EXPRESSÕES DA BRASILIDADE NA PINTURA DE CANDIDO PORTINARI:
A VALORIZAÇÃO DO TRABALHADOR PRETO E MESTIÇO (1930-1945)
Ana Carolina Machado Arêdes
Doutoranda em História – UFES/Bolsista CAPES
RESUMO: Este trabalho pretende tratar das possíveis interpretações da brasilidade
expressas na pintura de Candido Portinari nas décadas de 1930 e 1940. Com uma obra
caracterizada pelo teor nacionalista e social, o pintor aparecia naquele momento como o
artista ideal à corrente modernista e ao projeto ideológico do Estado Novo. A temática
predominante em suas produções neste período são as que exaltam os trabalhadores pretos
e mestiços, representados com corpos monumentais e escultóricos que parecem
extrapolar os limites do quadro a óleo. Os pés e as mãos destas figuras são agigantados e
poderosos, fincados ao solo, em uma alusão à íntima conexão destes lavradores com a
terra por eles cultivada. Em um momento em que muitos ainda defendiam políticas
eugenistas e atribuíam a causa dos males e do atraso do país à mestiçagem racial, Portinari
representava o trabalhador preto e o mestiço como os representantes do verdadeiro e mais
genuíno caráter brasileiro e nesta característica reside a grande contribuição social da sua
produção artística. Como fontes documentais desta pesquisa são utilizadas as
correspondências pessoais e as obras de arte do pintor.
PALAVRAS-CHAVE: Portinari, Arte, Brasilidade.
O presente trabalho é um desdobramento da pesquisa de doutoramento que
objetiva entender a inserção social e artística do pintor Candido Portinari. Este artista
obteve reconhecimento e destaque no cenário nacional, especialmente nas décadas de
1930 e 1940, período em que o Brasil era governado de maneira autoritária pelo
Presidente Getúlio Vargas.
Portinari nasceu em 1903, em Brodósqui, uma pequena cidade do interior paulista
que surgiu às margens de uma ferrovia e caracterizava-se pelas extensas plantações de
café em sua terra roxa. O artista foi o segundo dos doze filhos de um casal de imigrantes
italianos que trabalhavam nos cafezais daquele lugarejo. Sua infância pobre lhe permitiu
que estudasse somente até o terceiro ano primário. Este período de sua vida lhe marcou
tão profundamente que se refletiu em muitas de suas produções, nas quais o pintor
notadamente expressou memórias afetivas relacionadas aos seus tempos de criança.
Neste estudo, buscamos entender como as pinturas de Portinari foram
reconhecidas pelo movimento modernista brasileiro e pelo Estado, procurando
demonstrar como foi a trajetória artística e o posicionamento social do pintor neste
contexto. As fontes documentais deste trabalho são as correspondências pessoais do
pintor e suas obras pictóricas.
No que fiz respeito às cartas, buscamos entendê-las como um espaço de
“sociabilidade intelectual”, seguindo a esteira de pensamento do historiador francês
Michel Trebitsch (1992). As missivas trocadas entre intelectuais e artistas neste período
são capazes de nos revelar os bastidores do agitado e concorrido meio cultural, e, eram
utilizadas como uma maneira de construir laços de amizade e alçar posições sociais mais
significativas. Através destas redes epistolares, a elite letrada conseguia trocar ideias e
favores, nutrindo importantes vínculos. Dessa forma, estas epistolas são consideradas
como meios de sociabilidade.
As pinturas, por sua vez, são aqui interpretadas como fontes. Muitos estudos ainda
consideram este tipo de imagem como meras ilustrações de um acontecimento que
desejam relatar. Contudo, as obras de arte constituem significativas fontes documentais
visto que, se analisadas seguindo os rigores metodológicos, são capazes de nos revelar
muitos aspectos acerca do contexto e das pretensões do artista que a produziu. O
historiador da arte Michel Baxandall (2000) propõe como método de análise a
aproximação da obra da conjuntura em que ela foi produzida, na tentativa de compreender
quais foram as circunstâncias que motivaram a sua confecção e as nuances envolvidas no
processo criativo do artista. Desse modo, podemos fazer uma inferência das intenções
que o pintor buscou expressar em determinada composição.
