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FUNDAO GETULIO VARGAS
ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAO PBLICA E DE EMPRESAS
CENTRO DE FORMAO ACADMICA E PESQUISA
CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAO PBLICA
VERSO PRELIMINAR DE DISSERTAO DE MESTRADO APRESENTADO POR
RONALDO GUIMARES GUERALDI
TTULO
A APLICAO DO CONCEITO DE PODER BRANDO (SOFT POWER) NA
POLTICA EXTERNA BRASILEIRA
PROFESSORA ORIENTADORAACADMICA
ANA LCIA GUEDES
VERSO PRELIMINAR ACEITA,DE ACORDO COM O PROJETO APROVADO EM :
DATA DA ACEITAO:______/_____/_____
________________________________________________
ASSINATURA DA PROFESSORA ORIENTADORA ACADMICA
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SUMRIO
LISTA DE TABELAS 3
Captulo 1 INTRODUO 41.1 Contextualizao do tema 41.2 Tema, Pergunta e Objetivo 71.3 Delimitao do estudo 91.4 Relevncia do estudo 10
1.4.1 Relevncia da poltica externa no mbito das Relaes Internacionais 161.4.2 Relevncia da poltica externa no mbito da Administrao Pblica 21
Captulo 2 REFERENCIAL TERICO 28
2.1 Paradigmas das Relaes Internacionais 282.2 Poder e hegemonia no sistema internacional 312.3 Autoridade e legitimidade do Estado 412.4 Insero Internacional do Brasil 432.5 Agenda Internacional e Domstica 552.6 Conceito de Poder Brando 65
2.6.1 Fontes de Poder Brando 732.6.2 O Poder Brando difundido pelo mundo 772.6.3 Fortalecimento do Poder Brando 792.6.4 Diplomacia Pblica 812.6.5 Poder Brando e Poltica Externa 82
2.7 Critrios, Categorias e Cdigos de Anlise 84
Captulo 3 METODOLOGIA 89
3.1 Tipo de pesquisa 893.2 Coleta de dados 91
3.2.1 Anlise de contedo na produo acadmica em administrao pblica 913.2.2 Anlise de discurso 923.2.3 Anlise de contedo na mdia internacional 94
3.3 Tratamento dos dados 973.4 Desenho de pesquisa 98
Captulo 4 DESCRIO E ANLISE DOS DADOS 99
4.1 Resultados da anlise de discurso da poltica externa brasileira 994.1.1 Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso 1004.1.2 Discurso do Presidente Luiz Incio Lula da Silva 1044.1.3 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Lafer 1084.1.4 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Amorim 1114.1.5 Discurso do embaixador Osmar Vladimir Chofhi 1144.1.6 Discurso do embaixador Samuel Pinheiro Guimares 1154.1.7 Resumo do resultado da anlise de discurso 118
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4.2 Resultados da anlise de contedo na mdia internacional 1194.2.1 The Economist 1204.2.2 The New York Times 1254.2.3 Le Monde 132
4.2.4 Resumo das anlises de contedo 1414.3 Resumo dos resultados das anlises de discurso e de contedo 142
Captulo 5 CONCLUSES E SUGESTES PARA FUTURAS PESQUISAS 146
5.1 Concluses 1465.2 Sugestes para futuras pesquisas 152
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 154
APNDICES 159
Apndice 1 Critrios, categorias e cdigos de anlise em ingls 159Apndice 2 Critrios, categorias e cdigos de anlise em francs 160
ANEXOS 161
Anexo 1 - Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso na ONU, em 2001 161Anexo 2 Discurso do Presidente Luiz Incio Lula da Silva na ONU, em 2004 165Anexo 3 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Lafer em 2001 169Anexo 4 Discurso do Secretrio-geral do Itamaraty Osmar Chohfi, em 2002 174Anexo 5 Textos para a anlise de contedo da revista britnica The Economist 176Anexo 6 Textos para a anlise de contedo do jornal americano New York Times 186Anexo 7 Textos para a anlise de contedo do jornal francs Le Monde 193
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Resultados dos levantamentos bibliogrficos 12Tabela 2 Resultados do levantamento na RAP 12
Tabela 3 Relao de autores e suas definies de poder 40
Tabela 4 Definio de autoridade de Weber 41Tabela 5 Dimenses de poder 72
Tabela 6 Os trs tipos de poder 75
Tabela 7 Critrios, categorias e cdigos de anlise 88Tabela 8 Total de artigos sobre o Brasil na The Economist 120
Tabela 9 Anlise de contedo no primeiro artigo da The Economist 121Tabela 10 Anlise de contedo no segundo artigo da The Economist 122
Tabela 11 Anlise de contedo no terceiro artigo da The Economist 122
Tabela 12 Anlise de contedo no quarto artigo da The Economist 124Tabela 13 Anlise de contedo no quinto artigo da The Economist 125
Tabela 14 Resumo da anlise de contedo na The Economist 125
Tabela 15 Total de artigos sobre o Brasil no NYT 126
Tabela 16 Brasil nas editorias doNew York Times 126Tabela 17 Anlise de contedo no primeiro artigo doNew York Times 128
Tabela 18 Anlise de contedo no segundo artigo doNew York Times 129
Tabela 19 Anlise de contedo no terceiro artigo doNew York Times 130Tabela 20 Anlise de contedo no quarto artigo doNew York Times 131
Tabela 21 Anlise de contedo no quinto artigo doNew York Times 131
Tabela 22 Resumo da anlise de contedo noNew York Times 132Tabela 23 Artigos com Brasil no ttulo noLe Monde 132
Tabela 24 Palavras mais freqentes nos textos doLe Mondesobre o Brasil 135
Tabela 25 Anlise de contedo no primeiro artigo doLe Monde 136Tabela 26 Anlise de contedo no segundo artigo doLe Monde 137
Tabela 27 Anlise de contedo no terceiro artigo doLe Monde 138
Tabela 28 Anlise de contedo no quarto artigo doLe Monde 139
Tabela 29 Anlise de contedo no quinto artigo doLe Monde 140Tabela 30 Resumo da anlise de contedo noLe Monde 140
Tabela 31 Resumo da freqncia dos cdigos na mdia internacional 142
Tabela 32 Critrios, categorias e cdigos de anlise em ingls 159Tabela 33 Critrios, categorias e cdigos de anlise em francs 160
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Captulo 1 - INTRODUO
Esse primeiro captulo introdutrio apresenta o tema e os objetivos a serem
alcanados nesta pesquisa, assim como sua delimitao e relevncia para o estudo da
administrao pblica. A proposta do estudo verificar, seguindo as perspectivas de
administrao pblica e de relaes internacionais, como o conceito terico, chamado
de poder brando, aplicado poltica externa brasileira. Uma justificativa para tal
abordagem vai ser apresentada e detalhada a seguir.
1.1Contextualizao do tema
A ditadura militar que governou os brasileiros de 1964 a 1984 incentivou o
slogande que o Brasil o pas do futuro. Quarenta anos se passaram e esse futuro
ainda no chegou. Um novo prazo de 40 anos foi estipulado com o estudo da Goldman
Sachs sobre os BRICs1. A palavra composta pelas iniciais de Brasil, Rssia, ndia e
China, pases que o banco americano de investimentos aposta que estaro entre as seis
maiores economias do mundo em 2040, ao lado das duas maiores da atualidade:
Estados Unidos e Japo. A palavra tambm sugere uma interpretao curiosa, pois
BRIC significa tijolo em ingls, ou seja, a base da construo de um novo centro
poltico, econmico e social do mundo. Essa perspectiva de crescimento dos quatro
pases foi corroborada no Frum Econmico Mundial2em Davos, na Sua, em janeiro
de 2004. Como os pases perifricos costumam valorizar conceitos e teorias
estrangeiras3(como o Consenso de Washington4, na dcada de 1990), a probabilidade
de o Brasil estar no centro de gravidade do mundo em 40 anos ganha peso. Apesar da
aposta nos BRICs, o estudo da Goldman Sachs alerta para os problemas e obstculos
contemporneos dos quatro pases, em termos econmico, social ou poltico.
1http://www.goldmansachs.com/insight/research/reports/99.pdf, acesso em 12/12/20032 Frum Econmico Mundial ocorre anualmente, em janeiro, em Davs, na Sua. A exceo foi em 2002,quando o evento foi realizado em Nova York, nos Estados Unidos, devido aos atentados terroristas ocorridos nacidade em 11/09/2001. O Evento rene chefes-de-estado, ministros da rea econmica e representantes do setorprivado para discutir tendncias e diretrizes da economia mundial.3Ver Guimares (2002).4Consenso de Washington - trata-se de uma srie de princpios, propostos pelos Estados Unidos, que deveriamguiar os pases subdesenvolvidos em direo ao ajuste econmico-poltico do novo capitalismo global, comoprivatizaes, controle das contas pblicas, desregulamentao e abertura dos mercados internacionais. O
principal argumento pr-reformas estruturais seria que elas passariam a dar suporte financeiro ao Estado,possibilitando o crescimento econmico e a eqidade social. O termo foi cunhado por John Williamson,economista ingls radicado nos EUA, em 1989.
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Afastando um pouco o foco de anlise do contexto econmico possvel observar
semelhanas de outras naturezas geopolticas entre os quatro pases, sendo esse mbito
que pretendo desenvolver nessa proposta de pesquisa.
A abordagem de anlise selecionada focada no conceito terico de poder
brando, cunhado pelo americano Joseph Nye no fim da dcada de 1980 e que ganhou
flego e prestgio desde os atentados de 11 de setembro de 2001. O termo
originalmente em ingls soft power e j encontrei tradues dessa teoria como
poder suave (revista Veja da editora Abril), com a qual discordo. Prefiro adotar o
termo poder brando pois dessa forma que se encontra no referencial terico
traduzido (Nye, 2002).
Nye foi escolhido recentemente diretor da Escola de Governo John F.
