, while leaving the production own marks.
Conceptual basis that lead this research are stated in the idea of adaptation as a translation or a
transposition between semiotic systems, developed by Plaza; the idea of dialogue and inter-text in Bakhtin; and the theory of adaptation proposed by Hutcheton. The theory signed by
Bourdieu makes it possible to understand and analyze the production context in literary and television domains in order to understand how the authorship perspective from Maria Adelaide Amaral and Luis Fernando Carvalho side with an adaptation of Ea de Queiroz for
the Brazilian television, featured by an authorship perspective in which they aim that the traits of Ea de Queiroz style should be recognized in the miniseries.
The results of this study show that the adaptation from Maria Adelaide Amaral and Luiz
Fernando Carvalho, authors of the miniseries, presented proximity to Ea de Queirs style, regarding narrative characteristics, the way the story was told, care with the music, presentation of omen and clues. In that case, the aim of the authors figured in a high level, in
which the traits of the Portuguese writter were kept, conduct that endangered the audience acceptance of the miniseries.
This work analyzed the 42 chapters of the miniseries Os Maias, which were broadcast from
Tuesday to Friday, on Rede Globo de Televiso channel, from January 09th to March 23rd, 2001, at 11 PM. The link between methodological matrix that guides the studies performed at Laboratrio de Anlise Flmica (Laboratory of Film Analysis) Potica do Filme (Poetic of
Films) and the propositions from the analysis which investigates television fiction shows production, enjoyment, and consumption venues according to Bourdieu indicates an
analysis that observe sensory, sentimental and cognitive effects that the novel can provoke on the audience, building a better comprehension of elaborated audiovisual product, here, from the adaptation of a novel to Brazilian television.
Keywords : Television. Literature. Miniseries. Adaptation.
9
SUMRIO
Introduo . 11
Captulo 1 A Adaptao ................................................................................ 27
1.1 Aspectos tericos que orientam a anlise de adaptaes audiovisuais .. 27
1.1.1 Como entendida a Traduo Intersemitica ...................................... 28
1.1.2 A Intertextualidade na Adaptao ......................................................... 37
1.1.3 A Transmediao e a Telefico ............................................................. 41
1.2 Aspectos metodolgicos que orientam a anlise de adaptaes
audiovisuais ...
46
Captulo 2 A Minissrie como Gnero ......................................................... 56
2.1 Gneros literrios ........................................................................................ 56
2.2 Minissrie ..................................................................................................... 72
2.3 Modo Ficcional ou Modo Narrativo?........................................................ 79
2.4 Fico Seriada.............................................................................................. 83
2.5 As implicaes da noo de gnero para a anlise da minissrie ........... 88
Captulo 3 O estilo e autoria em Ea de Queirs ........................................ 92
3.1 O estilo de Ea de Queirs e a sua difuso ............................................... 96
3.2 A Literatura e o Estilo de Ea de Queirs ................................................ 98
3.3 Proximidade e Distanciamento: o estilo de Ea de Queirs .................... 104
3.4 A recepo crtica do romance Os Maias ................................................. 109
Captulo 4 Autoria e estilo na adaptao da minissrie ............................. 115
4.1 O lugar da adaptao de Os Maias na trajetria de consagrao de Maria
Adelaide Amaral .................................................................................................
122
4.1.1 As Leituras de Formao ........................................................................ 124
4.1.2 A Produo Teatral ................................................................................. 126
4.1.3 A Produo Televisiva ............................................................................. 126
4.1.4 A Relao com a Crtica .......................................................................... 128
4.1.5 Sucesso e Reconhecimento ...................................................................... 129
10
4.1.6 O Projeto Os Maias ............................................................................. 134
4.1.7 Dramas Familiares e Afetivos ................................................................. 135
4.2 Luiz Fernando Carvalho e o conceito esttico da adaptao .................. 141
Captulo 5 A minissrie Os Maias: aproximaes e distanciamentos
com a literatura de Ea de Queirs .
156
5.1 Implantao da trama: o primeiro captulo da minissrie ..................... 162
5.1.1 O primeiro captulo da minissrie .......................................................... 163
5.2 As aproximaes . 166
5.2.1 Os Indcios, os Pressgios 172
5.2.2 A Msica ................................................................................................... 180
5.3 Os distanciamentos 181
5.4 O desfecho da minissrie 194
5.4.1 O ltimo captulo: Um efeito de concluso, de absoluto remate . 195
5.5 O tempo e o espao na minissrie e no romance ...................................... 196
5.6 Ainda o apanhamos: o desfecho da minissrie ..................................... 205
Consideraes Finais ........................................................................................ 209
Referncias ........................................................................................................ 215
Apndices ........................................................................................................... 233
Apndice 1: O primeiro captulo da minissrie ............................................. 234
Apndice 2: O ltimo captulo ......................................................................... 253
Apndice 3: Trama ........................................................................................... 259
Apndice 4: Produo ....................................................................................... 264
Apndice 5: As Personagens da minissrie .................................................... 268
Anexo ................................................................................................................. 282
Anexo 1: Quadro geral das referncias musicais ........................................... 283
11
Introduo
Para comear
A inteno de trabalhar com a minissrie Os Maias surgiu quando ela foi exibida em
2001. Naquela poca, eu j morava e trabalhava em Palmas-TO, e ensinava literatura
portuguesa na Ulbra. Os primeiros captulos foram acompanhados por mim enquanto passava
frias na casa de meus pais em Uruta-GO e, j naquela poca, decidi gravar todos os
captulos no videocassete, pois ainda no se falava muito em comercializao desses produtos
pela emissora. Terminadas as frias, voltei a Palmas e minha me continuou gravando cada
captulo at que se completaram os 42.
O material ficou guardado. As quatro fitas contendo, cada uma, 6h de gravao
ficaram guardadas, assim como j estavam guardadas as fitas de A Muralha, Dona Flor e
seus dois maridos (que se juntaram s minissries exibidas posteriormente). Ainda no tinha
claro o que iria estudar naquele material todo, j que onde fiz o Mestrado (UFG), naquela
poca, ainda no havia quem trabalhasse, no Programa de Letras e Lingustica, com literatura
e televiso ou literatura e cinema.
Quando comecei a pesquisar para a seleo do Programa de Ps-Graduao em
Comunicao e Cultura Contemporneas, finalmente consegui elaborar uma ideia que pudesse
tornar-se um projeto, utilizando aquele material exibido na televiso. O objetivo era trabalhar
com um corpus que estivesse alinhado com as pesquisas desenvolvidas especialmente pelo
Grupo A-Tev, e que permitisse que eu no me afastasse de minha rea de formao (Letras)
e que tambm permitisse que eu desenvolvesse estudos segundo minha rea de interesse no
Mestrado: Literatura Portuguesa. Assim, cheguei ao projeto que agora se apresenta concludo:
anlise das aproximaes ao estilo de Ea de Queirs pelos realizadores da minissrie, por
Maria Adelaide Amaral e Luiz Fernando Carvalho.
O processo de adaptao pelo qual os textos de Ea de Queirs passaram, at que
foram transformados em roteiro da minissrie Os Maias, envolve algumas situaes internas
da emissora que merecem ser comentadas antes que possamos iniciar nossa anlise. A
12
minissrie foi uma coproduo entre a Rede Globo1 e a SIC (Sociedade de Informao e
Comunicao - Portugal), que custou, segundo a emissora, R$11 milhes. Previa-se que a
atrao passaria simultaneamente em Portugal e no Brasil, mas, por motivos tcnicos, a
estreia em alm-mar foi adiada. Logo depois, a minissrie foi apresentada, mais de uma vez,
naquele pas.
Este era um projeto que teve incio em 1997, quando a Rede Globo convidou Glria
Perez para assinar o roteiro, e Wolf Maya, a direo. A minissrie teria dezesseis captulos,
seria toda gravada em Portugal, teria Paulo Autran como Afonso da Maia e estava prevista
para ser exibida a partir de janeiro de 2000. No entanto, em maro de 1999, depois de
trabalhar no remake de Pecado Capital, Glria Perez no pde participar do projeto de Os
Maias, circunstncia que leva a emissora a escolher Maria Adelaide Amaral para elaborar o
roteiro, e Daniel Filho para a direo, que posteriormente foi substitudo por Luiz Fernando
Carvalho.
Para colaborar com Maria Adelaide Amaral na elaborao do roteiro, foram
convidados Vincent Villari e Joo Emanuel Carneiro. Aps anlise do romance, essa equipe
decidiu construir a minissrie a partir da transmutao de trs romances de Ea de Queirs:
Os Maias, A Relquia e A Capital. Isso foi necessrio, segundo depoimento de Maria
Adelaide Amaral (no DVD da minissrie) e em entrevistas, porque o romance Os Maias
continha matria para 24 captulos e a minissrie deveria ter, no mnimo, 44 captulos 2. Nesse
caso, a equipe buscou na obra de Ea de Queirs subsdios para ampliao dos captulos. Foi
matria de exame e consulta pela equipe de roteiristas, alm da obra ficcional, s
correspondncias, ensaios, artigos publicados em jornais, projetos de textos inditos
fornecidos por Carlos Reis e at fotografias do escritor. Assim que os roteiristas chegaram
1 Exib ida de 09 de janeiro de 2001 a 23 de maro de 2001, s 23h, teve 42 captulos de 40min cada. Em maio de
2004, a Globo Vdeo e a Som Livre lanam a minissrie em DVD, cujo formato foi adaptado pelo prprio
diretor, Lu iz Fernando Carvalho. Com 904min e formato FullScreen, os quatro DVDs trazem depoimentos dos
atores (Ana Paula Arsio, Fbio Assuno, Walmor Chagas, Selton Mello, Simone Spoladore e Osmar Prado),
comentrios da autora (Maria Adelaide Amaral) sobre a transposio dos romances para TV e a edio para o
DVD, alm da participao de Beatriz Berrini, professora titular de literaturas da PUC, que atuou como
consultora do projeto. De acordo com o stio , a verso exclusiva teve a
tiragem esgotada no Dia das Mes de 2004. 2 Durante a exib io da min issrie, o captulo 28 (que iria ao ar em 23 de fevereiro de 2001, sexta -feira de
Carnaval) no foi ao ar devido transmisso do primeiro dia do Desfile das Escolas de Samba de So Paulo. O
captulo 33 (que iria ao ar em 7 de maro de 2001, quarta-feira) no foi ao ar devido transmisso do amistoso
entre Brasil e Mxico. Com isso, a minissrie que teria 44 cap tulos, ficou com 42.
