Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Joinville - SC – 2 a 8/09/2018
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Cavalheirismo não é Gentileza: elucidações sexistas no pensar
contemporâneo da dança de salão1
Ilana Taya I. Majerowicz2
Paola de Vasconcelos Silveira3
Universidade Paulista de Artes, São Paulo, SP
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, RJ
RESUMO
Este artigo é um recorte da pesquisa teórica e prática que colaboramos a respeito das
estruturais da dança de salão, baseados na manutenção da hierarquia de gênero.
Utilizaremos de aspectos históricos advindos do amor cortês, que estipulou a relação
“cavalheiresca-amorosa” nos papéis de cavalheiro e dama. O principal objetivo é fazer
uma leitura crítica sobre a história do cavalheirismo, de maneira a elucidar suas condições
nocivas e presentes na dança de salão. Propomos ao final uma subversão dos paradigmas
de dominação, a partir da dança de salão contemporânea, que propõe uma nova técnica
de condução-resposta, a qual possibilita um protagonismo de ambos os participantes e
instaura outras formas de relação entre os corpos. É importante esclarecer que não se trata
apenas de dança, mas de uma cultura popular que constitui e é constituinte da política e
economia social.
PALAVRAS-CHAVE: Estudos de gênero e sexualidade; dança de salão; cavalheirismo;
amor cortês.
Introdução
As práticas sociais de par, nomeadas como dança de salão, são compreendidas
predominantemente quando em nível profissional como atividade esportiva e/ou
competitiva4 e em nível amador como incentivo ao bem estar e socialização, assim, se
pospõem suas potências estéticas, pedagógicas e políticas - áreas de repertório teórico
crítico que partiremos nossa pesquisa. Além da lenta progressão acadêmica da dança de
1 Trabalho apresentado no GP Estéticas, Polítias do Corpo e Gênero XVIII Encontro dos Grupos de Pesquisas em
Comunicação, evento componente do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2Graduanda de Licenciatura em Dança pela Faculdade Paulista de Artes. Associada a Federação de Arte-Educadores
do Brasil, e-mail: [email protected]
3 Doutoranda em Artes Cênicas na UNIRIO (bolsista CNPQ), Mestre em Artes Cênicas e Licenciada em Dança pela
UFRGS. Professora e dançarina de Tango e Dança de Salão e-mail: [email protected]
4 A Dança de Salão foi reconhecida como Esporte Olímpico pelo Comitê Olímpico Internacional em 1997,
sendo renomeada como Dancesport ou Dança Esportiva. Ser esporte olímpico não significa estar dentro
dos Jogos Olímpicos, mas é o primeiro passo para que a Dança Esportiva participe, e se pretende atingir
esse objetivo. Disponível em: <http://www.todomundovaidancar.com.br/noticias/67-geral/165-a-danca-de-
salao-e-esporte-olimpico.html> Acesso em 13/06/2018.
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salão que resulta em um “certo anacronismo com relação a outras modalidades de dança,
pois foi pouco atingida pelos movimentos sociais e artísticos de liberdade feminina e
LGBT” (POLEZI; VASCONCELOS, 2017, p.68), a prática corporal também se mantém
conservada como nos primórdios palacianos, afirmando a rigidez nos modos de agir e ser
respectivos para o homem e para a mulher, conforme a estrutura consolidada de
condução-resposta.
A técnica tradicional acontece em casal e se desenvolve a partir de um condutor e
um conduzido - cavalheiro e dama respectivamente - funções estabelecidas
ordinariamente desde o primeiro dia de aula, sendo o homem incumbido pelo papel de
propositor, enquanto a mulher apenas aguarda o comando para agir de acordo com as
regras de cada movimentação. A dança de salão contemporânea é uma abordagem prática
e teórica que vem se consolidando nos últimos anos a partir de propostas feministas,
LGBT, queer e mobiliza profissionais5, alunos e praticantes de todo o Brasil a
compartilharem experiências machistas e opressoras vivenciadas em aulas, bailes e
eventos, assim, promovendo interferências políticas a partir do corpo. Entendemos por
contemporâneo “ser capaz de perceber a própria época por meio de um distanciamento
crítico, mas saber, ao mesmo tempo, que se pertence a ela (e se atua nela)
irrevogavelmente.” (AGAMBEN, 2009, p.59).
