8/19/2019 Identidade e Múltiplo Pertencimento
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IDENTIDADE E MÚLTIPLO
PERTENCIMENTO NAS
PRÁTICAS ASSOCIATIVAS
LOCAIS
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1 AUTHOR:
Joanildo BurityFundação Joaquim Nabuco
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IDENTID DE E MÚLTIPLO PERTENCIMENTO N S
PRÁTICAS ASSOCIATIVAS LOCAIS
foanildo A. Burity
Surge um a preocupação com a importância de um a cultura cívica
para aferição da qualidade da dem ocracia. Tem-se falado muito ult imam ente
das vir tudes da participação em termos de geração e acúm ulo de capital
social fundamental para conter os efeitos da individualização, da
fragmentação e do isolamento do estado em relação à sociedade. Ganho s
em capital social se tomam um indicador de modernização ou de
com plexidade d a es trutura so cial (cf . Putnam , 1993; 1995; G reeley,
1997a; 1997b; Colem an, 1990). Um e leme nto com plem entar impo rtante
nesta discu ssão política foi, ao longo dos a nos 1990, o cresc ente interesse
dos cientistas p olí ticos pelo tem a da cultura polí t ica/cultura cívica (cf .
Moisés, 1995; Avritzer, 1995; Krischke, 1995; Diamond, 1999;
Huntington, 1994; Laitin, 1995; Burity, 1998; 1999b . Com isto se
pretendia argum entar contra a excessiva ênfase n o aspecto procedimental
e, portanto, no autom atismo d as instituições po líticas, para asseg urar boa
govem ança dem ocrática. Sem um certo grau de intem alização de valores
dem ocráticos fica difícil, nesta leitura, confiar às instituições a garantia de
um fun cionamen to da democracia que afas te o per igo do burocrat ism o,
do despotismo esclarecido (tecnocratismo ) e da corrupção política. Em
qu e cond ições, entre tanto, ta is expecta t ivas brotaram e a té que po nto
podem ser atendidas? Mais importante, se o contexto das novas
Pesquisador da Fundação Joaquim r abuco
Cadíst.Soc.Reeife, v.17, tU, p.189-228. fui/dez., 2001
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Ident idade e m últ ip lo pertenci inenta nas prát icas asso ciat ivas locais
dem ocracias é ode seculares práticas de autoritarism o, tradição asso ciativa
marcada pela repressão ou pelo clientelismo e instituições políticas
impo tentes para assegurar sua jur isdição no espaço socia l (o que impl ica
que não apenas o estado não chega em vários espaços f ís icos e socia is ,
com o não consegue - ou m esmo não quer— assegurar o universalism o de
regras e procedime ntos para todos os seus m em bros), qual será a agência
desta geração de ca pi ta l socia l e de mu dança na cu l tura polí tica? Como
caracterizar tal agência sociologicam ente?
Do ponto de vista m ais estrutural poder-se-ia dizer que o co ntexto
no qual emerge hoje a percepção ou a dem anda por um a cul tura c ívica já
é m arcado p or um a si tuação de plural ismo social , cultural e polí tico, m as
t am bém pe la exper iênc ia de c r i se do es tado ' e toda a redef in ição do s
padrões de relação entre estado e sociedade que o discurso liberal
hegemônico sobre e la t em gerado. Também há um re tom o ao loca l, uma
tenta t iva de repensar o p adrão d as polí t icas públicas, m uito a par t i r de
experiências localizadas, fragmentadas em alguns casos. A ênfase sobre o
aspecto local é m uito forte.
Am bos os processos são amp lamente favorecidos por e , ao mesmo
temp o, indutores de toda um a mu tação cul tura l em c urso na sociedade,
que diz respei to à prevalência de v alores l ibera is , do p onto de v is ta da
cultura política da inserção das pessoas no mercado e das próprias
relações interpessoais no cot idiano. Aqu i preva lece um ima ginário de
com pet ição , concorrência , vantagem , pr inc ipa lm ente a d o m ais fo r te ,
pensado agora co m o m ais compe tente , ma is ef ic iente , e tc . Num cer to
sent ido, ta l prevalência depõe c ontra a em ergência da cul tura cívica, ou
pelo m enos cr ia um a sér ie de problemas , porque a idéia de cul tura c ívica
está classicamente associada a modalidades de colaboração de
solidariedade, de respo nsabilidad e pela coisa pública, de obrigação soc ial.
No novo contexto em que se tenta desenvolver uma cultura cívica
dem ocrática prevalece, hoje, uma outra experiência de cultura, que não é
diretam ente favorável a e ssa vivência.
Finalm ente, outro co ndicionam ento importante para a em ergência
de um a novacultura cívica a prevalência gritante de desigualdad es sociais
- num quadro de que o Bras il é um dos l íde res mu ndia is , m as de forma
Santos 1998 ) ressalta que não se I r jta do estado lano cot tr t , mas de u ma de te rmin d
fo rma d e estado, a lvo do ques t i on m en to pró-mercado.
9
ad.EsrSoc .Re c i fe , v .17, n2. p . 189 -228. fu i /de :. . 2001
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Joanildo A. Burity
alguma isolado— , que não se expressam apenas do ponto de vista da
distribuição de recursos materiais, mas também na prevalência de padrões
hierárquicos de relação, os quais definem quem é mais ou menos cidadão,
quem prec isa de se justificar para oc upar a esfera púb lica ou quem tem
acesso natural a ela. Não é de admirar, então, que a correlação entre
ser afro-brasileiro, mulher, pouco ou não-alfabetizado e ser mais pob re
ou exc luído, é sólida na sociedade brasileira. As desigualdades de renda
se somam ao racismo, ao mac hismo, ao preconceito contra os sem-
educação , dentre outros atributos.
É contra este pano de fundo que surge, com cada vez maior
insistência, a preocupação c om a c riação e construção de redes: redes de
solidariedade, de assessoria, de informação, de comunicação, de militânc ia,
de articulação política; redes no âmbito da sociedade civil, mas também
do estado . Para isto contribuíram significativamente os efeitos
desagregadores produzidos nó c ampo da m ilitância soc ial, desde o início
dos anos 1990 . Como governo ColIor iniciou-se um processo b rutal de
desmobilização, desarticulação, desorientação, do c ampo da soc iedade
civil organizada do país, princ ipalmente de setores populares. A s redes
vêm em grande medida em resposta a isso. São uma tentativa de
recomposição de um sujeito político de novo tipo e uma de suas expressões.
O utro vetor da multiplicaç ão das redes são as próprias mudanças
nos padrões de relação entre sociedade e estado, que têm a ver com o
encolh imento do estado sob a lógica neoliberal e com a disseminação de
discursos descentralizadores, participacionistas e antitotalitários, mas muito
heterogê neos entre si. A despeito da ambigüidade de que se revestem as
experiênc ias oficiais (governamentais) desta relação, principalmente no
campo das políticas sociais, mas em geral através da ênfase nas parcerias
em diversas áreas, cresce a demanda por novas políticas púb licas, apelando
à necessidade de que a sociedade assuma responsabilidade ou co-
responsabil idade pela sua formulação e execução'.
O contexto recente tem introduzido a incerteza, a provisoriedade
e a precariedade das conquistas no centro da vida social. A pluralização
de alternativas e agênc ias da ação c oletiva contribui adicionalmente para
tomar o quadro mais complicado seja pela via da superposição de
1-lá me smo quem fale num estado-rede e numa sociedade-rede cf. castel ls, 1996; 1998).
Dentre e fera do e spaço acad ëmico, este é um tema reco rrente. cf. Inst ituto de Polít ica, 199x;
xxxx
Há um a rede virtual de organizaçõ es do terceiro setor O NG s), onde esta discussão está
permanentem ente posta na ordem do dia cf . Ri ta).
Cad.Est .Soc.Rec/ fe,
37, n.2, p.189-228. fu i /dez. . 2001
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ídenüda e e n lú l lip r) perrencin iento
PUS
práticas ( ISSOC aPVaS locais
iniciativas voltadas para um m esm o objetivo, em conco rrência umas com
as outras; seja pela via da dispersão ideológica, tem ática e d eforma s de
atuação; seja pela m ultiplicidade de inserções dos indivíduos e m distintas
organizações ou campos de ação. Emerge uma preocupação com a
identidade
tanto dos grupos quanto dos indivíduos inseridos neste
contexto. Rever a identidade, questionar a identidade, reafirmar a
ident idad e tom am -se exigências correntes , im putada s aos grupos ou
desencadeadas internamente a eles. Pertencer a um a organização, grupo,
mov imento, toma-se uma exigência
e um problema quando os referenciais
se turvam , as fronteiras se tom am incertas e a am eaça de desagregação
ou perda de identidade se am plia.
M ais do que uma questão afeita ao indivíduo, trata-se de algo que
atinge os atores colet ivos e as organizações . Tamb ém eles se vêem às
voltas com o q uestionam ento de suas form as de estar-junto e de agir na
esfera pública também eles se envolvem em práticas articulatórias
con struindo atores m ais amp los, híbridos, m utáveis , plurais , ond e as
questões de identidade es tão colocadas: per tencer a um m ovime nto, a
um a rede, a um cam po ét ico-pol ít ico, s ituar-se num cam po discursivo,
enfim, implica inserir-se num a tradição e ser, ao m esm o temp o, capaz
de esco lher e recolher dessa tradição e de outras, experimentar o de safio
da alteridade, inserir-se em lutas pelo reconhecim ento ou pela reparaç ão
de injustiças e desigualdades.