13
construo de cenas e dilogos que apresentassem o mesmo tom de Ea de Queirs, conforme
pode ser observado no depoimento de Maria Adelaide:
Se e eu e minha equipe cometemos algum pecado, foi ser extremamente reverentes com a obra de Ea. Nenhuma das alteraes relevante se comparada com a fidelidade com que seguimos a histria e seu esprito, e todas se justificam do ponto de vista da dramaturgia. Eu cortei alguns personagens, ampliei a participao de outros e at inclu na trama figuras dos livros A Relquia e A Capital, o que deixou muitos queirosianos de cabelo em p. Entre os personagens que eliminei, por exemplo, est o Conde de Steinbroken, que tem uma funo anedtica em Os Maias , mas no contribui em nada para a ao. Quanto ao ncleo de personagens que extrai de A Relquia, estou com a conscincia tranquila. Ele faz muito sucesso, diverte as pessoas. Os queirosianos me diziam: por que introduzir essa gente se a matria cmica de Os Maias j to rica? Mas seu humor refinado demais, requer conhecimentos da histria de Portugal que nem os portugueses dominam hoje em dia. Essa espcie de ironia quase inacessvel ao pblico de televiso. (AMARAL, 2001).
As escolhas dos romances do escritor portugus, as inseres de textos no narrativos
e no verbais, bem como de outras fontes, para que a minissrie fosse elaborada, culminaram
num complexo processo de construo da minissrie, como revela o depoimento a seguir:
Tudo que eu acrescentava eram, absolutamente, falas com o mesmo esprito, como o veculo televiso, para esclarecer melhor, para facilitar, para (agir) como agente facilitador, ento, se recorria a certos expedientes de teledramaturgia para que esse universo ficasse mais explcito, ficasse mais acessvel, digamos assim. Ento, foi uma viagem extraordinria e em profundidade a essa obra prima que se chama Os Maias . [...] Eu fui buscar em outros livros subsdios que pudessem ajudar evidentemente cada situao e cada personagem. Ento, nesse sentido eu fui para outros livros buscar falas do Ea que caram perfeitamente como uma luva no Ega. Outro personagem tambm que eu fiz isso e fiz isso de maneira bem evidente foi com Palma Cavalo. Eu recorri a um retrato do Ea onde tem um editor de jornal to srdido como o Palma e me apropriei de uma srie de cosias. Ento, a referncia dos Maias o prprio Ea de Queirs. No s em relao a esses personagens, mas como a outros personagens. Foi um trabalho extremamente enriquecedor. Outra coisa tambm a correspondncia do Ea, as opinies polticas do Ea. Toda essa parte de ensastica do Ea. O que ele pensava, como ele pensava em relao ao seu tempo. As consideraes que ele fazia sobre a histria de Portugal, que no esto, necessariamente, na sua obra ficcional, esto nas correspondncias, nos ensaios que ele publicou em jornais. Ento eu lia isso e retirava da, pinava da aquilo que eu achava que iria se enquadrar, se encaixar nas situaes vividas pelos personagens de Os Maias (AMARAL, 2001).
14
A autora chama a ateno, nas entrevistas e depoimentos, para os cuidados com a
realizao deste trabalho, o respeito ao texto do escritor portugus e as estratgias utilizadas
para atender aos anseios da teledramaturgia. O embate entre o fazer dramaturgia e a
preocupao com a aproximao ao texto literrio, alm da preocupao em imprimir suas
marcas no texto, causaram reao diversa na crtica, que antevia a reao de queirosianos
acerca da insero de outros textos do autor e dos recursos melodramticos utilizados na
verso para a TV.
Para as gravaes da minissrie Os Maias, a equipe passou cerca de seis semanas em
Portugal, a primeira equipe de produo a ficar tanto tempo fora do pas 3. Alm disso, foram
mais de 70 pessoas na equipe tcnica e 26 atores, num elenco de 50 pessoas em Portugal4. O
diretor Luiz Fernando Carvalho enfatizou que as cenas em Lisboa e arredores eram para
encontrar e reproduzir bem a obra de Ea de Queirs. O ator Osmar Prado, que interpretou o
poeta Alencar, em depoimento no DVD, demonstra a mesma opinio, afirmando que a
minissrie tinha uma funo social: despertar o interesse das pessoas pela literatura.
A minissrie obteve em mdia 16,3 pontos percentuais em So Paulo e 17,7 no Rio de
Janeiro, diante de uma expectativa de, pelo menos, 30 pontos de audincia em mdia (ndice
mdio do horrio), naquela poca. Todavia, apesar da baixa audincia da minissrie, o livro
Os Maias, no mesmo perodo, tornou-se um best-seller nas livrarias5. Durante o ano de 2001,
a minissrie recebeu os prmios de melhor cenografia, fotografia e direo de arte do II
Festival Latino-Americano de Cine Vdeo de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e marcou
o retorno de Luiz Fernando Carvalho equipe de diretores da Rede Globo, da q ual esteve
afastado, por trs anos, para as gravaes do filme Lavoura Arcaica (2001). Em 2004, o
DVD Os Maias (verso do diretor) foi lanado pela Globo Vdeo. A minissrie recebeu a
3 Informaes obtidas no stio , acesso em 7 de abril de 2010.
4 Informaes obtidas nos stios: e
, acesso em 7 de abril de 2010. 5 De acordo com o jornal Vale Paraibano, houve aumento de 80% nas vendas do livro na poca da exib io da
minissrie. Informao disponvel em . No
Brasil, o romance j fo i publicado por Martin Claret, Ateli Ed itorial, L&PM Editores (formato pocket), Landy,
Juru Editora, Rideel (verso infanto-juvenil), Villa Rica, IBEP Nacional (verso infanto-juvenil), Livros do
Brasil, Ediouro, S Editora, tica, Verbo (Brasil), alm das edies portuguesas comercializadas aqui. Na poca
da exibio da minissrie, trs editoras relanaram o romance. O leitor pode encontrar nas livrarias trs edies
do texto, a da Ediouro, a da Nova Alexandria e a da L&PM. Informaes disponveis no artigo Trs Edies do
romance Os Maias nas livrarias , disponvel em , acesso em 22 de julho de 2010.
15
edio de Luiz Fernando Carvalho, que fez alteraes considerveis em seu formato: suprimiu
os trechos da narrativa que se referem aos romances A Relquia e A Capital e enxugou
algumas cenas mais longas da verso televisiva.
O lanamento do DVD tambm propiciou a abertura de espaos para a discusso de
outras obras dos realizadores de Os Maias e comparaes entre os seus trabalhos. Tambm h
fs que ainda discutem, nas redes sociais, a afinidade entre o texto literrio e o texto
televisivo. As ltimas discusses referem-se ao material do DVD. Por isso, os que gravaram a
minissrie em 2001 tm um material a mais que , de alguma forma, privilegiado nas
discusses, j que alguns no a acompanharam na TV. De maro a maio deste ano, o Canal
Viva reapresentou a minissrie na ntegra.
A recepo crtica da minissrie Os Maias
Alm da recepo pela academia (como se ver mais adiante), a minissrie Os Maias
teve recepo da crtica jornalstica, que foi, muitas vezes, severa. A maioria das abordagens
foi relativa aos ndices de audincia, aos custos demandados para a produo e,
especialmente, fidelidade entre os livros e a minissrie.
A propsito das comemoraes do centenrio de Ea de Queirs, a professora Beatriz
Berrini publicou na Folha de So Paulo o texto As comemoraes brasileiras de um
centenrio portugus6 em que anuncia o projeto da Rede Globo de levar telinha o texto do
escritor portugus sob a responsabilidade de Maria Adelaide Amaral. No mesmo veculo, foi
publicada uma entrevista da escritora sobre o projeto. O texto teve o ttulo Ea na TV: Maria
Adelaide adapta Os Maias para minissrie da Globo7.
Antes da estreia da minissrie, Snia Apolinrio publicou o texto Os Maias marca[m]
volta de Carvalho no Estado de So Paulo, em 09/07/2000, em que anuncia a volta de Luiz
Fernando Carvalho televiso, j que ele estava envolvido com a produo de Lavoura
6 Disponvel em < http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/literatura/eca_entrevista_berrini.shtml> acesso
em 22/2/2012. 7 Disponvel em
acesso em 22/2/2012.