Kennedy, da Universidade de Harvard, e comps o conselho da secretaria de Defesa
dos Estados Unidos na administrao Clinton (1993-2000). Ele tem experincia tanto
na vida acadmica quanto na prtica da administrao pblica e, em ambas atividades,
esteve em centros de prestgio e excelncia mundial, logo, seu conceito ser
considerado para fins de anlise da insero brasileira no contexto internacional
contemporneo. Nye ganhou notoriedade quando escreveu, em conjunto com outro
terico das Relaes Internacionais, Robert Keohane, o livro Power and
Interdependence(cuja traduo seria Poder e Interdependncia). Em posterior anlise
da poltica externa dos Estados Unidos, no livro O Paradoxo do Poder Americano,
Nye defende que a Casa Branca, apesar de ser uma superpotncia, no pode governar
o mundo seguindo uma postura isolacionista, visto que precisa cooptar pases para
baratear o custo de alianas. Ele defende o uso do que chamou de poder brando
(caracterizado pelo uso de instrumentos dos mbitos da cultura, ideologia e poltica),
em detrimento ao poder bruto (dos mbitos da economia e do uso ou ameaa de uso
de fora militar), buscando atrair a cooperao de outros pases sem usar os recursosde ameaa blica, como o Big Stick, ou a cenoura, uma espcie de suborno para
convencer aliados, numa analogia ao legume usado para incentivar o movimento de
animais de carga, como o burro. Ou seja, poder brando a habilidade de alcanar
objetivos por meio de influncia em vez da coero.
No caso do Brasil e diante de tantas crticas ao governo Lula, como a poltica
macroeconmica de juros altos e as fraudes nos programas sociais como Bolsa-
Famlia e Fome Zero, chama a ateno a atual poltica externa, que parece terabsorvido alguns conceitos do citado poder brando, o que pretendo explorar nessa
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pesquisa. Por exemplo, a proposta de mudar a contabilidade do supervit primrio
excluindo investimento social dos gastos; a idia de criar uma taxa sobre o comrcio
de armas para destinar a um fundo mundial de combate pobreza; a criao do grupo
dos principais pases em desenvolvimento, o G-20; na liderana e mobilizao dos
pases em desenvolvimento na ltima rodada de negociaes da Organizao Mundial
do Comrcio (OMC); e a campanha por um assento permanente no Conselho de
Segurana das Naes Unidas (ONU). Os reflexos so visveis na mdia internacional,
como as duas reportagens de destaque no New York Times5 e a edio especial da
revista Timeque classifica Lula como uma das 100 personalidades mais influentes do
mundo.
No entanto, quando se fala em poltica internacional e insero internacional do
Brasil, a primeira associao freqentemente com o comrcio exterior, uma rea na
qual o pas participa com cerca de 1% do comrcio internacional. Entretanto, h outras
fontes de poder nas esferas poltica, militar, tecnolgica, cultural e ideolgica. A
presente pesquisa se disps a investigar uma estratgia diferente do tradicional foco na
esfera econmica para consolidar a insero internacional do Brasil. Como o prprio
Nye afirma, o conceito de poder brando surgiu como uma forma de ilustrar o trip
do poder dos Estados Unidos no fim da dcada de 1980: o militar, o econmico e o
poder brando (Nye, 2004). Logo, seguindo tal raciocnio, pretendo explorar a
viabilidade do poder brando para aprofundar a insero internacional do Brasil, por
formas distintas da militar ou da econmica. Nesse contexto vo ser explorados
aspectos culturais, ideolgicos, ticos e morais. Por mais estranho que possa parecer, a
tica e a moral esto envolvidas nas questes de legitimidade no exerccio do poder
nas relaes internacionais (Fonseca Jr., 2004). O ministro das relaes exteriores,
Celso Amorim, em uma entrevista exibida pela Globonews no dia 23 de setembro de
2004, para o reprter William Waack, disse que a incluso do Brasil como integrantepermanente do Conselho de Segurana da ONU vai aprofundar a insero
internacional do Brasil, entretanto, essa insero e influncia no se manifestam
somente pela fora da economia ou das armas, mas pela fora moral. Amorim
completou afirmando que o presidente Lus Incio Lula da Silva tem essa fora tica e
moral, comprovada pela campanha que ele comeou a favor da erradicao da fome no
5No dia 24/01/04, oNew York Timespublicou um editorial afirmando que o presidente americano George W.
Bush deveria estreitar laos com Braslia para se aproximar da Amrica Latina. No dia 27/06/04, o jornalpublicou uma reportagem especial sobre o presidente Lula na revista dominical afirmando que ele o ltimorepresentante do idealismo socialista no mundo.
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mundo, na ajuda humanitria ao Haiti e em episdios de auxlio aos vizinhos da
Amrica do Sul em momento de crise, como Bolvia e Venezuela.
Ao longo da pesquisa sero explorados conceitos de uma disciplina ainda
pouco difundida no Brasil e exclusiva de um seleto grupo de pesquisadores: relaes
internacionais. A justificativa para tal decorre da escolha do objeto de estudo, a
poltica externa brasileira, e pela novidade de abord-la no mbito da administrao
pblica. As disciplinas de relaes internacionais e administrao so
interdisciplinares.
1.2 Tema, Pergunta e Objetivo
A escolha do tema dessa pesquisa atende aos critrios de originalidade,
importncia e viabilidade (Castro, 1977).
De acordo com Castro (1977), a importncia do tema decorre do fato de o
mesmo estar de alguma forma ligado a uma questo crucial que polariza ou afeta um
segmento substancial da sociedade, ou quando o tema est ligado a uma questo
terica que merece ateno continuada da literatura especializada. Esse projeto sobre
poder brando atende s duas definies. Como Weil (2001) mostrou, o mbito
internacional e a poltica externa de um pas tm um enorme impacto na vida da
populao no cenrio domstico, mesmo que a populao no tenha conscincia disso.
O outro fato corresponde lacuna que existe em administrao pblica que explore o
mbito internacional, como mostra um levantamento apresentado nas tabelas 1 e 2 e
em outro realizado por Pacheco (2003) em que a autora enquadra o tema internacional
na categoria de temas curiosos ou isolados.
Seguindo a definio de Castro (1977), a originalidade de um tema
corresponde potencialidade dos resultados nos surpreenderem. Acredito que essapesquisa se preste a esse papel. A pesquisa poderia ser dividida em duas partes cujo
tpico principal seria estratgia de ascenso hegemnica do Brasil. Muitos
acadmicos que se dedicam a estudar hegemonias, como vai ser detalhado no
referencial terico, apontam alguns parmetros para alcanar a hegemonia, entre elas o
poderio econmico, militar, poltico, tecnolgico e cultural. A estratgia coerente para
o pas aprofundar sua insero internacional e atingir status de liderana hegemnica,
mesmo que seja regional, passa por caminhos que no almejem, na primeira etapa,ascenso econmica e militar. A alternativa vivel seria o fortalecimento do poder
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brando, que acredito que j esteja sendo aplicado pela diplomacia brasileira, com a
valorizao de aspectos culturais, sociais e polticos.
A definio de viabilidade engloba conceitos mais tangveis, dependendo dos
recursos financeiros, de prazos, da disponibilidade potencial de informao e o estado
de teorizao a respeito. Como h pouco, ou quase nada, referente poltica externa
nas publicaes de administrao pblica, vou buscar referncias em outras reas de
conhecimento, tais como relaes internacionais, sociologia e cincia poltica.
Entretanto, o mais importante, que a pesquisa pretende mostrar que essa miopia
uma falha do mbito da administrao pblica brasileira, haja vista que nas escolas de
administrao pblica espalhadas pelo mundo (principalmente Estados Unidos,
Europa e Japo) o mbito internacional no s estudado, como valorizado
(Kamarck, 2004; Eckert, 2002; Borjas, 2002; Weil, 2001). Desta forma no chega a
surpreender porque as grandes potncias ditam as regras do sistema mundial, uma vez
que tais governos entendem, se preocupam e estudam as instituies internacionais,
suas estruturas e funcionamento.
1.2.1 Tema: Poder brando na poltica externa brasileira
1.2.2 Pergunta:
Como o conceito terico de poder brando (i.e. poder de atrao), de Joseph
Nye, vem sendo aplicado na poltica externa brasileira e quais so as
repercusses na mdia internacional?
1.2.3 Objetivo:
Identificar se o conceito de poder brando (i.e poder de atrao), de Joseph
Nye, vem sendo aplicado na poltica externa brasileira e quais so as
repercusses na mdia internacional.
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1.3 Delimitao do estudo
O estudo pretende identificar a aplicao do conceito terico de poder
brando na poltica externa brasileira. um exerccio terico-emprico ambicioso e,
para execut-lo, pretendo estudar o perodo envolvendo os dois ltimos anos do
mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (2001-2002) e os dois primeiros
do presidente Lus Incio Lula da Silva (2003-2004). O conceito de poder brando
tem sido explorado recentemente, portanto, no necessrio recuar muito no tempo
para estud-lo. Os dois primeiros anos do mandato do presidente Lula so suficientes
para recolher informaes acerca de substanciais mudanas na poltica externa
brasileira.
Outra delimitao da pesquisa decorre do foco no mbito poltico e relegando
os aspectos econmicos a um segundo plano na anlise do tema. O fator econmico
no ser analisado como incentivador, mas como resultante da modificao de outras
variveis no mbito poltico. Ou seja, enxergar a economia como conseqncia da
utilizao do poder brando e no como causa.
As variveis analisadas vo ser basicamente os fatores polticos que promovam
a insero internacional do pas, privilegiando questes culturais e iniciativas que
atraiam aliados ao Brasil na esfera internacional. Questes macroeconmicas de
mbito domstico, como polticas cambiais, taxas de juros e polticas tributrias no
vo ser consideradas nessa pesquisa.
Essa delimitao fruto do prprio conceito de poder brando cunhado por
Nye (1991). Como vai ser detalhado mais adiante nessa pesquisa, o poder brando foi
ilustrado como a terceira vertente do trip da hegemonia americana: o poder militar, o
poder econmico (chamados de poder bruto) e o poder brando.
1.4 Relevncia do estudo
A investigao sobre a aplicao do conceito de poder brando relevante
pelo uso feito, no discurso e na prtica, pela potncia hegemnica nos mandatos do
presidente americano Bill Clinton (1993-2000), o que resultou na recuperao da
economia e na liderana dos Estados Unidos na dcada de 1990 (Gilpin, 2004;Ramonet, 2003; Stiglitz, 2003; Halliday, 2001). Como citado na introduo, o conceito
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terico isoladamente j mereceria estudo. A originalidade decorre de sua anlise em
termos de aplicao na poltica externa brasileira.
Morgenthau (2003)6, considerado um cone do realismo em Relaes
Internacionais, afirmou que sua teoria aplicvel a todos os estados nacionais,
entretanto, ele se concentra no mais poderoso de todos, os Estados Unidos,
argumentando que s as grandes potncias determinam o carter da poltica
internacional, em qualquer perodo da histria. O francs Aron (2002)7, um dos mais
influentes acadmicos de Relaes Internacionais de nacionalidade fora do eixo anglo-
americano, tambm concentra a anlise sobre o problema terico da formao da
agenda internacional no comportamento poltico-diplomtico das grandes potncias.
