8/17/2019 Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida, por Mario de França Miranda
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"ITAICI - Revista
de
Espiritualidade Inaciana" é
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8/17/2019 Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida, por Mario de França Miranda
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2007
ANO 17
1
1
REVISTA
E
ESPIRITVALIDADE
INACIANA
s
.
man
EDl ruRIAL
3 ········································································································································
AHTIGQS
5 .............................................................. Uma Mística da encarnação: Mística inaciana
EMMANUEL
DA
SILVA E ARAÚJO
SJ
17
................................................................................. A Contemplação
da
Encarnação
JOÃO BATISTA LIBÃNIO
SJ
29 ...................................................................... Descer a Nazaré. A humildade inaciana
Luís GoNzALEz-QuEvrno, SJ
43 ........................................... A Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida
MARIO
DE FRANÇA MIRANDA SJ
54 ................................................................................................. Nos umbrais da mística
J. RAMÓN
F
DE LA CiGÕNA SJ
61 ...................................................................................... A espiritualidade de São João
Luís INAc10 JoAo STADELMANN SJ
ITAICI REVISTA
DE ESPIRITUALIDADE INACIANA
Dezembro/2007)
8/17/2019 Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida, por Mario de França Miranda
3/13
J_
Pe
Mário
de
França
Miranda professor da
faculdade
de Teologia
d PUC-Rio e
colaborador da nossa
revista participou da
V
Conferência
Geral
doCELAM em
irit li
MÁRIO
DE
FRANÇA
MIRANDA
SJ
INTRODUÇÃO
Primeiramente uma palavra para justificar o tema. Pois, à
primeira vista, a visão espiritual de Santo
Inácio
não parece
ter
relação direta alguma com o texto da V Conferência como, aliás,
com
qualquer outro texto do magistério eclesiástico. Vamos
então
forçar
uma aproximação
carecendo de um real
fundamento?
Vamos tentar reduzir o rico e diversificado pronunciamento de
Aparecida aos limites da visão inaciana? Não estaremos assim
correndo
o risco de deformar seu conteúdo?
Como
vemos, faz-se
necessário uma explicação inicial.
Toda leitura de um texto se dá inevitavelmente a partir da
perspectiva do leitor.
Neste
sentido nunca teremos
uma
aborda
gem universal e perfeitamente objetiva. Entender um texto é,
no
fundo, interpretá-lo no interior de meu horizonte de compreensão,
de
minha
bagagem existencial, de minhas inquietações anteriores.
Naturalmente o texto goza de uma autonomia que resistirá a
interpretações
totalmente
subjetivas e fantasiosas, mas
não
poderá
impedir que percepções e ênfases diversas se manifestem a partir
das diferentes óticas de leitura.
Se
não desvirtuam sua verdade,
conseguem, entretanto, apresentá-la de um modo particular e espe
cífico. A abordagem inaciana se assim podemos falar, do
Documento de Aparecida é, portanto, uma das múltiplas possíveis.
Através dela poderemos constatar coincidências, enfatizar alguns
pontos, deixar outros em segundo plano. Feita esta observação
preliminar, entremos
na
temática.
1. A EXPERIÊNCIA PESSOAL COM DEUS
Santo Inácio viveu
em
um tempo crítico,
no
qual a confiança
nas autoridades e nas instituições da Igreja se encontrava abalada
ITAICI REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA IDezembro/2007)
8/17/2019 Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida, por Mario de França Miranda
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e perplexa. A reforma de Lutero, seguida por outros líderes cris
tãos, já
havia
provocado a ruptura da unidade eclesial, trazendo
grande confusão para a
mente
dos católicos.
Se
realizar a
vontade
de Deus significava trilhar o caminho correto para a salvação, a
questão
central
daquela época era como se poderia chegar a co
nhecer esta vontade. Estando a hierarquia eclesiástica e as media
ções tradicionais desacreditadas, Inácio, a partir de sua
experiência
pessoal
vai oferecer
uma
via de acesso mais existencial a seus
contemporâneos. De fato, seus conhecidos
Exercícios Espirituais
constituem uma
verdadeira pedagogia para alguém encontrar a
vontade de Deus.
