FACULDADE OPET
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO
MBA – GESTÃO DE ORGANIZAÇÕES EDUCACIONAIS
EXCLUSÃO NEGRA NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
CURITIBA2008
SELMA ROSA DE MELLO FREITAS
EXCLUSÃO NEGRA NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
Monografia apresentada à Faculdade Opet, ao Curso de Pós-Graduação, como requisito parcial à obtenção de titulação em MBA em Gestão de Organizações Educacionais.
Orientadora: Professora Doutora Maria Odette de Pauli Bettega
CURITIBA
2008
Agradecimentos
Preliminarmente, agradeço a Deus por mais esta chance de aprender. Sou
grata também a minha mãe, Ivone de Mello Freitas, bem assim expresso minha
gratidão para com Fabiane Barreto e Ralph, minha família, pela sua constante
onisciência, paciência; aos meus ex-alunos, causa e efeito dessa trajetória; ao
companheiro Diego Augusto Grunberg Garcia e ao Ministério Público do Estado do
Paraná, cujo apoio incondicional foi imprescindível nesta trajetória, bem assim à
dedicada condução da Professora Doutora Maria Odette de Pauli Bettega. A todos
vocês e àqueles que, involuntariamente, deixei de nomear, mas que, a sua maneira,
considero colabores, com sinceridade, só posso dizer duas palavras: Muito
Obrigada!.
LISTA DE SIGLAS
ACNAP Associação Cultural da Negritude e Ação Popular
BBC British Broadcasting Corporation Brasil
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
DNA Ácido Desoxirribonucleico
ENADE Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes
FHC Fernando Henrique Cardoso
FIOCRUZ Fundação Oswaldo Cruz
FUNDEB Fundo Nacional de Educação Básica
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IPAD Instituto de Pesquisa da Afro-Descendência
MEC Ministério da Educação e Cultura
OEA Organização dos Estados Americanos
ONU Organização das Nações Unidas
PHD Philosophy Doctor
PIB Produto Interno Bruto
PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
REUNI Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das
Universidades Federais
UCSAL Universidade Católica de Salvador
UEL Universidade Estadual de Londrina
UFBA Universidade Federal da Bahia
UFPR Universidade Federal do Paraná
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UnB Universidade de Brasília
UNIPALMARES Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares
SUMÁRIO
CAPA............................................................................... IFOLHA DE ROSTO......................................................... IIAGRADECIMENTOS....................................................... IIILISTA DE SIGLAS........................................................... IVSUMÁRIO........................................................................ VRESUMO......................................................................... VIRESUMEN....................................................................... VII
1 INTRODUÇÃO................................................................. 12 RAÇAS............................................................................. 33 A SITUAÇÂO DO NEGRO NO BRASIL........................... 144 A SOCIOLOGIA DO NEGRO NO
BRASIL............................................................................
28
5 COTAS............................................................................. 376 COTAS PREFERENCIAIS............................................... 487 CONCLUSÃO.................................................................. 66
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................. 74
RESUMO
Ao longo deste trabalho, houve uma incessante busca no sentido de se intentar questionar a situação das cotas no ensino superior, temário este, posto em paralelo com a vivência do negro no Brasil, num contexto que será verificado na capitulação a seguir, sob diversos aspectos, a exemplo de: significado do termo raça, a historicidade do negro no Brasil (hoje e ao tempo da escravatura), dados sobre as cotas raciais (no mundo, no País e no Paraná), informes genéricos sobre leis respeitantes ao racismo/preconceito, comparação de críticas (positivas e negativas) feitas à sistemática de quotas, rememoração de tópicos sociológicos alusivos aos negros, exame de efeitos (concretos e projeções) devido à adoção das cotas, esboço de uma estratégia eficiente e eficaz (prática e teórica) para que se dê uma real aceitação e, não imposição, das reservas raciais e preferenciais (ambas temporárias) em nosso meio — isto, livre de associações de cunho meramente ideológico e/ou assistencialista.
Palavras-Chave: cotas (raciais e preferenciais) no ensino superior nacional; racismo e preconceito; conceito de raça; historicidade, legislação, sociologia do negro; cotas quanto a efeitos, críticas e estratégias.
RESUMEN
La elaboración de esta monografia tuvo la pretensión de cuestionar la situación de las cotas (fracciones/parcelas) en la enseñanza superior, tema puesto en paralelo o cotejado con la experiencia de vida del negro en Brasil, un contexto a ser explotado en los capítulos que siguen, bajo los aspectos: significado del término raza, recapitulación y actualidad de la historia del negro en nuestro País, datos sobre las cotas cuyo criterio determinante es la raza (en el mundo, en Brasil y en nuestro Estado), informaciones genéricas sobre las leyes relativas a la cuestión de la raza, comparación de críticas (positivas y negativas) realizadas cuanto a la sistemática de cotas, tópicos sociológicos referentes al negro, examen de efectos (concretos y proyecciones) por la adopción de cotas, bosquejo de una estrategia eficiente y eficaz (práctica y teórica) para que haya una verdadera aceptación, sin imposiciones, de las cotas con destinación a los ciudadanos de esto color y de aquellas llamadas “de preferência” (ambas, temporarias) en nuestro medio — esto, libre de asociamientos simplemente ideológicos, paternales.
1. INTRODUÇÃO
Tratar da exclusão negra — leia-se, de pretos e pardos — no ensino
superior brasileiro é uma tarefa árdua, multifacetada e desafiadora. Uma atitude
simplista seria tecer considerações sobre tal tema, a partir de uma condenação, ou,
ao revés, de mera aceitação de fatos, uma vez que opiniões, eventos e estudos a
respeito não faltam, pululam desde a imprensa até conversas cotidianas;
entrementes, o suposto ineditismo a ser proposto nas páginas a seguir não se
afigura como um meio termo, mas, ao contrário, se transfigura em adequação
relativa às cotas raciais — hodiernamente, postas em uso no que tange ao ingresso
em universidades públicas nacionais (graduação) — e, na seqüência, em
implantação concernente às cotas preferenciais (destinadas a candidatos negros às
vagas de pós-graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, em instituições
públicas de ensino superior). A visão inovadora que se tenciona propiciar nesta
monografia se cinge à comprovação de que a adoção de quotas raciais nos exames
vestibulares é benéfica — sendo imprescindível, tão-somente, que haja a efetuação
de um “molde nacional” — bem assim que o aceite de cotas preferenciais faz-se
necessário, ambas, em caráter temporário. Então, cabe destacar que os benefícios
referenciados dão-se não só para cidadãos negros brasileiros — há tempos, uma
fração deveras estigmatizada da população nacional — mas, também, estão
direcionados ao nosso tecido social e ao sistema educacional vigente. É lógico,
quando se aventa tal propósito, inexiste qualquer negação quanto às mazelas que
assolam a realidade educacional e socioeconômica (que dirá política!) pátrias — de
per si, já bastantes complicadas —, mas, se intenta, sobretudo, evidenciar mais uma
forma de resolução (ainda, que parcial e pontual) para um cenário, como já dito,
intrincado e, por vezes, desolador; aliás, essa pretensa solução aqui buscada
encontra-se firmemente respaldada na prevenção de futuros embates, melhor
dizendo, a idéia primordial que se quer transmitir é a de se evitar uma possível cisão
racial no Brasil.
Desde a criação do sistema de cotas raciais nas universidades federais
brasileiras, há cerca de quatro anos, os debates sobre o assunto não pararam: na
verdade, para o pior e o melhor, eles têm se avolumado e dado margem a distorções
e a conseqüências imprevistas, quando não, indesejáveis, as quais se refletem,
diuturnamente, em várias áreas — científica, jurídica, comportamental, dentre
outras. Prova disso, é que nos meses vindouros as quotas raciais serão matéria de
apreciação da mais alta Corte de Justiça do País, devido à proposição de Ação
Direta de Inconstitucionalidade.
Pois bem! Mediante a exposição de alguns pontos tidos como cruciais e, por
óbvio, relativos à titulação deste trabalho monográfico, de antemão, já é possível
verificar a complexidade, senão, ousadia da aludida proposição, a qual será
“desenhada”, paulatinamente; todavia, note-se, é preciso reafirmar que o estudo em
questão será examinado com a melhor das intenções, e, longe de ser explicitado de
modo superficial, tampouco, far-se-á uma exegese aprofundada, comparável a um
tratado! O que se almeja, doravante, é informar aspectos dessa situação específica
de abominável exclusão, e, com base neles, instigar novas formulações, cujos
conteúdos sejam pautados na eficiência e na eficácia quando colocados em prática;
na verdade, o que se deseja, é afastar a temática focada de critérios absurdos,
amadores e que dêem vazão ao surgimento de resultados vinculados à violência, à
ignorância, à miséria, ao retrocesso, enfim, a fatos que prestem um desserviço ao
desenvolvimento da nação.
2. RAÇAS
Um despropósito ocorrido recentemente em Brasília, veio à tona em boa
hora; ele sinaliza que o Brasil está enveredando pelo perigoso caminho de tentar
avaliar indivíduos não pelo conteúdo de seu caráter, mas pela cor de sua pele.
Em maio de 2007, Alan Teixeira, de 18 anos, e seu irmão gêmeo, Alex,
foram se inscrever no vestibular na Universidade de Brasília (UnB). Ambos têm pele
morena e, por isto, no certame, optaram pelo sistema de cotas raciais. Desde 2004,
a UnB – assim como outras, aproximadamente, 33 universidades do País – reserva
20% de suas vagas a alunos negros e pardos que obtêm a nota mínima no exame
em tela. Alan e Alex são gêmeos univitelinos (filhos de pai negro e mãe branca,
gerados no mesmo óvulo e, fisicamente, idênticos). Por antecipação e com base na
logicidade, seria normal presumir-se que os dois recebessem tratamento paritário no
papel de cotistas; entretanto, e até de modo surpreendente, não foi isso o que
aconteceu, pois uma comissão composta de “juízes da raça”, ao ver as fotos dos
irmãos, decidiu: Alex é branco e Alan, negro! Alan, que pretendia prestar vestibular
para educação física, foi classificado como preto (subcategoria parda) e pôde ser
considerado quotista racial; mas para Alex, que pretendia cursar nutrição, houve a
recusa de tal benefício. “Não sei como isso é possível, já que eu e meu irmão somos
iguais e tiramos a foto no mesmo dia”1, declarou um, compreensivelmente, perplexo
Alex, que decidiu recorrer da esdrúxula decisão.
Então, eis que interessa observar o seguinte: são
ocorrências desse quilate que colocam o Brasil — antes com o propalado privilégio
1ZAKABI, Rosana e; CAMARGO Leoleli. Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é o branco e...este é negro. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2011, ano 40, nº. 22, p. 82-88, 6 de junho de 2007.
de ser oficialmente cego em relação à cor da pele de seus habitantes — sob o risco
de se mergulhar no ódio racial.
E é justamente a avaliação divergente acontecida com os irmãos Alan e Alex
pela banca da UnB que comprova o quão nefasto é tentar classificar as pessoas por
intermédio do critério racial. Aliás, consigne-se, em todas as partes do planeta onde
isso foi tentado, independente de sólidas justificativas, houve desastres.
Nessa trilha, um dos mais eloqüentes referenciais históricos de oficialização
da discriminação racial deu-se na Segunda Guerra Mundial, sob o comando de
Hitler, o qual promoveu um genocídio, em especial, de judeus, tudo em nome da
purificação da raça. O desiderato hitlerista teve na metodologia criada pelo
geneticista Otmar von Verschuer — mentor de Josef Mengele — um dos seus
pontos de partida e se valeu de medidas (de teor anti-semítico e pseudocientífico)
para fixar o grau de impureza racial das pessoas; desafortunadamente, da teoria se
passou para o efetivo exercício e, assim, o referido procedimento doutrinou centenas
de médicos, funcionários de saúde e oficiais nazistas.
Outro absurdo, ocorrido em 1948, ensejou movimento que por décadas
esfacelou a sociedade local (apartheid sul-africano), mediante turbulenta segregação
de indivíduos negros.
Com efeito, fácil inferir que de ambas as situações supramencionadas várias
lições restaram à humanidade, entre elas, algumas que resultaram em graves
tormentos sociais, cuja escala mínima deu azo à criação de campos de
concentração e de guetos.
Cabe relembrar que a discriminação do diferente, ou, do estrangeiro é um
absurdo, mas antiga; poder-se-ia até afirmar que equivale à existência da própria
civilização. Na Grécia se costumava desprezar os estrangeiros, chamados de
“bárbaros” — significando “aqueles que gaguejam” —, pelo simples fato destes não
saberem falar o idioma local.
As diferenças fenotípicas humanas permitiram à sociedade dividir o mundo
em raças, de acordo com a cor da pele, dos olhos e de outros caracteres que nos
distinguem — inclusive, no que respeita indivíduos da mesma raça. Essa divisão,
muitas e muitas vezes, foi pièce de résistance utilizada pela raça dominante (e, isto,
não só numericamente), para subjugar as demais. Assim aconteceu durante o
Império Romano, quando os cidadãos de Roma tratavam aqueles que não eram
natos da Itália como animais sem alma. Outrossim, vale rememorar que em aludido
caso não se tratavam de distinções significativas, afinal, todos os povos da Europa
se assemelham bastante em termos fenotípicos; logo, gauleses, ou, trassios,
espanhóis ou aqueles nascidos na ilha da Sicília eram tidos como seres não
humanos e indignos de respeito. Então, eis que à época, a distinção física se
afigurava como marco de segregação e, portanto, ser de uma raça que não fosse a
romana era motivo suficiente para causar perjúrios à vida de qualquer um.
Atualmente, estudos concernentes à discriminação racial realizados no
século passado e que se ampararam em manifestações de pensadores, sociólogos
e cientistas se encontram relegados à lixeira da História. Nesse sentido, as ilações
disseminadas pelo arrogante e franzino conde francês Joseph-Arthur Gobineau, o
qual defendia a tese de que os alemães descendentes de um povo mítico (arianos)
representavam a suprema raça do mundo moderno. A desfaçatez de Gobineau foi
tão esmerada por ocasião da chefia da delegação francesa que visitou o Brasil em
1869, que ele previu o despovoamento do nosso território, graças aos casamentos
inter-raciais: em sua ótica distorcida, Gobineau acreditava que os brancos, os
negros e os índios (além de representantes de raças diferentes), eram espécies
totalmente distintas e, desta feita, do cruzamento entre eles resultariam
descendentes estéreis.
Outro exemplo nessa linha deu-se nos idos de 1883, com a propagação de
idéias relativas à eugenia, patrocinadas pelo britânico Francis Galton, que pregava o
aperfeiçoamento da raça humana por intermédio do cruzamento concretizado entre
seres seletos, portadores de característicos tidos como desejáveis (inteligência,
força física, dentre outros).
A crença ou noção referente às raças — historicamente, uma construção
ideológica e cultural para que os homens, uns dominem os outros — é fruto não
apenas da ignorância, mas, ainda hoje, de reiteradas tentativas, nascidas na própria
seara científica, de se adquirir notoriedade (ainda que sob claro desafio ao consenso
reinante), de se revalidar arcaísmos propalados por antropólogos no século XVIII.
Destarte, em 2005, o biólogo inglês Armand Marie Leroi afiançou que raças não só
existem, mas sua conceituação deve ser aceita em prol do tratamento de
determinadas doenças, um mito que já deveria ter sido desfeito há tempo. Então, eis
que em pleno século XXI reina uma confusão relativizada quanto a estudos
freqüentemente divulgados sobre doenças mais comuns entre negros ou brancos,
ou, ainda, amarelos.
Há pouco, provocou escândalo no meio científico o comentário de cunho
racista tecido por James Watson, Prêmio Nobel (co-descobridor da estrutura do
DNA), britânico, de 79 anos. E o mais incrível, é que tão bombástico e inaceitável
comento foi posteriormente corroborado pelo cientista político estadunidense,
Charles Murray, tido como defensor da eugenia; para Murray, a ciência moderna
está ao lado de Watson e a probabilidade de negros serem portadores da anemia
falciforme é igual à capacidade de judeus adquirirem a Doença de Tay-Sachs, ou,
serem asquenazes (grupo étnico originário da Europa Central e Oriental, ao qual
pertenceram Einsten, Freud e Mhaler), ainda que ele os considere dotados de
superioridade intelectual.
Na opinião do geneticista Antonio Sole-Cava, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, essas deduções equivocadas sobre enfermidades nada têm a ver
com raça, mas com grupos populacionais que se casam mais freqüentemente entre
si; os genes que determinam a cor da pele são insuficientes para determinar,
concomitantemente, essa ou aquela diferença, e, de conseqüência, impossível se
partir deste ponto com o fito de fixar uma relação causa-efeito entre “raça” e males.