16
Arcaica. O ator Jos Lewgoy, em entrevista ao Estado, em 14/10/2000, tambm falou sobre
as gravaes da minissrie. Pouco tempo depois, O Globo publica, em 29/10/2000, um texto
de Marcelo Marthe intitulado Comeam as gravaes da nova minissrie em Portugal. Em
Os Maias com cenas em Portugal, matria no assinada de Dpnet.com, publicada em
31/10/2000, o espectador tambm preparado para o que ir ver na televiso, em janeiro
prximo, como anuncia a referida matria. At ento, os textos trazem as primeiras
movimentaes acerca da produo da minissrie.
Para atiar a curiosidade do espectador, No h minissrie como Ea, publicado por
O Globo, em 31/10/2000, apresenta, no ttulo, um jogo de palavras que enaltece a literatura do
autor portugus e prepara o espectador brasileiro para o que se ver na TV. Tambm foram
anunciados os efeitos deste projeto na sociedade brasileira: O Estado, no dia 5/1/2001 trouxe
a informao de Trs edies do romance Os Maias nas livrarias8, reflexo da curiosidade
do espectador brasileiro que se configuraria, mais tarde, em um aumento expressivo da venda
de livros9.
No domingo que antecedeu a estreia da minissrie, a Revista da TV, fascculo
vinculado a Globo, publicou informaes sobre a minissrie, sinopse, perfil das personagens,
a estreia de Simone Spoladore na televiso, a atriz mirim Isabelle Drummond, a produo da
minissrie em Portugal, as cenas em Sintra e em Lisboa e o cuidado da equipe de produo.
No dia 8/1/2001, a Isto Gente tambm trouxe algumas informaes sobre a minissrie em
Os Maias: adaptao de Ea de Queiroz retrata o sculo 19 em Portugal. Essa matria
apresentou, ainda, uma pequena entrevista da roteirista-autora10.
No dia da estreia, 9/1/2001, Cristian Klein, da Agncia Folha, apresentou suas
impresses em Os Maias o biscoito fino da Globo 11, no qual apontou que a linguagem da
minissrie teria mais proximidade ao cinema do que televiso, falou do oramento da
minissrie, do elenco e da experincia do diretor. Tambm assinada por Cristian Klein na
Folha de So Paulo, a matria Os Maias quer dar a Ea ares de cinema 12, expe a
8 Disponvel em acesso em
22/2/2012. 9 cf. nota 5.
10 Disponvel em acesso em 22/2/2012.
11 Disponvel em acesso em 22/2/2012.
12 Disponvel em acesso em 22/2/2012.
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preocupao da produo da minissrie com o apuro das cenas. No mesmo dia, JC Online
(Jornal do Comrcio), de Recife, em matria no assinada, comentou a transformao sofrida
pelos atores para a interpretao das personagens da minissrie em Histria exige mudanas
na aparncia dos atores.
Aps a exibio do primeiro captulo, a Revista Veja publicou o texto Luxo fora de
srie, em 10/01/200113. O texto teve o objetivo de mostrar a primorosa estreia da minissrie
na Rede Globo. No decorrer do ms de janeiro de 2001, a Revista da TV trouxe informaes
sobre a trama, sobre algumas personagens, a explicao da criao de alguns ncleos
narrativos e o ponto de vista de alguns atores sobre o trabalho. Tudo isso com o objetivo de
atualizar o espectador e atiar a curiosidade sobre a trama, j que ainda no havia o hbito de
consultar o stio da emissora para conhecer seus produtos.
No entanto, a recepo do primeiro captulo da minissrie no foi o que se esperava.
Daniel Castro, da Folha de So Paulo, em 12/1/2001, publicou Globo abafa crise na
minissrie Os Maias, em que falou do acidentado captulo de estreia que, segundo ele, o
diretor no conseguiu finalizar a tempo, teria 20min a mais, alm de problemas na
sonorizao. Alm disso, falou tambm da exigncia de Carvalho em gravar apenas trs ou
quatro cenas por dia e refazer muitas delas at dezesseis vezes. Esse rigor todo, segundo
Daniel Castro, afugentou o espectador brasileiro. Alessandro Giannini, de Isto Gente,
tambm culpou o primeiro captulo finalizado s pressas pela baixa audincia em Os Maias:
por que a adaptao da obra de Ea de Queirs tem baixa audincia 14.
Quando os ndices de audincia da minissrie apresentaram-se aqum do esperado pela
emissora, os crticos iniciaram as discusses sobre os possveis motivos para tal. No dia
4/2/2001 foram publicadas duas crticas importantes sobre a minissrie: uma, em O Estado de
So Paulo, Os Maias: apuro cinematogrfico pode afastar telespectador15, assinada por
Luiz Zanin Oricchio, em que atribui s caractersticas do texto portugus (a ironia, a
decadncia da aristocracia portuguesa do sculo 19 e o clima pesado e angustiante, segundo o
crtico) o distanciamento do pblico brasileiro.
13
Disponvel em acesso em 22/2/2012. 14
Disponvel em acesso em 22/2/2012. 15
Disponvel em acesso em
22/2/2012.
18
A outra crtica viria de Cludia Croitor, da Revista da TV. Nesta, a jornalista fala
sobre o fato de a qualidade esmerada da minissrie no ser exatamente o que conquista a
audincia no Brasil. A matria, intitulada Qualidade derruba ibope de Os Maias16, vem
acompanhada de uma pequena coluna Srie agrada a imortais, na qual Cristian Klein
informa ao leitor acerca da recepo da minissrie pela Academia Brasileira de Letras. A
pequena coluna traz depoimentos de Arnaldo Niskier, que fala do estranhamento do pblico
pelo ritmo da minissrie; de Carlos Nejar que atribui a baixa audincia a uma dificuldade
cultural; e de Antonio Olinto, para quem a minissrie poderia ser ainda mais lenta, pois o
mundo de Ea est ali.
Diante de tais crticas, Maria Adelaide Amaral, na entrevista Frustrada e Feliz17,
concedida Revista Veja em 21/3/2001, lamentou a baixa audincia e ponderou No se pode
apontar culpados. Todos fizeram o melhor, todos queriam atingir um vasto pblico. A
emissora investiu alto na produo como nunca se viu na TV brasileira. Eu me frustrei com a
baixa audincia, mas no com aquilo que eu vi na tela, que uma beleza rara. Na mesma
linha de raciocnio, Luiz Fernando Carvalho diz que prefere acreditar na contradio entre o
rigor de criao e a audincia na televiso 18. E que continuar trabalhando para a produo de
programas de diversos formatos, tendo como objetivo a tica artstica verdadeira para a TV.
Minha esttica apenas consequncia disso, j que salienta que sua misso reeducar o
olhar do espectador.
Em abril do mesmo ano, O Click publicou o texto de Cristina Brando, na seo
Televiso e Cultura: Incluo Os Maias na nossa quality television19. No texto, Brando
aponta, pesarosa, os possveis motivos da baixa audincia para um programa to bem
elaborado.
Em 2004, a Globo Marcas lanou o DVD da minissrie, a que se seguiram: Minissrie
Os Maias lanada em DVD20, no stio Terra, em 10/5/2004, Luiz Fernando Carvalho
16
Tambm disponvel em acesso em 22/2/2012. 17
Disponvel em acesso em 22/2/2012. 18
Entrev ista publicada pela Revista poca, na poca do lanamento do DVD Os Maias: Prolas para muitos .
Disponvel em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDR64221-6011,00.html> acesso em 22/2/2012. 19
Disponvel em http://www.oclick.com.br/colunas/brandao4.html> acesso em 22/2/2012. 20
Disponvel em acesso em 22/2/2012.
19
explica que o processo de edio foi acompanhado pela professora Beatriz Berrini, da PUC-
SP. O diretor tambm afirma que, com o DVD, somente com o que se referia ao romance Os
Maias, ele fecha um ciclo, buscando respeitar, em igual grandeza, tanto os admiradores da
srie, quanto os leitores de Ea.
Muitos estudiosos das Letras e das Cincias Sociais j se dedicaram anlise deste
produto. Geralmente, quando um texto considerado clssico adaptado para o audiovisual,
recebe uma ateno especial da crtica (jornalstica e acadmica). Um exemplo a minissrie
Grande serto: veredas, que j mereceu teses, dissertaes e livros sobre o processo de
traduo realizado. Destacamos a tese de doutorado de Maria Cristina Palma Mungioli,
Minissrie Grande Serto: veredas: gneros e temas construindo um sentido identitrio
de nao, em que a pesquisadora discute a minissrie, a partir da compreenso de um sentido
identitrio de nao, construdo pela referida minissrie, por meio de gneros e temas.
A pesquisa de Osvando Morais, intitulada Grande Serto: veredas, o romance
transformado, realizou uma anlise das fases do processo de elaborao do roteiro por
Walter George Durst, resultando em uma investigao que coloca a anlise na perspectiva da
traduo intersemitica realizada na passagem do romance srie televisiva. Na investigao
A televiso como tradutora: veredas de um grande serto na Rede Globo , Paulo
Sampaio Xavier Oliveira parte da hiptese de que o formato escolhido e sua funo de
prestgio na grade de programao da emissora foram os principais parmetros utilizados na
transformao do romance em fico televisiva. Esta pesquisa foi conduzida pela pretenso de
"fidelidade ao livro" divulgada pela emissora e amplamente repercutida na mdia. Os
elementos arrolados na pesquisa permitem a concluso de que a "fidelidade" diz antes respeito
a determinadas tradies crticas e, sobretudo, aos prprios desgnios da televiso. De todo
modo, o contato do enorme pblico televisivo com o Grande serto: veredas representa uma
significativa "sobrevida" do romance, no em outra lngua ou cultura, mas em outro sistema
textual, de crescente interesse para os estudos da traduo.
