FICÇÃO E “HISTÓRIA REAL”: CONSTRUÇÕES NARRATIVAS MEDIADAS PELO
AUDIOVISUAL NA AULA DE HISTÓRIA
PATRÍCIA TEIXEIRA DE SÁ1
Esse texto apresenta um recorte da tese de doutorado “Conhecimento Histórico e
Mídia em uma escola da Rede Municipal de Ensino do Rio Janeiro” (PUC-Rio, 2016). A
pesquisa se insere em um quadro de reflexões sobre a construção de conhecimento histórico
na escola e envolve preocupações em torno da tensão entre a lógica da escola e a lógica da
comunicação contemporânea. Como se constroem leituras sobre o passado no atual contexto
social altamente midiatizado? O que fazem a escola e o professor de História nesse contexto?
O que faz e pensa o aluno nesse contexto? Essas questões moveram o esforço de pesquisa na
direção de problematizar a construção do conhecimento histórico escolar em sociedades
midiatizadas. Diante disso, algumas questões podem ser formuladas em relação ao problema
da aprendizagem histórica em uma sociedade altamente midiatizada. História como ciência,
história como disciplina escolar, meios de comunicação e Estado disputam espaço nos
objetivos e procedimentos da interpretação histórica. Na escola, essas diferentes lógicas se
apresentam e entram em disputa. Como essas instâncias “conversam” no meio escolar? A
lógica da mídia atravessa o espaço escolar? Como se coloca, no espaço do ensino de história
na escola, a tensão advinda das diferentes leituras sobre o passado possíveis?
O artigo tem o objetivo de apresentar e analisar transcrições de aulas de história em
que foram propostos exibição e debate do filme “Guerra de Canudos” (Sérgio Rezende,
1997). Após apresentação da metodologia e do campo empírico, abordarei os movimentos do
circuito didático que se estabeleceu a partir do uso pedagógico do refererido recurso
audiovisual. O propósito é discutir aspectos relacionados à construção do conhecimento
histórico escolar, com vistas a estabelecer correlações entre narrativas construídas com
mediação de conceitos históricos e narrativas construídas com mediação de produtos
audiovisuais. Procurarei mostrar que a proposta de aula dialogada, com análise de narrativa
fílmica, possibilitou a ampliação e diversificação de argumentos na construção do
conhecimento histórico escolar, movimentos que podem ser considerados importantes para
fazer frente à concepção de história escolar como narrativa unidirecional e sem ambiguidade.
1 Doutora em Educação pela PUC-Rio. Auxílio financeiro: FAPERJ.
2
Metodologia e Campo Empírico
O estudo foi desenvolvido a partir de observações, audiogravações e notas escritas de
aulas de história em três turmas de 9º ano do Ensino Fundamental. Durante três meses,
acompanhei três horas/aula semanais em cada uma das três turmas observadas, em dezesseis
visitas à escola. O registro do áudio foi realizado através de um gravador digital colocado
sobre a mesa da professora. Eventualmente, a gravação captou falas e comentários dos
estudantes, mas a voz predominante e clara nos arquivos de áudio é da professora. Nas notas
de campo, procurei registrar falas e atitudes dos estudantes diante das propostas didáticas da
professora, buscando registrar a heterogeneidade de vozes e atitudes no ambiente da sala de
aula. Para análise, estão arquivados 1.381 minutos de aulas gravadas – 276 minutos na turma
1, 520 minutos na turma 2 e 585 minutos na turma 3.
Todos os arquivos de áudio e notas de observação foram transferidos para o software
Atlas TI. Elaborei, para cada aula gravada, uma sinopse contendo as principais informações
sobre o “circuito da aula”2. Procurei registrar o tempo destinado ao trabalho específico com
temas da história e marcar os momentos em que a professora ou os estudantes efetuaram
alguma análise de conteúdos midiáticos, livros didáticos ou outros materiais propostos. Além
desses, estão registrados nas sinopses outros momentos que considerei que influenciam e/ou
interferem na construção do conhecimento histórico escolar, tais como interrupções externas
por parte da direção, de outros professores, de estudantes, da inspetora etc., demandas
diversas dos estudantes, estratégias da professora para gerir o fluxo de interações e manter a
disciplina na sala de aula e acontecimentos decorrentes de exigências colocadas pela
concretização calendário de avaliações (internas e externas). Nas situações em que há
enunciados bem elaborados e com boa qualidade de áudio, sinalizei a necessidade de
transcrição para análise mais detalhada.
Para o presente texto, selecionei algumas análises efetuadas a partir da escuta e
categorização3 de um conjunto de aulas nas quais estavam propostos exibição e debate sobre
2 Termo utilizado por Rocha (2006), em sua tese de doutoramento, para designar a “trama de atos, atividades ou
experiências rotineiras” que se desenvolve no horário escolar. 3 Na medida em que fazia a primeira escuta, produzia sinopses escritas de cada aula. Nas sinopses, procurei
registrar o circuito didático de cada aula, ou seja, o tipo de atividade realizada, o tempo dispendido para cada
atividade, ocorrências especiais e, eventualmente, diálogos entre professora e os estudantes. Também nas
sinopses, sinalizei trechos com bom áudio para transcrição e fiz pequenos resumos dos conteúdos abordados e
conceitos trabalhados.
3
filme com temática histórica – o longa-metragem “Guerra de Canudos”, de Sérgio Rezende
(1997).
Em um bairro da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro está localizada a escola em
que foi realizado o estudo principal deste trabalho. O bairro possui 64.649 habitantes e faz
parte da 18ª Região Administrativa da cidade, que compreende Campo Grande, Cosmos,
Inhoaíba, Santíssimo e Senador Vasconcelos. Ao total, essa zona administrativa possui
542.068 habitantes segundo o Censo 2010. A escola está situada em uma localidade bastante
integrada ao bairro de Campo Grande, o mais populoso da cidade do Rio de Janeiro. No
entorno da escola, predominam domicílios modestos. A região possui poucos
estabelecimentos comerciais, geralmente destinados às necessidades locais como
minimercados, padarias, restaurantes e bares de pequeno porte. Próximo à escola, há cerca de
dez minutos caminhando, encontra-se uma estação de trens vindos da Central do Brasil, no
centro da cidade do Rio de Janeiro.