Portinari foi um artista de formação acadêmica que obteve reconhecimento na
década de 1930, sendo considerado como um pintor moderno capaz de expressar a
brasilidade em suas obras. Sendo assim, foi notado pelo movimento modernista brasileiro
e eleito como um dos seus maiores representantes nesta época. Além disso, suas
composições foram reconhecidas pelo Estado, o que lhe rendeu muitas encomendas e uma
intensa participação nos quadros de um governo autoritário e controverso.
O Estado gerido por Vargas reuniu em seu entorno -, seja nas fileiras burocráticas,
ocupando cargos públicos, seja na confecção de trabalhos sob a encomenda do poder
oficial, - inúmeros artistas e intelectuais, das mais variadas orientações ideológicas.
Portinari foi um dos pintores do período que mais recebeu convites para desenvolver
obras sob o mecenato estatal, uma vez que sua pintura era notada por conter expressões
genuínas de brasilidade, promovendo, portanto, a exaltação da nacionalidade.
Nesta época, o movimento modernista brasileiro alcançava maior notoriedade e
espaço de atuação artística e cultural no Brasil, uma que estavam em voga as discussões
acerca da necessidade de renovação cultural. Intelectuais e artistas adeptos desta corrente
defendiam a valorização das raízes nacionais em suas produções. Desta forma,
acreditavam que poderiam contribuir para despertar o sentimento de pertencimento à
nação, auxiliando o país em seu processo de fortalecimento e unificação rumo ao
progresso. Esta ideia era bastante difundida neste período, tanto pela elite letrada, que se
via como a responsável por guiar as massas neste feito, quanto pelo governo, que
vislumbrava nesta conjuntura uma oportunidade de reforçar a sua ideologia e o seu projeto
de poder.
A noção de inauguração de uma “nova” fase, com um “novo” governo foi muito
reforçada neste momento, assim como a questão de que era preciso partir em busca da
definição de uma identidade nacional. Desse modo, construiu-se um mito na
historiografia que reforça este sentido de inauguração e renovação, muitas vezes
reproduzindo os discursos que foram proferidos e escritos naquele contexto, sem
problematizá-los.
Nesta pesquisa objetivamos compreender como Portinari participou desta
conjuntura, uma vez que suas pinturas se destacaram por conter traços de brasilidade e
pelo forte apelo social. Com formação acadêmica, o artista nunca se desprendeu
completamente do tradicional em pintura, contudo, buscou imprimir em suas obras muito
mais do que um estilo, mas uma imagística própria. (FABRIS, 1990) Esta imagística era
permeada por temáticas que valorizavam e exaltavam a nacionalidade. Neste sentido, o
pintor foi considerado um artista moderno necessário àquele momento, o que lhe garantiu
o reconhecimento por muitos adeptos do movimento modernista e lhe gerou inúmeras
encomendas por parte do governo varguista.
Vale ressaltar que as primeiras expressões do modernismo ocorreram ainda na
década de 1910, com as exposições individuas de pintura de Lasar Segall (1913) e Anita
Malfatti (1917), ambas em São Paulo. A exposição de Malfatti enfrentou muita resistência
e críticas acirradas dos setores mais conservadores da sociedade, com destaque para a
crítica “Paranoia ou Mistificação”, escrita por Monteiro Lobato, que neste período
também atuava como crítico de arte.
Na década seguinte, mais precisamente no ano de 1922, um grupo de intelectuais
e artistas organizou a Semana de Arte Moderna de São Paulo, que tinha como objetivo
promover a estética modernista.
