FBIO GUSMAN
A PRISO PREVENTIVA DE OFCIO: ANLISE CRTICA
LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL ACUSATRIO
Dissertao de Mestrado
Orientador: Professor Titular Dr. Antonio Magalhes Gomes Filho
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
So Paulo-SP
2015
2
FBIO GUSMAN
A PRISO PREVENTIVA DE OFCIO: ANLISE CRTICA
LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL ACUSATRIO
Dissertao apresentada Banca Examinadora do
Programa de Ps-Graduao em Direito, da Faculdade
de Direito da Universidade de So Paulo, como
exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em
Direito, na rea de concentrao Direito Processual sob
orientao do Professor Titualr Dr. Antonio Magalhes
Gomes Filho.
Verso corrigida em 8 de junho de 2015.
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
So Paulo-SP
2015
3
Para minha querida me.
Para minha amada esposa.
Para meu saudoso av.
4
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho no poderia ser realizado sem a concorrncia de
algumas pessoas especiais.
Minha querida esposa Carolina Oliboni Bastos e meu grande amigo
Fbio Cordeiro Villar deram-me a oportunidade de ler os rascunhos e opinarem sobre o
contedo de forma melhorar sensivelmente o texto.
Agradeo Luiza Cristina Fonseca Frischeisen que me introduziu ao
mundo do processo penal e incentivou minha matrcula do Centro de Estudios de Justicia
de las Amricas. Da mesma forma, agradeo Mnica Nicida Garcia e ao Pedro Barbosa
Pereira Neto, pela oportunidade que me concederam de continuar aprendendo junto a esta
magnfica instituio que o Ministrio Pblico Federal.
Foram de grande valia as consultas que me concedeu meu amigo Paulo
Thadeu Gomes da Silva, cujo acervo intelectual (tanto em sua mente quanto em sua
biblioteca) parece inesgotvel. Tambm auxiliou a encaminhar as ideias iniciais da
dissertao a professora de processo penal Paula Bajer Martins da Costa.
Ao Professor Aury Lopes Jr. agradeo pela aula que me concedeu na
discusso sobre meu tema em seu escritrio de Porto Alegre. Suas observaes foram de
imensa importncia para a estrutura da dissertao.
Agradeo ao Professor Antonio Magalhes Gomes Filho pela valiosa
oportunidade de poder elaborar uma dissertao de mestrado sob sua orientao. Foram de
grande valia, tambm, as observaes do Professor Associado Gustavo Henrique Righi
Ivahy Badar e da Professora Doutora Marta Cristina Cury Saad Gimenes por ocasio da
banca de qualificao do trabalho.
Sem a formao que tive no Centro de Estudios de Justicia de las
Americas este trabalho nunca poderia ser levado a cabo. Dos meus companheiros de curso
recebi aportes importantes. Agradeo, a Javier Gmez Cervantes, Juiz de Impugnao em
5
Guanajuato, Hugo Antolin Almirn, Promotor e Professor da Universidad de Crdoba e
Roberto Adrin Barrios, Juiz na Provincia de Chubut. Tambm ofereceram grande
contribuio meus amigos Guillermo Nicora, promotor de Mar del Plata, Eduardo
Gallardo, juiz em Santiago, Javier Ignacio Reyes Lopes, juiz em Valencia e a pesquisadora
Letcia Lorenzo.
Agradeo aos meus amigos de trabalho no Ministrio Pblico Federal
que tornam prazeroso trabalhar todos os dias.
Obrigado a todos.
6
RESUMO
GUSMAN, Fbio. A priso preventiva de ofcio: anlise crtica luz do sistema
constitucional acusatrio. 2015. Dissertao de Mestrado. Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo.
O presente trabalho tem como objetivo a anlise da validade das normas
infraconstitucionais que possibilitam ao julgador penal a decretao da priso preventiva
sem o requerimento do Ministrio Pblico ou do querelante. O maior ou menor grau de
atribuies de ofcio ao juiz est diretamente ligado ao sistema processual penal vigente
em cada jurisdio. Desta forma, importa definir os sistemas processuais penais
acusatrio, inquisitrio e misto, os princpios que os regem, e identificar qual deles foi o
escolhido pela Constituio Federal de 1988 e pelas normas supralegais. A partir da
concluso de que a Constituio Federal institui o princpio acusatrio que condiciona
todas as normas infraconstitucionais, identificamos as normas que no encontram sua
fundamentao neste princpio e, por isso, destoam do sistema. A norma que d ao juiz o
poder de decretar de ofcio a priso preventiva uma delas. O trabalho, ento, analisa
criticamente alguns dos argumentos que comumente so utilizados para fundamentar a
posio da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma, concluindo que as bases
que sustentam o poder de ofcio do juiz o ideal inquisitrio de um sistema de justia que
implementa polticas pblicas em que a imparcialidade do juiz um atributo de somenos
importncia. Por fim, colacionam-se algumas notas de direito comparado a respeito de
como a questo tratada em diferentes jurisdies. O trabalho conclui que o poder de
decretar a priso preventiva de ofcio est em contradio com os valores processuais
acusatrios tpicos dos Estados Democrticos de Direito. Indica-se uma possvel soluo
para a modernizao do mtodo de tomada de deciso de medidas cautelares consistente
nas audincias prvias que oferecem um ambiente mais propcio ao exerccio das garantias
processuais.
Palavras-chave: Processo penal, sistemas processuais penais, sistema inquisitrio, sistema
acusatrio, priso preventiva, poderes de ofcio do juiz.
7
ABSTRACT
This study aims to analyze the validity of the infra-constitutional norms that allow the
criminal judge to issue a remand without the request of the prosecutor or the plaintiff. The
greater or lesser degree of power assigned to the judge is directly connected to the current
actual justice system in each jurisdiction. Thus, it is relevant to define the criminal
procedural systems accusatorial, inquisitorial and mixed, their governing principles, and
identify which one was chosen by the Federal Constitution of 1988 and the rules that are
higher in hierarchy. From the assumption that the Brazilian Constitution establishes the
adversarial principle which determines norms in our law systems, the study identifies rules
that do not find their justification in this principle and, therefore, diverge from the system.
The rule that gives the judge the power to issue a preventive detention order is one of them.
The work then critically examines some of the arguments that are commonly used to
support the position of the constitutionality or unconstitutionality of this rule, concluding
that the basis supporting the judge's power is the inquisitorial ideal of a policy
implementing justice system in which the judge's impartiality is a minor attribute. Finally,
some notes of comparative law are collected in regard to how the issue is assessed in
different jurisdictions. The paper concludes that the power to issue the order is contrary to
the typical values of the accusatory procedural law of Democratic States. At the end, the
study indicates a possible solution to the modernization of the decision-making method for
precautionary measures consistent in previous hearings that offer an environment more
conducive to the exercise of procedural safeguards.
Key words: Criminal procedure, criminal procedure systems, inquisitorial system,
accusatorial system, remand, preventive detention order, ex officio powers of the judge.
8
SUMRIO
INTRODUO
1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
1.1. Modelo acusatrio
1.1.1. Delieneamento histrico
1.1.2. Caractersticas definidoras do sistema acusatrio
1.1.2.1. A imparcialidade do juiz
1.1.2.2. A relevncia do contraditrio
1.1.2.3. Correlao entre acusao e deciso
1.1.2.4. Priso preventiva como medida cautelar
1.1.2.5. Oralidade e simplificao dos ritos processuais
1.1.3. O sistema acusatrio puro e o sistema do common Law
1.2. Modelo inquisitrio
1.2.1. Delineamento histrico
1.2.2. O papel do juiz no sistema inquisitrio
1.2.3. A importncia da custdia cautelar processual e o processo como incio de aplicao
da pena
1.2.4. A noo de expediente escrito, burocrtico, hierarquizado e secreto como
caractaersticas do sistema inquisitrio
1.3. O modelo misto
9
2. A PRISO PREVENTIVA DE OFCIO NO BRASIL
2.1. Breve delineamento histrico do processo penal brasileiro e da priso preventiva
2.2. Plano da Constituio Federal de 1988
2.3. Plano atual das normas internacionais
2.4. Sentido das reformas das leis processuais penais: o reflexo do mandamento
constitucional acusatrio no plano infraconstitucional
3. ANLISE DOS ARGUMENTOS SOBRE A VALIDADE OU INVALIDADE DA
DECRETAO DA PRISO PREVENTIVA DE OFCIO
3.1. Avano e retrocesso
3.2. Argumento do interesse pblico e sua refutao
3.2.1. O impulso oficial
3.2.2. Poder geral de cautela do juiz penal
3.2.3. O princpio da obrigatoriedade
3.2.4. O requerimento implcito
3.3. A representao da polcia como uma provocao suficiente da jurisdio
3.4. A separao entre as fases inquisitria e acusatria
3.5. A inrcia da jurisdio
3.6. O reflexo da priso preventiva decretada de ofcio na imparcialidade do julgador
3.7. Argumento do esvaziamento do contraditrio
4. NOTAS SOBRE A PRISO CAUTELAR DE OFCIO NO DIREITO
COMPARADO
4.1. Itlia
10
4.2. Espanha
4.3. Portugal
4.4. Chile
5. CONCLUSES
5.1. Inconstitucionalidade das normas que dispe sobre a possibilidade de decretao de
priso preventiva de ofcio por parte do juiz
5.2. Soluo possvel de acordo com o sistema acusatrio
BIBLIOGRAFIA
11
La mayor virtud de un saber sobre el proceso penal
debe consistir en la capacidad de orientar nuevas
prcticas y ello solo lo logra si tiene, a su vez,
capacidad de desplazar a los saberes anteriores.