Para Aron, a ambio desses pases consiste em modelar a conjuntura internacional,
enquanto os demais Estados Nacionais procuram ajustar-se a ela, ou seja, as questes
internacionais so suscitadas de acordo com os objetivos especficos das grandes
potncias devido a sua capacidade de mobilizar recursos, de ameaar e persuadir os
demais atores.
Tais argumentos vo de encontro teoria de poder brando de Nye (1991).
Samuel Huntigton, que tambm trabalha na Escola de Governo John F. Kennedy, em
Harvard, questionou sutilmente o conceito de poder brando ao afirmar, no livro
Choque de Civilizaes (2001)8, que o poder brando s seria vivel depois que o
estado em questo tivesse conquistado o poder bruto. Num dilogo implcito, Nye
responde no livro O Paradoxo do Poder Americano (2002) citando Austrlia e
Canad como exemplos de eficaz utilizao do poder brando, aumentando o poder
relativo desses pases devido escassez de poder bruto. Fred Halliday (2001) afirma
que os imprios modernos tm o poder distribudo em trs pilares: a fora militar
(constituda de fora econmica e coeso poltica), a influncia cultural e a
disseminao ideolgica. Halliday reconhece as fontes de poder brando, como a mdia,o cinema, a msica pop e a lngua inglesa, mas defende que para exercer tal poder, o
Estado precisa desenvolver antes fora econmica e, conseqentemente, militar. Esse
um dilema que a presente pesquisa pretende problematizar: o Brasil pode usar poder
brando sem possuir o poder bruto?
6Inicialmente o livro Politics Among Nationsfoi publicado em 1948. Adoto na bibliografia a traduo de 2003publicada pela editora UnB.7Inicialmente o livro Paix et Guerre entre les Nationsfoi publicado em 1962. Adoto na bibliografia a traduo
de 2002 publicada pela editora UnB.8Inicialmente o livro Clash of Civilizationsfoi publicado em 1996. Adoto na bibliografia a traduo de 2001publicada pela editora Objetiva.
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Como demonstrado, a discusso sobre a natureza do poder parte do debate
corrente em relaes internacionais (RI) e seria suficiente para justificar o presente
estudo. Entretanto, proponho expandir o escopo da pesquisa identificando estratgias
de insero internacional brasileira por meio do uso do poder brando e suas
repercusses na mdia internacional, como ser desenvolvido a seguir no item 1.4.1.
A pesquisa tambm pretende preencher uma lacuna existente no estudo da
administrao pblica no Brasil ao abordar o mbito internacional, ou seja, a poltica
externa de um pas. Isso se deve baixa freqncia com que o mbito internacional
abordado nos estudos focados no Estado e governo brasileiro, como ser apresentado a
seguir no item 1.4.2.
Com base em um levantamento realizado nas dissertaes de mestrado da
Escola Brasileira de Administrao Pblica e de Empresas da Fundao Getlio
Vargas (Ebape/FGV), no perodo de 2000 a 2004, constatei que pesquisas com
referncia a aspectos internacionais so raras. Na Revista de Administrao Pblica
(RAP), editada pela Ebape/FGV, no mesmo perodo, o nmero de referncias a
aspectos internacionais ainda menor, apesar do crescente interesse pela questo
internacional no mbito privado da Administrao no Encontro da Associao
Nacional de Pesquisa em Administrao (EnAnpad). Em 2001, a EnAnpad criou uma
nova rea para abrigar Gesto Internacional. No entanto, a rea de administrao
pblica no apresenta artigos sobre o mbito internacional e a poltica externa.
A tabela 1, a seguir, apresenta o resumo do levantamento, cuja metodologia de
anlise de contedo vai ser explicada no item 3.2.3. Cabe destacar, que os nmeros
correspondem a uma frao, assim, o numerador representa os trabalhos com alguma
referncia ao mbito internacional no ttulo e o denominador o total de trabalhos
apresentados por rea naquele evento. O mesmo critrio se aplica s dissertaes
defendidas no perodo por linha de pesquisa.
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Tabela 1 Resultados dos Levantamentos Bibliogrficos
2000 2001 2002 2003 2004 Total
EnANPAD 3 / 41 3 / 58 4 / 65 11 / 70 8 / 85 29 / 319
Administrao Pblica (*) 3 / 41 - - - - 3 / 41
Gesto Pblica e Governana - 1 / 34 2 / 38 6 / 32 3 / 45 12 / 149
Polticas Pblicas - 2 / 24 2 / 27 5 / 38 5 / 40 14 / 129
Ebape/mestrado acadmico
em Administrao Pblica
6 / 50 7 / 49 2 / 35 4 / 38 3 / 15
(**)
22 / 187
Organizao e Gerncia 2 / 20 1 / 11 00 / 11 00 / 15 - 3 / 60
Polticas e Estratgias 4 / 22 4 / 26 1 / 14 1 / 15 - 10 / 77
Tecnologias de Gesto 00 / 08 2 / 12 1 / 10 3 / 08 - 6 / 38
Fonte: Anais do EnANPAD e EBAPE/FGV.Nota: (*) cabe notar que a rea de Administrao Pblica foi desmembrada em Polticas e Gesto noano de 2001.(**) as dissertaes referentes ao ano de 2004 no foram atualizadas na internet at 30 de maro de2005. Os dados foram coletados na coordenao do mestrado sem diviso por linha de pesquisa.
A tabela 2, a seguir, apresenta os resultados do levantamento na RAP. Cabe
notar que a revista tem periodicidade bimestral e que o total de artigos analisados em
cada ano, correspondente s seis edies, apresentado na ltima coluna de cada linha
da tabela. O total de artigos, com referncia a temas ou aspectos internacionais no
ttulo, corresponde a 8,2% dos artigos no perodo, ou seja, 25 em 305 totais:
Tabela 2 Resultados do Levantamento na RAP
Edio 1 Edio 2 Edio 3 Edio 4 Edio 5 Edio 6 Total2000 1 / 15 0 / 12 1 / 11 2 / 14 0 / 14 0 / 14 4 / 802001 1 / 10 2 / 12 2 / 12 1 / 10 1 / 9 0 / 12 7 / 652002 2 / 10 1 / 9 1 / 8 0 / 8 1 / 7 0 / 7 5 / 492003 1 / 7 0 / 17 2 / 11 0 / 10 2 / 7 0 / 9 5 / 61
2004 0 / 9 0 / 8 1 / 6 0 / 7 30 / 10 0 / 10 4 / 50Total 25 / 305
Cabe ressaltar que em 2004, dois artigos na rea de Polticas Pblicas do
EnAnpad trataram do tema de poltica externa. Cassano (2004) tratou da postura de
alinhamento e autonomia da poltica externa brasileira e sua influncia na captao de
recursos externos e provedor de desenvolvimento econmico e Guedes (2004)
destacou a insero do Brasil no contexto internacional contemporneo com a
recuperao do papel de governana do Estado. Guedes sugere a adoo do modelo dadiplomacia triangular, envolvendo negociaes entre governo e empresas, e a
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internacionalizao de empresas brasileiras pelo governo como estratgia de
desenvolvimento. Com exceo desses dois artigos, nenhum outro aborda
especificamente o papel da poltica externa como fator relevante da gesto pblica.
Um estudo realizado por Pacheco (2003) chega a uma concluso semelhante. A
proposta dela era analisar a recente produo brasileira na rea de pesquisa em
administrao pblica, utilizando como base os artigos publicados entre 1995 e 2002
nas revistas especializadas RAP e RAE (Revista de Administrao de Empresas), alm
dos trabalhos apresentados durante os EnAnpads. Os resultados da autora confirmam a
grande lacuna existente sobre temas internacionais na rea de administrao pblica.
Pacheco dividiu os trabalhos encontrados em categorias e aqueles com referncia ao
mbito internacional foram includos em temas curiosos ou isolados, como um
artigo sobre o feudo japons do sculo XIII e outro sobre tica e o regime eleitoral
no Chile.
Pacheco (2003) aponta tambm a fragilidade do carter propositivo da
produo em administrao pblica, que pode ser considerado inerente rea de
administrao pblica devido natureza do objeto de estudo, essencialmente aplicado.
Alm disso, a autora reconhece as tendncias de pesquisadores se auto-referirem e
adoo acrtica de teorias desenvolvidas em outras disciplinas.
Com relao ao foco da presente pesquisa, a aplicao do poder brando na
poltica externa brasileira, reconheo argumentos da autora que, a princpio,
contribuiriam para a fragilidade da rea de pesquisa em administrao pblica.
Entretanto, a presente pesquisa ajuda a romper tal barreira, contribuindo para a
melhoria da qualidade dos trabalhos realizados na rea, porque vai corroborar a teoria
elaborada no exterior com a anlise de especialistas brasileiros em administrao
pblica e relaes internacionais, ou seja, no vai ser uma transio acrtica.
Pacheco apresenta um diagnstico sombrio de outros autores (Souza, 1998;Machado-da-Silva, Ambroni e Cunha, 1989) que identificam a fragilidade dos
trabalhos na rea de administrao pblica. Entre os motivos citados esto: (1) a
ocorrncia de baixa utilizao da literatura estrangeira mais recente e (2) a prevalncia
de produo acadmica mais prescritiva do que analtica, mais dirigida para questes
prticas do que para o desenvolvimento terico-emprico da disciplina.
Sob tais aspectos, o foco do presente projeto no conceito de poder brando se
destaca, haja vista que um referencial terico estrangeiro extremamente recente, cujoltimo livro de Nye sobre o tema foi lanado em 2004. O conceito de poder brando
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extremamente analtico, fruto de estudo da poltica externa dos Estados Unidos,
Inglaterra, Austrlia e at mesmo do Brasil. O conceito terico de poder brando
poderia at ser identificado como um tema da moda, para usar a terminologia de
Pacheco, mas no ser investigado de forma acrtica, visto que o projeto prev
pesquisa emprica. Outro fator relevante do poder brando que ele foi desenvolvido
na escola de governo da universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o que, de
acordo com o argumento apresentado por Pacheco (2003) pode ser uma vantagem
porque escapa da preponderncia de uma matriz nica da escolha racional e suas
derivaes como exclusivo referencial terico da administrao pblica.