O trabalho de Anna Maria Balogh, Conjunes, Disjunes, Transmutaes: da
Literatura ao Cinema e TV se apresenta tambm de modo muito significativo. A partir de
trabalhos consagrados como Vidas Secas, filme de Nelson Pereira (1963), e Grande Serto:
Veredas, minissrie de Walter George Durst (1985), a autora levanta as caractersticas do
20
processo de transmutao para cada meio e, na comparao com um conjunto de outras obras,
constri paralelamente uma reflexo sobre a produo cultural brasileira nos ltimos vinte
anos. A edio de 2005 acrescenta reflexes sobre as mudanas nos modos de conceber e
realizar adaptaes ocorridas em anos recentes, principalmente na televiso.
Com a minissrie Os Maias no foi diferente. O livro Uma leitura do trgico na
minissrie Os Maias, de Suely Fadul Villibor Flory e Lcia C. M. de Miranda Moreira, o
trabalho que mais se detm sobre a minissrie. H outros pesquisadores que se dedicaram a
ela, no entanto, a pesquisa parece ser mais aprofundada no livro em questo. A pesquisa de
Flory e Moreira (2006) sobre a minissrie apresenta-se como uma das mais cuidadosas a
respeito deste corpus, mas a ateno das autoras voltada para a anlise da importncia e
funcionalidade dos objetos como indicadores do trgico no romance e na minissrie. Muitas
outras pesquisas apresentam um olhar de censura para a minissrie por causa da insero de
outros textos queirosianos ou a adaptao de algumas situaes (um exemplo a volta de
Maria Monforte para trazer a verdade sobre os irmos).
Na poca da produo e exibio da minissrie, Carlos Reis, professor da
Universidade de Coimbra e pesquisador da obra de Ea de Queirs, tambm publicou um
texto no Jornal de Letras, Artes e Ideias , em Outubro de 2000, Os Maias na TV: misso
impossvel 2, que discute que a primeira misso impossvel ensinar Os Maias na escola e a
segunda transform-los em minissrie. A professora Beatriz Berrini (PUC-SP) foi tambm
convidada a participar do projeto e ministrou palestras ao elenco e produo, durante a
preparao da minissrie, e depois apresentou uma anlise da minissrie no DVD lanado em
2004. Hlio Guimares (USP) divulgou sua anlise O romance do sculo XX na televiso:
observaes sobre a adaptao de Os Maias no livro Literatura, cinema e televiso, de
Tnia Pellegrini (2003).
Mesmo com a riqueza e diversidade da crtica jornalstica e acadmica, a maioria das
abordagens sobre a minissrie foram, conforme pode ser visto nos textos jornalsticos e
acadmicos da poca da exibio21, relativas aos ndices de audincia, aos custos demandados
21 APOLINRIO, Snia. Os Maias marca vol ta de Carvalho In: O Estado de So Paulo, 09/07/2000;
Comeam as gravaes da nova minissrie em Portugal In : O Globo, 29/10/2000; MARTHE, Marcelo.
Luxo fora de srie In: Veja, 10/01/2001; MEMRIA GLOBO. Dicionrio da TV Globo, v.1: programas de
21
para a produo e, especialmente, fidelidade entre os livros e a minissrie. Em algumas
anlises, a insero de outros textos de Ea de Queirs na traduo para o audiovisual foi
vista, por muitos crticos, como um desrespeito ao autor.
Um dos fatores que suscitou maior interesse na investigao estava associado forma
como a literatura de Ea de Queirs foi adaptada para a televiso brasileira, objetivando uma
maior aproximao possvel ao estilo do autor portugus.
Este caminho foi escolhido devido ao fato de encontrar, nas crticas minissrie, uma
tendncia a consider- la distante do estilo do escritor portugus. Dessa forma, decidimos
testar a intuio de que os crticos pouco mencionavam que o trabalho da televiso, apesar da
pequena audincia, dos atrasos na gravao, de ser considerado inalcanvel ao pblico
espectador brasileiro, apresentava caractersticas que o aproximam ao estilo de Ea de
Queirs. Estilo este que, para ser identificado, foi construdo a partir de uma equipe, cujo
objetivo era ser reconhecida por maior aproximao ao texto literrio. Alm disso, tambm
nosso interesse estava voltado para o modo como foi possvel equipe de realizadores
(roteirista e direo) a criao de estratgias para a composio de programas de efeitos para
que a minissrie fosse apreciada.
Nesse aspecto, ao ampliar um debate sobre a adaptao de obras literrias para a mdia
televisiva, busca-se colaborar para exame de minissries adaptadas que usaram largamente o
recurso da aproximao, com vistas a transpor o estilo do autor da literatura e a sua
consagrao para a televiso. Consagrao tanto do romancista quanto dos criadores da
minissrie roteirista e diretor, como se pode constatar em nossa pesquisa.
Para examinar essa aproximao, foi necessria a anlise textual da potica da
minissrie Os Maias, como tecido audiovisual organizado para produzir uma experincia de
apreciao, sobre os recursos audiovisuais: cnicos, narrativos e comunicativos que lhes
deram forma.
dramaturg ia & entretenimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003; Os Maias em DVD: tal como deveria
ter sido In: O Estado de So Paulo, 01/05/2004; Os Maias quer dar a Ea ares de cinema In : Folha de So
Paulo, 09/01/2001; RUBIN, Nani. No h minissrie como Ea In: O Globo,
31/10/2000; . Dados colhidos no stio: .
22
Em termos gerais, o problema desta pesquisa investigar o funcionamento da
minissrie como produto audiovisual e narrativo, atentando-se para o modo como composta
e quais so os efeitos que procura imprimir nos espectadores. Deseja-se, assim, compreender
os papis dos mecanismos narrativos e audiovisuais de uma fico televisiva.
As questes referentes maior aproximao ao estilo da literatura de Ea de Queirs e
o modo como a equipe de realizadores comps os programas de efeitos para a fruio da
minissrie ainda no foram devidamente contempladas, conforme pesquisas realizadas em
publicaes sobre as minissries brasileiras: teses, dissertaes e artigos cientficos. Esta
averiguao foi realizada em bancos de publicao, livros, revistas cientficas, nas reas de
Letras e Comunicao.
Em todo caso, pensamos que a preocupao com a anlise da fidelidade, muito
discutida, deve ceder lugar a outras questes, uma vez que tambm importante observar a
minissrie no cenrio da produo brasileira para a TV. Nesse cenrio, o critrio fidelidade
revisto e remodelado, sofrendo refraes advindas de questes de carter ideolgico ou
econmico. Isso procede das relaes entre o autor, a obra literria, a crtica e o pblico,
dando origem ao valor simblico das produes culturais (BOURDIEU, 1996). A fidelidade,
ento, deve ser considerada como processo de reconhecimento do texto matriz, mas no dever
ser o nico critrio de anlise de textos adaptados.
O que esta pesquisa prope analisar aproximaes e distanciamentos entre o estilo de
Ea de Queirs e a minissrie Os Maias, o que a torna diferente das anlises realizadas sobre
esta minissrie, j que tem sido muito recorrente, na anlise de produtos audiovisuais, a nfase
dada pelas vertentes semioticistas que priorizam a anlise dos efeitos de sentido em
decorrncia dos efeitos sensoriais e emocionais.
Pressupostos e Hiptese
No decorrer de nossa pesquisa, algumas hipteses foram levantadas:
1. A teoria dos campos sociais em Bourdieu nos levou a entender a relao entre a
posio de Ea de Queirs (no campo literrio brasileiro) e a dos roteiristas autores e do
23
diretor geral da minissrie, no campo da teledramaturgia, para elaborar hipteses de trabalho
que relacionem estas posies reconhecidamente autorais com as estratgias de construo
dos programas de efeitos observados na minissrie. Observaremos, pois, a vinculao entre a
histria da prtica dos agentes com suas disposies e trajetrias nos campos particulares de
suas prticas (Ea de Queirs na literatura, Maria Adelaide do Amaral na transposio de
romances para a televiso e Luiz Fernando Carvalho na direo de produtos flmicos e
teledramatrgicos advindos de obras literrias).
2. A anlise da potica da minissrie implica a compreenso dos materiais estruturais
expressivos do meio televisivo (parmetros cnicos, visuais, sonoros e narrativos) e a anlise
do modo de eles organizarem as estratgias de produo de efeitos no apreciador. Tendemos a
presumir que o modo de construo da minissrie pelos autores procurou maior aproximao
ao estilo de Ea de Queirs, devido importncia do romance e do escritor no campo
literrio, no imaginrio da audincia presumida, principalmente o mercado portugus e
brasileiro (em que Ea j vinha sendo adaptado). Essa importncia parece criar uma presso
para o uso de uma adaptao aproximada. Tanto para atender expectativas da audincia
televisiva (no mercado brasileiro e de outros pases) quanto de futuros leitores de reedies do
romance (em grau menor) e na venda de DVDs.
3. A hiptese a de que a anlise interna que examina o modo de construo dos
programas de efeitos - que objetivam o reconhecimento de marcas da potica22 do romance e
do estilo queirosiano na minissrie - precisa levar em conta a experincia de criao da
potica da minissrie, formulada pelos autores dessa obra a roteirista titular e o diretor geral.
