UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DANA
DANA: MODOS DE ESTAR
PRINCPIOS ORGANIZATIVOS EM DANA CONTEMPORNEA
Thembi Rosa Leste
Salvador 2010
Thembi Rosa Leste
DANA: MODOS DE ESTAR
PRINCPIOS ORGANIZATIVOS EM DANA CONTEMPORNEA
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Dana, Faculdade de Dana, Universidade Federal da Bahia como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Dana. Orientadora: Profa. Dra. Fabiana Dultra Britto Co-orientadora: Profa. Dra. Cristina Magro
Salvador
2010
Thembi Rosa Leste
DANA: MODOS DE ESTAR
PRINCPIOS ORGANIZATIVOS EM DANA CONTEMPORNEA
Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Dana, Faculdade de Dana, Universidade Federal da Bahia como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Dana.
________________________________________________ Profa. Dra. Fabiana Dultra Britto (Orientadora) UFBA
________________________________________________ Profa. Dra. Cristina Magro (Co-orientadora) UFMG
________________________________________________ Profa. Dra. Maria Helena Franco de Arajo Bastos
________________________________________________ Profa. Dra. Lenira Peral Rengel
Salvador, 03 de Maro de 2010
AGRADECIMENTOS
Aos meus queridos e amados: Tomezinho e Canarinho. Pela fora de sempre da minha me: Nely Rosa. Por conviver com grandes amigas: Marg; Chris; Eva; L; Lcia; Renata; Dora; Papoula; Mnica; Pela ajuda super especializada da minha me acadmica: Cristina Magro. Fabiana Britto: por orientar essa pesquisa e instigar outras tantas; Lenira Rengel e Helena Bastos pela delicadeza e sugestes na qualificao. Ao FID, Adriana Banana e Helena Katz. FAPESB pelo suporte financeiro para realizar essa pesquisa. Ao carinho: da Dulce Aquino, dos professores com os quais estudei nas disciplinas do Mestrado na Escola de Dana da UFBA e dos danarinos do Grupo de Dana Contempornea, GDC. Aos colegas de mestrado, em especial, Sandrinha e Eline. Aos bons encontros que durante essa temporada de mestranda colaboraram enormemente para essa pesquisa: Oficina Material para Coluna com Steve Paxton no Estdio Nova Dana em SP (2007). Multipla Dana em Florianpolis (2007); Bienal de Dana do Cera (2007); Festival Internacional de Danca de Recife (2008); ENARTCI (2008). Temporada SESC- Paulista (2007; 2008); Temporada SESC-Consolao (2009) Encontro Internacional de Coregrafos em Pirenpolis (2009): Giovane Aguiar; Dudude Herrmann; Tica Lemos; Marta Soares; Marg Assis; Paola Rettore; Luciana Lara; Luis Garay; Luiz Carlos Garrocho; Wenderson Godoy; Valria Lehmann; Sylvia Fernandes; Susana Saru. Residncia Yvonne Rainer (2009) SP Oficina Angel Vianna FUNARTE (2009) BH FID - ZAT 6 (2009) BH: Emmanuelle Huynh; Fanny de Chaille; Kerem Gelebek; Gustavo Schettino; Cristian Duarte; Thelma Bonavita; Ana Lana; Ester Frana; Gabriela Christfaro; Sandro Amaral; Raul Corra; Lvia Rangel; Marg Assis; Violeta Penna Ao Grupo de Pesquisadores do Programa Rumos Dana Ita Cultural e a orientao de Christine Greinner. Ao Rodrigo Pederneiras; Alejandro Ahmed; Paula Canado; Jacqueline Gimenes; O Grivo; Rivane; Bellini; Cao; Beatriz; Tonha; Biel; AP; Cladia; Magda; plat produes ... Aos amigos de sempre.
H um primeiro passo sine qua non: Dedicao. Isto o que
significa a tcnica da dana. Digamos, disciplina ou auto-renncia.
H lies que a gente recebe no para rejeit-las, mas para utiliz-
las a fim de introduzir uma ao anrquica.
John Cage, 1985.
Os amigos no condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar,
um gosto): eles so com-divididos pela experincia da amizade. A
amizade a condiviso que precede toda diviso, porque aquilo que
h para repartir o prprio fato de existir, a prpria vida. essa
partilha sem objeto, esse com-sentir originrio que constitui a
poltica.
Giorgio Agamben, 2008.
RESUMO
Esta pesquisa tem como tema de investigao a composio coreogrfica em dana.
Especificamente, busca aquilo que discerne a dana coreografada, arquitetada na lgica dos
encadeamentos dos passos de dana e movimentos determinados previamente, daquela
configurada por princpios organizativos.
A proposio dessa distino emergiu dos estudos das prticas de coregrafos que trabalham a
partir de princpios organizativos. Nestes modos compositivos, os coregrafos, em vez de
lidarem com a composio atravs do encadeamento de passos regrados e com todos os
fatores de movimentos determinados, eles se preocupam com a delimitao de parmetros que
continuamente iro desencadear padres de movimentos instanciados em cada trabalho. Essa
especificidade parece ser uma das condies proeminentes para a instaurao da dana
contempornea. Os trabalhos de coregrafos e danarinos da dana ps-moderna americana,
produzida nas dcadas de 60 e 70, inauguraram estes novos pressupostos para entendimentos
em dana. As produes bibliogrficas desse perodo e das dcadas seguintes, bem como os
modos de composio coreogrfica reconhecidos atualmente, indicam esse modo de se estar
na dana.
A lgica compositiva em dana contempornea coaduna com novas teorias e questionamentos
sobre corpo, cognio e linguagem que vem se estabelecendo em pesquisas trans
disciplinares. Neste vis, pressupostos da Biologia do Conhecer, formulada pelos cientistas
chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, foram inter-relacionados ao domnio da
dana, em especial, a hiptese da organizao autopoitica dos seres vivos, a noo de
organizao e estrutura e o entrelaamento entre linguagem, cognio e emoo. Afinada
com essa linha de pesquisa, a Teoria Corpomdia, proposta pelas autoras Helena Katz e
Christine Greinner, tem sido responsvel pela instaurao de um campo de estudos tericos da
dana no Brasil. O foco de investigao dessa dissertao, a especificidade de se olhar para a
composio coreogrfica, a dramaturgia do movimento, e o entendimento da dana pelas suas
contnuas relaes so, em boa parte, ressonncia desses encontros.
Alm disso, a Teoria Cognitiva da Metfora, um dos referenciais tericos de pesquisas em
dana no Brasil, aqui suscitada por instanciar as discusses dos modelos conceituais sobre
linguagem, podendo, assim, perturbar mitos remanescentes na rea da dana. O entendimento
da metfora como constituda pelas nossas relaes corporais imbricadas aos processos
cognitivos e o questionamento das noes de representao, da existncia de uma linguagem
independente das nossas aes cotidianas, incitam a proposio de instrumentos de anlise
para pesquisas futuras que possam estar alinhados quelas produzidas nessa rea da
lingstica cognitiva.
A partir dessas abordagens tericas, o propsito foi dinamizar ainda mais os fluxos entre
teoria e prtica, burilar as noes sobre corpo, cognio e linguagem e reconhecer a
importncia das nossas conversaes para tudo aquilo que fazemos, inclusive, danar.
Palavras chaves: dana contempornea; coreografia; cognio; autopoiese
ABSTRACT
This research aims at investigating the choreographic composition in dance. In specific terms,
it focuses on what distinguishes the choreographic dance architected through a logical
chaining of dance steps and previously determined movements from the one configured by
principles of organization.
The proposition of such a distinction has emerged from the studies of choreographic practices
based on principles of organization. Instead of dealing with composing through ruled steps
and factors of determined movements, the choreographers work is concerned with the
delimitation of parameters that will continuously trigger movement patterns configured in
each work. This specificity seems to be one of the most prominent features for the
instauration of contemporary dance. The works of choreographers and performers of post-
modern American dance, produced in the sixties and seventies, inaugurated these new
presumptions for understood dance. The bibliographical production starting from these
periods to nowadays acknowledged ways of choreographic composition indicate this way of
being in the dance.
The logic of contemporary dance composition is linked to new theories and inquiries related
to the body, cognition and language which have been paving their way in trans disciplinary
research. Within such bias, concepts from the Biology of Cognition, proposed by the Chilean
scientists Humberto Maturana and Francisco Varela, have been interrelated to the dance
domain, namely, the hypotheses of autopoietic system, the notions of organization and
structure and the correlations between language, cognition and emotion. Another explanatory
field, the Corpomdia Theory, proposed by Helena Katz and Christine Greinner, has also been
a reference to the instauration of theoretical studies on dance in Brazil. The focus of this
research - the specificity to look at choreographic composition, the movement dramaturgy,
and the understanding of dance related to the conditions of relationships- reflect, in great part,
the concepts originated from that field. Furthermore, the Cognitive Theory of Metaphor, one
of the theories applied to the Brazilian dance research, is presented here to instantiate
discussions related to the conceptual models about language which can disturb reminiscent
myths from dance field. Understanding metaphor as being constituted by our body
relationships and our cognitive process, and questioning the notion of representation, the
existence of a language independent from our daily actions have enabled us to propose
instruments of analysis for future research aligned with that one produced in cognitive
linguistics.
Supported by these theoretical approaches, the purpose of this study is to make the flows
between practical and theoretical studies on dance more dynamic, to refine the notions about
body, cognition and language, and finally, to recognize the importance of our conversations
for everything we do, including dancing.