Alberto M. Binder
Juez y pena se encuentran siempre juntos
James Goldschmidt
Cada vez que un imputado inocente tiene razn para
temer a un juez, quiere decir que ste se halla fuera de
la lgica del estado de derecho: el miedo, y tambin la
sola desconfianza y la no seguridad del inocente,
indican la quiebra de la funcin misma de la
jurisdiccin penal y la ruptura de los valores polticos
que la legitiman
Luigi Ferrajoli
Il provvedimento [cautelare] ex officio nasce nullo
Franco Cordero
12
INTRODUO
Ao introduzir sua obra Era dos Direitos em 1990, Norberto Bobbio
lembra teses fundamentais do Direito enunciadas em 1951 e das quais nunca se afastou: a)
os direitos naturais so direitos histricos; b) nascem no incio da era moderna,
juntamente com a concepo individualista da sociedade; c) tornam-se um dos
principais indicadores do progresso histrico1. Sob esta perspectiva de historicidade e
conquista dos direitos e garantias individuais, a presente monografia busca analisar um
dispositivo especfico do Cdigo de Processo Penal vigente no Brasil que consiste na
(im)possibilidade jurdica do decreto de ofcio da priso preventiva por parte do julgador,
ou seja, sem requerimento de qualquer das partes. Para isso, partamos de premissas
tericas e normativas que permearo todo o estudo.
1 BOBBIO, N. Era dos Direitos. p. 22.
13
No esteio da gradual conquista de direitos2, o movimento
constitucionalista do ocidente partiu da ideia racional iluminista de limitao do poder, ou
seja, de resguardo do indivduo contra o Estado3, de maneira que a Constituio norma
hierarquicamente superior serve de parmetro de validade jurdica a todo o sistema de
normas de um dado ordenamento jurdico. Trata-se da aplicao do princpio da
supremacia da Constituio, diploma que incorporou os direitos e garantias de tutela das
liberdades pblicas enunciados nos pactos internacionais de direitos humanos.
A Constituio brasileira atualmente vigente, promulgada aps
circunstncias polticas e jurdicas autoritrias, representou a mudana de paradigma e o
movimento de adequao de todo o ordenamento infraconstitucional aos superiores
princpios e regras dispostos na nova Lei Maior.
Trabalhamos, ento, com o direito processual penal como um direito
constitucional aplicado4. Encontramos na Constituio Federal os preceitos fundamentais
deste ramo do direito pblico que o situam como um fator limitador do poder punitivo
estatal5. Tais preceitos condicionam um modelo processual especfico, um modelo de
processo legtimo, um due process of law6, em cuja arqueologia identificamos a limitao
do poder estatal e o direito de defesa7. Por isso as leis processuais devem sempre ser
2 A tese est ancorada na ideia kantiana da tendncia de progresso moral da humanidade expressada, dentre
outros textos, em An old question raised again: is the human race constantly progressing? In KANT, I. The
conflict of the faculties. p. 141. Para Kant, embora haja inegveis momentos de retrocesso, a humanidade
como um todo (universorum) caminha para dar a si mesma uma boa constituio. Cf. BOBBIO, N. op. cit. 66
e seguintes. 3 CANOTILHO, J.J.G. Direito Constitucional..., p. 51., define constitucionalismo como teoria (ou
ideologia) que ergue o princpio do governo limitado indispensvel garantia dos direitos em dimenso
estruturante da organizao poltico-social de uma comunidade. 4 HASSEMER, W. Introduo aos fundamentos do Direito Penal. p. 172.
5 DIAS, J.F. Direito processual penal. p. 64/65. Deste modo [elevando o acusado a sujeito do processo] o
direito processual penal torna-se em uma ordenao limitadora do poder do Estado em favor do indivduo
acusado, numa espcie de Magna Charta dos direitos e garantias individuais do cidado. Pois o Estado,
protegendo o indivduo, protege-se a si prprio contra a hipertrofia do poder e os abusos no seu exerccio. 6 A mudana trazida pela Constituio de 1988 passou a exigir que o processo no mais fosse conduzido
prioritariamente, conforme OLIVEIRA, E.P. Curso de Processo Penal. p. 8/9, como mero veculo de
aplicao da lei penal, mas, alm e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do
individuo em face do Estado. O devido processo penal constitucional busca, ento, realizar uma Justia
Penal submetida exigncia de igualdade efetiva entre os litigantes. O processo justo deve atentar, sempre,
para a desigualdade material que normalmente ocorre no curso de toda persecuo penal, em que o Estado
ocupa posio de proeminncia, respondendo pelas funes investigatrias e acusatrias. Como regra, e
pela atuao da jurisdio, sobre a qual exerce o monoplio. 7 CANOTILHO, op. cit. p. 496. Cita-se tambm GRINOVER, A.P. Liberdades pblicas. p. 15-21. Mas se,
do ponto de vista da persecuo penal, os direitos do acusado se colocam como limite funo jurisdicional,
14
produzidas e aplicadas luz das normas que lhe do validade: a Constituio Federal
(bloco constitucional) e as normas internacionais supralegais definidoras dos direitos e
garantias fundamentais.
Estas garantias do processo passaram a fazer parte da esfera individual ao
longo de largo processo histrico de elaboraes tericas, lutas e conquistas que tm como
marco o pensamento iluminista do sculo XVIII e definem, por si, o progresso das
sociedades, como explica Bobbio na Era dos Direitos.
Alm da observao de que algum s pode ser privado dos direitos
fundamentais da liberdade e propriedade por meio de um processo criado por lei (process
oriented theory), deve-se consignar que o processo deve ser justo e adequado, ou seja,
orientado pelos princpios da justia, ostentando esta caracterstica at mesmo no momento
da criao da norma processual (dimenso material ou substantiva do processo)8.
Claro est que se adere neste trabalho ao que se chama de escola da
orientao constitucional do processo penal, que supera o mrito do saber prtico das
formas e trmites do processo penal para adequar as normas processuais penais aos
sistemas de garantias enunciados na Constituio e nos pactos internacionais de direitos
humanos. A Constituio de 1988 superou a concepo processual que animou a produo
do Cdigo de Processo Penal de 1941 e j no se pode pensar o direito processual penal
com objetivo de maior eficincia e energia da ao repressiva do Estado contra os que
delinquem, como propunha Francisco Campos na exposio de motivos do Cdigo ainda
vigente9. Pelo contrrio, adotaremos nesta anlise o garantismo penal como modelo
de outro lado o prprio processo penal que se constitui em instrumento de tutela da liberdade jurdica do
ru. () A lei do processo o prolongamento e a efetivao do captulo constitucional sobre os direitos
fundamentais e suas garantias. 8 De acordo com CANOTILHO, op. cit. p. 494, o problema nuclear da exigncia de um due process no
estaria tanto ou pelo menos no estaria exclusivamente no procedimento legal mediante o qual algum
declarado culpado e castigado (privado da vida, da liberdade e da propriedade) por haver violado a lei,
mas sim no facto de a lei poder ela prpria transportar a injustia privando uma pessoa de direitos
fundamentais. s autoridades legiferantes deve ser vedado o direito de disporem arbitrariamente da vida, da
liberdade e da propriedade das pessoas, isto , sem razes materialmente fundadas para o fazerem. 9 Prelecionava o idealizador do Cdigo de Processo Penal de 1941 em suas exposies de motivos: as
nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos rus, ainda que colhidos em flagrantes ou confundidos
pela evidncia das provas, um to extenso catlogo de garantias e favores, que a represso se torna,
necessariamente, defeituosa e retardatria, decorrendo da um indireto estmulo expanso da
criminalidade. Urge que seja abolida a injustificvel primazia do interesse do indivduo sobre o da tutela
social. No se pode continuar a contemporizar com pseudo-direitos individuais em prejuzo do bem comum.
15
terico de um processo penal constitucional que enseja um sistema de limites da autoridade
punitiva10
.
Diante do quadro constitucional do processo penal, para a anlise da
priso preventiva decretada de ofcio, alm da clusula do devido processo legal j citada,
partiremos da premissa do direito liberdade (enunciada no caput do artigo 5 da
Constituio) e da presuno de inocncia (produto das conquistas do pensamento liberal
no sistema punitivo no sculo XVIII11
j presente na Declarao dos Direitos do Homem e
do Cidado de 179812
e disposta no inciso LVII do artigo 5 da Constituio brasileira de
1988). Por fim, no possvel discutir poderes ex officio do juiz sem se falar no princpio
acusatrio, opo inequvoca13
da Constituio Federal de 1988, cujo estudo forma a
base desta monografia e sobre o qual nos debruaremos com mais vagar. Estudar a priso
preventiva de ofcio significa estudar como a Constituio vai delinear ou demarcar de
maneira exata as condies e o procedimento sob os quais estes direitos fundamentais
podero ser excepcionados: atravs de um sistema acusatrio autntico.
Neste contexto de recepo das normas pela nova ordem constitucional, o
processo penal encontra vrios pontos de choque entre a antiga tradio da estrutura
processual de corte fascista e inquisitria do Estado Novo (que si encontrar sectrios at
hoje e que deriva da concepo do delito como infrao) com um novo processo penal
garantista e acusatrio (que deriva da tradio de concepo do delito como conflito).
Dentre estes pontos de choque temos a priso preventiva de ofcio.
A importncia do estudo e delimitao da priso provisria cautelar,
gnero do qual a preventiva a principal espcie, releva-se pelas preocupaes mais
O indivduo, principalmente quando vem de se mostrar rebelde disciplina jurdico-penal da vida em
sociedade no pode invocar, em face do Estado, outras franquias e imunidades alm daquelas que o
assegurem contra o exerccio do poder pblico fora da medida reclamada fora do interesse social. Este o
critrio que presidiu elaborao do presente projeto de cdigo. Destaca-se do trecho, alm da
caracterstica marcante autoritria e repressiva que informava a criao do Cdigo, a regresso, o passo
atrs, que a nova lei representava em relao aos diplomas anteriores. 10
Ver FERRAJOLI, L. Derecho y razn. p. 851 e seguintes. 11
GOMES Filho, A.M. Presuno de inocncia e priso cautelar. p. 9. 12
Art. 9. Tout homme tant prsum innocent jusqu' ce qu'il ait t dclar coupable, s'il est jug
indispensable de l'arrter, toute rigueur qui ne serait pas ncessaire pour s'assurer de sa personne doit tre
svrement rprime par la loi. 13
Supremo Tribunal Federal, ADI 5104 MC, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno,
julgado em 21/05/2014, PROCESSO ELETRNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014.