Assim sendo, foram examinadas as posies sucessivas, ou trajetrias destes
condutores no campo de produo da minissrie, para criar indicadores das aproximaes e
distanciamentos entre a potica de Ea de Queirs e a potica observada na minissrie Os
Maias. Esta aproximao foi negociada pela roteirista autora com a Rede Globo, a partir da
consagrao obtida com a minissrie A Muralha, sucesso de pblico e de crtica. A deciso
22
Neste contexto, potica ser entendido como o fazer potico caracterstico de determinado autor, poca ou
gnero literrio, que observvel nas obras por meio de anlise.
24
de adaptar Os Maias vem junto com a deciso de trazer Ea de Queirs para o pblico
brasileiro23.
4. Neste tipo de fico, o lugar do recurso narrativo e do enredo central: todos os
outros recursos dependem dele. Logo, so examinadas com mais detalhe as escolhas e
estratgias que envolvem o lugar do roteirista autor e o lugar do diretor. A centralidade do
roteiro associado ao poder do roteirista no campo da teledramaturgia no Brasil.
Mtodos
A tentativa de responder s perguntas elaboradas nas hipteses levou-nos a criar
estratgias para que as respostas fossem encontradas. Para a anlise do produto, nossa ateno
voltou-se aos mecanismos e sistemas audiovisuais e narrativos oferec idos pelo processo de
transposio de textos literrios para a fico televisiva, em especial a seriada. Percebeu-se
que possvel um entendimento mais completo, se comparado s anlises que exploram mais
as representaes do ponto de vista temtico e dos efeitos comunicacionais, efeitos de sentido.
A minissrie foi analisada numa perspectiva potica: foram examinadas as funes
internas da obra, seus princpios regentes e o modo como so apresentados aos espectadores,
o que diz respeito aos modos de funcionamento e organizao, os temas tratados, os tipos de
personagens construdos, o tratamento do espao e do tempo, os programas de efeitos
particulares (SOUZA, 2004a). Para isso, foi necessria a compreenso dos modos de
elaborao da minissrie e dos modos de funcionamento das estratgias discursivas: a lgica
de organizao e produo da narrativa seriada, o funcionamento e os efeitos gerados pelos
gneros de representao da ao e a composio das estratgias utilizadas por narrativas
ficcionais seriadas para televiso.
Esse processo foi realizado a partir de levantamento dos dados biogrficos de cada um
dos realizadores e tambm de Ea de Queirs. A partir da, foram tambm estudados os
depoimentos em entrevistas e relacionados com os momentos da atuao profissional de cada
23
Houve um movimento bastante diferente quando Maria Adelaide Amaral decide adaptar A Casa das Sete
Mulheres , em 2003. Neste trabalho, o objetivo era recontar a histria da escritora gacha Letcia Wierzchowski
e a roteirista tomou liberdades consideradas excessivas quanto aos distanciamentos do romance, seja no enredo,
seja na histria e na cultura gachas, seja no estilo de narrar a Revoluo Farroupilha.
25
um, situando-os na histria dos produtos realizados por eles e na histria das minissries.
Tudo isso para que fossem observadas as relaes entre as suas prticas e suas representaes
em seu campo de atuao; o modo como se posicionavam no campo literrio e televisivo, o
que defendiam e as estratgias necessrias para se adaptar as obras de Ea de Queirs para
uma minissrie.
O primeiro passo para a anlise interna do corpus foi a releitura dos romances que
deram origem minissrie: Os Maias, A Relquia e A Capital. A releitura dos textos serviu
para que pudssemos localizar o enredo, as personagens, a ambincia, o espao.
Posteriormente, a apreciao dos captulos da minissrie. Nossa opo por examinar a verso
exibida pela televiso deve-se necessidade do entendimento das estratgias de implantao
da trama, serializao, o desenvolvimento da trama, entrelaamento entre as narrativas
literrias na minissrie, o modo como as histrias so contadas, a composio das
personagens.
O mtodo de anlise foi desenvolvido observando-se a relao entre a narrativa
televisiva e as narrativas literrias e estabelecendo um recorte que levou em considerao os
elementos em que pudessem ser identificadas as aproximaes entre o estilo de Maria
Adelaide Amaral e o estilo de Ea de Queirs. Com isso, procurou-se levar em considerao:
i) a apresentao da minissrie segundo o conceito esttico da adaptao realizada:
personagens, ambincia e espao; ii) a estrutura seriada da minissrie na diviso em atos; iii) a
representao da ao construda em dilogo com o tom e o ritmo da minissrie; iv) a
implantao da trama com o estudo do primeiro; v) a construo da narrativa televisiva a
partir da narrativa literria com os indcios e os pressgios; vi) a insero da msica nos
momentos de tenso e comicidade; vii) a construo dos distanciamentos entre o texto
literrio e a minissrie; viii) a construo da mulher como distanciamento na minissrie; ix) a
finalizao da minissrie com o estudo do ltimo captulo da minissrie.
A definio deste recorte se fez a partir da diviso em semanas dos 42 captulos,
observando-se o desenvolvimento da narrativa, a construo das expectativas, a adaptao dos
atos cmicos aos momentos trgicos da histria, a caracterizao e movimentao das
personagens. Enfim: os elementos visuais, narrativos e sonoros.
26
Como este texto se apresenta
No decorrer da exposio dos dados advindos desta pesquisa, optou-se por apresentar,
no Captulo 1 os aspectos tericos e os metodolgicos que orientam a anlise de adaptaes
audiovisuais. O objetivo foi trazer discusses incididas sobre a adaptao entre textos, por
isso foram levantados os pressupostos sobre a adaptao literria do conceito de traduo
intersemitica dialogismo e intertextualidade, transmediao e finalmente adaptao.
O Captulo 2 desta tese apresenta elementos de reflexo acerca da minissrie como
gnero, com o objetivo de apontar as implicaes da noo de gnero para a anlise da
minissrie. No terceiro captulo, so apresentadas as caractersticas do estilo e da autoria de
Ea de Queirs para a compreenso da literatura deste autor a partir dos estudos do contexto
de produo de sua literatura, bem como da recepo crtica de seus romances.
No captulo 4, o ponto tratado refere-se autoria e ao estilo na adaptao da
minissrie, o projeto criador de Maria Adelaide Amaral, sua trajetria e consagrao; e a de
Luiz Fernando Carvalho. O Captulo 5 traz as aproximaes e os distanciamentos entre a
minissrie Os Maias e o estilo da literatura de Ea de Queirs. A minissrie foi apresentada
segundo o conceito esttico da adaptao realizada, evidncias da aproximao ao estilo de
Ea: personagens, ambincia, espao, a diviso em atos, a msica, o tom e o ritmo. Na anlise
da composio das estratgias televisivas, mostrou-se a implantao da trama e finalizao da
minissrie no captulo 1 e no captulo 42. E quanto ao modo de construo da aproximao
entre o romance e a minissrie analisamos os indcios, os pressgios, a mulher e a famlia.
Para diminuir eventuais prejuzos entre o modo como o material descrito e como ele
se apresenta, a equipe responsvel, a equipe tcnica, o elenco, a descrio ampliada do enredo
e os trechos analisados esto disponveis no blog , criado
especificamente para apresentao desta pesquisa. Tambm esto dispostas, no apndice, a
descrio do primeiro e do ltimo captulos e a descrio das personagens.
Nas consideraes finais, retornamos s discusses realizadas nos captulos
precedentes com a finalidade de concluir nossa anlise.
27
Captulo 1 A Adaptao
Desde o final do sculo XIX, a discusso entre literatura e cinema se faz presente, seja
para confront- los, seja para identificar proximidades entre eles, independentemente da
complexidade da teia de suas relaes (pacficas, conflituosas ou colaborativas).
Hoje, a criao para o cinema ou para a televiso ainda mais influenciada por
processos de produo e reproduo da linguagem. Isso se d porque o momento histrico -
cultural, poltico, tecnolgico - propicia modos de produo cultural, transmutados pelos
meios eletrnicos e digitais. Essas transmutaes do origem a formas de recriao, gerao,
transmisso, conservao e percepo das obras audiovisuais que determinam modos de
aproximao com o pblico. Esses modos de aproximao so produzidos a partir de
processos de traduo de linguagens. Plaza (2008) chamar de ps-mdia, in-mdia ou
intermdia a esses processos de alocao de informaes, uma vez que esses procedimentos
de traduo da linguagem influenciam as formas de produo, elaborao e recepo dos
elementos estticos e artsticos. Para ele, No contexto multimdia da produo cultural, as
artes artesanais (do nico), as artes industriais (do reprodutvel) e as artes eletrnicas (do
disponvel) se interpenetram (intermdia), se justapem (multimdia) e se traduzem (traduo
intersemitica) (2008, p. 207).
1.1 Aspectos tericos que orientam a anlise de adaptaes audiovisuais
As formas artsticas hoje disponveis nos levam a pensar de forma mais atenta as
relaes e inter-relaes entre as mdias. Portanto, propomos aqui uma reflexo sobre esse
processo, especialmente no que se refere Traduo Intersemitica e ao modo de elaborar
textos audiovisuais a partir de textos literrios. Ao iniciar um debate acerca da traduo,
torna-se necessrio considerar que tal processo remonta ao que chamado, comumente, de
adaptao. Em um primeiro momento, optei pelo termo traduo ou transmutao, j que
retomei a proposta de Roman Jakobson (1970), que definiu o termo. O fato de Julio Plaza
(2008) ter desenvolvido o conceito de Traduo Intersemitica, criado pelo linguista russo,
tambm estar em foco nesta oportunidade. No segundo momento, buscamos a ideia de
28
dialogismo e intertextualidade em Mikhail Bakhtin (2002), com o objetivo de compreender a
traduo, na perspectiva do dilogo entre textos.