A escola oferece o segundo segmento do Ensino Fundamental e atende a 565
estudantes entre o 6º e o 9º anos do Ensino Fundamental. As salas de aula estão equipadas
com projetor multimídia, ar condicionado e quadro branco. São aproximadamente 40
estudantes ocupando cada sala de aula. O teto das salas é de material sintético, tipo pvc,
através do qual sons, vozes e ruídos passam facilmente. Há um sistema de som com
autofalantes, geralmente utilizado pela direção, coordenação e inspeção para diversos tipos de
recados – convocação de professores e estudantes para conversas na administração,
informações sobre merenda, chamadas disciplinares, objetos perdidos etc.
As turmas observadas possuíam carga horária de três horas/aula - de 50 minutos cada -
semanais de história. As turmas I e II pertenciam ao turno da manhã e a turma III, ao turno da
tarde, todas elas regidas pela professora Joana [nome fictício]. Essas turmas representam a
totalidade dos estudantes que frequentam o 9º ano do Ensino Fundamental matriculados na
escola investigada - 41 alunos na turma I, 43 na turma II e 42 na turma III, segundo a lista de
chamada da professora. Não registrei nenhuma disparidade de idade entre os estudantes de
todas as turmas observadas, que estão dentro do que se denomina “adequação idade/série”.
Em relação ao perfil dos estudantes participantes da pesquisa, trata-se de um público
com homogeneidade de idade (14 / 15 anos), em sua maioria autodeclarado como pardo ou
negro, filhos de trabalhadores do setor de serviços, indústria, construção civil ou trabalho
4
doméstico na casa de outras pessoas, com escolaridade concentrada no Ensino Médio. Esses
dados foram produzidos a partir da aplicação de um questionário aos estudantes, com
questões sobre perfil sócio-econômico4 e, mesmo não seguindo todos os critérios e
procedimentos de classificação econômica realizados por pesquisas estatísticas especializadas,
nos permitem inferir que estamos lidando com estudantes pertencentes às classes C e D.
A ampliação de argumentos na aula de história: a construção do conhecimento histórico
escolar com mediação de produtos audiovisuais
PROF: O que vocês podem chamar a atenção da parte que a gente viu do filme?
- Que eles eram muito burros.
PROF: O que?
- Que eles eram burros pra caramba.
PROF: Por que?
- Porque, ao invés de fazer a parada em frente a um rio, não, foram fazer no meio
da seca.
PROF: Mas olha só.... Você acha que rio é assim? Tipo, êêêê tem um rio aqui e...
- Eu tô brincando, professora.
PROF: Pois é. Porque é isso que falei. Onde tem um açude, onde tem qualquer tipo
de água potável, pode ter certeza que aquilo vai ficar na terra de um coronel e aí
ele não ia poder montar.... Aquela terra onde foi montada a comunidade, se não me
engano, era uma terra que estava meio abandonada, assim...
Trata-se de uma colocação feita por um estudante na aula de história, em meio às
discussões sobre a questão fundiária e os movimentos messiânicos no Brasil do início do
período republicano. A professora de história havia exibido o filme “Guerra de Canudos” na
aula anterior e procurava sensibilizar a turma para a situação do sertanejo no Brasil na virada
do século XIX para o XX. O conteúdo escolar em desenvolvimento era a formação do arraial
de Canudos e os motivos que levaram ao massacre da população. Os estudantes da turma II,
em questão, haviam assistido a uma aula expositiva sobre o tema. A seguir, assistiram aos
vinte minutos iniciais do filme mencionado na sala de aula, através de um projetor
multimídia. A professora, antes da exibição, perguntava: “mas a seca era só uma questão da
natureza? ” Insistia: “quais eram os principais problemas do sertão? ” E justificava que o
filme poderia “dar uma imagem daquilo que a gente falou”.
Na aula destinada ao debate sobre o filme, durante trinta minutos, professora e
estudantes travaram diálogos sobre o tema Canudos. Os comentários dos estudantes
envolviam, ao mesmo tempo, impressões sobre a aula, sobre o conteúdo curricular abordado e
4 Questões formuladas para apurar informações sobre os estudantes, tais como sexo, idade, pertencimento étnico
racial, religião, escolaridade e profissão da mãe e do pai.
5
sobre o filme: “o lugar ainda existe?”, “se existe, deve ser patrimônio histórico”, “mas a igreja
não era dona de quase tudo?”, “havia negros no sertão?”, “professora, isso aconteceu
mesmo?”, “o que aconteceu com a moça que fugiu?”, “o filme era preto e branco?”, “o filme
é muito laranja”. Em suas narrativas e respostas, a professora recorre a conceitos como
movimento messiânico e banditismo social, historiciza a distribuição de terras e de água, lê
um trecho do livro didático que trata das ruínas da igreja construída no arraial de Canudos, diz
que a Igreja Católica não era dona de tudo – que provavelmente eles estão fazendo referência
ao período da Idade Média, estudado anteriormente -, cita uma música do compositor
pernambucano Chico Science, situa o período da formação de Canudos enfatizando o fato de
que a escravidão havia sido recentemente abolida no Brasil, fala de racismo...
PROF: Eles tinham armas. Mas tinham muito menos do que o exército brasileiro.
- Aquelas espingardas com ponta, né professora? [aluno]
PROF: É. E aí, na quarta tentativa, milhares de soldados foram para cima. E depois
de uma batalha que durou muito tempo, finalmente... Na verdade, foi um massacre.
Foi um massacre. É triste, na verdade.