Um aspecto fundamental da discussão se liga à definição de
pertencim ento adotada. Já discutim os o assunto em outro texto (cf. B urity,
2000 , mas diríamos aqui, brevemente, que o pertencimento
nessas
condições implica com prometer-se at ivam ente com um projeto sem se
deixar submeter completamente a ele, circulando entre outros e/ou
vinculando-se a outros. Adem ais, essas experiências produzem um padrão
de pertencimento diferente do da
coesão grupal.
Embora definam
fronteiras entre um dentro e um fora (quem é participante, mem bro, aliado
ou não; quem somo s nós, quem são os ou tros, etc.), elas não são exclusivas;
em bora haja crenças com uns e formas comuns de encená-las , elas não
são compreensivas, nem únicas, mesclando-se a outras, por vezes
divergentes, descon tínuas de grupo para grupo (ainda que haja pessoas
participando de m ais de um deles).
Nosso p ercurso pa ra inve stigar a interface entre cultura cívica,
associativismo e identidade, então, é trabalhar com a relação entre
pertenciniento e dem ocracia, partindo da com preensão, desenvolvida po r
9
ad.En.S uc.Rcufe, " .17,
2. j. 189-228, fui Ide:.. 2001
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jüünitdü A. Bu rity
diversas correntes de p ensamento social e político contem porâneo, de
que as identidades políticas e sociais contemporâneas são internamente
heterogêneas, e porque são assim, têm que dividir lealdades e
compromissos, precisam negociar essas diversas formas de
pertencimento
. Mais especificamente, nossa preocupaçã o é investigar
as novas prá ticas implicadas nesta identidade plural e nas modalidades de
pertencimen to que a caracterizam, observando com o isto aponta para a
reinvenção da concepção clássica de cidadania e para novos padrões de
relacionamento entre atores coletivos no atual estágio da democratização
no B rasil.
Um a hipótese subjacente é que a experiência da cidadania não é
mais a experiência de identidades integradas, centradas, que se apresentam
semp re da mesma maneira nos diferentes espaços públicos, e privados.
An tes, a cidadania se toma m ultidimensional, envolvendo às vezes as
me smas pessoas em relação com diferentes instituições, repertórios de
ação , formas de se apresentarem socialmente, maneiras de construírem
sua identidade. Com o conseqüê ncia, tamb ém a identidade dos atores
coletivos assim co nstituídos apresenta as marcas desta circulação-qu er
nas modalidades de
sserção coletiv
que geram movimentos
específicos), quer na de
dissemin ção
de práticas originadas em algum as
dessas experiências para outros espaços sociais (gerando dem andas novas
nestes últimos e permitindo certas formas de articulação entre atores vários,
que podem levar à constituição de redes ou de áreas de movimento ).
Mais do que apontar para uma pluralidade de papéis, perfeitamente
conhecidos e assum idos livre e alternadamente, de forma instrumental ou
funcional nos interessa assinalar um duplo deslocamento: o da identidade
pública ou política de cidadão e o da concepçã o de u m agente unitário (o
movimento, a classe, o partido, o estado, a sociedade, etc.), que deixaria
sempre em suas diversas formas de ação a marca de um núcleo de
atributos ou interesses que lhe seriam intrínsecos.
No prim eiro caso, o deslocamen to diz respeito a duas situações
contemporâneas: (i) a de uma crescente autonomização das distintas esferas
sociais entre si, o que imp lica, de um lado, a perda de centralidade d a
Somos
p r t icul rmente
I ributários das contribuições feitas por Ernesto Lac lau 199 0: 1996 a) e
Cham ai Mo uffe 1992; 1996) , e em sua obra conjunta sem ina l 1989) , no cam po da teor ia e da
f il oso f ia po l í tica , bem com o por Alber to Me lucc i 1989; 1996) e Manue l Cas ie l is 1983: 1996) ,
no cam po da soc io log ia. V. ib . McC lure, 1992 : Scho l sberg , 1998.
Ca d.Esi.Soc.Rc ci fe, v.17, a.2. p.189-22 8, fu i/dez., 200 1
9
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Ideni id ide e m últ ip lo pei- tenciniento t ios p rát icos associat ivas locais
identidade de cidadão, em outras palavras, num a despolitização da
cidadania', e de outro lado, na regionalização da identidade de cidadão,
ao lado , por assim dizer, de outras formas de identificação, sendo
ativada dependendo de contingências e com diferentes intensidades,
por indivíduos e grupos; (ii) a reivindicação dos direitos de cidadania
para um espectro cada vez m ais vasto de espaços e situações sociais,
econômicas, políticas e culturais. Tal ampliação corresponde a uma
reabsorção pela sociedade civil de funções ou prá ticas de representação
e provisão social classicamente atribuídas ao estado.
H á assim uma disseminação do conceito de cidadania, ao mesmo
tempo em que ele perde suas conotações mais tradicionais, de posse de
direitos civis e políticos ou de participação na comunidade política,
fortemente referenciadas no estado, e adquire relevância em espaços
institucionais hierárquicos e fechados, antes infensos à lógica da
participação, da igualdade e da afirmação de direitos. Certamente, isto se
faz com perda de conteúdos, com um certo empobrecimento do
significado originário, podendo inclusive vir a ser usado de forma
inteiramente vazia de implicações, de forma puramente retórica. M as um
dos aspectos produtivos das lutas sociais em tomo do conceito de cidadania
hoje decorre precisamente de sua disseminação, de sua capacidade de
assumir conotações distintas, de ser hegemonizado por diferentes sujeitos
políticos e sociais.
No segundo caso, o deslocamento aponta para a emergência de
atores coletivos com pósitos, cuja face pública aparece m ais ou menos
unificada e possuindo porta-vozes e representantes, mas que correspondem
antes a redes ou articulações de atores de diferentes tamanhos e formatos,
do que a um sujeito homog êneo. A identidade de cidadão toma-se uma
entre outras, mas também passa a descrever uma rede de a tores, ou atores-
rede, figuras de um campo de articulações sociais que redefine os contornos
da sociedade civil e do estado numa esfera pública híbrida, de que
voltaremos a falar.
O que procuramos compreender, enfim, é como a identidade de
cidadão se articula hoje com a identidade de consumidor, militante de
Para evitar equívocos entendemos tal despol il ização com o resultado de um desinvestimento
fi s questões polític s
sr i- /nu senso
que marca toda -a década de 1990. mas também como
decorrente de um qu estionamento da centralidade do estado com o referencial para o conceito de
cidadania.
194
odE st.Soc.Rec ife r .17. n.2. p. 189-228 ju l ./ t /ez. 2001
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Joan,klo A Buri v
a lg u m a o r g a n i z a ç ã o d a s o c ie d a d e c iv i l e t a m b é m c o m a d e a d e p t o d e
a l g u m a o r g a n i z a ç ã o o u c o n c e p ç ã o r e l ig i o s a , t e n d o c o m o r e f e r e n c ia l ,
e n t r e t a n to , n ã o a f ig u r a d o i n d iv í d u o c o m o u m s e r a u t ô n o m o , d e s e n r a iz a d o
o u f lu t u a n t e e m r e la ç ã o a m a r c o s r e fe r e n c i a i s ( o r g a n i z a t i v o s , c u l tu r a i s ,
p o l í t ic o s ) , m a s d e p e s s o a s p e r t e n c e n t e s a o r g a n i z a ç õ e s , s i t u a d a s e m
c u l t u r a s e t r a d iç õ e s , m o b i li z a d a s e m f u n ç ã o d e s u a i n s e r ç ã o n u m c a m p o
de açã o co le tiva . Des ta fo rma , ev i tam os o a tom ism o de d ive rsas
m o d a l id a d e s d e i n d i v id u a l is m o m e t o d o l ó g i c o o u d e c o n c e p ç õ e s l i b e r a i s
d o s u j e i t o , e n e m p o r is s o t r a n s f e r im o s a e s t r u tu r a s s u p r a - in d iv i d u a i s o
p e s o d a d e t e r m in a ç ã o d e s u a s p r á t ic a s e a t i t u d e s . E n t e n d e m o s , a s s im ,
p o d e r c r u z a r a d im e n s ã o i n s t it u c i o n a l e a s u b je t iv a d a id e n t id a d e , d e
fo r m a a c o n t r ib u i r p a r a a e l u c id a ç ã o — o b v i a m e n t e n o s l im i te s d e s t e tr a b a l h o
— d e d e s a f io s e d i le m a s d a c u l tu r a c í v ic a , p a r t ic ip a t iv a , n o c u r s o d o p r o c e s s o
d e d e m o c r a t iz a ç ã o d a s o c i e d a d e b r a s i le i r a .
