A Barbara, companheira amorosa e amiga, que h mais de quarenta anos
tem-se dedicado a meu bem-estar e
me inspirado a ser o melhor
cristo possvel.
AGRADECIMENTOS
Acredito que sei muito pouco a respeito de buscar as riquezas que se encontram na profundidade da devoo! Entretanto, muitos tm-me orientado nessa busca. Alguns so
escritores e pensadores, outros, mestres leigos que estavam na mesma busca. Muitos foram
alunos meus. Vieram para o seminrio a fim de preparar-se para o ministrio e ser ensinados por
professores como eu e, de repente, transformaram-se em mestres que me orientavam nos
momentos silenciosos de orao e no ardor da vida de adorao. Vrios colegas professores, pastores e ministros leigos uniram-se a mim no anseio de servir vontade de Deus e viajaram pelas mesmas disciplinas espirituais em busca do Senhor. O principal entre aqueles a quem tanto devo Deron Spoo. Muitas vezes, me perguntei por que
Deus d um anseio especial por sua presena a alguns, enquanto parece que outros no tm esse
sentimento. Deron um amigo muito alegre e sedento das profundezas de Deus. Contagia, com
essa alegria, a todos que conhece. Aguardo com ansiedade o dia em que ele escrever sobre seu
relacionamento com Cristo. Enquanto isso, seu amor inabalvel por Jesus nos serve de
inspirao. Seria falta minha deixar de homenagear a Steve Laube, meu redator e amigo, que tem um
profundo e bem embasado amor pelo Senhor. Confio em Laube para esclarecimentos sobre esse
assunto e dependo completamente dele para capacitar-me a saber quando o que escrevo
inteligvel ou no. Tenho o mau hbito de achar que outras pessoas devem entender conceitos
com os quais no esto familiarizadas. Ele sempre me orienta a voltar para uma base firme e
explicar melhor o que quero dizer. Meu agente, Greg Johnson, me telefona pelo menos uma vez por semana para ter certeza de que
estou trabalhando e, quando lhe garanto que sim, ele promete que no vai me perturbar mais, at
a semana seguinte. Greg tem sido um amigo genuno, que deseja muito que as pessoas por motivos que ele entende mais do que eu entrem em contato com meu pensamento. Sem ele, eu nunca conseguiria a motivao necessria para dar importncia s minhas ideias. David Shepherd tambm me mantm pensando e trabalhando. A mente dele pra raras vezes e
sempre desperta a minha para perceber as maravilhas das Escrituras. Finalmente, tenho um crculo de amigos e colegas professores Bill Tolar, Wallace Williams, Fisher Humphries, Bob Smith, Jerry Batson, Denise George que me incentivam constantemente. As realizaes de um indivduo so diretamente proporcionais qualidade de
seus amigos. Somos todos produto daqueles cuja vida nos instrui de modo formal ou informal.
Todos somos devedores queles cuja amizade nos proporciona segurana e apreo.
SUMRIO
Prefcio edio brasileira 11 Introduo: Sede de espiritualidade 13
A VIDA DISCIPLINADA
1. Rompendo a escravido dos desejos 21 2. Rompendo a escravido do materialismo 30 3. Rompendo a tirania da urgncia 37
A VIDA ATENTA
4. Esttica: desfrutar a beleza de Deus 45 5. Cristo: o desejo do corao 57 6. Expresso: o lugar do louvor 65 7. Centralizao: evitar o fascnio estril por Deus 72 8. Misticismo: manter contato com o Esprito Santo 83
A VIDA SABIA
9. Chegar s profundezas descobrindo nosso chamado 93 10. A disciplina que produz o carter piedoso 103 11. Chegar autocompreenso 113
A VIDA DE CONFISSO
12. A confisso e a glria de nossa necessidade 122 13. A confisso e o discipulado livre de culpa 130 14. Princpios de confisso para o crescimento pessoal 140 15. Habitando na eternidade 147
Eplogo: Nas profundezas 154
Sobre o Autor 156
O olho no consegue ver, nem a lngua dizer,
nem o corao imaginar quantos caminhos
e mtodos eu tenho para os levar s por amor
de volta graa, para que a minha verdade se realize neles.1
CATARINA DE SIENA
A alma do homem no de forma alguma
limitada pelo espao nem pela matria.
Tambm consegue enxergar os fatos atravs
da escurido e a grandes distncias, como se
ocorressem bem perto. Ns que no damos
poder e impulso a essa capacidade de nossa
alma e a esmagamos debaixo dos grilhes e da
carnalidade de nosso corpo e de nossos
pensamentos confusos e idias dispersas.
Quando, porm, focalizamos a ateno em
nosso ntimo, desviamos nossa concentrao de
todas as coisas externas e refinamos a mente.
Desse modo, a alma encontra sua realizao
mais genuna e exerce seus poderes mais
sublimes, o que muito natural.2
THE WAY OF A PILGRIM
Quem dera nossa conversa fosse mais
celestial. Quem dera nos ocupssemos mais
com a pessoa, a obra e a beleza do nosso
Senhor encarnado. Na meditao,
a beleza do Rei rebrilha sobre
ns com resplendor.3
CHARLES HADDON SPURGEON
______________________________________________________________________ 1Cit. Anne B. JOHNSON, Catherine of Siena, Huntingdon:
Our Sunday Visitor Publishing House, 1987, p. 167. 2Autor desconhecido, The way of a pilgrim,
trad. Olga Savin, Boston: Shambhala, 1991, p. 141. 3Charles Haddon SPURGEON, em Morning and evening, Nashville:
Thomas Nelson, 1994, da leitura do dia 16 de novembro.
Profundeza" no um local que
Visitamos em nossa busca de Deus;
o que nos acontece quando o encontramos.
Que diferenas surpreendentes h entre os homens!
s vezes, somos tentados a atribuir seus poderes e su-
cessos especiais a suas circunstncias, seu tempo,
seus pais e mestres. Mas existe uma explicao mais
profunda e satisfatria. Adotando as palavras dos
precursores, os homens nada tm que no receberam
do cu, mediante determinao e decreto diretos de
Deus.
Eis uma frase de ouro: "Ningum pode receber nada a
no ser que lhe seja dado do cu"! Voc tem muito
sucesso no trabalho? As multides se aglomeram e
lotam auditrios por onde voc passa? No atribua
isso a voc mesmo. So ddivas da graa de Deus.
Voc no possui nada que Deus no lhe tenha dado.
Seja grato, mas nunca vaidoso, porque aquele que deu
pode tomar de volta. Grandes talentos outorgados im-
plicam grande responsabilidade no dia da prestao
de contas.4
F. B. MEYER
_______________________________________________________________ 4Cit. em Changed by the Master's touch, Springdale: Whitaker House, 1985, p. 54-5.
PREFCIO EDIO BRASILEIRA
Prepare-se para encontrar-se com Deus e desfrutar os tesouros de suas profundezas! S o fato de voc se interessar por um livro como este nos dias de hoje diz muito a seu respeito, seus
desejos, valores e prioridades. Fico feliz por seu interesse e tenho certeza de que no vai ficar
decepcionado com o investimento nesta obra. Sei que no ser em vo. Voc vai sentir-se
recompensado, frase por frase, durante a leitura, pois creio que vai ouvir o chamado de Deus
para um dilogo exclusivo entre voc e ele. Este no apenas mais um livro sobre
espiritualidade; algo especial de Deus para ns. Em fevereiro de 2001, eu estava no Canad. Num culto de domingo de manh, na Igreja Batista
Central em Oackville, nos arredores de Toronto, Deus me surpreendeu com o impacto de uma
mensagem poderosa. Nessa manh, o Senhor falou comigo por intermdio do pastor, exortando-
me a um relacionamento profundo com ele. Durante a mensagem, o pastor foi relatando um
pouco de sua experincia com Deus na leitura deste livro e como tambm lhe causou impacto.
Por isso, Deus lhe tocou o corao para desenvolver uma srie de mensagens baseadas neste
livro para sua igreja. Imediatamente comprei meu exemplar e o trouxe para o Brasil. Na
primeira oportunidade, indiquei-o aos editores da Vida, que pela graa do Senhor acreditaram
no projeto e nos brindam com este magnfico lanamento em portugus de uma obra que vai
abenoar milhares de falantes da lngua portuguesa. Nas profundezas de Deus um livro abenoado. Miller foi muito feliz na analogia das
profundezas do oceano com a nossa vida espiritual. Com isso, visa a tirar-nos da
superficialidade da cultura ps-moderna e guiar-nos diretamente para o mago das profundezas
de Deus. Esta obra instiga a nos rendermos necessidade de um encontro com Deus, resgatando
o que muitos de ns no tivemos na formao crist devido falta de discipulado verdadeiro.
Nas profundezas de Deus um chamado divino para nossa vida neste tempo to corrido da ps-
modernidade. Numa poca em que as linhas do estar, ser e jazer podem-se distanciar de nossa
vida e de nosso ministrio, este livro um refrigrio do cu para sua vida. um alento para que,
conectado a Deus, voc continue uma pessoa muito usada por ele para ampliar seu Reino aqui
na terra. Como disse o autor: "Precisamos abandonar o hbito de guardar nossos tesouros e criar
o hbito de entesourar a riqueza da graa de Deus". Calvin Miller no nos convida simplesmente a mergulhar na presena de Deus para assim
descobrir suas profundezas, porque Deus est muito mais interessado em ns do que em nossa
programao ou nossos cronogramas. Ningum que deseja ter comunho com Deus chegar a
v-lo enquanto insistir que ele diga exatamente o que vai acontecer na sua vida. Atravs do
livro, Miller nos chama a uma vida disciplinada que rompa a escravido dos sentidos, do
materialismo e da to emergente tirania da urgncia, levando-nos a uma sria e profunda
reflexo para desfrutarmos a beleza de Deus com equilbrio, evitando o fascnio intil por Deus
e tambm mantendo-nos em con-tato com o Esprito Santo, louvando a Cristo com
profundidade, dando o lugar certo ao louvor. Segundo Calvin Miller, precisamos desenvolver uma vida inconformada, chegar s profundezas
e descobrir nosso chamado e a disciplina que produz o carter piedoso. Chegando desse modo a
nos entender a ns mesmos, com uma vida livre de culpa, esvaziada do ego e cheia da glria de
Deus, no crescente desejo de maturidade e santidade. Estou totalmente convencido por Deus de que este livro ser uma chamada a um encontro srio
com Deus, como foi para mim e minha esposa. Acredite: voc vai precisar rever algumas coisas
em sua vida depois da leitura desta obra, para desfrutar essa vida transformada e plena nas
profundezas de Deus, certamente uma vida melhor para voc e todos os seus.
Termino esta apresentao com um texto de Paulo, citado por Miller no livro: "Olho nenhum
viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o
amam" ( CO 2.9B)!
Vamos l! Carlito M. Paes,
pastor-titular da Primeira Igreja Batista em So Jos dos Campos, SP, autor de
Igrejas que prevalecem e co-autor de Ministrio de adorao na igreja contempornea,
ambos publicados pela Editora Vida.