- Não aparece, no filme, esse massacre. [aluno]
PROF: Aparece, no final. Na verdade, assim, o filme mostra a condição do
sertanejo, aquela coisa pobre. Tu vê ali naquela família, por exemplo, eles ficam
numa situação... Eles estavam comendo pombo, sei lá que bicho era aquele. E o
pouco que eles tinham, que era aquela vaca, tiveram que vender. E, mesmo assim,
um cara, um representante da república chegou e tomou. Então, ele recebeu pela
vaca, adiantado, e nem tinha mais a vaca para poder... enfim, eles não tinham o que
fazer. Aí o Antônio Conselheiro, ele estava ficando conhecido, ele já tinha uma
fama. Há anos, há quase dez anos que ele já estava nessa pregação. Ele ia de
cidade em cidade, na verdade ele tinha vindo do Ceará. E aí ele começou a adquirir
uma fama de ser santo. Porque ele consertava cemitério, ele erguia igreja, ele
limpava cemitério.
- Todo mundo tinha medo de limpar cemitério?
PROF: Sei lá, porque era abandonado. Ele tinha as atividades religiosas. Ele
sempre tinha uma palavra para dar para a população mais pobre. E, como eu disse,
era uma religiosidade muito mais próxima da população. Não era aquela coisa, o
padre lá e o resto da hierarquia da igreja católica que mal tinha contato. Não! Ele
estava ali, pé no chão.
- Meio pobre. [aluna]
PROF: É. Ele não tinha ligação com os grandes proprietários de terra. Tipo, a
Igreja Católica, legitimava o poder dos coronéis, como a gente já conversou. A
gente viu isso no filme O Auto da Compadecida. O padre puxando o saco do
coronel, o bispo puxando o saco do coronel.
- Mas a Igreja Católica não era dona de quase tudo? [aluna]
PROF: Não, gente. Isso é...
- Isso é na Europa, né? [aluno]
PROF: Isso aí é quando a gente estudou feudalismo, Idade Média. Não que a Igreja
Católica não tivesse poder aqui no Brasil, tinha também, mas não como a gente
imagina a Igreja Católica na época da Idade Média. Uma coisa que eu acho que
vale a pena a gente conversar, é que tem uma cena que ele chega lá na cidade e tem
uma velhinha falando que não ia pagar imposto, que não sei o quê. Porque ele tinha
o discurso político antirrepublicano que era...
- O povo para e aplaude, êêê!! [aluno]
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PROF: Que para ele o motivo de todos os males, de todas as pessoas, era a
república, tá? Claro, gente, que não era bem assim. Aquela situação de injustiça
social já existia antes da república, tá?
- E sempre vai existir. [aluno]
PROF: Mas, por exemplo, ele chegou lá, uma hora, e falou assim: veja essa
senhora. Ela não tem que pagar imposto mesmo não, porque o imposto não volta
para gente. Vai pagar imposto para que? E aí ele fala: veja essa senhora, ela é
branca, religiosa. Por que ele fala isso? Que ela é branca?
- Porque ela não é negra. Porque ela não é escrava. [aluna]
PROF: Por que ele tem preconceito racial? Por quê? Vamos ver. A gente está em
1893. A escravidão tinha acabado há cinco anos.
- Mas ainda tinha muito escravo. [aluno]
PROF: Então, naquela época, liberdade, ser livre era uma característica de branco.
Porque os negros eram escravos. Então, não é que ele está dizendo que só merece
ser livre quem é branco.
- Não vi nenhum neguinho. [aluna]
PROF: Depois aparece. Um dos mais aguerridos.
- Eu tava olhando assim, eu falei: não tem nenhum negro. [aluno]
PROF: Mas depois aparece. Mas isso, Jeremias, isso que você perguntou, foi uma
coisa que eu mesma fiquei me perguntando: não tinha negro no sertão da Bahia
não?
- Na Bahia, é onde tem mais preto. [aluno]
- É negro! É raça. É afro americano. [aluno]
PROF: Gente, eu não tenho problema de falar preto. Eu particularmente não tenho.
Não se fala branco? Por que não falar preto? É porque a gente tem mania de achar
que preto é necessariamente uma coisa ruim. Para mim, não é. Então, tipo assim, eu
falo preto. E daí? É legal.
- É racismo! [aluno]
PROF: Eu não acho que é racismo.
- Eu também não acho, professora. [aluna]
PROF: Porque é racismo se você está querendo usar isso como uma coisa
pejorativa. Agora, se eu falar fulano de tal é preto. Ok, eu não falo que eu sou
branca? Por que não posso falar que ele é preto? Eu estou falando que é ruim ser
preto? Não, acho ótimo, acho lindo, maravilhoso.
- Elas estavam brincando aqui: por que a Júlia não pode ser amarela? Eu chamei
ela de Simpson. Ela é Lisa Simpson, parece muito. [aluno]. O espectro de questões se amplia e ultrapassa o debate inicial sobre o
antirrepublicanismo do movimento de Canudos. A professora propõe a análise da cena em
que uma personagem idosa e branca se recusa a pagar impostos e um aluno comenta que
percebeu a ausência de personagens negros no filme. Começa a organizar argumentos em
torno do contexto pós-abolição no Brasil e é interpelada por outros comentários de estudantes
sobre o problema do racismo e das terminologias utilizadas para designar pessoas negras no
Brasil. Outro estudante diz que o estado da Bahia possui grande contingente de população
negra, ensaiando um estranhamento pela ausência de personagens negros no filme. Ao final
do trecho, outro aluno brinca com uma colega, associando-a a uma personagem de um
desenho animado.