A p e s q u i s a e m p í r i c a s e p r o p ô s a c a p t a r e s t e s p r o c e s s o s d a
s e g u i n te m a n e i ra : p r im e i r a m e n t e , id e n t if ic a n d o e n t id a d e s a t u a n t e s e m m e io s
p o p u la r e s , e m d u a s l o c a l id a d e s d a R e g iã o M e t ro p o l i t a n a d o R e c i f e ' ,
b u s c a n d o p e r c e b e r s u a e x p e r iê n c i a p r ó p r ia d o d e s l o c a m e n t o le v a n t a d o
c o m o h ip ó t e s e t e ó r ic a m a i s g e r a l, e m fu n ç ã o d e i n d i c a ç õ e s d a l i t e r a t u r a
a t u a l s o b r e c i d a d a n ia , m o v i m e n t o s s o c i a is , a ç ã o c o l e t iv a e n o v o s p a d r õ e s
de r e laç ão e n t re s oc iedade e e s tado . Es tas en t idad es , um a v ez
s e l e c io n a d a s , fo r a m c o n v id a d a s a p a r t i c ip a r , a t ra v é s d e p a r ti c i p a n t e s q u e
s e d i s p u s e s s e m a t a n t o , d e u m a d i s c u s s ã o e m p a in e l , e m d u a s s e s s õ e s d e
u m a h o r a e m e ia , ju n t a m e n t e c o m r e p r e s e n ta n t e s d a s d e m a is e n t id a d e s
e s c o lh id a s . O s p a r t ic ip a n t e s t e r ia m q u e p o s s u i r u m v í n c u l o e x p l í c it o c o m
a e n t id a d e , a lg u m a e x p e r iê n c ia d e p a r t ic ip a ç ã o e m s u a s a t iv id a d e s e u m
c o n h e c im e n t o b á s i c o d o p e r f i l / id e n t id a d e d a o r g a n iz a ç ã o , b e m c o m o d e
s u a d i n â m ic a i n t e r n a d e p o d e r . E r a p r e c is o c o m b in a r p e s s o a s c o m p o s i ç ã o
d e l id e r a n ç a e o u t ra s , c o m m e n o r e s r e s p o n s a b i lid a d e s o u in t e n s i d a d e d e
a t u a ç ã o .
F o r a m e s t u d a d a s a c o m u n i d a d e d e C h ã o d e E s t re l a s , n o b a ir r o d e C a m p in a d o B a r r e t o , z o n a
n o r t e d o R e c if e , fr o n t e ir iç a c o m o m u n i c íp io d e O t in d a , e g ru p o s d a c i d a d e d o C a b o d e S a n t o
A go s t i n ho , lo c a l iz a d o s n o c e n t r o d a c i d a d e e e m t r ês b a i rr o s p o p u la r e s p r ó xi m o s . Se l e c i o n a m o s ,
a s s i m , n o C a bo , o C e n t r o d a s M u l he r e s d o C a b o , o M o v i m e n t o d e M o r a d o r e s d e V i la C la u d e t e . a
I gr e ja E v a ng é l ica B a t is t a d a V i la d a C O I- IAB , o L a r B e ne f i ce n t e Sã o L á z a r o , o se r v i ço d e T e cno l o gi a
A lt e r n a t iv a S E R T A) e a C r u z a d a M i s t a S o c ia l d o s C u lt o s A f ro - B ra s i le i r o s . E m C hã o d e E s t r e l a s ,
selecionamos o Centro de Organização Comunitária o Centro Cultural Daruê Malungo. o
M o v i m e n t o C u lt u ra l D e s p e r ta P o v o , o G r u p o E s p e r a n ç a e a A s s o c i a ç ã o d e M o r a d o r e s d e C a m p in a
d o B a r re t o . Um a d e s c r iç ã o p o r m e n o r i za d a d e c a d a gr u po p o d e s e r e n c o n t r a d a e m B u r it y. 20 00 .
Cad.E st.Soc.Re ctfe, v.17. n.2, p.189-228 . fui/dez.. 2001
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Ident idade e niúl t ip la per/eneinienta nas prát icas assa r/ali as locais
Montamos, assim, três painéis em cada localidade, com
representantes de cinco entidades e fizem os diversas visitas e c ontatos
corri moradores e lideranças locais. Havia, em cada painel, um representante
das cinco entidades selecionadas. A repetição tinha o ob jetivo de perceber
duas coisas: i) como se dá a interação entre pessoas ocupantes de
diferentes posiçõ es org anizacionais, e participantes de diferentes entidades;
e (ii) como variam as (au to-) apresentações da identidade do ator social,
a partir da percepção de distintos participantes do mesmo e face à
interlocuç ão com ou tros atores.
Foi feito um levantamento das at iv idades parcer ias ,
do pú l ico
beneficiado direta e indiretamente pelas atividades dos g rupos qu e foram
identificados; e um a identificação das
temát icas assoc iadas às a t iv idade s
de p rov isão d e se rv iços ,
porque esses gru pos oferecem determinados
serviços à comunidade, ou a setores da comu nidade, mas a oferta daqu eles
não se limita a eles mesmos, antes vem associada à prestação de assessorias
e à realização de oficinas de discussão e reflexão sob re, por exemplo,
cidadania, gên ero, as novas relações entre sociedade e estado, consum o
ou g eração de renda.
1 M últiplo pertencimento e transição permanente
N um trabalho anterior (Bu rity. 1994 a), procurei mostrar como os
processos sociais e políticos que tiveram efeito com a transição à
democracia no B rasil anunciavam algo mais do que um a mera conjuntura
de mu dança de regime político. A ló gica de negociação e a conflitualidade
envolvendo múltiplos atores obviamente de dimensões e poder de
barganh a diferentes entre si), as articulaçõ es constituídas em funç ão da
definição de um campo de antagonismo que serve como espaço de
agreg açã o de posições, um nós e um eles em disputa, são indicadores
de uma transformaç ão no espaço tempo da açã o coletiva e da ação político-
institucional. atn-ansformaçâo fazdas regras dem ocráticas umaexigé ncia,
instaura u ma disputa intelectual e m oral pela hegem onia dos valores da
participação , da pluralidade ideológ ica e cultural, da transitividade dos
arranjos políticos. Ch am am os a este novo espaço-tem po de transição
permanente , sem u ma preocupaçã o de atr ibu ir- lhe um juízo de valor
positivo
a p r io r i ,
mas destacando qu e o caráter contingen te das escolhas
e decisões políticas/coletivas gera a necessidade de avaliaçõ es contextuais.
9 ad.Est.Sac.Recifr. t .17, n.2, p. 189-228. jul. ldez.. 2001
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Joani/do A Buritv
Os an os 1990, e toda a crise que eles trouxeram para a po lítica
de b ase e o s valores ideológicos radicais (não somente os socialistas, mas
me smo os com unitaristas, coletivos por contraposição a individualistas)
reforçaram a validade desta representação. Em nossa pesquisa pudemos
constatar na fala dos informantes e entrevistados as marcas de um
deslocamento que os coloca frente a desafios a sua identidade com o
militantes sociais, partidários e como indivíduos co m a lgum trajetória de
com promisso com setores excluídos da sociedade. Os atores coletivos
no plano local vivenciam hoje um a transição que parece ter-se tornado
também permanente. A rapidez das mudanças em diversos cam pos de
ação qu e incidem so bre mo vimen tos e organizações atuantes na esfera
local e a dinâm ica de tensão e negociaçã o entre as fronteiras culturais e
institucionais das identidades envo lvidas impulsiona uma situação em que
a ênfase na conexão, na articulação , na auto-iniciativa e na flexibilidade/
pragmatismo como estratégia tomam-se objetivos vá lidos em si mesmos.
Em meio à transição permanente e em função dela, crescem em
importância as questões identitárias ligadas à autodefinição ao
reconhecimento do/pelo outro, ao antagonismo que ajuda a dem arcar
fronteiras. Busca-se construir (ou resgatar ) a identidade como forma de
ancorar-se a algo m enos flutuante. E experim enta-se a identidade com o
problema, face a o desafio posto por outras formas de identificação (por
exemplo: participação e solidariedade
v rsus
isolamento e
competitividade).
O m últiplo pertencimento coloca para a cidadania o desafio de
man ter sua vocaçã o universalista e igualitária em meio à fluidez do
pertencimento, à retração particularista (desmobilização, isolamento ou
competição com outros atores pelos mesmos recursos limitados) e à ênfase
na legitimidade do plural, do diferente. Adem ais, atesta a proliferação de
espaços de vinculação e de disputa, alguns dos quais podem ser priorizados
sobre outros, mas não indefinidamente, um a vez que as carências são
tantas e tão profundas que é preciso fazer-se muitas coisas ao m esmo
tempo, em m eio a formas de associação que exigem certo grau de adesão,
ao mesm o tempo em q ue reconhecem/disputam o espaço de outras.
Um a das conseqüências desta si tuação para o s grupos é a de
abrir sua agenda para incorporar novas áreas de atuação ou tem as de
interesse, à medida que ampliam sua d efinição do prob lema central que
os m obiliza e dá identidade— pobreza, gê nero, meio am biente, religião,
cultura, etnicidade, etc. O u seja, os grupos tornam-se m ultifocalizados
Cad.Esi.Soc.Recife v.17 n 2 p.139-228 jul./de...200]
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Identidade e mú ltipla per/encimenta nas p ráticas
ISSOC,W,VaS locais
(embo ra nem sem pre de forma sincrônica). Há migrações de interesses
ou ênfases. Parte disso decorre da b usca de sustentabil idade para as
organizaçõ es, que leva a form ular projetos que, para serem financiados,
precisam atender a determinadas exigências de organismos governam entais
ou não-governam entais, nacionais e internacionais (cf. Fernande s, 1993:
p.79-82 ). Nesta busca de recursos que viabilizem os objetivos do grupo,
vai-se alargando, de forma não planejada ou m uito controlada, o raio de
atuação, mas também o núm ero de interlocutores, parceiros e penetra-se
em espaços cada vez mais marcados pela pluralidade de atores -
conc orrentes ou articulados - onde não é possível assegurar a pureza
de suas identidades. Pressões, crises e nego ciações tornam-se m oeda
corrente. M últiplo pertencimento, que tanto abrange a constatação pura e
simples de que se está imerso em redes de relações cada vez mais
com plexas, quanto a questão m ais forte do deslocamento e recom posição
perma nentes da identidade coletiva.