16
latentes dos estudiosos do processo e dos defensores dos direitos humanos. Em sua feio
prtica, a priso preventiva se mostra anloga pior sorte do ru ao final de todo o
processo penal: o encarceramento. Trata-se da medida mais severa a ser tomada durante
um processo14
.
De acordo com os dados oficiais de dezembro de 201215
, mais de 40% da
populao carcerria do Brasil era formada por presos provisrios. O relatrio da
Comisso Interamericana de Direitos Humanos da OEA, editado em dezembro de 2013,
adverte que uno de los principales desafos que enfrentan la absoluta mayora de los
Estados de la regin es el uso excesivo de la detencin preventiva, por eso, en razn de la
complejidad y trascendencia de esta temtica16
.
O poder ex officio do juiz outro dos assuntos mais debatidos na doutrina
processual penal por representar de forma direta o sistema a qual est filiado dado
ordenamento. Trata-se de um dos temas centrais na anlise da prpria identidade da
administrao da justia criminal em uma dada jurisdio17
. A doutrina revela que a
tripartio de funes entre os atores processuais e a concentrao maior ou menor de tais
funes na mo do julgador de extrema complexidade, pois diz respeito ao poder do
Estado-juiz, detentor do poder de punir18
. A histria do processo pode ser traada
tambm em termos de quem o domina, ou seja, de quem so seus atores relevantes no seu
14
... laplicazione di una misura cautelare significa che lo Stato intervenuto pesantemente, in maniera
repressiva e in funzione di difesa, privando taluno dei suoi beni o addirittura della sua libert personale..
BERRI, G. Formulario delle misure cautelari personali e reali. p. V. Como observa o processualista
estadunidense Joel Samaha, embora haja riscos para a liberdade de um acusado, tambm preciso levar em
considerao que [b]eing locked up before trial is a major loss of freedom, but its more than that.
Temporary loss of wages and even permanent loss of a job, separation from family and friends, restrictions
on aiding in their own defense, and loss of reputation are also possible consequences for detained
defendants. Andall of these take place before defendants are convicted SAMAHA, J. Criminal
Procedure. p. 399/400. 15
Dados extrados do stio eletrnico do Ministrio da Justia
(http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBR
IE.htm) acessados em 15 de outubro de 2014. 16
p. 5. 17
The fundamental difference between the procedural models is the role of the parties and of the judges..
CRYER, R. et alii An introdution to International Criminal Law and Procedure. p. 426. Confiram-se,
tambm as perguntas iniciais das quais parte o jurista croata-americano, Professor da Universidade de Yale,
Mirjan Damaka em sua clssica obra de 1986 The faces of justice: For the process to retain its legal
nature, is it necessary that it be controlled, directly or indirectly, by a state 'judge'? What are the essential
attributes and functions of this official? Is he primarily a conflict resolver, or an enforcer of state policy, an
educator, and a therapeuta? (loc. 117 of 6774). 18
GOLDSCHMIDT, J. Problemas jurdicos y polticos del proceso penal.
http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBRIE.htmhttp://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMID598A21D892E444B5943A0AEE5DB94226PTBRIE.htm
17
desenvolvimento19
. Como deve ser aplicado o princpio da inrcia da jurisdio (ne
procedat judex ex officio) e como a atividade do juiz ameaa sua imparcialidade? Esta
talvez seja uma das questes mais difceis a serem enfrentadas pelo processualista, com
reflexos para a feio do processo em si, para a atividade probatria e para a aplicao de
medidas cautelares.
A natureza do cargo do julgador e seu papel na cena processual levam
inevitavelmente ao estudo do processo de substituio do sistema inquisitivo pelo sistema
acusatrio, tarefa que vem sendo empreendida paulatinamente, com avanos (reformas) e
retrocessos (contrarreformas) na maioria dos pases da Europa Continental e da Amrica
Latina desde a era do Iluminismo. Nos ordenamentos latino-americanos (assim como em
Portugal, Espanha e Itlia) esse processo de reformas foi intensificado aps a
redemocratizao dos regimes ao final do sculo XX. Como assumimos, no rastro do
pensamento de Bobbio, que os direitos e garantias20
fundamentais representam conquistas
histricas, importa delinear o processo pelo qual o princpio do acusatrio e no temos
dvida de afirmar que o processo acusatrio tambm representa uma garantia
fundamental21
passou a fazer parte dos ordenamentos ocidentais. Este trabalho parte do
pressuposto de que a instaurao de sistemas acusatrios e a consequente superao dos
inquisitrios um fenmeno do mundo ocidental e que o direito comparado tem muito a
19
LOPES, J.R.L. Uma introduo histria social e poltica do processo. In WOLKMER, A.C.
Fundamentos de Histria do Direito. p. 352. 20
Quanto diferena conceitual entre direito e garantia, adotamos a construda por Rui Barbosa e citada por
Scarance FERNANDES, A. Processo penal constitucional, p. 21: os direitos so disposies meramente
declaratrias, imprimindo existncia legal aos bens e valores por elas reconhecidos, enquanto as garantias
so disposies assecuratrias que tm como finalidade proteger os direitos. 21
Filiamo-nos, conforme ficar claro durante a dissertao, opinio de que o direito a um processo
acusatrio configura uma garantia fundamental de nvel constitucional no Brasil, assim como defende, para a
Espanha, o ex-magistrado do Tribunal Constitucional (1988-1998) Jose Vicente GIMENO Sendra. A
Constituio espanhola de 1978, assim como a brasileira de 1988, nem sequer menciona a palavra
acusatrio (tampouco a menciona a Conveno Europeia de Direitos Humanos a que o Reino da Espanha
signatrio), diferente da Portuguesa de 1976, que estabelece ipsis litteris: Art. 32. 5. O processo criminal
tem estrutura acusatria, estando a audincia de julgamento e os actos instrutrios que a lei determinar
subordinados ao princpio do contraditrio. El Derecho Fundamental a un Proceso Acusatorio. In
MACIEL, Adhemar Ferreira; SERRANO Gmez, Alfonso; MADLENER, Silma Marlice (coord.). Estudos
de Direito Penal, Processual e Criminologia em homenagem ao Prof. Dr. Kurt Madlener. No Brasil, o
Supremo Tribunal Federal, como veremos a seguir, fortaleceu a jurisprudncia segundo a qual a Constituio
de 1988 fez uma opo inequvoca pelo sistema penal acusatrio em recente julgamento (ADI 5104 MC,
Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2014, PROCESSO
ELETRNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014).
18
aportar neste panorama, assim como o fez para a interpretao de outros institutos como o
prprio devido processo legal (due process) e o garantismo.
Na presente monografia, entenderemos o acusatrio como garantia
fundamental, princpio ou sistema, conforme a utilizao do termo. Trata-se de um
conceito profundamente ligado a um processo justo (due process) e a um Estado
Democrtico de Direito22
, e que tem como principal enunciado a diviso rgida de
atribuies entre os atores do processo23
.
Neste panorama, o presente trabalho tem como objetivo analisar
criticamente24
a validade da norma que autoriza o juiz a decretar sponte propria a medida
cautelar da priso preventiva. A validade ser entendida sob o ponto de vista da lgica
jurdica, ou seja, a pertinncia da norma ao ordenamento jurdico. A norma inferior
vlida porque seu contedo material e sua produo no entram em contradio com a
norma de hierarquia superior. Da decorre a necessidade lgica da norma pertencer ao
sistema condicionado por um ou alguns princpios fundamentais. nesse sentido que o
acusatrio, como foi dito, pode ser entendido como um princpio que condiciona um
sistema. Se esse princpio tem assento constitucional, condicionar toda a estrutura
normativa inferior. Assim, nosso objetivo estudar a relao de adequao material da
norma que prev a priso preventiva de ofcio com o princpio acusatrio e a relao de
pertencimento desta norma ao sistema acusatrio. Trata-se de inserir os argumentos e o que
22
O processo assim, em um Estado democrtico e, principalmente, em uma sociedade tambm democrtica,
revela-se produto da contribuio dialtica de muitos e no da ao isolada de um s, ainda que este um
mesmo sendo o juiz atue informado pela disposio de encontrar a soluo mais justa, ou, dito com outras
palavras, apropriando-se da expresso kelseniana, ainda que este atue para o povo. (...) Deve-se, pois,
concepo ideolgica de um processo penal democrtico, a assertiva comum de que sua estrutura h de
respeitar, sempre, o modelo dialtico, reservando ao juiz a funo de julgar, mas com a colaborao das
partes, despindo-se, contudo, da iniciativa da persecuo penal. A estrutura sincrnica dialtica do processo
penal democrtico considera, pois, metaforicamente, o conceito de relao angular ou triangular e nunca de
relao linear, sacramentando as linhas mestras do sistema acusatrio. PRADO, G. Sistema Acusatrio p.
33. PRADO ainda coloca que a adoo do sistema acusatrio toma o lugar das concepes tradicionalistas
e religiosas na chamada baixa modernidade. Op. cit. p. 13. 23
De acordo com Ferrajoli, slo un efectivo pluralismo institucional y una rgida separacin de poderes
puede garantizar la rehabilitacin de la legalidad en la esfera pblica segn el paradigma del estado de
democrtico de derecho. Op. cit. prlogo la edicin espaola. p. 11. 24
A palavra crtica que aparece no ttulo desta monografia utilizada em dois sentidos: a) como uma anlise
sistemtica ou uma apreciao minuciosa e criteriosa de um objeto; b) no sentido elaborado pelo filsofo
alemo Max Horkheimer e pela Escola de Frankfurt. O trabalho da teoria crtica no se satisfaz com a mera
anlise objetiva e distante da questo social, mas nela penetra e transforma. HORKHEIMER, M. Critical
theory: selected essays. Especialmente o ensaio Traditional and critical theory, p. 188 a 243.