INTRODUO
SEDE DE ESPIRITUALIDADE
Conheci uma das minhas melhores amigas no dia em que ela descobriu que lhe restavam menos de seis meses de vida. S quando os limites da vida so demarcados claramente que a
amizade comemora com entendimento todas as suas ddivas. Nossa amizade no conheceu um
s dia de folga nem de frivolidade. No houve espao para nenhum jogo de baralho meia-
noite, nenhuma excurso de esqui ou passeio martimo. Ningum deveria viver sem uma
amizade como essa. Seu nome era Anne e, embora como ela confessou seus ltimos meses estivessem longe de ser sombrios, passava os dias "se-lecionando". Tendo em vista a curta durao de vida que
sobrara para Anne; tivemos tempo somente para contemplar e desfrutar os aspectos
absolutamente essenciais do nosso relacionamento. Os ponteiros implacveis do relgio
avanavam com tanta velocidade que as coisas insignificantes e passageiras no nos
fascinavam. Anne era bonita. Passara boa parte da vida realando sua beleza com cosmticos. Sua pele era
branca e fresca, mas os cuidados com a pele perdem a importncia quando os aspectos internos
e viscerais do ser humano vo mal. No fundo, onde os cremes e leos no conseguem penetrar,
o corpo s vezes precisa lidar com juzos severos. Ento, as questes profundas da vida exercem
o domnio final sobre todas as coisas superficiais. Quase todos ns vestimos a f crist com um discipulado que no nos assenta bem no corpo,
como um terno barato, que nos deixa desconfortveis durante a maior parte da vida. Entre os
amigos da igreja, fazemos grande esforo para manter a fama de piedosos. Gostaramos de
parecer semelhantes a Cristo, mas sem a disciplina necessria para ser realmente como ele.
Lendo dezenas de manuais de auto-ajuda do tipo "preencha as lacunas", conseguimos uma
distino espiritual da boca para fora, sem t-la merecido de fato. Continuamos vivendo na
superfcie, e a vida mais profunda s discurso. Preguei no funeral de Anne e senti-me completamente dominado pela necessidade de contar
mais do que era possvel a respeito de seu caminhar com Cristo. No mago de tudo em que se
transformara, sua vida de amor a Cristo desafiava toda e qualquer forma de comunicao. Como
ocorre com tudo que profundo. Na primeira carta de Paulo aos corntios, no entanto, nossa falsa espiritualidade fica
desmascarada para todos observarem. "Olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente
nenhuma imaginou o que Deus preparou para aqueles que o amam" (ICo 2.9b), diz o apstolo. Paulo est falando da eternidade e de tudo que se relaciona com o futuro. Nesse trecho, ele d
uma viso rpida daquilo que possuiremos quando abrirmos os olhos para nossa primeira viso
do cu. Tambm h um aspecto imediatista nesse versculo. No nenhuma violao do texto
interpret-lo assim: "Olho nenhum pode ver, ouvido nenhum pode ouvir, mente nenhuma pode
imaginar o que Deus preparou para aqueles que o amam". A espiritualidade um meio de ter o
cu pelo menos parte dele agora1. O caminho a trilhar para a espiritualidade por demais real para ser medido somente pelos sentidos. Os olhos, os ouvidos e os dedos tm suas
limitaes. So instrumentos frgeis e limitados demais para medir a imensido da existncia
que Deus pretende para ns. intil procurar aproximar-se de Deus apenas com os sentidos,
pois isso inevitavelmente entra em coliso com a plenitude divina. como tentar medir o
volume das guas do Oceano Pacfico com um dedal ou uma xcara. Que sensatez gloriosa a da descrio que Paulo faz de nossa espiritualidade] Aqueles que a
desfrutam vem o invisvel, ouvem o inaudvel e imaginam o inimaginvel. A verdadeira
espiritualidade no extra-sensorial; ultra-sensorial. Quando o espao do nosso corao
finalmente se esvazia do prprio eu, nasce um novo tipo de ser, um ser que se emociona diante
da presena de Deus. Ali, no mais ntimo do nosso ser, descobrimos que nosso corao no
uma cmara, mas a porta de entrada. Basta subir ao portal do corao, pr a mo no trinco e
entrar para o nosso encontro secreto com Deus. Depois de fechar a porta do lado da realidade,
podemos abri-la do lado divino.
Andar de braos dados com a profundeza de Deus ficar constantemente atnito com sua
vastido. Lembro-me de certa ocasio em que sobrevoei o estado de Montana com um
negociante japons de Tquio. Mora algum em todo esse espao vazio? perguntou. No muita gente respondi. E o vo continuou. Ningum? perguntou. Acenei com a cabea. E voamos mais algum tempo. To enorme, to belo, to vasto! ele exclamou. Eu sabia o que ele estava querendo dizer. Essas palavras eram-me bem conhecidas: to enorme,
to belo, to vasto. o que sinto cada vez que me encontro com Deus. Deito-me para dormir,
mas no oro: "Senhor, guarda a minha alma". Em vez disso, busco uma dimenso maior num
ritual de adorao quase todas as noites. Suas bnos aglomeram-se em torno de mim numa
leveza maravilhosa da existncia. uma insnia estranha, patrocinada pela mais pura alegria.
Minha mente comea, primeiro, a chapinhar num riacho minsculo da graa de Deus. Pouco a
pouco, o riacho vai crescendo e ... Glrias ao Altssimo! Estou num oceano amplo demais para
medir, profundo demais para sondar. Fico delirante e deriva no mar da existncia eterna de
Deus. Porm, sempre da frgil fortaleza da praia do meu corao que dou o passo decisivo
para dentro desse oceano. Fico perplexo com o fato de, do centro da minha alma de guas rasas,
ter esse acesso imediato ao vasto oceano da presena de Deus. O corao uma porta simples; porm, sua estrutura etrea se abre para o majestoso panorama
da realidade. Aparentemente seria o contrrio. As nuvens abobadadas acima das escarpadas
montanhas no seriam lugar melhor para procurar a Deus do que os portais terrenos de nossa
alma? No. A vastido natural inspira, mas raramente resulta em comunho ntima com Deus. O
arrebatamento que sentimos ao deparar com as cataratas do Iguau tem maior probabilidade de
provocar um brado que uma conversa. As galxias que pairam nas alturas tendem mais a desviar
nossos olhos do cu e perguntar: "Pai, ests a?". As melhores respostas no vm de lugar algum
alm de ns. Por qu? Porque Deus se revela melhor de nosso ntimo. Deus se faz visvel aos que o procuram no lugar certo. Portanto, nenhum olho literalmente nenhum olho pode v-lo! Nenhum ouvido pode ouvi-lo! Mente nenhuma pode imagin-lo! somente nas dimenses mais profundas do nosso ntimo que ele oculta sua vastido. O mundo ao nosso redor o mundo dos relacionamentos "externos". Nele, cultivamos
amizades, conquistamos sucesso progredimos. Nesse mundo de sobrecargas e preocupaes temos compromissos, sofremos decepes e obrigamos nossa alma, impulsionada pelo ego, a
tentar conquistar o poder. Na superfcie de nossa vida, somos dominados pelas coisas frenticas
e indigestas. Mas em nosso corao a questo bem diferente. Em 1 Corntios 2.10, h uma palavrinha que nos prope um desafio: "Mas Deus o revelou a ns
por meio do Esprito. O Esprito sonda todas as coisas, at mesmo as coisas mais profundas de
Deus" (grifo do autor). O apstolo emprega aqui a palavra bathos no sentido de "profundo". Esse o conceito que
desejo manter em posio central neste livro. Profundeza a habitao de Deus. Profunda a natureza do oceano. Pense nessa metfora um
momento e saboreie sua lio adiante.
A profundeza, pois, onde a suprflua e barulhenta superfcie do oceano torna-se quieta e
serena. Nenhum som rompe o silncio inspirador de temor reverente que existe no corao do
oceano. A maioria dos cristos, no entanto, passa a vida sendo aoitada com violncia pelas
circunstncias da superfcie de sua existncia. O estilo de vida vazio marca a natureza
superficial de sua vida. Entretanto, os que sondam as profundezas de Deus descobrem a paz
verdadeira. A profundeza a ddiva da disciplina. Bathos uma palavra que entendi realmente quando estive no recife da Grande Barreira. Da
mesma forma que todos os outros visitantes do lugar, fiquei de incio assombrado pela sensao
estranha de ficar em p com a gua chegando apenas aos tornozelos no meio do oceano, entre 110 e 140 quilmetros da praia. Era uma sensao muito estranha, talvez como a que
Pedro deve ter tido quando andou sobre o mar da Galilia.
Entretanto, passada minha admirao de ficar com a gua pelos tornozelos, lembrei-me do
motivo por que fizera a viagem. Estava com minha mulher e meu filho. Ele viera para fazer
mergulho com garrafa de oxignio enquanto eu e minha mulher amos mergulhar com
esnrquel. O esnrquel mais passatempo do que esporte. Isso porque, enquanto meu filho
mergulhava nas profundas guas cristalinas, afundando-se nas maravilhas das profundezas
misteriosas do oceano, minha mulher e eu, com as mscaras, apenas flutuvamos na superfcie,
com o rosto dentro da gua. De certo modo, o que ns e ele vamos tinha a mesma aparncia. Mas minha mulher e eu
ficamos com queimaduras nas costas durante nosso estudo superficial do recife, enquanto nosso
filho sondava suas maravilhas. Houve outras diferenas naquele dia. Nosso filho passara muitos anos aprendendo a mergulhar
nas profundezas, pois descer a lugares profundos requer muitos anos de prtica. No se pode
atingir as profundezas instantaneamente no primeiro mergulho. A presso nos snus cranianos e
faciais precisa ser igualada aos poucos, pois chegar a grandes profundidades perigoso, pode
at ser fatal.
O que me deixa mais atnito como relatamos essa experincia depois que voltamos do recife
da Grande Barreira. Se me perguntarem se fui at l, responderei rapidamente que sim. Meu
filho tambm. No entanto, a verdade que o contedo da nossa experincia foi completamente
diferente. Ns trs vamos passar o resto da vida falando com muito entusiasmo daquela
experincia. Mas somente nosso filho conheceu o recife de fato, s ele compreendeu a questo
da profundeza. Abraham Maslow criou o conceito da pirmide das prioridades. Segundo ele, apenas poucas
pessoas conseguem realmente se realizar. Poucas se conhecem e vivem a vida de modo pleno.