Num outro patamar, cientificamente e baseado em conceito assentado há
décadas, tem-se que, em termos biológicos, as raças são chamadas de subespécies
e definidas como grupos de pessoas — ou animais —, fisiológica e geneticamente
diferentes de outros grupos; assim, são considerados da mesma raça os indivíduos
que podem cruzar entre si e produzir descendentes férteis.
No entanto, de novo, a sobredita conceituação foi refinada, na medida em
que se concluiu ser viável ocorrer mais variação genética entre as pessoas de uma
mesma raça do que entre seres de raças distintas. Destarte, eis que um sueco loiro
pode ser, no íntimo de seus cromossomas, mais díspar de outro semelhante do que
de um negro africano. Para resumir e com fulcro nos estudos realizados na área da
genética, descobriu-se que a raça não existe abaixo da superfície cosmética que
define coloração de pele, tamanho e formato do crânio, tipologia dos olhos e do
nariz, bem como textura do cabelo; na verdade, essa descoberta está alicerçada no
genoma humano, composto de 25 mil genes e as distinções mais aparentes, tais
como cor da derme e textura capilar, são determinadas por um conjunto de genes
insignificantemente pequeno se comparado a todos os genes humanos. Então, em
consonância com o dito acima, é admissível dizer com exatidão que as diferenças
entre um branco nórdico e um negro africano compreendem apenas uma fração de
0,005 do genoma humano. E mais: provém de comprovação empírica a peremptória
assertiva feita por Craig Venter (o primeiro geneticista a elaborar a descrição da
seqüência pertinente ao genoma humano) e de imensa maioria de seus pares que,
no tocante aos homens, a genética desautoriza falar-se de raças.
A diferença de cor de pele é um fenômeno relativamente novo na história da
humanidade. Quando o Homo sapiens surgiu, todos tinham a pele negra e
habitavam o continente africano; à medida que os indivíduos foram se espalhando
pelo globo, primeiro na Ásia, depois na Oceania e, sucessivamente, na Europa e na
América, houve a adaptação das populações aos ambientes. No mundo científico,
acredita-se que a seleção natural exercida nesses ambientes tenha originado as
várias cores de pele e uma série de peculiaridades anatômicas que distinguem as
raças. Desse modo, tem-se, à guisa de exemplo, que: a um, na África, a pele escura
do ser humano foi preservada a fim de protegê-lo do alto grau de radiação
ultravioleta solar; a dois, terem sofrido aqueles que migraram para o Norte europeu,
uma pressão seletiva no sentido de ocorrer o clareamento da pele para aproveitar
melhor o sol fraco típico da região e, assim, sintetizar a vitamina D, essencial aos
ossos.
Definitivamente, não existem genes exclusivos de uma determinada cor.
Numa sociedade segregada como a americana, talvez seja mais comum que grupos
populacionais tenham uma carga genética mais parecida; já em lugares onde a
miscigenação predomina isto é muito improvável.
Neste trecho do presente capítulo, é producente registrar que a coloração da
pele sequer determina a ancestralidade de alguém: um negro, por exemplo, pode
não ter ancestrais provenientes da África; por conseguinte, tem-se que tal evidência
científica é especialmente verdadeira entre os brasileiros, isto, devido ao alto grau
de miscigenação existente no País.
Enfim, são as inúmeras e freqüentes pesquisas na área que dão o “tom” da
matéria: segundo a geneticista Maria Catira Bortolini, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, já é possível inferir que: “Os genes que determinam a cor da
pele de uma pessoa são uma parte ínfima do conjunto genético humano — apenas
seis dos quase 30 000 que possuímos”2. Em parceria com seu colega mineiro Sérgio
Pena, Maria Catira produziu um estudo que mostra que os negros brasileiros por
parte de pai têm em média mais genes europeus do que africanos. Nessa esteira,
Sérgio Pena, em outra pesquisa similar feita em conjunto com a BBC Brasil,
afiançou que: “Esses estudos mostram que é impossível dividir a humanidade em
raças”3.
Aliás, nas três últimas décadas, consensualmente, geneticistas afirmam que
os homens são todos iguais, ou, conforme diz Pena, os homens são igualmente
diferentes.
Sob outro ângulo, é inconteste e merece ser apontado que seres humanos e
a maioria dos animais baseiam suas escolhas sexuais na aparência e,
conseqüentemente, a raça firmou-se, ao longo da evolução e da história cultural
humana como um poderoso conceito; dessa maneira, compreensível que em termos
cosméticos essa idéia seja imutável, mas daí a tentar explicar diferenças
2 ZAKABI, Rosana e; CAMARGO Leoleli. Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é o branco e...este é negro. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2011, ano 40, nº. 22, p. 82-88, 6 de junho de 2007.3 ZAKABI, Rosana e; CAMARGO Leoleli. Eles são gêmeos idênticos, mas, segundo a UnB, este é o branco e...este é negro. VEJA. São Paulo : Editora Abril, edição 2011, ano 40, nº. 22, p. 82-88, 6 de junho de 2007.
intelectuais, de temperamento ou de reações emocionais em função da raça não só
demonstra monumental estupidez, mas é algo extremamente perigoso.
No cenário sociológico, é fato, muitos insistem em defender a manutenção
de tacanhas noções sobre raça, conquanto admitam que sob o ponto de vista
científico, raças não existem.
E diante desse contexto, natural e pertinente perquirir: E onde se encontram
os pardos, no Brasil? Entre nós, os pardos sofrem “sem identidade” e servem, tão-
somente, para engrossar as estatísticas sobre afro-brasileiros — isso, diga-se de
passagem, graças à ocorrência de erro metodológico de nossa classificação
censitária. Nesse compasso, é bem-vinda a explicação de que aqui sempre foi um
problema definir o que é ser pardo; aliás, tão mal resolvida é a questão em apreço
que, como se não bastasse o entrave criado pela UnB aos irmãos Teixeira, em
2003, na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, registrou-se outro episódio
relacionado tanto à acessibilidade de cotas raciais quanto aos pardos, quando 76
candidatos não se alinharam ao fenótipo fixado pelos avaliadores da instituição,
especificamente, aqueles que não tinham lábios grossos, nariz achatado e cabelo
pixaim, característicos necessários à sua admissão na condição de cotistas. Na
origem, sabe-se que os indivíduos pardos são frutos do casamento entre brancos
(europeus) e negros (africanos) e deveriam, genericamente, ser chamados de euro-
afro-descendentes. Hoje, no País, o número daqueles que se declaram pardos beira
os 76 milhões, numa população estimada em 182 milhões de nacionais; então,
simples defluir desses dados que em muitas famílias brasileiras há negros.
De outra sorte, os movimentos negros e os cientistas sociais daqui chamam
de “negros” o conjunto de “pretos” e “pardos”, de conformidade com as estatísticas
oficiais. Ainda, de bom alvitre frisar que essa démarche metodológica confunde-as
pessoas, que não empregavam, até pouco tempo atrás, tanto os termos “pretos”
quanto “negros” como antônimos. Somam-se a esses informes que, em vez de uma
população de 5,9% de pretos, percentual divulgado em prol da implementação
política de cotas fala de 48% de “negros”; os 42% de autodeclarados pardos não
aparecem nas estatísticas. E mais: segundo dados estatísticos, entre os 56,8%
milhões de pobres, o percentual de 65,8% é composto por negros e não por 7,1% de
pretos. Em tal quadro, há omissão de autodeclarados brancos (34,2% entre os
pobres) e de autodeclarados pardos (58,7%). Então, crava Ali Kamel: “se a pobreza
tem uma cor no Brasil, essa cor é parda”4. O conceito de “negro” para o mencionado
autor equivaleria ao sinônimo de “preto”. E aduza-se: após se debater contra a
leitura equivocada das estatísticas oficiais, Kamel percebeu que nelas “negros” são
todos aqueles que não figuram como brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo,
escurinho, moreno, marrom-bombom não são brancos, segundo a estatística
praticada no Brasil, ou, melhor dizendo, qualquer um que se encaixe neste gradiente
tão variado de cores, oficialmente, é negro.
E, ainda, vale fazer um aparte quanto ao ineditismo da lei pátria ter admitido
aos pardos, curiosamente, uma existência temporária, por ocasião da implantação
das cotas raciais, no Rio de Janeiro. Essa ocorrência sem precedentes deu-se em
novembro de 2001, quando o então Governador do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho sancionou a Lei nº. 3.708, instituidora de cotas. O espírito dessa
legislação refletia o pensamento do cidadão médio: negro é sinônimo de preto e
pardo, de pardo! Entrementes, por questões políticas (harmonização com a norma
que instituía as cotas para alunos da rede pública), a Lei nº. 4.151, sancionada em 4
de dezembro de 2003, vetou as cotas destinadas aos pardos. A reflexão que brota a
4 KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. 2ª. impressão. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 2006, p. 11.
partir do acontecido concerne ao aspecto identificação racial, ficando comprovada,
de modo inconteste, a existência de racismo e, sobretudo, no que respeita às
dissensões havidas entre os defensores de cotas — incapazes de chegar a um
denominador comum sobre os critérios de fixação das referidas — que o assunto
merece, ainda, ser examinado detidamente, além de existir um longo trajeto a ser
cumprido. Ora, há que se refletir sobre o seguinte: uma vez aceita a tese referente à
“existência” dos pardos, clarividente tornar-se-iam os erros cometidos pelos
pesquisadores de censos oficiais, os quais não deixam de ser comentados à boca
pequena, mas carecem de explicações, adequadas.
Na Universidade de Brasília, outros acontecimentos (o primeiro, verificado
em 2003) fortificaram ainda mais o desalento que permeia tal discussão: no edital
daquele ano, que explicitava as regras do vestibular, houve a novidade de que o
estudante pardo também poderia se beneficiar com as quotas; porém, aconteceu o
inacreditável, do ponto de vista da lógica (se alguém é pardo, não pode ser negro!),
da ética (instou-se o candidato a mentir!) e das leis de igualdade racial (no País,
segundo a legislação em vigor, ninguém pode ser discriminado pela cor da pele),
pois se evidenciou, para pasmo geral, no item 3.1 do citado documento, que só
seriam beneficiários das cotas os negros pretos (pleonasmo) e os pardos negros
(uma nítida inviabilidade ótica!). Persistindo no inaceitável, a Universidade de
Brasília “legitimou” outros descalabros em dita documentação e estabeleceu não
apenas a submissão de cidadãos ao constrangimento moral, mas a uma comissão
de umas poucas pessoas tidas como abalizadas para essa tarefa (num Brasil
miscigenado), as únicas dotadas de capacidade para fazer determinada distinção.
Então, numa admirável e, mais do que isto, condenável perpetuação de erros
crassos, senão (diante do já exposto) falha inadmissível, eis que na Universidade de
Brasília repetiu o coupe de grasse em 2007.
3. A SITUAÇÃO DO NEGRO NO BRASIL
Desde o dia 22 de abril de 1500, data oficial do descobrimento do Brasil,
nunca mais o País se viu livre da discriminação, a qual nasceu com ele e, a cada
dia, parece mais imorredoura, conforme indicativos reais. Tudo começou com os
indígenas, alcançando os negros escravos e, ainda, hodiernamente, voga uma
flagrante discriminação para com os pobres, os deficientes físicos, os homossexuais,
as mulheres, os idosos, entre outros; todavia, dentre todos esses excluídos, aos
negros destinou-se o maior quinhão de preconceito. Ao lado dos índios, os negros
foram vítimas no Novo Mundo, enfrentaram terríveis agonias, vivenciaram episódios
de lutas, martírio e morte, tudo em busca da libertação da escravidão que lhes foi
imposta.
Durante os três primeiros séculos de nossa História, foram trazidos para cá,
na condição de escravos e à revelia, aproximadamente, quatro milhões de africanos.
No Brasil colonial, a base da economia e da riqueza repousava no escravismo. Os
negros trazidos da África, aqui marcados pelo ferro em brasa que os designava
como propriedade de algum “senhor de terras”, eram aproveitados nas mais
diversas atividades econômicas, desempenhavam todas as funções nos engenhos,
cuidavam da agricultura, da pecuária, laboravam em minas de ouro e pedras
preciosas, além de participar, ativamente, no zelo das tarefas domésticas de seus
“senhores”.
Nosso País figurou como a última nação da América a abolir o regime
escravista — em 13 de maio de 1888 e apenas com dois artigos — ato este que
condenou a Monarquia à morte e abriu as portas à República; na supracitada data,
com o advento Lei Áurea, o Estado brasileiro além de abolir formalmente a
escravatura, deixou os negros à mercê da concorrência do mercado capitalista —
período em que o trabalho assalariado já despontava como o mais adequado à
sociedade industrial que se formava. E em que condições a escravidão foi abolida
do Brasil? A contrario sensu de uma luta pela liberdade, a abolição brasileira
apresentou-se como um acordo entre a elite republicana (que havia se apropriado
de alguns ideais libertários durante sua estada na Europa) e um governo
monárquico altamente enfraquecido. Os negros não foram atores de sua liberdade e,
sim a receberam quase que pacificamente; e, junto com a alforria, houve a sua
marginalização. Uma vez expulsos de latifúndios apenas com um papel na mão, que
representava, teoricamente, a sua libertação, os negros não tinham para onde ir,
nem dispunham de dinheiro e tampouco contavam com a consideração da
sociedade que, agora, os via como animais fora das jaulas. A permanência de ex-
escravos nas terras de antigos “senhores” tornou-se algo impensável.
Simultaneamente, o Brasil abriu suas portas à mão-de-obra imigrante (últimas
décadas do século XIX e início do século XX), em especial, aos europeus,
negligenciando, desta forma e majoritariamente, os recém-alforriados. Aliás, durante
o aludido período, foram elaboradas leis com o fito de impedir negros e indígenas de
acessarem direitos sociais. Com efeito, os ex-escravos, uma vez declarados libertos,
passaram, então, a vivenciar a inatividade, a falta de meios no tocante à
subsistência básica: quando não permaneciam desempregados devido à ausência
de qualificação profissional, submetiam-se a serviços que exigiam mão-de-obra
pesada — tendência continuada nos dias atuais. A partir da Abolição da
Escravatura, os negros foram condenados à estagnação social e, sem
oportunidades, foram encaminhados por veredas pouco lúcidas, como o furto, o
roubo, alcançando, infelizmente, uma das vertentes mais devastadoras da
capacidade humana, que consiste em matar. É inegável: uma vez assalariados, os
negros livres não tiveram a chance de ascender socialmente, tal como acontecia
com os brancos, e, para piorar a situação reinante, eles passaram a ser
considerados, apesar das desigualdades e do despreparo, uma ameaça.
No que tange à situação da mulher negra, é consabido, esta era tida como
um produto mais valioso do que o homem negro devido a sua capacidade
reprodutora; demais disso, consigne-se, além de ter sua dignidade maternal
frontalmente ignorada, na condição feminil era considerada mercadoria, e, não raras
vezes, como se não bastasse, por tal razão, aviltada, isto, em atenção aos mais vis
instintos sexuais de seus “senhores”.
Na verdade, com o término da escravidão, os negros foram relegados ao
olvido, conquanto o Estado os tenha contemplado, juridicamente e em tese, com
uma equiparação aos brancos, bem assim, conforme até hoje amplamente se
propala, os haja isentado de qualquer barreira institucional.
Então, num primeiro momento, tem-se a impressão de que aqui se seguiu,
ao pé da letra, o pensamento manifesto pelo ilustre enciclopedista, filósofo francês,
Jean-Jacques Rousseau, um produto do Iluminismo, a quem coube revigorar para a
democracia ocidental a reflexão aristotélica de que se a igualdade tende a ser
violada, a lei deve assegurá-la e promovê-la; entrementes, em termos legislativos,
tanto o que foi feito quanto àquilo que se pretende aplicar no Brasil em relação aos
negros, faz com que pairem sérios questionamentos em relação à verdadeira
apreensão dos conteúdos em “jogo”. E acresça-se: sob essa perspectiva, merece
ressalva que a justiça pátria nem sempre deixou de ser cega, a exemplo da Lei
Complementar à Constituição da República de 1824 (legislação do Império), cujo
teor preconizou que negros escravizados não podiam ir às escolas, uma vez que
eram considerados portadores de moléstias infecciosas; já a Lei nº. 14, datada de 22
de dezembro de 1837, da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, insculpiu
em seu artigo 3º., que escravos e pretos (ainda que alforriados) eram proibidos de
freqüentar os estabelecimentos de ensino públicos. Ambas as legislações, não há
dúvida, aplicaram uma política estatal de cunho extremo e vergonhosamente
restritivo, caracterizaram o que hoje se denominariam de “cotas negativas”.