Mesmo com adesão de grande parte de nossos alunos ainda é discrepante o
público que atingimos em relação a massa da cultura tradicional, que em parte
desqualifica nossa atuação como dança de salão, pois propomos técnicas de condução não
pautadas na binaridade de gênero, na estética rígida de movimentos ou qualquer
paradigma hierárquico e nocivo. Decidimos porém resistir, pois enxergamos a urgência
de intervir nesta cultura tão influente.
Este artigo contextualiza a ancestralidade europeia aristocrática e patriarcal que
se corporifica nos padrões estéticos da dança, pretendendo desromantizar o trato
“cavalheiresco-amoroso” distinguindo-o da gentileza, através de explanações e análises
de cantigas do contexto trovadoresco e interrogações de Georges Duby, sobre a
5 Destacamos que diferentemente do cenário tradicional onde os professores homens possuem maior
reconhecimento, o movimento da Dança de Salão Contemporânea tem sido pautado majoritariamente por
mulheres. Enfatizamos os trabalhos das professoras Carolina Polezi (Campinas); Anna Turriani (São
Paulo); Laura James (Belo Horizonte); Débora Pazetto (Belo Horizonte). Além disso, há também a atuação
de Samuel Samways (Belo Horizonte) e da companhia Dois Rumos Cia de Dança (São Paulo), entre outros.
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organização dos poderes e das relações sociais. Entendemos que as danças regionais
brasileiras possuem diversas origens, como africanas e indígenas, mas não
aprofundaremos essa perspectiva aqui, pois é clara a contaminação européia no caráter
sexista da dança de salão, sendo esse nosso foco de pesquisa.
Amor cortês e a concepção de cavalheiros e damas
O chamado amor cortês exacerba a heterosexualidade como “uma paixão natural
que nasce da visão da beleza do outro sexo” (CAPELÃO, 2000, p.6), denominado como
forma verdadeira de amar difundida pelos trovadores medievais do século XII, a partir do
movimento poético e literário que serviu inicialmente nas cortes da França como fonte de
controle e pedagogia das normas comportamentais definidas por gênero. Neste período o
clérigo francês André Capelão foi quem redigiu em latim - com sabor escolástico - o
Tratado de Amor Cortês, uma espécie de manual descritivo de etiqueta para homens e
mulheres dentro de uma ética feudo-vassálica, além de tantos outros que reafirmaram
essas regras de “civilidade”, elaboradas para educar o homem de corte, “o cortês”,
distinguindo-o do “plebeu”, o rústico.
A ética baseada na cortesia estabelece ao homem uma relação de vassalagem
frente a mulher, dando início ao código “cavalheiresco-amoroso”, que coloca
figuradamente a dama em uma posição ainda mais alta que a de um suserano,
transformando-a em objeto de desejo inatingível. Maior parte dos materiais acadêmicos
disponíveis sobre a temática romantizam este trato essencialmente machista, bem como
na dança de salão, abordaremos então uma leitura crítica contemporânea desmascarando
a objetificação do corpo feminino por detrás desta apologia, que priva-a de atuar na
sociedade - ou na dança - e reduz seu papel ao âmbito privado, também monitorado.
O novo habitus demarcou o ideal de comportamento romântico como um jogo
conflituoso do amor, segundo Georges Duby (1997), historiador francês, corresponde a
um torneio que exaltava os valores viris, atiçando o prazer do homem e disciplinando-lhe
a libido, através de regras para avaliar sua atuação. O sentido da honra cavalheiresca é a
competição ao prêmio do corpo feminino, que se coloca ausente de desejo e que deve
ceder ao homem que desempenha melhor o papel do cavalheiro - forte, corajoso,
soberano, dominador e responsável pela mulher: frágil, doce, submissa, sensual e
obediente. Competição desencadeadora do ciúmes, para Capelão (2000), na regra II de
seu tratado o autor menciona que quem não tem ciúmes não pode amar. Essa crença
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errônea e deturpada, até hoje se faz presente, especialmente em relações abusivas6.