Poucas vivem uma vida ajustada no pico da pirmide que ele desenvolveu. Na verdade, segundo
Maslow, o mundo inteiro se compe de pessoas que no esto no vrtice falando a outras que
tambm no esto sobre experincias do vrtice da pirmide. De alguma maneira, pa-rece-me
que boa parte do cristianismo uma conversa entre praticantes do esnrquel que falam sobre
experincias de mergulho profundo. Se meras conversas ou grupos de estudo fossem o caminho
para a experincia em profundidade, a igreja mergulharia realmente fundo. Mas so aqueles que
lem e oram, no os que filosofam e tagarelam, que alcanam vida de poder verdadeiro. A questo ir ao fundo. A profundeza revela a realidade de Deus. Mesmo assim, os praticantes
do esnrquel podem empregar a linguagem dos mergulhadores, pois existe certa proximidade
entre as metforas. Mas elas no so idnticas. estranho saber que esse estado de realidade
fica to prximo de ns. totalmente acessvel, porm, bem poucos chegam a conhec-lo ou a
atravessar seus portes com alguma regularidade. A orao a entrada que permite vislumbrar
as profundezas. Por que evitamos os portais de acesso a Deus? O excesso de tarefas a melhor resposta. Mas s
vezes duvidamos que a orao realmente surte efeito. s vezes, nosso corao est zangado com
Deus, e nossa resistncia a orar nosso modo de dizer: "Ele vai-se ver comigo. Vou deixar de
orar". Seramos muito mais sbios se deixssemos de lado nossas crises de mau humor e nos
dirigssemos diretamen-te s profundezas. 5
O tesouro reside nas profundezas da verdadeira espiritualidade. No h proveito em nos gabar
da posio que julgamos ocupar em Cristo. A riqueza est em sentirmos sede de ser semelhantes
a ele. O paradoxo mais estranho talvez seja que as conferncias "prticas" sobre espiritualidade
correm o risco de falar mais que a experincia.
Os verdadeiros mergulhadores espirituais so to apaixonados pelas profundezas que no
perdem muito tempo procurando transformar a
oceanografia em realidade num mundo em que as banheiras de passarinho definem paixes
menores. A palavra bathos (do grego) entra na composio do vocbulo "batisfera". Batisfera uma
_________________________________________________________________________ 5Emilie GRIFFIN, Clinging, New York: McCracken Press, 1984, p. 7.
esfera metlica revestida de paredes de ao dentro da qual os oceangrafos ficam protegidos
contra a presso esmagadora do mar e podem descer com segurana para estudar suas
profundezas. As profundezas no so apenas silenciosas e tranquilas, mas tambm escondem
um mistrio maravilhoso. Pense nos pesquisadores que descem ao corao do oceano na
Batisfera. Essas almas tm uma curiosidade apaixonada. Precisam desvendar mistrios! Ou, se
no conseguem desvend-los, precisam expor-se a sua luz at que a total transcendncia as
banhe com a nica realidade que pode satisfaz-las. Silenciadas pela vastido aqutica,
descobrem um esplendor que nunca podero comunicar turma do esnrquel. As glrias
inescrutveis das profundezas no podem ser descritas queles que esto presos segurana da
superficialidade. Mas esses mergulhadores entram no mundo profundo e silencioso para esclarecer ou para
experimentar o mistrio? Em 1 Corntios 2.7 e mais outras vinte ocorrncias no Novo
Testamento, Paulo fala do mistrio de Deus. No vamos s profundezas a fim de estudar Deus,
mas para experimentar a sua realidade. No podemos definir Deus numa experincia como essa,
pois ele no pode ser definido. Mas podemos, em ltima anlise, definir a ns mesmos. Nas
profundezas, reconhecemos nossa pequenez, nossa incapacidade e nossa necessidade. Pelo lado
positivo, descobrimos a tolice de buscar satisfao nos relacionamentos superficiais.
Aprendemos para nosso bem que Deus no revela sua grandeza nem a compreenso de ns
mesmos em trs minutos apressados de leitura bblica diria. De repente, ficamos conscientes de
que a grandiosidade de Deus jamais se manifesta empacotada em conhecidas oraes
cuidadosamente escritas, pelas quais muitos consciente ou inconscientemente procuram obter aprovao de seus ouvintes meramente humanos. A nobreza de muita intercesso
superficial encalha nesse ponto. Grande parte de nossa intercesso, bem como de nossa vida
espiritual, no passa de evidncia de quanto estamos viciados na paixo por ns mesmos. Nossa
sede profunda de conhecer a Deus frustrada pelo contentamento de brincar nas guas rasas de
nossos "pedidos" insignificantes. Diferentemente dos mestres de mergulho submarino, temos
medo das profundezas. Ou pior: somos apticos a elas. Percebemos que as lagoinhas formadas
pela mar alta no tm nenhuma aventura profunda. At podemos ser seduzidos pelo azul-es-
curo do oceano. Mesmo assim, recuamos diante de uma aventura ntima verdadeira. Nossa
espiritualidade no tem nada de profundo, mas nos sentimos seguros. Pois, quem conhece os pensamentos do homem, a no ser o esprito do homem que nele est?
Da mesma forma, ningum conhece os pensamentos de Deus, a no ser o Esprito de Deus. Ns,
porm, no recebemos o esprito do mundo, mas o Esprito procedente de Deus, para que
entendamos as coisas que Deus nos tem dado gratuitamente (ICo 2.11,12). Deixemos que nossos sentidos nos levem a descobertas. Deixemos que confessem suas
limitaes. Que os ouvidos fiquem envergonhados pelo rico silncio. Que os olhos descubram o
que no se pode ver. Que a mente seja desafiada pelo muro impenetrvel do mistrio da
piedade. Enxerguemos a importncia de Deus virando as costas para nossa insignificncia.
Desse modo, nossa pequenez passa a ser nossa glria! Melhor, a glria de Deus! Sentimos o
gosto das profundezas, e o nosso interesse pelas guas rasas desapareceu para sempre. Agora
estamos em busca do Deus vivo.
uma busca maravilhosa e urgente! A espiritualidade no uma coisa distante pela qual temos
de lutar durante toda nossa vida. Na realidade, a situao bem diferente. Considera-se que a
vida mais profunda possvel porque Deus est perto. No somente est perto, mas tambm
anseia por revestir-nos de poder mais profundo e atrair-nos, de maneira cada vez mais
irresistvel, para o esplendor de uma vida de amor a ele. Entretanto, para receber a plenitude de Cristo, preciso esvaziar-nos daquilo que nos enche a
vida. como o caso do professor que estava servindo uma xcara de ch ao aluno. Encheu a
xcara e ainda continuou despejando ch at transbordar. Finalmente, o aluno exclamou: O Senhor est enchendo muito a minha xcara! O professor respondeu: Ora, s voc esvazi-la que eu encho de coisa melhor que essa. Ns apenas continuamos enchendo nossa vida com o mesmo velho apetite de expresso
espiritual e raramente estendemos nosso interesse ou ampliamos nossos horizontes. Mas o caminho das profundezas melhor. Quando estendemos os braos a Deus com amor, e
Deus nos estende os seus, ele se encontra conosco nas profundezas do centro da nossa
existncia, onde "olho nenhum viu, ouvido nenhum ouviu, mente nenhuma imaginou o que
Deus preparou para aqueles que o amam". Venha, ento; vamos entrar nas profundezas.
Digitalizado por: Luis Carlos
Lanamento
http://semeador.forumeiros.com/portal.htm
Nossos e-books so disponibilizados gratuitamente, com a nica
finalidade de oferecer leitura edificante a todos aqueles que no tem condies
econmicas para comprar.
Se voc financeiramente privilegiado, ento utilize nosso acervo apenas
para avaliao, e, se gostar, abenoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os
livros.
Semeadores da Palavra
Senhor Deus, como nos sentimos bem!
To perfeitamente complacentes!
Maravilhosamente confortados!
Ns, a tua igreja, nos reclinamos
sonolentos em nossos privilgios.
Tratamos nossos tesouros espirituais
como coisa de pouco valor, como
se os possuir em abundncia
fosse uma condio natural,
sempre esperada.1
RAYMOND C. ORTLUND JR.
Certa noite escura, inspirado por ansioso amor
ventura feliz! sa sem ser observado, estando minha casa em repouso.
(Resumindo, pois, a alma quer dizer nessa
estrofe que foi saindo dirigida por Deus por amor a ele somente, incendiada de amor
por ele, numa noite escura, que a privao e
a purificao de todos os seus desejos
sensuais, no que diz respeito a todas
as coisas exteriores do mundo e
s que eram deleitveis carne
e aos desejos da sua vontade).
JOO DA CRUZ
Renunciar ao que temos de
somenos; renunciar ao que somos,
isso pedir muito.2
GREGRIO MAGNO
____________________________________________ A passion for God, Wheaton: Crossway Books, 1994, p. 148.
2Cit. Woodene Koenig-Bricker, 365 Saints, San Francisco: Harper
San Francisco, 1995, da leitura do dia 3 de setembro.
No devemos todos ser flexveis antes de
conhecer a vontade de Deus? No
devemos todos permanecer imveis
depois de compreender o que Deus
quer que seja feito?
Ele nos colocou como uma esttua no devido lugar.
Quando se acrescenta a essa permanncia simples algum
sentimento de que pertencemos totalmente a Deus e de que ele
o nosso tudo, devemos com efeito dar graas por sua bondade. Se
algum perguntasse a uma esttua colocada em algum lugar
numa sala:
Por que voc est a? Ela responderia: Porque meu senhor me colocou aqui. Por que voc no sai da? Porque ele quer que eu permanea imvel. Qual sua utilidade a? O que voc ganha por ficar a? No para meu benefcio que estou aqui; para servir e obedecer vontade do meu senhor.
Mas voc nem o v. No, mas ele me v e tem prazer em me observar onde me colocou.
Voc no gostaria de ter movimentos para poder chegar mais perto dele?
Certamente que no, a no ser que ele ordenasse isso. Voc no quer mais nada, ento? No, porque estou onde meu senhor me colocou, e sua satisfao o nico contentamento da minha existncia.
3
FRANCISCO DE SALES
________________________________________________________________________________________
3Thy will be done, trad. Henry Benedict Mackey, Manchester: Sophia
Institute Press, 1955, p. 34-5. (Publicado pela primeira vez em 1894.)
ROMPENDO A ESCRAVIDO DOS
DESEJOS
Oapetite um sinal de vida. As pessoas saudveis sentem fome. Em ltima anlise, nosso apetite pode nos definir. Os cristos devem ser pessoas que tm fome e sede de justia (v. Mt
5.6). Em outras palavras, os cristos devem ser definidos como pessoas que tm sede de Deus.