Aqui fao um paralelo entre administrao pblica e relaes internacionais,
cujos paradigmas e conceitos pretendo utilizar na pesquisa. A partir da anlise do
artigo de Pacheco, acredito que ambas as reas de conhecimento padecem do mesmo
mal. Tanto administrao pblica quanto relaes internacionais se proclamam
independentes, como um campo de pesquisa autnomo, sem que sejam reconhecidas
como tais. Conforme a proposta de Pacheco (2003), administrao pblica deveria se
comunicar de forma mais direta e ostensiva com a cincia poltica, o que legitima a
utilizao de teorias e paradigmas de relaes internacionais no mbito da
administrao pblica. Uma crtica de Pacheco a apropriao acrtica de termos da
cincia poltica e da economia, por exemplo, pela administrao pblica sem uma
validao de seus pares. Por isso a autora prope que artigos de administrao pblica
transitem mais nos fruns de cincia poltica.
Pacheco (2003) afirma a tendncia brasileira de seguir o comportamento da
academia americana em que se isola a rea de administrao. Nos Estados Unidos, a
rea da administrao pode at estar isolada de outros campos de conhecimento,
entretanto, os mbitos internacional e de poltica pblica esto localizados e so
estudados no mesmo departamento nas principais universidades americanas, como porexemplo: a Escola de Governo John F. Kennedy, da universidade de Harvard9; a
Escola Goldman de Polticas Pblicas da universidade de Berkeley, na Califrnia10; e
a Escola Woodrow Wilson de Assuntos Pblicos e Internacionais, na universidade de
Princeton11.
9
Acesso em 19 de agosto de 2004.10 Acesso em 19 de agosto de 2004.11 Acesso em 19 de agosto de 2004.
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Bingham e Bolwen (1994) traaram um perfil da academia de administrao
pblica americana analisando 50 anos de publicaes da Public Administration
Review. Eles classificaram os artigos em 14 categorias de anlise e esperavam refletir
a preocupao da academia americana de administrao pblica com a freqncia dos
artigos nas categorias estabelecidas. A categoria tica, por exemplo, surgiu na
dcada de 1970 depois dos escndalos polticos de Watergate.
Ao longo do perodo, trs categorias dominaram 60% dos artigos:
comportamento governamental e organizacional, public management e recursos
humanos. Curiosamente, no h uma categoria especfica que trata do mbito
internacional. Isso indica que a rea de administrao pblica nos Estados Unidos no
trata do mbito internacional, ou da poltica externa, assim como no Brasil, apesar de
as escolas americanas de polticas pblicas estudarem o impacto do mbito externo na
administrao pblica e vice-versa (Allison, 1999). De acordo com as categorias
descritas por Bingham e Bowen (1994), a que abordaria o internacional seria a
categoria de anlise de polticas pblicas, que estuda as vantagens e desvantagens das
polticas pblicas em geral. Essa categoria tambm existe na rea de administrao
pblica no Brasil, como consta nas reas temticas do EnAnpad. Entretanto, so
poucos os artigos que fazem referncia ao mbito internacional, como mostra os
resultados do levantamento da tabela 1.
Um dos argumentos de Pacheco (2003) para a fragilidade da administrao
pblica no Brasil o fato de a comunidade de pesquisadores ser pequena, correndo o
risco de se isolar, ser auto-referida e de identidade difusa. Outras causas so o uso
excessivo de estudo de caso, a tendncia generalizao, sem rigor metodolgico, o
que leva uma crtica de postura normativa e acientfica. Desta forma, o presente
estudo promove a seguir uma ruptura no isolamento da disciplina de administrao
pblica ao destacar a relevncia da poltica externa e promover o dilogo da rea comrelaes internacionais.
1.4.1 Relevncia da poltica externa no mbito das Relaes
Internacionais
Conhecer o estrangeiro, ou o inimigo em potencial, uma regra antiga, que
data de mais de dois mil anos com os escritos do general chins Sun Tzu (Clavell,2002). Muitos estudiosos das reas funcionais de administrao chamam a ateno
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para a relevncia de conhecer o ambiente externo, mas a rea de administrao pblica
parece no considerar o contexto internacional como parte do ambiente externo.
De fato, a discusso acerca da poltica externa dos pases e do cenrio
internacional ficou, durante muito tempo, restrito ao mbito da diplomacia e dos
diplomatas. No incio da dcada de vinte, depois da Primeira Guerra Mundial, essa
rea do conhecimento, sob o rtulo de relaes internacionais, passou a ser lecionada
em universidades britnicas (Sarfati, 2005; Halliday, 1999), numa tentativa de
estimular estudos acadmicos que pudessem compreender as causas e evitar a
ocorrncia de novas guerras. Naturalmente, essa rea do conhecimento interdisciplinar
comeou a ser desenvolvida na Inglaterra e nos Estados Unidos (EUA), pois
representava os interesses hegemnicos do Imprio Britnico no sculo XIX e as
aspiraes de poder dos EUA no sculo XX, respectivamente.
No Brasil, os cursos de ps-graduao em Relaes Internacionais surgiram no
fim da dcada de 1980 com cursos de mestrado (ver Myamoto, 1999 e Hertz, 2002).
Os recentes programas de doutorado ainda no formaram as primeiras turmas, apesar
de o Instituto de Relaes Internacionais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio
de Janeiro e o Departamento de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia
serem referncias nacionais, com projeo internacional na rea.
Desta forma, as investigaes do mbito internacional permanecem restritas a
um pequeno grupo de pesquisadores. Em paralelo, o excessivo enfoque da mdia na
divulgao acerca dos recentes recordes de arrecadao com o supervit da balana
comercial ajuda a legitimar o mito de que a poltica externa de um pas se resume em
estratgias de negcios, como reduo de barreiras alfandegrias, discusses sobre
acordos comerciais bilaterais e construo de reas de livre comrcio. Entretanto, a
poltica externa no se resume economia, envolvendo tambm fatores militares,
tecnolgicos, cientficos, culturais, ideolgicos e jurdicos entre outros. De fato,poltica externa apenas uma das formas mais limitadas de a poltica internacional de
um pas se manifestar e ampliar sua insero no sistema mundial, por meio da
formao da agenda diplomtica, por exemplo. Para o diplomata Jos Guilherme
Merquior (1993), a poltica internacional equivaleria ao somatrio das polticas
externas. Na anlise de outro diplomata, Georges Lamazire, a poltica externa teria
maior afinidade com a diplomacia bilateral, que trata da conjuntura e das aes a que
procede ao pas para se aproximar deste ou daquele parceiro, ou para opor-se a umcompetidor em funo de seus interesses mais concretos.
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Por outro lado, a poltica internacional tem maior identificao com a
diplomacia multilateral, em referncia viso do mundo e das regras que devem reg-
lo e que, portanto, adquire caractersticas de maior durabilidade (Lamazire,
1998:140). Singer (1969) ao tentar promover uma moldura de anlise ao que chamou
de anarquia epistemolgica das relaes internacionais, sugeriu trs nveis de estudo
na rea: o individual, o estatal (ou dos subsistemas nacionais) e o global (ou do
sistema internacional) (Lopes e Vellozo Jr, 2004:330). possvel traar um paralelo
entre a poltica internacional e o sistema internacional e entre a poltica externa e os
subsistemas nacionais. Ou seja, a poltica externa corresponde ao nvel estatal de
Singer e a poltica internacional, ao nvel global. Em suma, poltica internacional do
Brasil a norma de conduta brasileira no mbito do sistema internacional, cujos
objetivos envolvem a neutralizao de todos os fatores externos que possam contribuir
para limitar o poder nacional (Lopes e Velloso Jr, 2004).
No contexto da Guerra Fria, fora militar, tecnologia nuclear e poltica externa
eram inseridos no mbito denominado de high politics. A economia, o direito
internacional e os aspectos culturais estavam num plano secundrio, chamado de low
politics.Esse cenrio comeou a se modificar lentamente a partir da dcada de 1970 e
foi consolidada com o fim da Unio Sovitica, quando a economia foi promovida
para o mbito de high politics.Entretanto, a poltica externa causa impactos na poltica
domstica e vice-versa (ver Allison, 1981).
Tal influncia tambm se reflete no Brasil, com o uso da poltica externa para
alterar sua insero internacional e, conseqentemente, conseguir benefcios para sua
populao. Paulo Vizentini (2003) mostra o desenvolvimento da poltica externa
brasileira desde a era Vargas at o incio do mandato de Lus Incio Lula da Silva.
Segundo o autor, durante quatro sculos, a insero internacional do Brasil processou-
se por meio das potncias europias, primeiro Portugal e depois pela Inglaterra. Napassagem do sculo XIX para o XX, contudo, os esforos da diplomacia poltica e
econmica do Brasil foram direcionados para os Estados Unidos.
Desde o incio dos anos 1960, na esteira do desenvolvimento industrial, a
poltica externa brasileira buscou novos espaos, por meio da mundializao e da
multilateralizao. Na primeira metade do sculo XX, a insero do Brasil estava
focada no contexto hemisfrico por meio do estreitamento dos laos com os Estados
Unidos objetivando a condio de aliado privilegiado. Durante a Segunda GuerraMundial, Getlio Vargas buscou a autonomia na dependncia e utilizou a
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diplomacia pendular entre Washington e Berlim como instrumento de barganha em
defesa dos interesses brasileiros. Jnio Quadros e Joo Goulart promoveram a Poltica
Externa Independente (PEI), que buscava questionar o status quomundial e negociar
uma nova forma de insero internacional do pas, ou seja, nas palavras de Vizentini
(2003), renegociar o perfil de sua dependncia.
Os governos militares tambm se preocuparam com a poltica internacional e
buscaram uma maior insero internacional do Brasil por meio de acordos de
cooperao tecnolgico-militar nuclear, aprofundando relaes comerciais com pases
socialistas, estreitando o relacionamento com outros plos capitalistas, como Japo e
Europa ocidental, promovendo convnios culturais, tecnolgicos e comerciais com
pas sul-americanos, centro-americanos, africanos e rabes.
O presidente Costa e Silva promoveu a diplomacia da prosperidade,
privilegiando o desenvolvimento e a soberania nacional, quando o Brasil liderou o
grupo dos 77, que representava o movimento dos pases do Terceiro Mundo, uma
espcie de verso econmica dos pases No-Alinhados, que no pretendiam se
sujeitar esfera de influncia capitalista, dos Estados Unidos, ou socialista, da Unio
Sovitica.