A discusso sobre adaptao ser finalizada, a partir da noo de transmediao
proposta por Henry Jenkins (2009) e com a reflexo desenvolvida por Linda Hutcheon (2011)
sobre a adaptao, entendida como transposio de uma obra, envolvendo mudana de foco,
de contexto e de mdia; como um processo de recriao, de reinterpretao de um texto; e
como forma de intertextualidade, um dilogo com a obra adaptada. A noo de transmdia
ser contemplada para que se possa entender como um texto (em nosso caso uma narrativa) se
desdobra a partir de mltiplas plataformas miditicas e elabora, em cada desdobramento, um
novo discurso.
Como traduo, intertextualidade e transmediao, o conceito de adaptao foi sendo
desenvolvido para compreender como textos literrios romanescos foram traduzidos ou
adaptados para minissries televisivas. O centro da ateno esteve nas minissries produzidas
pela Rede Globo de Televiso, classificadas de produto adaptado de texto- fonte do gnero
romance.
1.1.1 Como entendida a Traduo Intersemitica
Para iniciar nossa discusso, cabe retomar o conceito de traduo intersemitica, j
que o conceito de adaptao perpassa esse conceito. No incio do sculo XX, poetas,
pesquisadores, artistas e pensadores debruaram-se sobre o estudo da traduo, especialmente
sobre a traduo criativa. Walter Benjamin, Paul Valry, Ezra Pound, Octavio Paz, Jorge Luiz
Borges e Haroldo de Campos entenderam que esse tipo de traduo envolveria o uso de
algumas estratgias bsicas, entre as quais a omisso de detalhes e o uso de um termo para
significar um equivalente aproximado ou provisrio. A preocupao era com a traduo
interlingual de textos poticos, mas suas contribuies possibilitaram maior interesse acerca
dos aspectos da traduo.
O termo Traduo Intersemitica foi citado, primeiramente, por Roman Jakobson, no
texto Aspectos Lingusticos da Traduo, publicado originalmente em 1959. Nesse texto,
Jakobson discute as implicaes do processo de traduo, seja intralingual (interpretao de
29
signos verbais a partir de signos da mesma lngua), interlingual (interpretao de signos
verbais por meio de outra lngua) e intersemitica (interpretao de signos verbais por meio
de sistemas de signos no verbais). O linguista, entretanto, detm-se no desenvolvimento dos
conceitos de traduo intralingual e interlingual.
Em 1987, Julio Plaza traz a sistematizao das reflexes sobre a Traduo
Intersemitica, que at ento no tinham tido lugar. Em seu estudo, Plaza discute, entre
outros, o processamento da linguagem literria para o sistema cinematogrfico. Essa
adequao do texto literrio para outro sistema semitico vista como uma espcie de
intermediao entre o texto literrio e o espectador: ao transpor o texto, o tradutor assume, em
relao ao espectador, o papel de decodificador. Essa intermediao o resultado da leitura de
quem traduz o romance (ou conto, ou novela, ou crnica, ou poema...) para o audiovisual. ,
assim, uma reescrita, uma interpretao, que permite outras leituras. Isso leva preferncia do
termo traduo (ou transmutao), que passa a figurar no lugar de adaptao.
Ao desenvolver a ideia da Traduo Intersemitica, Julio Plaza (2008) retoma a
semitica de Charles Sanders Peirce, cujos princpios esto relacionados ao signo e sua
transmutao para diferentes linguagens. Para Peirce (apud PLAZA, 2008), o processo de
ao do signo condio essencial da linguagem. A prpria ao de pensar se d pela
mediao dos signos, pois pensamos por intermdio deles. A partir da, observa-se que a
traduo um processo de transmutao de signos em signos. assim que at o pensamento
constitui uma traduo, uma vez que h um processo constante de transmutao entre os
signos: ao pensar, traduzimos o que est presente em nossa conscincia (imagens,
sentimentos, ideias). Consequentemente, um pensamento a traduo de outro pensamento. E
este, por sua vez, um interpretante. A partir da reflexo de Peirce, Plaza define a traduo
intersemitica como sendo a traduo entre diferentes sistemas de signos. Isso leva a
considerar importantes as relaes entre os sentidos, meios e cdigos:
[...] concebemos a Traduo Intersemitica como prtica crtico-criativa, como metacriao, como ao sobre estruturas e eventos, como dilogos de signos, como um outro nas diferenas, como sntese e re-escritura da histria. Quer dizer: como pensamento em signos, como trnsitos de sentidos, como transcriao de formas na historicidade. [...] desmistifica os meios, evidenciando a relatividade dos suportes e linguagens da histria e os contemporneos. Isto porque esses meios e linguagens inscrevem seus caracteres nos objetos imediatos dos signos, intensificando a historicidade,
30
tornando proeminente o trnsito intersensorial, a sensibilidade contempornea, a transculturao (PLAZA, 2008, p. 209).
Na histria do cinema, a literatura foi frequentemente solicitada pela produo flmica.
Romancistas, dramaturgos, contistas, enfim, diversos nomes da literatura universal, desde o
princpio da arte flmica, estiveram presentes em seus enredos. Urban Gad (apud AUMONT,
2008, p. 44) diz que o filme no seu ser ntimo est mais prximo [do romance ou do conto]
do que do drama. Como seria de esperar, percorreu-se toda a literatura romanesca em busca
de temas de filmes, e tudo que era apropriado, mesmo minimamente, foi utilizado. O cinema
encontrou suas referncias na literatura, e a fico para televiso seguiu seus passos.
As minissries e as telenovelas, desde o incio de sua produo, buscaram seus temas
na literatura. Sandra Reimo (2004) desenvolve um estudo em que apresenta a recorrncia da
produo da fico televisiva, a partir de textos literrios: e vemos, nesta pesquisa, que as
primeiras telenovelas eram produzias a partir de textos de escritores consagrados da literatura
brasileira e universal. De acordo com Reimo, Entre 1951 e 1963, enfocando as telenovelas
no dirias veiculadas em So Paulo, tm-se 164 produes, sendo que cerca de 95 delas eram
adaptaes literrias e, destas, dezesseis eram adaptaes de autores brasileiros (2004, p. 18).
Os romances que se tornaram matriz para a produo teleficcional no Brasil pertencem a
autores consagrados da literatura brasileira: Machado de Assis (Helena, Iai Garcia, A Mo
e a Luva), Jos de Alencar (Diva, O Guarani, Senhora, O Tronco do Ip), Alusio de
Azevedo (Casa de Penso), Dinah Silveira de Queiroz (A Muralha), Maria Jos Dupr
(ramos Seis), Jorge Amado (Gabriela, Cravo e Canela), rico Verssimo (Clarissa, Olhai
os Lrios do Campo).
Nas minissries produzidas pela Rede Globo de 1982 at 2012, percebe-se uma
regularidade: a maioria delas resultado de transposio de textos literrios (das sessenta e
cinco minissries produzidas desde 1982 at 2012, trinta e cinco so de textos literrios,
superando as trinta e duas de roteiro original). Alm disso, h outro aspecto a considerar: das
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obras fonte, vinte e sete so romances24. A maioria de escritores brasileiros consagrados.
Desses romancistas, Jorge Amado foi o mais recorrente, cujas obras encenadas so: Tenda
dos Milagres (1985); Tereza Batista (1990) e Dona Flor e seus dois maridos (1998).
Nelson Rodrigues e rico Verssimo seguem com dois trabalhos: Meu destino pecar (1984)
e Engraadinha (1995); e O Tempo e o Vento (1985) e Incidente em Antares (1994),
respectivamente. Um exemplo que no pode ser deixado de citar o de Rubem Fonseca: suas
obras foram escolhidas por emissoras diferentes, que resultaram tambm em trabalhos
diferentes: Nau Catarineta (1978) na TV Cultura; Mandrake (1983), Agosto (1993)25,
Lcia McCartney (1994) e A coleira do co (2001) na TV Globo, sendo que Mandrake,
Lcia McCartney e A coleira do co tornaram-se episdios nicos e no minissrie26.
Tambm no podemos deixar de apontar a participao de Maria Adelaide Amaral que
adaptou dois textos seus para minissries: Queridos Amigos (2008), de seu livro Aos meus
amigos; e Dercy de Verdade (2012), da biografia de Dercy Gonalves, Dercy de cabo a
rabo.