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Vejamos um trecho do desenvolvimento da mesma atividade na turma I. A professora
começa justificando a ideia da aula: por se tratar de um filme muito longo, com três horas de
duração, ela pretende “falar um pouco, passar umas cenas do filme”. Situa o debate no
programa curricular, lembrando a todos que estão “entrando nessa unidade de movimentos
sociais na república” e que trabalharão revoltas urbanas e rurais no período da República
Velha. Joana faz uma narrativa sobre a pregação de Antônio Conselheiro no Nordeste,
introduz o tema dos movimentos messiânicos, comenta o antirrepublicanismo e o
anticatolicismo do movimento de Canudos e o desafio que a comunidade representava ao
coronelismo e à concentração de terras. A professora finalizou sua narrativa sobre Canudos
com dados "objetivos": "Então, Belo Monte começou a crescer, crescer, crescer, em pouco
tempo mais de 20 mil pessoas, alguns historiadores falam que Canudos chegou a ter 30 mil
moradores, que é muita gente, se for pensar na quantidade de pessoas que viviam naquele
tempo" e isso parece ter levado um dos alunos a se dar conta de que o que o filme tratava de
acontecimentos históricos.
- É história real? [aluno]
PROF: Como assim? História real?
- Aconteceu mesmo? [aluno]
PROF: Claro, meu anjo!
- História, maluco! [colega fala]
PROF: É um fato histórico, fato histórico. É história, não é uma historinha
inventada. É uma história real, que aconteceu. Mas, realmente, parece uma coisa
tão inacreditável que nem parece história de verdade. Finalizada essa introdução, a professora exibe vinte minutos iniciais do filme. Propõe
análises de trechos do filme, estabelecendo relações entre essa narrativa audiovisual e o
programa curricular e ensaiando algumas análises de cenas do filme:
PROF: Olha só, por esse pedacinho deu para a gente ver algumas partes
interessantes, que tem a ver com a história que a gente falou nas últimas aulas. A
situação do sertanejo, não só em relação à seca, mas principalmente em relação à
falta de oportunidades no meio rural. Não sei se vocês perceberam, mas aquela
figura que compra as vaquinhas, ele seria um coronel. Então assim, a família que
aparece ali ainda tinha lá a sua terrinha, só que a seca fez com que eles não
conseguissem produzir nada. Agora, a gente precisa ter a ideia também que a seca é
uma coisa relativa. Aparece um cara lá falando "ah, mas a seca é uma coisa
natural", parece que contra a seca ninguém pode lutar. Então veio a seca, então
ninguém pode fazer nada contra isso, como se fosse só um problema da natureza. Só
que a seca não atinge os grandes proprietários da mesma maneira como atinge os
pequenos proprietários. Porque mesmo nos lugares onde existe a seca, existem
formas de você lidar com a seca, tá? Tem lá os açudes nas regiões mais secas do
sertão do nordeste. Com certeza, são lugares onde tem lá um reservatório de água.
Certamente, esses lugares ficam dentro da propriedade de quem?
- Dos coronéis [aluno]
PROF: Do pequeno proprietário é que não é. Então, a situação é de exploração, é
de seca, mas sem muita vontade pública de resolver a questão da seca, de melhor
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distribuir a água. Não estou dizendo que a seca não existe, como uma invenção,
mas existe muito mais uma má distribuição da água, tá? Então deu para a gente ver
mais ou menos como era a vida do sertanejo pobre, o cara ficou sem nada. Enfim,
deu para a gente ver também a própria figura do Antônio Conselheiro, que a gente
fica falando. Tudo bem que é um filme, o cara que fez o filme faz a figura de acordo
com o que vem na cabeça dele, né? Outras pessoas fariam diferente. Mas é mais ou
menos isso. Era um cara que andava de camisolão, com uma barba grande,
pregando a palavra de deus, mas sem ter um vínculo com a igreja católica, mas que
ele falava principalmente contrário à república. Então o discurso dele era contrário
à proclamação da república. Aí tem uma parte que é bom a gente chamar a
atenção: tem uma velhinha que fala que não é bom pagar imposto, porque a gente
não recebe nada em troca. Então ele fala: veja essa senhora, ela é branca, ela
trabalha"'. Por que ele fala isso? Que a senhora é branca? Porque a escravidão
tinha acabado de acabar, né? Então, assim, o ser livre para ele ainda era uma coisa
de branco, os negros eram associados à escravidão. Então, assim, não foi
exatamente um pensamento preconceituoso dele, foi um pensamento que tem a ver
com a época que ele está vivendo. Ela é uma pessoa, ela é livre e ela é branca, ou
seja, ela não é escrava e ela está sendo tratada como uma escrava.
- Durou quanto tempo, professora? Durou quantos anos?
PROF: Então, foi fundado em 93. Não tem aquela parte que ele fala, e claro que
tem as coisas que a gente não tem certeza se realmente ele disse isso, ele faz tipo
uma profecia. Ele era considerado um profeta. Ele faz uma profecia, não sei se
vocês repararam, que virão quatro fogos contra ele. "Os três primeiros serão meus.
O quarto fogo, só deus sabe qual será". É uma alusão a que? Às guerras que vão
ser implementadas contra Canudos. Então os três primeiros, eles realmente
ganham. O quarto foi quando Canudos foi arrasado em 1897. Mas aí, na aula que
vem, amanhã...
- Ah, então durou pouco, Canudos... 93 a 97... (aluno)
- Qual é o nome desse cara aí? (aluna)
PROF: Antônio Conselheiro?
- Não, o nome dele na história. (aluna)
PROF: Antônio Conselheiro ou nome do ator?
- É, desse homem. (aluna)
PROF: O nome do ator? José Wilker
- Professora, a derrota foi quando? (aluno)
PROF: 1897. Quatro anos depois. Gente, alguém tira os fios aí para mim".
A professora ensaia o mesmo direcionamento dado à turma II, procurando analisar a
personagem idosa e branca que se recusava a pagar imposto e a cena da família que perde o
gado. As questões dos estudantes foram em outra direção. Os alunos pareciam intrigados com
a veracidade ou não da história narrada no filme. A professora, inicialmente, exibiu o filme
com intenção de promover uma visualização da situação do sertanejo no período estudado.