Mdici exerceu a diplomacia do interesse nacional e estreitou laos com os
Estados Unidos em busca de financiamento para a construo de uma indstria
armamentista brasileira. O fortalecimento militar estava em consonncia com o ideal
de Brasil potncia, assim como o perodo do milagre econmico, quando o pas
cresceu em mdia 10% ao ano, de 1970 a 1973.
Com a crise do petrleo e o fim do milagre econmico, Geisel promoveu o
pragmatismo responsvel e ecumnico na poltica externa brasileira, quando houve
uma aproximao dos pases exportadores de petrleo na frica e Oriente Mdio, com
acordos visando o desenvolvimento tecnolgico e industrial-militar. Tambm houvenesse perodo acordos estratgicos com China e leste europeu quando, de acordo com
Vizentini (2003), ocorreu o perodo de maior protagonismo e autonomia do Brasil no
cenrio internacional.
A atual administrao do presidente Lula est concentrando esforos na
poltica externa que, a princpio, tem demonstrado resultados mais positivos do que a
poltica domstica. Iniciativas como a proposta de mudar a contabilidade do supervit
primrio excluindo investimento em infra-estrutura dos gastos; a idia de criar umataxa sobre o comrcio de armas para destinar a um fundo mundial de combate
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pobreza; a criao do G-20 (os grupos dos principais pases em desenvolvimento); a
liderana e mobilizao dos pases em desenvolvimento na ltima rodada de
negociaes da Organizao Mundial do Comrcio; a participao do presidente do
Superior Tribunal Eleitoral, Seplveda Pertence, como observador internacional das
eleies para a Autoridade Nacional Palestina (em janeiro de 2005); a criao do
grupo Amigos da Venezuela e o envio de funcionrios da Petrobrs para ajudar na
atividade petrolfera do pas durante a greve geral que tentou derrubar o presidente
Hugo Chavez; a intermediao para solucionar a tenso diplomtica entre Colmbia e
Venezuela desencadeada pela priso de um lder, em janeiro de 2005, das Foras
Armadas Revolucionrias da Colmbia (FARC) em Caracas; a doao de bilhes de
dlares para ajudar a Bolvia depois das manifestaes que culminaram na queda do
presidente Sanchez de Losada (em outubro de 2003); a liderana das tropas de paz da
Organizao das Naes Unidas (ONU) no Haiti e a campanha mais agressiva por um
assento permanente no Conselho de Segurana da ONU tm repercutido
constantemente na mdia internacional.
No dia 24 de janeiro de 2004, o jornal americano The New York Times
publicou um editorial afirmando que o presidente americano George W. Bush deveria
estreitar laos com Braslia para se aproximar da Amrica Latina e, no dia 27 de junho
de 2004, publicou uma reportagem especial, sobre o presidente Lula, na revista
dominical afirmando que ele o ltimo representante do idealismo socialista no
mundo.
Uma edio especial da revista Time, publicada no dia 19 de abril de 2004,
classificou Lula como uma das cem personalidades mais influentes do mundo e o
editorial do jornal britnico Financial Timesdestacou o estratgico estreitamento de
relaes entre as duas maiores economias em desenvolvimento do mundo, durante a
visita, em junho de 2004, de Lula China. A poltica externa do governo Lula tambmestabeleceu convnios culturais (com pases da Amrica Latina e frica) e
tecnolgicos (com China e Ucrnia, por exemplo), expandindo a abordagem
multilateral da atual diplomacia brasileira, reforando sua liderana na Amrica do Sul
e fortalecendo sua posio como porta-voz dos pases em desenvolvimento do
hemisfrio sul.
Abdenur (1997) afirma que inmeros fatores conjunturais podem contribuir
para influenciar as anlises sobre o peso especfico de um pas: prestgio pessoal deseus lderes, momento econmico, situao poltica, competncia da atuao
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diplomtica, entre outros. Para ele, os aspectos mais permanentes da presena externa
brasileira so credibilidade poltica, expresso econmica, atrao cultural, massa
territorial e demogrfica.
Na obra Quinhentos Anos de Periferia, Guimares (2002) detalha as
estratgias de poltica externa que os pases, da chamada estrutura hegemnica,
usaram para proporcionar benefcios de concentrao de poder, seja no mbito
econmico, poltico, militar, tecnolgico, cultural e ideolgico. Uma dessas estratgias
a formao de elites, onde Estados centrais promovem programas de difuso
cultural, de bolsas de estudo, de pesquisadores visitantes, de visitas de personalidades
polticas e de formadores de opinio para promover a formao de uma elite nos pases
perifricos, que formam quadros simpticos e admiradores das estruturas
hegemnicas. Indivduos que participam de tais programas desenvolvem sentimentos
de simpatia em relao ao estilo de vida, ao modo de ver o mundo e as relaes entre
aquelas estruturas e a periferia, se tornando elementos de grande importncia
estratgica de preservao das estruturas hegemnicas de poder na medida em que
vm a ocupar posies de destaque na vida pblica e privada dos pases perifricos.
Borjas (2002) lembra que logo depois dos atentados terroristas de 11 de
setembro de 2001, o presidente americano George W. Bush quis suspender o programa
de bolsas acadmicas para estudantes estrangeiros nos EUA. Logo foi desaconselhado
pelas prprias universidades porque iria representar um duro golpe num dos principais
produtos de exportao dos americanos, seus ex-alunos que se transformaram em
lderes polticos, como o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, e os ex-
presidentes do Mxico, Carlos Salinas, e do Paquisto, Benazir Bhutto. Nye (2004)
aponta esse fator de atrao, o poder brando que foco desse estudo, como um dos
mais importantes poderes de influncia da cultura americana, que d legitimidade s
diversas aes da poltica externa dos EUA. Nye (2004) alerta que ignorar tais valores,como democracia e liberdades individuais, pode comprometer a eficincia da poltica
externa do pas e levar ao seu isolacionismo.
Guimares (2002) enfatiza o erro das universidades latino-americanas de no
desenvolverem centros de pesquisas sobre seus vizinhos e estarem, assim, sujeitos s
avaliaes e estudos dos pases do centro hegemnico, que ditam regras, tradies e
diretrizes sobre pases prximos. Ou seja, pases perifricos fronteirios acabam por se
doutrinarem sobre seus vizinhos em aspectos culturais, econmicos e geopolticos sobo olhar de pases hegemnicos. A maioria das universidades americanas tem um
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departamento de estudos para a Amrica Latina e outras culturas, como a francesa, a
chinesa e a rabe. Na Europa a tendncia se repete. Entretanto, no Brasil no h um
centro especfico sobre estudos da Argentina, por exemplo. Para Guimares (2002),
esse um erro estratgico que mostra a vulnerabilidade das polticas externas dos
pases perifricos.
1.4.2 Relevncia da poltica externa no mbito da Administrao Pblica
Chega a ser incompreensvel imaginar o mbito internacional e, mais
especificamente a poltica externa, separado da administrao pblica. Historicamente,
o Estado surgiu para controlar, principalmente, as relaes internacionais entre
governos. O Estado Nacional foi criado em 1648, na Paz de Westflia, determinando a
soberania e a autonomia de gerncia dentro do seu territrio (Sarfati, 2005). Ou seja,
impedindo que Estados Nacionais interferissem na poltica domstica de outros pases.
A relevncia do poder executivo com relao ao exterior j estava presente no
raciocnio de Locke em 1690 (Chevallier, 1982), quando definiu como poder
confederativo aquele, normalmente vinculado ao executivo, que se responsabiliza
pelas questes exteriores, como tratados, paz e guerra.
A questo do exterior e de poltica externa era determinada pela geopoltica e
por determinismos geogrficos, ou seja, o pas tem o limite de suas fronteiras e sua
preocupao maior era com seus vizinhos, a ameaa mais prxima. Entretanto, tais
teorias, como as de Friedrich Ratzel e Nicholas Spykman, por exemplo, que tiveram
impacto nas polticas do imprio britnico e da Alemanha, em que pregavam agressiva
expanso territorial e aumento substancial de colnias e domnios, no tm mais
relevncia nos dias de hoje. Antes, a premissa geopoltica era de que espao territorial,
recursos naturais e volume demogrfico eram sinnimos de poder. Com o avanotecnolgico, tais paradigmas mudaram. Ramonet (2003) afirma que no contexto atual,
as antigas fontes de poder no representam mais trunfos, pelo contrrio, so onerosas
desvantagens na era ps-industrial, na qual a nova riqueza est na capacidade
intelectual, que promove o saber, a pesquisa e a habilidade de inovar, e no mais na
produo de matrias-primas. Para ilustrar seu argumento, Ramonet aponta como
Estados extensos, com grande populao e ricos em recursos naturais que esto em
posio de desvantagem na distribuio de poder, a Rssia, ndia, China, Brasil,
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Indonsia, Mxico e Nigria. Os Estados Unidos constitui-se como exceo
reconhecida pelo prprio Ramonet.
Na dcada de 1920, uma tendncia, que ficou conhecida como escola
francesa afirmou que a geografia importante, mas pode ser moldada segundo os
interesses e convenincias do homem. O maior expoente dessa escola foi Vidal de la
Blanche, dando exemplo da construo de usinas e barragens hidroeltricas para esses
fins. Outro francs, Alexis de Tocqueville, escreveu que os americanos lutaram contra
obstculos que a natureza lhes opunha para construir um extenso pas (Miyamoto,
2004). Miyamoto (2004:88) tambm condena o determinismo geogrfico afirmando
que a geografia possibilita, mas no determina os destinos de uma nao. Para ele, a
ao humana, bem como de suas instituies, e as polticas pblicas que,
efetivamente, levam o Estado e a sociedade a ocuparem papel importante ou no,
dependendo das prioridades adotadas e implementadas por seus dirigentes, projetando
o pas no quadro mundial.
Duroselle (2000) afirma que existem numerosos atos de poltica interna pura,
sem nenhum aspecto exterior, e que a poltica interna pura um fenmeno
perfeitamente isolvel. Entretanto, alerta que ao blindar o interno das influncias do
externo, o Estado faz vista grossa dinmica das foras interiores a um pas que to
claramente incidem sobre a vida internacional.