“No Brasil temos uma realidade de pessoas que foram tratadas como
objetos”5, afirma a docente Tânia Baibich-Faria referindo-se aos escravos libertos
pela Princesa Isabel. “A partir da abolição, o negro não teve uma integração na
sociedade. Por isso até hoje tem menos acesso à educação, à saúde”6, completa
Maria Nilza da Silva, socióloga e coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Asiáticos
da Universidade de Londrina (UEL).
O preconceito é (etimologicamente) atitude, sentimento ou parecer
insensato, especialmente de natureza hostil, assumido em conseqüência da
generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio: em
suma, refere-se à intolerância.
Já o vocábulo racismo concerne ao conjunto de teorias e crenças que
estabelecem uma hierarquia entre as raças e etnias; o termo traduz doutrina ou
sistema político fundado sobre o direito de uma raça (considerada pura e superior)
de dominar outras; significa o preconceito extremado contra indivíduos pertencentes
a uma raça ou etnia diferente, em geral, considerada inferior; externa, ainda, atitude
de hostilidade em relação à determinada categoria de pessoas.
5 MARONI, João Rodrigo. As máscaras do preconceito : próximo do 13 de maio, faça uma reflexão sobre o racismo, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 5/5/2005. 6 MARONI, João Rodrigo. As máscaras do preconceito : próximo do 13 de maio, faça uma reflexão sobre o racismo, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 5/5/2005.
Preconceito e racismo são manifestações próprias do ser humano e
costumam apresentar-se em algum momento de nossas vidas, sob forma direta ou
indireta e inspiram, inclusive, reflexões que podem tanger aforismos ou sofismas;
segundo clichê, ambos se explicam, mas jamais se justificam.
E de acordo com apreciação a respeito, expressa pela supracitada doutora
em psicologia social e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a raiz
do preconceito está na necessidade do ser humano classificar o outro. Além disso,
para ter uma identidade, os indivíduos precisam fazer parte de grupos e a tendência
generalizada neste sentido, é se referir aos demais não integrantes do grupo como
inferiores. A esse contexto, juntam-se fatores sociais, econômicos e, igualmente, o
elemento historicidade. E, para que se opere a erradicação do preconceito, a
especialista sugere que não se fechem os olhos para a questão e, que, tampouco se
tente classificar nossos semelhantes. “Tem que se colocar no lugar do outro”7,
afirma.
A verdade é que tal excrescência social, que em nada nos ajuda, segue
incólume a interferir em nosso cotidiano, sendo aferível por números. Tânia ainda
lembra que os negros representam 65% dos pobres e cerca de 70% dos indigentes
do País. Para ela, existem alguns inimigos invisíveis que ajudam a propagar as
desigualdades, como a falta de políticas públicas para combater o racismo e a
miséria e, também, a ausência de uma cultura mais reflexiva por parte da teia social
quanto a aceitar diferenças.
Na opinião da professora Maria Nilza da Silva, o racismo (um tipo de
desinformação), deve ser enfrentado por intermédio da educação. Nessa
perspectiva, por exemplo, um passo significativo já foi dado: recentemente, o
7 MARONI, João Rodrigo. As máscaras do preconceito : próximo do 13 de maio, faça uma reflexão sobre o racismo, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 5/5/2005.
governo federal tornou obrigatório o ensino da História da África e História da
População Afro-Brasileira em todas as escolas de ensino fundamental do País.
Preambularmente, é chocante a abordagem de que 120 anos depois da
assinatura da Lei Áurea, o Brasil ainda convive com o preconceito, o racismo: de
nada adianta tal data ser comemorada todos os anos como um marco de libertação
e dignidade da população negra, quando a situação atual experimentada por essa
fatia populacional de brasileiros é, no mínimo, incômoda: nessa toada e em pleno
século XXI, tal parcela da população continua, em sua maioria, sem vez e sem voz,
empregada em trabalhos árduos, sob regime de quase semi-escravidão,
particularmente, nas fazendas do Norte e Nordeste do Brasil. Aqui, a ideologia de
mais de 300 anos de escravidão se mantém forte e o negro é rotulado como um
indivíduo submisso e inferior. Ao se inventariar a posição hoje ocupada pelos afro-
descendentes no cenário nacional, descobre-se que mecanismos foram arquitetados
pelas classes dominantes para mantê-los na marginalidade, isto é, constata-se que
instrumentos de segregação para com a comunidade negra passaram por um
aperfeiçoamento ao longo do tempo, com o intuito de se atingir um objetivo maior,
qual seja, manter a supremacia racial branca. Entre nós, o preconceito racial e/ou o
racismo são continuamente exteriorizados, não raro, de maneira até discreta e
branda; ambos vigoram, hodiernamente, em várias regiões do Brasil, explicitados,
em maior ou menor grau, em todas as classes sociais. Um exemplo típico de
racismo se comprova mediante dados obtidos pelo Datafolha, que publicou uma
pesquisa onde se revela serem os negros abordados com assiduidade em batidas
policiais: eles são mais revistados do que pessoas de outras etnias, recebem mais
insultos e agressões físicas do que brancos. Aliás, a escolaridade e a condição
financeira de negros têm pouca influência sobre a freqüência e incidência nessas
ações da polícia. Conclui-se, então, que os métodos empregados pelos policiais
quanto aos indivíduos, num primeiro momento, levam em consideração sua
aparência física (vestimentas), a etnia (fator principal) e um estereótipo
completamente fora de sentido: a expressão facial da pessoa; dessa maneira,
aquele que se encaixa dentro de uma determinada tipificação psicológica, acaba
fazendo parte de um sistema seletivo e discriminatório, e, em geral, esse alguém é
pobre, e, de regra, negro ou mulato (pardo).
Por infortúnio, o passado escravista registrou no inconsciente coletivo
nacional a absurda noção da inferioridade negra e tal ideação atingiu também muitos
negros, que se sentem inferiorizados em relação à sua condição, chegando a
abominar a própria cor e a valorizar a cultura branca como padrão ideal. Por causa
de razões históricas, os negros continuam a encabeçar um dos setores mais
miseráveis e sofridos da sociedade brasileira; deles foi retirada a liberdade,
dificultada a conservação de sua cultura e memória e, até hoje, não lhes foi,
efetivamente, restituída a plena condição de cidadania.
Quotidianamente, renovados e constantes exemplos mostram que o
preconceito, o racismo vigem entre nós — em algumas ocasiões, conforme já
afirmado, pautado pela discrição; nesse quadrante, o racismo desumaniza e elimina
a compaixão que se presume existente nos homens, os quais, em geral, sequer
conseguem manifestar os sentimentos mais nobres do ser humano quando as
“vítimas” não são seus iguais. Então, num breve aparte, torna-se cabível, diante de
tal tessitura, externar o raciocínio de um dos mais famosos e influentes filósofos
alemães do pós-guerra, Jürgen Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt, segundo
o qual o modernismo político é o responsável por acostumar a tratar igualmente
seres desiguais, em vez de tratá-los de modo desigual.
Outra prova cabal do acima exposto, emerge da recentíssima obra de
autoria de Alberto Carlos Almeida, a qual trata da percepção dos brasileiros em
relação à cor da derme; nela, o sociólogo pediu aos entrevistados que atribuíssem
qualidades ou defeitos a homens brancos, negros e pardos, retratados em fotos. Aos
brancos atribuíram-se qualitativos, tais como inteligência, honestidade e educação
— aliás, no que concerne aos negros, estes ficaram posicionados em segundo lugar
em dita “classificação” — e, quanto aos pardos, é fato que foram os mais
relacionados com características negativas. Nessa pesquisa, merece destaque,
pardos e negros são percebidos de modo mais negativo, justamente por continuar a
figurar em maior número (por causa de circunstâncias históricas) e na base da
pirâmide social, onde as oportunidades são escassas e a marginalidade é crescente.
A partir disso, Almeida refuta a tese de que, talvez, um dos grandes e sérios
problemas brasileiros seja o classismo; ao revés, para ele, possivelmente, seja o
preconceito racial. No livro em pauta, novos elementos acrescentam combustível à
discussão, a exemplo de cruzamentos específicos, como o que relaciona a cor da
pele a profissões de maior ou menor prestígio, sempre com vantagem para os
brancos.
Em continuidade ao sobredito, para muitos, o racismo decorre do classismo,
este, por sua vez, entendido como o preconceito declarado contra os pobres. Kamel
preconiza que o classismo trata da razão oculta por trás da maior parte das
manifestações racistas e, segundo ele, considerável número de ocorrências relativas
ao racismo se dão com negros que não são pobres. Nesse sentido, o ilustrativo
episódio acontecido com o dentista paulista, negro, Flávio Ferreira dos Santos,
assassinado em 2004, por policiais: o odontólogo morreu, em tese, devido ao
classismo, pois foi vitimado porque confundido com um pobre.
Aqui, abram-se parênteses quanto à hipótese respeitante ao classismo e
para uma peculiaridade censitária pátria (já mencionada anteriormente), haja vista
que qualquer brasileiro já leu, ou, ouviu frases com o seguinte conteúdo: no Brasil a
pobreza tem cor e ela é negra! Pois bem! A referida assertiva consta, com
freqüência, em trabalhos de pesquisadores que culpam o racismo pela situação de
penúria em que vivem os negros daqui. E mais: essa afirmação não encontra
dissonância nos números que divulgam tal fato de modo tão eloqüente, ainda que
seus dados sejam inexatos, pois de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) — que contradiz os pesquisadores — no País, os negros
totalizam 5,9% e não 48%, os brancos compõem 51,4% da população e os pardos
(omitidos na contagem dos estudiosos) são 42% dos nacionais. Entre os 56,8
milhões de pobres, os brancos são 34,2% (cerca de 19 milhões de brasileiros), os
pardos são 58,7% e os negros, tão-somente, 7,1%. Dessa feita, consoante diz
Kamel, se a pobreza tem cor no Brasil, ela é parda! Assim, equivocadamente, os
supracitados pesquisadores tornam sua realidade mais favorável, uma vez que
praticam uma condenável rotina acadêmica a partir da somatória de negros e pardos
pobres, atingindo, por conseguinte, o percentual alto e irreal de 65,8% — Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), datada de 2004. Em seus dados, eles
estratificam a população entre brancos, pretos (negros), pardos, amarelos e
indígenas para, na seqüência, agrupar pretos e pardos e chamá-los todos de negros
(justificados pela idéia de que ambos os grupos apresentam desempenho em tudo
semelhante aos em variados indicadores sociais e compartilham idêntico perfil
socieconômico), rotulando-os em uma única embalagem. Aliás, é só dessa maneira
que se confirma a já recorrente informação de que o Brasil tem a maior população
negra depois da Nigéria, informação ampla e retumbantemente relembrada em
discursos do atual presidente da República em suas viagens internacionais ou
quando faz referência direta a ações afirmativas de cunho racial. Além disso,
enfatize-se, essa prática foi herdada da metodologia aplicada pela sociologia dos
anos 50, que, como se vê, ainda permanece em uso, conquanto errada, já que
existe uma ideação cabal sobre o tema: todos aqueles que não são brancos, são
negros!
Nesse passo, desafortunadamente, mais um informe que deve ser agregado
ao temário é o de que aqui o preconceito racial contamina diversos movimentos
sociais, sindicais e partidos de esquerda que, quando não são contaminados, ficam
insensíveis à causa e utilizam os negros para outros interesses pré-determinados.
O Estado e a teia social brasileira não podem mais fazer vistas grossas a
fatos concretos e alarmantes relacionados ao racismo. Então, se municípios,
estados, União, Legislativo, Judiciário, Ministério Público e demais órgãos estatais e
empresas privadas deixarem de pôr em marcha políticas efetivas de combate à
desigualdade racial, certamente incorrerão em inconstitucionalidade, porquanto
estarão descumprindo os objetivos fundamentais contidos no artigo 3º. da Lei Maior,
no que concerne a edificar uma sociedade livre e igualitária, com progresso social,
destituída de qualquer ranço discriminatório — isso, ainda que já esteja provado que
políticas universalistas, no mais das vezes, são insuficientes, embora necessárias, à
eliminação das diferenças que decorrem do preconceito, do racismo.
A Constituição da República de 1988 soube repudiar a marginalização do
negro, tipificando o racismo como delito em seu artigo 5º., inciso XLII — talvez, na
busca de concretizar o sonho de que, mediante correta e ampla aplicação da lei,
depois de um histórico sombrio para com os escravos, a sociedade brasileira se
tornasse mais humana e balizada por ideais de justiça social; tampouco, no mesmo
artigo, a Carta Magna ignorou o princípio da igualdade (formal e material), ademais
de cumprir, pelo menos no papel, a principiologia da dignidade humana e da
cidadania — consoante os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, quais sejam: a construção de uma sociedade liberta, justa e solidária, urdida
na redução das desigualdades sociais e regionais, com a promoção do bem de
todos (artigo 3º., I, III e IV, do citado Diploma).
Ainda assim, no País, há distintas formas de discriminação racial, velada ou
ostensiva, um grave obstáculo ao exercício do direito à igualdade, em que há franco
desprezo pelo pressuposto metodológico proposto pelo jurista e doutrinador
austríaco Hans Kelsen acerca da rígida separação entre o mundo do ser e o do
dever-ser. Destarte, os negros têm de lutar contra tudo aquilo que está sedimentado
e que, quase inconscientemente, é posto em circulação em nossa sociedade; logo, a
cidadania deve ser plena, indistinta para todos: negros, brancos, favelados, ricos e
pobres.
De outra sorte, ordinariamente, é a Lei nº. 7.716, datada de 5 de janeiro de
1989, que define os crimes de preconceito racial. Tal norma proíbe, entre outras
coisas, impedir o acesso de pessoas a locais públicos ou particulares, tendo como
motivo a cor ou etnia. Ofender alguém com palavras racistas também é delito — a
punição varia de um a cinco anos de prisão.
O racismo não é um crime fácil de comprovar e, para complicar esta
assertiva, eis que por muito tempo o Brasil passou a imagem de paraíso da inclusão
racial; isso, em especial, porque o País nunca foi palco de conflitos e manifestações
racistas como os promovidos pelo regime apartheid na África do Sul ou teve
organizações com a magnitude da Klu Klux Klan, ainda atuante nos Estados Unidos,
ao lado de outros grupos racistas que defendem a supremacia branca explicitamente
— a exemplo daqueles que se tatuam com teias de aranha, símbolo de adeptos de
mencionada ideologia. Na verdade, episódios conflitantes podem não ter acontecido
de forma tão violenta entre nós, todavia, é inegável, a discriminação no tocante à
raça se afigura como um ingrediente incrustrado socialmente no Brasil — que
emerge não apenas em piadas, mas até no simples e puro desprezo presente nas
relações pessoais e profissionais.
No dia-a-dia, na luta por trabalho, postos de subemprego tradicionalmente
ocupados pelos negros têm sido alvo de acirrada disputa, isto, devido ao crescente
número de desempregados; destarte, na batalha pela sobrevivência, é comum que
afro-descendentes não encontrem outro caminho para trilhar, senão o da
indignidade. Em face do expendido, deflui-se que o Brasil — ”pentacampeão”
também nas desigualdades sociais —, encontra na figura do negro grande parte de
sua força laboral, mas força-o a sobreviver sob condições desumanas. Então, eis
que o negro, uma vez empregado acaba por obter rendimentos inferiores aos
percebidos pelo branco e é associado ao labor de pouca qualificação; por
conseguinte, a ilação de que a cor atua como fator determinante sob o ponto de
vista laboral, sobrepondo-se aos aspectos qualificação e formação.
Quanto à educação, em 1992, um relatório sobre Direitos Humanos
realizado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) revelou que o
analfabetismo entre os negros guarda relação com a sua falta de acesso à educação
formal e que o problema da abstenção escolar das crianças negras é ordinário, já
que elas são obrigadas a deixar de estudar para fazer frente ao sustento familiar.
Em relatório mais amplo divulgado pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD), analisaram-se as desigualdades raciais em áreas como
renda, educação, habitação e emprego e, no que tange ao acesso ao ensino
superior (população de 18 a 24 anos, matriculada na universidade, por cor/raça em
%), tem-se que no Brasil, brancos em 1991 constituíam 7,0 dos universitários e
negros, apenas, 1,4 dos acadêmicos; como contraponto, em 2000, contabilizou-se
11,7 brancos nas universidades enquanto só 2,5 negros freqüentavam o ensino
terciário. Em que pese os índices nacionais terem melhorado sensivelmente, eis que
os afro-brasileiros estudam menos que os brancos. Os negros permanecem, em
média, 2,1 anos a menos do que os brancos nas salas de aula. No entendimento
expendido por Nivaldo dos Santos Arruda, os índices gerais e desestimulantes
apresentados pelo PNUD só podem ser revertidos de uma maneira: “Nossa atenção
está voltada para a educação. É o meio mais eficaz de conseguirmos um resultado
de inclusão do negro na sociedade”8.