Através da leitura das moções surgidas ao longo das suces
sivas Semanas pode perceber o exercitante, pessoalmente e de
dentro
de sua experiência, o desígnio
divino
para
ele,
devendo
o
diretor do retiro abster-se de influenciá-lo nesta experiência,
apenas fornecendo-lhe orientações para
melhor
saber vivê-la e
interpretá-la (EE 15).
Fundamental
aqui é a experiência pessoal.
Sem
ela tudo se
encontra
questionado (EE 6). Ela consiste na
ação de Deus em cada indivíduo e na percepção que cada um
tem desta ação, realidade da qual estava profunda e tranqüila
mente convicto
Santo
Inácio.
Situação
de
certo modo
semelhante
a de
Inácio
vivemos
hoje, embora
provinda
de causas bem diferentes. A sociedade
pluralista de nossos dias acaba por relativizar os discursos e en
fraquecer as palavras pelo enfrentamento com outros discursos e
palavras diferentes. Além disso, a fragmentação do saber veda
nos uma visão global da realidade que pudesse nos
orientar
neste
conflito generalizado de interpretações
(DA
36)
1
•
Sem falar
na
velocidade crescente das transformações,
alimentada
por novos
conhecimentos
e novas tecnologias, que acarreta enorme difi
culdade para a transmissão de valores e de padrões comporta
mentais (DA 39). Este traço cultural de nossa sociedade repercute
também
para
dentro da
Igreja.
Pois o católico se vê rodeado por crenças e convicções dife
rentes
da
sua própria fé.
Apenas
a
doutrina
como
tal não lhe
satisfaz. Permanece a perplexidade, a dúvida, a relativização do
que era inquestionável
para
gerações anteriores.
As
pessoas
não
conseguem uma compreensão
unitária
(da realidade) que lhes
permita exercer sua liberdade com discernimento e responsa
bilidade (DA 42). A transmissão da
fé
para os jovens se torna
ITAICI REVISTA
DE
ESPIRITUALIDADE
INACIANA Dezembro/2007)
1.
DA = Documento e
Aparecida.
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O E
=Deus
Caritas est.
um problema central. Examinada com mais atenção esta trans
missão
não
consiste tanto em passar doutrinas religiosas e marcos
éticos, mas, sobretudo,
em
fazer
com
que gerações mais novas
possam realizar as experiências salvíficas que marcaram nossas
vidas e
fundamentam
nossa fé. Transmitimos,
no
fundo, o Deus
que
nos ama
e
habita em
nós.
Transmitimos alguém que
se
entregou a nós e que vive
em
nós.
Aqui o
Documento
de Aparecida é profundamente inaciano.
Não se começa a ser cristão
por
uma decisão ética
ou uma
grande
idéia, mas através do encontro
com
um acontecimento,
com
uma
Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orien
tação decisiva
(DA
243,
citando
DCE 1 2. Este encontro pode
se
dar
diversamente:
na
Igreja
(DA
246),
na
Sagrada Escritura
(DA 247-249), na Eucaristia (DA 250s), na oração (DA 255),
na comunidade viva
(DA
256), nos Pastores
(DA
256), nas teste
munhas
pela justiça (DA 256) e nos pobres (DA 257). Impor
tante
é que esteja presente.
Daí se
compreendem
as afirmações que
recomendam
para
os afastados da Igreja
uma
experiência religiosa profunda e in
tensa
(DA
226)
ou
que urgem
como
início do processo de ini
ciação cristã a experiência de
um
encontro
pessoal
com
Jesus
Cristo
que leve à conversão (DA 289). Esta é a tradição mais antiga da
Igreja , prévia e concomitante com a celebração dos sacramentos,
fazendo a pessoa
participar
do que os antigos
chamavam
de
catequese mistagógica
(DA
290).
2.