Halliday (1999) prope uma concepo do mbito internacional que englobe as
interaes Estado/sociedade. O acadmico britnico considera no somente o Estado,
mas tambm atores no-estatais e foras transnacionais em sua teoria do
internacional e afirma que o que vivido e normalmente estudado como algo que
aconteceu dentro de pases, revela-se como parte de processos internacionais muito
mais amplos de mudana poltica e econmica, ou seja, h interao do nacional e do
internacional, dos mbitos interno e externo (Halliday, 1999:18).O ex-chanceler Celso Lafer (2002) acredita que essa discusso entre poltica
interna e externa pode ser resumida na expresso: internaliza-se o mundo. Para ele, no
mundo contemporneo as diferenas entre poltica nacional e internacional se
diluram, o que engendrou novas realidades que tm colocado desafios inditos aos
atores que atuam na cena internacional, deles exigindo novas e criativas solues.
Lafer (2002) acredita que tal complexidade fez o ambiente internacional (interestatal)
como unidade de anlise se desmembrar em global, transnacional e subnacional.
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Hagan (1995), especialista em anlise da poltica externa, menciona vrios
autores que tratam da poltica domstica como explicao para poltica externa, entre
eles Putnam (1988), que chama essa situao de jogo de dois nveis (two-level
game). Hagan (1995) trata da construo de coalizes relevantes para a determinao
da poltica externa. No caso americano, o congresso tem que aprovar a entrada do pas
em guerras, a ratificao de tratados internacionais e a aprovao do oramento, como
os recursos destinados para o departamento de Defesa e de Estado (que corresponde ao
ministrio das Relaes Exteriores do Brasil). A constituio brasileira prev esse
procedimento, sendo o mais comum aprovao de oramento e a ratificao de
tratados internacionais. Essa questo de extrema relevncia porque o direito
internacional garante que tratados internacionais se sobrepem s constituies
nacionais. de estranhar que tanta relevncia, como aspectos jurdicos que
influenciam as normas internas de um pas, passe despercebida pela academia nos
estudos sobre administrao pblica.
Hagan (1995) sugere que a poltica externa deva ser ajustada para impor os
menores custos domsticos possveis e que os efeitos do processo poltico domstico
na poltica externa de um pas devam ser analisados num contexto mais amplo da
dinmica internacional. A relevncia do processo poltico interno define a diminuio
ou aumento da propenso de o pas assumir compromissos e riscos internacionais.
Hagan (1995) analisa esse comportamento sob trs perspectivas: (a) acomodao; (b)
mobilizao e legitimao; e (c) isolamento. Hagan (1995:134) afirma que presses
internas e o receio de serem encarados como regimes fracos no sistema internacional
levaram as grandes potncias a entrarem na Primeira Guerra Mundial. E que tanto
Margareth Thatcher, da Gr-Bretanha, e Galtieri, da Argentina, queriam lutar pelas
Ilhas Malvinas na esperana de que uma vitria militar no exterior pudesse reverter o
declnio poltico que sofriam domesticamente.Moon (1995) trata da legitimidade dos Estados do Terceiro Mundo, tambm
chamados de perifricos, em busca da autoridade interna por meio da poltica externa.
Moon (1995) critica a definio de Estado no paradigma realista (que vai ser explicado
no item 2.1 do referencial terico) e adota a abordagem estruturalista para apontar os
diferentes objetivos de poltica externa dos pases centrais e perifricos. Ilustrando tais
argumentos, Moon (1995) afirma que pases perifricos usam a poltica externa para
atingir objetivos domsticos, como o acmulo de capital, legitimidade de estado,estabilidade social e manuteno do governo, em detrimento dos objetivos do
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paradigma realista das grandes potncias, como poder militar, influncia poltica e
recursos econmicos (1995:198-199). Em alguns casos, a poltica externa permite que
o Estado perifrico se retrate como orgulho nacionalista, em que pases menos
desenvolvidos buscam autodeterminao, integrao e at viabilidade domstica
enfatizando seu papel internacional. Tal poltica externa construda de forma
consensual, vista como legtima e com forte apelo ideolgico, como ocorreu com o
pan-africanismo, o apoio causa Palestina e a oposio ao colonialismo e ao regime
segregacionista sul-africano conhecido como apartheid (Moon, 1995:194).
O diplomata e acadmico Gelson Fonseca Jr. (1998) acredita que a agenda
diplomtica tem uma importncia crtica para o sucesso de uma negociao bilateral,
ou multilateral, para um pas como o Brasil. O que entra ou o que excludo da
agenda de discusso e de negociao o indispensvel passo prvio, definidor da
latitude da defesa dos interesses de um pas. Desta forma, a agenda vai operacionalizar
o tema da legitimidade como o espao de proposies o que, citando as palavras do
ex-chanceler brasileiro San Tiago Dantas, representa um extraordinrio reforo de
poder em qualquer conflito de interesses que se possa apresentar.
Para Fonseca Jr. (1998), as brechas abertas pela Guerra Fria deram espao para
o argumento da legitimidade, de cunho racionalista, dos pases no-hegemnicos. Por
isso temas como autodeterminao e descolonizao, autonomia diplomtica
(movimento dos no-alinhados), desarmamento nuclear, desenvolvimento e
subdesenvolvimento e democratizao dos processos decisrios internacionais foram
inseridos na agenda diplomtica multilateral. Entretanto, o prprio Fonseca Jr. (1998)
acredita que a queda do muro de Berlim enfraqueceu a legitimidade pelas foras
centrpetas da globalizao. Tal contexto representa um desafio para diplomatas e
acadmicos de cincia poltica, relaes internacionais e administrao pblica, haja
vista que instrumentalizar com preciso os temas da agenda internacional representaum fator estratgico para o Estado.
A agenda internacional comea a ser pautada na agenda domstica, por isso
relevante explorar como esse processo ocorre. Kingdon (2003) elaborou um exaustivo
trabalho sobre a formao da agenda de polticas pblicas, abrangendo os atores e
fatores determinantes que moldam a influncia exercida na pauta da agenda, suas
alternativas e oportunidades. Para Kingdon (2003), o presidente, o staffpresidencial e
os articuladores polticos, formam o ncleo da organizao governamental,considerado pelo autor como o principal jogador na formao do processo poltico e
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da agenda pblica. A academia, que comporta pesquisadores e consultores, representa
um impacto ao longo prazo na formao da agenda, possuindo reconhecimento e
prestgio junto ao governo. A atuao preponderante de acadmicos est nas
alternativas da agenda, corroborando ou refutando propostas em andamento da agenda.
Os acadmicos costumam freqentar ambientes governamentais no s como
observadores, mas com freqncia como gestores pblicos contratados para
acompanharem determinados projetos ou atuarem de forma incisiva em agendas de
polticas pblicas. Esse argumento legitima o presente estudo que tenta chamar a
ateno para a escassez de estudos sobre poltica externa na academia de
administrao pblica.
O processo de formao da agenda est circunscrito esfera do Estado
burocrtico e estrutura de oportunidades, mas no so dominadas por eles. O
processo incorpora diversos atores, que compem o governo (presidente,
parlamentares, articuladores polticos e burocratas) e atores externos (grupos de
interesse, academia, mdia e opinio pblica). O principal ator na formulao de
agendas o presidente, entretanto ele no controla as alternativas, que correspondem
s oportunidades de mudar a agenda (Kingdon, 2003). H uma interao entre os
atores para a formao da agenda e o que determina a intensidade da fora do ator o
grau de informao, haja vista que ningum controla o sistema informativo na
totalidade.
Weil (2001) mostrou o enorme impacto que a questo sobre o internacional e a
poltica externa de um pas tm na vida da populao no cenrio domstico, mesmo
que os prprios cidados no tenham conscincia disso. Weil (2001) desperta a
ateno para a necessidade dos cidados de compreender como o desenvolvimento
internacional afeta suas vidas, ou seja, as implicaes da poltica externa de um pas
no mbito domstico. A populao deve se conscientizar dessa importncia deconhecer o exterior, e no somente o governo, porque a democracia depende da
confiana e do apoio dos cidados e que falta de consenso popular pode paralisar uma
poltica pblica. Outro alerta de Weil (2001) que o governo que no percebe as
ligaes com outros pases perde oportunidades de capitalizar lucros e compromete a
prosperidade que poderia derivar de tais ligaes.
A referncia ao trabalho de Weil (2001) se faz presente na relevncia de
pesquisa porque a autora atribuiu essa negligncia com o internacional ao que chamoude dficit de informao. E para mudar essa tendncia, Weil defende que a
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conscientizao do povo sobre a relevncia do internacional responsabilidade dos
formadores de opinio pblica, ou seja, o governo, os legisladores, a mdia e a
academia. Esse argumento legitima minha escolha de explorar rgos de imprensa
internacionais e suas perspectivas sobre o Brasil, suas polticas, posturas e neles
identificar o alcance do poder brando brasileiro. A presente pesquisa tentou analisar
dois elementos desse trip da formao da opinio pblica: a imprensa internacional e
os responsveis pela poltica externa, os diplomatas. Por dificuldades de acesso, s a
mdia internacional foi estudada. Alm disso, a relevncia que Weil (2001) d ao papel
da academia no processo de capitalizao pelo pas de suas vantagens e oportunidades
no mbito internacional corroboram a importncia deste estudo em administrao
pblica, haja vista a escassez de material produzido na rea sobre o mbito
internacional, j argumentado nesta pesquisa.
Nye (2004) afirmou que a cultura, os valores e a formao da agenda das
polticas domstica e externa so fontes primordiais do que chamou de poder
brando, que corresponde habilidade de influenciar os outros a fazer o que voc
deseja pela atrao em vez de coero. O prprio Nye (2004:89) afirma que o Brasil
tem poder brando em potencial para ser explorado por sua poltica externa, devido
atrao despertada por sua vibrante cultura e promessa no futuro.
Para Abdenur (1997), h dados objetivos a serem considerados sobre a
importncia do Brasil no plano internacional. A riqueza e a diversidade da formao
tnica e cultural do pas so fatores que ampliam as oportunidades de interlocuo
internacional. A capacidade de dilogo com diferentes fatores reforada pelo fato de
a realidade econmica e social brasileira exibir padres de primeiro mundo e tambm
de subdesenvolvimento. Para ele, o Brasil um pas identificado pelos valores da paz
e cooperao internacional, com uma tradio de convivncia pacfica com os vizinhos
que encontra poucos paralelos no mundo. H tambm o privilgio de se encontrarlocalizada numa regio ausente de conflitos tnico-religiosos e com registros
histricos de atuao diplomtica marcada pela incluso.