24 importante considerar que dessas obras literrias, somente uma delas era um livro de memrias:
Anarquistas, graas a Deus (Zlia Gattai); uma fico reportagem: A mfia no Brasil (Edson Magalhes);
duas peas teatrais: O pagador de promessas (Dias Gomes) e O Auto da Compadecida (Ariano Suassuna);
uma b iografia Dercy de cabo a rabo (Maria Adelaide Amaral) e trinta vieram de romances. 25
importante citar a contribuio da professora Mnica Korniz para os estudos de minissrie: no artigo Agosto
e agostos: a h istria na mdia , publicado em 1994, em que ela examina como a minissrie Agosto foi capaz de
recriar determinada conjuntura histrica do pas e transmit ir, a partir da perspectiva presente, o conhecimento
sobre o passado. Em Uma histria do Brasil recente nas minissries da Rede Globo (2001), ela examina
como o perodo de redemocratizao a partir de 1985 foi importante na seleo de temas da produo televisiva
da poca (destaque para as sries profundamente inspiradas no fim do governo Vargas e na chamada era JK). Neste trabalho, a professora analisa as minissries Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992). Em 2003,
publicou o liv ro Mdia e poltica no Brasil: jornalis mo e fico, destacando a preocupao que a TV Globo tem,
desde o incio dos anos 70, com a verossimilhana e o resgate histrico. Em 2006, a estudiosa lanou A Rede
Globo e a construo da histria poltica brasileira, captulo do livro A democratizao no Brasil sobre a
minissrie Decadncia (1995). O papel da programao telev isiva na realidade brasileira estudado em Fico
televisiva e identidade nacional: o caso da Rede Globo (2007), que integra o livro Histria e cinema:
dimenses histricas do audiovisual. No artigo, a pesquisadora aponta a importncia da teledramaturgia como
elemento de integrao no Brasil. Informao disponvel em , acesso em 30 de abril
de 2010. 26
Sobre os contos de Rubem Fonseca traduzidos para a televiso, Rafaela Carrijo Rosendo Pinto apresenta uma
dissertao de Mestrado, defendida no Programa de Ps -Graduao em Comunicao e Cultura Contemporneas
da Universidade Federal da Bahia, em 2007, intitulada Contos na tela: uma anlise das adaptaes dos contos
de Rubem Fonseca para a teledramaturgia. A dissertao trata da relao literatura-teledramaturgia a partir do
aspecto criativo da adaptao, observando as conjunes e disjunes do processo de traduo, t endo como
corpus de anlise os contos Mandrake, Lcia McCartney e A coleira do co.
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A procura por autores estrangeiros menor. O escritor portugus Ea de Queirs
constitui o destaque, duas vezes revisitado: O Primo Baslio (1988) e Os Maias (2001).
Outro convocado foi o argentino Mempo Giardinelli, que teve a obra Luna Caliente
resgatada e transformada em minissrie, em dezembro de 1999.
A consagrao e o reconhecimento de uma obra pelo pblico e pela crtica
oportunizam ao cinema e televiso a escolha dessas obras para que sejam levadas a outro
meio pela adaptao. Grande parte dos textos transmutados pertence a autores consagrados e a
perodos da literatura cujo reconhecimento inegvel. importante considerar que os mundos
fantsticos criados pelo texto no caem do cu e nem so inspirados por anjos ou musas: o
mundo criado pela literatura, por maior que seja seu simbolismo, nasce da experincia que o
escritor tem de sua realidade histrica e social. A aproximao do texto com a realidade
(poltico-econmico-social, cultural enfim) analisada no texto Dramatizaes da poltica
na telenovela brasileira em que, ao apresentar um estudo sobre a poltica nas telenovelas
brasileiras, Maria Helena Weber e Maria Carmem Jacob de Souza apontam que, no caso da
poltica, a representao se faz a partir de trs modalidades:
A primeira modalidade [...] considera a trama ficcional (tramas centrais e secundrias). A segunda modalidade explora as citaes estratgicas ou trechos que surgem pela via do silncio, agendamento, interveno e posicionamento, geralmente nas tramas secundrias. A terceira modalidade marca a repercusso que permite apontar as interfaces entre a encenao da poltica no texto audiovisual televisivo e as implicaes sociais, culturais , polticas e econmicas extratextuais (2009, p. 152-3).
Essa reflexo das autoras sobre a poltica nas telenovelas nos leva a pensar na
representao da realidade na fico, seja literria ou televisiva: a experincia imaginativa
expressa na fico apresentar, em maior ou menor grau, aproximao do texto ficcional com
a realidade (ou o histrico ou o poltico). Assim ocorre na literatura (de acordo com as
escolhas estticas, com o perodo). O autor e o leitor, ao partir da criao do primeiro (autor) e
da recriao do segundo (leitor), compartilham um universo correspondente a uma sntese -
intuitiva ou racional, simblica ou realista - do aqui e agora da leitura. Mesmo que o aqui e
agora do leitor no seja o mesmo que o aqui e agora do escritor.
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A recorrncia literatura remete ao fato de que o mundo literrio o mundo do
possvel na diegese do texto. O que realmente acontece matria da histria. O compromisso
da literatura, portanto, com o mundo do possvel e no com o mundo do real. Mesmo assim,
a criao literria nasce de uma imaginao que tem a realidade como referncia: aquilo de
que ela trata tem sempre um fundo de verdade, pois o compromisso da literatura com um
mundo possvel no abandona o projeto de fazer do presente seu ponto de partida ou de
chegada (LAJOLO, 2001, p. 48).
Embora haja uma predisposio de pesquisadores e espectadores anlise desse tipo
de produto, apenas a partir do critrio de fidelidade ou de equivalncia, a adaptao (tambm
chamada transmutao ou traduo) de obras literrias para o cinema ou para a televiso,
constitui um processo criativo, potico e cultural complexo. Carlos Reis e Ana Cristina M.
Lopes (2002, p. 405), quando apresentam uma reflexo acerca da traduo da literatura para a
telenovela, defendem que
Trata-se de relaes de transcodificaes entre a linguagem da telenovela e da narrativa literria. [...] no caso de adaptaes de romances para telenovela elas so muito mais notrias, implicando solues de recodificao sobretudo no que toca aos componentes do discurso; romances como Gabriela, cravo e canela de Jorge Amado ou Olhai os lrios do campo de Erico Verssimo so submetidos a profundas alteraes, solicitando uma verdadeira re-escrita. Nela o autor do guio, mantendo em princpio intocveis os vectores temtico-ideolgicos do romance e os fundamentais componentes da histria (personagens, espaos, tempo histrico), no pode deixar de ponderar e respeitar condicionamento que interferem na enunciao do relato: as exigncias e potencialidades da realizao televisiva, a dinmica de apresentao folhetinesca da telenovela, a interligao de vrias intrigas, etc. Reelaborado em funo desses condicionamentos, o romance feito telenovela adquire ento, no plano receptivo, uma imagem nova, por vezes consideravelmente distinta da imagem literria que o leitor construir [sic].
Alm da imagem nova dada ao novo texto que surge a partir de um texto literrio,
importante considerar que: a adaptao de um meio/texto para outro meio/texto tende a
respeitar a linguagem ou gramtica ou sistema de signos no verbais prprios do texto/meio
para o qual foi adaptado. E isso aplicado telenovela e tambm s minissries. O que o
analista deve se perguntar para fazer a anlise da adaptao realizada qual a
linguagem/gramtica do texto/meio minissrie que orientou essa adaptao? Em que medida o
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texto matriz pode ser reconhecido em seu novo meio? O reconhecimento dado pelas
personagens ou pelo enredo?
Anglica Coutinho (2001) acredita na hiptese operatria da adaptologia: o mnimo
vital inerente adaptao est na histria e no nos personagens, que podem ser mudados
assim como suas funes. Para ela, o importante a analogia entre as obras e a existncia de
uma funcionalidade dramtica da histria construda no novo formato. Esse ponto de vista de
Coutinho importante no sentido de que, com o abrandamento da necessidade de se
estabelecer fidelidade com o texto-fonte, o texto traduzido pode ser analisado como um texto
que faz aluses a outro texto, que dialoga com o outro texto e o seu representante. Esses
elementos j nos remetem ideia de intertextualidade, em que se procura entender como o
texto audiovisual se relaciona com o texto literrio, dialogando-se entre si.
A transposio de um signo esttico de um determinado meio para outro meio
tecnolgico deve adaptar-se aos novos recursos normativos do suporte. Este novo suporte, por
sua vez, declara e impe suas leis e acondiciona a mensagem, exigindo do tradutor uma viso
crtica (PLAZA, 2008, p. 109). Recorro explicao de Anna Maria Balogh e Maria Cristina
Palma Mungioli (2009) acerca da relao entre a obra matriz e a obra traduzida:
[...] a traduo intersemitica ou transmutao pode se processar em diferentes graus, que vo desde a adaptao fiel, mais servil ao texto original, s mais distantes que trazem a rubrica baseadas em ou inspiradas em. Porm, em todos esses casos, a explicitao da relao entre texto original e obra adaptada constitui uma das formas de orientar a compreenso e a interpretao das obras transmutadas mediadas pela intertextualidade e/ou interdiscursividade que marcam de maneira indelvel os gneros televisuais (BALOGH; MUNGIOLI, p. 318).
Diferenas na forma como se encaram as tradues levam a uma discusso tambm
importante para os pesquisadores desse fenmeno: a relao existente entre o momento
histrico e o processo de traduo. Ao adaptar um texto literrio, o tradutor utiliza
tecnologias, suportes e linguagens para levar o que se imagina na escrita para o que se v no
cinema ou na televiso. Proposio que indica ser necessrio associar a anlise da
gramtica/linguagem especficas de cada meio/texto com a anlise dos procedimentos
efetuados por profissionais especficos, que atuam em contextos especficos, no ato da
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traduo. No caso do audiovisual, temos trs agentes fundamentais o roteirista, o diretor e o
produtor.