A CENTRALIDADE
DE
JESUS
CRISTO
Outro ponto nuclear
da
espiritualidade inaciana é o seu
cristocentrismo. A pessoa de Jesus Cristo é marcante ao longo de
todas as etapas dos Exercícios Espirituais. Já na Primeira
Semana
esta presença surge no conhecido colóquio diante de Jesus cruci
ficado, que termina com as palavras o que fiz por Cristo, o que
faço por Cristo e o que devo fazer por Cristo (EE 53). Nas demais
Semanas é Jesus Cristo, sua pessoa, suas palavras e sua missão a
temática fundamental das contemplações. Pois sua vida é a reali
zação histórica de alguém que sempre disse sim a Deus, que sempre
foi fiel em fazer Sua vontade e corresponder plenamente ao desígnio
salvífico do Pai. Será, portanto, nesta realização
histórica
do que
chamamos a vontade de Deus , que o exercitante poderá encontrar
o que Deus quer dele através da leitura correta das moções que o
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INACIANA Dezembro/2007)
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agitam. A expressão vontade de Deus enquanto prescinde da
história de Jesus Cristo
não
passa de
uma
formulação geral e, como
tal, sem incidência concreta
na
vida do cristão.
A graça a ser pedida e alcançada nos colóquios
da
Segunda
Semana aparece bem sintetizada na expressão: pedir o conhe
cimento interno
do
Senhor
que
por mim
se
fez
homem
para
mais
amá-lo e segui-lo (EE
104),
recomendada também para as demais
contemplações (EE 159). Na
Terceira e
Quarta Semanas
Jesus
Cristo, padecente ou glorioso, continua a ser o que deve ser alcan
çado pelo exercitante (EE 193; 221). Deste
modo
o
contato
exis-
tencial
com Jesus Cristo deve levar este mesmo exercitante a
uma
familiaridade com Deus e com o mundo da fé, que ultrapasse um
mero
conhecimento
da doutrina cristã ou mesmo dos Evangelhos.
No
fundo,
Santo
Inácio
espera que desta experiência dos Exercí
cios o indivíduo seja capaz de desenvolver sua vocação cristã de
modo pessoal, único, condizente
com
sua realidade interior e
seu
contexto
exterior, conformando-se com o que Deus dele quer,
caminho único e intransferível já que cada pessoa é
única
e
não
mera
concretização de uma realidade geral comum a todos.
Também no Documento de Aparecida a figura de Jesus Cristo
é central. Fomos chamados a ser seus discípulos, a nos vincularmos
intimamente à sua pessoa, a participarmos de sua vida divina,
assumindo seu estilo de vida e suas motivações , bem como sua
missão
(DA 131). Há um
enfoque claramente joanino
na
descri
ção do cristão apresentada
no
capítulo IV (DA
13
2), ao mencio
nar
a parábola
da
Videira e dos Ramos (Jo
15,1-8),
o fato de que
não
somos servos, mas amigos (Jo 15,15) e partilharmos, como
filhos, da mesma vida
provinda
do Pai (Jo 10,10).
Igualmente aqui,
como nos
Exercícios, busca-se
uma
confi
guração com a pessoa de Jesus Cristo através de uma adesão que
compromete radicalmente a liberdade do discípulo
(DA
136),
·d ·f· d J · h J d d
J
ent1 1can o-o com esus-cam1n o , esus-ver a e e esus-
vida (DA 137) e levando-o a viver a caridade fraterna como o
diferencial cristão (DA 138). Embora sem citações neotestamen
tárias se delineia o estilo de vida do próprio Jesus,
conteúdo
das
contemplações da
Segunda Semana, como
seu amor e sua obe
diência
filial ao Pai, sua compaixão
entranhável
frente
à
dor
hu
mana, sua proximidade aos pobres e aos pequenos, sua fidelidade
à missão encomendada, seu amor serviçal até a doação de sua
vida. (DA 139)
ITAICI REVISTA DE ESPIRITUALIDADE
INACIANA
Dezembro/2007)
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Uma característica dos retiros inacianos, a saber, que as su
cessivas contemplações estão voltadas todas elas à eleição pos
terior, aparece também
no
documento da V Conferência: Hoje,
contemplamos Jesus Cristo tal como os Evangelhos nos transmi
tem
para conhecermos o que Ele fez e para discernirmos o que
devemos fazer nas atuais circunstâncias.