A Semana de 1922 foi incentivada e patrocinada por setores da elite econômica
paulistana, que objetivavam chamar a atenção para a pujança e o desenvolvimento
cultural do estado em relação à capital federal, o Rio de Janeiro. Contudo, boa parte da
historiografia contesta o caráter inovador deste evento, visto que foi organizado e contou
com a participação de uma classe privilegiada intelectualmente e financeiramente, que
não teria apresentado produções culturais que contribuíram efetivamente para a
atualização do código estético. Entretanto, a Semana de Arte Moderna certamente
colaborou para fomentar as discussões em torno da necessidade de renovação artística e
cultural.
Enquanto ocorria a Semana de Arte de 1922, Candido Portinari estava matriculado
como aluno livre na Escola Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro - instituição que
ministrava o ensino formal de arquitetura e artes plásticas e era reconhecida pelo
tradicionalismo acadêmico. A modalidade de aluno livre era ofertada a alunos que não
possuíam a formação educacional necessária para ingressar no ensino superior. Os
exames de admissão eram muito rigorosos e exigiam um conhecimento plástico
satisfatório dos candidatos. Nesta Escola, os gêneros de predileção eram os retratos e as
pinturas de paisagem e o ensino era baseado nas técnicas da pintura clássica, portanto,
envolto em questões de proporção e de estruturação geométrica dos quadros.
Portinari, de família humilde, teve dificuldades de se manter como estudante de
pintura na capital federal. O jovem saiu de Brodósqui rumo ao Rio de Janeiro em 1919 e
nos primeiros anos sobreviveu como pintor de letreiros e monogramas (BALBI, 2003,
p.23). Matriculado na Escola Nacional de Belas Artes, passou a conviver com importantes
nomes da elite, o que lhe possibilitou um maior entrosamento social e a oportunidade de
realizar muitos retratos encomendados por estas personalidades. A confecção dos retratos
desta elite lhe garantiria não somente o sustento pessoal, mas a chance de praticar um dos
gêneros de predileção da instituição em que estudava e, dessa forma, passar a disputar
prêmios nos concorridos Salões de Arte promovidos pela Escola.
Sergio Miceli (1996) analisou a produção retratística de Portinari neste período.
Para este sociólogo, os retratos documentaram e estimularam a necessidade das elites de
investir em representações artísticas com o intuito de construir uma determinada figura
social. Portinari, por sua vez, canalizava esta demanda e a transmitia no feitio destas
“imagens negociadas”. Esta atividade contribuiu sobremaneira para o reconhecimento do
pintor no cenário artístico carioca naquele momento. Matriculado na Escola Nacional de
Belas Artes, aperfeiçoando as técnicas de sua pintura e familiarizando-se com os
instrumentos do ofício, com as linguagens e modismos da época, o artista estava, portanto,
disputando um lugar entre os alunos em condições de receber prêmios.
No Salão de 1928, Portinari alcançou o seu objetivo e conquistou a maior
premiação oferecida a um aluno, a de viagem estudos a Europa, com o retrato do poeta e
amigo Olegário Mariano (1928). Olegário Mariano foi representado vestindo o fardão da
Academia Brasileira de Letras, para a qual havia sido nomeado. Além disso, era irmão de
José Mariano Filho, médico, mecenas e historiador de arte que havia sido diretor da
Escola Nacional de Belas Artes. Portinari havia, portanto, representado uma figura
institucional capaz de unir dois polos do oficialismo daquela época (MICELI, 1996).
O pintor escolheu a França como destino, mas também visitou a Itália, a Espanha
e a Inglaterra. A viagem à Europa possibilitou ao jovem artista o contato com a arte do
passado e com o que foi produzido pelos movimentos de vanguarda, em um momento em
que já as discussões em torno do “retorno da ordem” já agitavam os debates artísticos e
culturais naquele continente. A defesa do “retorno à ordem” pregava a necessidade de
romper com o radicalismo dos movimentos de vanguarda e de recuperar a tradição realista
e os valores culturais nacionais nas produções artísticas.