Nã o há porq ue ignorar o efeito desorientador que isto produz em
m uitos agentes. Tam pouco se pode d eixar de assinalar que a mú ltipla
inserção dos atores coletivos os leva a m ultiplicar atividades pra ticamente
idênticas numa mesm a área, em busca de legitimação ou reconhecim ento
por parte do público. O lado nega tivo desta superposição foi percebido
por vários dos painelistas. Ela é um a conseq üência das divergências
políticas e da incapacidade de negociação entre os líderes locais, levando
a uma fragmentação do cam po reivindicativo na comunidade e, em certas
situações, ao enfraquecimento das dem andas, na medida em que fica aberta
a porta para que os grupos mais próximos da po sição governamental ou
de segm entos da burocracia nos órgãos públicos levem v antagem sobre
os dem ais. A cesso diferencial que pode ser usado com o trunfo na disputa
por influência local na medida em que se pode apresentar maiores
realizações. Por sua vez, esta é uma base de p oder na barganha co m os
atores externos à comunidade.
2 C a m i n h o s d e u m a c id a d a n ia h í b r id a : c o n s t i t u i ç ã o d o n o v o
e s p a ç o p ú b l ic o e m m e i o à c o n d i ç ã o d e e x c l u s ã o
O contexto brasileiro da década de 1990 foi marcado por
sinalizações fortemente contraditórias: a intensificação dos processos de
mo dernização no âmbito do aparelho estatal e das suas relações com a
sociedade deu-se a par com um, mais do que docume ntado, agravamen to
das condições de vida da população apesar dos efeitos iniciais da
9
ad.EstSocR ceife, v.17, ;7.2, p. 189-228, fui/dez., 2001
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Jw niido A. Burftv
estabilização m onetária pós- 1994.
A extensiva reengenharia política,
econôm ica e organizacional que incorporou uma série de inovações
tecnológicas e de gestão alargou o map a da exclusão e o rol de dem andas
e carências a en frentar (aum ento do desem prego e das ex igências de
qualificação da m ão-de-obra sem a contrapartida de ma iores salários,
precarização do vínculo de traba lho, restrição de direitos e condena ção
ao desprezo daqueles desadaptados ao no vo sistem a).
Por outro lado, uma pluralidade de atores, que ha via constituído
um espaço públ ico para a vol ta da dem ocracia na década de 1980,
expe rimen tou um a trajetória que foi da desart iculação (ainda sequer
pluralidade mas pulverização desorientação e/ou repressão contra
esforços agregadore s) à articulação em tom o do significante dem ocracia',
em função de uma am eaça ou inimigo comum', e, em seguida, encaminhou-
se para um processo de realinham ento que envolveu tanto a crise de
diversas das identidades em jogo, como a e m ergência de uma lógica política
e cultural avassaladora, epitomizada nas idéias de mercado e
desregulam entação . Um significativo processo de redefinição ideológica
e estratégica, tom ou m uitos atores m ais colaborativos com o estado
(inclusive com administrações de diferentes matrizes político-ideológicas),
ma is reflexivos em relação a sua p rópria prática, e mais flexíveis/pragmá ticos
em sua definição de o bjetivos, formas de a tuação e construção de apoios
e articulações.
N o nível instrumental, passou a prevalecer um a ênfase na conexã o
e na a rticulação . No n ível valorativo, cresceu a ênfase na so lidariedade e
na busca de form as de estar ou atuarjunto em m eio ao reconhecimen to
de diferenças - em bora ainda haja uma ten dência a pen sar estas últimas
com o diversidade de atribuições, quando se fala de projetos a re alizar, e
com o ex periência difícil de estran ham ento e con flito, quando se fala das
tentativas de m obilizar ou coordena r grupos esp ecíficos em função de
Funcionando este com o um signif icante vazio, no sentido que lhe em presta Laclau
1996).
Não temos aqui o espaço para explorar a 'comun alidade existente entre os diferentes atores
dem ocratizantes no contexto de lota pela democ racia recente. Bastaria dizer que nã o se tratava
nem da m aterialidade pura e simples das forças atinadas, nem de um mesm o núme ro de agravos,
queixas e demandas colocados por todos aqueles em direção ao po der militar, mas um a série de
ma tiz wit igenteiniano, onde ma is contava a inscrição de de ma ndas díspares no 'pass ivo' da
ditadura , pouco a pouco responsabil izada pela crise (de contornos dif ici lmente definivets.
pela sua extensão. ramiftcações entre as esferas da econom ia, da política, da cultura), do que um
consenso substantivo quanto a um projeto alternativo. Isto se v iu, se não já durante o governo
Sarney, certamente nos que lhe seguiram.
Cud.Est.Soe.Recife, v.17, n.2, p.189-228, fui/dez., 2001
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dentidade e m últiplo persencim ento nas práticas associativas locais
interesses maiores. Ainda há espaço para políticas m ais agressivas, de
pressão e confronto, mas estas precisam ser bem calculadas, aproveitando-
se vulnerabilidades do adversário, num a conjuntura em que há pouca
paciência para o debate aberto.
Ao longo da década foi-se desenhando um a esfera pública plural
- ou u ma pluralidade de esferas públicas - que reduziu a centralidade do
estado' e am pliou a noção de púb lico através de um a incorporação de
funçõ es de provisão e controle (ainda que experimentais e circunscritas)
pela sociedade civil. Alguns já falam de um a esfera púb lica nã o-estatal
como contrapartida da esfera pú blica tradicional do estado. H á quem fale
de um esquem a tripartite em que, ao estado e ao mercado vem se interpor
um terceiro setor em qu e outros valores, interesses e repertórios de ação
prevalecem. E m ambos os casos, ainda que se recomende a cau tela devida
a percepções de tendências pouco sedimentadas, pode-se falar da
constituição de u ma esfera híbrida de cidadania. Híbrida por ser estatal e
não -estatal, tanto no sentido de que abriga essas du as distintas lógicas de
funcionam ento do social como no sentido das ex periências de trânsito
entre as fronteiras do estado e da sociedade civil (que põ em em xeque a
clássica distinção entre público e privado . Híbrida, ainda, por ser
ideologicamente heterogênea, mesm o am bígua, em sua u til ização da
lingu agem dos direitos e da participação com o alternativa à força do
dinheiro e do poder político tradicional.
2.1 O sujeito híbrido: atores rede no espaço da promo ção e
extensão da cidadania
E ste espaço híbrido pode ser construído conce itualm ente por
diferentes caminhos. Um deles, que rem onta a estudos feitos por M elucci
sobre movimentos sociais no início dos anos 198 0, enfatiza a especificidade
da ação coletiva na sociedade contemporânea
vis à vis a política
institucional e o caráter com pósito dos atores que ali se movem . Para ele,
Esta afirmação é relativa a um duplo contexto resistência ao arbítrio estatal dos tempos
ditatoriais e à centralização político-administrativa resultante do modelo de desenvolvimento do
pais desde os anos 1930 de um lado e programa de desestatização e desregulatmentação das
políticas e direitos na linha do discurso neoliberal. No primeiro caso a grita por descentraliztção
e pela ampliação de espaços de pa rticipação dos cidadãos visava a uma dem ocratização do poder.
alargando o peso da sociedade civil. No segundo caso a crítica da ineficiência e do papel empresarial
exercido pelo estado visou à ampliação da iniciativa privada e à redução do estado a funções
mínimas que remontavam à doxa l iberal do século dezoito.
200
ad.Est.Soc.Recife. vi?. n.2 p. 189-228 fui/dez. 2001
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Joanildo A Burily
o campo da ação coletiva tende a autonomizar se da ação
ins ti tucionalizada, o que im plica tamb ém um a diferenciação entre esta forma
de ação e a ação polí tica t radic ional . O concei to de área de mo vimen to ,
tomado à teor iada m obi lizaçãode recursos am er icana, ten tou , num pr im eiro
m om ento (c f . Melucc i , 1984) , da r conc re tude em pí rica ao es tudo d esses
a tores p lura is que são v ia de r egra desc r i tos com o m ovim entos soc ia i s .
As áreas corresponderiam a campos de
estrutur ção
d e id en t id ad es
coletivas e a espaços de recomposição
da identidade a qual estaria
con t inuam ente expos ta à fragmentação na soc iedade com plexa).
N es te ca s o , po r ém , o s i nd iv íduos e g rupos encon t r a r iam na á r ea
d e m o v im e n t o u m e sp a ç o p a r a r e c o mp o r e m a id e n t id a d e d i v id i d a p e lo
m últip lo per tencime nto e pelos d i feren tes temp os e pap éis exper im entados
na soc iedade . Is to nos co loca d ian te de du as d i f icu ldades na co m paração
en t re a r ea l idad e ana l i sada por M elucc i (ou sua represen tação d e la ) e a
br a s il e ir a : um a em pí ri c a e um a con ce i tua l . E que s endo s eu conce i to de
s oc i edade com p lexa a lgo li nea r - opond o- se a um a soc i edade s im p le s
ou, quem sabe , subdesenvo lvida - ' .Melucc i acaba fa lando de um a fase
indus tr ia l que e s ta ri a f icando pa ra t rá s e marcand o um a quebra no pe r f il
dos m ovim entos soc ia is . Nes ta f ase indus t r ia l, os conf l itos dos qu a is os
m ovimen tos par ticipavam inser iam -se num a luta mais amp la pela cidadan ia
a a ç ã o nã o- ins t it uc iona l e s t a va s ubord i na da e /ou e r a e ng l oba da pe l a
ação in s t it u c io n a l . O s m o v im en to s , n es t a f a s e , s e r i am p e r so n a g en s
conf rontados ao es tado e dem andan do inc lusão/am pl iação da c idadania .
