PRÁTICAS DE LEITURA, ESCRITA E ANÁLISE LINGUÍSTICA NO ENSINO
MÉDIO: EXPERIÊNCIAS NO ESTÁGIO SUPERVISIONADO
Fernanda Barboza de LIMA
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Laurênia Souto SALES
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Resumo: Duas exigências têm sido feitas ao aluno na fase do estágio supervisionado: a
primeira é que ele congregue as diversas teorias estudadas ao longo da graduação ao
efetivo exercício docente, e a segunda, que dessa união surjam propostas de ensino
contextualizadas, que tenham como escopo o desenvolvimento da oralidade, da leitura e
da produção escrita a partir de práticas interacionais. No curso de Letras, o Estágio
Supervisionado em Língua Portuguesa, acompanhando os novos caminhos dos estudos
da linguagem, tem incentivado atividades de leitura e escrita organizadas a partir do
trabalho com os gêneros textuais. Essas atividades devem ser pensadas para ampliar a
competência leitora, a capacidade de produção textual e o conhecimento gramatical da
língua. Foi nessa perspectiva que buscamos observar, através da análise de relatórios
produzidos na disciplina Estágio Supervisionado, os caminhos metodológicos percorridos
pelos alunos-estagiários para a organização de suas aulas-intervenção em turmas do
ensino médio, buscando entender como as atividades de leitura, produção textual e análise
linguística são por eles planejadas. Com relação à metodologia, trata-se de uma pesquisa
de natureza qualitativo-interpretativa, em que foram utilizados como procedimentos,
além de pesquisa bibliográfica, a pesquisa documental, uma vez que analisamos dez
relatórios de intervenção/ministração de aulas de Língua Portuguesa. Como referências,
baseamo-nos nos textos dos Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (PCN), nos
trabalhos de Bakhtin (1997), Travaglia (1996), Geraldi (1984), Marcuschi (2008) e
Antunes (2009, 2010), além dos pressupostos da Linguística Aplicada. Em nossos
resultados parciais, tendo em vista que a pesquisa está em processo, percebemos que
apesar do esforço para a utilização dos diversificados gêneros textuais, ainda há uma
grande dificuldade de desvinculação do ensino prescritivo e classificatório,
principalmente no que se refere às atividades relacionadas à análise linguística.
Palavras-chave: Estágio supervisionado. Leitura. Escrita. Análise linguística.
Introdução
O ensino de língua materna, seguindo os novos rumos dos estudos da linguagem,
vem priorizando o caráter sociológico da língua e valorizando o texto como unidade de
análise e espaço de interação. Nesse sentido, o estágio supervisionado no curso de Letras
é organizado para que o aluno/estagiário alie as diversas teorias sociointeracionistas a
práticas de ensino que promovam, de alguma forma, o desenvolvimento da leitura, escrita,
oralidade e análise linguística, a partir do trabalho com os diversificados gêneros textuais.
Contudo, ainda são evidentes as dificuldades encontradas na inserção dos gêneros como
objeto de ensino, tanto por professores já atuantes no ensino fundamental e médio, quanto
por acadêmicos/estagiários, no que se refere à compreensão das possibilidades que esses
permitem e na viabilização do uso prático desse objeto em sala de aula.
Diante disso, o presente estudo visa contribuir com a discussão sobre os caminhos
para a efetivação de um trabalho interacionista com a linguagem, buscando compreender
como alunos em fase de estágio supervisionado organizam atividades de ensino com
vistas a trabalhar e desenvolver competências de leitura e escrita de alunos do ensino
médio, observando seus procedimentos metodológicos e as dificuldades encontradas
nesse caminho. Para tanto, foram analisados dez relatórios de estágio supervisionado
elaborados por graduandos na fase de ministração de aulas em escolas públicas da cidade
de Mamanguape – PB, a turmas do ensino médio.
Acreditamos que discutir sobre essas questões permite-nos compreender melhor
a relação entre língua, formação docente e escola, oportunizando-nos refletir sobre o
ensino de português em sua base, ou seja, nos bancos universitários, onde são preparados
os profissionais que lidarão com as questões reais que cercam a transposição das teorias
da linguagem em práticas de ensino.
Fundamentação teórica
Os gêneros textuais, tomados em termos pedagógicos, tornaram-se o objeto de
ensino privilegiado na atual proposta dos estudiosos da Linguística Aplicada ao ensino e
dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa. Os parâmetros orientam
um planejamento didático com base na organização de situações de aprendizagem a partir
de gêneros adequados para o trabalho com linguagem oral e a linguagem escrita e que
sejam apropriados aos diferentes níveis de escolaridade (BRASIL,1997).