‘Enciumado’, ‘inconformado com o término’, ‘descontrolado’ ou até ‘apaixonado’ são os
adjetivos que figuram com frequência nas manchetes da imprensa todos os dias para
justificar crimes bárbaros. Na pesquisa quanti-qualitativa de Queiti Oliveira et al. (2016)
que investiga como questões de gênero permeiam a violência física no namoro entre
adolescentes, realizou-se inquérito epidemiológico com 3.205 adolescentes e constatou
que ciúme e infidelidade são vistos como fatores que legitimam e justificam as agressões
físicas entre namorados, pois acredita-se que a violência é parte da construção da
masculinidade.
Duby (1989, 1995, 1997, 2001) interrogava-se sobre as correspondências entre o
que esse tipo de romance expõe e a verdadeira organização dos poderes e das relações
sociais. Encontra-se no Tratado de Capelão uma codificação da arte de amar, que indica
como deve agir a mulher:
Uma mulher que tem alguma virtude não deve ceder depressa demais
aos desejos de um enamorado, pois, caso se entregue afoitamente,
despertará o desprezo dele e depreciará o amor que ele por tanto tempo
desejou; ao passo que, se contemporizar, purificará os sentimentos que
ele nutre por ela, se forem fingidos, e os livrará de tudo que possa
destruí-lo. A mulher deve, pois, descobrir as virtudes de seu pretendente
a partir de numerosas provas (CAPELÃO, 2000, L. I, p. 179-180).
Duby (2001) relaciona esse jogo amoroso como uma forma de forjar a relação de
poder, compara com a figura do caçador perseguindo sua presa, que se esquiva para
dificultar o processo, aumentando o prazer no ato da captura. Os discursos ainda regulam
os impulsos da mulher, contendo-a sobre atitudes que demonstram interesse. Filmes e
programas que circulam as mídias de massa desvalorizam aquela que cede aos próprios
desejos no primeiro encontro, recomendando-a uma postura mais “respeitosa” e
resguardada. Na dança de salão, por exemplo, é apenas o homem quem escolhe as damas
que quer dançar, essa, que por falta de autonomia não convida outras pessoas,
6 As relações abusivas são também presentes entre parceiros de dança de salão, em 2014 houve uma ação
de ex parceiras de um professor que se manifestaram em depoimentos na internet relatando abusos morais,
físicos e financeiros. Professor este descrito como cavalheiro e divertido no início, que posteriormente
depreciava as mulheres que trabalhava, humilhando, desencorajando e provocando concorrência entre elas.
Disponível em < http://daringtodance.com/depoimentos/ > Acesso em 09/07/2018.
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principalmente as com menos experiência ou mais velhas, recorrendo muitas vezes ao
serviço de personal dancer7, pois são as menos requisitadas.
É na verdade um jogo operado pelo homem, com traços perfeitamente misóginos,
em que a figura feminina é um engodo, manipulada pelo marido que domina as regras
enquanto chama isso de exaltação e valorização da mulher. Como escreve Arnold Hauser
(1998): “A cortesia requer que a mulher se mostre fria [...]. A atitude cortesã e
cavalheiresca é de infinita paciência e abnegação do homem, envolvendo a extinção de
sua própria vontade [...].
É neste contexto patriarcal que se sustentam os termos e ideologias de dama e
cavalheiro, firmados no vocabulário da dança como posições polidas, civilizadas e
domesticadas para reprimir pulsões e serem aceitos na cultura, sem dar atenção às
frustrações sexuais, sentimentais e sociais. Assim, por mais que não possamos generalizar
atitudes, esse cenário é bastante presente, e a prática de dança de salão acaba sendo uma
proposta edificadora desses papéis.
Dança de salão: a corporeificação das normas de gênero
As danças camponesas praticadas no início do século XV, desenvolviam-se em
danças de pares praticadas em ocasiões comemorativas, registradas na obra Festa
Camponesa do pintor flamengo, Pieter Brueghel (1525-1569), "aos poucos essas danças
transferiram-se para os castelos feudais na França e na Itália e foram se transformando,
ao longo dos séculos XV e XVI, nas chamadas danças de corte" (SILVA, 2005, p.85),
separando-se das danças populares e folclóricas, muito embora continuassem a
influenciar-se mutuamente, tendo em vista a nobreza como modelo hegemônico.