Sede de agradar a Cristo. Os mrtires no so aqueles que tm sede de morrer. So os que vivem
com imenso anseio de agradar a Cristo. Preferem agrad-lo entregando-lhe a vida a decepcion-
lo com traio nas questes fundamentais da obedincia. A maioria de ns no sente esse tipo de sede. Talvez tenhamos um pouco de sede de Cristo,
porm perseguimos com mais frequncia valores triviais: abrigo, comida, segurana, poder e
realizao sexual.4 Todos esses so apetites humanos perfeitamente normais, mas podem se
tornar muito perigosos se perdermos o domnio sobre eles e permitirmos que nos governem a
vida. H um nico meio de equilibrar todos os nossos apetites. Trata-se daquela palavra que
preferimos no aceitar ou, pelo menos, afastar para o mais longe possvel: "abnegao". Sem
abnegao, todo aquele que come gluto, todo assalariado ladro e todo apaixonado
estuprador. Por isso, quando Jesus nos chama para segui-lo, faz o apelo severo, porm gracioso: "Se algum quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome diariamente a sua cruz
e siga-me" (Lc 9.23). Como num piscar de olhos, acabou a brincadeira, e com ela tambm se foi qualquer direito
segunda poro de sobremesa. Todo desejo egosta foi suplantado pela caridade. Toda fantasia
sexual foi golpeada pela integridade moral. Quando as pessoas se negam a si mesmas, o
casamento duradouro, pois nenhum cnjuge ser capaz de trair. Banqueiro nenhum jamais
usurpar nem desviar dinheiro. Ningum ficar viciado em nada. Por que, ento, no pomos a abnegao em prtica? Por que no negamos a ns mesmos? No
conseguimos o desprendimento, a renncia de ns mesmos, por trs razes: primeiro, nosso
enfoque normalmente recai mais nos freios que na direo; segundo, vivemos muito
distanciados do grande Capacitador e, finalmente, no conseguimos ter a perspectiva celestial
dos valores reais. Ouo algumas pessoas levantarem objees a um caminho to bem delineado para a abnegao.
E a objeo justa. A abnegao seria assim to simplista? Ser que se pode dizer "um, dois,
trs" e encontrar o caminho para a moderao e o bem-estar espiritual? Vamos andar um pouco
juntos e avaliar a vitria. A vitria sempre alcanada quando temos sede de intimidade em nossa unio com Cristo. Em
certo sentido, mais do que sede; ficar espreita seguir Deus como num safari se seguem
os rastros da caa. Contudo, mais do que seguir os rastros de Deus. Deus tambm est nos cercando na sua realidade intangvel. Assim como as crianas tremem numa casa velha, vazia e
escura, os amantes de Deus estremecem diante da realidade do silncio na sua presena. Por que
as crianas tremem numa casa grande e vazia? Porque tm medo de que ela no esteja vazia,
mas cheia de algum pressgio de terror. Assim tambm estremecemos, por saber que h uma
realidade ao nosso redor to presente que sentimos aquilo que no conseguimos ver a atemorizante realidade de Deus. No medo de que ele nos destrua. medo do que pode exigir
de ns.
Estamos to sedentos de conhec-lo na sua plenitude que exclamamos, como Catarina de Siena:
"O profundeza de amor! Que corao pode deixar de partir-se diante da viso da tua grandeza
descendo inferioridade de nossa condio humana! Somos a tua imagem, e agora, ao te fazeres
um conosco, tu te tornaste a nossa imagem [...] Tu, Deus, te fizeste humano, e ns nos
_____________________________________________________________________ 4Abraham Maslow, destacado psiclogo, foi o primeiro a identificar essas cinco necessidades bsicas. tornamos divinos!".
5 Essa a glria da imagem espiritual: a fuso de duas semelhanas.
Melhor de tudo, nosso foco passou a ser os novos apetites. Esse anseio incessante pede mais de
Cristo e mais alm, a imitao de Cristo. Teresa de Lisieux escreveu sobre a unio com Cristo como um apetite todo-consumidor a que chamava de obra de amor. Que expresso
estranha e ao mesmo tempo espiritual! Ela escreveu: "Ora, desejo apenas uma coisa amar Jesus at ficar boba! Somente o amor me atrai [...] minha nica diretriz a abnegao, no
tenho outra bssola".6 Teresa de Lisieux reconhecia que sua obra de amor era idntica de Joo
da Cruz, que escreveu: "Bebi profundamente na adega do meu amado [...] Minha alma contenta-
se em servi-lo com todas as foras. Terminei todas as outras obras, menos a obra do amor".7
FOCALIZAR O FREIO ANTES DA DIREO
Considere a metfora do freio e da direo. Pareceria estranho ao examinador do Departamento
de Trnsito se, no momento do nosso exame de direo, chegssemos ao local com um pedal de
freio de 45 centmetros e um volante de 15 centmetros. Mas com frequncia esse o nosso
perfil espiritual. Muitas pessoas relutam em se tornar crists porque acham que "seus freios no
so suficientemente grandes". Ficam pensando: "Ser que vou conseguir abrandar meus apetites
para ser um cristo de boa moral?".
Para a maioria dos no-crentes, o cristianismo um calhambeque velho, no um carro esportivo.
em geral considerado sem atrativos e no muito bom para a imagem pblica do indivduo.
Para os de fora da igreja, parece que o freio tudo que importa para os cristos. Mas esse freio
no se aplica apenas no aspecto moral. Tambm se aplica culturalmente. Em todo perodo de
progresso, parece que so sempre os cristos que voltam aos tempos passados e pem freios no
futuro de todos os avanos culturais. Alm disso, os evangelistas sempre esto procurando arregimentar para a f os pecadores
orgulhosos com perguntas intimidadoras, como: "Se voc morresse agora, saberia com certeza
se iria para o cu?", ou: "Voc consegue parar de pecar? Como vai seu sistema de freagem?".
Essa mstica do tipo "nada de alegria" leva os possveis convertidos a duvidar que tm freios
suficientes para ser cristos. No se deve perguntar a esses convertidos relutantes: "Voc conse-
gue frear sua vida de pecado?", mas: "Para onde voc quer ir na vida?". Deve-se dizer a eles que
Cristo est presente para conduzi-los ao futuro que Deus tem para eles. Os evanglicos, na maior parte de sua histria, tm enfatizado curiosamente mais o freio que a
direo. Esto sempre abandonando isso ou aquilo. com certa vergonha que devo confessar
que, durante a maior parte da minha vida crist, tenho tentado abandonar o que considerava
barreira na minha devoo a Cristo. Na verdade, passaram-se dcadas da minha vida em Cristo
at que me ocorresse a sria conscincia de que no nos tornamos crentes vibrantes por causa do
que abandonamos. Os cristos no tm tanto que abandonar, mas, sim, tm muito que comear.
No se fazem agradveis a Deus por tudo que deixaram de lado na converso. Pelo contrrio,
so as novas atividades em que se engajam que cativam a estima do cu. a novidade de vida
que os leva a bendizer cada novo amanhecer e o possvel incio de um andar renovado mais per-
to de Deus. O crescimento espiritual ocorre no constante comear e comear, comeando cada
dia com algo novo e criativo que produza um caminhar criativo, nunca enfadonho, com Cristo. De onde, ento, tiramos essa doutrina estranha do deixar de fazer? Essa opinio equivocada surgiu cedo em minha vida, devido a rea-vivamentos contnuos que
chegavam em nossa igreja e comunidade. O irmo "Labareda" (e tinha muitos outros nomes)
nos visitava at duas vezes por ano, com duas semanas de reavivamentos. Exortava os perdidos
a buscar a salvao e, claro, eles buscavam. Isso por si s trazia alegria igreja. A motivao
_________________________________________________________________________ 5 Mary Ann FATULA, Catherine of Siena's way, Collegeville: The Liturgical Press, 1987, p. 186. 6The story of a soul, trad. John Beevers, New York: Doubleday, 1957, p. 109. Tbid.
com que desafiava o povo era, porm, uma bomba neurotizante. Em todo sermo, o fogo caa (e
com uma boa quantidade de enxofre), e pelo menos um dos piores viles da cidade chorava e
abandonava seu pecado. Com o tempo, acabava sendo o principal dos diconos severos. Apesar
de todo o melodrama deles, s vezes sinto saudades desses incendiados arautos interioranos. Todavia, o foco da mensagem deles era sempre a conclamao desistncia. "Pare de beber desista do seu mpio usque e venha frente entregar-se", era a exortao tpica. "Se Deus
quisesse que voc fumasse, teria colocado uma chamin na sua cabea", exclamava um desses
evangelistas. Alguns iam frente e deixavam o cigarro no altar. Todos viam que essas ex-
chamins ambulantes estavam limpando os pulmes e se aperfeioando na f. Aleluia pelos
freios! Alguns prometeram que nunca mais seriam culpados de "ter na mesma perna um p
danarino e um joelho de orao". Alguns abandonaram o baralho e para a glria de Deus
deixaram a canastra para sempre. Outros, no entanto, voltaram a jogar baralho para deleite dos
demnios. Eu era jovem e amava a Jesus mais do que se imaginava. Queria "abandonar coisas" como os
outros faziam. Mas sempre me sentia culpado por ter to pouca para abandonar. Queria
conhecer aquela espiritualidade devota e neurtica gerada pela desistncia de beber, danar e
fumar. Para minha tristeza, fui impedido desse conhecimento, pois era grande a ausncia de
pecado grave em minha vida. Para um menino de nove anos de idade, eu vivia uma vida
razoavelmente limpa.
Foi quando meu pastor, notando que eu estava sem grandes pecados e muito satisfeito por isso,
comeou a condenar o cinema. Graas a Deus! Finalmente havia algo de que eu podia desistir.
Eu adorava os filmes de faroeste: Hopalong Cassidy, Lash LaRue e Gene Autry estavam entre
meus personagens prediletos. Infelizmente, no eram os prediletos de Deus, pois eram astros do
cinema. Deus gostava dos cristos, mas no dos astros do cinema. O pastor me explicou que
Deus desprezava esses vis sedutores de coraes. Alm disso, se eu quisesse ter comunho com
Deus, teria de confessar minha afeio mundana por eles. A praga de Hoppy, Lash e Gene! Eu
ia me livrar dessa trindade infernal de heris condenveis. Foi o que fiz desisti do cinema. Agora enfim eu era cristo de primeira categoria. Foi difcil esperar a chegada do domingo para
anunciar diante da igreja meu recm-adquirido ascetismo. O domingo foi chegando lentamente.