E mais: segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (baseado na
Pesquisa Mensal de Empregos) a respeito da desigualdade de raças, quanto mais
anos de estudos, maior a vantagem salarial sobre negros e pardos. Aliás, o
desequilíbrio em tela se agiganta quando considera brasileiros negros e pardos com
formação superior, que ganham, em média, 48% a menos que os brancos, ainda
que o estudo não identifique o tipo de curso, tampouco a qualidade dos
entrevistados – misturam-se profissionais formados em carreiras mais prestigiadas
ou não e em cursos de maior ou menor qualidade. Tal pesquisa constata igualmente
que, conquanto a escolaridade seja o passaporte para ingressar no mercado de
trabalho, o processo histórico de exclusão social do qual o negro é vítima funciona
como determinante na remuneração dos trabalhadores.
O fosso existente entre brancos e negros é persistente e deveras profundo;
assim, quando o PNUD faz verificações referentes ao Índice de Desenvolvimento
8 AUMENTA O FOSSO ENTRE NEGROS E BRANCOS : RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO CLASSIFICA A DEMOCRACIA RACIAL NO PAÍS COMO UM “MITO”, Gazeta do Povo, Curitiba, 19/11/05.
Humano (IDH) e considera os estados da federação, eis que são obtidos, de regra,
informes escandalosos, tais como o exemplo de que os negros das Alagoas vivem
em idêntica precariedade à vivenciada pela população da Nanímbia. Neste século, o
Brasil dos negros é distinto do Brasil dos brancos: naquele, a situação geral
experimentada por indivíduos de cor negra ou parda aproxima-se da realidade
vigente em países muito pobres, a exemplo do Vietnã e da Bolívia; já o Brasil
“branco” contemporâneo, no quesito qualidade de vida, apresenta similaridade com
nações européias relativamente desenvolvidas, tais como Letônia e Bulgária.
E, do exposto, emergem perguntas simples, que atreladas à
contemporaneidade, têm respostas pouco edificantes quanto à inserção do negro na
teia social brasileira, quais sejam: Quantos professores negros as universidades têm
em seu quadro docente? Quantos chefes de estado, ministros, secretários de
estado, governantes, são negros? Qual é a porcentagem de negros que integram a
alta sociedade e que não obtiveram sua ascensão vinculada ao entretenimento, a
exemplo da música, dos esportes ou da televisão? Com efeito, é natural crer que:
“Enquanto os leões não puderem contar a sua história, a história será sempre a dos
caçadores” — (provérbio africano).
4. A SOCIOLOGIA DO NEGRO NO BRASIL
Aqui, nas primeiras décadas do século passado, o pensamento quase que
unânime nas ciências sociais (apesar de racista), reconhecia que o Brasil era fruto
da miscigenação. O racismo decorria justamente dessa constatação: para que o
País progredisse, diziam os sociólogos, era preciso que embranquecesse,
diminuindo a porção de sangue negro que corria nas veias de nosso povo. Foi o
sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) quem mais se destacou em se contrapor a tal
pensamento abjeto; Freyre pode ser apontado como o pioneiro no combate a um
raciocínio tão perverso. O ilustre pernambucano Freyre mostrou que as culturas e
não as diferenças raciais eram os fatores decisivos nos processos civilizatórios.
É oportuno consignar que Freyre, sempre atendo à realidade nacional, não
foi o autor do conceito de “democracia racial”, tampouco cunhou o uso desta
expressão, hoje deveras combatida. Aliás, o entendimento freyreano era avesso à
referida conceituação, porque a sua visão sobre essa realidade era a da mestiçagem
e não a do convívio sem conflito entre raças estanques. É certo, Freyre utilizou a
expressão, uma ou duas vezes, em discursos, mas sempre como sinônima de um
molde em que a miscigenação prevalecia. Gilberto Freyre nunca edulcorou a
escravidão e não omitiu nada: ao revés, expôs!
Para muitos, o papel desempenhado pelo festejado Freyre, foi outro: ao
relacionar os tópicos negritude e pensamento reinante na época, ele resgatou o
valor do negro no que diz respeito à construção da identidade nacional. A maioria
dos brasileiros crê que o sociólogo em apreço enalteceu a figura do negro, dando a
ela a sua verdadeira dimensão, a sua real importância.
Nesse passo, cabe rememorar aqui o comento de que “Casa-Grande &
Senzala”, em seu lançamento, foi recebido de modo entusiástico nos meios
acadêmicos, para nos anos 60 ser entendido como uma apologia à escravatura no
País.
Na atualidade, eis que o Movimento Negro deprecia Gilberto Freyre: tais
ataques, para Kamel, decorrem de uma leitura apressada, despojada de reflexão,
marcada pela ausência de lucidez.
Destarte, não são poucos os que defendem a ideação de que a supracitada
ideologia da democracia racial sobrevive há décadas entre nós não unicamente pelo
seu potencial argumentativo, mas porque há verbas estatais para reproduzir os
quadros intelectuais que a disseminam; as mencionadas verbas destinam-se a
mestrandos, doutorandos e para professores que estejam dispostos a escrever
sobre o tema. Com efeito, Gilberto Freyre é presença constante em nosso meio não
só pela sua “genialidade”, mas, sobremodo, por um esforço inaudito do Estado.
Interessa à elite branca racista, a qual detém o controle estatal, que a população
brasileira acredite viver num País racialmente integrado, ainda que todas as
evidências neste sentido sejam contrárias. Entrementes, se faz necessário apontar
serem os autores que assinam esses inúmeros ensaios, invariavelmente, brancos. E
então, vale perguntar: Qual intelectual ou acadêmico negro escreveu a favor da
integração racial proposta por Gilberto Freyre?
Em continuidade ao raciocínio urdido acima, a argumentação Freyre não foi
desmascarada pela elite brasileira porque inexiste interesse nisto, mas, na sua
perpetuação. Os argumentos freyreanos representam a vitória do sofisma sobre os
dados empíricos, da apologia divulgada sobre a denúncia censurada. Freyre
pugnava que nenhuma raça era inferior e, por isto, a mestiçagem, para ele, consistia
em vantagem; demais disso, ardilosamente, ele desviou a denúncia contra o racismo
social imperante para a discussão humanista que colocava de um lado, aqueles que
sustentavam a superioridade da raça ariana (Gobineau, Euclides da Cunha, dentre
muitos) e, de outro, os iluminados pela Antropologia, os quais enfatizavam a
inexistência de desigualdade entre as raças. Dessa forma, o autor em foco fez o
favor de desautorizar a formação de um discurso que denunciasse o massacre
específico dos negros brasileiros. A ideologia freyreana implicou, também, na
desautorização da identidade negra, ou seja, quem detém o poder econômico e
social (branco) desautoriza a identidade com que o discriminado se apresenta
(negro). É com a “morenidade” de Freyre que o branco se livra da responsabilidade
de assumir os privilégios que adquiriu ilicitamente, graças a sua “brancura”. No
Brasil, isso se dá na medida em que o racismo opera em nosso quotidiano, favorece
brancos com algum capital (social, econômico, cultural) distribuído desigualmente,
segundo critérios raciais, a exemplo do tempo menor de espera para ser atendido no
espaço público, devido a uma carta de recomendação. Ainda que não existam raças
no sentido biológico do termo, a representação social da diferença é racializada
fenotipicamente. Freyre repudiou a presença de ideologias de negritude entre os
brasileiros, impediu que os negros afirmassem sua verdadeira identidade E, pior:
Freyre chegou a escrever à Organização das Nações Unidas (ONU) e sugeriu que o
País era modelo para o mundo no campo das relações raciais harmônicas. Assim,
Freyre, ao lado de intelectuais como Jorge Amado e Darcy Ribeiro, “brancos-sem-
cor”, pugnaram a favor da “morenidade” nacional - instrumento pelo qual o negro
perdeu o seu crédito reivindicatório (que data de um século de discriminação e
desigualdade) e deram ao branco, o direito de cancelar, automaticamente, sua
dívida.
A partir de 1950, “nossa” sociologia começou a abandonar esse tipo de
raciocínio para começar a dividir o Brasil entre brancos e não-brancos, um pulo para
chegar aos que hoje fatiam o País entre brancos e negros, afiançando que negro é o
indivíduo que não é branco. Para a corrente de sociólogos formada por Florestan
Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e Carlos Hasenbalg, se a
idéia era “fazer ciência”, o resultado sempre foi uma ciência engajada, a favor dos
negros explorados contra brancos racistas. O papel a ser encenado pela ciência
“para o bem dos negros”, seria desmascarar isso, tirando o véu da ideologia e
substituindo-a pela realidade racista. Tal mentalidade levava, porém, ao paradoxo de
permitir a suposição de que um racismo explícito é melhor do que um racismo
envergonhado, esquecendo-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto este,
normalmente, deixa de oprimir pelo pudor. A chave metodológica encontrada por
essa sociologia foi importar dos Estados Unidos da América uma terminologia que
não se identificava conosco, revestindo-a de uma nova roupagem.
Na construção de Oracy Nogueira, aqui como lá, há negros e brancos, mas
para os estadunidenses o racismo é de origem (demarcado pela ascendência) e
para nós é de marca (determinado pela aparência). Nos Estados Unidos da América
se um cidadão de pele branca e olhos e cabelos claros tiver um negro como
antepassado — por distante que seja — toda a carga de preconceitos e interdições
contra os negros, como um todo, recairá sobre ele. Já para os brasileiros mais vale a
aparência do que a origem: um cidadão de pele, olhos e cabelos claros, mesmo
tendo negros na família, será muito mais aceito do que os negros em geral – mas,
na visão de Oracy, isto, apenas até que ocorra um briga, quando, então, o primeiro
xingamento a surgir na cabeça do branco será chamar o negro de “seu negro isso,
seu negro aquilo”. Para Oracy, teórica e didaticamente, tem-se que onde é possível
detectar o preconceito de origem, o negro é excluído de certos direitos, segregado,
não pode cultivar relações de amizade com brancos, e, de conseqüência, é
consciente do preconceito que recai sobre si e, assim, mais propenso a lutar como
grupo pela extinção de injustiças; contrariamente, se o preconceito é de marca, o
negro é mais preterido do que excluído — mas pode vir a ser aceito como igual, a
título de exceção —, sua pessoa é assimilada (tenderia a desaparecer pela
miscigenação), pode cruzar as fronteiras da cor no estabelecimento de relações de
amizade, e, por conseguinte, é menos consciente quanto a atitudes preconceituosas
e menos disposto a lutar grupalmente pelos seus direitos. Nessa perspectiva, as
nossas especificidades são olvidadas e, para Oracy, socialmente, os brasileiros são
tão racistas quanto os estadunidenses. Eis que, então, existe pertinência em se
indagar: Por que, ao reconhecer que no Brasil há relações de amizade inter-raciais,
casamentos mistos, inexistência (em tese) de barreiras institucionais contra negros,
ausência de conflito e de consciência de raça, Oracy optou por edificar uma
engenhosa diferenciação e afastou a ideação de que não somos uma sociedade na
qual o racismo figura como traço dominante?
Kamel, por seu turno, tem o racismo, de lá e cá, como de origem. Lá, um
sujeito de pele e olhos claros será considerado negro se a sua ascendência for
conhecida, já que os americanos ainda não têm o dom da vidência: se esconder a
origem, sua negritude passará incólume. No Brasil, um homem branco proveniente
de família negra não será alvo das agruras do racismo, caso as suas origens não
forem descobertas por um racista; no entanto, se forem, a história muda de foco. Na
ótica de Ali Kamel, entre os norte-americanos o racismo é rotineiramente mais duro,
explícito e direto. O repúdio que grassa no seio da sociedade estadunidense para
com os negros é total; em nosso meio, quase todos, mesmo os racistas, encantam-
se, por exemplo, com tudo o que provém do continente africano e é possível
asseverar que, neste aspecto, os brasileiros são mais amenos.
Kamel destaca que o Movimento Negro abraçou, no final dos anos 70, uma
sociologia que prega ser o brasileiro racista e apesar das distinções supracitadas, a
propagação de tal ideal foi propícia à instalação, em nosso ambiente, da importação
acrítica de um remédio americano para um problema americano; hoje em dia,
inclusive, eis que essa ideação ganha ares de “verdade oficial”.
Fernando Henrique Cardoso (FHC) — segundo se tem notícia, imbuído das
melhores intenções —, avançou com êxito em nossa remodelagem como uma
nação bicolor, de negros e brancos, em que os últimos oprimem os primeiros. Cabe,
então, relembrar que em 1994, deu-se um episódio famoso e tragicômico, no início
de sua campanha eleitoral. Em resposta a Orestes Quércia, ex-governador de São
Paulo e seu oponente à presidência da República, que o acusara de ter as “mãos
brancas”, um eufemismo empregado para acusá-lo de nunca ter trabalhado, o então
candidato Fernando Henrique declarou que tinha as mãos mulatas, um “pé na
cozinha” e que não era preconceituoso. A ironia contida nessa declaração é que
FHC, para si próprio um branco, parecia discordar de Oracy Nogueira e demonstrar,
que, no Brasil, é a origem e não a marca que define a “raça”. Tal assertiva de
Fernando Henrique desagradou profundamente o Movimento Negro, que ameaçou
processá-lo por considerar os termos em que se expressou “pejorativos” e
“preconceituosos”. “Só se ele é filho de mula. Mulatinho é o cruzamento com mula,
não com negro”9, contra-atacou Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra.
Destarte, numa das muitas afirmações feitas em sua admirável trajetória
política e intelectual, FHC salientou que os estudos mostrariam que as nossas
9 KAMEL, Ali. Não somos racistas : uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor. 2ª. impressão. Rio de Janeiro : Editora Nova Fronteira, 2006, p. 24.
desigualdades sociais carecem de uma explicação centrada apenas na
miserabilidade; segundo sua opinião, tais desigualdades estão fulcradas, também,
no aspecto racial. O ex-presidente em questão, autor de livros específicos sobre cor
e raça foi quem iniciou a moldagem institucional do Brasil bicolor. À época e na visão
de FHC, era preciso que se avançasse, cada vez mais, em políticas que
garantissem a inclusão da população negra. Aliás, oportunamente, rememore-se
que em seus trabalhos de juventude, a “mistura”, ou melhor, “o gosto pela mistura”
não foi sequer mencionado: nas sociedades que estudou, só havia espaço para
brancos explorando negros e mestiços, cada qual guardando seu status quo. FHC
repudiava a hipótese de que o preconceito fosse direcionado ao pobre em geral e
não especificamente contra o negro; e mais: observe-se que sua produção literária
abordou o problema educacional vivenciado pelos negros de modo deveras
superficial.
Em tal contextura, entre acertos e desacertos presidenciais, FHC tornou-se
emblemático, na medida em que propiciou aos negros algumas chances no tocante
a serem inseridos na teia social brasileira, sem que se esqueça, entrementes, que,
conforme demonstra o seu passado literário, foi dado azo a algumas impropriedades
na área, as quais deveriam ser revistas, mas nunca estendidas ao Estatuto da
Igualdade Racial, documento ora em trâmite no Congresso Nacional e cujo teor é
altamente discriminatório.
Em 1995, Fernando Henrique criou o Grupo de Trabalho Interministerial para
a Valorização da População Negra, o qual era composto por representantes da
comunidade afro-brasileira e, significativamente, em 13 de maio de 1996, lançou o
Programa Nacional de Direitos Humanos, que continha em seu bojo ações mais do
que pertinentes para combater o racismo. Por sorte, muitas das determinações
estipuladas por FHC naquele período se esvaziaram, outras propostas demoraram a
sair do papel e algumas tantas se concretizaram, motivação pela qual se tem a
presente exposição, voltada ao aperfeiçoamento na concessão de cotas raciais e
dotada de sugestões de caráter positivo quanto às cotas preferenciais. Não se
contesta, Fernando Henrique Cardoso contribuiu sobremaneira para que mazelas
que afligem os negros não mais fossem atribuídas à pobreza, mas ao preconceito e
ao racismo vigorante entre os brasileiros. Mas, cumpre anotar que FHC jamais
propôs formalmente ao Congresso a adoção de cotas para negros em
universidades; ele tão-somente expressou apoio, mas não especificou quais
políticas afirmativas deveriam ser adotadas nesse campo.