19
subjaz em cada uma das teses opostas nas grandes dualidades do processo penal moderno:
a dualidade entre poltica criminal e o sistema de garantias25
e a dualidade entre reforma e
contrarreforma. Esta , em sntese, a difcil convivncia dos dois objetivos do direito
processual penal: a realizao punitiva do direito penal material (eficcia punitiva) e a
garantia dos direitos individuais26
. O processo histrico que determina a dualidade pode ser
entendido como um movimento pendular, ligada a uma concepo cclica da histria,
com sugere o Professor Antonio Scarance Fernandes27
, ou, maneira bobbio-kantiana,
pode ser entendido como um gradual processo de positivao de direitos fundamentais.
A priso preventiva de ofcio tem origem e implicaes na histria do
ordenamento jurdico brasileiro. O estudo de tal instituto no pode ocorrer sem uma crtica
ao atual procedimento de tomada de deciso da medida cautelar, extremamente vinculado
ao sistema inquisitrio (i.e. centrado no julgador, autoritrio, anti-garantista, burocrtico e
escritural). Como ser visto, a divergncia aqui analisada no se esgota simplesmente em
uma questo tcnico-jurdica, mas perpassa questes ideolgicas e histricas que sero
mencionadas no decorrer do trabalho.
Por fim, ao lado do objetivo primrio de estabelecer a (in)validade da
disposio da priso preventiva de ofcio, um objetivo lateral da monografia, para
orientar nuevas prcticas e para desplazar a los saberes anteriores, seria indicar uma
ideia geral de como a ordem infraconstitucional poderia dispor acerca da forma da tomada
de deciso da priso preventiva, de tal maneira que os resqucios inquisitrios sejam
neutralizados, substituindo-se o procedimento atual por um mais consentneo com o
princpio e o sistema acusatrios. Seria apenas uma continuao das modificaes
transformativas28
de reforma do processo penal brasileiro na mesma linha da implantao
do cross-examination em 2008.
Para alcanar estes objetivos, a dissertao ser dividida em cinco
captulos principais. O primeiro captulo tratar da formao, distino e definio dos
25
BINDER, A. M. Derecho procesal penal. p. 21. 26
Da forma enunciada por GRINOVER, A.P. op. cit. p. 22: preciso manter a ordem, mas isso deve
ocorrer com o mximo respeito pela Justia.p. 9. de se consignar tambm a pureza terica de
Goldschmidt para que o fim do processo penal o alcance de uma deciso de mrito transitada em julgado. 27
FERNANDES, A. S. Teoria geral do procedimento. p. 61. 28
Expresso utilizada por DAMAKA, M. Aspectos globales de la reforma del proceso penal. Reformas a
la Justicia Penal en las Americas. p. 38.
20
sistemas processuais penais: o inquisitivo, o acusatrio e o misto. Como a definio exata
de cada tipo de sistema escapa da proposta do trabalho, ser dada prevalncia para os
aspectos relevantes para a questo em tela: o papel do juiz, o papel que a priso cautelar
representa em cada sistema, e a burocratizao/oralizao dos procedimentos. O segundo
captulo ser dedicado ao sistema processual penal brasileiro, seu delineamento histrico e
as normas constitucionais, supralegais e infraconstitucionais que o determinam. neste
captulo que ser derivado o princpio que determina um sistema constitucional acusatrio
no Brasil e os novos diplomas que adaptam o sistema brasileiro ao aludido princpio.
Tambm aqui sero expostas as normas que determinam o decreto da priso preventiva. A
partir das definies dadas nos dois primeiros captulos, o terceiro captulo trar um rol de
argumentos favorveis e contrrios validade da priso preventiva de ofcio, expostos
criticamente, depurando-se os conceitos gerais dados anteriormente. O quarto captulo trar
informaes acerca da priso preventiva de ofcio recolhidas do direito comparado, mais
especificamente dos ordenamentos espanhol, portugus, italiano, mexicano e chileno.
Oportunamente se justificar a escolha de cada um destes pases. A concluso vir no
ltimo captulo, com objetivo de fazer um balano dos argumentos e expor a forma da
tomada de deciso pode ser adaptada ao modelo constitucional brasileiro de 1988.
Duas observaes restam para um melhor entendimento da monografia.
Toma-se o cuidado de separar o ativismo judicial no campo processual penal, daquele
em voga no campo do processo constitucional e civi,l em que se busca a judicializao das
polticas pblicas. O ativismo do juiz nos dois casos guarda diferenas. Quando se busca a
efetivao de direitos sociais (de terceira gerao), o sopesamento de bens constitucionais
repousa na separao dos poderes. No caso do ativismo judicial no processo penal, trata-se
de uma ponderao entre a efetividade da jurisdio e os direitos individuais (de primeira
gerao). No primeiro caso, no h dvida que o juiz no age de ofcio e, sim provocado
pela parte, como a regra no processo civil29
. O caso que circunscrevemos nesse trabalho
trata essencialmente da ponderao do direito fundamental liberdade e a garantia do
devido processo legal, de um lado, e o direito punitivo do Estado-juiz, de outro.
29
Art. 797 do Cdigo de Processo Civil.
21
A ltima observao diz respeito falaciosa expresso do ativismo pr-
ru do juiz. No processo penal vige o princpio do in dubio pro reo, i.e. o Estado,
atravs de seu rgo acusador, que deve cumprir um standard probatrio de tal forma que
licitamente se possa vulnerar o direito individual de liberdade tanto para a pena definitiva
quanto para as medidas cautelares pessoais30
. Quando o julgador imparcial revoga uma
medida cautelar pessoal de ofcio, em realidade est-se a dizer que o rgo acusador no
logrou atingir o standard necessrio para se quebrar o default da liberdade do indivduo.
Como o que se discute o direito fundamental de liberdade e como a lei determina suas
excees, no se cogita o contrrio, ou seja, no se discute se o juiz pode extinguir uma
medida cautelar de ofcio e, por este motivo, falar em ativismo judicial pr-ru constitui
uma falcia. Usando as palavras da Corte Europeia de Direitos Humanos, a presuno
em favor da liberdade31
. No mais, de acordo com a Constituio Federal de 1988, a
priso ilegal ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciria (art. 5, inciso LXV).
Desta forma, como mostra o caso espanhol32
, por exemplo, no h uma incongruncia
lgica alguma em tolher o poder punitivo ou cautelar de ofcio do juiz e ampliar sua
atividade na defesa dos direitos fundamentais individuais.
30
Quanto s medidas cautelares reais, o raciocnio o mesmo, tendo o direito de propriedade como
parmetro. 31
The presumption is in favour of release. Caso Margareti vs. Crocia. Julgado em 13 de outubro de
2014. Disponvel em http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-144367. 32
Na Espanha, por exemplo, em que a reforma veio limitar o poder de ofcio do juiz e o requerimento da
parte um pressuposto da priso cautelar, o juiz pode decidir pela liberdade provisria sem fiana do ru sem
audincia das partes. O item final do art. 528 da Lei de Enjuiciamento prev que todas las Autoridades que
intervengan en un proceso estarn obligadas a dilatar lo menos posible la detencin y la prisin provisional
de los inculpados o procesados. O art. 539, 4 dispe que siempre que el Juez o Tribunal entienda que
procede la libertad o la modificacin de la libertad provisional en trminos ms favorables al sometido a la
medida, podr acordarla, en cualquier momento, de oficio y sin someterse a la peticin de parte.
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-144367
22
1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS
Os argumentos contrrios e favorveis ao instituto da priso preventiva
de ofcio giram em torno do eixo do sistema processual penal, de maneira que sem o
estudo dos modelos processuais que vicejaram nos Estados do ocidente, no intelecto dos
processualistas, e particularmente no Brasil, no possvel especular sobre a validade da
norma objeto deste trabalho.
De plano, fixaremos os conceitos de duas categorias do direito: princpio
e sistema. Utiliza-se aqui o conceito de princpio desenvolvido por Alexy, para quem
princpios so normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possvel
dentro das possibilidades jurdicas e fticas existentes. Princpios so, por conseguinte,
mandamentos de otimizao, que so caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus
variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfao no depende somente das
possibilidades fticas, mas tambm das possibilidades jurdicas33
. Seguindo o conceito do
Professor alemo, podemos extrair das normas constitucionais e supralegais um
mandamento de otimizao de um processo penal que seja o mais acusatrio possvel,
conforme se ver no captulo seguinte. Entenderemos o acusatrio como um princpio
implcito na Constituio Federal de 1988, decorrente de vrias de suas disposies34
.
Vem da filosofia a definio de sistema. Kant entendia sistema como a
unidade de mltiplas cognies sob uma nica ideia, ou seja, uma unidade finalstica qual
todas as partes so ligadas e pela qual so relacionadas entre si35
. Em outra passagem, Kant
define sistema como um conjunto de conhecimentos ordenados de acordo com um
princpio36
. Mais precisamente no campo do direito, Canaris define o sistema jurdico
como uma ordem teleolgica de princpios gerais de direito37
, apresentando dois
conceitos fundamentais que o compem: a ordenao e a unidade38
. Especificamente
33
ALEXY, R. Teoria dos Direitos Fundamentais. p. 90. 34
de se consignar que Jacinto Nelson de Miranda COUTINHO, O papel do novo juiz no processo penal.
Crtica Teoria Geral do Direito Processual Penal. p. 17, entende que o princpio dispositivo o que
condiciona o sistema acusatrio enquanto o princpio inquisitivo d sustentao ao sistema inquisitrio. A
posio defendida no texto foi extrada de PRADO, G. op. cit. p. 60, para quem o sistema acusatrio seria
mais amplo, sendo condicionado por outros princpios como a publicidade e a oralidade, por exemplo. 35
KANT, I. Critique of Pure Reason. p. 691. I understand by a system, however, the unity of the manifold
cognitions under one idea. 36
KANT, I. Metaphysical foundations of natural science. Theoretical philosophy after 1781. p. 183. 37
CANARIS, C.W. Pensamento sistemtico e conceito de sistema na Cincia do Direito. p. 103. 38
Op. cit. p. 12.