(DA
139)
Neste
mesmo
contexto vem uma alusão à Terceira
Semana
dos Exercícios,
quando se menciona que o cristão deve viver o destino do Senhor,
inclusive até à cruz e quando se lembra o
testemunho
de tantos
missionários e mártires na América Latina, que compartilharam
a cruz de Cristo até à entrega da própria vida.(140)
3.
A ECLESIALIDADE DA É CRISTÃ
Outro
ponto importante
no
qual
coincidem
a espiritualidade
inaciana
e o
Documento
de Aparecida está
na
eclesialidade
da
fé
De fato, nossa fé, embora teologal em seu objeto (cremos em Deus)
é eclesial
em
sua modalidade (cremos no interior
da
Igreja). Pois
a comunidade eclesial irradia o que crê, o que vive (Dei
erbum
8). Daí ser a fé do cristão uma participação na fé da lgrej a. É a
economia salvífica querida por Deus, a vocação do povo de Israel,
o sentido do
Novo
Povo
de Deus: mediatizar a todos os povos
os
desígnios divinos. A comunidade eclesial é assim o meio através
do qual nos chega
Jesus
Cristo
vivo, testemunhado
na fé
e
na
vida desta comunidade.
Daí
a tradição ver a Igreja como mãe e
mestra de nossa fé.
Santo Inácio era profundamente um homem da Igreja. Numa
época em que a mesma se encontrava fragilizada, desacreditada
e mesmo desprezada, ele faz questão de expressar seu amor à Igreja
através das conhecidas regras para sentir
com
a Igreja (EE
352-
370). À
Igreja
concreta
e desacreditada de seu
tempo
chama
Inácio de santa Igreja hierárquica, nossa mãe (EE
353
), de
esposa de Cristo regida pelo Espírito
Santo
(EE
365).
Seu amor
à Igreja antecede qualquer crítica, envolve de
antemão
qualquer
questionamento e é sempre pressuposto
em
qualquer divergência.
Pois é o mesmo Espírito que nos governa e nos dirige para a sal
vação e que igualmente governa e dirige a Igreja (EE
365).
Natu
ralmente
esta convicção do santo
caminhava
junto com
uma
profunda liberdade interior. Quando
lhe
parecia estar em jogo
algo que julgava iluminação do Espírito e
vontade
de Deus, então
lutava usando os meios a seu alcance.
ITAICI
REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA Dezembro/2007)
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O
contexto
da eclesialidade da fé em nossos dias não é o
mesmo do século XVI. Vivemos
numa
sociedade
onde
reina o
individualismo, a busca egoísta da própria felicidade, a crise do
bem
comum, a indiferença com relação aos demais, fatores que
ocasionam o generalizado
fenômeno
da solidão.Vivemos também
os anos posteriores ao
Concílio
Vaticano II,
onde
surgiu
uma
con
cepção de Igreja diferente daquela de sociedade perfeita
em
contraposição à sociedade civil, e que se inspirou
fortemente na
tradicional
compreensão patr ística de Igreja. A lgrej a aparece
mais como
comunhão ,
cujo fundamento é a
comunhão
de cada
cristão com a Santíssima Trindade
(DA 155).
Porque todos
estamos em comunhão com Deus, também estamos em comunhão
uns
com
os outros.
Não
se pode ser cristão de
modo
individualista, sem estar
em
comunhão com os demais e sem se encontrar numa comunidade
eclesial. Dela recebemos a
fé
em Jesus Cristo, por ela nos achamos
numa mesma família (DA 156). Afirmação importante devido à
atual cultura narcisista que hoje respiramos e que fomenta vivências
religiosas desenraizadas de qualquer tradição histórica. Por outro
lado a Igreja deve se mostrar cada vez mais como uma comunidade
de amor , capaz de atrair outros a viverem a aventura da fé (DA
159).
Aqui
aparece claramente o anúncio intimamente unido ao
testemunho
de vida. A Igreja evangeliza pelo que ela proclama e
pelo que ela vive. Deste modo,
a
comunhão e a missão estão pro
fundamente unidas entre si. .. A comunhão é missionária e a missão
é para a
comunhão (DA
163 ).