Tadeu Chiarelli (2007) sustenta que é válido pensarmos na estética modernista
brasileira nos termos do “retorno à ordem”, visto que certos movimentos das vanguardas
europeias, tais como o cubismo, não tiveram representantes no Brasil. Para este autor, o
literato Mário de Andrade, crítico de arte e expoente do movimento modernista brasileiro,
possuía um olhar artístico muito mais voltado ao preceitos apregoados pela corrente do
“retorno à ordem”. Dessa maneira, também deixaríamos de encarar a produção artística
nacional, com obras de pintores como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Portinari, em
um descompasso cronológico em relação a Europa. Se considerarmos esses artistas
alinhados com a questão do “retorno à ordem”, podemos adequar suas obras a um
contexto internacional muito mais amplo e em uma maior sintonia temporal.
O modernismo de Portinari, “veio depois”. (CHIARELLI, 2012) Enquanto
estourava o movimento moderno em São Paulo, o pintor estava ligado à tradicional e
acadêmica Escola Nacional de Belas Artes. Não participou do primeiro momento
modernista, mas do segundo – do Salão de 1931. Além disso, quando foi estudar na
Europa, os movimentos de vanguarda já eram passado e discutia-se o “retorno à ordem”.
Dessa forma, a trajetória do artista foi moldada em torno dessas circunstâncias.
Na Europa, Portinari contrariou o hábito dos demais bolsistas da Escola Nacional
de Belas Artes, pois apresentou uma baixíssima produção artística e não se matriculou
em nenhuma academia artística parisiense. Esteve às vias de perder o incentivo financeiro
que lhe foi concedido. No entanto, o jovem pintor justificava esta falta, afirmando que
estava no afã de visitar museus e galerias, desfrutando da possibilidade de conhecer de
perto as obras dos grandes mestres do passado e de seu tempo, limitando-se a observá-
los.
Naquele continente, o pintor passou a repensar a sua trajetória artística e a sentir
a necessidade de transformar a temática e a estética de sua arte. Mostrou-se desejoso de
pintar a gente da sua cidadezinha natal, as pessoas simples e trabalhadoras de Brodósqui.
Além disso, relatou em cartas o desconforto que sentia por ter moldado o seu estilo de
acordo com o que lhe era exigido na Escola Nacional de Belas Artes, tendo feito
concessões que lhe desviaram do caminho que ele pretendia trilhar. Em carta enviada a
Rosalita Mendes, Portinari expressou estas questões:
[...] Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo Brodósqui
como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada... Vou pintar o
Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa e com aquela cor.
Quando comecei a pintar senti que devia fazer a minha gente e cheguei
a fazer o “baile na roça”. Depois desviaram-me e comecei a tatear e a
pintar tudo de cor – fiz um montão de retratos. Eu nunca tinha vontade
de trabalhar e toda gente me chamava preguiçoso. Eu não tinha vontade
de pintar porque me botaram dentro de uma sala cheia de tapetes, com
gente vestida à última moda... [...] Uso sapatos de verniz, calça larga e
colarinho baixo e discuto Wilde, mas no fundo eu ando vestido como o
Palaninho e não compreendo Wilde. [...]1
Nesta missiva, Portinari expõe as suas pretensões artísticas. O pintor afirmou que
em Paris, pensou em pintar o Palaninho, um típico cidadão de Brodósqui, sujeito simples,
mal vestido, figura capaz de expressar o jeito e os hábitos dos demais cidadãos de
Brodósqui. Sendo assim, o artista demonstrou seu desejo de pintar temáticas que
aludissem a sua terra natal.