23
quanto unidade, Canaris a trata como um fator que impede que a multiplicidade se
disperse numa multitude de singularidades desconexas, antes devendo deix-las
reconduzir-se a uns quantos princpios fundamentais39
.
Das definies, sobressai a caracterstica mais relevante do sistema
normativo para o presente trabalho: a coerncia interna. Conforme menciona Geraldo
Prado40
, de se notar no s a coerncia interna dos componentes do sistema (no caso dos
sistemas jurdicos, as normas jurdicas), mas a compatibilidade de um sistema restrito, ou
subsistema, com outro mais abrangente. O autor exemplifica que o sistema processual
penal est contido no sistema judicirio, que por sua vez est contido no sistema
constitucional. No destoante, assim, o fato de Bobbio utilizar a palavra sistema como
sinnimo do prprio ordenamento jurdico como um todo. Para Bobbio, sistema uma
totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem41
.
De acordo com Alexy, um sistema jurdico to mais coerente quanto
melhor fundamentadas so suas determinaes42
. Quanto melhor a estrutura da
fundamentao de uma classe de declaraes, tanto mais coerente essa classe de
declaraes. Uma exigncia mnima de coerncia que entre as declaraes de um
sistema, no fundo, existam relaes de fundamentao. Uma classe de declaraes, entre
as quais no existe nenhuma relao de fundamentao, pode, sem dvida, ser consistente,
mas ela no coerente em nenhum sentido. Ela tanto mais coerente quanto mais
relaes de fundamentao existirem. Alexy segue propondo vrios critrios de
coerncia, estabelecendo que o sistema tanto mais coerente: a) quanto mais extensas as
correntes de fundamentao; b) quanto mais correntes de fundamentao tm uma
premissa de partida comum; c) quanto mais correntes de fundamentao tm uma
concluso comum; d) quanto mais relaes de primazia so determinadas entre os
princpios; e) quanto mais fundamentaes empricas e analticas mtuas um sistema
contm. Para os objetivos deste trabalho, seria conveniente, nesta linha, analisar quais
seriam os fundamentos da norma que prev priso preventiva de ofcio.
39
Op. cit. p. 13. 40
Op. cit. p. 55. 41
BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurdico. p. 71. 42
ALEXY, R. Constitucionalismo discursivo. p. 117 e seguintes.
24
Para Kelsen, a unidade da pluralidade de normas o fundamento de
validade de todas estas normas: a norma fundamental43
. Uma norma que no tem relao
de unidade com o todo do sistema no faz parte dele, e pode-se dizer, est em oposio a
ele. A coerncia interna dada na forma da hierarquia que as normas inferiores guardam
com as superiores. Ao quebrar a unidade, a norma contraria o princpio ao mesmo tempo
em que desnatura o sistema. Se contraria o princpio e faz desativar todo o sistema, a
norma invlida (inconstitucional, ou at mesmo ilegal, quando contrariar o sistema
supralegal de normas oriundas de pactos internacionais sobre direitos humanos).
desta forma que o sistema processual guarda sua relao com o sistema
constitucional. Uma lei que proponha a iniciativa do juiz para o processo penal de cunho
condenatrio no pode pertencer ao sistema processual acusatrio embasado em uma
Constituio que o consagre e, portanto, tal lei no ser vlida, ainda que funcional no
sentido utilitarista, de mera adjudicao de uma soluo ao conflito de interesses penal44
.
Alm disso, um sistema acusatrio que no funciona devido a sua ineficincia ou devido
a falta de coerncia, no acusatrio45
.
Com este instrumental terico se pretende responder pergunta: a norma
que prev a priso preventiva de ofcio contraria, ou seja, incoerente com o sistema
processual penal brasileiro?
Neste ponto do estudo da adequao s normas e da coerncia do sistema
processual penal, surge a questo da pureza dos sistemas, que deve ser enfrentada desde
logo. No raro, o argumento segundo o qual uma norma est em desacordo com o sistema
rechaado com a ideia de que no existem sistemas puros46
. De fato, possvel
entender os sistemas processuais penais como tipos ideais, construes puramente
racionais, hipotticas e abstratas, cujo conceito foi desenvolvido na sociologia por Max
Weber47
. Os sistemas processuais penais reais, em vigor nos diferentes Estados,
representariam apenas aproximaes dos tipos ideais e poderiam ser observados ora
43
KELSEN, H. Teoria pura do direito. p. 228. 44
PRADO, G. op. cit. p. 56. 45
PANZAVOLTA, M. Reforms and counter-reforms in the Italian struggle for an accusatorial criminal
law system. p. 623, traduo livre. 46
SAAD, M.; MALAN, D. R. Origens histricas dos sistemas acusatrio e inquisitivo. p. 413. 47
WEBER, M. Economy and society. p. 6.
25
aspectos inquisitrios, ora aspectos acusatrios, dependendo da norma estudada48
. Perderia
sentido, desta forma, a pergunta deduzida acima. Se todos os sistemas vigentes
representam uma mistura de preceitos dos tipos ideais, de nada importa se uma norma
especfica tem perfil inquisitrio ou acusatrio. No entanto, como foi visto, a coerncia do
sistema advm da relao de fundamentao que suas normas especficas guardam com os
preceitos superiores (Alexy). Dito de outra forma, a incoerncia do sistema equivale a uma
inconstitucionalidade ou a uma ilegalidade (quando se trata das normas supralegais).
Pode-se entender, tambm, que no h um sistema puro, mas h
caractersticas tpicas de cada sistema. Damaka elabora a interessante comparao da
classificao dos sistemas com a interpretao das escolas de arte. Muitas das vezes
difcil determinar a que escola artstica a obra pertence, mas, sim, possvel isolar e
identificar as caractersticas especficas de determinadas escolas49
, de maneira que uma
pintura fovista de Matisse nunca poderia ser confundida com uma gravura cubista de
Picasso, embora os dois mestres tenham sido contemporneos50
. Para classificar o sistema
de um determinado ordenamento processual penal, o estudioso do direito compara as
disposies legais reais com as caractersticas consideradas essenciais de cada um dos
modelos51
.
Assim, da mesma forma que se pode dizer que no h um sistema
acusatrio puro no mundo emprico, tambm no h (e talvez nunca tenha havido) um
sistema inquisitrio puro, em que todas as funes do processo sejam colocadas numa s
pessoa de forma absoluta52
.
Outro prisma atravs do qual se pode ver a classificao dos sistemas
processuais penais a sua relao com a concepo filosfica de Estado, de extrema
48
De acordo com ILLUMINATI, G. The accusatorial process from the Italian point of view, p. 297-298,
as noes de processo acusatrio e inquisitivo so abstraes, modelos hipotticos que resultam da
generalizao de ordenamentos e seu conceito depende da escolha de valores ideologicamente orientada
(traduo livre). Segundo ARMENTA Deu, T. Sistemas procesales penales, p. 11, ...ningn sistema rene
las esencias de una concepcin ortodoxa y que todos son objeto de frecuentes y fundadas diatribas, incluso
en torno a una misma institucin como es el caso de las soluciones negociadas.() no existen modelos que
salvaguarden la ortodoxia de ningn sistema, ni ninguno de los vigentes satisfara hoy en da por completo
las exigencias del proceso debido. 49
DAMAKA, M. The faces... loc. 5355 of 6774 footnote 6. 50
O exemplo nosso, sobre a ideia de Damaka. 51
ILLUMINATI, G. op. cit. 298. 52
Os tribunais eclesisticos, por exemplo, quando a pena era de sangue, passavam sua execuo para o poder
secular.
26
relevncia para o estudo da posio cnica do juiz no processo. Neste sentido, o processo
penal empresta conceitos e definies da cincia poltica. De acordo com Goldschmidt,
los principios de la poltica procesal de una nacin no son otra cosa que segmentos de su
poltica estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una
nacin no es sino el termmetro de los elementos corporativos o autoritarios de su
Constitucin. Partiendo de esta experiencia, la ciencia procesal ha desarrollado un
nmero de principios opuestos constitutivos del proceso. La mutua lucha de los mismos, el
triunfo ya del uno, ya del otro, o su funcin, caracterizan la historia del proceso53
.
Para alm de uma viso segundo a qual o Estado autoritrio demandaria
um processo mais inquisitrio, enquanto o processo acusatrio seria mais adequado a um
Estado liberal (inquest-contest dichotomy), Damaka sob influncia de Max Weber e
os graus de burocratizao que influenciam a forma de administrao da justia prope
uma classificao mais complexa, um excurso da viso tradicional. Trabalhando com a
ideia de diferentes organizaes estatais do sistema de justia, a autoridade estatal e a
influncia das mudanas do papel do governo a obra de Damaka separa o Estado-juiz
reativo, focado na resoluo de conflitos (conflict-solving), do Estado-juiz intervencionista
na ordem processual, que impe certa poltica de segurana (police implementing).
Paralelamente, separa o sistema de justia colaborativa, de relaes horizontais, com o
sistema de justia hierrquico, de relaes verticais. Deste modo, embora o sistema
inquisitrio esteja mais relacionado com um Estado intervencionista de tipo hierrquico,
enquanto o acusatrio com o Estado reativo e colaborativo, possvel combinar as
caractersticas de diferentes formas, como um Estado reativo com uma justia hierrquica;
ou um Estado intervencionista com uma justia colaborativa. Assim, nem o sistema anglo-
americano teria monoplio do sistema de resoluo de conflito, nem os sistemas
continentais teriam monoplio da implementao de poltica54
.
Entretanto, uma vez que regimes polticos se legitimam a partir da
administrao da justia55
, segue possvel e til a simplificao que o prprio Damaka
53
GOLDSCHMIDT, J. op. Cit. 67. 54
DAMAKA, M. The faces of justice... loc. 351 of 6774 55
In the criminal process, it was similarly argued that ideological shifts affect the degree of protection
accorded the defendant from the state: the comparatively peculiar position of the accused in the Anglo-
American criminal prosecution has time and again been linked to tenets of classical liberalism DAMAKA,
M. The faces of justice... loc. 269 of 6774.
27
consigna, de que o sistema acusatrio seria a realizao das virtudes de uma administrao
liberal, enquanto, por contraste, o sistema processual continental pr-revoluo francesa
serviria a um Estado autoritrio.