Quando finalmente chegou, meu delrio espiritual estava no auge. No momento do apelo,
enquanto a congregao cantava "Tal qual estou", fui para a frente da igreja. Visualizava-me
oferecendo Hoppy, Lash e Gene no altar, por amor a Jesus. Os cus ficaram atentos minha
nova ao gloriosa de abnegao. Os anjos choraram. Os demnios malignos de Hollywood
fugiram, totalmente excludos da minha vida. Fiquei livre. Agora, quando meu pastor dissesse: Voc vai querer estar num cinema mpio quando Jesus voltar? eu podia gritar: No, pois separei-me do mundo e abandonei a impureza. De vez em quando, eu ficava intrigado com o alegado grau de degradao dos faroestes da
dcada de 1940. Mas eu aceitava o juzo daqueles evangelistas, pois sabia que eu no era to
adulto nem to sbio quanto eles. Achava que eles andavam to perto de Jesus que eram capazes
de avaliar a corrupo sutil que eu no enxergava de imediato. Quando, portanto, chegou ao fim
a quinzena de reavivamento, fiquei destitudo dos cowboys mpios de Hollywood e passei a
viver uma vida mais profunda, conforme entendia. Meus amigos no-santificados procuravam
seduzir-me de volta ao pecado, dizendo: Voc quer assistir aos Cavaleiros da Slvia Roxa? De incio eu respondia: No, obrigado, desisti de tudo isso! Mesmo assim, o cinema era um atrativo forte. Eu no conseguia resistir! Costumava voltar a
frequentar as sesses de faroeste assim que o reavivamento terminava. Caa das minhas grandes
declaraes de f com a mesma frequncia que me apegava a elas. Mas persistia, at sofrer uma
recada e voltar aos meus velhos hbitos. Minhas intenes firmes eram to secas quanto
aquelas velhas massas endurecidas de chiclete de hortel grudadas embaixo das poltronas
daquela sala pag. Eu nem conseguia curtir os filmes de verdade, pois, afinal, Jesus poderia
voltar, e ali estaria eu, "cavalgando pela salvia roxa" para dentro do abismo onde todos os infiis desviados pereciam por no terem mantido os compromissos assumidos no
reavivamento. Ai de mim! Cara de novo, e nada mais podia ser feito at o prximo
reavivamento ento quem sabe poderia purificar minha alma e desistir do cinema novamente, antes de me desviar outra vez e voltar a desistir em seguida. Passaram-se muitos anos at que me desse conta de que raras vezes me centrava em Jesus, mas,
sim, em todas as coisas que precisava largar. Senti-me culpado do complexo de "quem dera que
o pecado no fosse to divertido". Muitos cristos, talvez a maioria, passam a vida pensando:
"Queria mesmo seguir a Jesus, mas tambm queria me divertir". No possvel, diziam. Assim
fui levado a acreditar que Jesus e a diverso eram antteses entre si. As atuais pulseirinhas e os
adesivos de carro "O Que Jesus Faria?"8 podem alimentar essa mesma neurose. Jesus iria ver
Hoppy, Lash e Gene? No final do sculo XX, quem sabe, mas no em 1948. A estranheza desse
novo OQJF quase sempre me levava a dizer "no". Mas, na realidade, era sempre difcil para
mim principalmente como jovem enxergar Jesus no meu mundo. Para mim, era difcil imaginar, mesmo com todo o esforo mental, Jesus em Enid, Oklahoma, andando pelo frum
vestido com a longa tnica branca. Como ele poderia evitar os carrapichos nas sandlias? E eu
jamais conseguia imaginar sua aurola luminosa no escuro do cinema local, vendo filmes de
Hoppy, Lash e Gene. Fiquei preso nessas imagens. No final da adolescncia, aprendi a praticar esqui aqutico. Foi
dos esquiadores que finalmente obtive uma resposta pergunta: "Eu gostaria de estar num
cinema em Oklahoma quando Jesus voltasse?". Eu gostava muito de esquiar era divertido. Jesus faria esqui aqutico? Claro que no. Jesus nunca se divertiu. Gostava muito de reunies de
orao. Ento, o velho reavivamento avultava-se alm da corda que me puxava. Jesus estava
dirigindo o barquinho a motor e fazendo sinal de advertncia com o dedo para mim, acima das
guas espumantes. "Voc quer estar montado nesses esquis quando eu voltar?", dizia. Eu desconfiava que esquiar devia ser pecado, pois era to divertido! O que Jesus faria? Oraria e
distribuiria folhetos de reavivamento, no verdade? Ainda que no achasse ruim divertir-se,
sua aurola e suas sandlias o obrigariam a se comportar, a permanecer firme e controlado e,
claro, profundamente batista. Jesus? Fazer esqui aqutico? Claro que no sua longa tnica branca seria um empecilho na gua. Ento, pela primeira vez concentrei-me no no que Cristo poderia fazer (na verdade, pelo texto
bblico, parece que se divertia, visto que sempre ia a festas) mas no que ele santificava. Em
outras palavras, pode haver de fato diferena entre o que Jesus realmente faria e aquilo que ele
santificou. Ele era o carpinteiro que abenoava os pescadores, embora ele prprio talvez no tivesse
nenhuma preferncia pela pesca. Quem pode saber se ele teria praticado esqui ou no ou
mesmo ido ao cinema? Se o contedo moral de algo que fazemos no menospreza a santidade, a
presena de Cristo em nossa vida pode realmente santificar essa atividade. Entretanto, a principal lio que aprendi nessa rea que eu precisava largar mo de largar.
Largar, ou abandonar, implica concen-trar-se num nico objetivo: o que deve ou no ser
abandonado. Os que focalizam a ateno em Cristo raramente so obrigados a largar alguma
coisa, pois o desejo de unio com Cristo os probe de comear algo que depois precisem
abandonar.
O PECADO DE VIVER LONGE DO GRANDE CAPACITADOR
As tolerncias que nos acabam prendendo em suas malhas de vcio so de incio bem fracas no
encantamento sobre ns. As pessoas nem sempre comeam a beber por desejar ficar bbadas.
Muitas vezes elas se embriagam por hbito de uma vida vazia. Isso no se aplica somente
embriaguez, mas tambm a todos os nossos vcios. A glutonaria destri da mesma forma que a inveja irrefreada ou a concupiscncia descontrolada.
Mas os sete pecados capitais raramente criam razes numa vida ocupada e com propsitos.
Todos eles vicejam melhor no solo do vazio humano. O vazio a neurose principal que gera muitos vcios menores. Conheci vrios pastores que
comprometeram a vida e o ministrio com casos ilcitos. Sem exceo, todos confessaram que ________________________________________________________________________ 5OQFJ (O Que Jesus Faria?) Adaptao em portugus de WWJD, What Would Jesus Do?, campanha que
comeou nos Estados Unidos, cujo tema foi inspirado no livro Em seus passos, que faria Jesus? de
Charles M. Sheldon, publicado originalmente em 1896.
no foi o apetite pelo ato ilcito que primeiro os atraiu para o testemunho decado. Achavam que
a igreja os abandonara e deixara sozinhos, com o esprito vazio e sem ningum com quem
pudessem falar. O adultrio brotou da fraqueza da comunho deles com Cristo. A infidelidade
crescia medida que a necessidade deles guerreava com o vazio que tinham por dentro. O vazio pode nos deixar levianos, a ponto de o preenchermos com a satisfao de qualquer
apetite secundrio que aparentemente sacie a fome da nossa alma. Um dos cristos mais
solitrios que j conheci era executivo de uma grande empresa. Ele comandava uma grande rede
de empresas, mas confessava que se sentia sozinho, sentado numa poltrona de couro atrs de
uma grande mesa de vidro. Em casa, a mulher vivia ocupada cuidando dos quatro filhos. Desse
modo, paulatinamente os horrios noturnos dele e a fadiga dela fizeram o relacionamento entre
eles fenecer. Ele comeou a beber para conseguir dormir e acabou dependente do lcool.
Quando levantei a hiptese de que talvez ele fosse alcolatra, protestou. Devagar, no entanto,
foi convencido a entrar num programa de desintoxicao que, ao lado dos Alcolatras
Annimos, livrou-o para sempre do vcio um dia por vez. Eu no teria levantado esse caso aqui se no fosse um exemplo claro de algum que era cristo e
se tornou alcolatra. O vazio desse homem antecedeu seus vcios. Revi nele a verdade do
provrbio de Jung: "A ausncia de espiritualidade a neurose central dos nossos tempos". A
ausncia de espiritualidade a liberdade perdida que trocamos por nossos vcios. Pascal tinha
razo. Existe em ns um espao vazio na forma de Deus que somente Deus pode preencher.
Nessa altura, devo perguntar: Voc um cristo em cuja vida ainda existe um vazio no
preenchido? At os cristos podem ter vazio existencial. Como chegaram a criar esse vazio?
Pela simples negligncia de seu relacionamento com Deus. Quando Deus preenche nosso vazio interior com o Esprito Santo, a vida funciona. Quando
Deus no o preenche, uma multido de apetites devoradores destri nossas melhores intenes.
Pessoas brilhantes que deveriam dominar seus apetites acabam dominadas por algum demnio
pavoroso que a princpio no era bem-vindo na vida delas. Em seguida, o demnio passou a ser
bem-vindo. Depois a presena dele tornou-se habitual. Finalmente era o vcio, e no o cristo,
que dominava. Pense em quantas neuroses inundam a vida de vrios viciados. A me de Gilbert Grape (personagem de Aprendiz de sonhador, filme adaptado do romance de
Peter Hedges) permitiu que a glutonaria a destrusse dentro de uma casa cujas vigas mal podiam
sus-tentar-lhe o peso. O livro de Upton Sinclair intitulado Cup of jury [Clice de fria] trata do
alcoolismo, bem como The lost weekend [O fim de semana perdido] (de Billy Wilder e outros)
ou Ironweed (filme de Hector Babenco, baseado no livro homnimo) e muitos outros ttulos. Os
livros e filmes, assim como a poltica nacional, contm histrias que abordam vcios sexuais. A
cobia irrefreada do poder o tema de Segredos do poder, Mera coincidncia, da srie de filmes
O poderoso chefo e de praticamente metade dos filmes e novelas produzidos. O sexo um habitante frequente de nossa vida interior. Pode entrar com tanta regularidade em
nossa mente que capaz de usurpar o lugar dos pensamentos e do tempo que deveramos
dedicar a Deus. Frederick Buechner referiu-se ao sexo como "o macaco que fica chiando em
nossas costas". Chama-o de "o grande segredo" que mantemos dentro de ns a ponto de
produzir uma patologia espiritual destrutiva. "Suponho que o sexo o segredo que, em menor
ou maior grau, cada um de ns esconde dos demais [...] o grande segredo aberto que, no
importa o que mais possamos ser, somos corpos, e, como tais, precisamos tocar e ser tocados
[...] Quando pecaram, Ado e Eva procuraram esconder a nudez um do outro e de Deus. Em
maior ou menor grau, ns a escondemos desde ento porque, suponho, sabemos que nossa
sexualidade uma boa ddiva de Deus, e ns, pecadores, podemos us-la para desumanizar
tanto o prximo quanto a ns mesmos".9
Os filmes e as novelas mais populares so histrias de perdas diante dos apetites. Porm, o
comentrio mais triste referente ao cristianismo contemporneo que tambm estamos
envolvidos nesses relatos. Muitos cristos, seja em editoras ou em igrejas, esto dominados por
um esprito de concorrncia mpia. As megaigrejas apresentam um aspecto altrusta (e at
evangelstico) enquanto o tempo todo guerreiam com as tticas de relaes pblicas e
publicidade. Embora muitos telogos e pensadores tenham procurado cham-las de volta dessa _______________________________________________ 9Telling secrets, San Francisco: Harper San Francisco, 1991, p. 74-5.
posio, a corrida para ver quem maior, melhor e mais famosa continua. Usando outros nomes
para santidade fingida, esses cristos rivais raras vezes deixam de lado a poltica de intimidao
santa.