Quando retornou ao Brasil, em 1931, logo participou do XXXVIII Salão Nacional
de Belas Artes, que ficou conhecido como Salão de 1931, Salão Lúcio Costa ou Salão
Revolucionário. O arquiteto Lúcio Costa, que havia sido nomeado diretor da Escola
Nacional de Belas Artes, decidiu organizar uma edição do Salão sem júri de seleção dos
trabalhos a serem expostos. Dessa forma, foram apresentadas obras das mais variadas
orientações artísticas. Todavia, em termos de inovação estética, este Salão não revelou
muitas novidades. Portinari, por exemplo, expôs retratos, gênero com o qual a instituição
estava habituada.
Foi nesta ocasião que o pintor conheceu Mário de Andrade. Um dos quadros
apresentados por Portinari - O Violinista (1931), que era um retrato do músico Oscar
Borgerth, chamou a atenção do literato modernista que pediu a Manuel Bandeira para ser
apresentado ao artista. A partir deste encontro surgiu uma amizade sincera e duradoura
que marcou profundamente a vida dos dois. Mário de Andrade foi um dos missivistas
mais assíduos do pintor. Da relação entre o artista e o literato, ambos colhiam benefícios
e obrigações. Portinari oferecia e negociava seus quadros para a aquisição do amigo, ao
passo que Mário contribuía para sua carreira o aconselhando e escrevendo muitas críticas
positivas sobre ele na imprensa.
Vale ressaltar que nesta época, os críticos de arte desempenhavam um papel
fundamental para a projeção e divulgação de um artista. As críticas veiculadas na
imprensa eram um termômetro sobre o que valia a pena ou não ser adquirido em arte.
1 Portinari tentou concorrer ao Salão de Belas Artes de 1924 com o quadro Baile na Roça (1924), uma
composição que retrata um baile de camponeses, provavelmente em Brodósqui. Contudo, a obra foi
recusada. A Escola Nacional de Belas Artes tinha predileção por pinturas de paisagens e retratos, desse
modo, o artista moldou-se ao gosto da instituição a fim de garantir o prêmio de viagem à Europa. Carta de
Candido Portinari a Rosalita Mendes, de 12 de julho de 1930. Paris, FRA; Rio de Janeiro, RJ.
Sendo assim, estes profissionais poderiam alavancar ou arruinar a carreira de um pintor.
Mário de Andrade, influente crítico e intelectual modernista, bem relacionado e
respeitado socialmente, foi uma figura muito importante na consagração de Portinari
como artista no cenário nacional.
Annateresa Fabris (1995) analisou as correspondências trocadas entre Mário e
Portinari. Para esta historiadora, Mário de Andrade ostentava um imenso orgulho por ter
contribuído para impulsionar a carreira do artista. Portinari era para o literato, um pintor
ideal, representante do que ele acreditava e defendia ser necessário em arte. Com uma
formação rigorosamente acadêmica, o artista apresentava uma produção estética com
traços modernistas mais realistas e conservadores, que não incorporava os elementos mais
radicais das vanguardas europeias. Além disso, a temática das obras de Portinari, com
marcante invocação nacional, agradava ao literato e contribuía para reforçar o projeto
cultural e artístico que ele desejava ver consolidado no Brasil.
No início da década de 1930, Portinari buscou desenvolver uma temática própria,
muito mais do que procurou um estilo estético, aventurando-se em experimentações
artísticas e testando materiais e técnicas que lhe satisfizessem enquanto pintor. Neste
período surgiram composições que faziam uma clara alusão a sua terra natal, tais como
Circo (1933) e Jogo de Futebol em Brodósqui (1933). Nestas pinturas a superfície
marrom dominante salta aos olhos do observador. Para o crítico Mário Pedrosa (1981),
a cor marrom faz referência aos cafezais de terra roxa da pequena cidadezinha paulista.
Nestas obras, o teor social não está presente, visto que elas expressam muito mais um
apelo afetivo e de memória.
Figura 1: Candido Portinari, Circo, 1933.