Durante o Renascimento não tinha-se uma nação unificada, mas um conjunto de
estados em conflito, as danças e festas dos palácios, por um sentido foucaultiano, eram
mecanismos de soberania política e econômica, de competição e exibição de poder entre
os estados, penetrando as relações corporais que definiam os corpos, a sociedade e a
cultura. Os espetáculos lembravam o que entendemos hoje como baile noturno de dança,
“significativamente as próprias formas da dança de salão já eram por 1500 bastante
7 O personal dancer em geral são homens que cobram por dança ou acompanham durante toda a noite as
damas que não se sentem contempladas com os bailes, a saída para poder dançar é então se sujeitar a
pagar por um serviço particular.
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cuidadas, dado que o mestre de dança devia estabelecer padrões de etiqueta e de
comportamento” (ANDERSON, 1978, p.15). Foi na Itália onde surgiram os primeiros
mestres da dança, responsáveis por ensinar os bons costumes, Domenico de Piacenza
escreveu em 1400 o mais antigo tratado de dança européia que chegou até nós, assim
como Thoinot Arbeau, pseudónimo de um padre secular francês que estabeleceu o tratado
de dança intitulado Orchesography, datado de 1588, ambos próximos dos protocolos
ensinados em aulas ainda hoje.
As mulheres tinham permissão para integrar apenas as danças de salão - interesse
de galanteio masculino. Já “os papéis femininos nos espetáculos baléticos eram
habitualmente representados por homens ou por adolescentes” (ANDERSON, 1978,
p.16), pois acreditava-se que as mulheres não conseguiriam cumprir com os passos mais
elaborados8, atuação prática da concepção trovadoresca da mulher inatingível, uma
dissimulação à impossibilidade de desempenhar cidadania participativa.
Luís XIII (1601-1643) assumi efetivamente o poder no ano de 1617, apreciava
muito os balés e embora lhe fossem atribuídos papéis dignos e adequados [...] diz-se que
preferia as partes cômicas e que gostava de interpretar papéis femininos (ANDERSON,
1978, p.21), representados com tom burlesco e caricato. A ridicularização do papel da
mulher acontece hoje quando dois homens - aparentemente “desconstruídos” - dançam
juntos, mas não rompem com os papéis estéticos de gênero estabelecidos, então aquele
que cumpre com a função de “dama” escracha os movimentos e exagera na interpretação
dos “enfeites” e “charmes”9 da mulher. Neste contexto a comicidade é nociva, uma ironia
que menospreza e caçoa do corpo feminino, além de declarar que não existe a
possibilidade de dois homens dançarem juntos oficialmente.
Um dos tipos de poder que Foucault (1997, 2008) aborda em suas análises é o
poder de soberania, que vincula soberano e súdito, pela obediência. Superficialmente, um
ato firmado entre o soberano que concede privilégios, ajuda e proteção, e alguém que, em
compensação, retribui esses favores com empenho e trabalho. Pode-se aplicar essa ideia
8 A desculpa de que a estrutura genética feminina é mais “fraca” persiste até hoje, restringindo sua atuação
na dança de salão, porém, além de existirem padrões físicos variados entre homens e mulheres a condução-
resposta não depende de força, mas de técnica. Na dança de salão contemporânea utilizamos de estudos do
Contato Improvisação que permitem inclusive levantamentos independente de força ou tamanho. 9 Charmes e enfeites são movimentos tradicionais da dama que servem de adorno aos passos. Elas possuem
a autorização de utilizar-los se a condução do cavalheiro lhe der tempo e espaço, sem atrapalhar o
movimento principal e apenas enfeitando a dança, em outras palavras, sexualizar e reduzir o sentido do
corpo feminino, à serviço de agradar o desejo masculino.
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ao ato do cavalheiro de conduzir a dama, proporcionando-a uma “oportunidade” de
dançar, e em troca ela obedece aos comandos de dança, que se expandem para as relações
cotidianas.
Os rituais e cerimônias, gestos, hábitos, obrigações de comprometimento, sinais
de respeito, entre outros, são o que Foucault (1996) denominou de “reatualização”, que
fazem a manutenção dessa relação de soberania, assim, até hoje se preserva a hierarquia
palaciana dentro da dança de salão. De acordo com isso, o filósofo francês aludiu que:
A corte tem essencialmente como função constituir, organizar um lugar
de manifestação cotidiana e permanente do poder monárquico em seu
esplendor. No fundo, a corte é essa espécie de operação ritual
permanente, recomeçada dia após dia, que requalifica um indivíduo, um
homem particular, como sendo o rei, como sendo o monarca, como
sendo o soberano. (FOUCAULT, 1997, p. 209-210).