Em certo ponto do debate, foi necessário deixar claro que “é um filme, o cara que fez o filme
faz a figura de acordo com o que vem na cabeça dele, outras pessoas fariam diferente”. Mas,
na sequência, confirma a aproximação entre a construção estética do Antônio Conselheiro no
filme e a verdade histórica, dizendo: “mas é mais ou menos isso, era um cara que andava de
camisolão, com uma barba grande, pregando a palavra de deus, mas sem ter um vínculo com a
igreja católica, mas que ele falava principalmente contrário à república”. Uma aluna ainda
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parece confusa ao perguntar o nome “desse cara”, se referindo ao ator que representa Antônio
Conselheiro.
É interessante também ressaltar que o filme em questão tem duração de três horas e
uma grande parte destinada às batalhas travadas entre os exércitos baiano e federal e os
habitantes do Arraial de Canudos. Os estudantes verbalizam algumas dúvidas em relação ao
filme, mas a professora realiza análises em diálogo com conceitos históricos e com a narrativa
do livro didático sobre o tema5.
Na turma III, as dinâmicas em torno do filme tomaram uma direção muito diferente
dos dois últimos casos. A turma assistiu a trinta e seis minutos do mesmo filme, os estudantes
copiaram textos sobre a formação do arraial de Canudos e sobre a Guerra do Contestado.
Depois da exibição do trecho escolhido, uma única pergunta foi dirigida à professora:
“Professora, Canudos era um povo ou uma terra? ”. A atividade transcorria em meio à semana
de provas bimestrais. Joana pergunta à turma: “O que Canudos e Contestado têm em comum?
” Segue-se um silêncio, uma aluna diz que as provas estão confundindo a sua cabeça e que
não consegue pensar. A professora responde que compreende, mas que vai iniciar uma revisão
e depois vai escrever uma matéria no quadro e eles poderão ficar mais tranquilos depois disso.
Joana retoma a discussão sobre organização e propriedade de terra. Depois de nove minutos
explicando, dirige uma pergunta à turma:
" PROF: Alguém já ouviu falar do cangaço? Alguém já ouviu falar de
cangaceiros?"
- Eu já! Na novela... [aluna]
- Eu já, eu já [aluno]
PROF: Teve uma novela né? Então, assim, hoje a gente vai começar. Como vocês
estão aí todos [ansiosos por causa da prova]... E eu também quero acabar de
corrigir a prova, eu vou escrever o texto no quadro e depois a gente vai conversar
com mais calma. Mas, dando o pontapé inicial, quando a gente fala de cangaço, de
cangaceiro, o que vem na mente de vocês? Daniela, que viu a novela, por exemplo?
- Aquele cara que usa roupa de couro. Roupa feia! [aluna]
PROF: Oi?
- Roupa feia! [aluna]
PROF: Gente, não dá para a gente pensar com o nosso gosto, com a nossa
referência do que é bonito, uma roupa que se usava há cem anos, em um lugar
diferente. Mas o que vem na cabeça, além dessa roupa feia que a Daniela falou?
- Gostava de matar pessoas. [aluna]
- Disputa dos cangaceiros com os coronéis. [aluno]
- Faziam justiça com as próprias mãos. [aluno]
PROF: Mais o quê?
- Não gostava de polícia [aluno]
5 No capítulo do livro didático destinado ao tema Canudos, são explicitados os conceitos de messianismo,
cangaço e banditismo.
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PROF: Bom, na verdade tudo isso que vocês falaram, tirando a roupa feia que é
uma questão de gosto, tudo que vocês falaram tem alguma coisa a ver. Pelo menos
tem a ver com o imaginário existente em relação ao cangaço. O cangaço foi um
fenômeno típico da região nordestina no Brasil, tá? Alguns estudiosos atrelam o
cangaço ao movimento que chamam de banditismo social. Esse nome diz alguma
coisa para vocês? Banditismo social? O que esse nome tem? O nome diz alguma
coisa para vocês?
- Bandido que defende a sociedade, professora? [aluno]
- Bandidos com classe [aluno]
- Bandidos tipo milicianos [aluno]
PROF: Tipo milicianos? Eu acho que parece mais com traficante do que com
miliciano. Mas tudo bem, pode ser. Não, acho que não. Acho que miliciano não
entra nesse negócio não.
- Bandido que defende a sociedade, professora. [aluno]
PROF: Isso é uma coisa complicada mesmo para o nosso pensamento alcançar.
Mas a gente pode, a partir de hoje, começar a pensar sobre isso. O fenômeno,
digamos assim, do banditismo social foi analisado por alguns estudiosos e não é
restrito ao cangaço. Seria um fenômeno possível de observação em vários países e
que, assim, resumindo bastante, é um tipo de crime, de formação de criminalidade.
Realmente, são pessoas fora da lei, pessoas que estão à margem da lei. Mas que a
marginalidade dessas pessoas, o fato dessas pessoas estarem fora da lei seria
causada por uma questão social. No nosso caso, no caso do cangaço, o fato das
condições adversas no nordeste no período, tudo isso que a gente já falou, má
distribuição de terra, pobreza, miséria, as pessoas passando fome, a opressão dos
coronéis. Tudo isso é problema social, certo? É um problema social, um problema
que se abate na sociedade e prejudica a vida dos indivíduos. Então o banditismo
social teria como base, como causa essas questões sociais, tá? Lembra quando a
gente viu aquele filme O Auto da Compadecida?
- Hã? [aluna]
- Posso ir ao banheiro? [aluno]
PROF: Pode. Ih, gente, hoje vocês estão meio mais ou menos, não?
- Posso beber água? [aluna]
PROF: Espera ele voltar? Hein, galera? Lembra daquele filme, O Auto da
Compadecida, que tinha um cangaceiro? Lembra?
