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excídio
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A presente edição é inspirada nos trabalhos desenvolvidos na América Latina através de Sereia Ca(n)tadora (São Vicente, Santos – Brasil), Dulcinéia Catadora (São Paulo – Brasil), Eloisa Cartonera (Argentina), Sarita Cartonera (Peru), YiYi-Jambo (Paraguai), Yerba Mala (Bolívia), Animita (Chile) e La Cartonera (México).
Edições Caiçaras é uma realização do Instituto Ocanoa, Projeto Canoa, Percutindo Mundos e Imaginário Coletivo de Arte.
Capa feita a mão com material reciclado.
Contato:
13-91746212
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13-34674387
excídio
Jorge Melícias
Antologia Poética
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Edições Caiçaras
© Jorge Melícias
Capa, projeto gráfico, diagramação e editoração:Márcio Barreto
Conselho Editorial:Flávio Viegas AmoreiraMarcelo Ariel
Melícias, Jorge
excídio / Jorge Melícias – São Vicente: Edições Caiçaras, 2013.61p. 1.Poesia portuguesa I. TítuloImpresso no Brasil
2013Edições Caiçaras
Rua Benedito Calixto, 139 / 71 – CentroSão Vicente - SP - 11320-070
www.edicoescaicaras.blogspot.com
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Uma criança comia amoras do próprio braço, gozando a tarde em
agulhas.
Isabel de Sá, Autismo
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Procurou de entre todos aquele que mais amava.
Fê-lo em silêncio, afagando os cães
que envelheciam aos seus pés,
enquanto as mulheres iam cerzindo nos gestos
um rosário de sal.
Onde está o meu discípulo dilecto
que não o vejo, inquiriu.
Um homem lembrou-lhe então que partira
há muitas luas atrás,
carregando aos ombros um navio em chamas.
Desde esse dia a memória
não mais deixou de rondar a casa
e o velho recolheu-se no jardim onde as estátuas
subiam às árvores com os olhos tão próximos da loucura.
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Extasiados, os animais detêm-se ao longe,
as cabeças inclinadas
sobre a profusão da terra.
Nada esperes dos homens
que ondulam como o fogo
sobre o dorso dos cavalos.
Nada esperes quando partem de noite,
a casa dispersa pelos olhos.
O teu lugar é outro,
junto à estaca,
onde o sangue dorme sob a pedra.
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A mulher borda
violentamente
o ventre contra o chão.
É este o centro do círculo da loucura
e a luz está toda nos dedos.
O crime tem a idade do mundo, diz,
e recomeça a coser os pulsos
filho a filho.
A loucura é agora uma mão
cheia de sal
voltada para dentro.
Nenhum vaso se entorna
já em seu nome
e sobre a mesa
os frutos estão fechados como pedras.
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O homem inclinou-se para trás
e a sua fronte acendeu-se
nome a nome.
Souberam então que morria
e precipitaram-se sobre a sua cabeça
bebendo-lhe a luz.
Era um homem como um átrio,
transbordante,
à boca da casa.
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É poderosa a casa
curvada sobre a minha morte.
Atravessa o sangue,
transborda para dentro.
À porta dos dedos os insectos tecem-se,
iluminam os pulsos
nas noites em que o grito é íngreme.
Há uma luz doente sobre a mesa,
um pulmão de pedra no centro.
E eu mordo a própria boca,
enquanto as mulheres enlouquecem de pé,
cuspindo os espelhos.
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a luz nos pulmões
Jorge Melícias
(2000)
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Hoje executarei os meus versos na flauta das minhas próprias
vértebras.
Vladimir Maiakovski, A Flauta Vertebrada
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Na ponta dos dedos
batem as palavras sísmicas.
E a testa abre-se profusamente
à força do nome.
Só aquele que escreve infunde o prodígio,
respira ao cimo com a luz nos pulmões,
atravessa como se florisse nos abismos.
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À beira das salinas os homens declinam.
De longe a longe vêm os filhos,
trazem a solidão como um metal aceso nas costas,
trazem um enxame de dardos.
E a memória é um pulso atravessado.
Quando partem fecham atrás de si as portas
e os homens voltam a sentar-se sobre as estacas
e brilham.
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O homem está dobrado sobre a mesa,
as palmas das mãos presas ao tampo,
a morte na nuca.
Em redor as mulheres delimitam a casa,
são os pulsos da casa,
e há um silêncio como uma pedra rasgada.
Mas hão-de apagar-se as mulheres
primeiro que o fogo.
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Hão-de crescer mulheres como flores sobre os telhados.
Sonhar-se-ão em volta, arqueadas como abóbadas.
Serão verticalmente o poema
com suas frontes altas e brancas.