A dimensão eclesial da fé recebe
no
texto de Aparecida muitas
concretizações. Somos dotados de carismas diversos, mas consti
tuímos como
Corpo
de Cristo
uma
unidade orgânica
(DA
162).
O presbítero realiza sua pastoral,
em
comunhão
com
os demais
presbíteros e com o bispo (DA 195 . Todos os organismos paroquiais
devem estar animados por
uma
espiritualidade de comunhão
missionária
(DA
203
.
Os que se afastaram da Igreja buscavam,
no
fundo,
uma
vivência comunitária
(DA
226). Daí a impor
tância das Comunidades Eclesiais de Base (DA 178 e 179) e de
outras pequenas comunidades para a Igreja (DA 180). Infelizmente
a versão original, aprovada pelos bispos
em
Aparecida e supressa
na
edição oficial, deixava transparecer
melhor
a dimensão eclesial
das CEBs: Arraigadas
no
coração do mundo, são espaços privi
legiados para a vivência comunitária da fé, mananciais de frater-
ITAICI REVISTA
DE
ESPIRITUALIDADE
INACIANA Dezembro/2007)
Cebs
Testemunho
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9/13
nidade e de solidariedade, alternativa à sociedade atual fundada
no egoísmo e na concorrência impiedosa .
4. O MAGIS INACIANO
Outra
característica da espiritualidade inaciana, que nos leva
a
ver
no
santo alguém ligado ao passado medieval, mas
já
pressen
tindo
o início da época moderna, era sua preocupação pelo maior
serviço de Deus e pelo maior
bem
das almas.
Nas
Constituições da
Ordem,
bem
como em suas cartas, aparece claramente a busca de
uma maior universalidade na missão apostólica da Companhia de
Jesus.
Daí
a acurada formação intelectual de seus membros; daí a
importância da liberdade espiritual, do religioso adulto e capaz de
discernir o bem maior;
daí também
o trabalho
com
aqueles que
mais podem influir na sociedade, formando-os ou orientando-os;
daí a convicção de que o
bem
mais universal é o mais divino.
Este traço da espiritualidade inaciana aparece também no Do
cumento de Aparecida, sobretudo em sua terceira parte, quando
trata
da vida de Jesus Cristo para nossos povos . Depois de apre
sentar
um
belo texto referente à opção preferencial pelos pobres e
excluídos na linha das Conferências anteriores (DA 391-398), o
Documento de Aparecida reconhece que
as
mudanças sociais
8/17/2019 Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida, por Mario de França Miranda
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está
devidamente
preparado para
as
demais contemplações que
se
seguem. Pois estas apenas concretizam, através das palavras e
da
vida de Jesus, a realidade do
Reino
a ser acolhida pelo exer
citante, até no que ela tem de mais difícil (pobreza, humilhações).
Sem
este compromisso prévio que vem expresso
no
colóquio desta
meditação (EE 98), as contemplações posteriores terão pouco
efeito. A outra mediação-chave
nesta etapa
dos Exercícios, a
saber, a meditação das Duas Bandeiras, apenas enfatiza o
modo
como
se
deve trabalhar pelo Reino. Seguindo o exemplo de Jesus
Cristo na pobreza e na humildade (EE 136-148).
Observe-se, entretanto, que
Santo
Inácio jamais desvincula
a pessoa de Cristo de sua missão. Aderir a Jesus Cristo é pôr-se a
serviço do Reino. Ele
já
havia intuído o que hoje a teologia bíblica
tanto
acentua:
não
se pode
entender
a pessoa de Jesus sem a
realidade do Reino de Deus,
não se
pode separar a cristologia da
soteriologia, pois o
ter
sido enviado pelo Pai para a salvação do
mundo é constitutivo da pessoa de Jesus Cristo. As falhas obser
vadas
no
passado, responsáveis por profundas especulações cristo
lógicas, pouca ou nenhuma incidência
tinham
na vida dos cristãos
por silenciarem a dimensão salvífica presente na pessoa do Mestre
de Nazaré. Santo Inácio
não
cai nesta falha.