- Loucão aquele filme. [aluna]
PROF: Lembra do filme loucão? Que o cangaceiro era mau, matava todo mundo,
ele chegava na cidade para roubar, para saquear e matava todo mundo
indiscriminadamente. Porque existe também uma romantização da figura do
cangaceiro. Por exemplo, os cangaceiros da novela eram romantizados. O
personagem principal da novela era um cangaceiro. Só que aquele cangaceiro da
novela era gente boa pra caramba. Ele não matava ninguém, ele tinha uma coisa de
tirar dos ricos para dar para os pobres. Então assim, existe uma romantização do
cangaço, como se o cangaço fosse apenas isso. Oh, são pessoas que buscavam
justiça social e saíam por aí roubando dos ricos para dar aos pobres e os pobres
nunca eram vítimas desses cangaceiros. Não é bem assim. [o ruído de conversas
paralelas aumenta significativamente]. Gente!!! [irritada] Ih...” A professora interrompe a explicação, irritada com a dispersão da turma. No dia
seguinte, retoma o assunto:
PROF: O que era o cangaço? Quem eram os cangaceiros? Vamos gente! Ontem
vocês falaram algumas coisas, da novela... Eram grupos armados...
- Que viviam fantasiados. Que viviam para matar. Não tinham pena. [aluna]
PROF: É um fenômeno típico do nordeste. Era formado por homens e mulheres. Os
homens eram maioria, mas também tinham mulheres. Que tinham como prática o
saque, o roubo. Eles viviam à margem da sociedade. Eram bandos reconhecidos
como criminosos. Agora, existe... Gente!! Gabriel! Raquel! Já está o maior barulho
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lá fora, é difícil chegar a essa hora e ter que ficar falando tão alto! Então, existem
várias imagens relacionadas aos cangaceiros. Tem aquelas imagens de que eles
eram simplesmente bandidos, pessoas ruins, pessoas do mal, que queriam sair por
aí matando porque nasceram para fazer isso, né? E tem aquelas pessoas que
também romantizam os cangaceiros como, por exemplo, na novela que a Daniela
lembrou. Como era o nome da novela?
- Cordel Encantado. [aluna]
PROF: Cordel Encantado. Os cangaceiros da novela eram tratados como heróis,
eles roubavam dos ricos para dar para os pobres.
- Eu já vi um desenho do pica-pau que era assim. É sério!
PROF: Mas era a história do Robin Hood, né? Na verdade, existe essa associação.
Alguns estudiosos, algumas pessoas que refletiram sobre o assunto, escreveram e
pensaram sobre o cangaço, pensaram o cangaço dessa forma. Como sendo
justiceiros, que roubavam dos ricos e não mexiam com os pobres. Mas, na verdade,
o cangaço é um fenômeno muito mais complexo, muito mais complicado do que
isso. Nem era apenas um grupo de gente má, que só faz o crime porque gosta. E
também não eram heróis que pensam em justiça social e que simplesmente querem
repartir as riquezas, tá? Na verdade, vários estudiosos do cangaço atrelam a
questão do cangaço a uma coisa chamada banditismo social, um fenômeno
chamado banditismo social. O que seria o banditismo social? Seria aquela
criminalidade, aquelas pessoas fora-da-lei, aquele tipo de crimininalidade que tem
como fundo um problema social. A pessoa fica à margem da lei e comete crimes por
uma questão social. Ou seja, essas pessoas ou esses grupos seriam frutos de
problemas sociais. Eu tentei conversar com vocês sobre isso ontem... Lembra,
Maria Eduarda, Raquel, que vocês falaram ‘filme estranho’, O Auto da
Compadecida. No final desse filme, não sei se vocês lembram dessa parte, vai ter
um julgamento. Os cangaceiros invadem a cidade. O filme mostra a figura do
cangaceiro não fazendo distinção entre pobre e rico, tanto que eles matam tanto o
padre, o bispo, o padeiro e a mulher do padeiro, que eram de classe social boa, mas
também matam o João Grilo que era aquele mais pobre e mais ferrado.
Nos fragmentos transcritos acima, os conceitos de banditismo social e cangaço são
trabalhados a partir de diversas referências audiovisuais. A professora articula dois filmes,
uma novela e comentários sobre estudos acadêmicos sobre o conceito de banditismo social. É
especialmente desafiador para ela, nesse episódio, lidar com a construção da empatia histórica
– compreender o outro, a partir da visão do outro, em seu contexto histórico. “Roupa feia! ”,
“que viviam fantasiados. Que viviam para matar. Não tinham pena”, “gostava de matar
pessoas” foram algumas colocações dos estudantes a respeito dos cangaceiros. A professora
fez um investimento de analisar as diferentes referências e relativizar as interpretações,
procurando historicizar a construção do imaginário sobre o cangaço, através das “várias
imagens relacionadas aos cangaceiros”. Utilizou o conceito de banditismo social e recorreu ao
exemplo dos narcotraficantes no contexto atual.
Foram duas semanas destinadas ao desenvolvimento do tema Canudos para as três
turmas observadas, em seis horas/aula para cada turma. A professora planejou aulas
expositivas, exibição de trecho de filme, debate sobre o filme, exercícios escritos e cópia de
textos escritos no quadro branco. As turmas assistiram a trechos iniciais do filme, com
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durações diferentes, a depender da turma, do tempo de aula disponível, do tempo destinado à
instalação do equipamento, do tempo da introdução da aula – explicações, justificativas e
negociações, das interferências externas e da agitação da turma. As justificativas para a
exibição do filme giraram em torno da necessidade de visualizar aquilo que já tinha sido
falado na sala de aula.
Na turma II, com a qual a professora afirma ter grande afinidade, os estudantes
respondem aos seus argumentos com comentários e perguntas em grande quantidade e
qualidade. Já a turma III, a interação em torno dos conceitos históricos foi muito pequena no
período em que estive realizando as observações. A exceção foi o momento posterior à
exibição do filme “Guerra de Canudos”, em que os estudantes passaram a ter mais recursos
para mobilizar seu imaginário histórico e deliberar alguma atenção à aula de história,
aumentando significativamente o tempo de aula expositiva e a interação com os conceitos
históricos.