Key-words: contemporary dance; choreography; cognition; autopoiesis
SUMRIO
1 INTRODUO ................................................................................................................................... 12
1.1 O CONTEXTO DA PERGUNTA ............................................................................................................................... 12
1.2 OBJETIFICANDO O OBJETO ................................................................................................................................. 15
1.3 A ESTRUTURA DA DISSERTAO ......................................................................................................................... 18
2 MODOS COMPOSITIVOS: DOS PASSOS REGRADOS S IMPREVISIBILIDADES
COREOGRFICAS ............................................................................................................................... 20
2.1 PRINCPIOS ORGANIZATIVOS .............................................................................................................................. 20
2.2 COREOGRAFIA... IMPROVISAO... ..................................................................................................................... 23
2.3 PASSOS DE DANA... PRINCPIOS ORGANIZATIVOS .................................................................................................. 29
2.4 PASSOS DE DANA E VOCABULRIO ..................................................................................................................... 34
3 DANA COMO MODOS DE ORGANIZAO ................................................................................. 37
3.1 DANA CONTEMPORNEA COMO ORGANIZAO E NO COMO LISTA DE PROPRIEDADES................................................. 37
3.2 ORGANIZAO E ESTRUTURA ............................................................................................................................. 43
3.3 DANAR COMO UM FLUIR DE COORDENAES DE COORDENAES DE AES (LINGUAJAR) ............................................. 47
4 EXPERINCIAS COREOGRFICAS ................................................................................................ 53
4.1 SITUANDO O CONFLUIR COMO UMA EXPERINCIA DE LINGUAJAR ............................................................................... 53
4.2 NOES DE PRINCPIOS ORGANIZATIVOS NA DANA PS-MODERNA AMERICANA
YVONNE RAINER JUDSON DANCE THEATRE MERCE CUNNINGHAM CONTATO IMPROVISAO .............................................. 58
5 TEORIA COGNITIVA DA METFORA ............................................................................................. 72
5.1 METFORAS CONSTITUTIVAS PARA DRAMATURGIAS DE MOVIMENTO ......................................................................... 72
6 ONTOLOGIAS TRANSCENDENTES E ONTOLOGIAS CONSTITUTIVAS ..................................... 79
7 CONCLUSES .................................................................................................................................. 82
REFERNCIAS ..................................................................................................................................... 84
12
1 INTRODUO
1.1 O contexto da pergunta
As diferenas entre os passos de dana e os princpios organizativos, termos
utilizados em processos de criao em dana contempornea como sendo inequvocos e
distintos, merecem reflexo e descrio adequadas. Afinal, essas referncias so constitutivas
dos modos compositivos envolvidos na organizao dos processos produtivos e das
configuraes coreogrficas.
Essa afirmao faz eco aos esforos reflexivos que rompem barreiras entre reas, e que
hoje so correntes no contexto dos estudos de dana. Ela reala a importncia da postura
reflexiva na dana, para benefcio mesmo da relao produtiva entre teoria e prtica, e aponta,
de incio, o principal lugar de contribuio deste estudo. Mesmo frequentes, se comparado a
outras reas de conhecimento, ainda so recentes e dispersos o levantamento, a identificao
das terminologias recorrentes nas prticas artsticas e acadmicas e a reflexo sobre elas. Os
estudos costumam ser isolados e nem sempre conseguem manter a regularidade e
sistematizao necessrias para que as ideias decorrentes possam ser difundidas e possam
produzir outras discusses nesta rea. Desse modo, a inteno aqui levantar, identificar e
exercitar descries sobre composio coreogrfica, participando de um mbito de
conversaes relevantes para a rea, e com isto, se possvel, contribuir para que ela se torne
ainda mais dinmica.
Todo passo, para ser um passo de dana, emerge a partir de um princpio de
organizao de movimento? Se isto assim, quando um princpio de organizao de
movimento se transforma em um passo de dana? Afinal, qual a distino entre os
procedimentos nomeados por estes dois termos? possvel delimit-los de modo inequvoco?
So suficientes listas de propriedades de um e de outro para apreender sua especificidade?
Quando saberemos que essas listagens estaro completas? Podem ser considerados como
sendo dois modos de organizao distintos no sistema dana? Seria o princpio organizativo
uma pista potente para distinguirmos a dana contempornea da dana regida por sistemas
programticos? Na dana clssica e moderna, a composio constituda por contedos
13
programticos. As relaes entre os elementos de composio, ou seja, os movimentos, a
msica, o cenrio, o figurino, dentre outros, so estabelecidos previamente, ou seja, estas
relaes foram estabilizadas e com isso antecedem os processos de criao como se fossem
necessrios para que a dana pudesse acontecer. Com os princpios organizativos, levanta-se
aqui a possibilidade de se dizer que, na dana contempornea, as relaes entre os seus
diversos elementos vo se estabelecendo no prprio processo de criao, segundo princpios
organizativos, e no a priori.
Essas so as questes centrais da pesquisa que fundamenta esta dissertao. O objetivo
da reflexo no estabelecer categorias rgidas e impermeveis, mas buscar distines
relevantes e produtivas que possam alimentar os diferentes processos de criao em dana, e
colaborar para o modo atual de se fazer descries da dana contempornea brasileira.
Apesar de relacionar muitas dessas questes dana ps-moderna americana, esta
discusso se refere prioritariamente a trabalhos coreogrficos realizados no Brasil, e isto
decorre de duas questes de igual relevncia. Uma delas de ordem epistemolgica: grande
parte dos subsdios de observao e experimentao desta pesquisa vem da minha prpria
experincia de ter feito uma poro substancial da minha formao em nosso pas, de ter
trabalhado com coregrafos distintos, e de, tanto como danarina quanto como criadora, ter
experimentado diferentes modos de composio, da coreografia pr-determinada s estruturas
de improvisao. A outra questo, mais abrangente no contexto em que este trabalho se
insere, a necessidade de cada vez mais relacionarmos nossas produes artsticas e
acadmicas no Brasil. Trata-se de buscar um vocabulrio adequado e consensual para faz-lo,
de trazer essas questes conscincia, de alimentar as discusses internas, e colaborar para o
refinamento do modo de falar sobre o que fazemos, e ao mesmo tempo prepararmos terreno
para as conversaes com a dana feita em outros pases, com seus criadores e danarinos.
Ainda hoje persistem nos estudos da dana mitos a partir dos quais se especifica o que
seja ou no dana, o que pode ou no acontecer em um evento chamado dana. Estes servem
apenas para valorizar o que histrica e classicamente se tem feito nesta rea, e desqualificar
produes que no atendam a uma lista de pr-requisitos previstos em sua arquitetura.
Quando me refiro a mitos, estou considerando a definio de Magro (1999, p. 29):
14
estruturas narrativas persistentes e difusas, difceis de serem questionadas em todas as suas implicaes, que no podemos demonstrar como sendo falsas, uma vez que no so fundadas em proposies demonstrveis, mas que podemos argumentar serem desnecessrias, prejudiciais ou obscurecedoras daquilo que se pretende entender. 1
Em alguns dos mitos cultivados em nossa rea ignora-se, por exemplo, a variabilidade
de estruturas coreogrficas decorrentes de modos de organizao que no esto baseados em
um encadeamento particular de passos de dana, ou de um proverbial danar conforme a
msica. Nessas, a pausa, a imobilidade poder estar relacionada aos princpios organizativos
da composio coreogrfica e nem por isso deixar de ser considerada dana. Muitas vezes,
esse tipo de dramaturgia gera uma configurao que questiona determinismos sedimentados,
provocando estranheza para os olhos das pessoas desacostumados a esse tipo de estrutura.
No que tange discusso sobre passos de dana e princpios organizativos, tema
problematizado nesse trabalho, possvel situar e dimensionar a questo no cenrio atual da
dana. So diversas obras coreogrficas que colocam em discusso a noo de dana como
sendo um fluxo contnuo de movimentos. Segundo Lepecki (2006) 2 a noo ontolgica da
dana como sendo imbricada e isomrfica ao movimento que faz com que muitas danas
distanciadas dessa noo sejam acusadas de traio. Com esta premissa embasada por uma
filosofia que entende o corpo no como um container, uma entidade fechada, mas sim, um
sistema dinmico, Lepecki analisa o trabalho de coregrafos europeus e americanos, dentre
eles: Xavier Le Roy, Jerome Bel, Juan Domingues, Vera Mantero, La Ribot, Trisha Brown e
os artistas visuais, Bruce Nauman e William Pope.
Quando uma configurao em dana desconsiderada por no seguir essa noo
ontolgica da dana como isomrfica ao movimento, a vontade de uma verdade consensual
universalmente vlida que prevalece, enquanto epistemologia de fundo na rea. Todavia,
prescindir de encadeamentos de passos de dana ou deixar de estabelecer critrios de anlise
para se relacionar com estes estacionar-se em uma oposio que desconsidera a diversidade
das possveis estruturas em dana contempornea. Portanto, apegar-se a um ou outro
paradigma sem refletir, e manter separados os dualismos que advogam por uma dana
racional/ conceitual/ abstrata versus uma dana emocional/ figurativa / expressiva, redunda
1 MAGRO, Cristina. Linguajando o linguajar da Biologia a Linguagem. Tese (Doutorado em Lingustica). 287 f. 1999. Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 1999.
2 LEPECKI, Andr. Exhausting Dance. Performance and the politics of movement. New York: Routledge, 2006.
15
apenas em rtulos que no abarcam a complexidade que envolve o fazer dana. Indo alm, e
retomando a temtica das discusses que se tem produzido na rea, preciso dizer que aquilo
que hoje se aceita sobre cognio fica tambm reduzido e simplificado desse modo.
Muitas vezes esses conflitos conceituais no so sequer reconhecidos, pois tampouco
se faz ateno para distines que podem se mostrar relevantes e construtivas. Com isso, ao
invs das diferenas colaborarem para ampliar as conversas na rea, elas acabam por impedir
o prosseguimento daquilo que fazemos como humanos, ou seja, a conservao de um modo
particular de viver e o entrelaamento do emocional e do racional, que aparece expresso em
nossa habilidade de resolver nossas diferenas emocionais e racionais conversando.3
O cientista chileno Humberto Maturana (1997) considera central, para a compreenso
do humano, entender a participao da linguagem e das emoes no que, na vida cotidiana,
conotamos com a palavra conversar. Ele explica que a palavra conversar vem da unio de
duas razes latinas: cum, que quer dizer com, e versare que quer dizer dar voltas com o
outro. Este artigo se refere ao que ocorre no dar voltas juntos dos que conversam, e o que
acontece a, com as emoes, linguagem e a razo.
