O TESTAMENTO DO MENDIGO
Agora, no fim da vidaComo mendigo que sou, sinto-me preocupado,
Intrigado e num momento pergunto-me, embaraçado,Se faço ou não testamento.
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Não tendo, como não tenhoE nunca tive ninguém,
Para quem é que eu vou deixarTudo o que eu tenho:
os meus bens?
Para quem é que vou deixar,Se fizer um testamento,
Minhas calças remendadas,O meu céu, minhas estrelas,
Que não me canso de vê-lasQuando ao relento deitado
Deixo o olhar perdido,Distante, no firmamento?
Se eu fizer um testamentoPara quem é que vou deixar
Minha camisa rasgada,As águas dos rios, dos lagos,
Águas correntes, paradas,Onde às vezes tomo banho?
No entanto, esse mover é persistente, forte e profundo.!
Pra quem é que vou deixar,Se fizer um testamento,
Vaga-lumes que em rebanhosCercam o meu corpo de noite,Quando o verão é chegado?
Se eu fizer um testamentoPara quem vou deixar,
Mendigo assim como sou,Todo o ouro que me dáO sol que vejo nascer
Quando acordo na alvorada?O sol que seca meu corpo
Que o orvalho da madrugadaCom sua carícia molhou?
Para quem é que vou deixar,Se fizer um testamento,
Os meus bandos de pardais,Que ao entardecer, nas árvores,Brincando de esconde-esconde,
Procuram se divertir?Para quem é que eu vou deixar
Estas folhas de jornaisQue uso para me cobrir?
Se eu fizer um testamentoPara quem é que eu vou deixar
Meu chapéu todo amassadoOnde escuto o tilintar
Das moedas que me dão,Os que têm a alma boa,
Os que têm bom coração?
E antes que a vida me largue,Para quem é que eu vou deixar
O grande estoque que tenhoDas palavras "Deus lhe pague"?
Para quem é que eu vou deixar,Se fizer um testamento,
Todas as folhas de outonoQue trazidas pelo ventoVêm meus pés atapetar?
Se eu fizer um testamentoPara quem é que vou deixarMinhas sandálias furadas,
Que pisaram mil caminhos,Cheias dos pós das estradas,
Estradas por onde andeiEm andanças vagabundas?
Para quem é que eu vou deixarMinhas saudades profundasDos sonhos que não sonhei?
Para quem eu vou deixar,Se fizer um testamento,
Os bancos dos meus jardins,Onde durmo e onde acordo
Entre rosas e jasmins?Para quem é que vou deixar,
Todos os raios de luarQue beijam minhas mãos
Quando num canto de ruaEu as ergo em oração?
Se eu fizer um testamento
Pra quem é que vou deixar
Meu cajado, meu farnel,e a marca deste beijo
Que uma criança deixouEm meu rosto perguntando
se eu era Pai Natal?
Para quem é que eu vou deixar,Se fizer um testamento,
Este pedaço de trapoQue no lixo eu encontrei que transformei em lenço
Para enxugar minhas lágrimasquando fingi que chorei?
Se eu fizer um testamento...Testamento não farei!Sem nenhum papel passado,Que papéis eu não ligo,Agora estou resolvido:O que tenho deixarei,Na situação em que estou,Para qualquer outro mendigo,Rogando a Deus que o faça,Depois que eu tiver morrido,Ser tão feliz quanto eu sou.
Urbano Reis
(Transcrito da revista “Universo Espírita” n. 04, p. 15, Ed. hmp. Teria sido feito por um mendigo. Ele não tinha nada material para transmitir a alguém,
mas sentiu-se feliz em deixar muitas coisas que o dinheiro não compra.)