Abdenur (1997) acredita que o Brasil deve ter a poltica externa de sua
dimenso e as dificuldades e desequilbrios internos devem constituir incentivos a uma
atuao externa mais firme, como forma de contribuir para a superao de tais
dificuldades. Tal estratgia pode se viabilizar pela formao e explorao de
oportunidades da agenda internacional, quando transforma temas caros aos pasesricos (tais como meio ambiente, direitos humanos, crime internacional e terrorismo)
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em temas associados questo do desenvolvimento, por exemplo. Assim, a prioridade
dos pases desenvolvidos aos novos temas fornece, de forma indireta, o impulso
poltico necessrio ao tratamento dos temas do desenvolvimento.
Esse captulo tratou de justificar a relevncia do estudo da poltica externa do
Brasil e seus reflexos no cenrio domstico. Tambm foi indicada a carncia de
estudos sobre o mbito internacional na rea de administrao pblica, apesar de a
aplicao da poltica externa ter sido explorada por outras reas de conhecimento e por
gestores pblicos no Brasil, como vai ser analisado em detalhes no captulo seguinte.
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Captulo 2 - REFERENCIAL TERICO
Este captulo apresenta o desenvolvimento do referencial terico para melhor
compreenso do foco da pesquisa. Este referencial envolve os principais paradigmas
das relaes internacionais, os conceitos de poder e hegemonia, autoridade e
legitimidade, bem como a insero internacional do Brasil, agenda internacional
contempornea e, finalmente o objeto de estudo da pesquisa, o conceito de poder
brando.
2.1 Paradigmas das Relaes Internacionais (RI)
Apresento a seguir uma breve reviso dos paradigmas dominantes das Relaes
Internacionais (RI) porque podem esclarecer os conceitos tericos que sero adotados
nesta pesquisa.
Fred Halliday (1999) aponta trs elementos constitutivos das RI: o interestatal,
o transnacional e o sistmico. Por essa anlise, possvel destacar trs paradigmas,
que correspondem s perspectivas tericas predominantes dentro da disciplina:
realismo, liberalismo e estruturalismo.
O realismo toma como ponto de partida a busca do poder dos Estados, cuja
centralidade a fora militar. Para essa corrente terica, o mundo de mltipla
soberania fonte duradoura de conflitos e guerras onde cada ator, no caso Estado-
Nao, age em busca do prprio interesse nacional. Os realistas enxergam a fora
militar como instrumento de manuteno da paz e como determinante nas RI. Eles
acreditam que o mecanismo central para regular o conflito o equilbrio de poder, nos
moldes como a Inglaterra tentou administrar na Europa no sculo XIX (Kissinger,
2001), desprezando a possibilidade de uma mudana radical na dinmica do prpriosistema, como ocorreu com o surgimento da Alemanha, em 1871. Para o realismo, a
sociedade internacional encontra-se em um estado de natureza (inspirado na obra
Leviat, de Hobbes) e carece de um governo central, ou seja, anrquica. Aqui surge
uma divergncia interna do realismo. O embaixador Ronaldo Sardenberg (1982)
definiu o realismo como a corrente terica que se preocupa com a operao livre e
desimpedida do poder, correspondendo a uma utopia pessimista, que deixava ao
emprego da fora a tarefa de encontrar um equilbrio internacional e evitar o flagelo daguerra. Para Sardenberg, e outros estudiosos da estratgia militar (Defarges, 1999), a
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concepo e uso da bomba atmica foi fundamental para que o realismo seguisse
como paradigma clssico nas relaes internacionais depois da Segunda Guerra
Mundial, onde a linguagem de valorizao do poder se tornou preponderante no
cenrio internacional.
Halliday (1999) afirma que a escola inglesa est inserida dentro do realismo.
Esse grupo de realistas se formou na Inglaterra e Austrlia e percebeu essa ausncia de
governo central no como caos, mas como um certo tipo de sociedade em que os
Estados interagiam de acordo com certas convenes, includas a diplomacia, o direito
internacional, o equilbrio de poder, o papel das grandes potncias e at a prpria
guerra. Para Martin Griffiths (2004), a escola inglesa est inserida em outra corrente
terica (teoria da sociedade internacional) que se diferencia do realismo porque, apesar
da ausncia de uma autoridade central, os Estados exibem padres de conduta
constitudos por restries legais e morais, o que no so adequadamente
compreendidos como uma manifestao de poltica de poder.
Entre os acadmicos brasileiros, Gonalves (2002) tambm classifica a escola
inglesa como teoria da sociedade internacional, mas tambm o identifica sob outro
rtulo: o racionalismo. Para Gonalves, o racionalismo nas RI representa uma
proposio terica que fica a meio caminho entre as teses liberais e realistas. No plano
analtico, os racionalistas compartilham com os liberais a tese da existncia de
mltiplos atores nas RI, mas concordam com os realistas que os Estados so os
principais atores responsveis pela deciso de fazer a guerra, ou seja, o meio
internacional no se caracteriza somente pelo conflito, mas tambm pela cooperao e,
ao contrrio de realistas e liberais, os racionalistas atribuem grande importncia aos
fatores culturais nas RI. No plano normativo, os racionalistas consideram
perfeitamente possvel os Estados alcanarem, por meio de tratados e convenes,
certo grau de entendimento e cooperao que resulte numa considervel reduo dosconflitos internacionais.
Barry Buzan (2002) incorpora escola inglesa o construtivismo, cujo foco
est na dinmica das interaes sociais, nas normas, regras e instituies que os seres
humanos desenvolvem para estruturar suas interaes em qualquer escala. Buzan
atribui uma perspectiva pluralista escola inglesa, que est subdividida em trs
tpicos: a) o sistema internacional, com abordagem mais realista, concentrada no
poder poltico estadocntrico; b) na sociedade mundial, com caractersticas globalistas,com elementos transnacionais e atores no-estatais; e c) a sociedade internacional,
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com inspirao construtivista baseada nas regras, normas e instituies criadas para
mediar relaes entre os Estados.
O liberalismo no nega a importncia dos Estados como atores do sistema
internacional, mas destaca as foras transnacionais, ou seja, as interaes econmicas,
sociais, culturais e tcnicas entre as sociedades nacionais. O liberalismo segue a lgica
da interdependncia com uma viso mais relevante da cooperao no sistema
internacional. De acordo com Gonalves (2002), a origem do liberalismo est no
pensamento iluminista do sculo XVIII, apresentando uma dimenso analtica e outra
normativa porque, alm de pretender mostrar como a realidade , pretende mostrar
como ela deve ser. Nas dcadas de 1920 e 1930, o liberalismo foi menosprezado como
uma forma utpica ou idealista de interpretar as RI, por isso que muitos tericos
usam o termo idealismo, simbolizado na figura do presidente dos EUA Woodrow
Wilson, para se referir a essa corrente terica. Com o fim da Guerra Fria e o colapso
da URSS, o liberalismo no mais marginalizado, dando margem a novas correntes
tericas, como a Economia Poltica Internacional. Para Sardenberg (1982), o idealismo
tinha como nfase a evoluo do direito internacional e o estabelecimento de
mecanismos internacionais de conciliao de interesses, correspondendo uma utopia
otimista que buscava construir uma legalidade internacional capaz de construir
instituies supranacionais e, no devido tempo, o estabelecimento de um governo
mundial.
O estruturalismoapresenta uma viso marxista das relaes sociais, porque
divide o mundo entre os que tm e os que no tm acesso a bens materiais, explorando
o conceito de centro-periferia e sendo uma expresso do funcionamento e da evoluo
do sistema capitalista internacional. Os estruturalistas revelam as relaes assimtricas
predominantes em RI e manifestam a explorao e dependncia da periferia
subdesenvolvida. Os principais atores desse paradigma so os Estados, as empresastransnacionais e as organizaes internacionais, como o Fundo Monetrio
Internacional (FMI), a Organizao das Naes Unidas (ONU) e o Banco Mundial,
entre outras. Um representante brasileiro dessa corrente terica o embaixador
Samuel Pinheiro Guimares, que no livro Quinhentos Anos de Periferia (2002)
mostra toda a estratgia de dominao do que chamou de estruturas hegemnicas
para perpetuar sua concentrao de poder (econmico, militar, tecnolgico e cultural)
excluindo os pases perifricos ou em desenvolvimento, como o Brasil.
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As Relaes Internacionais surgiram como disciplina acadmica depois da
Primeira Guerra Mundial, se difundindo nos principais vencedores do conflito:
Inglaterra e Estados Unidos. A preocupao inicial era evitar novos conflitos, uma vez
que o equilbrio de poder, fundado em Westflia (1648), falhou em garantir uma paz
durvel dando incio guerra em 1914. O presidente americano Woodrow Wilson
acreditava ser possvel um novo modo de pensar as relaes internacionais mediante a
adoo de cinco princpios e nove medidas objetivas contidas num documento que
levou o seu nome: os 14 pontos de Wilson. Em sntese, ele propunha a democracia, o
livre-comrcio, o desarmamento, o respeito auto-determinao dos povos e ao direito
internacional, ou seja, um mundo regulado por regras e leis para manuteno da paz.
Como Halliday afirma (1999), se RI tivesse uma disciplina me, ela seria o direito
internacional. O liberalismo exerceu grande influncia sobre o pensamento e ao
poltico-diplomtica at os anos 1930, quando estourou a Segunda Guerra Mundial
(1939), dando incio a uma duradoura hegemonia do realismo dentro de RI, num
mundo em constante tenso devido Guerra Fria. O colapso da URSS trouxe
credibilidade a outras perspectivas tericas em RI, inclusive ao liberalismo.
Essa variedade de paradigmas influencia muito na argumentao e no estudo
de como funciona a ordem mundial, suas relaes de dependncia, alm da
instrumentao e manifestao de dominao e poder entre os pases, como veremos a
seguir com os conceitos de poder e hegemonia.
2.2 Poder e Hegemonia no Sistema Internacional
Como definiu Robert Dahl (2001), o conceito de poder envolve a habilidade
para conseguir que outra pessoa faa alguma coisa que, de outra forma, no seria feita.
Esta uma definio muito semelhante a utilizada pelos expoentes da escola realistaquando se referem ao poder no contexto internacional. Morgenthau (2003) o define
como a capacidade de cada Estado de influenciar ou obrigar os demais a agirem de
determinada maneira, ou a deixarem de faz-lo. Aron (2002) afirma que o poder na
cena internacional corresponde capacidade de uma unidade poltica impor sua
vontade s outras unidades.