Isso tudo se soma a um tipo de impotncia, que sempre resulta de se afastar do Grande
Capacitador. Quando no queremos dar lugar orientao vinda do Cristo que habita em ns,
tudo o que resta a atribulada e neurotizante programao do nosso difcil discipulado. O triste
de tudo isso que o verdadeiro discipulado nunca pode ser neurotizante, pois deve seguir o
exemplo do Mestre e desviar-se da turbulncia para abraar a devoo convicta e a adorao
silenciosa.
DEIXAR DE PROCURAR A PERSPECTIVA CELESTIAL
DOS VALORES REAIS
Para o crente, s existe uma pergunta digna de ateno: Como Deus v o meu discipulado? Na poca do escndalo que envolvia o presidente Clinton, fiquei aptico e entediado com a
opinio pblica. Os noticirios e os programas de entrevistas da TV apresentavam pontos de
vista que nada contribuam para a resoluo do problema; eram ura amontoado de fofocas. Os
lderes eclesisticos e os telogos tambm manifestavam suas opinies e teorias. Raras vezes,
algum expunha sua opinio do ponto de vista divino. Creio que as pessoas que se mantiveram
mais caladas agiram assim porque viram o problema com os olhos de Deus e avaliaram o
pecado nacional de acordo com o padro das expectativas divinas. No h cultura mais cega que aquela que no quer ver. No h cristo mais morto que aquele
cuja vitalidade se esgotou por falta de contato com Deus. As instituies (e a maioria delas foi
estabelecida a fim de prestar servios nobres e sacrificiais a Deus, conforme o entendiam)
acabam degenerando em pouco mais que escadas para a autopromoo egosta. Denominaes
que se formaram para o altrusmo das misses acabam transformando-se em pouco mais que
clubes religiosos empenhados na proteo dos interesses dos membros. Catarina de Siena
escreveu que os lderes eclesisticos de seus dias viviam presos ao luxo. No sabiam latim, de
modo que no conseguiam celebrar uma missa sensata. Eram bares do poder sem nada, alm
de espiritualidade vazia e pregao dbil, que lhes definisse a vida competitiva e sem
compaixo. Seu servio a Deus era apressado e fingido.10
Talvez a mais relevante de todas as vises pessoais seja a que enxerga com os olhos de Deus.
Saber o que Deus deseja de uma nao, mas no ter capacidade alguma para fazer isso
acontecer, inevitavelmente causa destruio. O primeiro passo em direo cura sempre reconhecer a enfermidade. Israel, nos momentos
de declnio, no considerava mpios seus prprios caminhos, de modo que a cura no era
possvel. Oswald Chambers dizia que devemos sentir a dor dos nossos pecados se realmente
quisermos lev-los a srio. "O indivduo entra no Reino quando as dores atrozes do
arrependimento colidem com sua dignidade.
Em seguida, o Esprito Santo, que gera essa agonia, comea a formao do Filho de Deus na
vida desse indivduo".11
As enxurradas de opinies durante a poca do escndalo do presidente Clinton levaram poucos a
perguntar: "Deus tem algo a dizer sobre isso?". Caso tenha, talvez devamos alterar nossa
opinio para concordar com a dele. Talvez seja a maior das hipocrisias empossar presidentes
que prestam juramento com a mo sobre a Bblia, visto que eles nunca mais a abrem para
promover os objetivos morais de Deus. Entre os cristos, no h muita vida nobre, mas s vezes surge um homem ou uma mulher cuja
disciplina inicia o dia perguntando: "Senhor, o que queres que eu faa?". Essa pergunta
preceitua um modo de viver para esse dia, e esse modo de viver define um estilo de vida.
Dietrich Bonhoeffer, perto de morrer, tomou conscincia de que sua vida no tinha nenhuma
definio firme, a no ser a que Deus lhe dava. Escreveu primorosamente: Suportei os dias do infortnio de modo equnime, sorridente e orgulhoso, como quem est ____________________________________________________________________________________________________________________
11Tudo para ele, Venda Nova: Betnia, 1988, da leitura do dia 7 de dezembro.
12The cost of dscipleship, trad, para o ingls R. H. Fuller, New York: Touchstone Books, 1959, p. 20.
acostumado a vencer. Sou eu mesmo, ento, aquele a respeito de quem falam outros homens?
Ou sou apenas o que sei a respeito de mim? Inquieto, ansioso e doente. Quem quer que sejamos,
somos de Deus.12
Como dar o devido valor ao fato de que, em ltima anlise, Deus domina nossa vida? Devo
confessar que minha vida est dividida entre meu desejo de ser um escritor importante e meu
anseio de ser apenas uma alma que deseja descobrir o plano de Deus para si um timo na eternidade. A ambio brota em quase todos os coraes. Naturalmente, pode servir de
combustvel para nossa carreira, mas por demais intrinsecamente egosta para ser um guia de
confiana. Somente o ponto de vista do cu nos guiar obedincia jubilosa e livre de erros. S
uma vida piedosa nos capacitar a enxergar como temos de viver, desejando que tudo seja como
deve ser. Na densamente povoada Tquio, existe um acordo geral (na realidade uma lei municipal) para
que ningum levante arranha-cu nem prdio algum que obstrua a vista do sol de outra pessoa.
Os japoneses acreditam que em algum perodo do dia todos tm o direito de ver o sol. H muito
tempo, Deus me deu a convico de que preciso tentar ajudar as pessoas a preencher o vazio
delas. Acredito que todos tm o direito de "ver o Filho". Desse modo, todos os apetites
puramente humanos perderiam seu poder. Vamos ento avanar para o apetite majestoso.
Teremos Jesus no ntimo do nosso corao e no precisaremos usar nenhuma jia crist para
contar ao mundo os nossos anseios. As pessoas enxergaro alm das nossas jias, dentro da
nossa vida.
CONCLUSO
A diferena entre o que Deus quer para ns e aquilo em que acabamos nos transformando
depende de derrotarmos o domnio dos apetites que nos acorrentam ao modo de vida egosta e
aos alvos egostas da vida. Os passos para a liberdade so simples, mas sempre exigentes. Em
primeiro lugar, nosso foco precisa ser a sede do que Deus deseja para ns, em vez de meramente
tentar desistir daquilo que ele no quer. Segundo, devemos concordar em viver mais prximos
do grande Capacitador. Finalmente, devemos viver em espiritualidade abundante para enxergar
o tipo de mundo que Deus quer que exista e nos esforar para ser o tipo de cristo que Deus
quer que sejamos. Oswald Chambers achava que quase todos ns no renunciamos deliberadamente a viso de
Deus para nossa vida. Perdemos essa viso por negligncia. Quando nascemos de novo, parece
que captamos um vislumbre do nosso valor, tanto para Deus quanto para ns mesmos.
Tornamo-nos desobedientes a essa viso quando comeamos a viver como se ela no pudesse
ser alcanada.13
raro negarmos a viso ou discutirmos o sonho de Deus para ns. "Perdemos
a viso por meio do vazamento espiritual", diz Chambers.14
Isso lastimvel, visto que nunca
conheceremos a felicidade espiritual sem ter aceitado a viso de Deus para nossa vida. Quando aceitamos essa viso de Deus, oramos. Mas talvez esperemos revelaes instantneas
demais quando oramos. Queremos orar de manh por um carro de fogo e j ao entardecer ir
igreja montados nele. raro orarmos pedindo fogo e ao abrir os olhos ver uma caixa de fsforos
em nossa mo. Raios e troves so muito improvveis. melhor comear de forma modesta e discreta. No h
necessidade de contar aos nossos amigos e conhecidos. No h necessidade de planejar jejuns
hericos nem viglias que duram a noite inteira [...] a orao no nem para impressionar os
outros, nem para impressionar Deus. No deve ser empreendida com mentalidade de sucesso. O
alvo, na orao, doar-se a si mesmo.15
A questo pode ser resolvida de modo to simples assim? Sim. Viver a vida segundo Deus a
nica atitude que nos pode satisfazer. Naturalmente, aqueles que enxergam e sabem o que Deus
deseja devem chorar de tempos em tempos. Chorar por causa da inconstncia daqueles que
criou a natureza do nosso Deus vivo e amoroso. Foi por amor que ele enviou seu Filho. O
Calvrio no uma soluo muito complexa para o pecado humano, mas custou a Deus tudo
quanto tinha. E o Calvrio foi o lugar de Deus chorar. Mudar o mundo gastar tudo e depois
esperar e chorar.
______________________________________________ 13CHAMBERS, da leitura do dia 24 de janeiro. 14Ibid., 11 de maro.
15Emilie GRIFFIN, Clinging, p. 15.
Venha, em minha labuta encontrar
lugar de repouso
E nas minhas dores recostar a cabea,
Ou ento tome minha vida e meu sangue
E compre uma cama melhor Ou tome meu flego e minha morte
E compre um descanso melhor. 1
THOMAS MERTON
Empregue o que tem.
Os cinco pes de cevada e os dois peixinhos
vo aumentar quando forem distribudos.
Mo inveje quem tem mais sucesso
que voc, seno ser condenado
por murmurar contra a determinao
de nosso Senhor.2
F. B. MEYER
Estou porventura permitindo que minha
vida natural seja pouco a pouco transfigurada
pela vida do Filho de Deus que habita em mim?
O objetivo supremo de Deus que seu Filho
seja manifestado em nosso corpo mortal.3
OSWALD CHAMBERS
______________________________________________________________ 1The seven-story mountain, New York: Harcourt, Brace e Jovanovich, 1948, p. 404.
2Cit. Changed by the Master's touch, p. 55.
3Tudo para ele, da leitura do dia 31 de maio.
Como nos libertaremos do mundo
presente se no pensarmos
no mundo futuro?
No foi mediante a orao que Paulo, Agostinho, Toms de
Aquino, Joo da Cruz, Teresa e tantos outros amigos de Deus
encontraram o conhecimento maravilhoso que deixou extasiados
os maiores intelectos? Arquimedes disse: "Dem-me um ponto
de apoio e com uma alavanca moverei o mundo". O que ele no
conseguiu obter, os santos receberam. O Onipotente deu-lhes um
ponto de apoio: ele mesmo, somente ele. Como alavanca, eles
tinham a orao ardente do amor. Assim moveram o mundo, e
com essa alavanca que aqueles que continuam batalhando no
mundo o movero e continuaro movendo at o fim dos tempos.4
Teresa de Lisieux
4The story of a soul, p. 148.
ROMPENDO A
ESCRAVIDO DO MATERIALISMO
Os Pais do Deserto foram para l a fim de ser "libertos da fartura". Ter fartura no condio abominvel, mas ser controlado por ela, sim. Deus quer que seu povo viva livre do apego ao
dinheiro. No deseja que as pessoas fiquem miserveis por causa da avareza. Muito pelo
contrrio. As pessoas mais miserveis so aquelas possudas pelo materialismo. Na lngua
corrente, "miservel" tambm sinnimo de "sovina", "avarento". Logo, "misria" significa
tambm "avareza". Catarina de Siena estava convicta de que a privao melhor amiga do materialismo do que as
riquezas. Os ricos em geral no tm tanto ardor por seus bens nem pela conservao deles
quanto os necessitados. Estes (talvez porque precisem fazer mais sacrifcios para conseguir
alguma coisa) quase sempre ficam mais apegados a seus pequenos tesouros do que os ricos. Catarina aconselhava seus amigos prsperos a viver unidos com a vontade de Deus. Ressaltava
tambm que existe virtude nas posses materiais, pois Deus quer que desfrutemos as suas
ddivas. Mas Catarina tambm nos recomendou que no amssemos tanto essas ddivas de
modo que, em vez de as possuirmos, passem a nos possuir.