Ao
longo de sua
vida se mostrará sempre reticente com relação a devoções e espiri
tualidades que se mostrem intimistas e espiritualistas sem reper
cussão na vida social e
no
serviço ao Reino.
No
Documento de Aparecida o íntimo nexo entre a pessoa
de Jesus e sua missão pelo Reino de Deus já não
aparece
tão expres
sa e incisivamente como nos apresentam os textos neotestamen
tarios. Há uma predileção pela cristologia do Verbo encarnado e
do relacionamento de Jesus
com
o Pai
(DA lüls;
129). A missão
de Jesus enfatiza mais a vida divina que nos chega, nossa filiação
adotiva, o fato de sermos seus amigos, o perdão dos pecados
(DA
131-134). São afirmações corretas e imprescindíveis, mas que
deixam de lado o percurso histórico do Messias: suas palavras, suas
ações, seus conflitos, que constituem a base para
as
afirmações
mais genéricas acima mencionadas. Nos capítulos III e IV do Do
cumento aparece deficiente a história real de Jesus de Nazaré
e,
conseqüentemente,
os
traços concretos de sua missão pelo Reino
bem
como uma concepção satisfatória deste mesmo Reino.
Esta lacuna não chega a ser corrigida por algumas afirmações
esparsas
nesta
parte do Documento. Fala-se assim do estilo de
ITAICI
REVISTA DE
ESPIRITUALIDADE
INACIANA Dezembro/20071
Cristologia:
dificuldade do DA,
não se privilegia
uma cristologia
ascendente, mais
apropriada para o
processo formativo
dos discípulos
capaz de configurar
suas vidas a de
Cristo e
impulsioná-los à
missão.
8/17/2019 Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida, por Mario de França Miranda
11/13
vida
(DA
131;139), mas a descrição do mesmo é sempre geral
(DA 139). Igualmente de sua missão (DA 152).
Quando
afirma
que a evangelização inclui a opção preferencial pelos pobres, a
promoção humana integral e a autêntica libertação cristã (DA
146) ou que a santidade não é fuga para o intimismo ou para o
individualismo religioso , tais asserções aparecem desvinculadas
da
seqüência principal do texto, postas para equilibrar, sem con
segui-lo, certa visão cristológica parcial e unilateral. Esta observa
ção vai incidir
no
capítulo V que trata da comunhão dos discípulos
missionários na Igreja, limitando a noção de missão aí presente,
bem como no longo capítulo
VI
que aborda a formação dos cató
licos. Afirmações esparsas sobre o
testemunho
de luta pela justiça
por parte
de homens e mulheres na América Latina (DA 275)
ou
da
atuação do discípulo para a transformação da sociedade
(DA 283
, ou ainda
de que o
encontro
com Jesus Cristo nos (e
não através dos , mal traduzido no texto) pobres é
uma
dimensão
constitutiva de nossa
fé
em
Jesus Cristo , carecem, sem dúvida,
de uma adequada fundamentação cristológica.
Esta falha vai receber uma correção na terceira parte do Do
cumento.
No
capítulo VII
já
se descreve a missão de Jesus ao
longo de sua história,
com
maior presença dos Evangelhos Sinó
ticos (DA 353 ). A partir daí é possível
se
afirmar que a vida
nova trazida por Jesus atinge o ser
humano
em sua dimensão
pessoal, familiar, social e cultural (DA 356), que o Reino de
vida que Cristo veio trazer é incompatível com situações desu
manas (DA 358), ou que a salvação cristã deve redimir
também
as relações sociais entre os seres humanos (359).
No
capítulo
VIII
já
deparamos
com
uma descrição do
Reino
de Deus (DA
383s) e com uma cristologia implícita que
fundamenta
a opção
preferencial pelos pobres
(DA
391-398), bem como a promoção
humana
integral como objetivo pastoral
da
Igreja
(DA399-405).
Uma cristologia que
melhor
salvaguardasse o Jesus da história e
o Cristo da fé ofereceria
uma
base mais unitária e consistente a
todo o Documento.
6.