Para o embaixador Sardenberg (1982) tais definies escondem equvocos e
defasagens de contexto. Equvocos porque se referem ao poder como uma capacidadenacional e o ignora enquanto relao caracterstica da vida internacional e defasada
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porque nessa definio e pelo perodo em que foram publicados (as verses originais
so de 1948 e 1962 respectivamente), se referem ao poder como um dado
incontrastvel da realidade internacional, caracterstica dos primrdios da Guerra Fria,
perodo em que os Estados Unidos detinham hegemonia mundial devido ao monoplio
da bomba nuclear e da superioridade econmico-financeira. Entretanto, Sardenberg
afirma que o diferencial de poder pode ser a importncia diplomtica-estratgica que
permite pases pequenos, pobres e fracos derrotarem pases maiores, mais ricos e mais
fortes.
Seguindo esse raciocnio, Aron (2002) define a distino entre poder ofensivo e
poder defensivo. Poder ofensivo a capacidade de uma unidade poltica de impor sua
vontade sobre as demais e sua capacidade de no deixar que a vontade alheia lhe seja
imposta. Para Aron, no domnio diplomtico, o poder defensivo consiste em um
Estado salvaguardar sua autonomia, manter seu prprio estilo de vida, no aceitar que
suas leis internas ou aes externas sejam subordinadas aos desejos de outros pases.
Os Estados considerados pequenas potncias geralmente s exercem o poder
defensivo, procurando sobreviver como centros de decises livres. As naes
chamadas de grandes potncias desejam a capacidade de atuar sobre outras unidades
polticas, convenc-las ou constrang-las, buscando a iniciativa de fazer alianas e
liderar coalizes. Para Aron, um Estado que esteja no que definiu de primeira posio
hierrquica que faz uso apenas do poder defensivo, adota uma postura isolacionista,
o que para o pensador francs, nem sempre recomendvel. Tal afirmativa est de
acordo e pode ser encarado como uma justificativa para a postura agressiva do general
Charles de Gaulle para ascender a Frana a uma posio de primeira potncia.
Para Sardenberg (1982), o poder internacional no s visvel em crises
abertas, quando a violncia se torna o modo dominante de comunicao. O poder
internacional pode ser medido tambm pela capacidade de destruir, infligir danos oude evit-los. Edward Carr (2001), um realista clssico, descreveu o poder internacional
em trs categorias: o militar, o econmico e o poder sobre a opinio12. Essa definio
parecida com a de poder brando, cunhada por Joseph Nye, explorada nessa pesquisa.
H o poder mais visvel, como a ostentao militar e a robustez econmica, e o poder
menos visvel que o de convencimento, persuaso, atrao e de influenciar a opinio
12
Inicialmente o livro The Twenty Years Crisis: 1919-1939: An Introduction to the Stdy of InternationalRelationsfoi publicado em 1964. Adoto na bibliografia a traduo publicada em 2001 pela editora daUniversidade de Braslia.
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dos outros a fazer o que voc deseja. Entretanto, esse poder de convencimento no
explcito, definido como poder brando, no tem um sentido manipulador e
maquiavlico que outros autores realistas de relaes internacionais, como Kissinger
(1998), atribuem opinio pblica como fator de poder poltico. Acredito que a
natureza do poder brando est em mais harmonia com aquela defendida por Weil
(2001) sobre a opinio pblica na formao da agenda da poltica internacional. Fao
essa reflexo apesar de Nye, Carr e Kissinger terem origem acadmica no mesmo
paradigma de relaes internacionais: o realismo e o estudo da segurana
internacional.
H outras diversas formas de definir o poder, como a de Aron (2002), na qual
o poder tem um trinmio sinttico espao, populao e recursos, sejam eles naturais ou
econmicos. Esse trinmio apenas um exemplo, haja vista que, recentemente,
acadmicos tm estudado a composio de vrias vertentes num conjunto definido
como hegemonia (Arrighi, 2000; Kennedy, 2000; Keohane, 1984; Kindleberg, 1996;
Nye, 1991, 2002; Todd, 2003; Wallerstein, 2004). Os requisitos que definem
hegemonia mudam de autor para autor, que enfocam ora o aspecto militar (Kennedy,
2000), ora o econmico (Arrighi, 1996; Kindleberg, 1996), ora o poltico, cultural e
tecnolgico (Nye, 2002) e ora todos juntos (Guimares, 2002; Keohane, 1984; Todd,
2003).
Halliday (2001) um especialista nos estudos sobre revolues e procura
identificar se elas so possveis e como elas ocorrem. Nesse contexto, ele define a
natureza do poder no cenrio internacional mediante trs formas: o militar, o
econmico e o cultural ou ideolgico. Ele defende que, tradicionalmente, o poder
internacional era manifestado pela fora militar. Entretanto, Halliday afirma que ela
nunca foi suficiente e se sustentava em dois pilares: a fora econmica e a coeso
poltica. E apesar de a fora militar ser a mais importante demonstrao de poder, elano era em si a motivao principal para o interesse de expanso do Estado, o que
remete discusso sobre predomnio territorialista ou capitalista vigente na Europa
entre os sculos XV e XIX. Halliday acredita que, com o advento das armas nucleares,
a ocorrncia de guerras entre Estados se tornou menos provvel, o que fragmentou a
influncia militar na trade de poder, onde a tecnologia fortaleceu os outros pilares
econmico e cultural. Argumento semelhante ao de Igncio Ramonet (2003), que
afirma que a supremacia militar no se traduz mais, como no sculo XIX e primeirametade do sculo XX, por conquistas territoriais. Para Ramonet, as operaes militares
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se tornaram, a longo prazo, politicamente impossveis de administrar, financeiramente
dispendiosas e desastrosas diante da opinio pblica, confirmando a mdia como ator
estratgico de primeira grandeza na poltica externa e domstica. A avaliao do
socilogo francs foi anterior invaso americana no Iraque, em maro de 2003, e se
mostrou verdadeira13.
Ramonet (2003) tambm afirma que os principais protagonistas do sistema
internacional e, conseqentemente, os que detm o poder mudaram. O Poder passou
do mbito poltico (concentrao nos Estados Nacionais) para o controle de mercado
financeiro, grupos planetrios de mdia, as infovias da comunicao, as indstrias de
informtica e as tecnologias genticas. Resumindo, os principais atores, na opinio de
Ramonet, so: a) associaes de Estados, como Unio Europia, Mercosul e a
Associao Econmica das Naes do Sudeste Asitico (Asean); b) as empresas
globais e os grandes grupos de mdia ou de finanas; e c) as organizaes no-
governamentais. Para ele, os conceitos geopolticos mudaram (Estado, poder,
soberania, independncia, democracia e fronteira) influenciando a relao entre
dominantes e dominados no sistema mundial. Ramonet afirma que existe um duplo
triunvirato que detm os comandos do planeta e age como uma espcie de poder
executivo global. No plano geopoltico lideram Estados Unidos, Inglaterra e Frana. E
no plano econmico, as trs maiores economias do mundo: Estados Unidos, Japo e
Alemanha.
Ramonet (2003) aponta outra transformao nas fontes de poder. Antigamente,
os trs fatores principais eram: a) tamanho do territrio; b) importncia demogrfica,
ou seja, tamanho da populao; e c) riqueza de matrias-primas. No contexto
geopoltico atual eles no representam mais trunfos. Pelo contrrio, representam
pesadas e onerosas desvantagens na era ps-industrial, na qual a nova riqueza est na
capacidade intelectual, que promove o saber, a pesquisa e a habilidade de inovar, e nomais na produo de matrias-primas. Para ilustrar seu argumento, Ramonet aponta
Estados extensos, com grande populao e ricos em recursos naturais que esto em
posio de desvantagem na distribuio de poder, como Rssia, ndia, China, Brasil,
13Um ms depois do incio dos combates, o presidente George W. Bush declarou o fim da guerra e a vitriaamericana no Golfo Prsico. Nesse perodo morreram cerca de 300 soldados americanos. Um ano depois, noperodo ps-guerra, mais de mil soldados morreram. A ocupao ps-guerra se tornou um dos temas principais
das eleies presidenciais nos EUA, sendo alvo de crticas contra Bush. Redes de televiso americana fizerammea culpa por terem feito uma cobertura dos conflitos sem os questionamentos que o exerccio jornalsticoexige.
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Indonsia, Mxico e Nigria. A exceo, reconhecida pelo prprio Ramonet, so os
Estados Unidos.
Strange (1996) fez uma relevante contribuio terica discusso sobre as
fontes de poder quando definiu os quatro pilares do poder estrutural, transformando a
Economia Poltica Internacional (EPI) em uma corrente de pensamento independente
do realismo na teoria das relaes internacionais. Strange afirmou que as fronteiras
territoriais no mais coincidiam com a extenso da autoridade poltica sobre a
economia e sociedade, onde ocorreu uma difuso de poder entre autoridades estatais e
no-estatais na economia mundial. Ela foi incorporando atores no-estatais em sua
proposta terica, medida que identificou o crescente declnio do poder e autoridade
do Estado e a dificuldade de ele exercer as funes bsicas de lei, ordem, defesa,
moeda, justia e bem-estar social. Em contraposio ao poder relacional, com forte
teor de influncia, Strange props a alternativa do poder estrutural, que seria
influenciada indiretamente pelos atores no-estatais, que tem quatro pilares de
sustentao: a) a segurana, nica fonte de poder que fica exclusivamente nas mos do
Estado-Nao; b) financeira, na qual o crdito ganha relevncia em detrimento
situao econmica (riqueza); c) produtiva, onde se assemelha ao estruturalismo por
destacar nessa questo as desigualdades do sistema internacional, onde quem tem e
quem no tem acesso a fatores produtivos; e d) conhecimento, que define o poder de
influenciar as idias dos outros.
O socilogo italiano Giovanni Arrighi (2000) afirma que quatro hegemonias
moldaram a economia capitalista mundial nos ltimos seiscentos anos: Gnova (do
sculo XV ao incio do XVII), Holanda (do fim do sculo XVI at a maior parte do
XVIII), Inglaterra (da segunda metade do sculo XVIII ao incio do XX) e os Estados
Unidos (de 1870 at os dias atuais). Arrighi identificou quatro perodos que chamou de
sculos longos, nos quais cada hegemonia liderou um processo mundial deacumulao de capital, correspondendo a uma unidade temporal maior que cem anos.
O estudo do socilogo italiano mostra a centralizao de redes de produo, comrcio
e poder sob cada uma das quatro hegemonias, onde ocorreram fases de expanso
material precedendo fase de expanso financeira, ambas formando um ciclo sistmico
de acumulao.
Nas primeiras fases de cada ciclo, o capital coloca em movimento uma massa
crescente de produtos, inclusive fora de trabalho e bens na
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