E nenhum vínculo as ligará à morte
quando sobre as cabeças ondularem como tochas.
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Uma roda de enigmas
ou a cabeça fundamentalmente flectida.
O sangue aflui por anéis ao pensamento,
alimenta os teares da febre.
E há a estaca desde o fundo.
Sobe das virilhas à raiz do fôlego,
fecha o abismo pelo lado diurno dos pulsos.
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o dom circunscrito
Jorge Melícias
(2003)
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A veces veo el resplandor del monte sobre las grandes/ máquinas de
la tristeza.
António Gamoneda, Libro del Frio
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Uma voltagem matricial
alimentando as caldeiras.
A loucura dormente
sobre a velocidade do bronze.
O dínamo
como a mão unânime,
munida da culpa.
E o crime,
uma brecha no movimento.
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Trazia o cunho
sob a língua,
um crivo de sal
a arrefecer os nomes.
Era à boca da
frágua,
onde o metal
se dobra
na convulsão do verbo.
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Irrompem dos baldios,
as cabeças cerâmicas
cozendo sobre as varas.
Trazem os dedos em pousio,
uma floração de esporas.
E as crias como bolbos
plantados na loucura,
aguçados pela raiz.
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Caminho sobre as calhas do trovão,
as córneas irrompendo dos cascos.
Trago a noite encostada às têmporas
e se me curvo é junto aos tornos,
o metal encerrado nas unhas,
toda a cegueira trancada por dentro.
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Ele incorre na morte.
Apropria-se da soberba do verbo.
Sobre as mãos assenta
o estame benigno
da loucura.
A beleza como um dínamo infrene.
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incŭbus
Jorge Melícias
(2004)
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O criminoso não está muitas vezes à altura do seu acto: degrada-o e
difama-o.
Friedrich Nietzsche, Além do Bem e do Mal
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Consideremos o crime:
o modo como a navalha dele extrai
a própria mutação.
Porque todo o objecto aspira
a exceder a sua exactidão. A devir.
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Por vezes estou sobre as facas como quem intenta.
Outras é o metal que reverbera onde enlouqueço.
Sei que o crime encerra a sua própria geometria:
o golpe incide onde o erro é uma refracção.
Abro na lâmina uma veia para correr.
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Ele procede do horror.
Caminha sobre os estribos
com o remorso acirrado nos gânglios.
Por vezes está perante o discernimento
como se entendesse,
como se a única contrição
fosse a reincidência.
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A traqueia
ou como se acera desde o fundo
o movimento tubular de uma lâmina.
Ainda que o crime
parta de uma exterioridade pura.
E o golpe seja uma mera declinação.
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Um nervo arrebatado à exactidão.
Sobre ele edifico o método.
Há o propósito e o axioma implícito:
a queda não é interceptável.
Chega-se ao crime pelo exercício da evidência.
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a longa blasfémia
Jorge Melícias
(2006)
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A existência de cada um, a história, o universo, só é apreensível em
duas categorias: o conceito abstracto e a alucinação.
Gottfried Benn
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Ela roda o ferro sob a línguaEla roda o ferro sob a língua
como se o adestrasse.como se o adestrasse.
E uma menstruação metálicaE uma menstruação metálica
corre nos crisóis da boca.corre nos crisóis da boca.
De quando em quando cospeDe quando em quando cospe
a parte que cabe às crias.a parte que cabe às crias.
Até que o instinto sobrepese o sangue. Até que o instinto sobrepese o sangue.
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Vi o relâmpago disposto pelas travesVi o relâmpago disposto pelas traves
como uma plaina ao desvario sobre as córneas.como uma plaina ao desvario sobre as córneas.
Os ganchos com a sua incisivaOs ganchos com a sua incisiva
mecânica de clarões.mecânica de clarões.
Vi o cutelo. E a percussãoVi o cutelo. E a percussão
era uma cegueira decantada. era uma cegueira decantada.
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O animal sobreleva-se do que sangra.O animal sobreleva-se do que sangra.
Canta se na raiz do bafoCanta se na raiz do bafo
surdem as mós da blasfémia.surdem as mós da blasfémia.
Ele está diante do abismoEle está diante do abismo
e projecta-se inteiro na heresia.e projecta-se inteiro na heresia.
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Sobe das lentas tubagens do medo,Sobe das lentas tubagens do medo,
coloca-se no meio das cabeças laudativascoloca-se no meio das cabeças laudativas
como uma emanação coaxial.como uma emanação coaxial.
Ele é a asseidade do nome,Ele é a asseidade do nome,
o selo que reverbera de dentroo selo que reverbera de dentro
quando as cavilhas fecham as córneas.quando as cavilhas fecham as córneas.