IMPORTÂNCIA
DO
LAICATO NA
IGREJA
A emergência e a valorização do
laicato n Igreja
tão forte
nos textos do Concílio Vaticano II, também repercutiram no
interior da Companhia de Jesus. As últimas Congregações Gerais
trataram explicitamente da colaboração entre jesuítas e leigos/as
ITAICI REVISTA DE ESPIRITUALIDADE INACIANA Dezembro/2007)
8/17/2019 Espiritualidade Inaciana e o Documento de Aparecida, por Mario de França Miranda
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em vista
da
missão. Recomenda-se que estes sejam adequada
mente
formados,
fraternalmente
acolhidos e
devidamente
reco
nhecidos
não só em
suas obras, mas
ainda
nas obras empreendidas
pela ordem. Nestas últimas devem ser considerados como autên
ticos colaboradores, participantes responsáveis em suas atividades,
podendo
mesmo assumir sua coordenação e direção
N
armas
Complementares
VII Parte,
Capítulo
V).
Também o Documento de Aparecida tem como
um
de seus
principais objetivos a formação do laicato, que constitui todo o
seu capítulo VI. Igualmente aqui a formação
acontece em
vista
da missão, já que todo discípulo é missionário por participar da
missão de Jesus, parte integrante da identidade cristã
DA
144 .
Conseqüentemente o processo formativo dos fiéis não pretende
apenas reforçar a fé dos mesmos, mas também capacitá-los ao
trabalho
pelo
Reino
na
atual sociedade. Para
tal
deverão os
pastores promover a co-responsabilidade e participação efetiva
de todos os fiéis na vida das comunidades cristãs
DA
368). Esta
participação implica abrir-lhes espaços e confiar-lhes ministérios
e responsabilidades DA 211). Devem participar dos projetos
pastorais diocesanos DA 311), como parte ativa e criativa
DA
213 ). O leigo/a deve,
portanto, atuar
na
sociedade como
verdadeiro sujeito eclesial e competente interlocutor entre a
Igreja e a sociedade (497). Naturalmente o âmbito
da
ação pas
toral laical descrita no Documento de Aparecida é bem mais
amplo do que o da
Companhia
de Jesus, embora haja acordo de
fundo entre ambos.
7. MÉTODO VER JULGAR AGIR
É
interessante ainda observar
uma
outra
característica
de
Santo
Inácio quando se tratava de tomar decisões pastorais. Fazia questão
de recolher o maior número de dados sobre uma determinada
situação para
melhor
acertar
em
sua opção. Aqui se explica a
intensa correspondência epistolar que tinha
com
os jesuítas de seu
tempo, bem como a consulta constante a pessoas competentes.
Naturalmente de posse destas importantes informações ele passava
a uma avaliação das mesmas, seguida de muita oração, antes que a
decisão fosse tomada. Com isto chamava a atenção sua constância
nas iniciativas que empreendia.
A
semelhança com
o
méto o ver julgar agir
empregado
pela
V
Conferência
em
Aparecida
salta aos olhos. Esta peculiaridade
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da
Igreja
na América Latina
confirma a necessidade de
conhe-
cermos a sociedade
onde
está situada a comunidade eclesial para
que esta possa de modo correto, consciente e eficaz levar a cabo
sua missão salvífica e seu trabalho de evangelização. Natural-
mente este
olhar
a realidade
acontece
sempre a partir da fé, é um
olhar
qualificado, é
um
olhar
cristão. O que
não
diminui
ou
inva
lida sua objetividade e sua verdade, já que todo conhecer é sempre
também um interpretar,
já
que
não
existe um
conhecimento
abso
lutamente
neutro. Daí se
encontrarem
já, no segundo capítulo
do Documento, leituras da realidade mais condizentes com a
fé
cristã,
ou
mesmo avaliações implícitas (julgar) que serão mais
desenvolvidas
na
II
parte
do texto. A avaliação explícita dos
dados sobre a realidade, a oração subseqüente antes da decisão
final não aparecem no texto de Aparecida, embora estivesse im
plícita nos diálogos das comissões temáticas e na atmosfera de
oração por todos experimentada naqueles dias.