Ao darmos voltas juntos nesse conversar sobre composio coreogrfica, sobre dana,
estamos nos referindo aos passos de dana e aos princpios organizativos, mas tambm s
emoes, linguagem e razo, que esto envolvidas neste fazer. E ao darmos voltas com a
Biologia do Conhecer, poderemos explicitar melhor esses fenmenos, tendo em vista nossas
experincias que so sempre relativas s voltas que damos com os outros.
1.2 Objetificando o objeto
A produo terica em dana no Brasil ainda descompassada em relao
diversidade da produo artstica, so poucas as reflexes que colaboram para sistematizar os
modos compositivos em dana brasileira. E estes merecem serem vistos luz de teorias que
3 MATURANA, Humberto. Ontologia do Conversar. In: Ontologia da Realidade. MAGRO, Cristina, VAZ,
Nelson (Org.) Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997. (p.166-180)
16
explicitem as noes de corporalidade, cognio, linguagem, de uma ontologia capaz de
especificar os seres vivos em interao com os outros e com o meio. Nesta direo, diversas
pesquisas em dana tm se afinado com um amplo campo de saber que inclui a filosofia,
biologia, antropologia, neurocincias, lingstica, astrofsica, dentre outras. Desses
entrelaamentos foi proposta a Teoria Corpomdia4 juntamente a todo um campo de estudos
tericos em dana que vem se estabelecendo no Brasil.
Nesta pesquisa ser principalmente com a noo de organizao e estrutura formulada
pela Biologia do Conhecer que iremos nos perguntar se possvel entender a dana
contempornea no que tange a sua organizao e no apenas no agrupamento dos seus
elementos constitutivos. Pois o modo pelo qual a dana contempornea tende a ser definida,
atravs de uma lista de itens que devem ser cumpridos, tais como, fragmentao,
interdependncia, relaes no hierarquizadas, desvinculo de narrativas, abolio de corpos
idealizados, dentre outros, no consegue abarcar o seu modo de funcionamento, as relaes
que continuamente se estabelecem, e estas sim, so responsveis por especificar quilo que
garante a autonomia do sistema. Seguir essa lista ou qualquer outra de itens estabelecer
rtulos, programas pr-determinados e limitar o que de mais instigante foi proposto por
coregrafos de dana contempornea - o reconhecimento em cada configurao de dana
contempornea dos princpios organizativos que a esto gerando.
Distinguir a dana contempornea no como uma lista de componentes, mas pelo seu
modo de se articular, de ser um pensamento do corpo, uma das premissas de Helena Katz5
desenvolvido em sua tese de doutorado em Comunicao e Semitica pela PUC-SP em 1994.
De l para c, diversas pesquisas em dana tem sido produzidas com o pressuposto de que a
dana se mostra como um campo privilegiado para se estudar os fenmenos da comunicao,
cognio e evoluo. Neste contexto, a Biologia do Conhecer possibilita um rigor para a
explicao dos seres vivos, logo do ser vivo que dana, conhece e est inserido em tudo
aquilo que observa e descreve.
4 GREINER, Christine; KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomdia. In: O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. So Paulo: Anablume, 2005. 5 KATZ, Helena. Um, dois, trs. A dana o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005.
17
Embora nesta pesquisa o enfoque principal no seja a anlise de obras coreogrficas,
temos o intuito de colaborar para a gerao de mecanismos explicativos que possam facilitar o
relacionamento com a diversidade dos modos compositivos em dana contempornea. Estes
esto alinhados com as abordagens de coregrafos e danarinos que iniciaram suas pesquisas
em dana nas dcadas de 60 e 70. A relevante bibliografia produzida sobre o assunto naquele
perodo e nos dias de hoje, abordam os dados contextuais e os parmetros compositivos nos
quais tais prticas artsticas foram urdidas. As partituras (scores), os dispositivos
coreogrficos, as tarefas, o corpo pedestre, o Contato Improvisao, a tcnica de Cunningham,
e outros, foram procedimentos que romperam com a lgica compositiva estabelecida pelo
encadeamento de passos de dana e movimentos memorizados previamente. E ao romperem
com esse parmetro, to sedimentado, na histria da dana, inauguraram questionamentos
sobre quais seriam ento as propriedades capazes de fazer com que as configuraes
propostas fossem reconhecidas como dana. Reconhecer as singularidades desses modos
compositivos e ao mesmo tempo experimentar uma abordagem terica congruente a esses
procedimentos poder fertilizar as interrelaes entre prtica e teoria em dana.
Sendo assim, nessa pesquisa trataremos de:
Identificar parmetros para se relacionar com a composio coreogrfica em
configuraes de dana contempornea;
Explicitar a distino entre dois modos compositivos em dana, a dana coreografada
e a dana que se estabelece por princpios organizativos;
Adotar as noes de organizao e estrutura, tal como proposta pela Biologia do
Conhecer. E com este procedimento abordar a organizao da dana contempornea
em substituio s tradicionais listas de componentes que buscam classificar a dana e
que, dificilmente, ficam completas de modo a abarcar a diversidade desse sistema.
Entender a dana como um sistema dinmico no qual as relaes que se estabelecem
so aquelas que podem especific-la e garantir sua autonomia;
Demonstrar que a dana tambm se insere em um fluir entrelaado entre emoo e
linguagem que se estabelece ao longo de uma histria recursiva de interaes entre
seus participantes em um meio;
Explicitar os princpios organizativos como um modo peculiar de composio em
dana contempornea reunindo uma srie de procedimentos coreogrficos dentre
18
aqueles que emergem de uma prtica e no de programas definidos e de junes de
passos de dana determinados previamente. Tais modos so caractersticos das
estratgias compositivas articuladas em tarefas, partituras coreogrficas (scores),
regras ou dispositivos coreogrficos, Contato Improvisao e dos mtodos
coreogrficos de Merce Cunningham.
1.3 A estrutura da dissertao
Esta dissertao composta por sete partes, incluindo a Introduo e a Concluso. Na
Introduo apresentada a questo dessa pesquisa que se refere aos modos de composio
coreogrfica em dana contempornea, ao contexto que essa pergunta participa e a introduo
aos referenciais tericos.
No segundo captulo, a composio coreogrfica especificada com a proposta dos
princpios organizativos, tema a ser tratado ao longo da dissertao.
No terceiro captulo, a noo de organizao e estrutura, tal como proposta na
Biologia do Conhecer, apresentada como uma opo de distinguirmos os modos de
composio em dana contempornea em termos de sua organizao, das relaes entre seus
elementos. Tambm a noo do linguajar, ser trazida neste captulo por ser norteadora da
importncia do papel do observador em tudo quilo que faz e distingue, estando imbricado
nas suas histrias recursivas de interaes entrelaadas entre linguagem, emoo e cognio.
No quarto captulo, as experincias coreogrficas so situadas visando demonstrar
exemplos que corroboram com a noo da distino entre os modos compositivos em dana
contempornea. A primeira delas se refere ao solo Confluir, experincia coreogrfica da qual
participei em que a distino entre a composio regida por passos de dana e por princpios
organizativos se instaurou como um problema relevante a ser pesquisado. Em seguida, so
demonstrados exemplos compositivos de coregrafos da dana ps-moderna americana que
explodiram as fronteiras entre as reas artsticas e propuseram questionamentos referentes a
isomorfia entre dana e encadeamentos de passos de dana. Nesta poca foram inaugurados
novos modos compositivos em dana especialmente atrelados aos processos de criao e, a
19
partir dessas experimentaes instauram-se as noes de princpios organizativos. Uma
organizao peculiar em dana contempornea que a distingue dos modos compositivos
embasados em programas apriorsticos.
No quinto captulo, a Teoria Cognitiva da Metfora trazida baila como uma
maneira de abordar o problema dos modelos conceituais sobre linguagem. Visto que estes se
espraiam nas conversaes, modelos de comunicao e explicaes que ainda imperam em
muitos domnios da dana. A noo da metfora como constituda pelas nossas experincias
corporais, bem como, seus modelos de anlise tem se mostrado um vasto campo de pesquisa.
Quando relacionadas ao domnio da dana, facilita o reconhecimento das metforas que do
continuidade a mitos remanescentes nessa rea.
No sexto captulo, a explicao do Domnio das Ontologias Constitutivas proposta por
Humberto Maturana demonstra como essa proposio se diferencia da noo predominante da
cincia baseada no Domnio das Ontolologias Transcendentes. Para entender dana
contempornea, nos termos em que vem sendo proposta por uma viso sistmica, como um
sistema dinmico em acoplamento estrutural com o meio e com os outros, o entendimento do
Domnio das Ontologias Constitutivas uma condio. Refletir sobre o Diagrama Ontolgico
facilita reconhecer e substituir a hegemonia de uma realidade de dana pelos multiversos em
que se baseiam as danas contemporneas. Isto implica em assumir uma disponibilidade para
lidar com o reconhecimento dos princpios organizativos envolvidos no fazer dana
contempornea, abdicando assim da expectativa de uma nica noo de dana como vlida.
A Concluso se insere em uma continuidade do Diagrama das Ontologias
Constitutivas, pois nele o modelo de conhecimento est atrelado importncia de se fazer
perguntas, ao papel do observador naquilo que observa e descreve e a existncia dos diversos
domnios de realidades.
20
2 MODOS COMPOSITIVOS: DOS PASSOS REGRADOS S
IMPREVISIBILIDADES COREOGRFICAS
2.1 Princpios organizativos
A expresso princpios organizativos refere-se s relaes entre elementos
distinguveis na composio em dana, que emergem a partir dos processos de criao que so
feitos sem lanar mo de conjuntos programticos previamente definidos. Nosso interesse est
em contribuir para a discusso sobre as caractersticas da dana contempornea, que tem
desafiado a rea. A pesquisadora e orientadora dessa pesquisa. Fabiana Britto (2008, p. 15)6
esclarece que:
No estando, como esteve o bal, comprometida com um conjunto fixo de passos conjugados segundo um padro estvel de dominncia associativa; nem sendo, como foi a dana moderna, um campo de referenciao metafrica, a dana contempornea expressa uma lgica relacional no hierrquica entre corpo e mundo.