Figura 2: Candido Portinari, Jogo de Futebol em Brodósqui, 1933.
Pedrosa (1981) definiu as pinturas deste período como pertencentes à fase marrom
ou brodósquiana. As memórias em relação à infância em Brodósqui permearam toda a
trajetória artística de Portinari e continuaram a servir de temática para muitas outras
composições.
Todavia, a imagística da obra portinariana mais marcante deste período está
relacionada à representação do trabalhador preto e mestiço. Nas composições Lavrador
de Café (1934) e Mestiço (1934), Portinari agigantou a figura dos trabalhadores
representados e a sensação é de que eles quase extrapolam os limites do quadro a óleo. O
fundo destas composições possui um aspecto mais chapado, o que rompe com a
hierarquização conferida pela perspectiva minunciosamente explorada pela pintura
clássica.
Figura 3: Candido Portinari, Lavrador de Café, 1934.
Figura 4: Candido Portinari, Mestiço, 1934.
O preto e o mestiço são pintados como seres monumentais, com mãos e pés
disformes e poderosos, tendo as unhas enegrecidas pela lida no campo. Para Portinari,
estes trabalhadores seriam os verdadeiros responsáveis pelo desenvolvimento da nação e
mereciam ser exaltados.
A temática social transborda nestas telas, tendo em vista que nesta época ainda
eram discutidas certas políticas eugenistas, que pregavam o processo de
embranquecimento gradual da população através do estímulo à imigração de europeus.
Enquanto muitos artistas e intelectuais atribuíam a causa do atraso e das mazelas do país
à mestiçagem racial, Portinari a tratava como o traço definidor do verdadeiro caráter
nacional.
Em 1935, com a tela Café (1935), Portinari conquistou uma medalha de honra no
Instituto Carnegie, nos Estados Unidos, obtendo imenso destaque nacional e
internacional. Esta pintura retrata uma colheita de café realizada por trabalhadores pretos,
descalços, cuja cor dos corpos se confunde com a cor da terra do cafezal, o que sugere
uma íntima conexão entre este homem e a terra por ele cultivada. Estes lavradores pretos
foram representados vestindo roupas brancas, feitas de panos de saco, e suas feições não
foram individualizadas. Estão de cabeça baixa ou com os rostos cobertos por chapéus ou
pelas sacas de café que carregam, o que demonstra a denúncia de que estes pretos e
mestiços eram vistos como uma massa uniforme e não valorizados como sujeitos.
Figura 5: Candido Portinari, Café, 1935.
A partir do sucesso desta tela, o pintor foi convidado pelo Ministro Gustavo
Capanema, a desenvolver inúmeros trabalhos sob a encomenda da oficialidade, dentre
estes, destacam-se os murais dos ciclos econômicos, pintados em afresco para a decoração
das paredes do novo edifício sede do Ministério da Educação e Saúde, atual Palácio
Capanema. Nesta composição, Portinari rompeu com a interpretação positivista da
história, que valoriza os grandes homens e os grandes acontecimentos e, mais uma vez,
enalteceu o trabalhador, especialmente o trabalhador preto, como grande responsável pelo
progresso e desenvolvimento nacional.
O tema escolhido para o murais do Ministério da Educação e Saúde foi
determinado por Capanema, que demonstrou a vontade de que Portinari se baseasse em
uma palestra ministrada pelo intelectual Afonso Arinos no Uruguai. Arinos teria proposto
pensarmos a História do Brasil seguindo uma perspectiva econômica, na qual sugeriu
como ciclos predominantes o pau-brasil, o açúcar, o gado, a mineração, o café e a
indústria. E, como ciclos ancilares, o cacau, a borracha, o mate, o algodão, a carnaúba e
o fumo. Esta interpretação histórica chamou a atenção do Ministro Capanema, que no
momento da execução dos citados murais, pediu a Arinos que recomendasse Portinari
como estes deveriam ser confeccionados.