Que onde pise entenebreça. Que onde pise entenebreça.
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O animal recolhe-se na lâmina.O animal recolhe-se na lâmina.
Não há resistência ou retracção.Não há resistência ou retracção.
Ele é agora a extremidade vivaEle é agora a extremidade viva
de uma metalurgia brutal,de uma metalurgia brutal,
a mecânica vocalização do horror.a mecânica vocalização do horror.
Sobre a coalescência do sangueSobre a coalescência do sangue
a blasfémia e a sua têmpera. a blasfémia e a sua têmpera.
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agma
Jorge Melícias
(2009)
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Em tempos de traição
as paisagens são belas.
Heiner Müller, O Anjo do Desespero
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A chacina é uma indução
à espera do seu tempo.
Sobre esse propósito
estabeleço-me unívoco.
E onde cães e homens
disputam a carniça
à lisura dos ossos
inscrevo a consolação.
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1.
Sobre a imposição dos abismos
encimarei os gárrulos.
Erguer-me-ei das jugulares
como a pura dicção do medo.
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2.
Descerei das canas
para a rasura da redenção.
No dorso o relâmpago
como uma carena blasfémica.
E um amor profundo pela impiedade.
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3.
Caminharei entre os homens
com um punção virado ao medo.
As meninges
recrudescendo nas navalhas
como um apostema.
Todo o metal sitiado
pela injunção das ínguas.
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Vi os campos inçados pela improbidade.
Os justos como plainas alucinadas
sobre a incontrição
das esquírolas.
E o desespero
era uma forma de beatitude.
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felonia
Jorge Melícias
(2012)
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O mal não é em si, é nosso.
Teologia Padristica
Um grande princípio de violência presidia aos nossos costumes.
Saint-John Perse, Anabase
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Ergo-me da refrega
e tomo posse sobre o excídio.
Eu vi a minha mão em tudo o
que se demarca da piedade. E comovi-me.
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O horror era então a sua própria liturgia.
E a carne levedava
com convicção nas lanças.
Tempo de uma piedade sem reservas,
anterior a qualquer axiologia.
E sobre a paisagem
ver
não prodigava ainda
a ritualização do remorso.
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Era depois da renúncia,
quando sobre os campos
ainda ressumava o alijamento.
A rarefacção de deus
era então uma ideia
que eu trabalhava com afinco.
Por piedade:
para que tudo se erga
do aluimento
para a queda.
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Lembro-me dos anjos da dirimição.
E de como pela fome
os homens
falqueavam a culpa
até aos ossos.
Era a guerra, asseveravam,
e à força cénica
desse horror
em movimento
chamavam deus.
Mas há muito que a penúria
desertou desta paisagem:
aqui já nem o desespero faz fé.
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A minha devoção
exige um corpo para profanar.
Que a mesma cobardia
com que apostemo a inocência
seja no meu dorso
pasto para deus.
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Jorge Melícias nasceu em 1970 na cidade de Póvoa de Varzim, Portugal.
Autor dos seguintes livros de poesia: aqueles que incendeiam os telhados - 1996/1998 – (inédito); iniciação ao remorso (2004, 2ª ed., Cosmorama); a luz nos pulmões (2000, Quasi); o dom circunscrito (2003, Quasi); incŭbus (2004, Quasi); a longa blasfémia (2006, Objecto Cardíaco); disrupção – 1998/2008 – (poesia reunida), (2008, Cosmorama) e agma (a sair em 2010).
Foi-lhe atribuída, ao longo do ano de 2002, uma bolsa pelo Ministério da Cultura e Instituto Português do Livro e das Bibliotecas da qual resultou o livro o dom circunscrito.
Poemas seus encontram-se traduzidos para línguas como o espanhol, o inglês ou o servo-croata e publicados em várias revistas, nacionais e estrangeiras, como a Inimigo Rumor, A Confraria do Vento ou a Zunái (no Brasil), a 26, studies of poetry and poetics, ou a 2nd Mind, de São Francisco. Uma recolha de três dos seus livros, sob o título Disruption, saiu nos E.U.A, pela editora Durationpress, de Los Angeles.
Traduziu, entre outros, Saint-John Perse (Elogios, 2001, Quasi), Leopoldo María Panero (Poemas do Manicómio de Mondrágon, 2001, Alma Azul), Antonio Gamoneda (Ardem as Perdas, 2004, Quasi), Lautréamont (Cartas de Isidore Ducasse, 2006, Objecto Cardíaco), Baudelaire (Conselhos aos Jovens Literatos, 2006, Objecto Cardíaco), Pedro Marqués de Armas (Cabeças, 2007, Cosmorama), Miriam Reyes (Espelho Negro, 2008, Cosmorama) e uma antologia da Poesia Cubana Contemporânea (2009, Antígona).