Trs observaes importantes esto presentes nessa afirmao. Em primeiro lugar, ela
aponta que a dana contempornea dispensa o conjunto fixo de passos; em segundo, afasta o
compromisso do sentido que emana da dana; por ltimo, prope que uma lgica alternativa
seja adotada para se pensar a dana contempornea, no hierrquica. No caso da composio
da dana contempornea, adotando-se reflexes originrias do pensamento sistmico atual,
entende-se que a estrutura no prvia aos processos de criao e que isto sequer necessrio
para que a dana ocorra. Os princpios organizativos e eventuais partituras so compreendidos
como resultados e no o pr-requisito da observao atenta de algum que se faz
familiarizado com esses processos de composio.
Tanto a observao de Britto acima, que prope uma reflexo a partir de uma lgica
relacional no hierrquica entre corpo e mundo, quanto a observao de que regras no
6 BRITTO, Fabiana. Temporalidade em dana: parmetros para uma histria contempornea. Belo
Horizonte: FID Editorial, 2008.
21
preexistem os eventos, delineiam uma abordagem que tem afinidade com o pensamento
sistmico, com a epistemologia experimental de Humberto Maturana, com teorias em outras
reas do conhecimento como a lingustica e a biologia, e com as teorias da complexidade.
Como prope o socilogo Edgar Morin (2008, p. 206)7, a complexidade no s pensar o
uno e o mltiplo conjuntamente; tambm pensar conjuntamente o incerto e o certo, o lgico
e o contraditrio, e a incluso do observador na observao.
Os princpios organizativos em composies de dana podem se referir tanto dana
coreografada quanto dana improvisada. No se trata, portanto, de estabelecer uma distino
rgida entre uma da outra, at porque, nos atuais debates sobre o assunto, tem-se considerado
que a diferena entre elas pode ser vista como sendo de graus de estabilidade. isso o que
expressa Steve Paxton (1999), coregrafo americano criador do Contato-Improvisao, em
entrevista revista Ballet International: Eu no vejo nem contradies nem similaridades
entre as formas fixas de dana e a improvisao inicial. uma gama de possibilidades, como
um espectro de cores.
Seguindo esse raciocnio, sugerimos identificar e descrever lgicas compositivas
embasadas em princpios organizativos, sob a forma de conjuntos de parmetros e condies
que do sustentao s relaes entre os movimentos. Nessa lgica compositiva, os
danarinos lidam com padres de movimentos no processo de composio em que esto
sendo realizados.
Uma composio baseada em princpios organizativos difere daquela resultante de
uma configurao em que todos os movimentos e suas relaes com o peso, tempo, espao e
fluxo foram estabelecidos previamente com rigor. Isto no quer dizer que uma maneira de
lidar com a composio em dana seja mais ou menos sofisticada que a outra. Elas apenas so
distintas. A complexidade de cada um desses sistemas depende de tantos outros fatores que
impossvel serem descritos em termos dos seus elementos constitutivos. Precisam ser vistos
como tecidos juntos e descritos por um observador inserido em uma histria recursiva de
interaes no contexto particular em que eles ocorrem.
7 MORIN, Edgar. Cincia com Conscincia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.
22
As danas produzidas nas dcadas de 60 e 70, em consonncia com outras reas
artsticas tais como a msica e as artes plsticas, inauguram novas possibilidades para a
expanso e a complexidade do sistema dana. Refletir sobre essas mudanas radicais, os
modos de relacionamento que as propiciaram e, principalmente, olhar para essas lgicas de
composio coreogrfica, o que deve explicitar a composio baseada em princpios
organizativos. Ao invs de adotar modelos apriorsticos e consensuais no que tange
composio em dana, seus participantes vm continuamente instaurando novos nexos de
sentidos, que demandam por redescries.
Desse modo, a composio da dana contempornea, que aqui est sendo tomada
como uma composio por princpios organizativos, tem se instaurado por estabelecer
relaes entre os elementos da dana em outros parmetros que no se guiam apenas pelos
encadeamentos de passos de dana que pautaram a lgica da composio coreogrfica em
dana durante sculos.
Distinguir esses dois modos de composio no o mesmo que dizer que as
composies regidas por princpios organizativos sejam desprovidas de encadeamentos de
passos de dana, eles podem at ser um dos elementos constitutivos dessas composies,
porm perdem sua centralidade e no encerram uma finalidade. Ser o engajamento dos
coregrafos e danarinos aos princpios organizativos que far com que as estruturas
coreogrficas estabelecidas por estes modos continuem sendo geridas pelos parmetros
estabelecidos e permaneam se modificando. Embora modificar-se seja uma condio de
todos os sistemas, neste tipo de composio que isto exacerbado. Estas proposies em
dana demonstram que a identidade dos sistemas se faz justamente pelas contnuas
modificaes provocadas pelas suas interaes com os outros e o meio. Uma perturbao
causada no sistema ir gerar um rearranjo no sistema como um todo, e essa uma das
caractersticas ressaltadas nas composies coreogrficas baseadas em princpios
organizativos.
Este procedimento diferente daqueles adotados em uma coreografia composta por
passos pr-fixados, em que h uma predisposio para se manter uma regularidade to
prxima quanto possvel a uma formatao original, ainda que isto seja impossvel. Pois,
como explica Britto (2008), repetir um padro neuromuscular gerar contnuas modificaes,
seja na dana clssica ou no Contato Improvisao, e o corpo, implicado que est na
23
irreversibilidade, s estabiliza padres de acionamento cognitivo-motor se repete e, quanto
mais repete, mais oportunidade de variao ele cria.
Afirmamos anteriormente que os princpios organizativos em dana contempornea
comearam a ser instaurados em experimentos das dcadas de 60 e 70, em contextos nos
quais os participantes estabelecerem novas associaes para lgicas organizativas em dana.
Portanto, relevante apontar distines entre as discusses sobre coreografia e improvisao
para que possamos refletir um pouco mais sobre os princpios organizativos e os parmetros
sobre os quais foram se efetivando como um modo distinto de composio.
2.2 Coreografia... Improvisao...
Burt (2006, p. 14)8, lembra que Brown (1978) distingue uma qualidade de
performance na improvisao que no aparece na dana memorizada, por ela ser conhecida
anteriormente. Enfatiza que, se um danarino est improvisando em uma estrutura, seus
sentidos esto altamente ativos; usa sua inteligncia, pensamentos, tudo trabalha de uma s
vez para encontrar a melhor soluo para uma dada questo que se coloca para ele, estando
sob a presso de uma audincia de observadores.
A coreografia e a improvisao podem ser compreendidas como tendo graus de
estabilidade distintos. A especificidade de cada configurao e at mesmo a diversidade de
nomeaes propostas nas ltimas dcadas demonstra as variaes de estruturas de dana
contempornea: instalao coreogrfica, interveno urbana, working in process, ao, teatro-
fsico, dana-teatro, telemtica, dentre outras. Justamente essa condio de no se ater a
definies de categorias que antecedam concepo artstica uma das caractersticas
instigantes da dana contempornea.
Nas nossas interaes recursivas somos corresponsveis pelo contexto que criamos.
Nesse modo de entender que estamos aqui desenhando com apoio do pensamento sistmico e
8 BURT, Ramsay. Judson Dance Theater. Performative Traces. New York: Routledge, 2006. BROWN (1978
apud BURT, 2006, p.14)
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complexo, no h recepo passiva, de tal modo que, os danarinos, a audincia, so todos
participantes dos nexos de sentidos que se estabelecem em correlaes com as obras. Nesta
direo, os adeptos a improvisao vieram a romper com um dualismo e uma hierarquia at
ento vigorante na dana moderna repudiando a noo cartesiana da mente como um fantasma
na mquina. A prpria prtica da improvisao pode ser vista como uma demonstrao de que
a inteligncia no puramente intelectual ou uma faculdade mental, mas uma relao do
continuum corpo-mente, conforme argumenta Burt (2008, p. 15).
Se comparada coreografia, a improvisao aberta ao acaso, enquanto a coreografia
no o . Sua lgica compositiva se d nas contnuas modificaes entre o corpo, o meio e os
outros e sua estrutura se d a ver pelas relaes que se instauram a cada instante. J na
coreografia, os relacionamentos entre os elementos so, em geral, fixos e determinados. Os
encadeamentos dos passos de dana so definidos previamente e memorizados. Todavia,
tambm na coreografia, tal como vemos nas ltimas dcadas, o grau de liberdade para
modificaes em cada apresentao varivel e, em muitos casos, sua composio est
baseada na definio de princpios organizativos. Este um trao que, se olharmos com
ateno, se sobressai em diversas configuraes de dana contempornea. Os princpios
organizativos podem ser considerados como uma proposta instigante para compreendermos o
modo de funcionamento da dana contempornea, prescindindo das listas de componentes
que jamais sero preenchidas satisfatoriamente. Portanto, o foco aqui a organizao da
dana contempornea.
Para se compreender a noo de organizao, recorremos a Maturana (1997, p. 57)9
Distingo dois aspectos das unidades compostas, e afirmo que todos ns fazemos isso. Um deles tem a ver com a organizao da unidade composta, que se refere as relaes entre os componentes que fazem com que a unidade seja o que voc afirma que ela . Por exemplo, uma cadeira uma unidade composta. As relaes entre as partes que constituem uma cadeira so a organizao. Se eu serrar a cadeira em pedaos, vocs diriam que ainda temos uma cadeira? No, vocs no diriam isso. Vocs diriam: Por que voc desorganizou minha cadeira?. Eu destru a cadeira desorganizando-a. As relaes entre os componentes, ento aquilo que faz da cadeira uma cadeira constituem sua organizao. Uma unidade uma unidade composta de algum tipo apenas enquanto sua organizao for invariante.
9 MATURANA, Humberto. Tudo dito por um observador. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Org.). A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. p. 53-66.