Em 2001, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi a primeira
instituição pública de ensino superior no País a adotar o sistema de quotas, no que
foi seguida pela Universidade de Brasília, Universidade Estadual do Mato Grosso do
Sul, Universidade Estadual da Bahia.
O sistema de cotas raciais nas universidades, uma promessa de campanha
do presidente Lula, deu prosseguimento à programação de ações afirmativas
iniciadas no governo tucano. Conquanto já encampada por significativa parcela de
nossas universidades, a lei que regulamenta dita sistemática de cotas ainda espera
a aprovação do Congresso Nacional; junto com ela, segundo Ali Kamel, outra norma
temerária, que institucionaliza o cisma racial no País, igualmente, aguarda
aprovação para vigorar entre nós: o pré-falado Estatuto da Igualdade Racial. Caso
ambos os projetos sejam aprovados, metade das vagas nas universidades federais
terá de ser preenchida por negros. Para Kamel, o mérito acadêmico ficará relegado
ao segundo plano. Em vigorosa contestação, Kamel alega que a legislação referente
às cotas e ao estatuto racial são monstruosidades jurídicas que atropelam a
Constituição da República – ao tratar os negros e brancos de forma não paritária –,
ademais de oficializarem o racismo nacional. Aliás, um dos disparates contidos no
supracitado Estatuto, está inserto no artigo 14, que pressupõe a existência de
doenças raciais (idéia já apresentada como descartada no Capítulo referente à
Raça, uma vez que toda a evidência científica sobre a matéria prova o contrário).
Além do supramencionado dispositivo, existe outro que interessa, e muito, à futura
população negra acadêmica: o artigo 62 do Diploma em destaque contém a previsão
de que as cotas a serem utilizadas no serviço público aumentarão, até que se
alcance o correspondente à estrutura de distribuição racial no País; então, pergunta-
se o seguinte: De que modo as nossas empresas privadas serão incentivadas a
contratar, preferencialmente, negros? Por intermédio de imposição a empresas
fornecedoras de bens e serviços do setor público para que adotem programas de
igualdade racial? Demais da má interpretação legal que já ocorre na adoção de
cotas raciais no serviço público, que embustes, estratégias serão criados por
empresários para boicotar, burlar, tão desastrosa exigência em seu meio?
Então, em suma, eis que a atuação do governo Lula quanto aos negros
configura-se tão-só como conseqüência de um contexto pré-existente; foi a atual
gestão petista que criou a Secretaria da Igualdade Racial, viabilizou o projeto que
torna obrigatória a política de cotas nas universidades federais, lançou as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, deu respaldo ao Estatuto da
Igualdade Racial (que, em alguns pontos, radicaliza, sobremodo, as relações entre
os cidadãos e o Estado brasileiro).
5. COTAS
As políticas de ação afirmativa, inclusive, as referentes às reservas raciais,
têm sido implementadas por várias nações; elas são levadas avante com o fito de
atender diferentes segmentos populacionais que, por razões históricas, culturais,
religiosas ou de racismo e discriminação, foram prejudicados em sua inserção social
e participação igualitária no desenvolvimento de países. Consta do elenco daqueles
que abraçaram a sistemática de cotas: Inglaterra, Canadá, Colômbia, Alemanha,
Austrália, Nova Zelândia, Israel, Alemanha, África do Sul, Malásia, entre outros.
Em geral, as quotas são utilizadas para reparar, junto aos descendentes,
discriminações consideradas odiosas, que inibiram o progresso socieconômico de
gerações passadas de determinados grupos sociais.
As cotas surgiram na Índia em 1949 (a título de política estatal) e foram
previstas para durarem 10 anos; não obstante, elas existem até hoje. De início, as
cotas indianas eram destinadas aos chamados intocáveis (16% da população) e a
8% de membros de tribos fora do sistema de castas. Recentemente, a Índia
anunciou que vai enviar para o seu Parlamento um projeto de lei que dobra
quantidade de vagas destinadas às minorias no sistema de cotas para universidades
federais. Segundo tal projeto, quase metade das vagas nas faculdades
profissionalizantes públicas será direcionada às castas mais baixas e às classes
tidas como “tradicionalmente desfavorecidas”. Na atualidade, 22,5% das vagas nas
faculdades são reservadas para os dalits (intocáveis) e a estudantes tribais. De
acordo com o novo projeto, o número de vagas sob reserva aumentará para 49,5%.
Nesse panorama e como contraponto, a Índia é um dos países que mais nos
causam inveja em termos de crescimento econômico e desenvolvimento
tecnológico. Provavelmente, parte essencial dessa perfomance se deva ao
investimento efetivo que ela faz em seus recursos humanos, pela educação. Mas
nada disso impediu que lá, há pouco, se registrasse uma cizânia quanto à adoção
de cotas especiais para eunucos, haja vista que, por definição, estes não geram
descendência — então, eis aí um exemplo de má utilização de cotas. E o mais
bizarro: nesse panorama, 63% dos indianos intocáveis continuam analfabetos, além
de que restou consignado que inúmeras atrocidades perpetradas contra eles
quadruplicou nos anos 90 em comparação à década de 80.
No Sri Lanka — que decidiu adotar políticas “de preferência étnica” — e na
Nigéria (adotante das cotas de preferência racial), por exemplo, houve o registro de
trágicas guerras civis.
A inspiração para a adoção das cotas “raciais” é proveniente dos Estados
Unidos da América. Lá, uma secular história de discriminação dos negros foi
amenizada pela integração forçada nas escolas e nos locais de trabalho. Ali Kamel
volta à carga quando explica que nunca houve nada parecido no Brasil e tampouco
existem aqui guetos destinados a negros. O autor em tela também entende que,
enquanto em alguns estados norte-americanos o casamento entre brancos e negros
era proibido, no Brasil sempre foi um fato cotidiano (ou quase normal), que não
causa nenhuma atenção; para ele, aqueles que acreditam ser a problemática racial
do País semelhante à estadunidense, por certo desconhecem os elogios tecidos à
nossa democracia racial, feitos por numerosos autores negros lá nascidos. Outro
disparate verificado na atualidade com relação ao aceite de cotas nos Estados
Unidos da América dá-se pelo fato destes possuírem o maior conjunto de cotistas
mulheres que, sob quaisquer hipóteses, configuram uma minoria. E, anote-se: lá, os
conflitos raciais cresceram a partir de 1970, ano de adoção das cotas, sendo que a
Lei de Direitos Civis (garantidora da igualdade racial) data de 1964.
Uma conclusão interessante referente à instituição de cotas aponta que o
indivíduo que sabe mais e apresenta mínima superioridade econômica e/ou de
recursos, conquanto pertença a uma minoria discriminada, terá mais chances do que
aqueles que servem de base à pirâmide social.
Eis que toda essa generalidade de casos confirma o mau uso das cotas,
pois trata de exemplos que não devem ser seguidos aqui, assim como é preciso
afastar relativamente de nosso convívio — como ferramenta (importada) redutora de
exclusão — as políticas chamadas de universais (pelo menos quanto a negros),
posto que elas, com certeza, não trarão as mudanças substanciais tão almejadas e
necessárias a esta população específica; outrossim, oxalá essas ocorrências nos
sirvam de ensinamento, a fim de que não se cometam os mesmos enganos. Na
realidade, o que se pretende com o acima exposto é alertar os brasileiros para que
não se dêem ao luxo de errar, ignorando a experiência internacional no que tange à
temática, sob pena de caminhar conscientemente para um desastre sem
precedentes.
Por isso, entre prós e contras quanto às cotas, o manifesto representativo de
grupo favorável ao Estatuto da Igualdade Racial, que contou com a adesão e o
endosso de Augusto Boal; sob a ótica desse afamado diretor teatral, a situação
educacional dos afro-descendentes no Brasil é pior do que a dos negros sul-
africanos, à época da segregação racial. Para Boal, uma das principais formas de
reverter tal quadro consiste na aceitação do sistema de cotas nas universidades.
Todavia, entendimento discrepante foi exposto por José Jorge de Carvalho,
antropólogo da Universidade de Brasília: “Racismo é o que temos agora. As ações
afirmativas querem apenas promover o acesso dos afro-descendentes aos
benefícios previstos para todos.” 10
Aqui, por sorte, projetos nesse âmbito, em sua maioria, prevêem que a
durabilidade das cotas será temporária. Pois, então, que sejam! É salutar que as
quotas tenham data pré-estabelecida para uso, dentre outros regramentos
garantidores de justa e bastante inserção da comunidade afro-descendente no
ensino superior, posto que este mecanismo não pode se tornar alavanca eleitoral de
políticos mal-intencionados, nem criador de crescente desconforto na teia social
brasileira. Dentre as injustiças que vicejam em nosso território (forjado à sombra da
escravidão africana), comprometendo não só sua vitalidade, mas adiando o seu
crescimento, nenhuma parece mais constante do que a racial; é flagrante a
sensação de que não se conseguiu romper com a metástase desse câncer, que
enfraquece a nossa sociedade.
Enfim, do até então relatado, aclara-se que a adoção das cotas raciais
mostra a nossa atração pelas aparências conciliadoras e imitações, ou seja,
evidencia-se certo empenho quanto à aprovação desta pseudo-solução. E mais: é
preciso ter em mente que as impropriedades balizadoras da sobredita adoção
repousam em duas razões: 1) a primeira delas, é que as quotas reproduzem uma
tendência dos Estados Unidos da América para tratar a justiça racial como espécie
de preliminar, divorciada da justiça social. Nessa perspectiva, cumpre salientar que o
cenário vislumbrado pelos nacionais é ainda mais inapropriado para tal separação
do que aquele vigente entre os norte-americanos, pois com essa idéia pouco
louvável de reservas raciais posta em prática do jeito que está (sem mudanças), em
breve, é possível vaticinar um resultado previsível: a promoção e simultânea
10 PARA GRUPO PRÓ-COTAS, MELHOR SOLUÇÃO SÃO AS AÇÕES AFIRMATIVAS. Folha de São Paulo, São Paulo, 7/7/06.
estigmatização da elite afro-brasileira! E, a partir desse raciocínio, é quase certo que
a elite “negra”, no porvir, ao se intitular representante da massa de gente oprimida
pela cor, acabará — com base nos experimentos de outras nações — por colocar à
prova, tão-somente, a si própria. Por conseguinte, a “massa negra” continuará onde
sempre esteve, ou seja, no limbo. E, destarte, elementar deduzir que o resíduo de tal
exercício será a confirmação íntima do preconceito ou racismo, ofuscado pela
hipocrisia, na qual, cotidianamente, se especializam os nossos quadros dirigentes. O
fiasco pode ficar maior ainda quando se aplicar o critério da “auto-identificação”
como negro, com a finalidade de se fazer jus a benefícios — quesito quase
inevitável, dada à miscigenação racial reinante na população trabalhadora brasileira;
2) demais disso, num segundo momento e de acordo a alegação feita por muitos, o
regime de cotas é inservível no Brasil: ele é e deve ser tido como inconstitucional,
fere qualquer entendimento contemporâneo plausível no que concerne à igualdade
perante a lei; na verdade, ele só poderia ser instituído por iniciativa constitucional —
assim como aconteceu na Índia para libertar os “intocáveis” — e, por isto, constitui
brecha suficiente para que brasileiros “inconformados” formulem ações diretas de
inconstitucionalidade dirigidas ao Supremo Tribunal Federal. Aduza-se também que,
atualmente, nos Estados Unidos da América, as cotas “sofrem” sérias restrições
impostas pelo Judiciário e são consideradas, em sua literal acepção, apenas pelos
adversários de políticas de “ações afirmativas”; quanto a esse último ponto crucial,
no País, basta vontade para regularizá-las!
Alternativa, talvez, eficaz e justa, na opinião de alguns, fosse cercar
estudantes de adequado apoio financeiro e de estímulos intelectuais extraordinários,
proporcionando-lhes a culminância da formação, dentro e fora do Brasil, uma vez
que a maioria dos beneficiados seria automaticamente de cor — algo, a cada dia,
mais palpável, graças à adoção das quotas raciais, bem assim diante de uma
provável aceitação de das reservas preferenciais. Segundo tal ideação, a contra-elite
negra e pobre faria frente à elite branca de “herdeiros”, causando, assim, um
impacto transformador e imediato na sociedade pátria. Outra ferramenta subsidiária
de valia, em conformidade com os seguidores dessa linha de pensamento, seria
revigorar normas antidiscriminatórias, as quais acabariam com as suspeitas de
discriminação, ante a persistente ausência de negros em organizações públicas ou
privadas e nas universidades públicas do País.
Entre os brasileiros, as ações afirmativas “patinam” num debate que pode
ser definido como escapista, fundado na defesa de uma suposta “meritocracia”, a
qual esconde em seu bojo o desejo de permanência de um status quo que
historicamente produz privilégios, reproduz e amplia as desigualdades raciais,
ademais de retardar o desenvolvimento pátrio.
Para José Vicente, reitor da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares
(UNIPALMARES), uma referência no ensino superior voltado para negros, a política
de cotas utilizada nas universidades, empresas e serviços públicos é incapaz de
alterar o fato de que, no Brasil, um negro rico não se livra do racismo. Os avanços
ocorridos, se é que podem ser assim chamados, na opinião do reitor, traduzem-se
nas cotas, as quais resultam da preguiça de nossa intelectualidade em pensar numa
resolução aceitável para o problema do negro no Brasil: a universidade ainda não
digeriu o assunto! Vicente considera que o sistema de cotas raciais, de per si,
constitui uma engrenagem posta em movimento que tem incomodado muita gente,
posto que a temática da igualdade racial “ganhou” inusitada projeção; a exemplo
disso, a recente legislação pertinente que, agora, exige a implementação da história
do negro e da África nas redes de ensino (público e privada). Para o único reitor
negro do Brasil, há uma esmagadora maioria de pessoas nas classes C, D e E
(pobres), mas, sob o seu ponto-de-vista, os obstáculos aumentam quando o
indivíduo é, além de pobre, negro. E, à guisa de respaldo, dentre suas impressões
pessoais, Vicente exemplifica que 90% dos espaços sociais são ocupados por não
negros. Por derradeiro, consigne-se uma sábia ilação do dirigente da
UNIPALMARES: utilizar-se das cotas, sob certas condições, não é um demérito,
porquanto seja necessária inteligência, ou, para se manter na universidade, ou, para
encerrá-la.
Em apreciação mais restrita quanto ao assunto em foco, sabe-se que no
Paraná, em 1995, a população negra alcançava o percentual de 1,6%; nessa
perspectiva, em 2005, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística estimou que
2,5% de negros viviam no Estado. Na opinião emitida pelo sociólogo Lindomar
Boneti, a detecção desse aumento pode ser mais um dado estatístico do que real,
pois, “A nossa sociedade evoluiu muito em relação às etnias, hoje, mais pessoas se
declaram negras sem receio”11. Entretanto, tais números também podem ser
explicados pelo aumento de indústrias e empresas no Paraná, fato que atraiu gente
de outros lugares.
No vestibular realizado em 2007 pela Universidade Federal do Paraná, a
quantidade de cotistas raciais aprovados foi ainda menor do que em 2006. Para as
entidades ligadas ao Movimento Negro, esse foi um indicador de que se faz
necessário intensificar, conscientizar a população negra do Estado com campanhas
que mostrem aos jovens ser possível ingressar no ensino superior. “A verdade é que
o negro não tem estímulo para tentar as cotas”12, afirma Paulo Borges, presidente da
Associação Cultural da Negritude e Ação Popular (ACNAP); de acordo com ele há
11 KOPPE, Jennifer. Quem somos nós? Gazeta do Povo, Curitiba, p. 7, 11/2/07.12 CAMPOS, Marcio Antonio. Campanhas podem evitar sobras de vagas para negros na Federal, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 15/12/06.
resistência aos cotistas dentro do ambiente universitário. No entanto, Marcilene
Garcia de Souza, socióloga que preside o Instituto de Pesquisa da Afro-
Descendência (IPAD), acredita que a manifestação do preconceito acontece mais
cedo: “A maioria dos professores de ensino médio é contra as cotas para negros.
Num ambiente desses, como o jovem pode se sentir incentivado a ser cotista?”13
indaga. Marcilene opina que a universidade pode ir mais além, intensificando
campanhas publicitárias a respeito. Nessa trilha, o reitor da Universidade Federal do
Paraná, Carlos Augusto Moreira Júnior afiança que: “Fizemos uma série de ações
em escolas públicas, visitamos várias delas, e não só em Curitiba, fizemos uma
cartilha mostrando como se inscrever pelas cotas”14.