Na no va fase , quando o ins t ituc ional e o não- ins t ituc ional se separam , os
m ovimen tos assumem ao invés a con f igu ração de áreas em que se fo rma,
se negocia, se recom põe a ident idade colet iva (Idem : p.436; cf . o contexto
m ais amp lo das pp . 435-37).
A di fe rença aqu i é que se es ta r epresen tação é verdade i r a , en tão
o caso brasi leiro apresenta um a com plexidade diversa da que fala Melucci:
a q u i há c o e x is t ên c i a s im , m a s d e u m e n f o q u e v o l t a d o p a r a o e s t a d o e a
l u ta pe l a c i da da n i a e um e n foqu e que e s t im u l a a d i fe r e nc i a ç ã o e n t r e a
ação co le t iva (soc iedad e c iv i l) e a ação pol í ti ca (es tado ) , desa f iand o a
p r im e ir a a e n c o n t r a r so l u ç õ e s p a ra p r o b l e ma s q u e n ã o p o d e m m a i s (o u
n ã o s e q u e r m a is q u e s e ja m ) r e so l v id o s p e l o e s t a d o e a s u p l e m e n t a r a
segunda , conferindo-lhe a legitim idade e a referência de eficiência e eficácia
q u e e l a p e r d e u . Há u m a a m p l ia ç ã o d o a l c a n c e d a c i d a d a n ia q u e t a n to
jus t i fi ca a ação ins t ituc iona l , com o con s t rói e spaç os de au tonom ia em
re lação a e la (notadam ente no n íve l m icro , tão va lor izado p or esse autor) .
ca i.Es,.soc.Recife, v.] 7, ,,.2, p.189-228. fui/dez.. 2001
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Ident idade e m últ ip lo per lencin ienlo nas p rát icas associat ivas locais
Melucci em nenhum mom ento está em condições de dar conta desta
configuração`, refletindo assim ou uma leitura exclusivamente européia
dos caminhos da açã o coletiva ou um resquício de etapismo bastante
questionável (cf. Gohn, 1997 : p.130 ).
A dificuldade conceitual está em que, de um lado, o conceito de
área de movimento — ou redes de movimentos, como Melucci tem preferido
chamar mais recentemente, sem que haja, a meu ver, qualquer mudança
em relação ao ponto aqui desenvolvido - está em tensão com o múltiplo
pertencimento, tornando-se um refúgio da identidade contra a
segmentação ou desestruturação (Melucci, 19 84:436), quando tudo
parecia apontar para uma relação de com plementaridade e referência
mútua, dada pela definição relacional, pluriorganizacional e pluriideológica
da área/rede e do ator coletivo.
De outro lado, se a sociedade complexa tende à m undialização e
nela há uma tendência a contemporaneizar tudo, a desfazer as seqüências
cronológicas em favor de uma coexistência, ficamos entre duas alternativas.
Ou bem a coexistência no interior dos movimentos de sociedades
complexas é mera aparência de diferentes fases - pura diversidade, sem
antagonismo— , as quais estariam conciliadas num todo harmônico e
complementar, ou então os movimentos de sociedades industriais (não-
complexas? também partilham da heterogeneidade das áreas de
movimento/redes, não são personagens , mas formas e, assim, a
utilização da periodização industrial/complexo para a análise dos
movimentos não pode ser entendida no sentido de uma polaridade Sul/
Norte, atraso/avanço, uma vez que sob a globalização, não estando mais
os problemas e lugares dos conflitos presos à referênc ia local, toma-se
insustentável esta distinção entre personagem e área enquanto corolário
de um a interpretação da sociedade complexa com o sociedade (mais)
avançada (cf. Burity, 1999a).
Assim, aplicam-se também, na caracterização analítica das formas
de ação coletiva em sociedades como a brasileira dos anos 90, os traços
ma is próximo que ele chega de escap ar do dilema conceitual que sua concepção de com plexidade
imp l ica é ao a f irma r : Es ta e ra do conf l ito indus t r ia l acabou, não po rque as lu tas pe la c idada n ia
p le n a te n h a m se co m p le ta d o o u p o rq u e n ã o h a ja m a i s e sp a ço s d e mo c rá t ico s a co n q u i s t a r, ma s
po r que as d i f e ren tes d ime ns õ es dos c on f li tos c o le t iv os v êm s e s epa r ando c ad a v ez m a is . N as
sociedades complexas contemporâneas os conflitos que incidem sobre as relações sociais
dom inantes e as lu tas pe la extenst io da c idadania tendem a se tornar d is t in tos e a envolver bases
soc ia is d iversa s ' (Meluc c i . 1989:19).
ad.Est.Soc.Rectfe, s 17, n.2, p. 189-22 8. jn l .tdez. . 2001
8/19/2019 Identidade e Múltiplo Pertencimento
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Jflün,Id() A. Burity
característ icos do cam po dos m ovimentos como espaço de afirmação d e
um a pluralidade de agentes e lógicas sociais: articulação/formação de redes,
trânsito e mu ltiplicidade de identidades coletivas em b usca de recomposição
(não tanto contra o múlt iplo pertencime nto, ressalvam os, mas
t vé s
dele , a conflitualidade e a tensão entre ação coletiva e ação
institucionalizada. Com o eleme nto contextual importante acrescentaríamos
o qu e foi explorado num trabalho anterior (cf. Burity, 2000): o
o l s m o
das carências leva a um a crescente diversif icação da atuação dos grupos
e sua inserção em redes de articulação - governamental e não-
governamental - em busca de atender às inúmeras demandas das
popu lações pobres.
A narrativa dos grupos estudados sobre sua história, sua
identidade e práticas indica um a crescente consciênc ia e diversificaçã o
dos temas, ações, orientações e parcerias com outros atores, de modo
que, invariavelmente , em torno de u m núcleo básico, que dá o tom da
ident idade do gru po - cul tura , m ulheres, crianças, rel igião, m oradia,
trabalhad ores ou pequ enos produ tores rurais, etc. - vai-se delineando
um leque hol ís t ico de dem andas, que leva à adoção de temát icas m ais
am plas e menos diretamente vinculad as à história particular do g rupo. Em
certos casos, a dispersão obedece a u m a lógica em que, quan to mais se
diversifica o leque de atuação, menor é a p ossibil idade de assegurar um
sentido com um - um ob jetivo claro, um princípio determinado, etc. - que
articule todo o conjunto (cf. Laclau, 1 996 c). O avanço em horizontalidade
do ator coletivo ou temática aglutinadora que assim se constitui tamb ém
representa um a dispersão do sentido e um a superficialização do acordo
substantivo entre os participantes, passando a ênfase ao impacto possível
da articulação e aos g anhos diferenciais dos atores envo lvidos.
Este holismo da s carências tem como co ntrapartida um a atuação
local e em certa med ida contingente ou intermitente, que se alimenta das
oportunidades de recursos - materiais e humanos - bem como da
implemen tação de determinadas políticas públicas. O localismo tem d uas
referências básicas: (i) a com unidade com o lugar da ação; (ii) a ausência
de projetos generalizantes referenciados na questão que deu origem ao
gru po. Tal au sência de m acro-projetos, entretanto, não significa ausência
de horizon tes ideológ icos - cidadan ia, direi tos, igualdade , primazia da
comunidade compromisso ético com as necessidades dos outros a
importância da art iculação e das parcerias - que rem etem à imag em de
um a sociedade reconciliada consigo m esma, em ancipada, justa, etc.
Ca/.Es Srw.Recife, v.17, n2, p189-228. juL/dez., 2001
03
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Ident idade e ;núf t ip lo per teete inIento nas prát icos assOc iot i as locais
Um recente processo de discussão sobre estratégias Tocais para
ao enfrentamento da pobreza, coordenado por pesquisadores da Fundaç ão
Getúlio Vargas, chegou a uma conclusão que vem reforçar nossa
interpretação:
Uma outra constante Ino processo de reflexão, JAB]
foi o reconhecimento que as experiências, projetos
e programas discutidos têm muito mais as
características de processos do que de atividades
planejadas antecipadamente. Eles nunca se iniciam
já totalmente estruturadas [sic]; ao contrário, tendem
a ir ganhando forma no decorrer da prática e do
tempo, integrando outros elementos e idéias à ação.
Não havia, mesmo nas atividades ditas integradas ,
um plano programático que, definido previamente,
fosse capaz de garantir resultados. Estratégias
portanto são muito mais um reconhecimento
posterior de encaminhamentos adaptados, do que
etapas programáticas anteriormente definidas
(C amarotti e Spink., 20 00: p.209 ).
As m arcas desta trajetória aparecem, por exem plo, nas variações
encontradas na forma com o os participantes descrevem seu próprio grupo.