É compreensível que neste ambiente a dança tenha se prosperado, preservando
figuras instituídas, aristocráticas, afirmando valores herdados da construção de poder
entre classes e gêneros trovadorescos, tanto no balé quanto na dança de salão, refletindo
diretamente na conduta pública e privada, até hoje.
Sexismo benevolente e sexismo hostil: poderes de um cavalheirismo ambivalente.
A atitude de discriminação dirigida às mulheres fundamentada pelo sexismo,
Segundo Ferreira (2004), seria resquício da cultura patriarcal, isto é, um instrumento
utilizado pelo homem para garantir as diferenças de gênero, sendo legitimado por atitudes
de desvalorização do sexo feminino que vão se estruturando ao longo do curso do
desenvolvimento, apoiadas por instrumentos legais, médicos e sociais que as normatizam.
Para demonstrar a ambivalência do cavalheirismo de maneira didática escolhemos
por analisar duas cantigas do amor cortês, considerando que o tema central -
cavalheirismo - se bifurca conforme o comportamento da mulher perante as normas
concebidas a ela.
Imagem 1: Cantiga de Bernart de Ventadorn (1150 - 1180):
Excelente senhora, nada vos peço,
mas que tão somente me tomeis como vassalo;
e haverei de servir como (serviria) a um honrado suserano, por qualquer recompensa que fosse. [grifo nosso]
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Trazeis-me inteiramente sob vossas ordens,
coração liberal e elemente,
criatura graciosa e cortês [...]10
Imagem 2: Cantiga de Guilherme de Aquitânia (1071-1127):
Farei um verso, pois tenho um sonho.
Vou-me e estou ao Sol.
Há damas com maus propósitos,
e sei dizer quais:
são aquelas que o amor do cavaleiro
levam a mal.
Não comete pecado mortal a dama
que ama o cavaleiro leal;
mas se ela ama o monge ou o clérigo,
fá-lo sem razão:
pela Justiça deveria ser queimada com um tição. [grifo nosso] 11
A cantiga de Bernart retrata o lado benevolente de exaltação à mulher,
elegantemente colocando-a no centro das atenções, em contexto de flerte e galanteio
cortês: papel estabelecido ao homem. Uma cantiga de amor da Idade Média, em feitio de
declamação do amante afirmando “submissão” e vassalagem à sua amada. Butler (1990)
propõe um efeito de consolidação de poder por meio da subjetivação, relacionando
intersecções de Hegel, Freud, Nietzsche, Lacan e Foucault, que explicam a ambivalência
como sujeição psíquica em termos dos efeitos produtivos e regulatórios do poder que
fazem a mulher aceitar e até mesmo exigir o cavalheirismo, convencendo-a da própria
inferioridade, pedindo por proteção, condução e tutela de um homem.
Na cantiga de maldizer de Guilherme temos a descrição de uma mulher
“desobediente”, que não segue as normas de comportamento aristocrata, habitus social
que definiu que o amor cortês não era permitido para homens de qualquer nível social,
mas aos cavaleiros, portanto, essa dama não merece o direito de vassalagem de seu
marido, é então recompensada com o sexismo hostil, que condena os “maus propósitos”
10 SPINA, Segismundo. Apresentação da lírica trovadoresca. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1956.
p.56-57. Apud: BARROS, José D’ Assunção. A Gaia Ciência dos Trovadores Medievais. Revista de
Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC. p.83-110, Abril e Outubro de 2007, p.87. 11 GUILHERME DE AQUITÂNIA, Poema V de Guilherme de Aquitânia (1071-1127). Organização,
Tradução e Notas de Ricardo da COSTA. <http://www.ricardocosta.com/> acessado em 10 de julho de
2018.