Novo empecilho às reservas raciais de acesso ao ensino superior diz
respeito ao fato de vários estudantes pardos desconhecerem seu direito de optar por
elas, pois temem serem barrados pela comissão que avalia os aprovados. Borges
esclarece que “Existem certos traços que são característicos do negro e, se o
candidato pardo tem esses traços, ele não precisa achar que será reprovado nessa
avaliação”15.
Diante desses fatos, representantes de entidades do Movimento Negro
fazem uma autocrítica e sugerem, inclusive, o aproveitamento de negros que já
sejam universitários e possam servir de exemplo para jovens estudantes do segundo
grau.
Oportunamente, uma alteração havida no edital do vestibular de 2008 da
Universidade Federal do Paraná pode mudar o destino de boa parte dos candidatos
do concurso, ou seja, a instituição abriu suas inscrições para o maior vestibular do
13 CAMPOS, Marcio Antonio. Campanhas podem evitar sobras de vagas para negros na Federal, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 15/12/06.14 CAMPOS, Marcio Antonio. Campanhas podem evitar sobras de vagas para negros na Federal, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 15/12/06.15 REALISMO NAS COTAS. Gazeta do Povo, Curitiba, 11/8/07, p. 14.
Estado com algumas mudanças no sistema de cotas, modificou as regras da
distribuição de vagas de inclusão racial e social. Aliás, é bom que se consigne, tal
modificação no regulamento do certame introduz uma dose adicional de realismo na
política de cotas de inclusão social e racial ora aplicada pela supradita instituição.
Esse aperfeiçoamento da política de inclusão adotada pela universidade em tela
valoriza a educação pública, que, para fazer frente à alteração concretizada, precisa,
agora, receber investimentos e esforços de melhoria por parte de toda a cadeia
envolvida, a começar pelos administradores públicos.
Até o exame vestibular de 2007, as vagas remanescentes (sobra) de cotas
sociais (de estudantes de escola pública) e, em particular, as raciais, eram,
automaticamente, repassadas para a concorrência geral. Hoje, as vagas reservadas
que não forem ocupadas serão transferidas, em princípio, para a outra modalidade
de cota e vice-versa. A mudança corrige distorções havidas em vestibulares
anteriores, quando vagas destinadas a estudantes afro-descendentes não chegaram
a ser preenchidas, enquanto sobravam candidatos habilitados, mas não
aproveitados, oriundos de outras áreas. No que pertine ao assunto, a pró-reitora de
graduação da Universidade Federal do Paraná, Rosana Albuquerque Sá Brito, diz
ainda o seguinte: “Fizemos essa alteração porque o nosso plano de metas não
estava cumprindo 100% a inclusão racial e social”16.
Para o reitor Carlos Augusto Moreira Júnior “A alteração já estava em fase
de estudo, desde 2005. Agora mudamos, na perspectiva de tornar a seleção mais
justa”17.
A notícia surpreendeu os vestibulandos, pois muitos deles desconheciam a
novidade e, alguns se mostraram apreensivos diante do citado regramento,
16 CABRAL, Themis. UFPR muda sistema de cotas para torná-lo eficiente, Gazeta do Povo, Curitiba, 16/8/2007.17 BINDER, Angelo. Mudança sutil e sem alarde, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 3, 27/8/2007.
doravante, em vigor. Então, fácil concluir que as cotas raciais utilizadas quanto ao
ingresso no ensino superior, independente da maneira como são administradas, e,
por mais que se façam alterações em prol de seu aproveitamento — conforme
intenta, agora, em atitude pioneira, a Universidade Federal do Paraná —, são
malvistas, rechaçadas; logo, de modo geral e longe de questionar os méritos
vinculados à questão, urge fazer tentativas inovadoras quanto ao seu
aperfeiçoamento e uso, bem como cumpre implementar medidas que favoreçam a
sua aceitação social.
Para relembrar, em 2004 a reserva destinada a alunos negros pela maior
universidade pública do Estado foi alvo de duras críticas, dentro e fora da instituição:
o temor maior era o de que os cotistas formassem um subsistema fragilizado, algo
que não aconteceu; superado esse ponto, sabe-se que permanecem inalterados os
conflitos relativos ao temário. Nesse aspecto, por sorte, até os peer effects (efeito
que os colegas têm sobre o desempenho de determinados alunos, objeto de franco
estudo apontado na literatura empírica educacional) foram, aparentemente,
relegados a um plano secundário
No juízo de Carlos Moreira, o percentual de evasão é um outro dado que
serve de referencial, pois a reitoria da Universidade Federal do Paraná, após dois
anos completos de curso, observou que a evasão de não-cotistas atinge 12,5%;
enquanto entre os cotistas raciais alcança o índice de 6% — resultado este que
autoriza que se pugne pela idéia das cotas preferenciais, posto que os cotistas
evadidos, dentre os vários problemas enfrentados, devem ter “sentido a falta” de
referenciais (docentes negros) que lhes ajudassem a enfrentar obstáculos. Mas do
exposto, no que tange à evasão, o consenso da reitoria é o de que os cotistas
valorizam sua conquista e desejam permanecer no ambiente universitário.
Em tempo: a comissão de avaliação de integração social e racial da
Universidade Federal do Paraná pleiteia junto ao Conselho Universitário uma
reavaliação do fator de aprovação da primeira fase do vestibular. O
supramencionado fator trata-se de um índice utilizado pela Comissão de Vestibular,
a fim de se estabelecer a quantidade de aprovados para a etapa seguinte; de acordo
com a procura por determinados cursos, tal índice, desde 2005, tem variado de 2
(dois) a 5 (cinco). A partir de um rápido prognóstico sobre essa revisão se obtém um
resultado que aparenta ser ruim, pois inexiste divisão de vagas baseada em cotas
na primeira fase do certame, sendo provável que tal cálculo se reverta em prejuízo
aos cotistas.
6. COTAS PREFERENCIAIS
Na obra de Kamel, conforme pesquisa feita pelo Ministério da Educação, em
2003, entre os estudantes de nível superior que se submeteram ao chamado
“provão” promovido pelo Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade),
os resultados surpreenderam quando 4,4% dos alunos de universidades federais se
declararam negros, sendo que a população negra estimada no País era, naquele
ano, de 5,9%. Já nas universidades estaduais os números declarados foram 5,5%.
Por sua vez, os pardos nas instituições federais totalizaram 30,3% e nas
universidades estaduais perfizeram 30,5%; à época, o quinhão de nacionais que se
declarou de cor parda atingia os 41,4%. Em 2004, com as mudanças introduzidas
pelo governo Lula no “provão”, dos formandos em universidades federais que
participaram do Exame Nacional de Estudantes, os negros eram 2,8% e os pardos,
25,6%; entre os negros iniciantes, a porcentagem alcançava 3,5% e no tocante aos
pardos, a parcela de universitários chegava a 23,7%. O único e substantivo
problema na crescente positividade visualizada por Kamel quanto ao assunto, é que
os dados estatísticos sob apreço deixaram de verificar os cursos freqüentados por
pretos e pardos, bem assim que em 2004 tal número censitário provavelmente
abrangeu instituições privadas, sem falar nas sempre presentes distorções
numéricas relativas às pesquisas oficiais.
Além disso, se a mentalidade do brasileiro não muda e tampouco acontece
uma inserção quase que maciça de negros e de pardos nas universidades (isto, de
forma planejada e, se possível, segundo os parâmetros aventados neste estudo, por
exemplo), o calvário desta fatia populacional continuará.
Com efeito, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
no que concerne às desigualdades e às raças, quanto mais anos de estudos, maior
a vantagem salarial de brancos em relação a afro-descendentes. Tal levantamento,
realizado com fulcro na Pesquisa Mensal de Emprego constata uma disparidade
clarividente em relação a brasileiros negros e pardos com formação superior,
embora nele não se identifique o tipo de curso concluído, nem a qualidade dos
entrevistados; de conseqüência, trabalhadores formados em carreiras que detêm
mais prestígio e em cursos de melhor qualidade equiparam-se com profissionais
com formação em carreiras de menor remuneração ou cursos de instituições
desqualificadas. Por último, os resultados obtidos revelam que, embora a
escolaridade seja o passaporte para ingressar no mercado de trabalho, o processo
histórico de exclusão de negros e pardos ainda funciona como determinante na
remuneração de trabalhadores.
No ano passado, Cléverson Marinho Teixeira, vice-presidente do Movimento
Pró-Paraná, declarou em entrevista que o Estado é um celeiro de juristas, mas que
lhe falta um representante na Suprema Corte. Ao tentar demonstrar o alcance da
visão e da atuação do governo federal em indicações políticas que são de praxe, o
supracitado advogado, defensor do nome de um ilustre paranaense para ocupar
vaga na mais alta Corte do Brasil, mencionou que o presidente Lula colocou
representantes de todos os segmentos sociais e regionais em cargos
representativos. Demais disso, em atenção ao contexto ora sob consideração,
merece distinção a seguinte assertiva feita pelo citado jurista: “O ministro Joaquim
Barbosa (negro) é um bom exemplo, pela sua capacidade. Isso é importante para
mostrar todos os substratos sociais e regionais que o país dispõe”18.
18 BERTOTTI, João Cabral. Procura-se novo ministro para o STF, Gazeta do Povo, Curitiba, p. 5, 26/8/07.
Eis aí, talvez, uma excelente manifestação para justificar que, nem sempre,
indicações são nefastas, viciadas, pois: a um, relembre-se, tal Ministro foi o Relator
responsável pelo sucesso no indiciamento de todos os envolvidos no difícil caso
vulgo “Mensalão”; a dois, sua indicação para o Supremo Tribunal Federal foi
exemplar, na medida em que houve reconhecimento de seu notório saber jurídico e,
pela primeira vez, um negro integra esta prestigiada Corte; e, a três, Joaquim
Barbosa pode representar condignamente um exemplo positivo no caso das cotas
preferenciais para o ensino superior (leia-se, pós-graduação, mestrado e doutorado),
afastando a pecha negativa que pode ser associada à sugestão de tal prática, e; a
quatro, será o seu voto “histórico”, caso a questão das cotas raciais vá a julgamento
no Supremo Tribunal Federal.
Um pouco além do até então escrito, surge outra perquirição, balizada por
fenômenos distintos: o racismo barra os negros em universidades ou as
universidades despejam no mercado nacional, anos a fio, profissionais de qualidade,
os quais deixam de ser absorvidos pelas empresas por racismo?
E, dessa feita, muito mais adiante desses fatos, a dura realidade vivenciada
por cidadãos brasileiros negros (pretos e pardos) demonstra que eles merecem, sim,
chances, objetos de defesa deste estudo não só na discussão sobre a adoção de
cotas raciais no ingresso ao ensino superior, mas, neste capítulo, viabilizadas, em
quotas preferenciais, destinadas à pós-graduação. E, acresça-se: nessa linha de
pensamento, o que aqui se busca disseminar não se restringe a uma simples defesa
possibilitada pela facilitação e avessa à meritocracia, mas trata-se de considerar
oportunidades únicas, respaldadas em justa reivindicação social, associadas a
algumas adaptações a serem feitas na atual práxis, as quais não fujam à lógica, à
ética, ao bom-senso e, sobretudo, impeçam a ocorrência de resultados danosos aos
beneficiários de tal sistemática no agora, vindo a ecoar beneficamente no futuro
tanto no aspecto social quanto (e, em especial) profissional.
Ainda, não se pode negar, se o status quo atual permanecer inerte, o Brasil
continuará partícipe de um processo de desigualdade racial; é inaceitável haver
limitação ideológica dirigida tão-só à proposta de ações afirmativas raciais à
graduação. Isso, porque existe outra questão igualmente política e grave que
deveria ocupar a cabeça dos brasileiros com energia: a necessidade de incluir, igual
e imediatamente, os negros que desejarem, nos cursos de pós-graduação. Tal
contextura não reflete apenas uma ilação isolada, mas é fruto de esforço sistemático
(mesmo que quase nunca verbalizado) feito pelos próprios acadêmicos negros ou
pardos. Mais ainda: só haverá possibilidade de se entender porque há tão poucos
negros na universidade hoje, desde que analisada a pirâmide do mundo acadêmico
pelo topo e não apenas pela base. O foco da reprodução ou da mudança dessa
sistemática não reside no perfil racial dos calouros, mas dos professores – que,
afinal de contas, têm autonomia para gerir o sistema universitário pátrio.
Pesquisas demonstram que a média de estudantes negros universitários
(em relação ao total do País) gira em torno de 2% de pretos e beira os 8% de
pardos. Os afro-descendentes estão concentrados nos cursos tidos como de baixa
demanda, demais de cursarem faculdades particulares de menor prestígio. Um
exemplo evidente disso dá-se na Universidade Católica de Salvador (UCSAL),
conhecida na Bahia como “a universidade negra”: criada há quase meio século, ela
cresceu a partir dos anos 70, absorvendo os negros que não conseguiam ser
aprovados nos certames vestibulares realizados pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA); destarte, eis que referida instituição privada encarna uma dupla
discriminação, pois nela está concentrado o alunato negro mais pobre, que
freqüenta uma faculdade com menos possibilidades de pesquisa e ainda tem que
pagar pelos estudos!
Outro ponto intimamente vinculado à temática ora em exposição versa sobre
a ausência de professores negros nas universidades públicas nacionais; a falta
deles faz incidir aos alunos negros, desfavorecidos e ainda, em geral,
sobreonerados financeiramente, uma tripla discriminação: a injustiça simbólica de
carecer de figuras modelares de identificação, que os ajude a construir uma auto-
imagem positiva e suficientemente forte para resistir aos embates do meio
acadêmico racista em que têm que se mover.
Outrossim, é de fundamental importância não se esquecer de que, em última
instância, são professores que votarão nos Conselhos Acadêmicos a respeito das
propostas de inclusão racial e, atente-se, 99% deles, brancos. Aqui, sublinhe-se, a
primeira realidade que se deve ter em mente é que nas universidades, a
porcentagem de professores brancos é ainda muito mais alta do que a de alunos
brancos.
Então, é necessário voltar no tempo e verificar que a historicidade da
academia brasileira do século 20 registra e esbarra no ato de barrar, de obstar o
ingresso na universidade, de ilustres professores negros. É de sumo valor recordar,
por exemplo, o caso emblemático de Guerreiro Ramos, um eminente cientista
brasileiro do século passado, formado na primeira turma de Filosofia da
Universidade do Brasil, atualmente, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Guerreiro Ramos desenvolveu sua carreira universitária nos Estados Unidos da
América, publicou obras em espanhol (que ainda não foram traduzidas ao
português) e, no final da vida, indicou, sem pudor e rodeios, que foi vítima de
perseguição racial na Universidade do Brasil e acusou nossa pátria de ser o país
mais racista do mundo. Uma década depois, o notável pesquisador negro Edison
Carneiro também ficou fora da universidade pública e apesar de toda a sua rica,
invejável bagagem intelectual, nos anos 50, ao se candidatar a substituir Arthur
Ramos, na vaga de Antropologia, da já mencionada Universidade do Brasil,
dramaticamente, não conseguiu ser docente da atual Universidade Federal do Rio
de Janeiro, apesar de ter sido presidente do Instituto Nacional de Folclore. Além
dessas situações, atente-se para o caso de Clóvis Moura (destacado pesquisador
sobre a história da resistência negra no Brasil); em que pese ser de autoria de
Moura obra tida como vasta e significativa, ele jamais recebeu qualquer indicação
para exercer a docência em universidades públicas paulistas.
Nessa toada, as perguntas a serem feitas são: Como os estudiosos
elencados acima conseguiriam sobrepujar uma “teia” urdida historicamente para
consolidar a rede racista que se formou na academia brasileira? O que resta aos
negros e pardos no presente, diante de uma situação já conformada?
Em resumo, eis que a Universidade de São Paulo foi criada nos anos 30,
totalmente branca, e formou a sua segunda geração de professores, os quais, por
sua vez, começaram a formar outros docentes que assumiram cargos em
faculdades e universidades de São Paulo e de vários estados da federação. Num
momento subseqüente, criou-se, nos anos 50, a Universidade Federal do Rio de
Janeiro (composta por professores brancos, alguns egressos da Universidade de
São Paulo). A docência branca da Universidade Federal do Rio de Janeiro cresceu e
tratou de formar professores que ajudaram a consolidar novas universidades
públicas. O mesmo processo sucedeu-se com a Universidade de Brasília nos anos
60, integrada por professores brancos, oriundos do eixo Rio — São Paulo
(Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade de São Paulo, principal e
respectivamente). Em seu tempo, a Universidade de Brasília formou mestres e
doutores, que foram absorvidos por outras universidades federais e estaduais do
País, isto e neste contexto especialíssimo, configurando o estabelecimento de um
círculo vicioso, não virtuoso. Então, deflui-se, após quarenta anos, o Brasil possui
um quadro universitário gigantesco e que reproduz essencialmente as
características da rede original construída na Universidade de São Paulo: o ethos
branco da academia brasileira, cuja etnografia ainda carece ser relatada.