25
A organizao da unidade composta faz referncia s relaes entre os componentes,
a um tipo de relao entre as partes que nos permite reconhecer uma unidade composta. Caso
essa organizao se modifique, a coisa muda. Distinguirmos os diversos tipos de danas por
uma organizao, pelas relaes que se estabelecem entre os componentes nos permite
identificar aquilo que invariante na sua organizao. E ainda possibilita identificar quando
muda a organizao e, assim, a unidade composta muda de classe. A tcnica clssica tem uma
organizao que se difere de Merce Cunningham que se difere do Contato Improvisao.
Propomos ento, identificarmos na dana contempornea uma organizao que se estabelece
pelas relaes entre seus componentes baseada na continuidade em gerar princpios
organizativos. Ao longo do trabalho sero especificados atravs de exemplos distintos de
composies coreogrficas em dana contempornea e, no momento, continuaremos a
delinear as linhas nas quais a improvisao tem se configurado.
As improvisaes em dana podem ser utilizadas tanto para gerar materiais
coreogrficos, como tambm para constituir a prpria configurao de dana. A leitura da tese
de Martins (2002) 10, alm de colaborar para distinguir a dana coreografada da improvisao,
ajuda a compreender como a dana pode ser considerada como um sistema de acordo com os
parmetros da Teoria Geral dos Sistemas. interessante observar que anlises de diferentes
autores apontam na mesma direo, de se tomar o pensamento sistmico e seus fundamentos
para refletir sobre a dana contempornea. O pensamento sistmico contemporneo tem suas
origens na Teoria Geral de Sistemas, mas so duas abordagens distintas. Enquanto a Teoria
Geral de Sistemas tem como referncia o mundo da fsica, o pensamento sistmico encontra
seus modelos de funcionamento nos seres vivos. Essa nica distino tem profundas
consequncias nas teorias.
Existem espetculos de dana que mantm a organizao de uma improvisao, e
tambm as Jam Sessions, eventos abertos aos praticantes de Contato Improvisao (CI). Esta
tcnica proposta pelo coregrafo americano Steve Paxton, na dcada de 70, rapidamente
disseminou-se para outros continentes. Steve Paxton reconhecido por ter iniciado e
desenvolvido os princpios do CI. Em Magnesium, performance realizada no Oberlin College
10 MARTINS, Cleide. Improvisao Dana Cognio. Os processos de comunicao no corpo. Tese
(Doutorado em Comunicao e Semitica). 2002. 129 f. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2002.
26
em 1972, Paxton trabalhou com uma classe de onze homens a partir de uma estrutura de
improvisao derivada de um solo que ele j havia feito. Este trabalho foi gravado e seu DVD
disponibilizado pelo site da revista Contact Quartly, tambm disponibiliza vrios outros
vdeos e livros sobre o assunto.
A organizao do CI difere da organizao da coreografia, principalmente por no
obedecer a um planejamento prvio baseado nos encadeamentos de passos de dana
estabelecidos e memorizados anteriormente. Ser o engajamento com determinados
parmetros que iro instaurar seus princpios organizativos. uma dana realizada
prioritariamente em dupla que se configura pelo toque, pela relao com o outro, com o peso,
com a fora da gravidade e a conscincia da percepo das sensaes corporais no instante. O
CI tem vnculos com as artes marciais, em especial, com o aikid, com o esporte e com as
danas sociais. Alguns coregrafos tm dedicado pesquisas com o CI trabalhando a insero
de pessoas com necessidades especiais na dana. Visto que no h um corpo idealizado para
essa tcnica, para um cadeirante, por exemplo, a cadeira tal como no seu cotidiano tomada
como uma extenso do seu corpo. O danarino americano Alito Alessi uma das referncias
no assunto.
Considerando que a base do CI pressupe a permanncia de determinados princpios
organizativos, mas no a execuo de passos pr-determinados, qualquer pessoa, disposta a se
mover e relacionar com o outro nos parmetros estabelecidos, poder pratic-la. Apesar da
inexistncia de um corpo idealizado para a realizao dessa tcnica, recorrente a
especializao de danarinos que atuam com essa prtica. As interaes estabelecidas ao
longo de histrias recursivas de Jam Sessions so como os dilogos que mantemos ao longo
da continuidade das nossas histrias de interaes. o que podemos observar em jams entre
improvisadores que por muito tempo mantiveram suas interaes, um exemplo, so as
improvisaes de Steve Paxton e Nancy Smith, umas das primeiras e principais difusoras do
CI que constituiu junto com Paxton os princpios organizativos j citados envolvidos na
organizao dessa tcnica.
A recursividade nas interaes com essa tcnica tende a gerar movimentos
espetaculares, todavia no so pontos de chegada apriorsticos, mas sim, decorrncia da
recursividade das relaes com os outros e com os parmetros citados. As interaes com
seus princpios organizativos que emergem como resultantes dos encontros resultam em uma
27
confiana, e na velocidade de se tomar as decises a partir das relaes que acontecem no
instante. Trata-se de uma formao especifica e diferenciada da dana coreografada.
O fato que, na dana ps-moderna, a noo de repetio, que at mesmo no bal j
vinha sendo questionada11, ganha uma dimenso provida de experimentaes sem
precedentes. Tanto que o padro restrito de danarino profissional se modifica e agrega
profissionais de diversas outras reas e com habilidades peculiares desvinculadas das tcnicas
de dana clssica ou moderna. Um corpo no treinado em dana tem outras habilidades
interessantes de serem investigadas na construo de dramaturgias de dana, e,
concomitantemente, a dana passa a estabelecer relaes altamente profcuas de mtuas
modificaes com a msica, artes plsticas, cinema. Vale ressaltar que essas interaes se
diferenciam dos movimentos precedentes por no serem hierarquizados, e, ao serem geradas
novas funes entre estes relacionamentos, limites rgidos de outrora so extrapolados. O
cronograma ou o contedo programtico a ser seguido para a criao de um espetculo j no
serve mais como modelo e assim, cada nova configurao demanda pela criao de seus
prprios modelos.
O pensamento Cage-Cunningham um dos principais referenciais desse novo
paradigma, as propostas de fragmentao, da interdependncia entre os elementos
compositivos, a abolio da narrativa, foram vastamente experienciados pelos danarinos da
sua companhia. Muitos deles estavam tambm juntos a outros criadores construindo pequenas
peas coreogrficas ou trabalhos de uma noite inteira, experimentando diversas alternativas
compositivas desvinculando-se da dana moderna e da hierarquia das funes, tal como,
coregrafo e danarino. Muitas propostas foram elaboradas no prprio estdio do coregrafo
Merce Cunningham, nas oficinas do msico Robert Dunn e nas subsequentes mostras de
dana na Judson Church. Importantes coregrafos desse perodo, tais como, Simone Forti,
Yvonne Rainer, Trisha Brown e o artista minimalista Robert Morris tambm haviam
participado juntos de contextos de improvisao nas famosas oficinas de Anna Halprin em
So Francisco.
As propostas exploradas no Judson Dance Theater se referem ao uso de aes, tarefas,
a no especializao de danarinos em eventos, um tnus mais baixo, a utilizao de
11 MONTEIRO, Mariana. Noverre: Cartas sobre dana. So Paulo: EDUSP, 1998.
28
partituras coreogrficas (scores), enfim, uma srie de procedimentos que desafiaram noes
do que at ento era considerado dana. Foi neste contexto, ao escrever um ensaio sobre a
pea Parts of Some Sextets (1964), que Rainer (2006, p. 263264) publicou o famoso NO
Manifest12:
NO ao espetculo no ao virtuosismo no as transformaes e magia e ao uso de truques no ao glamour e transcendncia da imagem da star no ao herico no ao anti-heroco no as imagerias desgastadas no ao envolvimento do performer ou do espectador no ao estilo no aos modos afetados no a seduo do espectador pelos estratagemas do performer no a excentricidade no ao mover-se ou ser movido. (traduo minha)
Em sua biografia, Rainer (2006, p. 264) procura contextualizar esse infame
manifesto, como ela diz, e que a persegue desde a primeira vez em que fora publicado.
Rainer explica que no o escreveu com a inteno de prescrio, como muitas vezes
utilizado por outros danarinos, mas que tinha a ver com aquela poca e com as intenes
dos manifestos: limpar o ar de uma cultura particular em um momento histrico.
Pode-se at pensar que a instaurao destes novos parmetros estivesse determinando,
ou propondo novos manuais programticos para elaborao de uma dana ps-moderna,
todavia, seus processos de criao e configuraes eram to diversificados e imbricados com
outras vises de mundo, que tal assertiva seria banalizar a importncia deste legado. Aqueles
que ainda hoje, lidam de maneira normativa com esses preceitos correm o risco de tomar a
forma sem elaborar a frmula. E rapidamente se denunciam por atuarem em programas que
so justamente contrrios aos questionamentos e configuraes radicais em que se
formulavam muitas das proposies em dana dos anos 60 e 70.
Principalmente, a partir desses pressupostos, a noo de dana como sendo sinnimo
de um fluxo contnuo de movimentos, formatado apenas por coreografias pr-determinadas
passou a no comportar mais aquilo que envolve a organizao da dana, os modos de
relacionamentos entre seus componentes. E, cada vez mais, a indeterminao, o acaso, as
proposies que emergem a partir dos processos de criao passam a modular as contnuas
12 RAINER, Yvonne. Feelings are facts: a life. Cambridge; London: MIT Press, 2006.
No original: NO to spectacle no to virtuosity no to transformations and magic and make-believe no to the glamour and transcendence of the star image no to the heroic no to the anti-heroic no to trash imagery no to involvement of performer or spectator no to style no to camp no to seduction of spectator by the wiles of the performer no to eccentricity no to moving or being moved.
29
mudanas no danar. A dana contempornea tecida sob parmetros que questiona antigos
dualismos, adere aos princpios da incerteza como conduta e insiste em ser um projeto
contnuo alterado diariamente, ttulo do projeto de Rainer com o grupo Grand Union.