Em Lucas 18, Jesus encontra-se com um jovem rico e importante. O fato de o jovem possuir
muitos bens materiais no era pecado, mas, sim, seu apego a eles. Barnab tambm tinha riquezas, mas "vendeu um campo que possua, trouxe o dinheiro e o
colocou aos ps dos apstolos" (At 4.36,37). O que Barnab fez que o jovem rico e importante
no conseguia fazer? Livrou-se de um grande apego. O jovem importante era escravo da paixo
chamada ter. Alm disso, no se exercitara na arte do desprendimento. Os monges antigos
interpretavam o desprendimento como "no permisso aos valores terrenos nem ao
egocentrismo de nos distrair do essencial no nosso relacionamento com Deus e com o
prximo".5
AS POSSES E O PECADO DO MATERIALISMO
Annie Dillard escreveu um poema breve que exemplifica a insensatez de tentar conservar Jesus
e o dinheiro na mesma caixa: Conservamos nosso papel-moeda trancado numa caixa por medo do fogo. Certa vez, abrimos a caixa e saiu Jesus, o cordeiro, deixando seu rastro de chamas por todo o assoalho.
6 "Ter" no o primeiro pecado dos materialistas. O pecado que o antecede considerar nosso o
que temos. A maioria dos crentes re-cm-convertidos comea a acumular posses numa atitude
de quem no enxerga os bens como de importncia mxima, de modo que esto dispostos a dar
a Deus a glria por lhes ter dado o que possuem. Porm, mais cedo ou mais tarde, alguns
esquecem a origem de suas bnos materiais. Para os que esquecem, "ter" no o que Deus lhes faz possvel adquirir, mas o que eles mesmos acham que conseguiram e, portanto, tm
direito de usufruir.
Em duas viagens missionrias recentes por vrios pases, tive a oportunidade de pr prova
uma frase materialista muito comum nos adesivos de carro nos Estados Unidos: "Quem tiver
mais brinquedos, ganha". Ganha o qu? Pontos na bolsa de valores? Talvez no mais do que
___________________________________________________________________________ 5Kathleen NORRIS, Amazing grace, New York: Riverhead Books, 1998, p. 32.
6Tickets for a prayer wheel, New York: Harper & Row, 1974, p. 125.
isso. As pessoas mais felizes que conheci em geral moravam em lugares como Calcut, onde
no havia possibilidade de riquezas. Existem poucos jovens ricos e importantes em Calcut. O
nico objetivo razovel de algum naquele enxame humano acordar vivo no dia seguinte. Viajei por aldeias e cidades onde os habitantes nem imaginam o que um carto de crdito.
Qualquer proposta de sair para fazer compras impossvel. "Comprar at no aguentar mais"
um lema condenvel criado por quem j tem as despensas abarrotadas e cujas garagens imensas
so redutos evidentes de veculos desnecessrios. Em Calcut, muitas outras frases de pra-choques perderam o sentido, como, por exemplo,
"Tenho dvida na praa logo, tenho de trabalhar muito" ou "Meu filho e meus cheques esto na universidade". Estranhamente ausentes eram perguntas como "Quantos metros quadrados...?"
ou "Qual seu segundo carro?". Fomos avisados muitas e muitas vezes para no elogiar
nenhum objeto nos lares que visitvamos, porque os cristos de l seriam capazes de nos dar de
presente. Os editores da revista Leadership [Liderana] propuseram nove medidas drsticas que os norte-
americanos ricos teriam de adotar para se identificar de fato com o mundo em desenvolvimento: Primeira, remova os mveis: deixe apenas alguns cobertores velhos, uma mesa de cozinha e
talvez uma cadeira de madeira. Voc nunca teve cama, lembra? Segunda, jogue fora as roupas. Cada pessoa da famlia pode ficar com seu terno ou vestido mais
velho e uma camiseta ou blusa. O nico par de sapatos o do chefe da famlia. Terceira, os eletrodomsticos sumiram da cozinha. Voc tem direito a uma caixa de fsforos,
um saco de farinha, um pouco de acar e de sal, algumas cebolas e uma tigela de feijo seco.
Recupere as batatas emboloradas da lata de lixo: so a refeio de hoje noite. Quarta, desmonte o banheiro, corte a gua corrente, remova os fios e as lmpadas e tudo que
funciona com eletricidade. Quinta, desmanche a casa e mude-se com a famlia para o galpo das ferramentas. Sexta, nada de carteiro, bombeiro ou servios pblicos. A escola, com duas salas de aula, fica a
seis quilmetros. Apenas dois dos seus sete filhos a frequentam de verdade, e vo a p. Stima, jogue fora os tales de cheques, as aes da bolsa, os planos de aposentadoria. Seu
dinheiro acumulado e guardado agora no passa de alguns trocados. Oitava, saia e comece a cultivar seus trs acres. Esforce-se para levantar alguma quantia com a
venda da colheita, pois o proprietrio vai querer um tero desse dinheiro, e o agiota, dez por
cento.
Nona, descubra alguma maneira de seus filhos conseguirem um dinheirinho para vocs terem o
que comer na maior parte dos dias. Mas isso no basta para manter o organismo saudvel por isso, reduza de 25% a 30% da expectativa de vida.
7 O materialismo a cosmoviso dos que tm os olhos focalizados no "progresso" no mundo
presente. Cristo defendeu um alvo mais sublime. Jesus nos incentiva em Mateus 6.33 a valorizar
o reino de Deus e a sua justia, e os valores deste mundo sero desmascarados por si mesmos. O
materialismo patrocina muitos valores falsos. O tesouro que Deus deseja que consideremos
interior e espiritual. Somente quando compreendemos o ponto de vista de Deus a respeito das
coisas que conseguimos escapar de ficar perpetuamente presos s necessidades materiais
secundrias e aos valores superficiais. A graa o antdoto do materialismo, no um chamariz que atrai a ateno para si mesmo. A
maravilha impressionante de tudo que Deus nos d e faz por ns inunda-nos de gratido
silenciosa. Ento suas visitaes de fartura espiritual adquirem ritmo, regularidade. Sua graa
vem e vai, abastecendo-nos de tudo que belo na vida. De repente, acordamos diante da
maravilha e nos sentimos envergonhados por ter vivido tanto tempo sem nunca lhe agradecer
pela fartura. O materialismo em geral assume o controle na mesma velocidade com que nossa espiritualidade
entra em decadncia. Percebi que, medida que as pessoas envelhecem, o brilho que antes
tinham nos olhos comea a morrer. As vezes, o zelo delas tambm vai morrendo, e elas
comeam a economizar dinheiro para os "anos dourados" a terceira idade. Deixam de confiar _________________________________________________ 7
leadership, vero 1988, p. 81.
em Deus e comeam a acumular bens. J se foram os dias do primeiro amor, quando lhes era
fcil dar e contribuir. Voc se lembra dos tempos de seu primeiro amor? Francisco de Sales provou do elixir do
primeiro amor e recusou-se a deixar que ele passasse a ser secundrio: "Ai de ns! Todos os
dias pedimos a Deus que sua vontade seja feita, mas, quando se trata de pratic-la, temos muita
dificuldade. Oferecemo-nos a Deus tantas e tantas vezes, dizendo-lhe a cada passo: 'Senhor, sou
teu. Toma meu corao!'".8 Foi isso que dissemos quando nos tornamos cristos. E o que ainda
devemos dizer para demonstrar nossa f. Quando Jesus Cristo entra em nossa vida com poder, nasce algo em ns que diz: "Posso fazer
diferena. Posso alcanar o meu mundo. Posso viver para Cristo sacrificando-me por ele". Mas
a velha ambio desmedida permanece conosco e nunca estamos livres de perigo. A qualquer
momento, podemos voltar aos nossos valores antigos e nos tornar compradores compulsivos,
encostados em nosso automvel predileto. Quando trocamos nossos tesouros espirituais por
bagatelas, o grande sonho que tnhamos de servir a Deus escoa-se pelos poros cintilantes da
nossa cobia.
A SUBSTNCIA DA ESPIRITUALIDADE
Precisamos abandonar o hbito de acumular tesouros e criar o hbito de acumular a copiosidade
da graa de Deus. Precisamos acalentar o que Francois Fnelon chamava de "estado de f
exposta". A f exposta tem Deus na mais alta estima, pois todos os demais valores no passam
de nudez e pobreza. Quando se sentir na sequido, na obscuridade, na pobreza e quase sem foras na alma,
permanea humilde debaixo da mo de Deus, em estado de f exposta, reconhea sua prpria
indigncia, volte-se para o Deus todo-poderoso e nunca duvide da sua assistncia [...] Toda a
sofreguido desaparece diante da perseverana.9
Paulo diz que nossa vida interior uma busca muito perseverante a busca de Cristo. Em 1 Corntios 6.12, o apstolo nos lembra de que, embora tudo nos seja permitido, nem tudo
bom para ns. Tudo que furta minha viso de Deus no bom para mim. No me submeterei ao
poder de nenhum desses obstculos. Considere o materialismo o principal desses poderes
viciantes. Submeter-se ao poder do qu? Lembre-se desta lista: "No se deixem enganar: nem imorais,
nem idlatras, nem adlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladres, nem
avarentos, nem alcolatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdaro o Reino de Deus" (ICo
6.9b,10). Qual seria a origem desses vrios estados? Como o adltero torna-se adltero? Como
o alcolatra torna-se alcolatra? Como o imoral torna-se imoral? possvel transformar-se
nesses tipos de pecadores quando se perde o domnio sobre os prprios apetites. Se todos tivssemos a maturidade espiritual necessria, conseguiramos enxergar isso. Quando
Deus nos nega algo, jamais faz isso por sovinice. Ele retm tudo quanto no necessitamos a fim
de que aquilo que deseja para ns fique a nosso alcance. E o que ele quer? Nossa conformidade
com a imagem de seu Filho. Portanto, jamais sejamos culpados de pensar que nossa sede de
coisas materiais chegar a produzir alguma semelhana com Cristo em nossa vida. No pode ser
assim, pois o prprio Cristo repudiou o vazio do mundo material. Quando morreu na cruz,
completamente destitudo de todos os bens, mostrou-nos exatamente at onde temos de ir para
ser to altrustas quanto ele. O melhor momento para lidar com qualquer tipo de tentao apesar do materialismo resistir seduo logo no incio. Guardar no corao qualquer desejo contrrio vocao sincera dividir nossa ateno entre Jesus e qualquer outro que exija
o primeiro lugar da nossa lealdade.