A falta de dados sistematizados que versem sobre a composição racial da
nossa classe de docentes e pesquisadores é algo que exige atenção, uma séria
reflexão. A média é de menos de 1% de professores negros nas universidades. Na
Universidade de São Paulo, na Universidade Federal do Rio de Janeiro ou na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro há exclusão racial quanto à docência,
demais de concentração de professores negros em unidades acadêmicas
estigmatizadas como de menor prestígio. Hipoteticamente, crê-se que, nos últimos
trinta anos, diminuiu o número de professores universitários negros nas instituições
de ensino superior, isto, por pelo menos duas razões: no Brasil dos anos 50 e 60, a
elite acadêmica era muito menor, as próprias redes de poder acadêmico estavam
menos saturadas e, por circunstâncias momentâneas, alguns negros puderam
concorrer em condições mais igualitárias com seus colegas brancos.
Então, eis que jovens negros doutores contemporâneos são, em boa
medida, egressos de escolas públicas menos apoiadas pelo Estado, concorrem com
uma quantidade muito maior de doutores brancos e, para cúmulo, ainda, têm que
superar dois entraves, quais sejam: a) as eventuais deficiências de capital cultural
específico e idiossincrático, segundo a universidade em que pretendem ensinar e,
conforme a disciplina na qual se especializaram, e; b) as barreiras de
recomendação, na medida em que não se integraram a essa fechadíssima rede
acadêmica, já há muito consolidada.
Em tese defendida por Maria Solange Pereira Ribeiro na Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, confirma-se tal intuição, pois desde o ano
de 1980 não houve ampliação da presença de professores negros nas universidades
públicas paulistas. Solange Ribeiro conta que, em uma das quatro universidades por
ela pesquisada, encontrou apenas cinco negros entre dois mil professores.
Os brasileiros padecem de uma “inconsciência racial”, a qual parece
manifestar-se indefinidamente à sombra da ideologia freyreana dos brancos sem
cor. Tem-se a impressão de déjà vu, como se meio século simplesmente não tivesse
provocado nenhum tipo de impacto no tocante à exclusão racial. É inequívoco, dita
situação só é vagamente melhor do que a verificada há alguns anos atrás, mas, por
outro lado, existe algo de estático, estagnado, uma imutabilidade quase inacreditável
na realidade racial brasileira.
Nas universidades, a cada vez que entra um professor negro nas áreas de
Ciências Humanas e Sociais, linhas de pesquisa e interesse pelo conhecimento da
cultura/história negra são abertos ou ampliados. E é justamente devido ao baixo
número de docentes afro-descendentes que, após cem anos de vida acadêmica,
muitas questões significativas da nossa sociedade continuam à margem de serem
debatidas com propriedade. Por conseguinte, os concursos para docentes,
preenchidos quase que, exclusivamente, por candidatos brancos, já não podem ser
vistos tão-só como efeito de decisões racionais, embasadas em padrões impessoais
de membros componentes das bancas. Tais certames refletem, na verdade, o
resultado de uma complexa equação que envolve variáveis, a exemplo de política
acadêmica (pressões externas e internas em favor de determinados candidatos),
redes de relações dentro da comunidade acadêmica (linhas de pesquisa, filiações
teóricas, campos de atuação), mérito e trajetória acadêmica de cada um (artigos e
livros publicados, experiências em pesquisas), cuja relevância muda de acordo com
o perfil do candidato desejado (pesquisador sênior, pesquisador júnior, etc.). Diante
desses dados, por que não sugerir ao Ministério da Educação que investigue os
concursos efetuados e procure saber se as vagas públicas estão alocadas dentro de
algum critério de interesse social — incluindo a pluralidade racial?
Senão, eis que vale anotar que, absurdamente, 99% dos pesquisadores do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) detentores
de bolsa de produtividade em pesquisa são brancos. Idêntica proporção de exclusão
racial extrema é encontrada entre os pesquisadores da Fundação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz/Manguinhos), do Museu Nacional do Rio de Janeiro, da Fundação
Getúlio Vargas, do Museu Goeldi, enfim, em todos os chamados “centros de
excelência” nacionais prevalece o mesmo perfil racial homogêneo. Qual será a
causa que explica esse “fenômeno”? A rede de pesquisas é uma espécie de supra-
rede da elite da rede de professores universitários, que vão indicando seus
“melhores talentos” (por sua vez, recrutados da rede dos estudantes de pós-
graduação) para irem formando os centros de pesquisa; destarte, o que aconteceu
nos anos 60 e 70 quanto à formação docente universitária no Brasil, se perpetua,
identicamente, na área de pesquisas.
O Estado brasileiro, respeitoso da autonomia universitária, continua a
ignorar detalhes desse perfil racial dramático, porque ele próprio está formado quase
que exclusivamente por membros de referida elite, que construiu a academia
(docência e pesquisa) “à sua imagem e perfeição”. E a academia não se enxerga,
sob hipótese alguma, racializada, ou melhor, não quer se ver assim! Os acadêmicos
crêem que integram o mundo do saber, do mérito, da ciência, do empírico, um
universo incolor, ainda que sem negros; na “redoma” edificada pela comunidade
científica brasileira ninguém tem cor: todos são cientistas, pesquisadores, doutores,
acadêmicos, trata-se apenas de uma comunidade de pares. Nos Comitês de
Avaliação dos órgãos de financiamento, trabalha-se para silenciar o discurso anti-
racista que, até hoje, produz ecos no País. Não são poucas as informações de pós-
graduandos das áreas de Ciências Sociais de várias instituições que, nas seleções
das universidades federais, são cientificados de que as bancas buscam estudantes
que queiram trabalhar na linha de pensamento de Gilberto Freyre; por conta disso,
“jovens freyreanos”, com disposição para discorrer sobre aspectos “desconhecidos”
da obra do festejado sociólogo pernambucano, tornam sua produção literária
“irremediavelmente” presente na consciência discursiva da elite intelectual brasileira.
Volta-se a “cutucar a ferida”, mas é preciso! O equívoco disseminado pela
vigente ideologia racial no Brasil traduz-se no conteúdo de que a nossa suposta
excepcionalidade se deve à mestiçagem; para o mundo, a originalidade dos
brasileiros repousa no fato de que somos harmônicos numa pluralidade de
identidades raciais e, ao contrário de nós, África do Sul e Estados Unidos da
América são países de estoques raciais separados. Então, para que haja a
desmistificação de sobredita ideologia, basta comparar essa informação
escamoteada ao grau de integração racial que vigora aqui e aquele que vige em
nações ditas mestiças do mundo afro-americano (quantidade de médicos e juízes,
por exemplo), tais como Cuba, Santo Domingo, Porto Rico, entre outras do Caribe,
para se evidenciar que sairíamos vergonhosamente perdedores no que respeita à
efetiva participação de negros no meio social.
A elite branca nacional fez mais do que calar quaisquer notícias sobre a
desigualdade racial no Brasil: com inaudito descalabro, ela contribuiu para a
produção de um sem-número de dados constantes deste trabalho. Nesse ponto,
consigne-se, no entendimento de Jorge de Carvalho, antropólogo da Universidade
de Brasília, a idéia é que a elite quer manter o poder e as vagas disponibilizadas nas
universidades públicas boas, que significam cotas de poder; de conseqüência, essa
mesma elite, se tiver que concorrer para ocupá-las, não quer concorrentes,
adversários negros.
De outra sorte, os intelectuais negros tentaram, ao longo do século 20,
denunciar a realidade da exclusão racial e encaminhar propostas de apoio estatal à
população negra; seus discursos foram propositalmente silenciados do circuito
hegemônico de comunicação do País.
A meta das ações afirmativas em pauta é deselitizar radicalmente o ensino
superior e proporcionar à universidade pública pátria um retorno à sua função social,
há tempo desvirtuada pela homogeneidade de classe, para não dizer, racial. Nesse
novel universo afirmativo, há que se discutir também o seguinte: é fato que as
universidades estrangeiras que servem como referencial de excelência para a
academia brasileira, como Cambridge, Oxford, Harvard, Columbia, Sorbonne, entre
outras, estão muito mais integradas racialmente do que as nossas instituições de
ensino superior. Diante disso, como calar-se quando o discurso pró-mestiçagem, de
fachada anti-racista, opera, na prática, uma força anti-racista (obliquamente, um tipo
de atitude racista) que parece querer permanecer vivo entre nós, liberto de
restrições, indefinidamente?
Propõe-se, então, complementar a proposta de cotas para a graduação pelo
sistema de preferência; dessa forma, o Ministério da Educação (MEC), poderia
alterar a sistemática em vigor, com o intuito de que não se perpetuasse essa
pirâmide de “poder acadêmico”, mediante aplicação criteriosa bastante em que
negros com doutorado tenham ingresso automático (segundo novo regramento
pertinente), na carreira docente; conseqüentemente, os que tiverem mestrado,
ingressariam no doutorado pelo sistema preferencial. Tais cotas ajudarão a instituir
no Brasil um clima de concorrência aberta na academias brasileiras; deduz-se que
elas criarão oportunidades para que estudantes negros bem preparados ingressem
na universidade, cursem não só o mestrado, mas o doutorado, isto, fora da rede já
fixada. Eis que assim, pelo menos, haverá a chance de competição com brancos
insertos na supracitada rede, algo que não acontece há décadas...
Um caminho a ser perseguido, talvez seja incluir no Estatuto da Igualdade
Racial, de autoria do Senador Paulo Paim, antes de sua votação pelo Congresso
Nacional, três itens, quais sejam:
a) Um sistema de preferência de vagas na pós-graduação: as unidades
acadêmicas (institutos, centros ou faculdades) das Instituições Federais de Ensino
alocarão, do montante total das vagas ofertadas nos cursos de pós-graduação, pelo
menos 20% do total das vagas de mestrado e idêntico percentual do total das vagas
do doutorado para candidatos negros aprovados em processo seletivo. Deve-se
enfatizar que o critério para seleção de negros por preferência não se operará com
base no desempate, mas por preferência na aprovação (equivalente ao que foi
proposto para o caso das cotas para graduação pelo vestibular: um piso mínimo de
aprovação). Poder-se-á utilizar na pós-graduação a mesma idéia de um Plano de
Metas que foi usado na Proposta de Cotas para negros e índios da Universidade de
Brasília. Demais disso, é viável definir que, por 20 anos, a diversidade racial será um
critério significante na avaliação dos programas de pós-graduação no Brasil. Com
esse fator incorporado à nossa cultura acadêmica, em pouco tempo será ilegítima a
pergunta: que sentido de excelência pode ter um programa de mestrado ou
doutorado que seja constituído exclusivamente de professores e alunos brancos, em
um País que conta com 45% de negros e com centenas de sociedades indígenas?
b) Um sistema de preferência de vagas nos concursos para professores:
nesse tipo de certame, 20% do total de vagas para docentes deverão ser
preenchidas por candidatos negros que sejam aprovados. O montante poderá,
igualmente, ser contabilizado por unidades acadêmicas, para não atomizar
excessivamente o processo de seleção dos candidatos negros. Assim, haverá
estímulo bastante no sentido de que programas de pós-graduação absorvam
candidatos afro-brasileiros, alterando e ampliando suas linhas de pesquisa para,
então, pela primeira vez, o Brasil recebê-los de um modo consciente e aberto. Ao
mesmo tempo, com certeza, potenciais candidatos dessa “estirpe” estariam se
preparando para participar de concursos destinados à docência de instituições
federais de ensino.
c) Um sistema de preferência na concessão de bolsas de pesquisa para
negros nas instituições federais de fomento (Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, etc.): a complexidade constitutiva do sistema brasileiro de
pós-graduação e de pesquisa tem que mudar sua feição altamente discriminatória;
deve, inclusive, revisar posicionamentos, caso haja a real pretensão de se promover
uma nova postura de integração racial no setor. Conforme já se disse anteriormente,
será preciso, além de reavaliar a função social da universidade, rever, também, não
só as linhas de pesquisa, bem como as disciplinas ofertadas. Nessa tessitura e indo
mais adiante, quiçá, seja necessário, igualmente, repensar a contratação de
professores, no sentido de que estes possam atender aos temas de pesquisas
demandados pela novel clientela, os negros.
Tão veementes considerações estão calcadas em várias motivações, dentre
as quais merecem ênfase a um, pela possibilidade de mudança das regras de
concessão de bolsas para os próximos anos e, a dois, pelo questionável sistema de
avaliação de ingresso na pós-graduação, cujo mecanismo exclusivamente seletivo
prima por ser não-universalista, ou, parcial e, portanto, funciona como contribuinte
de peso para a prévia exclusão de candidatos negros em tal meio, haja vista que o
cumprimento de suas “exigências” traz inserto em seu bojo, a certeza de redução
quanto às prováveis chances de aprovação destes.
Quanto à primeira idéia, a embrionária proposição de mudanças desses
centros de excelência sobre seus critérios de seleção, de plano, funda-se no fato
deles afetarem os negros, em especial, aqueles que sejam docentes e pretendam
fazer doutorado. Isso, porque ao invés de haver consideração quanto ao talento
demonstrado pelo indivíduo e pela temática específica do candidato, as novas
diretrizes recomendam, a título de princípio seletivo, privilegiar estudantes já
inseridos em alguma rede de pesquisa, quadro este que, de per si, elimina qualquer
pessoa isolada; logo, fecham-se as portas da pós-graduação devido a grupos já
existentes, nos quais, em regra, inexistem elementos negros e, num círculo vicioso,
distribuem-se, praticamente, todos os recursos do Estado entre os estudantes
brancos. Acaba-se, aqui, dessa feita, quaisquer direitos à livre “concorrência”! Dessa
feita, crucial relembrar que os poucos negros participantes da pós-graduação, são
justamente os estudantes isolados, autônomos, que ousaram ultrapassar o bloqueio
racial ao contrariar as estatísticas oficiais que, por antecipação, já os havia deixado
de fora da referida comunidade.
No tocante à segunda ideação, é necessário pensar nos efeitos das cotas na
pós-graduação; se no vestibular (que não mede necessariamente as pessoas mais
capazes, mas aquelas que têm mais condições de se preparar para tal certame)
foram adotadas as cotas raciais e, com freqüência, por isto, registram-se problemas,
imagine-se as dificuldades consignadas no que tange às cotas na pós-graduação!
Eis que se torna necessário ressair que a pós-graduação não se configura como
uma busca livre pelo conhecimento, mas se baseia em linhas de pesquisa. E aí,
surge o nó górdio da questão: as linhas de pesquisa resultam de vontades políticas.
O ingresso na pós-graduação é prática que se dá embasada no critério de
preferência, aliado a uma meritocracia tendenciosa que, não raro, premia os
melhores num conjunto de preferências escolhido (o qual se vincula à manutenção
de linhas para que professores dêem continuidade as suas pesquisas e encontrem
um alunato que se adapte à consecução de seus interesses investigativos). Então,
em reiteradas ocasiões, um estudante mais qualificado, simplesmente deixa de
ingressar na pós-graduação porque elegeu uma linha de pesquisa com poucas
vagas, ou, que não consta da programação em que se inscreveu, enquanto outro
candidato menos preparado tem seu ingresso garantido na comunidade acadêmica
por ter escolhido uma linha menos concorrida; nesse ponto, evidente, o sistema não
tem respaldo democrático, tampouco está alicerçado no mérito! Nessa trilha, difícil
verificar a capacidade relativa dos estudantes, uma vez que não existe unificação de
critérios entre professores, programas, linhas de pesquisa e recursos
disponibilizados pelas instituições. Lógico, no exame de seleção das instituições de
ensino superior brasileiras há parâmetros que, apesar de variações, colocam-nas
em patamares similares. Entretanto, na realidade, quando se trata de avaliar, por
exemplo, um candidato desconhecido da banca, que estudou com um orientador
sem renome e que apresenta recomendações de professores desconhecidos, é
flagrante sua desvantagem para com outro concorrente que (conquanto haja
igualdade de condições acadêmicas entre ambos) tenha apresentado “atributos”
contrários aos acima enumerados; se, por desventura, acrescenta-se àqueles
primeiros elementos elencados o componente racial, mais forte a incidência de
estereótipos negativos e a projeção de preconceitos devido à cor do candidato: o
negro é menos capaz, apresenta mais deficiências, etc. Some-se àquilo que já foi
dito, a idiossincrasia presente em alguns membros de bancas e observar-se-á, no
total, um processo de qualificação acadêmica eivado de alta imprecisão e suscetível
a falhas, que tem como agravante um padrão de segregação racial! Por isso, a triste
escandalosa e vergonhosa estimativa de que no Brasil, tão-somente, 0,5% de
pesquisadores negros participem do sistema de produtividade em pesquisa; é digna
de pasmo, senão de revolta a notícia de que dos quase oito mil pesquisadores
componentes da elite científica de nosso País, apenas constam cerca de vinte
negros.