Paralelamente s formulaes de Damaka, colocamos as de Alberto
Binder e Michel Foucault, que identificam duas tradies nos sistemas punitivos ao longo
da histria e que sero de grande utilidade no presente estudo. A uma tradio do delito
como conflito, oriunda dos procedimentos ateniense e romano republicano, ope-se
tradio do delito como infrao, tpica da Roma imperial, da administrao da justia
clerical e da formao dos estados nacionais.
Em suma, a posio mais ou menos ativa do juiz est diretamente ligada
a um sistema processual penal que, por sua vez, responde a certa concepo de
administrao da justia por parte do Estado. O primeiro grande exemplo da relao entre a
estrutura do Estado e a conformao do sistema de justia a passagem da Repblica para
o Imprio na Roma antiga. Trata-se, como diz Julio Maier, de un ejemplo valiossimo
acerca de las transformaciones que sufre el enjuiciamiento penal a impulsos de la
ideologa poltica imperante56
. Quando os cnsules foram substitudos por um
magistratus extraordinarius, o ditador perptuo Jlio Csar (44 AC), a tnica passou a ser
a concentrao de poder. As caractersticas do processo penal da Repblica aclamada
pelos pensadores do sculo das luzes como uma barricada das liberdades individuais dos
cidados57
deu paulatinamente lugar cognitio extraordinaria estruturada sobretudo para
proteger o poder imperial absoluto58
. Esta nova forma centralizada de processo penal foi
ganhando terreno primeiro nos crimes mais relevantes contra o Imperador e, mais tarde,
estendeu-se para os demais delitos. O poder ex officio (termo latino que significa em
virtude do ofcio ou posio, em outras palavras, como um magistrado estatal, a estes
oficiais era permitido iniciar procedimentos criminais contra cidados como parte de suas
obrigaes59
) ganhava fora no ambiente autoritrio e se tornava a regra. O processo se
tornava secreto e escrito. A tortura, abandonada durante o regime republicano, retornava
como meio de extrair a prova do acusado. A priso processual era necessria para que tais
instrumentos funcionassem melhor. Outro exemplo da imbricao processo/Estado o
56
MAIER, J.B.J. Derecho Procesal Penal. Tomo I. p. 272. 57
ILLUMINATI, G. The accusatorial process from the Italian point of view. p. 300. 58
ILLUMINATI. G. op. cit. p. 300. 59
ILLUMINATI. G. op. cit. p. 300.
28
recrudescimento dos direitos individuais verificado nas legislaes nazista e fascista, com
reflexos na elaborao do Cdigo de Processo Penal ainda em vigor no Brasil, como
demonstra sua exposio de motivos.
H, entretanto, vrios contraexemplos desta relao. Temos no Brasil a
insero da defesa no inqurito policial em plena vigncia da carta de inspirao fascista de
193760
. Outrossim, sensvel o abrandamento de alguns aspectos do processo penal
brasileiro em um dos perodos mais autoritrios da histria do pas (1964-1985) em
contraste com o movimento de limitao das liberdades pblicas nas primeiras duas
dcadas de vigncia da Constituio de 1988. Contudo, algumas observaes devem ser
feitas. A primeira diz respeito ao descompasso entre a lei e a prtica dos pores da
ditadura, onde os institutos mais bsicos da inquisio eram utilizados (unificao da
figura do acusador e do juiz, tortura, priso processual automtica etc.)61
. Paula Bajer, por
exemplo, prope trs aspectos de anlise do processo penal entre 1964 e 1985: a) aes
ilcitas cometidas por agentes investidos de autoridade pblica (torturas, prises, ilegais,
desaparecimentos e mortes de pessoas consideradas subversivas); b) legalidade (atos
institucionais e leis processuais do perodo, inclusive para crimes comuns); c)
processualizao das condutas criminosas, polticas ou no.62
. No mais, o suposto
movimento progressista da poca ditatorial tambm pode ser entendido como casusmo
legislativo, como, por exemplo, a Lei 5.941/73, apelidada de Lei Fleury em razo de ter
sido elaborada sob medida para que o delegado Sergio Paranhos Fleury aguardasse o
julgamento de um crime doloso contra a vida em liberdade63
. Estas leis devem ser
entendidas como progresso processual penal apenas no sentido figurativo da expresso, j
que no passavam de letra morta, quando no eram utilizadas para salvaguardar certa elite.
inadmissvel que se fale em progresso do processo penal quando as liberdades civis
estavam suspensas, ministros do Supremo Tribunal Federal eram afastados ao talante dos
60
ALMEIDA, J.C.M. Princpios fundamentais do Processo Penal p. XXII. 61
PROJETO BRASIL: NUNCA MAIS. O regime militar. 62
BAJER, Paula. Processo Penal e cidadania. p. 37. 63
Comeara-se transferindo aos tribunais militares o julgamentodos crimes contra a segurana do Estado,
mas isso pareceu pouco. Suspendeu-se o habeas corpus, e transformou-se a tortura em polticade Estado,
mas isso no era tudo. Protegendo-se das anomalias que provocara, a ditadura acobertara ladroagens de
seus agentes, mas isso tambm no bastara. Tornara-se necessrio reformar a lei penal para assegurar a
liberdade de um condenado. GASPARI, E. A ditadura escancarada. p. 384.
29
militares64
, e as prises arbitrrias, a tortura e a execuo sumria de inimigos do regime
eram toleradas pelo Judicirio.
No mais, embora de fato tenhamos uma estrutura contitucional de Estado
democrtico de direito aps 1988, no houve uma ruptura com o passado autoritrio65
,
ou, ao menos, no houve uma ruptura completa, guardando nosso sistema de justia
criminal forte componente inquisitivo66
.
Diante do quadro, fica difcil que tais contraexemplos suplantem a
afirmao de que a concepo filosfica de Estado e processo penal esto extremamente
ligadas e que a estrutura do processo penal contm diferentes noes de Estado como
ele funciona na administrao da justia; como ele se relaciona com a autonomia do
indivduo; e como ele limita tal autonomia67
. Estabelecer este ponto de extrema
importncia para o presente trabalho, j que um juiz que decreta uma priso preventiva
sponte propria traz consigo uma concepo jurdica muito especfica do sistema processual
penal no qual est inserido e do aparato estatal repressivo.
Note-se que no se trata de maior ou menor monoplio estatal na
persecuo penal, j que mesmo nas jurisdies adversariais do common law, a acusao
exercida quase exclusivamente por um rgo estatal. A diferena que nos regimes mais
marcadamente autoritrios os poderes de controle social e antecipao da pena passam da
mo do acusador (que ainda detm a iniciativa da medida) para a mo do julgador (que,
alm da iniciativa, detm o poder do julgamento).
Tendo em conta as observaes sobre a pretensa pureza dos sistemas e
sua relao estreita com a concepo de Estado, resta dizer que o isolamento terico dos
dois grandes modelos de processo penal tarefa complexa e pode parecer, em alguns
64
Caso dos Ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima, todos aposentados
compulsoriamente pelo Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968. 65
PRADO, G. op. cit. p. 37. Neste mesmo sentido, CRUZ, R.S.M.C. Com a palavra, as partes: nosso
sistema processual penal, em que pese caracterizado como acusatrio (com separao das funes de
acusar, defender e julgar), nunca conseguiu livrar-se do rano inquisitorial que vem de longa data. 66
A persistncia de caractersticas inquisitrias comum nos sistemas de justia europeus continentais e seus
derivados, como o Brasil. Diz Ferrajoli que [s]i el modelo garantista de legalidad penal y procesal que
hasta ahora se ha descrito sumariamente no se remonta ms all de dos siglos atrs, sus lecciones y
refutaciones tal y como si manifiestan en las divergencias entre principios y praxis mencionadas en la
introduccin, enlazan con una tradicin autoritaria mucho ms antigua y nunca realmente interrumpida.
(FERRAJOLI, L. Derecho y razn. p. 40/41.) 67
ILLUMINATI, G. op. cit. p. 299.
30
momentos, imprecisa ou subjetiva, o que levou alguns doutrinadores a conclurem que o
estudo das diferenciaes entre os sistemas processuais penais j estivesse superado68
.
Como exemplo de tal impreciso, pode-se citar a divergncia na forma de se estudar o
processo entre a doutrina anglo-americana e europeia continental. Enquanto nesta, a grande
dicotomia dos sistemas formada pelo binmio inquisitrio/acusatrio, naquela, as
diferenas na administrao da justia so vistas essencialmente por contraste entre
sistemas adversariais e sistemas no adversariais ou inquisitrios. A diferenciao segue,
porm, em voga no pensamento do processo penal atual, principalmente devido ao
processo de reformas da justia penal por que passa grande parte dos pases adeptos do
sistema europeu continental e que tem em sua essncia uma superao da antiga tradio
inquisitria69
. De acordo com Gimeno Sendra, el binomio acusatorio-inquisitivo tiene la
virtualidad de indicarnos mediante qu distribuicin de roles y bajo qu condiciones se
realizar el enjuiciamiento del objeto procesal penal70
.
A diferenciao dos sistemas remonta ao sculo XII, quando se
separavam os processos que necessitavam de uma parte para se desenvolverem (processus
per accusationem) e aqueles que podiam ser iniciados sem um litigante privado
(processus per inquisitionem). Os conceitos se desenvolveram at que o Iluminismo
concebeu dois modelos: um que prevalecia na prtica (inquisitorial) e outro teoricamente
superior e prefervel (acusatrio)71
. Temos, ento, a diferena fundamental entre os
modelos: o papel das partes e, principalmente, do juiz no processo72
.
A partir destas observaes, trataremos em separado dos sistemas
inquisitrio, acusatrio e misto. Uma vez que o estudo pormenorizado de cada modelo se
reveste de inmeros aspectos jurdicos, culturais, polticos e sociais que fogem ao escopo
especfico deste trabalho, pretende-se realizar apenas um recorte de trs aspectos principais
que serviro como instrumento de anlise do tema especfico da priso preventiva de
68
ALMEIDA, J.C.M. op. cit. p. XIX e seguintes. Neste sentido, ILLUMINATI, G. The accusatorial... p.