Os registros das observações de aulas indicam que Joana apresenta um conjunto mais
ou menos planificado de apostas didáticas. Sua metodologia de ensino está bastante pautada
na discussão de conceitos-chave que possibilita o debate de situações históricas. Nas aulas em
torno do tema dos movimentos rurais no início da república no Brasil, um recurso audiovisual
foi proposto. A professora verbaliza seu objetivo de promover uma “visualização da vida do
sertanejo”, sem oferecer qualquer informação sobre a ficha técnica do filme ou do contexto de
sua realização. É articulado um conjunto de conceitos históricos, no entanto, sua fala foi mais
interpelada por questionamentos dos estudantes em relação à veracidade da narrativa. De fato,
a professora argumentava recorrendo a elementos da aula expositiva anterior – “verdade” – e
a análises de cenas do filme – “ficção”. A construção narrativa mediada pelo programa
curricular e a narrativa fílmica se mesclaram no debate sobre o filme e os estudantes
apresentaram algumas inquietações sobre as fronteiras entre a ficção e a realidade. O filme,
nas aulas observadas, até então não havia sido configurado como fonte nem evidência para a
história. Diante das dúvidas verbalizadas pelos alunos, a professora menciona que se trata da
visão de um diretor e, em seguida, confirma que a construção desse diretor se aproxima
“daquilo que ocorreu”.
A partir desse circuito de argumentos, a noção de verdade histórica foi trabalhada por
outro caminho, para além da oposição entre verdadeiro e falso. O tratamento dado ao
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problema, com citações aos narcotraficantes, aos filmes e à novela se aproxima mais do
movimento direcionado de confronto de evidências da história, quando há uma preocupação
deliberada em contextualizar fontes, situações e interpretações sobre a história. Pode-se
afirmar que os recursos audiovisuais, nesse caso, estimularam estudantes a colocarem
questões para a história, oferecendo um meio para que verbalizassem suas ideias prévias
frente às perguntas da professora. Assim, a dimensão estética da cultura histórica se
apresentou como fundamental para a configuração da atividade de ensino na direção da crítica
da narrativa unidirecional sobre o passado.
É possível afirmar que questões de empatia histórica e relações estéticas com o
passado estiveram associadas nesse processo, na medida em que, a mobilização de
argumentos morais como “não tinham pena”, “gostavam de matar pessoas” serviram de base
para a intervenção da professora no sentido da compreensão do outro em seu contexto
histórico, mediada pela história como conhecimento sistematizado e com maior amplitude
crítica. Esse movimento resultou em um rompimento com práticas, relativamente comuns nas
aulas observadas, de abordagem da história sem ambiguidade.
Fronza (2012) estudou a relação entre o poder narrativo das histórias em quadrinhos e
as ideias de intersubjetividade e verdade histórica de estudantes do ensino médio e observou
que jovens mobilizaram valores estéticos da cultura histórica quando não estavam seguros de
seu próprio conhecimento, tendendo a reproduzir o discurso do professor ou a mobilizar
memória de contato com produtos da cultura histórica.
Na visão dos estudantes que participaram desta pesquisa, as narrativas da professora e
do livro didático são as mais confiáveis, no entanto, elementos de suas experiências
audiovisuais aparecem em suas falas quando são questionados a respeito de determinados
conceitos. A professora iniciou a atividade de ensino com objetivos mais modestos do que, ao
final, a aula se transformou. Os estudantes propuseram rotas de desvio da aposta inicial da
professora. Atitudes como ironia, moralização, indignação, valorização constituíram reações
da professora frente aos comentários dos alunos, todas relacionadas ao contexto de
enunciação. A primeira reação da professora foi moralizante – “não dá para a gente pensar
com o nosso gosto, com a nossa referência do que é bonito, uma roupa que se usava há cem
anos, em um lugar diferente”. Depois, os argumentos foram se diversificando e, para tal tipo
de intervenção, provavelmente a formação qualificada da professora contribuiu não em
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termos de história substantiva - apesar da sua importância para qualificar competência - mas
sobretudo em termos conceituais.
A experiência prévia dos estudantes na disciplina história, algumas vezes, os levou a
algumas tentativas de associação de conteúdos passados frente ao novo, nem sempre
coerentes, mas que chama a atenção para uma operação reflexiva atravessada tanto por
mecanismos cognitivos quanto pela lógica curricular. É possível que Joana tenha interpretado
algumas colocações dos estudantes como tentativas de construir “espaços de burla”, sem
intenção de construção de conhecimento. Estudantes também têm experiência prévia em se
opor à autoridade do professor, com olhares evasivos, posturas corporais que denotam
indiferença, “zoação”, risos... Atitudes que podem ser consideradas como indicadores de uma
cultura contra-escolar6.
Considerações finais
Nas sociedades complexas, os meios de comunicação não são apenas tecnologias que
as instituições ou indivíduos adotam ou não. Segundo Hjarvard (2012), a mídia exerce tão
significativa influência que ela se tornou parte da lógica de outras instituições, apesar de já ter
atingido algum grau de independência e autodeterminação. Outras instituições, como família e
escola, primordiais na socialização das novas gerações, estão atravessadas, em maior ou
menor grau, pela lógica7 da mídia. O argumento de Hjarvard é que “a mídia é, ao mesmo
tempo, parte do tecido da sociedade e da cultura e uma instituição independente que se
interpõe entre outras instituições culturais e sociais e coordena sua interação mútua” (2012,
p.55). A partir dessa perspectiva, é possível vislumbrar o importante papel que os meios de
comunicação exercem na produção e na difusão do conhecimento e interpretações históricas.
Weingart, citado por Hjarvard, vê os meios de comunicação como espaço para a discussão
6 Ver clássico estudo WILLIS, P. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto
Alegre, Artes Médicas, 1991. Para Willis, a cultura contra-escolar – exemplificada por diversas estratégias de
oposição à autoridade na escola – é apresentada pelos meios de comunicação e pelos agentes educacionais como
indisciplina, violência, desinteresse. O estudo apontou para a experiência cotidiana dos estudantes – “o chão da
fábrica” – como espaço de configuração de vários tipos de resistência à lógica escolar. 7 Hjarvard lembra que midiatização não é um conceito a ser aplicado de maneira universal, não deve ser
normativo e não deve ser visto como um problema, a priori. “O termo lógica da mídia refere-se ao modus
operandi institucional, estético e tecnológico dos meios, incluindo as maneiras pelas quais eles distribuem
recursos materiais e simbólicos e funcionam com a ajuda de regras formais e informais” (2012, pp.64-65).