Elas expressam apreensões distintas do que o grupo seja e do qu e faz,
bem com o o olhar desde o t ipo d e at ividades que as pessoas real izam
com maior freqüência no interior do grupo. Num dos grupos, uma igreja
batista no Cabo, isto ficou bem nítido. Enquanto uma senhora muito atuante
nas atividades de ev angelização e ação social da igreja destacou com o
objetivo do grupo apresentar Jesus como o senhor da vida, única
esperanç a , ressalvando discretamen te que apesar de outras entidades
ajudarem à comunidade, o único caminho mais verdadeiro é Jesus, pois
o homem por si só não tem forças suficientes para resolver o problema da
vida , um outro participante, que lida com a s ações de saúde da igreja na
área de fitoterapia, destacou o trabalho com plantas medicinais como forma
de resgatar a tradição indígena. A mesm a senhora demonstra maior atenção
à diversidade de ações que sua igreja realiza do que nosso segundo
Digo discretamente , porque t rata-se de urna das pessoas que dem onstra
grande abertura e
respei to às
diferenças de ênfase entre os
grupos e bastante envolv idas nas at iv idades soc iais da
igreja.
204
adE st.Soc.R ecife, v .17. n .2, ', 189-228, juLk/ez. . 2001
8/19/2019 Identidade e Múltiplo Pertencimento
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Joanildo A. Burity
informante: enquanto ela acrescenta que a igreja provê atendimento
médico-odontológico (não só aos evangélicos, mas à população local),
sopão, quentinhas , pregações, cursos profissionalizantes, distribuição
de remédios e alimentos em viagens evangelísticas a outras cidades, aquele
somente menciona o atendimento mé dico-odontológico. Já o pastor
procurou dar um tom mais ecumênico à definição do seu grupo
apresentando-o como empenhado em cumprir a missão que o próprio
Jesus deixou a todos nós, independente a té de ... [religião, ideologia,
posição social, área de atuação?, JA B]. Ele tem a visão mais sistemática
do que faz a igreja: ela procuraria atuar sobre três dimensões: saúde,
educação e pregação do evangelho. Na saúde, com terapias alternativas,
e assistência médico-odontológica. Já na pregação, atua-se cobrando
uma consciência, orientação, o alcance da integralidade da condição
humana , buscando uma maior consciência comunitária nos batistas, para
que vejam além da dimensão transcendente, as condições de vida reais .
O contraste, neste caso, fica com grupos que possuem uma história
de atuação conjunta mais intensa. A qui estão as O N Gs estudadas - o
Centro das Mulheres e o SER TA -, apesar de se tratarem de entidades
que igualmente estendem suas atividades a uma grande diversidade de
açõ es: do gênero à geração de renda de agricultores, na primeira; de
tecnologias alternativas na produção à mudanças na prática educativa nas
escolas públicas, na segunda entidade. Mas também fazem parte disso
entidades populares, como o Movimento de Moradores de Vila Claudete,
o Centro de Organização Comunitária e o Centro Cultural Daruê M alungo.
Já
d ispersão d s t iv id des num m esm temát ic
pode ser
captada na preocupação com a saúde. Aqui temos o exemplo do Centro
das Mulheres do Cabo, do Centro de O rganização Comunitária de Chão
de Estrelas, da Igreja Batista do Cabo, cada uma com um perfil bastante
distinto, em termos de seu núcleo básico . H á o atendimento convencional
de saúde, mas também m edidas preventivas e de formação de hábitos
pessoais e coletivos; há ênfases sobre a questão da sexualidade e
reprodução ou sobre a conexão entre fitoterapiae alimentação alternativa;
há aç ões articuladas a órgãos e políticas púb licas, outras, oferecidas
isoladamente ou através de parcerias pontuais.
O utra temática generalizadora a cultural. Todas as entidades
estão engajadas em resgatar, promover ou questionar o social através do
cultural desde as preocupações de incidir sobre mentalidades
Cad.Esi Soc.Recife v.17 n.2 /J.189-228 fui/dez. 2001
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Identidade e iitíItip/a perteneinienta na s práticíis associativas locais
historicamen te formadas, mo dificando-as para incorporar novos temas e
práticas econôm icas (tecnologias alternativas ou as nova s exigências do
mercado de trabalho) ou políticas a participação, a interação com
parceiros públicos e privados), até a prom oção de form as de diversão
pública associadas a heranças cu lturais das com unidades locais ou à
consciência m ais recente das questões racial e de gêne ro. Crianças e
adolescentes são outra preocupação recorrente, e em bora seja abordada
desde o prisma de cada grupo, há muitas superposições em termos
valorativos ou de a tividades realizadas: corpo e sexual idade, formação
educacional e profissional, violência e droga s, prostituição, atendimento
pré-escolar, o problema dos limites e do reconhecimento do outro com o
questão pedagógica fundam ental na fase da adolescência.
Um a ent idade com o o Lar São Lázaro t ipifica a
interconexão
dos temas, impulsionado pelo holismo das carências já apontado:
preocupando-se com as conseqüências do desemprego e da fragm entação
do laço fam iliar para os segm entos pobres da pop ulação, principalm ente
as m ulheres e os idosos, o Lar é um espaço am bíguo entre a filantropia
m ais tradicional, de base explicitam ente rel igiosa (predom inanteme nte
espírita, no caso), e preocupações muito recentes com o equilíbrio
am biental e a geração de renda. Man tém um a creche e salas de aula de
alfabetização, mas também procura mediar conflitos familiares
(principalmente os que envolvem violência contra mulheres e crianças),
indicar pessoas para emp rego, e estimu lar a geração de renda, através de
um trabalho de reciclagem de lixo.
O sujeito híbrido da cidadania assum e crescentem ente o formato
de redes . Es tas nem sempre se apresentam com o atores em s i , com o
mov imentos ou articulações que e stão e struturalme nte configurados com o
redes de grupos e se apresentam publicam ente com o tal. Este mom ento
de visibil idade só emerge onde um cam po de conflito público em erge
(Me lucci, 1989:71). Cotidianam ente, entretanto, a rede de relações e de
grupos se m antém em latência, que não significa inatividade, ma s
u regime
de existência em que o espaço público da com unidade não se confunde
com o espaço púb lico da sociedade A movim entação no primeiro espaço
segue ritmos próprios e aparentem ente invisíveis desde o lugar do último.
Segundo M elucci,
[a] situação norm al é a de um a rede de pequenos
grupos submersos na vida cotidiana ... ) A rede
206
id.Est.sacRecife. v17, n.2. p. 189-228. fui/de:., 2001
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.tocindd, A. Buritv
submersa, embora seja com posta de pequenos
grupos separados, é um circuito de trocas. Indivíduos
e informações circulam ao longo do espaço e algumas
agê ncias os núc leos profissionalizados) asseguram
uma certa unidade da á rea. A rede submersa: a)
permite um pertencimento m últ ip lo; b) é
part-time
tanto com relação ao curso da vida, quanto com
relação ao tempo que absorve; c) o envolvimento
pessoal e a solidariedade afetiva são u ma co ndição
para a participação
(1984: p .444-43) 2.
Assim , entre a visibilidade e a latên cia, multiplicam -se as redes, na
esfera do cot id iano e , nos ú lt im os anos da d écada de 1 990, na esfera
pública, roubando espaço à posição central do estado e levando à
em ergência de um espaço híbrido que enfocaremos ma is adiante. As redes
possuem diferentes n íveis , formatos e grau s de densidade (cf . Wel iman ,
1988; 1998; Garton, Ha ythomthwaite e Weliman , 1997; Scherer-W arren,
1993; 199 8; Fontes , 1999; Lopes , 1995; Mische e W hi te , 1998) . Em
nossa pesquisa não traba lham os com o níve l m ais desagregad o, o das
re lações pessoais ( redes eg ocentrad as) , m as focal izam os, por força de
nossa preocupação com a relação entre ação coletiva e cidadania,
exclusivam ente as redes secu ndárias, entre grupos e organizações.
De forma puramente indicativa, faltando-nos o espaço para
explorar as modalidades de relação e as dificuldades e perspec tivas abertas
por e s ta s conexões , e l encam os a lgum as , en t idades q ue t r aba lham em
parcer ia , com os grupos es tudados:
(i) Entre os organism os interna cionais (multilaterais ou não-govema m entais)
que figuram c omo parceiros ou financ iadotes de um ou m ais dos grupos
es tudad os , podem os c i ta r : a Visão Mundia l , a Un icef , a Terra d os
Homens Suíça), a EZE Alemanha), a Fundação MacArthur, a
Inte rm ón (Suíça) , a Com un idade Européia , a Novib (Holanda ) , o
Serviço de Cooperação Alem ã (DA D), a Cár itas e a Igreja Unida do
Canadá
Sobre esta dist inção entre visibi lidade e latência. cl
. Melucci 1989:70-79 205-206; 1996:113-
117; Buri ly 1999a .
cad.Est.soc.Recife, r.17,
tU
p.189-228. fui/dez.. 2001
7
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dentidade e m últiplo pertencintento nas práticas ass ociativos locais
ii)
Entre os organismos nã o-governam entais e privados n acionais , contam -
se a Rede Nacional Fem inis ta de Saúde e Direitos Reprod utivos e
Sexuais, o Fórum de M ulheres de Pernam buco, o Cen tro Social Urbano
da Vila da Cohab Ca bo) , Art iculação de Entidades da Zona da M ata
Sul, a Federação de Órgãos para Assi stência Socia l e E ducaciona l
Fase), a Associação B rasileira de Organ izações Não-G overnam entais,
a Rede Estadual de Combate à Exploração Infanto-Juvenil, o
M ovimen to Pró-Educação , a Rede Estadual de Direitos Human os de
P ernam bu co , a Rede de M u lhe re s La t ino-A m er icanas , o C onse lho
Britânico, a Rede Latino-Americana de Combate à Violência
Dom éstica e Sexual, o Centro de Estudos e Ação Social-Rural CE AS-
Rural) , Sindicatos Rurais , a Articulação Aids P erna m buco, etc.
iii)
Vários o rganism os gove rnam entais t am bém são incluídos nes tas
parce r ias : o Prog ram a de A tenção In tegral à Saúde da M ulher , os
C onse lhos M unicipais, as Prefeituras M unicipais do Recife e do Ca bo,
o Serviço Nacional da Indús t r ia Senai), o Program a Com unidad e
Sol idár ia , o Progra m a Saúde na Fam ília , a Co m issão E s tadual de
Erradicação do Trabalho Infantil . o Ibama, aAssembléia Legislativa,
a Cruzada de Ação Social, a Emater, a Secretaria da Educação
Estadual, o C onselho Es tadual de Educação , e tc .