298 em traduo livre: A distino entre os sistemas acusatrio e inquisitivo contm estruturas analticas
dogmtico-tericas e histricas, que, apesar de no serem mutuamente excludentes, nem sempre coincidem. 69
Sobre o assunto, cita-se a obra de Alberto BINDER, Derecho Procesal Penal, de 2013, principalmente o
captulo com o sugestivo ttulo Contra la inquisicin: historia y tradiciones en la configuracin de la
justicia penal. 70
p. 266. 71
DAMAKA, M. The faces of justice... loc. 162 of 6774 72
The fundamental difference between the procedural models is the role of the parties and of the judges.
CRYER, R. et. alii. An introdution to International Criminal Law and Procedure.p. 426.
31
ofcio. Faremos, ento, um delineamento do processo histrico de formao de cada
modelo, fixando o papel do juiz e da priso preventiva em cada um dos modelos. Estas trs
dimenses dos sistemas daro subsdios para que se entendam melhor as origens, os
motivos e as implicaes da norma que prev a possibilidade de priso preventiva de
ofcio.
de se observar que bastariam os aspectos do papel do juiz e da priso
preventiva em cada modelo. No entanto, voltando primeira frase da introduo deste
trabalho, entendemos a aquisio de direitos (nos quais inclumos a instituio de um
processo autenticamente acusatrio) como um gradual efeito de um processo histrico.
Como diz Binder, la justicia penal, como todo campo social, ha sido configurada
histricamente. Por ello se encuentra atravesada por relatos histricos y tradiciones.
Dado que todo campo social ha sido gestado a lo largo de los aos, su estructura actual
(estado del campo) es el resultado de una gnesis, que es necesario esclarecer 73
. De
acordo com Illuminati74
, sob uma perspectiva histrica, relevante saber qual a parte a
quem dado o poder de persecuo, e relevante saber se o juiz pode dar incio a
procedimentos motu proprio75
. A raiz histrica dos sistemas vigentes tambm uma
forma usual de se diferenciar os grandes tipos ideais: um herdeiro das prticas inglesas
(sistema do common law anglo-americano), e outro desenvolvido a partir das prticas da
Europa continental (civil law). Apesar do critrio da filiao histrica tampouco ser
perfeito j que temos casos como o Chile, que adotou, aps a reforma, um sistema muito
semelhante ao adversarial auxilia a entender a configurao histrica dos sistemas
atuais.
1.1. Modelo acusatrio
1.1.1. Delineamento histrico
O direito grego e o romano pr-imperial pautavam-se pelo sistema
acusatrio popular, que consistia na facultad de cualquer ciudadano de perseguir
73
BINDER, A.M. op. cit. 255. 74
Op. cit. p. 298-299. 75
Illuminati explica que a expresso latina significa por seu prprio impulso e era comumente utilizada
para descrever um edito iniciado pelo papa sem consulta.
32
penalmente al infrator. Fundava-se na soberania cidad ateniense, ou seja, na
participao direta dos cidados para acusar e julgar. A exceo seria formada pelos delitos
privados, que s permitiam a persecuo pelo ofendido ou seus substitutos. De acordo com
Julio Maier, como en todos los pueblos antiguos, el juicio era oral, pblico y
contradictorio76
.
O direito processual penal ateniense, segundo Maier77
, tinha as
caractersticas marcantes da soberania popular, que concentrava a acusao e o julgamento.
Havia certa paridade de armas entre acusao e defesa, que debatiam em um contraditrio
pblico em frente a um Tribunal popular. A tortura e os juzos de deus eram admitidos, e
as decises eram irrecorrveis.
Conforme ensina Illuminati, na fase da Repblica Romana a natureza
privada da persecuo penal fez emergir as caractersticas que mais tarde constituiram a
base do sistema acusatrio, como o poder discricionrio para dar incio a uma persecuo
penal, o nus da prova nas mos da acusao, a paridade de armas entre as partes e seu
controle da prova, o princpio da publicidade e oralidade do julgamento e, mais relevante
para o presente trabalho, o papel passivo do juiz como um rbitro da disputa78
. A regra
durante os primeiros tempos da Repblica era a liberdade do acusado durante o processo,
desde que apresentasse fiadores idneos79
.
Em um movimento de concentrao e passagem do poder do senado ao
imperador (como ser visto no captulo sobre o sistema inquisitrio), as formas populares
76
MAIER, J.B.J. op. cit. p. 269. I. Tribunal popular. II. Acusacin popular, por la facultad acordada a
cualquier ciudadano para presentar querella contra la persona a quien crea autor de un delito pblico o
partcipe en l. III. Igualdad entre acusador y acusado, quien, de ordinario, permaneca en libertad durante
su juzgamiento. IV. Publicidad y oralidad del juicio, que se resuma en un debate contradictorio entre
acusador y acusado, frente al tribunal y en presencia del pueblo. V. Admisin de la tortura y los juicios de
Dios como medios de realizacin probatoria. VI. Valoracin de la prueba segn la intima conviccin de
cada uno de los jueces, quienes votaban a favor o en contra depositando un objeto que daba a conocer el
sentido del sufragio. VII. Decisin popular inimpugnable. 77
Idem. Ibidem p. 272. 78
Cf. ILLUMINATI, G. op. cit. p. 300: In this phase, features that would later be considered typical of the
accusatorial system emerged and were associated with the private nature of the prosecution, including the
discretionary power to start a prosecution; the burden of proof on the prosecutor; the equality of arms
between the parties and their control of the evidence; the principle of publicity and orality of the trial; and,
finally, the judges passive role as the arbitrator of the dispute. The private accuser was left in charge of
gathering the evidence. The Praetor could authorize him to use coercive powers in his investigations.
European reformist lawyers, beginning in the 18th century, viewed the criminal process of the Republican
time of Rome as a bulwark of the citizens individual liberties and began to consider the accusatorial system
a typical expression of a democratic regime. 79
ALMEIDA J. J.M. op. cit. p. 319.
33
de julgamento marcadas pela resoluo do conflito gerado pelo delito foram abrindo
caminho para uma forma de administrao da justia mais autoritria, de implementao
da poltica imperial.
Com o colapso do Imprio Romano do Ocidente e a pulverizao do
poder no feudalismo, o procedimento acusatrio voltou a ganhar fora embasado no direito
germnico antigo, mas com uma viso de combate fsico (duelos) e mstico (judicium Dei).
O objetivo do processo era prevenir a guerra generalizada dos cls. medida que a
burocracia continental foi se desenvolvendo, o sistema adversarial foi se transformando em
uma disputa perante o tribunal80
.
As partes tinham participao ativa na cena processual, vigendo o
princpio nemo iudex sine actore. O direito germnico antigo (sculo VII e anteriores) tem
perfil de acusatrio privado e suas principais caractersticas, de acordo com Maier, alm
da interao das partes no combate, eram a publicidade e a oralidade do procedimento81
.
Esta tradio encontrou terreno frtil nas Ilhas Britnicas, desenvolvendo-se no adversary,
do qual trataremos oportunamente82
.
Temos nas civilizaes ateniense, romana republicana e feudal uma
estrutura de delito que condicionar o processo de punio: a tradio do delito como
conflito83
, em oposio tradio do delito como infrao, como desobedincia norma
estatal, que veremos com mais apuro no item acerca do processo inquisitrio84
.
80
DAMAKA, M. The faces of justice... loc. 3824 of 6774. 81
MAIER, J.B. op. cit. p. 264 e seguintes. I. Tribunal popular. II. Persecucin penal privada en manos del
ofendido y su parentela. III. Publicidad e oralidad del juicio en que se enfrentaban el acusador y su acusado.
IV. Sistema de prueba tendiente a dirimir subjetivamente la contienda en tanto eriga un vencedor, ya porque
presentaba mejores testimonios de su fama u honor personal, o porque venca en el duelo o combate judicial,
o porque pasaba con fortuna ciertas pruebas (ordalas o juicios de Dios), mtodos mediante los cuales la
divinidad mostraba, por signos fsicos fcilmente observables, la justicia del caso. V. Decisin
inimpugnable. 82
Idem. Ibidem. p. 301. e PRADO, G. op. cit. p. 79 e seguintes. 83
BINDER, A.M. op. cit. p. 273 e seguintes. 84
Interessante passagem de Foucault que ilustra a concepo do delito como conflito e a passagem para a
concepo do delito como infrao: Na alta Idade Mdia no havia poder judicirio. A liquidao era feita
entre indivduos. Pedia-se ao mais poderoso ou quele que exercia a soberania no que fizesse justia, mas
que constatasse, em funo de seus poderes polticos, mgicos e religiosos, a regularidade do procedimento.
No havia poder judicirio autnomo, nem mesmo poder judicirio nas mos de quem detinha o poder das
armas, o poder poltico. Na medida em que a contestao judiciria assegurava a circulao dos bens, o
direito de ordenar e controlar essa contestao judiciria, por ser um meio de acumular riquezas, foi
confiscado pelos mais ricos e poderosos. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurdicas. p. 65.
34
A partir do sculo XV, a formao das monarquias nacionais e a
expanso da Santa S na Europa continental concentraram novamente o poder poltico e a
burocracia clerical, ancorada na conveniente ressurreio da tradio romana imperial. A
construo do processo punitivo da em diante ficar marcada pela interveno estatal
direta, em um procedimento desenvolvido sofisticadamente para punir a heresia e que
serviu Igreja e ao Estado para tambm punir qualquer tipo de infrao. Assistimos ao
declnio das tradies gregas e romanas republicanas que, embora no tenham deixado de
existir, principalmente no sistema anglo-saxo, acabam por dar lugar a uma justia que, ao
ver o delito como infrao (Binder), implementa uma poltica de segurana do Estado
(Damaka).
interessante notar que, muito embora o sistema inquisitrio tenha
dominado as formas jurdicas de persecuo penal na Europa continental desde o fim da
Idade Mdia at nossos dias, o sistema acusatrio sempre foi visto como teoricamente
superior, como nos explica Damaka: More interestingly, the inquisitorial process,
although in practice dominant, was regarded as an anomaly or an aberration from regular
forms. In its infancy, it required protection by extensive justification, even apologies: as
departure from revered tradition, it was to be used only exceptionally a necessary evil if
the war against crime were to be successfully fought (ne crimina maneat impunita) 85
. Em
outra passagem, Damaka cita que scholarly discussion of the inquisitorial procedure was
regularly interspersed with ceremonial genuflection before an alternative design of
criminal prosecution that always required a complainant, and readily evoked the idea of a
dispute86
.