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pública e legitimação da ciência, influenciando em grande medida a formação da opinião
pública, da consciência e da percepção. (Weingart, 1998 apud HJARVARD, 2012).
Segundo Hjarvard, “os modos nos quais os meios de comunicação intervêm na
interação social dependem das características concretas do meio em questão, ou seja, tanto das
características materiais e técnicas quanto das qualidades sociais e estéticas” (idem, p.75). No
caso do filme “Guerra de Canudos”, a alta qualidade da fotografia e o caráter de grande
produção - foi o filme com maior orçamento até então na história do cinema no Brasil -,
podem ter configurado grande influência sobre as percepções e interpretações dos estudantes
em relação ao fenômeno estudado8.
Se admitirmos que a midiatização é um processo em que os meios alteram a "textura
da experiência" (Silverstone, 2002) e as relações e comportamentos humanos, então é preciso
compreender e admitir a presença desse processo na produção do conhecimento escolar, nesse
caso específico, do conhecimento histórico escolar. Nas aulas observadas, a professora partiu
de uma série de ideias pré-concebidas sobre as temáticas abordadas, muitas delas vindas de
conteúdos veiculados nos meios de comunicação e do contato com produtos culturais.
Quando os estudantes não verbalizavam suas ideias prévias, isto é, não correspondiam à
expectativa de Joana de iniciar a aula dialogando com suas perspectivas, a professora, muitas
vezes, construía um cenário inicial articulando informações vindas das mídias, principalmente
do jornalismo e do cinema.
Mesmo considerando que a palavra escrita é predominante e pauta a experiência
escolar, e que esta é fundamental para os estudantes adquirirem autonomia para ler,
interpretar, analisar, localizar, relacionar etc., é importante admitir que há outros elementos e
8 Para uma análise historiográfica do filme “Guerra de Canudos” (Sérgio Rezende, 1997), ver artigo “Imagens de
Canudos”, de Jacqueline Hermann. A autora situa a produção no contexto do centenário da destruição do Arraial
de Canudos e explicita duas principais correntes que procuraram “explicar” Canudos: a “euclidiana”, com base
no livro Os Sertões, que evidenciou de forma monumental a vida no sertão brasileiro; e a “progressista”, que
entendeu a formação e a resistência do Arraial como “baluarte da luta pela terra e conferiu aos sertanejos do
Conselheiro uma consciência razoável do sentido e da grandeza de seus projetos” (p.241). Segundo Hermann, o
poder interpretativo resultante do cruzamento dessas duas visões foi muito tímido no filme, que claramente
optou pela versão euclidiana. A autora aponta a riqueza da intervenção ficcional realizada pelo autor (o
“personagem de cinco cabeças”, representado pela família composta por pai, mãe e três filhos) e a esmerada
produção, mas faz ressalvas quanto à representação construída sobre o beato Antônio Conselheiro. O filme, ao
reforçar aspectos míticos e conferir certo isolacionismo à atuação do Conselheiro, pode contribuir para a
construção de uma visão um tanto estereotipada dos acontecimentos, deixando francamente de lado visões mais
progressistas sobre a atuação desses sertanejos. HERMANN, J. Imagens de Canudos. In: SOARES, M.C.,
FERREIRA, J. (org.) A História vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de
Janeiro, Record, 2001.
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linguagens imprescindíveis para a aquisição de conhecimentos formais. A aula de história
acontece a partir de um conjunto de práticas orais, de leitura, de escrita, de posicionamento
corporal, de controle ou uso das emoções e da atenção. O domínio sobre o modus operandi
das mídias, do cinema e da tevê, a capacidade de pesquisar com eficiência na internet são
tarefas igualmente importantes para a construção significativa de conhecimento histórico
escolar. Na escola observada, apostas e estranhamentos em torno das mídias se verificam. O
investimento deliberado em diferentes linguagens, com atenção aos seus mecanismos próprios
de produção de mensagens, pode resultar em maiores possibilidades de aprendizagem
histórica significativa. Mas até que ponto a lógica da escola viabiliza trabalhos desse tipo?
Que espaços para a construção de conceitos que auxiliem a compreensão da história existem
hoje na instituição escolar? Se a construção do conhecimento histórico na escola está
atravessada pela lógica da mídia, em quais pontos a lógica da escola está desafiada? Essas são
algumas questões que merecem destaque para a compreensão dos atravessamentos simbólicos
entre mídia, conhecimento histórico e cultura escolar, essenciais para a promoção de projetos
formativos de mídia-educação
Referências Bibliográficas
FRONZA, M. A intersubjetividade e a verdade na aprendizagem histórica de jovens
estudantes a partir das histórias em quadrinhos. Tese de Doutorado, Curitiba, UFPR, 2012
HAYLES, K. N. Hyper and Deep Attention: The Generational Divide in Cognitive Mode.
Profession, 2007, pp. 187–199 (13).
HERMANN, J. Imagens de Canudos. In: SOARES, M.C., FERREIRA, J. (org.) A História
vai ao Cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de Janeiro, Record,
2001.
HJARVARD, S. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural.
Matrizes, v.5, n.2, 2012.
ROCHA, H. A. B. O lugar da linguagem no ensino de História: entre a oralidade e a
escrita. Niterói: PPGFE-UFF, 2006 (Tese de Doutorado em Educação).
SÁ, P.T. Conhecimento histórico e mídia em uma escola da Rede Municipal de Ensino
do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Departamento de Educação, PUC-Rio, 2016 (Tese de
Doutorado em Educação).