A interferncia sofrida pela traduo uma evidncia de que o contexto e o
momento histrico no podem ser ignorados: importante considerar o momento em que o
texto, objeto da traduo, foi elaborado, as implicaes e identificaes desse texto com o
momento em que ser exibido pela televiso, quem o roteirista autor que ir transformar o
texto literrio e qual diretor conduzir a realizao. Um depoimento de como a experincia do
diretor orienta a sua prtica feito por Luiz Fernando Carvalho27, diretor responsvel pela
minissrie Os Maias. Ele apresenta a perspectiva do diretor na experincia da traduo do
romance quando dirigia o filme Lavoura Arcaica:
Minha motivao no cinema a passagem de um estado a outro estado. A cada instante, preparar o espectador como um pintor escolhe e mistura suas cores, ou como um paj rene suas folhas para depois extrair delas um conjunto de sensaes. S passamos de um estado a outro se este conjunto de sensaes existir. S ultrapassamos a mera construo tcnica de um filme se formos capazes de pegar uma fabulao, um sonho, com tamanha fora de contaminar o escuro do cinema como uma peste. necessrio criar um estado de vidncia, de transformao, de imaginao. Filmar imaginar ao ponto de efetuar transformaes sem frmulas, sem modelos, sem clichs principalmente! Imaginar ao ponto de encontrar uma imagem tal que j no seja possvel distinguir-se criador da criao, o ator da personagem, o cinema da vida.
Esses elementos, aparentemente normais ou simples, carregam todo um envolvimento
contextual que no deve escapar ao analista. A traduo intersemitica no , portanto,
somente a transferncia de personagens, de tramas ou espaos para outro meio, mas a
construo de uma significao para o novo meio. No trabalho de Luiz Fernando Carvalho, as
equivalncias entre as obras esto relacionadas fotografia da atmosfera reproduzida,
fisionomia representada pelo carter das personagens, aos movimentos de cmera fazendo
referncia ao ritmo narrativo advindo dos romances, msica que dialoga com as situaes do
enredo.
27
Resposta de Luiz Fernando Carvalho enquete realizada pela revista Filme Cultura (ed.54) , disponvel em
acesso em 22 de janeiro de 2012.
36
Para o diretor, adaptao seria conferida a ideia de transposio ou traduo como
aconteceu nas suas minissries e no filme Lavoura Arcaica, no qual parte significativa da
crtica identificou os trabalhos como uma traduo e considerou a busca de equivalncias bem
sucedidas (XAVIER, 2003, p. 63). Todo esse cuidado diz respeito ao modo a provocar
sentidos no espectador para lev- lo a interagir com a obra. A imagem, a msica e a palavra
fazem parte do todo que o processo narrativo, graas a esses recursos que so empregados
para expressar e recriar os romances do autor escolhido, possvel escapar da mera ilustrao
do texto literrio (SALAZAR, 2008, p. 82). E quando falamos em minissries para TV, essa
construo se d a partir de modos peculiares ao meio em questo: um deles a serializao,
que busca modos de contar histrias vinculadas aos modos de cativar o espectador.
A estratgia da serializao organiza e compe a forma de apresentao do enredo, a
forma de entrelaamento dos conflitos, a construo das personagens, a constituio do
espao e a definio do tempo, os mecanismos de suspenso de sentido para que possa
enredar cada captulo, a composio da trilha sonora, enfim, so alguns artifcios com que o
roteirista - em parceria com o diretor e inmeros outros especialistas - deve se preocupar.
Alm disso, o ncleo central necessitar de sustentao suficiente para receber as tramas
secundrias, sem perder a capacidade de enredar, de articular fragmentos de histrias
distribudos pelos captulos: o preenchimento de cada minuto visto pelo telespectador dever
ter a fora e a energia para despertar- lhe o interesse de continuar a perseguir as estrias.
A adaptao ou a traduo intersemitica pode levar, ainda, ao que se chama salto
qualitativo, do ponto de vista do mercado, ao incidir no aumento das vendas e pode
constituir-se numa produo com atributos de valor maiores que a obra matriz. Entre as
minissries brasileiras, h o exemplo de A Casa das Sete Mulheres (2003): produzida pela
Rede Globo, a partir do romance homnimo de Letcia Wierzchowski, teve o roteiro de Maria
Adelaide Amaral e Walther Negro e direo de Jayme Monjardim. O livro foi lanado em
abril de 2002, tinham sido vendidos, at a estreia da minissrie, treze mil exemplares. Aps
chegar TV, ultrapassaram os trinta mil em trs semanas. Alm do sucesso de vendas do livro
e de outros livros sobre o assunto, a minissrie, que obedeceu classificao de livremente
adaptada do romance da escritora gacha, recebeu o prmio da Associao Paulista de
Crticos de Arte com o Grande Prmio da Crtica, tendo sido considerada, pela crtica, como
uma obra que conseguiu salto qualitativo, em relao ao texto matriz: foram utilizados na
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elaborao do roteiro da minissrie o texto de Letcia Wierzchowski, o conto A Salamanca
do Jarau, de Simes Lopes Neto e fatos histricos.
1.1.2 A Intertextualidade na Adaptao
A noo de intertextualidade tem origem na obra de Julia Kristeva, na dcada de 1960,
que retoma a noo de dialogismo, presente em M. Bakhtin, para falar da confluncia de
textos (de diversas origens: sociais, artsticas, culturais, polticas, histricas, etc.) que se
organizam no interior de cada texto em particular. Buscando discutir as diversas relaes
entre um texto e os outros que o compem, Grard Genette desenvolve a ideia de palimpsesto.
Bakhtin identifica duas concepes diferentes do principio dialgico: a do dilogo
entre interlocutores e a do dilogo entre discursos. Esse terico compreende que, nas cincias
humanas, tanto o objeto quanto o mtodo so dialgicos. Na condio de objeto, o texto
artefato de significao (o texto significa), produto de uma enunciao feita em um
determinado contexto scio-histrico e dialgico, uma vez que se define pelo dilogo entre os
interlocutores e, tambm, pelo dilogo entre outros textos.
Em face disso, o discurso no individual. Ele se constri entre, pelo menos, dois
interlocutores, por sua vez, seres sociais. No individual tambm por causa de suas relaes
com outros discursos. Enfim, a linguagem , por constituio, dialgica. Embora s vezes
empregados como vocbulos sinnimos, dialogismo e polifonia no representam o mesmo
fenmeno: dialogismo o princpio constitutivo da linguagem e do discurso; polifonia refere-
se aos textos nos quais o dialogismo se deixa ver. Nos textos polifnicos, so percebidas
muitas vozes, o que faz oposio aos textos monofnicos, que dissimulam os dilogos que os
constituem. O dilogo condio da linguagem e do discurso. No entanto, h textos
monofnicos e polifnicos, em harmonia com as estratgias discursivas empregadas.
Os textos polifnicos so, enfim, aqueles nos quais os dilogos entre discursos ficam
patentes. Nos textos monofnicos, ao contrrio, esses dilogos no se deixam perceber: esto
ocultos sob a configurao de discurso nico, de uma voz que ecoa isoladamente. Logo, no
difcil perceber que monofonia e polifonia so efeitos de sentido, resultantes de
procedimentos discursivos.
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Robert Stam (2008) pontuar elementos que ligam os processos de transposio
(chamada de adaptao por ele) ao dialogismo e intertextualidade:
A teoria da adaptao dispe de um rico universo de termos e tropos traduo, realizao, leitura, crtica, dialogizao, canibalizao, transmutao, transfigurao, encarnao, transmogrificao, transcodificao, desempenho, significao, reescrita, detournement que trazem luz uma diferente dimenso de adaptao. O tropo da adaptao como uma leitura do romance-fonte, inevitavelmente parcial, pessoal, conjuntural, por exemplo, sugere que, da mesma forma que qualquer texto literrio pode gerar uma infinidade de leituras, assim tambm qualquer romance pode gerar uma srie de adaptaes. Dessa forma, uma adaptao no tanto a ressuscitao de uma palavra original, mas uma volta num processo dialgico em andamento. O dialogismo intertextual, portanto, auxilia-nos a transcender as aporias da fidelidade (STAM, 2008, p. 21).
A traduo de um texto em outro texto, de um meio para outro meio, constitui-se na
elaborao de um novo texto para um novo propsito. Assim, a passagem do texto literrio
para o audiovisual tende a determinar novos sentidos ao texto, novas interpretaes. Ao
considerar que o processo na traduo intersemitica uma leitura dos criadores do cinema
ou do texto televisivo sobre o texto fonte, considera-se tambm que a aproximao e o
distanciamento entre os textos podero ocorrer em gradaes diferentes e estabelecendo
dilogos. quando a obra recebe a classificao de adaptada de... ou inspirada em... ou
baseadas em....
Ao analisar a recorrncia literatura de Camilo Castelo Branco e Agustina Bessa Luiz
pelo cineasta portugus Manuel de Oliveira, Maria do Rosrio Luppi Bello (2001) aponta
elementos importantes para o entendimento da leitura de textos literrios para o cinema e que
podem ser aplicados televiso:
De facto, atravs da heterogeneidade da matria de expresso cinematogrfica (constituda pela imagem em movimento, pelo som, pela msica e pela palavra, ordenados segundo os princpios da montagem), representada, nos filmes, uma particular viso do mundo operada pela assimilao e reinterpretao da gramtica e da matria de expresso do texto verbal. Tal processo evidencia-se atravs de um conjunto de operaes (sintetizadas por Sara Cortellazzo e Dario Tomasi