De tempos em tempos, a tradio do delito como conflito e da justia que
prope resolv-lo sobrepe a tradio de implementao de poltica estatal. O advento do
Iluminismo, que redescobre o indivduo e afirma seus direitos fundamentais87
na
formulao do conceito de dignidade humana, superou a noo da segurana do Estado
como princpio mximo do processo penal, colocando ao seu lado (ou acima) a
necessidade de se evitar condenaes de inocentes e a necessidade de garantir o mximo de
85
DAMAKA, M. The faces... loc 3863 of 6774. 86
Idem. Loc 3867 of 6774. 87
ILLUMINATI, G. op.cit. p. 303.
35
imparcialidade dos Tribunais88
. O pensamento racionalista estabeleceu o sistema
acusatrio como uma tpica expresso de um regime democrtico89
. A ideia foi resgatar
o Direito Romano Republicano e receber a influncia do sistema ingls (que sofreu pouca
ou nenhuma contaminao do Direito Cannico) para um novo sistema de Justia Penal.
Diz Julio Maier que El nuevo modelo propona, en lugar de la escritura y el secreto de
los procedimientos, de la negacin de la defesa y de los jueces delegados del poder
imperial, la publicidad y oralidad de los debates, la libertad de la defensa y el juzgamiento
por jurados90
. A priso preventiva foi especialmente criticada ou racionalizada por
iluministas como Mostequieu, Voltaire e Baccaria. As ideias liberais racionalistas, em
suma, pensaram um sistema de justia em que o Estado e o acusado disputavam perante
um tomador de decises independente do governo91
.
A lei processual penal de 1791, primeira codificao processual penal da
Revoluo92
, compreendeu o antagonismo diante dos princpios inquisitrios do Ancien
Rgime dispostos na anterior Ordenana de 1670. Existia a priso preventiva decidida pelo
juiz de paz (que era um magistrado instrutor), mas se admitia a liberdade mediante cauo.
Os debates tornaram-se orais e pblicos. Este Cdigo representou o primeiro passo para a
reforma do sistema inquisitivo, mas ainda conferia bastante poder aos magistrados de
segurana (juiz de paz), incorrendo no vcio inquisitrio da confuso entre acusao e
defesa93
.
A codificao napolenica da forma ambgua que caracterizou seu
criador embora tenha tido o intuito de restabelecer algumas das caractersticas
acusatrias, desenvolveu-se de forma a que o inquisitorialismo tivesse proeminncia,
situao que se conservou at o sculo XX.
88
MAIER, J.B. op. cit. 86. 89
ILLUMINATI, G. op. cit. p. 300. 90
MAIER, J.B. op. cit. p. 336. 91
DAMAKA, M. The faces... loc 3892 of 6774. 92
Aps os decretos de 8 e 9 de outubro de 1789 da Assembleia Constituinte que impuseram a publicidade
dos processos e a defesa do acusado em todos os graus de jurisdio. Cf. FERRAJOLI, L. op. cit. p. 136 e
MAIER, J.B. op. cit. 340 e seguintes. 93
MAIER, J.B. op. cit. 137.
36
O modelo acusatrio s veio ganhar fora a partir da segunda metade do
sculo XX, aps a Segunda Grande Guerra94
, quando se inicia um movimento de reforma
dos sistemas de justia penais para abrandar o modelo inquisitrio como uma resposta aos
regimes totalitrios derrotados. A caracterstica marcante da poca foi um fortalecimento
dos direitos de dignidade individuais e, consequentemente, uma proteo melhor ao
acusado. Vemos o surgimento da Declarao Universal dos Direitos Humanos em 1948, o
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos e o Pacto Internacional dos Direitos
Econmicos, Sociais e Culturais, em 1966, e a Conveno Americana de Direitos
Humanos em 1969. Em 1950, a Conveno Europeia sobre Direitos Humanos introduziu
conceitos processuais penais marcadamente anglo-saxes como o juzo equitativo e os
direitos de oposio95
. A Corte Europeia de Direitos Humanos, inclusive, interpreta o
artigo 5, pargrafo 4 da Conveno96
como o direito do acusado detido provisoriamente a
um processo adversarial que garanta a paridade de armas do acusador e do acusado97
.
Seria, na expresso de Diogo Malan, um direito ao confronto98
. Trata-se de um
importante passo na gradual conquista histrica de direitos de que falamos na introduo
deste trabalho. Um exemplo desse movimento a Constituio da Repblica Italiana de
94
de se consignar o projeto de Cdigo processual penal (Entwurf einer Strafprozessordnung
Goldschmidt/Schiffer), elaborado pelo jurista alemo James Goldschmidt ainda antes da Primeira Guerra
Mundial que, em 1919, foi apresentado pelo Ministro da Justia da Repblica de Weimar Eugen Schiffer ao
Senado, que no o aprovou. De acordo com Aury Lopes, em seu Projeto, Goldschmidt previu a consequente
efetivao do processo acusatrio por meio da eliminao dos resqucios do processo inquisitrio. Alm
disso, o projeto previu a possibilidade de recursos a todas as instncias penais e a participao geral de
leigos na primeira instncia, no mbito do Tribunal do Jri (tendo em vista, aqui, seu vasto conhecimento do
modelo processual francs). Goldschmidt procurou vincular priso preventiva pressupostos muitos
especficos para a sua decretao. O projeto inspirou substancialmente o Projeto de Lei para
Reorganizao dos Tribunais Penais apresentado pelo Ministro de Weimer e tambm jurista Gustav
Radbruch LOPES Jr., A.; SILVA, P. R. A. da. Breves apontamentos... p. 176. 95
DAMAKA, M. Aspectos... p.1. 96
4. Qualquer pessoa privada da sua liberdade por priso ou deteno tem direito a recorrer a um tribunal, a
fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua deteno e ordene a sua
libertao, se a deteno for ilegal. 97
Caso Piruzyan vs. Armenia, julgado em 26 de setembro de 2012, notadamente o item 116, in verbis: 116.
The Court reiterates that Article 5 4 requires that a court examining an appeal against detention provide
guarantees of a judicial procedure. The proceedings must be adversarial and must always ensure equality
of arms between the parties, the prosecutor and the detained person. Equality of arms is not ensured if
counsel is denied access to those documents in the investigation file which are essential in order effectively to
challenge the lawfulness of his clients detention (see Lamy v. Belgium, 30 March 1989, 29, Series A no.
151; Nikolova v. Bulgaria [GC], no. 31195/96, 58, ECHR 1999-II; and Garcia Alva v. Germany, no.
23541/94, 39, 13 February 2001). Disponvel em
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-111631. Acessado em 12 de setembro de 2014. 98
MALAN, Diogo Rudge. Direito ao confronto no processo penal.
http://hudoc.echr.coe.int/sites/eng/pages/search.aspx?i=001-111631
37
1948, que j trazia o desenho de um sistema processual baseado na iniciativa das partes e
na prova colhida pela cross examination das testemunhas perante um juiz imparcial99
.
Com os documentos mencionados e com as novas constituies
europeias continentais do ps-guerra, temos a instituio de Estados Democrticos de
Direito tendo o modelo autenticamente acusatrio de justia criminal como o adequado a
esta formulao constitucional. Nos regimes representativos como o so todos os Estados
Democrticos de Direito o poder do juiz no passa de uma delegao do cidado100
, e
limitado pelas leis promulgadas em nome do cidado.
Na formulao de Goldschmidt, el proceso acusatorio ha configurado
el proceso penal segn el modelo del proceso civil como un actus trium personarum.
Como o autor da ao civil pede a adjudicao de um direito prprio, o acusador pede o
exerccio do direito judicial de punir (direito judicial de condenao e execuo da
pena)101
. Goldschmidt entendia que se trata de um direito potestativo que o Estado exerce
contra si (jurisdio) intencionando uma sentena condenatria, mas s e somente s
atravs de um processo, cuja exigncia inerente ao Estado de Direito que correlacionou o
princpio da nulla poena sine lege ao de nulla poena sine judicio. A ao penal deve,
ento, ser exercida pelo prprio Estado (ou pelo querelante ou pelo povo, no caso da ao
penal popular) em face do prprio Estado, titular da jurisdio (Estado-juiz). Esta
formulao est na base da separao de funes entre julgador, acusao e defesa102
.O
processo acusatrio , por natureza e por oposio inquisio, litigioso103
. inquisio
99
PANZAVOLTA, M. op. cit. p. 610. O movimento de contrarreforma empreendido pela Corte
Constitucional fez com que a constituio tivesse que ser emendada (ver item 4.1) 100
DAHL, Robert A. Sobre a democracia. p. 128. 101
Op. cit. p. 28/35. 102
Os crticos desta formulao argumentam que desta forma no haveria uma diferena clara entre processo
penal e civil, podendo o promotor deduzir seu pedido perante um juiz cvel. Goldschmidt responde que
depois da publicizao da pena, o processo penal passou a ter suas prprias categorias, (o direito de apenar
pode ser exercido exclusivamente pelo processo penal, o direito privado pode se realizar por outros meios). A
parte acusadora do processo penal no demanda um direito prprio, mas o direito do prprio Estado de punir
(o direito de punir do Estado e s do Estado). Goldchmidt critica, inclusive, a expresso da ao penal do
art. 100 da Ley de Enjuiciamiento Criminal espanhola de 1882 e vigente at hoje. O direito no do