Nestes murais Portinari abusou do gigantismo dos corpos das figuras
representadas, contudo, adotou um caráter mais realista para a composição, sem explorar
a deformidade dos pés e das mãos dos trabalhadores. Além dos pretos e mestiços, os
índios também aparecem nestas obras sendo enaltecidos enquanto raça formadora e
trabalhadora da nação.
Vale ressaltar que a política ideológica do Estado Novo adotava um discurso que
incentivava o trabalho. O governo autoritário afirmava que estava empreendendo uma
democracia social na qual ser trabalhador era ser cidadão (GOMES, 1994). Neste
contexto, as obras de Portinari que exploravam a temática do trabalho encaixavam-se
neste propósito vislumbrado pelo poder oficial. Sendo assim, o pintor foi um dos que mais
recebeu encomendas da burocracia na época.
Os trabalhadores pretos e mestiços deste período demonstram o engajamento
social do pintor e a necessidade que ele sentia de expressar em suas composições a
valorização desta mão-de-obra no Brasil. Mesmo ligado ao mecenato estatal, o artista
buscava denunciar através da sua pintura que mesmo com o fim da escravidão, ainda eram
os pretos e mestiços os trabalhadores explorados e subjugados pela elite branca.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALBI, Marília. Portinari – o pintor do Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
Coleção Paulicéia.
BAXANDALL, Michael. Padrões de Intenção – A explicação histórica dos quadros. São
Paulo: Cia das Letras, 2000.
CHIARELLI, Tadeu. Pintura não é só beleza: a crítica de arte de Mário de Andrade.
Florianópolis/SC: Letras Contemporâneas, 2007.
_________________. O Modernismo que veio depois. Arte no Brasil – primeira metade
do século XX. São Paulo: Alameda, 2012.
FABRIS, Annateresa. (organização, introdução e notas) Portinari, amico mio. Cartas de
Mário de Andrade a Candido Portinari. Campinas: Mercado das Letras – Autores
Associados/Projeto Portinari, 1995. (Coleção Arte: Ensaios e Documentos).
_________________. Portinari, pintor social. São Paulo: Perspectiva, Editora da USP,
1990.
GOMES, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 1994.
MICELI, Sergio. Imagens Negociadas: retratos da elite brasileira (1920-1940). São
Paulo: Cia das Letras, 1996.
TREBITSCH, Michel. Correspondances d’intellectuels: les cas de letters d’Henri
Lefebvre à Norbert Guterman (1935-1947). Les Cahiers de l’IHTP, nº20, mars 1992.
Referência das Imagens:
Figura 1: Candido Portinari, Circo, 1933. Pintura a óleo sobre tela. Dimensões: 60 x 73
cm. Coleção Particular. Brodósqui, São Paulo, Brasil. Imagem cedido pelo Projeto
Portinari.
Figura 2: Candido Portinari, Jogo de Futebol em Brodósqui, 1933. Pintura a óleo sobre
tela. Dimensões: 49.5 x 124 cm. Coleção: Banco Bradesco. Brodósqui, São Paulo, Brasil.
Imagem cedida pelo Projeto Portinari.
Figura 3: Candido Portinari, Lavrador de Café, 1934. Pintura a óleo sobre tela.
Dimensões: 100 x 81 cm. Coleção: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand,
MASP. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Imagem cedida pelo Projeto Portinari.
Figura 4: Candido Portinari, Mestiço, 1934. Pintura a óleo sobre tela. Dimensões: 81 x
65.5 cm. Coleção: Pinacoteca do Estado de São Paulo. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
Brasil. Imagem cedida pelo Projeto Portinari.
Figura 5: Candido Portinari, Café, 1935. Pintura a óleo sobre tela. Dimensões: 130 x
195 cm. Coleção: Museu Nacional de Belas Artes, MnBA. Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil. Imagem cedida pelo Projeto Portinari.