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de se amar um monge ou clérigo. Esse pensamento aplicado à esfera pública dominada
pelos homens, mata. O Mapa da Violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil revela
o peso do feminicídio íntimo – aquele cometido em contexto de violência doméstica – no
quadro da violência letal praticada contra as mulheres, metade dos 4.762 homicídios
registrados em 2013 foram cometidos por familiares, ou seja: das 13 mortes violentas de
mulheres registradas por dia, sete feminicídios foram praticados por pessoas que tiveram
ou tinham relações íntimas de afeto com a mulher, sob os parâmetros da Lei Maria da
Penha. Só recentemente o feminicídio passou a ser incorporado às legislações de diversos
países da América Latina – inclusive do Brasil, com a sanção da Lei nº 13.104/2015, que
visa tirar essas raízes discriminatórias da invisibilidade e coibir a impunidade.
Transpondo o contexto da Idade Média para a nossa contemporaneidade é possível
perceber que este cenário persiste, desencadeador da cultura do estupro, isto é, um
ambiente que banaliza, legitima e justifica a violência contra a mulher, isso acontece pela
disseminação da ideia de que o valor da mulher está ligado às suas condutas morais e
sexuais e o valor do homem não. Um conjunto de práticas que vigiam, manipulam,
censuram o comportamento e dilaceram o corpo feminino (mulheres trans e os demais
que se aproximam das identificações de “feminilidade”, como travestis e alguns homens
gays também são descriminalizados neste sentido), uma cultura que estereotipa o
feminino em objeto passivo de posse masculina, estimulado pelas mídias de massa e por
atividades culturais - como a dança de salão tradicional - a partir do ato “cavalheiresco”,
que a essa altura pode ser entendido como um mecanismo de controle da obediência das
mulheres, como propõe o Inventário de Sexismo Ambivalente, desenvolvido
originalmente por Glick e Fiske (1996), adaptado e validado para o Brasil por Formiga e
colaboradores (2002), avaliando preconceitos assumidos nestas duas dimensões do
sexismo: hostil e benévolo.
O sexismo hostil, que inclui agressões físicas, psicológicas, morais e econômicas
representam o castigo para quando acontece resistência ou mau comportamento da
mulher, desviando da tutela masculina. Argumentos ainda frequentes afirmam que a
mulher com roupas curtas - por desviar da conduta respeitosa - pede e merece ser
estuprada. É comum ainda que a imprensa utilize uma espécie de régua maniqueísta para
medir os graus de ‘culpa da vítima’ e do agressor, pautados nestes valores lesivos de
comportamento estabelecidos por homens. Na dança de salão, aquela que busca espaços
para se expressar é taxada de “dama rebelde” e é evitada. O sexismo benevolente é a
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recompensa positiva, romântica à passividade feminina, isso se fortalece a partir da
suposição de que as damas devem ser cortejadas, veladas, cuidadas e protegidas pelos
cavalheiros - como sugere o amor cortês - assim construiu-se socialmente a noção de que
mulheres são menos capazes de cumprirem com as funções sozinhas, ou seja, dependentes
e não autônomas, necessitadas de um complemento fálico. O mesmo princípio que negou
por muitos anos a atuação da mulher como cidadã.
O homem cavalheiro é ainda muito cultuado, essa manutenção acontece por falta
de esclarecimento de um contexto mais amplo e crítico, como propomos por meio deste
artigo, sendo o sexismo benévolo perigoso por sua sutileza, pois se os sexistas hostis são
facilmente identificáveis, os benévolos não o são e nunca se reconhecem como tal,
legitimando suas atitudes estereotipadas e preconceituosas (FORMIGA E COL., 2002),
mascaradas de gentileza, ato este que acontece indiferente de gênero ou classe, ação
genuína de agrado ao próximo, independente de desejo sexual ou instauração de poder. É
necessário identificar se a prática acontece motivada por uma ação que descapacita a
mulher, reforçando supostas inabilidades generalizadas, como acreditar e afirmar que as
mulheres desejam um homem para dançar12, usada como recurso para manter as mulheres
“em seu lugar” de inferioridade e submissão (VILHENA, 2009).