2.2 O espaço híbrido: entre o público e o privado práticas
tradicionais e novas
M uito se fa la hoje , en t re a to re s da so ciedade c iv il, no ca rá ter
híbrido d es te espa ço público que se ab re entre o e s tatal e o n ão-es tatal .
As p r im eiras fo rm ulações de s ta idéia pa recem rem ontar a aná lises pós -
68, que viam na em ergência do s m ovimen tos culturais e so ciais de então
a t ranspo sição d a fronteira do espa ço público pa ra al i colocar questões
da vida privada , do co tidiano cf. Touraine. 1977; G razioli e Lodi, 1984).
Estas discussões foram complementadas pelas teorias dos novos
m ovim en tos soc ia is , com a ên fase dada à c rescen t e im por tânc ia dos
processos de construção da identidade na sociedade avançada cf.
M elucci , 1980; Co hen, 1985; Laclau e Mo uffe, 1989). Esse esp aço soc ial
8
od.EstSoc.Recife v17 ai p. /89-228. fui/dez. 2001
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bani/do A. Burily
em ergente definiria, para Me lucci (1996:30 7-312)
, três características
essenciais às mo bilizações qu e o atravessam:
i)
globalidade -
busca de recom por na sincronia de um a experiência
cot idiana a com part im entação das esferas de valores e prát icas da
sociedade m oderna. Rec usa de respeitar rigidamen te a fronteira entre
o público e o privado, o íntimo e o co mp artilhado , o cultural e o político,
o subjetivo e o o bjetivo, me smo que pa ra isso tal globalidade pareça
retomar traços dos c onflitos pré-industriais, envolvend o com unidades
campesinas ou controvérsias religiosas
14.
Segundo M elucci,
tendo p erdido seus ti-aços absolutos, a globalidade
focaliza-se no presente; funciona como fator
agregador de curto prazo, é sem pre renová vel. D e
form a sim ból ica, e la indica ques tões s istêm icas
gerais atravé s do pai-ticularism o do tem po e lugar
de ações sociais concretas. E la se adéqua e coabita,
ademais, com aquele sistema de múltiplos
pertencimentos gerado pela com ple-xidade, em que
atores passam de um a associação a outra, de um a
rede a outra diferente, sem com prom etei-em-se em
definitivo com um grupo específico ou com um tema
específico
(1996:308, grifos meus).
ii)posicionam ento dentro-fora do sistem a de represen tação,
tomando
cada ve z ma is problemático distinguir entre centralidade e exclusão,já
que h á inegav elmente um resultado das lutas das décadas de 1970 /
1980 em termos de m aior acesso de grupos marginalizados à cidadania
As m esmas ca racteríst icas aparecem quase l i teralmente no texto mais ant igo de G raztolt e Lodi,
publ icado na obra colet iva coordenada por M elucci . em
1984
cf. Grazioli e Lodt,
1984:
p.292
ntretanto, em Melucci . há a lgum as mod ificações s igni ficat ivas. Pr imeiro, a g lobal idade já
se aplica aqui aos movimentos como tais e não, como t ios autores citados, restr i ta à construção
da identidade dos participantes. Para eles, afirmar a globalidade significaria agir como su bjetividade
integral e não co m base nos papéis definidos no processo produtivo e/ou nas norm as insti tucionais
Idem: p293 .
Em outras palavras, ta is m obi lizações com binam o caráter g lobalizante. d ir ig ido à sociedade
com o um todo, ou, nos termos d e Melucci, ao sistem a, com reivindicações locais e parl icularistas,
tal como nos m ovimentos prévios ao século dezen ove na Europa. Em nos so caso, é significat ivo
que a p resença de um com ponente rel igioso - insti tucionalizado ou difuso -, que avalia o sistema
como u m todo, mas atua localmente e a part ir de grupos muito precisos, seja um da do claramente
estabelecido na pesquisa.
cad.E st .soc.Rec;fe. v .17, n.2. p.189 -228 . fu i /dez., 2001
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Ident idade e m úl t ip lo pertencim ento nos p rát icas t lSS ociat i i OS locais
e ao sistem a de representaçã o de interesses. A ssim , as mobilizaçõe s
passam a se colocarem objetivos de alcançar algum espaço no
mercado político; ao invés da recusa radical da década de 1970
ressalta-se mais um reconhec imento dos limites da ação institucional e
sua utilização instrumental, oque toma permanente, mas freqüentemente
tensa a interação com o sistema partidário e as instituições
governam entais. Assim, os mov imentos trabalham para criar canais
de representação m ais congruentes com seu s atores, sem descartar os
oficiais, e assim eles se situam tanto dentro com o fora do sistema
político (Idem : p.309).
(iii)
continuidade coincidência entre identidade individual e identidade
coletiva
se torna mais complexa. De um lado a percepção da
diferença em relação ao de fora, é acrescida do reconhec imento da
diferença que atravessa internamente o ator coletivo. O s atores coletivos
devem levar em co nsideração as múltiplas, mutáve is e sobrepostas
relações de pertencimento qu e articulam a base de um movim ento
(Jdem:3 1 0). De outro lado, o múltiplo pertencimento é assumido com o
um a vantagem estratégica num a sociedade que continuamente redefine
fronteiras e dificulta a sobrevivência de configurações rígidas e
monolíticas, A diversidade interna é explorada com fins de facilitação
das dema ndas colocadas à esfera pública. As form as de organização
passam a refletir, assim, a transitoriedade de sua base social, os objetivos
com binam u niversalismo e localismo, a identidade é definida de modo
mais cultural do que estrutural, ou seja, mais em fu nção de posturas,
valores e decisões dos atores do que pela sua submissão ao lugar qu e
ocup am no sistema social/econôm ico (Idem : p.295-296 ).
Mais recentem ente, a que stão do espaço híbrido definido pela
fronteira público/privado tende a ser substituída pela ênfase na am pliação
do espaço público em termos da oposição estatal/não-estatal. Embora
haja u m certo paralelismo entre estes dois hibridismos, não se trata de
processos idênticos. Tanto se pode ter um a articulação entre ambos c omo
podem segu ir cam inhos distintos. O s partidários das novas técnicas de
gestão social inspiradas em práticas de mercad o qu ase só se ocupam da
segunda distinção enquanto que atores oriundos do campo dos
movimen tos sociais dos anos 1980 tendem a buscar um a articulação entre
ambas. V ejamos algum as percepções distintas a respeito.
Primeiro, uma relativa ao holismo das carê ncias, que ressalta o
par público privado. Da forma como este aparece na fala de alguns
entrevistados, observamos um curioso paradoxo, qu e no entanto está longe
2
ad.Es t .soc Rec i fe, v.17. n.2, p. 189-228, ju l .Idez. , 2001
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Joani/do A. Burily
de ser desconhecido nos meios populares: de um lado, o ativista social
nega muito de sua liberdade pessoal em favor do outro, da comunidade ,
mas assume um papel mediador de conflitos interpessoais e até de
aconselhamen to para indivíduos e fam ílias em crise. De ou tro lado, o
próprio espaço público local é capturado pelas dem andas de resolução
de conflitos que, no â mbito do cotidiano, freqü entemente dizem respeito a
situações privadas
desavenças entre m arido e mulher, violência de pais
sobre filhos, de homens sobre m ulheres, problemas financeiros
mas são
trazidos ao líder local. Sinal de reconhe cime nto de sua liderança - para
além d o caráter representativo, político—, esta prática aponta tam bém
para a ausência de canais formalizados para encaminhamento de diferentes
demandas.
Um segundo ponto se refere às parcerias e diz respeito ao
hibridismo da relação estatal-/não-estatal superpondo-se em alguns casos
à relação púb lico/privado. As parcerias vêm , pela sua intensificação,
contribuindo para definir um a trama de relações que m ostra de forma
eloqüe nte o hibridismo d o espaço púb lico - entre o público e o privado,
entre o estatal e o não-estatal e nos cruza men tos destas duas polaridades.
Um novo espaço social se vai definindo através da prática das parcerias,
apesar de não resolver um a série de problemas já antigos de assimetria de
poder, de definições inform ais ou não pactuadas livrem ente entre os
participantes de ganhos desiguais entre os parceiros relativos às
expectativas colocadas no processo.
Duas situações servem de catalisador para a formação de
parcerias, desde a perspectiva dos atores
não-estatais.
Em primeiro lugar,
o holismo das carências coloca sempre o m ovimento ou organização
popular diante de um hiato entre seus recursos (limitados) e o volume das
demandas, exigindo a busca de apoios e financiamentos para o atendimento
das reivindicações. Em segund o lugar, a mud ança no clima ideológico
(notadame nte em relação à oposição direita/esquerda) vem levando a um
maior pragmatismo das organizações com prometidas com m udanças
substantivas, na viabilização de suas demandas; ca uma mudança de atitude
face ao estado, não mais visto como o gato que pega o rato , como disse
um dos informantes. Esta mudança decorre certame nte da ampliação dos
espaços de cidadania e da implementação de políticas públicas com maior
participação dos setores sociais interessados, que passaram a vigorar após
a dem ocratização do estado, a partir da década de 1980, reforçando o
que dissem os no item (ii) acima. .No s dois casos, a conseqü ência é uma
m aior preocupa ção em buscar parceiros e dim inuir os custos da ação
coletiva.