Um dos companheiros ntimos do materialismo o ativismo. um tipo de corre-corre
santificado em que os cristos concorrem entre si para ser os mais importantes, mediante a
comparao entre suas atividades e a velocidade com que atendem aos vrios programas da
comunidade religiosa. A idia que quanto mais fizermos por Jesus, mais os anjos ficaro
impressionados. Desse modo, orgu-lhamo-nos de estar em certo lugar na tera-feira e em outro,
_________________________________________________________________________ 8Thy will be done, p. 8.
9 Talking with God, p. 86.
na quarta. Fazemos parte de meia-dzia de departamentos ou vamos igreja dia e noite, como
se houvesse algum tipo de vida inerente na velocidade santificada. A vida agitada e o consumo
desenfreado caminham juntos. A agenda cheia de compromissos e o total egosmo que provm
da gastana desmedida so companheiros ntimos. O materialismo e o excesso de atividades podem nos fazer alegar que estamos vivendo a "vida
plena". Paulo, depois de nos lembrar de que somos o templo de Deus, diz: "Acaso no sabem
[...] que vocs no so de si mesmos? Vocs foram comprados por alto preo. Portanto,
glorifiquem a Deus com o seu prprio corpo" (ICo 6.19,20). Ora, quando Deus nos resgatou,
tirou-nos desse tipo de vida. Transformou nossas preferncias morais e o modo que consi-
deramos o ter e o apressar-se para conseguir a falsa reputao de uma vida sincera. Teresa de Lisieux disse que a chave para lidar com todos os nossos apetites, quer materiais, quer
no, imitar a Cristo. Ela criava numa gaiola um pintarroxo desde filhote. Tinha tambm um
canrio que cantava constantemente. O pintarroxo, mais quieto, comeou com o passar do
tempo a tentar imitar o canrio. No era fcil, mas ele persistia. "Era encantador observar o
empenho da criaturinha", escreveu. "Obviamente, achava difcil harmonizar seu canto com as
notas vibrantes do seu mestre, mas, para surpresa minha, o canto do pintarroxo acabou ficando
exatamente igual ao do canrio".10
Deixar de imitar a Cristo entristecer o Esprito Santo (v. Ef 4.30). Como fazemos isso? O
segredo para entender isso lembrar que "entristecer" uma palavra afetiva. Quando no
vivemos altura do propsito para o qual Deus nos salvou, o Senhor no fica furioso conosco,
nem procura meios de se vingar de ns. Ao contrrio, Deus se aflige por nossa causa. No me lembro de termos recebido muitos mveis novos em nossa casa em Oklahoma quando
ramos crianas, mas certamente me lembro de quando adquirimos duas cadeiras novinhas em
folha. Minha me deve ter empregado suas ltimas economias para compr-las. No que no
precisssemos das cadeiras, mas raramente tnhamos dinheiro para mveis. A maior parte de
nossos gastos domsticos era para coisas mais fundamentais. Lembro-me de ter pensado, de
incio, como aquelas cadeiras novas pareciam indecentes. Eram lustrosas e belas, reinando como
tronos sobre o restante da nossa moblia. Algum tempo depois, acabaram ficando na varanda da
frente da casa (quando se tem trs quartos para nove filhos, passa-se muito tempo na varanda da
frente). Um amiguinho meu veio do outro lado da rua. Ele tambm tinha uma coisa novinha em folha um canivete! Ainda me lembro de v-lo pegando o canivete novinho em folha e entalhando
aquelas cadeiras novinhas enquanto conversvamos. Nem por um momento sequer, pensei em
faz-lo parar. Para mim, parecia mais criativo do que maligno. Mas certamente me lembro de ter
visto a fasca acusatria no rosto de minha me quando ela saiu na varanda. Sua expresso era
de clera e hostilidade francas. Mas os filhos que conhecem bem seus pais tambm conseguem
olhar alm da hostilidade e ver que por trs dela existe uma mgoa profunda. Algo precioso se
estragara. Tive vontade de chorar.
Quando Paulo diz: "No entristeam o Esprito Santo de Deus", est dizendo em outras
palavras: "Voc, como cristo, no consegue deixar Deus ficar com raiva de voc, mas
consegue magoar o corao dele". Para evitar que isso acontea, Cristo habita em ns. Fomos
comprados. Fomos resgatados no dia que Jesus ficou pendurado na cruz. Foi uma experincia
dolorosa e angustiante. Custou espinhos! Custou sangue! Custou a crucificao total de Jesus
Cristo! Mas ele foi pendurado no madeiro para adquirir, comprar, pagar e escrever "totalmente
pago" para todas as nossas necessidades!
Acho que sei a dor que Jesus deve ter sentido quando levantou os olhos, no tendo cometido
nenhum mal, e exclamou: "Pai, per-doa-os!". Depois, exclamou: "Est acabado!". No "Eu
estou acabado", mas "A obra est acabada! Paguei o preo do resgate", Cristo clamou nossa
alma. "Vocs foram comprados por alto preo. Portanto, glorifiquem a Deus com o corpo de
vocs". Visto que fomos comprados por alto preo, seria muito bom deixar de lado a busca infrutfera
do nosso superficial ganhar e gastar. Quem sabe o domnio de Cristo sobre ns seja muito mais
importante do que nossa posse de qualquer bem material.
_______________________________________________________________ 10
Teresa de LlSIEUX, p. 72.
O melhor de tudo que o domnio de Cristo estabelece o rico senso de espiritualidade integridade de vida e de atitude que torna nosso acesso a Deus imediato. Aceitar o senhorio de
Cristo um passo gigantesco na nossa tentativa de parar de amar os bens materiais e valorizar
nosso amor a Deus. Em certo sentido, tambm um passo na direo de abolir a escravido do materialismo. Isso
se faz escondendo os tesouros do cu no os nossos prprios em nossa vida interior. Com esse ato to singelo, ocorre um deslocamento macio. O apetite de ter substitudo pelo apetite
de ser. O corao entregue a Cristo no vai s lojas procurar brinquedos. Ele nos deixa livres
para am-lo, e o amor ao Senhor desvia a adorao de meros bens materiais. Fomos comprados
pelo seu precioso sangue. As bugigangas que nosso miservel dinheiro consegue comprar
devem ser consideradas insignificantes. Para ns, jamais pode ser "quem tem mais brinquedos
vence", mas "quem foi comprado pelo sangue de Cristo vence" e continuar vencendo para
todo o sempre.
Os tempos mudam, e, para nos
manter em dia, devemos modificar
nossos mtodos.'
MADELEINE SOPHIE BARAT
Bem-aventurados aqueles que se
entregam a Deus! So libertos
de suas prprias paixes, do julgamento
dos outros, da perfdia deles e da tirania do
que dizem, da sua zombaria fria e miservel,
dos infortnios que o mundo atribui s riquezas,
da infidelidade e inconstncia dos amigos,
das artimanhas e dos laos do inimigo,
da fraqueza, das desventuras e da
brevidade da vida, dos horrores de uma morte
profana, do remorso vinculado
aos prazeres mpios e, no fim,
da condenao eterna de Deus.2
FRANOIS FNELON
Senhor, sou teu. Rendo-me inteiramente
a ti e creio que tu me recebes.
Entrego-me nas tuas mos.
Opera em mim todo o prazer da tua
vontade, e descansarei tranquilo nas
tuas mos confiando em ti.3
HANNAH WHITALL SMITH
_________________________________________________________ 'Cit. Woodene KOENIG-BRICKER, 365 Saints, da leitura para 5 de agosto. 2Cit. Richard FOSTER, org., Devotional classics, San Francisco: Harper SanFrancisco, 1989, p. 46.
3Cit. Richard FOSTER, A Spiritual Formation Journal, San Francisco: Harper SanFrancisco, 1989,
pgina sem numerao.
estarrecedor constatar que levamos nossos
pianos individuais to a srio que
nunca desejamos saber se Deus tem
outra coisa para fazermos.
J se observou, por exemplo, que se os ltimos 50 mil
anos de existncia do homem fossem divididos em
geraes de aproximadamente 62 anos cada, ter havido
cerca de 800 geraes. Dessas 800, 650 foram passadas
nas cavernas.
Somente durante as ltimas 70 geraes foi possvel
haver uma comunicao efetiva de uma gerao para
outra porque a escrita a tornou possvel. Somente durante as ltimas seis geraes que as massas de
indivduos chegaram a ver uma palavra impressa.
Somente durante as ltimas quatro foi possvel medir o
tempo com alguma preciso. Somente nas duas ltimas
que algum, em algum lugar, fez uso de um motor
eltrico. E a esmagadora maioria de todos os bens
materiais que usamos na vida diria de hoje foram
desenvolvidos dentro da atual, a 800a gerao.
4
ALVIN TOFFLER
______________________________________________________________________ 40 choque do futuro, trad. Eduardo Francisco Alves, Rio de Janeiro/ So Paulo: Record, 2001, p. 25.
ROMPENDO A TIRANIA
DA URGNCIA Uma das primeiras mquinas foi o relgio. Primeiro, movido a gua, depois por molas e pndulos e finalmente a quartzo, continua sendo uma mquina controladora, cujo tque-taque s
vezes nos deixa neurticos. O relgio foi inventado para nos permitir administrar o tempo, mas
s vezes acaba nos deixando nervosos. De todas as ddivas que Deus nos d, certamente a mais preciosa o tempo. Os segundos, os minutos e os anos so todos peas da vida, montadas e prontas para nosso uso
no servio de Deus. A areia de nossa vida escorre pela nossa ampulheta rpida, firme, preciosa. to preciosa que, quando a devolvemos a Deus, os anjos se pem a exultar "aleluia!"
Mesmo assim, no podemos dedicar nossa vida inteira a Deus num s momento e ter o assunto
resolvido de uma vez para sempre. Precisamos entregar-lhe nossa vida segundo aps segundo.
SANTIFICANDO OS DIAS DA NOSSA VIDA
Portanto, a principal pergunta inicial a fazer ao Cristo que vive em ns no "Que queres que
eu faa na vida?", mas "Que queres que eu faa
Qual a sua profisso, meu amigo? Sou sapateiro veio a resposta entusiasmada. Todos os dias, pego minha caixa de ferramentas e circulo pela cidade, consertando os sapatos das pessoas. Elas me do algumas
moedas, que guardo no bolso. Findo o dia, gasto tudo para comprar minha refeio da noite.
Voc gasta todo o seu dinheiro, todos os dias? perguntou incrdulo o rei. No faz poupana para o futuro? Como ser seu amanh?
O amanh, meu amigo, est nas mos de Deus disse o sapateiro, rindo feliz. Ele prover, e eu o louvarei dia aps dia.
Antes de partir naquela mesma noite, o rei pediu licena para voltar na noite seguinte.
Voc sempre ser bem-vindo, meu amigo respondeu o sapateiro amigavelmente. No caminho para casa, o rei elaborou um plano para pr prova o humilde sapateir