É um dos responsáveis pela editora Cosmorama e dá aulas de Poética e Escrita Criativa.
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EDIÇÕES CAIÇARAS
São Vicente Brasil
A Edições Caiçaras é uma pequena editora independente artesanal inspirada nas cartoneras da América Latina, principalmente na Sereia Cantadora de Santos e na Dulcinéia Catadora de São Paulo. Nasceu pela dificuldade homérica e labiríntica em publicar meus livros em uma editora convencional. É uma forma de reavivar o ideal punk do “faça você mesmo”, incentivando a auto-gestão e o uso da habilidade manual, algo que está se perdendo em nossa sociedade tecnocrata. Assim, de fato, começa a tomar forma a filosofia da Edições Caiçaras, mais do que um caráter social, nos interessa, ousar na forma e no conteúdo. Na forma é um aprimoramento das técnicas das cartoneras - os livros são feitos com capa dura, costurados com sisal e presos com detalhes em bambu, e no conteúdo, priorizamos um diálogo profundo com a Internet e com as literaturas locais do Brasil.
Márcio Barreto
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CATÁLOGO
POESIA
O Novo em Folha - Márcio Barreto
Nietszche ou do que é feito o arco dos violinos - Márcio Barreto
Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea - Marcelo Ariel (Org.)
Perdas & Danos - Madô Martins
Mundocorpo– as aerografias e outros desvios do tempo – Márcio Barreto
Peixe-palavra (poesias caiçaras) – Domingos Santos
DRAMATURGIA
Atro Coração - Márcio Barreto
Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes – Márcio Barreto
ENSAIO
Obras Cadáveres - Arthur Bispo do Rosário, Estamira, Jardelina, Violeta e o Deus do Reino das Coisas Inúteis - Ademir Demarchi
Desaforismos (aforismos) - Flávio Viegas Amoreira
Meu Namoro com o Cinema – André Azenha
ROMANCE
Teatrofantasma: O Doutor Imponderável contra o onirismo groove – Marcelo Ariel
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O IMAGINÁRIO COLETIVO
O Imaginário Coletivo de Arte agrega artistas do litoral paulista em suas diferentes linguagens e tem como proposta fortalecer e propagar a “Arte Contemporânea Caiçara”, valorizando nossas raízes e misturando-as à contemporaneidade. Formado em fevereiro de 2011, é resultado de anos de pesquisas desenvolvidas em diferentes áreas que culminaram na busca de uma nova sintaxe através da reflexão sobre os processos criativos na Arte Contemporânea Caiçara.
Seus integrantes convergem da dança, eutonia, teatro, circo, música, literatura, história, jornalismo, filosofia e artes visuais. Estão diretamente ligados à experimentação através de núcleos de pesquisas desenvolvidos no grupo Percutindo Mundos – música contemporânea caiçara (2008), Núcleo de Pesquisa do Movimento - dança contemporânea (2011), no Espaço de Consciência Corporal Célia Faustino - eutonia (2003), no Projeto Canoa e Instituto Ocanoa – pesquisa da Cultura Caiçara (2007).
Em seu repertório constam “Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes” (teatro), “Atro Coração – uma livre adaptação sobre o amor” (teatro), “Homo Ludens – fluxos, lugares e imprevisibilidades” (dança contemporânea), “Percutindo Mundos – universo em Gentileza” (música) e “Percutindo o samba – história e poesia” (música). Ao longo do tempo realizou encontros, oficinas e palestras, tais como o "Sarau Caiçara" - Pinacoteca Benedito Calixto - Santos /SP, "Mostra de Arte Contemporânea Caiçara" - Casa da Frontaria Azulejada - Santos/SP, "Itinerâncias - Encontros Caiçaras" - Casa da Cultura de Paraty - Paraty /RJ, "Sarau Filosófico" - SESC Santos - Santos /SP, "Virada Caiçara" - São Vicente /SP e “Vitrine Literária” – SESC Santos – Santos /SP.
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Seu trabalho está presente em universidades, escolas públicas e instituições de cultura através de cursos, apresentações e palestras, além de inserir sua proposta artística em espaços públicos.
www.edicoescaicaras.blogspot.com
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www.youtube.com/projetocanoa
www.percutindomundos.blogspot.com
www.myspace.com/percutindomundos
excídio foi impresso sobre papel reciclado 75g/m² (miolo). A capa foi composta a partir de papelão e sacolas de papel doados pelo Espaço de
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Consciência Corporal Célia Faustino.
www.espacodeconscienciacorporalceliafaustino.blogspot.com