2.3 Passos de dana... Princpios organizativos
Buscar uma distino entre os passos de dana e os princpios organizativos admitir
que, apesar da multiplicidade dos modos compositivos em dana, seja possvel diferenciar o
prevalecimento de um destes dois modos nas configuraes de dana. Os passos de dana
surgem a partir de determinados parmetros de coordenaes que o iro configurar enquanto
tal, mas logo tornam essas coordenaes fixas e determinadas. Em sua longa histria
evolutiva, os passos de dana se estabeleceram prioritariamente de forma normativa,
mimtica, sendo que o reflexo no espelho tem servido de guia e ncora para que os danarinos
modulem as posturas e posies certas. H uma busca por uma forma idealizada ditada por
modelos estabelecidos em cada poca e contexto, apesar de que dessas seja sempre difcil
escapar. Basear-se em um modelo mimtico e normativo, um dos traos que distancia o
modo de composio por passos de dana dos princpios organizativos, pois o segundo, se
instauram pelo rompimento com modelos sedimentados e pela possibilidade em se estabelecer
novas conexes que possam gerar outros modelos prontos a entrarem novamente em crise. O
astrofsico Jorge Albuquerque Vieira (2006)13 analisa os estados de crise como sendo tpicos
dos processos de inveno, tanto na arte quanto na cincia. De fato, seja na dana que se faz
por passos de dana memorizados ou por princpios organizativos, em cada instante
coreogrfico, os sistemas esto envolvidos em uma contnua histria de mudanas estruturais
provocadas pelos relacionamentos que no cessam de se estabelecer.
O corpo em crise, o corpo paradoxal, o corpo crtico, o corpo sem rgos14, so
expresses que aparecem em autores diferentes, e que definitivamente questionaram o corpo
13 VIEIRA, Jorge Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte. So Paulo: Edies Leo, 2006. 14 Corpo sem orgos proposto por Antonin Artaud em seu ensaio radiofnico: Para acabar com o julgamento
de Deus. O filsofo Gilles Deleuze em Mil Plats 3, tem um ensaio dedicado ao Corpo Sem rgos, CSO. Corpo Paradoxal uma definio do filsofo portugus Jos Gil proposta no livro: Movimento Total; Corpo Crtico utilizado pela pesquisadora de dana francesa LOUPPE (2007) e Corpo em Crise uma terminologia do But, desenvolvida por GREINER (2005).
30
ordenado, hierarquizado e idealizado que serviu por tanto tempo como referncia para o corpo
na dana.
Na composio coreogrfica arquitetada na lgica dos encadeamentos de passos
determinados, um movimento imprevisto, uma queda, por exemplo, ser tomada como um
erro. Ainda que esta queda possa ser adotada como um movimento na coreografia, como o fez
o coregrafo George Balanchine, a partir do momento em que ela passa a ser sempre realizada
da mesma maneira, deixar de ser algo imprevisvel e passar a cumprir a funo de um passo
de dana. Isto da ordem das composies coreogrficas arquitetadas pela lgica dos passos
de dana estabelecidos em que prevalecem as resultantes fixas. Neste tipo de coreografia,
embasada na composio por passos de dana, todos os fatores do movimento so bem
delineados e ser a execuo deles de acordo com parmetros bem estabelecidos, um
propsito principal. Manter uma ordem estipulada tentando restringir a desordem dos sistemas
dinmicos. Nestas configuraes importa um resultado fixo e determinado e, provavelmente,
em um novo processo coreogrfico, o coregrafo ir se utilizar daqueles movimentos j
definidos anteriormente.
Estabelecer em cada acontecimento - ensaio ou apresentao - um tipo de relao
neuro-sensrio-motora que no esteja completamente mapeada uma das caractersticas
instigantes de se trabalhar com a composio por princpios organizativos. Isto possibilita a
busca por novas solues a determinadas questes colocadas ao corpo em uma situao na
qual a contingncia ser sempre ressaltada como um dos fatores de acordo entre corpo e
ambiente no instante danado.
A improvisao, por se ater com modos relacionais no estabelecidos previamente,
explicita o fenmeno da emergncia. Conforme diz Britto (2008, p. 106):
Improvisao Trata-se da vertente de composio artstica que melhor explicita a ocorrncia dos fenmenos de auto-organizao e da emergncia na dana, uma vez que seu princpio bsico da organizao do material coreogrfico e / ou corporal em tempo real exacerba o carter contingencial contido em todas as escalas de estabilidade de um padro (de dana ou outro). A improvisao permite observar a emergncia de novas configuraes a partir de condies j contidas no sistema como possibilidade.
31
No caso de uma coreografia ou das improvisaes, constitudas por princpios
organizativos, as estruturas coreogrficas sero relativas operacionalizao dos princpios
organizativos que engendram os mecanismos para que uma lgica organizativa do movimento
possa se estabelecer. Nestes casos, a idia da dana como sendo o sinnimo de uma
organizao baseada exclusivamente no encadeamento de passos e movimentos pr-
determinados, naufraga. Apesar deste pressuposto ainda prevalecer em muitos contextos de
dana, inclusive dos estudos tericos, tal como apontam os autores Copeland e Cohen (1983,
p. 370) na introduo do Captulo V do livro, What is dance?
Para os materialistas e Anderson (como Nelson Goodman) plenamente adepto aos materialistas, a dana um conjunto de passos especficos, e estes passos so a essncia da dana15. (traduo minha)
Esta noo sobre uma essncia da dana vinculada a um conjunto de passos de dana
ainda impera em diversas redes de conversaes sobre dana. Ir contra essa mar, no
afirmar que a coreografia determinada seja desprovida de uma lgica organizativa, pois, a
depender da sua complexidade, h um padro neuromuscular extremamente refinado que
apenas se desenvolve por uma prtica constante de imerso neste sistema. A diferena mais
singular entre estes dois modos compositivos se refere principalmente ao seguinte aspecto:
1 Quando os coregrafos lidam com o encadeamento de passos determinados
h uma continuidade em se especializar em um mesmo tipo de padro de
relacionamentos entre os movimentos e todos os elementos se arquitetam em
uma resultante definida previamente;
2 Quando os coregrafos desenvolvem princpios organizativos a lgica que
engendra a organizao coreogrfica se sobressai quela de uma nica
resultante definida previamente. Ainda que dessa lgica possa fazer parte um
encadeamento de movimentos estabelecidos anteriormente, eles no sero
adotados com um propsito principal. Sero uma dentre outras variantes que
possibilita estabelecer relacionamentos contingentes entre os elementos.
15 COPELAND, Roger e COHEN, Marshall (ed). What is dance? Oxford, New York, Toronto, Melbourne:
Oxford University Press, 1983. No original: For the materialist and Anderson (like Nelson Goodman) is plainly sympathetic to the materialist, a dance is an assemblage of specific steps, and these steps are the essence of dance.
32
Para distinguir essas lgicas compositivas em configuraes de dana, entendidas
como sendo um sistema complexo, impossvel separar seus traos em termos dicotmicos.
Apesar da coreografia, em geral, vinculada quilo que fixo, determinado, e a improvisao
ao indeterminado, ao acaso, so as gradaes de estabilidade entre os relacionamentos
estabelecidos moduladores das taxas de ordem e desordem nestes sistemas. Disso decorre que,
a restrio ou liberdade com a qual os coregrafos lidam variada em cada sistema de dana,
pode ir desde um sistema aberto, altamente dissipativo no qual seja difcil identificar os
princpios organizativos, at um sistema menos aberto cuja estrutura se aproxime a de uma
coreografia estabelecida previamente. A coreografia constituda por princpios organizativos
no , em geral, to aberta ao acaso como a improvisao. Mas por outro lado, se distingue
daquelas coreografias em que todos os movimentos e suas relaes com o peso, tempo,
espao, dinmica, foram previamente determinados.
Ser a manuteno dos princpios organizativos que ir sobrepor-se a lgica dos
encadeamentos dos passos estabelecidos anteriormente. Faz parte da sua dinmica
organizativa se constituir pelas contnuas modificaes ao invs de se basear na fixao de
uma estrutura rgida.
O ideal tangvel, no mais o corpo idealizado da bailarina que flutua com leveza,
como fora no bal romntico, nem o corpo metafrico dos horrores da guerra, resultante de
configuraes da dana moderna. A exploso da dana nos anos 60 esteve principalmente
relacionada ao questionamento do corpo, da visibilidade, dos padres e programas
estabelecidos, e, acima de tudo, da interconexo sem precedentes entre as reas artsticas.
Interessa o corpo no tempo presente, percepo dos fluidos, rgos, pensamentos, os
processos e procedimentos de criao que conscientemente rompem com estruturas
estabelecidas. So nestas circunstncias que as danas embasadas por princpios organizativos
vm se instaurando. Ao romper com a espetacularizao, propor danas com pessoas no
treinadas em dana, trazer os movimentos cotidianos para o contexto da dana, inaugura-se
um campo novo nessa rea. No se trata da morte da dana, tal como fora decretado nas artes
de vanguarda, mas sim, um novo comeo.
Ao analisar o Judson Dance Theater, o filsofo Noel Carroll se refere a Yvonne Rainer, Steve Paxton, David Gordon, Simone Forti e outros, como tendo demonstrado que qualquer coisa poderia se tornar dana, no importa com o que se parea...Eles momentaneamente ampliaram uma gama de possibilidades para a
33
dana contempornea. Inauguraram um novo mundo na dana: no um fim da dana, mas provavelmente, um novo comeo 16
Insistncia ou persistncia em distinguir
(nem que seja para depois misturar de novo um pouco diferente)
Princpios organizativos - a forma importa menos do que os parmetros que guiam
uma determinada lgica organizativa em uma configurao coreogrfica.
Princpios organizativos se coconstituem recursivamente nas mltiplas inter-relaes;
reduzida a relevncia dos encadeamentos de movimentos memorizados anteriormente para
ressaltar as lgicas de inter-relaes das quais iro emergir os padres de movimentos que
tiveram apenas seus parmetros pr-definidos e no suas formataes finais. Aqui, est
prevista a autonomia do danarino e dos sistemas coreogrficos.
x
As Formas determinadas / Passos de dana so configuraes que ganharam mais
estabilidade.
Interessa ressaltar sua continuidade, promover o reconhecimento de uma mesma
forma, frmula.