CÜ d.ES LSO C.RC CIJe. v .17 n.2 p.189-228 juL/dez. 2001
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Ident idade e m últ ip lo pertencim ento t ios prát icos ass ociat ivas tocais
As pam erias , ao m esmo tempo que aparecem como uma exigência
i rrecusável para a quase tota lidade dos g rupos, não são e xper imen tadas
acrit icam ente. Ainda há resistências localizadas à aproxim ação do e stado
e do mercado - um dos grupos, em Chão de Estrelas, recusa-se a se
regis trar junto aos órgãos públicos , em função da preservação de sua
autonomia. Há também lições tiradas de parcerias anteriores, que
recom endam atenção para as assim etr ias de poder e d iferenças de visão
com o eleme ntos dificultadores.
O reconhecimento da necessidade de parcerias é geral. As
parcerias são vistas com o um a forma de tom ar ma is eficiente a provisão
de serviços à popu lação, de conc retizar os objetivos do grupo e de evitar
a supe rposição de atividades idênticas. Vários inform antes qu estionaram
que a m ental idade predom inante tem s ido a de com preender a parceria
exclusivam ente em termos f inanceiros, o que tem levado a um a disputa
entre os l íderes com unitários onde q uer qu e haja recursos disponíveis sob
esta modalidade, havendo desinteresse patente quando se trata de
parce r ia s em que o e lem en to f inance i ro não é t ão im por tan te ou e s tá
ausente.
M as as reservas são várias. Apon tam -se as desigualdades de poder
entre os parcei ros , as parcer ias sem contrapart ida efet iva, as br igas por
espaço e visibilidade no interior da própria parceria, ou, com o já referim os,
o entendimento pu ramente f inanceiro da formação de parcer ias . Um dos
part ic ipantes , af irm ou que é fundam ental fazer parcerias , em bora haja
parceiros que co nstam só no pa pei, mas não atuam , dificultando o trabalho
- desestimulando o g rupo, que fica tendo que esbarrar a cabeça n a parede,
mas até ela quebrar e a gente conseguir passar . Outro participante
ressal tou que não deve haver orgulho, auto-eng randecim ento, porqu e é
um t raba lho pa r t ic ipa t ivo . Ass im , cada um dent ro de sua á rea , da sua
possibilidade, da sua boa vontade, contribui positivamente para o
engrandecimento de todos , sendo preciso respeitar os direitos dos
outros .
Outra adver tênc ia , par t ida de um a ONG do Ca bo, se refere à
necessidade de distinguir tipos de parcerias e de se negociarem
previamente, se possível botando no papel , as atribuições e as
recompensas de cada parceiro. Segundo esta posição, há um núcleo
m ínimo de va lores e obje t ivos que cor responde à iden t idade de cada
grupo e não po de ser negociado, m as há um a série de outros pontos que
são passíveis de n egociação.
ad.Es/.Soc.R cei fe. v .17 n.2. p. 189-22 8. ju l . /dez.. 2001
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Joani ldo A. B uri ty
2 3 Redescrição da experiência cotidiana da cidadania:
a articulação direitos/serviços
Um dos nossos problemas de pesquisa referia-se a superposição
d represent ção de cid dão pel de consumidor de bens e serviços
(ma teriais e sim bólicos), num a sociedade qu e se pretende regular por
um a lógica estrita de me rcado e por um a concepç ão individualista de
necessidades e da interação social. D e acordo com C anclini,
[n]um
tempo
em que as cam panhas eleitorais se mudam dos comícios para a televisão,
das polêmicas doutrinárias para o confronto de imagens e da persuasão
ideológica pa ra as p esquisas de m arketing, é coerente nos sentirmo s
convocados como consumidores ainda quando se no s interpela com o
cidadãos (Canclini, 199 5: p.l 3-14 ). O que já introduz um elemento inicial
de tensão n s rel ções entre cid d ni e consumo como form s de
pertencimento.
O ra, se a escolha e a apropriação de bens se dá a parti r de um
contexto valorat ivo de base n ão so m ente individual , mas coletiva ou
pública, que d efine ainda lugares e forma s de apreciação a os sujeitos
imersos neste processo, ser cidadão não tem a ver apenas com os direitos
reconhecidos pelos p relhos est t is p r os que n scer m em um
território, m as tamb ém co m a s práticas sociais e culturais que dão sentido
de pertencime nto, e fazem com que se sintam diferentes os que possuem
um a m esma língua, formas sem elhantes de organização e de satisfação
das necessidades (Idem : p.22; cf. tb. Telies, 19 94 ).
Esta questão não foi explorada de forma abrangente na pesquisa,
o que significaria investigar padrões de gosto e consum o, inserção e m
iniciativas de defesa d o consum idor, etc. Nos interessava particularme nte
a fronteira entre a representação do cidadão com o portador de direitos
v i s à v i s
o estado e a idéia de um acesso e fruição d e bens públicos de
form a passiva ou desconectada de um po sicionam ento face à natureza
das políticas implementadas.
Percebe-se assim duas orientações básicas. Primeiro, a oferta de
serviços e a preocupaç ão de gerar experiências produtivas para geração
de em prego e renda p or fora das práticas convencionais de m ercado,
articuladas à satisfação de outras nece ssidades m ateriais ou im ateriais,
como a pou pança para (auto)construção da m oradia (M ovimento de Vila
C laudete), a socialização de idosos, mulheres e a forma ção de adolescentes
Cczd.Est.Soc.Reci fe. v i 7 n.2 .189-228. fu i/dez. 2001
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dentidade e mú ltiplo perrencitnento nas práticas asso ciativos locais
(Lar São L ázaro, Grupo Esperança, Centro das M ulheres do Cabo, Igreja
Batista do C abo), a complem entação d a renda familiar (Igreja Batista,
SER TA , Centro de O rganização Com unitária) , a melhoria das condições
de saúde e alimentação da população Igreja Batista; Centro de
Organização Comunitária). Aqui o tema do consumo aparece sem
vinculação direta com alguma questão de orientação de polí tica púb lica
(como fica explicitada na formulação d o problem a acima). Trata-se da
geração d e nova s prát icas de consum o relacionadas s imb olicamente à
cidadan ia sob a forma de conq uistas à margem d a presença ou nã o da
ação e statal. Ou seja, as experiências vão sen do g estadas a partir de um
diagnóstico de que não é possível mais esperar pela provisão estatal nem
pela regulação do mercado p ara a satisfação d as necessidades e carências,
e que isto pode ser feito dentro de uma outra lógica, colaborativa,
participativa, solidária, mesmo qua ndo parte da s ações se dá no s espaços
do estado ou do mercado: as parcerias são, aqui, um interessante
indicador.
Um a segund a orientação refere-se à despolitização da provisão
social que tem lugar com a rede finição do perfil das po líticas públicas,
rumo a um a maior parceria entre estado e mercado , ou à introdução de
uma lógica empresa rial na po lítica estatal - sob a forma do gere ncialismo,
da bu sca de eficiência (relação custo-bene ficio; oferta-demanda; satisfãção
do cliente/consumidor) e de resultados (comp atibilidade entre ob jetivos e
impacto final, monitoramento e avaliação de p rocessos), introdução de
exigências de contrapa rtida do s ben eficiários, inclusive quanto à cob ertura
de parte do custo do bem, em alguns casos. Como conseqüência, o
cidadão passa a relacionar-se com o estado como contribuinte ou como
consum idor . Ao pa gar seus impo stos, tem o direito de reivindicar bens
e serviços públicos de qualidade e em oferta com patível com a deman da.
Ao fruir tais bens e serviços, deve ficar satisfeito com a provisão e po der
reclamar seus direitos qua ndo se sentir insatisfeito, através do s canais
competentes.
Uma que stão relacionada a esta da superposição da representação
de cidadão pela de consumidor, mas colocando-se num plano normativo
dentre os no ssos problemas de pesquisa , é a de como comp atibi lizar a
concepçã o l iberal do sujeito com o po rtador de d ireitos universalmente
vál idos a serem assegurad os/protegidos das int rusões dos ou tros e do
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ad.EsrSocRecife. t .17, n.2, p. 189-228. fui/dez., 2001
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Joanildo A
uriiy
Estado com a concepção cívico-republicana que acentua a participação
na esfera pública com o valor e condição da democracia .
Na análise destes dois problemas, podem os concluir o seguinte.
No âmbito da ação coletiva local percebem os um a articulação entre
cidadania liberal, cidadania particípativa e um entendime nto m ais recente
de um a cidadania de serviços. A primeira, como se sabe, está referenciada
no acesso a e gozo de direitos de base individual, assegurados pelo Estado,
com o proteção ao cidadão. A segun da, na responsabilidade do indivíduo
pelos destinos d comunid de polític e n v li ção d robustez e
legitimidade do sistema político ou da organizaçã o segundo a medida em
que estimula e assegura a p articipação de todos os im plicados. A terceira,
fruto das novas orientações ideológicas da década de 1990— crise da
polít ica de esquerda e avanço de valores com petit ivos e de m ercado,
dentre outras—, tende a circunscrever a dema nda por cidadania