Considerações finais: proposta elucidativa à gentileza a partir do corpo
Nas pesquisas e análises percebe-se que a dança de salão exige mudanças em sua
estrutura, que dispensem imposições arbitrárias e regulamentação dos corpos, visando a
ordem heterosexual e patriarcal. Na proposta técnica de condução mútua e condução
compartilhada, além de romper com a estrutura binária que só permite homens dançarem
com mulheres em duplas (as danças podem acontecer com mais pessoas), diluí-se também
a hierarquia, pois não existe uma definição rígida de condutor e conduzido, nem mesmo
de alternância, mas as funções se mesclam mutuamente e todos passam pelas mesmas
etapas de aprendizado. Assim como descrever Débora Pazetto e Samuel Samways:
Os corpos, portanto, passam a ser compreendidos em suas
singularidades, como espaço de atravessamento de vontade, massa,
pensamento, peso, altura, emoção, intenção, e podem entrar em
diálogos nos quais o gênero não é um fator determinante na geração de
movimentos (PAZETTO; SAMWAYS, 2018, p. 176)
12 Nas aulas em que existe maior número de mulheres, aquelas que ficam sobrando esperam paradas até a
próxima troca de pares. Não é de costume motivar para que dancem juntas ao invés de esperarem, pois não
são ensinadas a conduzir e portanto entende-se que são incapazes de formarem uma dupla.
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Pode-se afirmar então que subvertendo os espaços ocupados por esses agentes
também modificam-se seus significados, propondo protagonismos alternativos aos
sujeitos, uma vez que uma nova conduta (FOUCAULT, 1995) está sendo disponibilizada
no lugar de regras socialmente impostas, expandindo as relações para além de interesses
sexuais. As propostas da dança de salão contemporânea, surgem então como esse desejo
de instaurar outras formas de dança, as quais estão em diálogo com a necessidade de
reinvenção dos modos de ser e estar no mundo. Ao invés de uma proposta linear de
condução, onde um detém o privilégio da informação e o outro deve receber e decodificar
em movimento corretamente, busca-se um corpo entre os dois estados de atenção, capaz
de criar e co-criar movimentos.
O suposto cuidado presente nessa noção de cavalheirismo que encarrega o
cavalheiro a tutelar a dama, por exemplo, ao protegê-la para que não esbarre em outra
dupla na pista, faz com que a mulher se sujeite a dançar apenas respeitando a condução,
ou seja, controle a partir da disciplina determinada pelo homem. No caso da dança de
salão contemporânea ambos são capazes de se responsabilizar pelo seu corpo e pelas
relações dele com o espaço. Não há regras que determinam que todos devem seguir um
fluxo como no salão tradicional13. A gentileza se instaura quando ambos os corpos se
sentem acolhidos e potentes ao dançar, protagonizando sua singularidade.
Atos de gentileza se fazem presentes porque inicialmente todos os participantes
respeitam a si próprios. Não há uma imposição de como a dança deve acontecer, e sim
um reconhecimento das condições em que o corpo se encontra, agenciando afetos e
desejos, atravessados pela percepção do outro. Sendo assim, é possível instaurar atos
políticos através do dançar quando desestabilizamos condutas normativas. Criamos a
possibilidade de vivenciar uma política do tocar engajada nos meios, ou seja, na potência
da escuta da respiração, do corpo, da distância e do aproximar-se de outro ser humano
(MANNING, 2006).
Contextualizar e ampliar a visão crítica para a dança de salão revela caminhos de
relações não hierárquicas e altruístas, que interferem na postura corporal e
consequentemente na postura social do indivíduo. Encerramos com uma afirmação da
antropóloga Gayle Rubin, que enfatiza a importância política dos nossos propósitos:
13 Nos salões de baile tradicional os casais realizam suas danças a partir de um fluxo comum. Todos devem
rodar a pista no sentido anti-horário, sendo que os cavalheiros são os responsáveis por essa visualização e
as damas dançam de costas para esse trajeto.
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Internamente, a esfera da sexualidade tem uma política própria,
desigualdades próprias e modo de opressão próprios. Como outros
aspectos do comportamento humano, as formas institucionais concretas
de sexualidade, em qualquer época ou lugar, são produtos da ação
humana. Estão imbuídas de conflitos de interesse e manobras políticas,
tanto deliberadas como fortuitas. Nesse sentido, o sexo é sempre
político. (1993, p.4)
Acrescentamos que o corpo é sempre político. Como arte-educadoras procuramos
aproximar as pessoas destes debates - que dizem respeito ao contemporâneo - aclarando
o direito por autonomia, pois “aprender é a maior prova da maleabilidade do ser humano,
porque, mais que adaptar-se à realidade, passa a nela intervir” (DEMO, 2001, p.47) para
que reconheçam e busquem seus direitos de atuação na sociedade.
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