Tambm os passos de dana emergem de princpios organizativos de movimentos,
todavia resultam em configuraes estabilizadas e prontas para serem utilizadas em diferentes
circunstncias.
H um apagamento dos parmetros que geraram a forma e importa mais ressaltar a sua
semelhana do que as diferenas advindas com princpios organizativos que poderiam
desencadear outras possveis configuraes.
Na composio regida por passos de dana h um modelo de relaes rigidamente
determinado anteriormente que dever ser seguido, enquanto, nos princpios organizativos os
padres de movimentos emergem como decorrncia de parmetros estabelecidos e no como
um nico resultado de encadeamentos de movimentos memorizados previamente. Por isto,
nesse sistema coreogrfico regido por princpios organizativos as resultantes instauradas em
16 CARROL, 2003 apud. BURT, 2006, p. 187.
34
cada instante constituiro dramaturgias de movimentos que ainda no estavam completamente
estabelecidas anteriormente.
Isto no quer dizer que a configurao de dana estipulada nessa ordem ir gerar em
cada ensaio ou apresentao algo completamente novo e inusitado. Ser na recursividade das
pequenas mudanas em sua histria evolutiva que este tipo de organizao ir produzir outros
princpios organizativos estabilizando a identidade de cada sistema coreogrfico. Estas
mudanas podero ser apenas quelas permitidas pela histria do sistema em interaes com o
meio e os outros. De outro modo, o sistema se desintegraria.
2.4 Passos de dana e vocabulrio
Coreologia uma espcie de gramtica e sintaxe da linguagem do movimento que trata no s das formas externas do movimento, mas tambm do seu contedo mental e emocional. 17
As analogias entre dana e linguagem so to recorrentes que j se naturalizaram.
Falamos em: frases coreogrficas, frases de movimento, acento, linguagem coreogrfica,
vocabulrio de movimentos, falar com a dana, linguagem no verbal e muitas outras. A
prpria etimologia da palavra coreografia se refere escrita da dana, cunhada em 1589, por
Thoinot Arbeau como orchesographie18. Em 1700, Raoul-Auger Feuillet introduziu o
sinnimo coreografia, ttulo do seu clssico tratado de dana Chorgraphie ou Lart dcrire
la danse par caracteres, figures et signes desmonstratifs. Assim, o termo surgiu com a
finalidade de descrever, de criar uma escrita para a dana anloga ao sistema musical. No
entanto, as notaes em dana no se tornaram to difundidas como na msica. O termo
coreografia passou a ser usado de forma mais geral, referindo-se ao fazer dana, a
composio, ou a criao de dana.
Segundo Mariana Monteiro (1998, p. 133)19, autora do livro Noverre: cartas sobre
dana, a notao de Feuillet, encomendada pelo Rei Sol, Lus XIV,
17RENGEL, Lenira. Dicionrio Laban. So Paulo: Anablume, 2005. LABAN apud RENGEL, 2005, p.35. 18Para a discusso do assunto, ver LEPECKI, 2006. 19 MONTEIRO, Mariana. Noverre: Cartas sobre dana. So Paulo: EDUSP, 1998.
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[...] dava conta dos passos, dos deslocamentos no espao, das direes e da diviso rtmica. [...] O mestre de bal tinha a sua disposio palavras e sintaxe adequadas s coisas representadas.
Ser Noverre que meio sculo depois, com a sada da dana da corte e sua crescente
profissionalizao e ocupao dos teatros, que questionar a eficincia da dana ser feita em
forma de uma partitura escrita. Com o bal de ao, a coreografia deveria ser composta no
teatro, onde a multiplicidade, as coisas novas deveriam se ligar, nestes termos Noverre dizia e
considerava que o sistema de Feuillet no servia para abarcar as nuanas da pantomima.
Segundo Monteiro (1998), a dana acadmica prescrevia um conjunto de posies e
caminhos a serem percorridos pelos braos, em estreita consonncia com os passos. Noverre
desarticula essas prescries, simplifica os passos para ganhar em expresso dos gestos, mas,
ao mesmo tempo, prev um sistema capaz de representar as emoes com os movimentos.
[...] os passos, colocados com esprito e com arte, faam eco ao e aos movimentos da alma do bailarino. Exijo que numa expresso viva jamais se usem passos lentos; que numa cena grave no se utilizem os leves; [...] enfim, gostaria que tudo parasse nos instantes de desespero e de opresso; nesses casos, apenas a fisionomia deve retratar; os olhos que devem falar; at mesmo os braos devem permanecer imveis, e o bailarino, nessa espcie de cena, torna-se excelente exatamente quando no dana. (NOVERRE, 1760, apud MONTEIRO, 1998, p. 136)
interessante notar que o questionamento aos passos de dana prescritos no uma
exclusividade da modernidade, todavia as proposies alternativas aos modelos estabelecidos
so sempre situadas historicamente. Isto no querer deflacionar a importncia dos preceitos
rompidos com a dana moderna e contempornea, mas sim, situar a relevncia em se ater com
as relaes estabelecidas em cada contexto.
Muitos pesquisadores de dana consideram Noverre uma espcie de fundador da
dana moderna ou o primeiro dramaturgista da dana, como Van Kerkhove (1997) e Hercoles
(2005). A pesquisadora de dana Katharine Gilbert (1970) cita um extrato das cartas de
Noverre que fazem parte da bibliografia de Laban (1879-1958), fundador da importante e
mais difundida sistematizao do movimento Gilbert (1970) analisa a maneira que a dana
moderna se aproxima em aspectos gerais ao Renascimento na Itlia, ao enfatizar o
humanismo e o retorno a natureza, caractersticas comuns a Laban, Mary Wigmann e Isadora
Duncan. Assim, o rompimento com uma sintaxe de movimentos pr-estabelecidos pelo bal
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acadmico e o sujeito tornando-se objeto daquilo que ele produz so algumas das
caractersticas da dana que vem sendo experimentada de modo contnuo e diverso na histria
da dana. Tambm as analogias entre dana e gnero literrio e dana e linguagem verbal,
bem como, as dicotomias entre forma e significado tem mesmo razes histricas. Mas,
atualmente, por todas as descries e pesquisas que temos sobre o funcionamento do corpo j
sabemos que razo e emoo no se processam separadamente.
Portanto, tambm conceituar de modo estanque fundamentos rgidos para os passos de
dana e para a construo de vocabulrios correr o risco de estabelecer categorias que
reduzam a complexidade desses fazeres. necessrio olhar e descrever de maneira
contingente e situada casos especficos e reconhecer ao longo de vrias configuraes como
se estabiliza esse modo de organizao e em que elas se diferem dos princpios organizativos.
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3 DANA COMO MODOS DE ORGANIZAO
3.1 Dana contempornea como organizao e no como lista de propriedades
Ns no paramos de viver, ento no paramos de danar. Penso na dana como uma constante transformao da prpria vida. 20 (Traduo minha. CUNNINGHAM, 1985 apud PRESTON, DUNLOP, 1995, p. 5)
Diferente das outras artes, na dana, produto (objeto esttico) e autor (corpo) ocupam o mesmo espao-tempo, embora um seja resultante da ao do outro, quando a dana danada pelo corpo, ambos constituem-se numa mesma materialidade a dana. Ao contrrio da naturalidade que isto sugere a dana no se d a entender sem exerccio intelectual. (BRITTO, 2008, p. 26-27)
Trabalhar com a noo de que o corpo est em constante acoplamento estrutural como
o meio e com os outros, e, portanto, modificando e sendo modificado, abdicar da noo de
que o corpo representa ou expressa um dentro sem fronteiras. Com a noo de acoplamento
estrutural, Maturana (2007, p. 64) especifica que o meio no instru as mudanas no
organismo, pois estes so uma rede fechada de relaes moleculares. A adaptao uma
coerncia estrutural das histrias de interao entre o organismo e o meio. O mesmo ocorre
entre organismos. Se existe coerncia na histria de interaes, eles se adaptam mutuamente.
O corpo em uma histria recursiva de interaes entrelaadas entre emoo e
linguajar e, essa dana que o corpo faz, modifica sua dinmica estrutural. E o corpo-ambiente,
por sua vez, modifica constantemente as resultantes da dana danada, por isto, por mais que
se queira que uma configurao de dana seja a mesma, ainda assim, ela ser sempre
diferente.
Para falar de dana e, logo, do corpo que faz dana, com a devida complexidade
desses sistemas, precisamos identificar com quais noes de corpo, cognio, linguagem,
cultura estamos imbricados. Justamente nesta direo, os pesquisadores de dana tem se
esforado e nessa aproximao que essa pesquisa tambm se insere.
20 CUNNINGHAM (1985). PRESTON-DUNLOP, Valery. Dance Words. Switzerland: Harwood academic publishers, 1995. No original: You dont stop living, so you dont stop dancing. I think of dance as a constant transformation of life itself. (p. 5)
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Os cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela iniciaram na dcada de
60, uma importante pesquisa sobre as bases biolgicas da compreenso humana, subttulo do
clssico livro A rvore do conhecimento, publicado em 1987. Para distinguir os seres vivos de
maneira radicalmente diferente das listas de propriedades que nunca parecem completas,
propuseram a organizao autopoitica. Na teoria da autopoiese, identificaram uma
organizao peculiar dos sistemas vivos, que consiste em uma inseparabilidade entre o ser e o
fazer em uma unidade autopoitica. Apesar de todos os sistemas terem uma organizao, na
organizao autopoitica que os seres vivos se especificam e geram a si prprios. Para
responder a questo sobre qual a organizao define o vivo como classe, Maturana e Varela
(2007, p.52) explicam que, os seres vivos se caracterizam por literalmente produzirem de
modo contnuo a si prprio. isto que esto especificando quando chamam a organizao
que os define de organizao autopoitica. Com essa distino explicam o modo de
funcionamento dos seres vivos. Isto diferente das descries morfolgicas, ou de critrios
que definam o vivo, tais como: capacidade de locomoo; aquele que se reproduz, ou a soma
de um ou mais desses critrios, sempre passveis de incompletudes e de no abarcarem tudo o
que vivo.