Num outro patamar, é notório o isolamento experimentado por pós-
graduandos e professores negros no ambiente acadêmico; não raro, eles são
vítimas de uma pulverização de sua presença no meio universitário e poucas vezes
encontram oportunidade de expor tamanha situação de exclusão e de discriminação
que vivenciam, inclusive, levada a cabo subliminarmente quando intentam galgar
degraus mais altos nas instituições em que trabalham. Contra os pós-graduandos
negros, voga o fator competitividade, que os coloca sob constante pressão, graças à
falta de capital cultural específico, melhor dizendo, de um código lingüístico para-
disciplinar peculiar do ethos acadêmico (tão essencial à pesquisa, aos grupos de
discussão, à obtenção de informes e dados do saber disciplinar) que lhes guie no
universo social e simbólico no qual se movem os brancos universitários. Daí, o
caminho que se apresenta aos negros que tiveram acesso à educação superior: ou
eles se metamorfoseiam de brancos (após se apropriarem do uso da mencionada
codificação e, de conseqüência, abrirem mão de sua identidade racial) ou
confrontam abertamente o racismo reinante (e arriscam suas possibilidades de
inserção nas redes brancas firmadas, saturadas e marcadas por um controle que vai
além do aspecto econômico).
A espinhosa missão de conscientizar, de promover a aceitação das cotas
raciais na pós-graduação, em muito se sobrepõe ao desafio enfrentado pelos
cotistas negros em vestibulares realizados Brasil afora, posto que a aceitação de tal
processo dar-se-á de forma mais lenta e esporádica. Ao revés do exame vestibular,
a decisão de inclusão racial no meio acadêmico, a bem de sua legitimidade, eficácia
e eficiência, não deverá, por exemplo, centralizar-se numa comissão fixa, porém, em
inúmeras bancas específicas ad hoc, cujos critérios não sejam uniformizados. Além
disso, ao debater a idéia de compensação e preferência pelos negros entre aqueles
que integram a classe docente no ensino superior, certamente, far-se-á presente o
choque de crenças e convicções sobre aquilo que se entende por mérito e
qualificação e, sem dúvida, serão trazidos à tona aspectos pontuais tais como, uso e
finalidade da expressão “política acadêmica”, aspectos classistas, “etiqueta social”,
interesses de composição de grupos, além de possíveis contribuições que um
candidato pode trazer ao tipo de capital simbólico acumulado por uma determinada
unidade acadêmica, que poderá absorvê-lo; então, veja-se que, quanto a esses itens
foram enumeradas algumas das preferências exercitadas à acessibilidade de
qualquer indivíduo à carreira acadêmica, mas, o que se indaga, é o porquê de não
se preferir/aceitar negros na comunidade universitária brasileira. E, mais: torna-se
essencial perquirir se as nossas bancas estarão aptas a modificar o seu
comportamento diante da proposição de um novo sistema de ações afirmativas, o
qual pretende ser direcionado para reavaliar o papel desempenhado pelos afro-
brasileiros no ensino superior, em específico, na pós-graduação.
7. CONCLUSÃO
Não é incomum políticos afiançarem que o problema brasileiro da educação
não é dinheiro. Verdade! Não nos faltam recursos, mas prioridade; falta-nos,
sobretudo, realocar corretamente o dinheiro disponibilizado à educação. Destarte,
normalmente, os números citados se cingem ao volume de recursos investidos na
educação do setor público (nas três esferas: municipal, estadual e federal) como
proporção do Produto Interno Bruto (PIB). O Brasil investe 4% em educação, um
percentual que quase se iguala ao aplicado por outras potências. Todavia, nesse
quesito é preciso pôr atenção! Os números enganam, pois se desconsidera nesse
cenário, o tamanho do PIB e a quantidade de estudantes atendidos. Uma das
melhores maneiras de se verificar o quanto um país investe num aluno, é medir o
gasto público por estudante como proporção da renda per capita.
No ensino superior, por exemplo, o Brasil gasta por aluno, o equivalente a
58,6% da renda per capita. Eis aí um gasto que denota excessos, senão, veja-se
que, comparativamente, os germânicos gastam 41,2%; os mexicanos, 35%; os
espanhóis, 22,4%; os chilenos, 17,7%; e, os coreanos, 7,3%. Os excessos acima
referidos não acontecem, obviamente, em outras nações; no entanto, aqui, dizem
respeito à relação entre o percentual de verbas destinadas ao ensino superior e a
respectiva população acadêmica, ou seja, o alunato inscrito em universidades soma
apenas 2% do total de estudantes, conquanto o ensino superior fique com 20% de
todas as verbas aplicadas no setor educacional.
Vivemos num País onde se constata, freqüentemente, não só a perpetração
de erros na política educacional posta em prática pela cúpula federal, mas em que
as conseqüências da redução de investimentos governamentais na seara em tela
ficam evidenciadas no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que, de acordo
com a Organização das Nações Unidas, fez o Brasil recuar para a 69ª. posição no
ranking internacional. É o cúmulo, mas, só recentemente a Câmara Federal decidiu
aprovar o Fundo Nacional de Educação Básica (FUNDEB) – recuperando, assim,
investimentos feitos pelo governo federal na área. Então, eis que tais dados são de
sumo valor para seja possível entender o discurso de expansão do ensino superior
(Programa de Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais - REUNI) que vige atualmente no Planalto, retórica esta que assume,
conforme a ótica, diversos matizes, em sua maioria, nada louváveis.
Constatada a existência de uma sofrível gestão educacional
(ordinariamente, aliada a uma má distribuição de recursos financeiros), pior do que
isto, é a quase absoluta certeza de que, do jeito que as coisas “andam”, uma parcela
ínfima da comunidade negra brasileira, terá acesso ao ensino superior, em
particular, à pós-graduação, à pesquisa e à docência; logo, eis que a maioria dos
negros nacionais está (em que pese algumas mudanças operadas), por
antecedência e em pleno século XXI, relegada à indigência intelectual.
A pergunta que não quer calar neste momento é sobre o porquê o Brasil se
insurge com tamanha veemência contra o uso de cotas raciais e, quiçá,
preferenciais, no ensino superior.
Numa primeira tentativa de resposta, é fato que o País teve, por dez anos,
como comandante supremo, Fernando Henrique Cardoso, sociólogo que sempre
pensou em termos de nação dividida (composta por brancos opressores e por
negros submissos), e, que, para o bem e para o mal, conforme se detectou no
decorrer desta monografia, instou por institucionalizar entre nós políticas públicas
(ações afirmativas) raciais, cujo formato e aplicabilidade são questionáveis, posto
que importados de sociedades diametralmente distintas de nossa realidade.
Em uma segunda possibilidade de reposta, eis que surge (ainda que fraco,
mas, pelo menos inicial) um ambiente externo relativamente favorável e crescente
no sentido de se atenuar o racismo que grassa em boa parte do globo. Campanhas,
dinheiro, patrocínio e estudos foram desenvolvidos por governos e organismos
internacionais com o intuito de amortizar o racismo, fazer prevalecer, mundo afora, a
visão multiétnica, tolerante às diversidades, a exemplo do que acontece, com
sucesso, na Inglaterra e com tremendo, senão discutível esforço, na França.
A terceira contestação está resguardada pela imensa desigualdade
vigorante no Brasil; infelizmente, os brasileiros estão divididos em ricos e pobres,
sendo que a maioria destes é constituída por negros e pardos; aí reside mais uma
senha permissiva à forte instauração do preconceito, racismo, além do classismo
que grassa, comprovadamente, em solo pátrio.
Por derradeiro, some-se ao rol de respostas dadas para o questionamento
anteriormente externado, a certeza inabalável de que um país sem educação não
progride, fator este que, alinhavado às soluções fáceis (importação e ajustes
caseiros quanto à aplicação das reservas raciais e inexistência de quotas
preferenciais no ensino superior, sem a criação de um modelo próprio, adequado à
sociedade brasileira), às barreiras construídas e profundamente cimentadas no
universo acadêmico, conduzem ao insucesso das razões focadas, as quais
permitiram a elaboração desta monografia.
No Brasil não havia racismo declarado, apenas atuante, mas sob forma
disfarçada, travestido de preconceito; agora, com o uso de um molde de quotas (não
suficientemente adaptadas ao nosso contexto), corrobora-se o sobredito: aquilo que
antes era velado, hoje se tornou quase explícito, isto, depois do recente aceite de
uma política pública construída à época do governo Fernando Henrique Cardoso, a
qual pugna favoravelmente à existência de dois Brasis (o branco e o negro). Então,
tem-se que as ações afirmativas devem ser analisadas sob ótica distinta da utilizada
por Kamel, posto que detêm o poder de virem a ser traduzidas como preparatórias
para um sério e imprescindível debate, ainda que deveras tardio: há que se discutir o
racismo no Brasil! Eis aí, o passo inicial para que se dê uma verdadeira integração
racial neste País, forjada na inclusão de negros capazes no ensino superior, seja por
intermédio de cotas raciais em vestibulares ou na pós-graduação (utilização do
sistema de preferência).
São, exemplarmente, dados como os transcritos a seguir, os autorizadores
da linha de raciocínio que prima por considerar tanto negros quanto pardos
indivíduos destituídos de significação na educação nacional,
É fato, na atual situação social, política e econômica vivenciada em território
pátrio clama-se por providências urgentes; nessa configuração, primordialmente, o
que mais nos interessa é a questão educacional do ensino superior público, no que
concerne às reservas raciais e preferenciais, destinada à parcela de afro-brasileiros.
Aliás, conforme se viu até agora, tudo aquilo que se implementou a respeito tem
causado problemas e está longe de uma aplicação satisfatória. Do observado no
que tange às cotas raciais (ingresso por meio de vestibular à graduação), é
consabido que: a legislação relativa a esse tipo de quota não está totalmente
pacificada na esfera federal, ademais de ser conformada com “perigosas” ressalvas
pelos legisladores e mal interpretada por cultores e operadores do direito, bem
assim deficitária quanto ao material legislado; os critérios de aferição das cotas sob
apreço mudam “ao sabor dos ventos” nas universidades federais e, de regra, de
acordo com os imbróglios surgidos e nunca dantes aventados; a sua temporalidade
deixou de ser fixada — elemento perigosíssimo quanto aos fatores ideologia
reinante e assistencialismo, uma vez que, do modo como estão sendo aplicadas, as
quotas raciais garantem particular êxito ao afã eleitoreiro de certos parlamentares;
as vagas respeitantes às reservas raciais deixam de ser preenchidas,
desafortunadamente, devido à desinformação, senão ao despreparo educacional de
alunos, vestibulandos negros; há subliminar, quando não explícito, preconceito em
relação aos cotistas raciais (seja por parte dos quotistas não-raciais, do próprio
corpo docente e de funcionários das instituições de ensino superior) e, pior, lhes
faltam referenciais, moldes (professores negros) para eventual apoio, orientação
quanto à atuação; no quotidiano, constata-se a conformação de veemente, maciça e
reiterada crítica negativa social, veiculada midiaticamente e via criação de
movimentos de cunho anti-racial; verifica-se que o modelo cotista racial adotado no
País é um reflexo amador de práticas já condenadas por outras nações, quando não
extintas, o qual foi posto em uso sem que tenha havido o providencial zelo de se
resguardar ou respaldar devidamente as diferenças que nos caracterizam como
povo brasileiro; há que se catalogar, dentre os aspectos até então elencados, a
existência de uma “cultura” vigente entre nós, herdada e equivocada no tocante aos
negros, pois a historicidade destes — repleta de fatos reais e, igualmente, eivada
“com o dobro” de fictícios, estes últimos, desabonadores e criados ao bel-prazer de
uma minoria dominante branca — pende, com exageros e dosada iniqüidade, ora
para uma penalização exercida a priori e de modo gratuito, ora para uma pseudo ou
limitada aceitação no meio em que estão insertos.
Já no que pertine às cotas preferenciais, notória a avassaladora, “quase”
inexistente, ausência de pós-graduados, mestres, doutores, PhDs negros e/ou
pardos no Brasil; o percentual desses em atuação no meio acadêmico é exíguo,
vergonhoso, conquanto afro-brasileiros componham significativo quinhão da nossa
população. Os prejuízos decorrentes de tal situação são inúmeros, tais como:
conforme já apontado, eis que os universitários cotistas raciais sofrem clarividente
desestímulo à continuidade de seus estudos, haja vista ingressarem em
universidades federais de nosso País com a pecha de terem sido “auxiliados” em
sua aprovação no vestibular; os acadêmicos negros e/ou pardos brasileiros somente
podem se espelhar em raríssimos exemplares de afro-descendentes “bem-
sucedidos” presentes no corpo docente de universidades federais brasileiras,
ademais de serem vitimados por habitual preconceito e/ou racismo manifestado por
seus pares e funcionalismo destas instituições, e, pior: eles são, em geral e
crescentemente, alvos de críticas diferenciadas, quando não, impiedosas, expressas
pelos meios, tanto acadêmico quanto social — e, no porvir, tudo indica, o serão,
também, em maior escala e desastrosamente, na esfera profissional (podem vir a se
tornar vítimas de mais restrições do que as já havidas, justamente, em função do
uso das cotas raciais, isto, inclusive, para adentrar no círculo fechadíssimo da
“academia”); sabe-se que no Brasil, os órgãos federais responsáveis pela concessão
de bolsas de estudo governamentais destinadas às pós-graduações, mestrados,
doutorados e PhDs têm planos de afunilar à acessibilidade de graduados a elas,
fator restritivo, impediente (outra sutil discriminação) para que o reduzidíssimo
número de negros e/ou pardos universitários venham a compor o seleto “grupelho”
de cientistas, de pesquisadores brasileiros — terminologia aqui empregada, não no
sentido pejorativo (tendo em vista o “domínio do saber” que permeia tal ambiente),
mas, sim, elitista; a permanência e a preponderância (por mais incrível que aparente
ser) de uma visão marginalizada da figura do negro e/ou pardo no “mundo”
acadêmico, a qual, não raras vezes, sobrepuja, opõe-se àquilo que ali mais
interessa: o aspecto conhecimento!
As conclusões acima enumeradas e concernentes à dupla tipologia de cotas
que são objeto precípuo desta monografia, em alguns tópicos apresentam certa
similaridade, todavia, torna-se imperioso aduzir, é preciso ter em mente que os
resultados obtidos a partir da recorrência desses óbices são diferentes, conquanto
espraiem-se, genericamente e de modo maléfico entre aqueles que sofrem “na pele”
tais conseqüências.
Nesse ponto, é cabível, à guisa de reflexão, abrirem-se parênteses para o
escritor português Antonio Alçada Baptista, que em sua obra “O tecido do outono”
diz o seguinte: “Acho que a consciência da nossa dignidade é o suficiente para
termos um comportamento honesto”19.
Por fim, eis que a adoção das cotas raciais e preferenciais por tempo
limitado parece ser uma oportuna senda a ser trilhada: ambas as proposições são
dignas de atenção, trazem em seu cerne benesses e diferem do modelo e do
simulacro (latu sensu) hoje em voga nesta área, tendo em vista que: sua prática se
dará com fulcro em pré-seleção, baseada na meritocracia individual, em tempo
determinado e, segundo o tipo, em percentuais pré-fixados (número de aprovados,
em diversas áreas do conhecimento humano). Demais disso, é por intermédio de
ações construtivas semelhantes a essas que se torna possível pensar na edificação
de um Brasil progressista, divorciado de dados estatísticos pífios, preparado para
competir pari passo — na atual era globalizada — com outros grandes e novos
mercados, e, sobremaneira, irmanado como um povo plenamente cidadão, com
alguns de seus principais anseios básicos atendidos (conforme reza nossa Lei
19 BAPTISTA, António Alçada. O Tecido do Outono. São Paulo : Editora Globo. 2001.
Maior) e independentemente da cor da pele, ou, da “raça” de cada brasileiro. O que
está em pauta são a nossa concepção de nação e o nosso destino como País!
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