Com a organizao autopoitica dos seres vivos, os autores destacam que os seres
vivos so unidades autnomas, capazes de especificar sua prpria legalidade, aquilo que lhes
prprio. Maturana e Varela (2007, p.55) ressalvam que, os seres vivos no so os nicos
entes autnomos, mas trata-se de uma das propriedades mais imediatas dos seres vivos. Com
a organizao autopoitica esse grande mistrio da autonomia se torna fio condutor, pois
nela que ao mesmo tempo, nos realizamos e nos especificamos.
Poderamos tomar essa premissa para pensar em uma organizao tpica que possa
distinguir a dana como uma unidade composta?
A distino entre uma unidade simples e composta a seguinte: na primeira,
suficiente especificarmos as propriedades; na segunda, tem a ver com a organizao da
unidade composta, que se refere s relaes entre os componentes que fazem com que a
unidade seja o que voc afirma que ela . (MATURANA, 1997, p. 57)
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Para tanto, no ser suficiente descrevermos uma lista de componentes da dana, pois
teremos que especificar as relaes entre os componentes implicados nessa organizao
dana. Supomos aqui, que essa organizao esteja relacionada organizao autopoitica,
visto que a materialidade da dana se realiza no ser vivo com uma autonomia que especifica
aquilo que lhe prprio.
Desse modo, possvel propor uma dinmica que explique o modo de funcionamento
da dana e no apenas os seus componentes. Ressalta-se, sobretudo, que as configuraes de
dana se estabelecem por uma longa histria recursiva de interaes, realizada em
coordenaes de coordenaes consensuais de condutas, ou seja, na linguagem.
Para Maturana (1997, p.65) quando temos organismos que, atravs de uma histria de
interaes continuam interagindo uns com os outros, ns temos um domnio lingustico.
Nesta perspectiva, a linguagem no est no crebro ou no sistema nervoso, mas no domnio
das coerncias mtuas. Ora, fazemos dana, ainda que seja um solo, interagindo uns com os
outros e nos especificando mutuamente, selecionando os caminhos das nossas modificaes
estruturais. Segundo a Biologia do Conhecer crucial entendermos que os seres vivos so
determinados estruturalmente, e suas mudanas so congruentes com o ambiente em que
vivem, conservando sua organizao. Maturana (1997, p. 60) afirma que:
Os sistemas vivos, se so para ser explicveis, precisam ser tratados como sistemas determinados estruturalmente, definidos por certas organizaes. [...] As interaes que eles atravessam apenas desencadearo mudanas neles, e no especificaro o que acontecer com eles. Esse um ponto muito srio, um ponto que no deve ser compreendido de forma superficial. O que estou dizendo que nada pode acontecer a um sistema determinado estruturalmente que no esteja determinado pelo prprio sistema.
Isto quer dizer que apenas sero aceitas pelo sistema as perturbaes admitidas pelos
prprios sistemas. Neste caso, as interaes: danarino coregrafo; aluno professor, no
ir instruir, ou especificar o que vai ocorrer no sistema, elas apenas podero desencadear
mudanas congruentes com a histria de interaes de cada um deles em um meio que
continuamente se modifica. nesta situao que Maturana (1997, p.53-66) utiliza o termo
conduta adequada, sempre considerada sob o ponto de vista de um observador que faz uma
pergunta.
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Ento, tomo a conduta adequada como uma expresso de conhecimento. Por conseguinte, se meu problema a prpria cognio ou conhecimento, e se reconheo que h conhecimento vendo a conduta adequada, ento meu problema ser identificar a conduta adequada ou mostrar como surge a conduta adequada.
Uma explicao considerada vlida quando satisfaz nossa curiosidade e Maturana
demonstra que como um cientista, um bilogo, a explicao sobre cognio que ir
considerar, ter que ser uma explicao cientfica. Mas, aponta que, comumente as pessoas
pensam em explicaes cientificas como predio, e que a seu ver, este um dos aspectos,
mas no o principal. Pois, no existe explicao cientfica sem a proposta de um mecanismo
que gere o fenmeno a ser explicado e, por sua vez, outro fenmeno no mesmo domnio do
fenmeno que explicado. Em suma, ao perguntar sob quais circunstncias ns
reconhecemos que h cognio? Maturana, alm de explicar o mecanismo pelo qual a conduta
adequada gerada, constri uma identidade entre a cognio e o viver, o modo pelo qual ela
esta implicada no domnio em que se observam as coerncias estruturais relacionadas s
histrias de interaes dos organismos.
Retomar a distino de uma possvel organizao da dana, considerando que cada
sistema dana seja tambm uma rede fechada de relaes entre os seus elementos, implica em
considerar como cada sistema se modifica estruturalmente mantendo sua organizao em um
meio que tambm se modifica. Isto implica em olhar para a composio coreogrfica como
um sistema capaz de especificar-se a si prprio. A hiptese da organizao autopoitica dos
seres vivos, logo dos seres vivos que danam, produz reverberaes que fortalecem a ateno
as relaes implicadas em constituir uma organizao dana e no apenas nos elementos que
a configuram. Podemos at suscitar a hiptese de que, um sistema de dana que mantm ao
longo do tempo uma recursividade de relaes, tenha tambm como caracterstica, quilo que
identifica os seres vivos de acordo com a organizao autopoitica, produzirem de modo
contnuo a si prprio.
interessante notar que at mesmo metforas recorrentes que utilizamos em
composio coreogrfica estejam relacionadas quelas exemplificadas na Biologia do
Conhecer, que explica o metabolismo celular de modo a exemplificar a organizao
autopoitica (MATURANA; VARELA, 2007, p. 59). Definimos clulas coreogrficas como
partes em uma coreografia, so limites de transformao que se relacionam com o todo e elas
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tal como na arquitetura celular se constituem como uma unidade separada que no se
desintegram nem se esparramam na sopa molecular, ou na coreografia como um todo.
Estas unidades, clulas coreogrficas, podem tanto ser constitudas pelo
encadeamento de passos de dana pr-estabelecidos, quanto por princpios organizativos,
ambos tero a funo de constituir unidades e limitar uma rede de transformaes,
possibilitando identificar o funcionamento de certa unidade coreogrfica.
Considerando a diversidade de estruturas de dana contempornea que conhecemos e,
ainda podemos encontrar no mundo, difcil definir um modo de funcionamento sem o perigo
de acabar tropeando em um universalismo, ou em definies genricas. Maturana e Varela
(2007, p. 50) indicam que distinguir, reconhecer um modo de organizao algo que fazemos
o tempo todo, um ato cognitivo bsico. Comparam a diferena entre a facilidade em
classificarmos cadeiras pelas relaes entre as suas partes, e que o mesmo no acontece, por
exemplo, para a classe das boas aes. Pois disso depende compartilharmos uma quantidade
imensa de bens culturais. O mesmo parece ocorrer no caso de distinguir uma classe para
dana contempornea. Todavia, isto no impede que faamos as distines, mas sinaliza que
elas so decorrentes dos relacionamentos com as diversas estruturas coreogrficas com as
quais lidamos.
Desta maneira, no exerccio em estabelecer um mecanismo de funcionamento e no
uma lista de ingredientes, que os princpios organizativos cumprem a funo de gerar uma
dana e, ao mesmo tempo, manter a dinmica daquilo que continuamente lhe prpria. O
princpio organizativo na composio coreogrfica aquilo que pode produzir e especificar
um limite para que um acontecimento de dana seja realizado. Ao nos depararmos com as
mais diversas estruturas de dana, conseguimos reconhecer que tem algo em comum nessas
estruturas e assim distinguimos uma classe com uma organizao que nomeamos dana. Isto
s poder dizer alguma coisa de mais especfica na medida em que os relacionamentos vo
sendo estabelecidos de modo contnuo, pois, reconhecer os princpios organizativos de cada
configurao de dana com a qual estejamos lidando, uma distino contingente e situada
historicamente. Conhecer a especificidade da dana fazer, estar continuamente em contato
com uma gama enorme de possveis danas, tais como aquelas experincias especficas dos
esquims que so capazes de distinguir diferentes tonalidades de branco. Ou ento, algo que
parece banal para ns que vivemos no hemisfrio sul, identificarmos diferentes tonalidades de
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verde, ou sabermos com preciso o que uma pulga ou um carrapato. So aes que
efetivamos como lgicas incorporadas, decorrentes do nosso experienciar em uma cultura. De
outro modo, o navio pode passar pelo oceano sem que possamos v-lo, se desconhecido, no
nomeado, no se configura como uma unidade distinta na paisagem.
Exatamente isto acontece com aquelas experincias em dana que no so sequer
vistas ou consideradas como tal por uma maioria, pois, frente a um entendimento de que
dana so encadeamentos de passos de dana que obedecem a uma msica, ou algo para mero
entretenimento, devendo seguir um padro com critrios definidos a priori, tudo o que no se
encaixa nessas expectativas, inexiste. Isto se refere no apenas a um tipo de relacionamento
que os observadores estabelecem com a dana, mas sim, com o mundo. Por isto, os
rompimentos efetivados na dana nas dcadas de 60 e 70, so to marcantes por promoverem
outras opes epistemolgicas no domnio da dana, e, ainda longe de serem tomados como
consensuais, continuam estigmatizados como no dana em muitos ambientes. As
proposies em dana de ento, tambm estavam contextualizadas em verdadeiras viradas
paradigmticas nas cincias, filosofia, psicanlise, artes plsticas e outras reas, isto no
passava despercebido aos coregrafos que refletiam e produziam dana neste instigante
contexto. Inclusive abandonando a dana pela sua extrema limitao em ser um sistema dual
constitudo por um fazedor e um observador, por sempre manter o narcisismo, no se
desvencilhando de ser pessoal, de ser sempre sobre algum.21
Foi neste perodo, em meados da dcada de 60, que Franciso Varela tornou-se aluno
de Maturana e, em seguida, tambm como professor na Universidade do Chile escreveram o
primeiro livro, De maquinas y seres vivos: Uma Teoria de La Organizacin Biolgica
(MATURANA; VARELA, 1972). Aps o exlio, em decorrncia do regime militar,
retornaram ao Chile, na dca