Na perspectiva sociointeracionista, é a partir do texto que devem partir as práticas
de leitura, as produções textuais e a análise e reflexão sobre a língua. A leitura, então, é
atividade de interação entre autor-texto-leitor; e o leitor é o indivíduo que aciona seus
conhecimentos prévios para compreensão das marcas e pistas deixadas pelo autor, no
texto. A escrita é, assim, o local da produção de sentidos, o resultado de escolhas
referentes à organização composicional, à seleção do conteúdo e do estilo adequados ao
gênero textual em questão. Por fim, a análise linguística é a atividade de reflexão sobre
como os recursos linguísticos auxiliam a construção discursiva (BAKHTIN, 1997;
MARCUSCHI, 2007; ANTUNES, 2009, GERALDI, 1997).
Essa prática pedagógica centrada no tripé leitura, produção e análise de textos
exige uma diversificação de situações didáticas pensadas para o desenvolvimento da
linguagem oral formal e ampliação das competências leitoras e escritas. Assim, para cada
objetivo e nível de escolaridade é exigido o aprendizado de um gênero e das
características que o compõem (BRASIL, 1997; GERALDI, 1984).
A despeito dos trabalhos realizados nos cursos de Letras, principalmente no que
se refere às disciplinas de Estágio, que em suas ementas demonstram uma preocupação
em alinhar suas práticas às diretrizes nacionais para o ensino de língua materna, ainda é
perceptível a dificuldade de transpor os paradigmas teóricos sociointeracionistas às
situações reais de ensino de língua. O que observamos por parte dos alunos/estagiários é,
ainda, a escolha por métodos prescritivos de ensino, fundamentados na concepção de
língua como estrutura, em que o texto é um instrumento a ser decodificado, o leitor, um
decodificador dos significados do texto, e a produção textual, um meio para se observar
e corrigir desvios gramaticais.
Os materiais produzidos nas disciplinas de estágio (planos de aula, relatórios),
muitas vezes, são o reflexo da dificuldade encontrada de se pensar o ensino de Língua
Portuguesa mediado pelo texto, de onde devem partir, inclusive, as reflexões sobre o
sistema linguístico.
Na fase de observação, quando os estagiários adentram a escola e a sala de aula
com olhar de pesquisadores, acompanhando e analisando as práticas pedagógicas do
professor de português, costumam pontuar e questionar em seus relatórios finais a
distância existente entre as diretrizes que orientam o ensino e a efetiva prática docente,
apresentando, muitas vezes, saídas para os problemas observados. Entretanto, na fase de
intervenção, ao experienciar finalmente o exercício da docência, acabam por reproduzir
as práticas anteriormente criticadas, elaborando atividades de ensino teórico-normativas,
em alguns casos, desvinculadas das práticas de leitura e produção textual.
Na leitura dos documentos produzidos nas disciplinas de estágio, a exemplo do
relatório de intervenção/ministração de aulas, percebemos como é desafiador para o
aluno/estagiário a transformação das teorias linguísticas e pedagógicas em ações de
ensino que verdadeiramente oportunizem o desenvolvimento de competências
linguístico-discursivas, dados que discutiremos a seguir.
Procedimentos metodológicos
Nossa pesquisa se preocupou com a produção de informações que auxiliem o
debate sobre o ensino de Língua Portuguesa e a formação docente, através da observação
de fenômenos que surgem das práticas sociais dos indivíduos. Dessa forma, podemos
dizer que se trata de uma pesquisa qualitativo-interpretativista.
Nosso principal objetivo foi observar, através da análise de relatórios produzidos
na disciplina Estágio Supervisionado, os caminhos metodológicos percorridos pelos
alunos-estagiários para a organização de suas aulas-intervenção em turmas do ensino
médio, buscando entender como as atividades de leitura, produção textual e análise
linguística são por eles planejadas. Para essa investigação, analisamos dez relatórios
produzidos na disciplina Estágio Supervisionado do curso de Letras da UFPB, na fase de
intervenção/ministração de aulas de Língua Portuguesa.
Nosso trabalho deteve-se à análise documental, por isso, a identidade dos alunos
envolvidos no processo foi preservada e as citações, ao longo do texto, de partes dos
relatórios, são marcadas pela enumeração dos mesmos. Da mesma forma, para preservar
o anonimato dos participantes em relação ao gênero (masculino e feminino), optamos por
nos referir aos alunos envolvidos sempre no masculino. A pesquisa teve as seguintes
etapas: levantamento de bibliografia que discutisse sobre o ensino de Língua Portuguesa
a partir da concepção sociointeracionista da linguagem, compilação dos relatórios de
estágio, análise e interpretação dos dados.
Análise dos dados
A seguir, apresentaremos uma análise de dez relatórios de estágio supervisionado
sobre a fase de ministração de aulas de Língua Portuguesa, com o objetivo de observar
quais escolhas metodológicas foram planejadas para o ensino de português para turmas
do ensino médio e se essas escolhas contemplaram ou não um trabalho a partir dos
gêneros textuais.
Leitura e interpretação textual
Ao discutir sobre o trabalho com a leitura nas aulas de Língua Portuguesa,
Antunes (2003, p. 27) chama a atenção para o fato de que ler é um “encontro” com alguém
do outro lado do texto, e que as atividades de leitura devem ser vinculadas às práticas
sociais. Entretanto, observa a autora, é ainda comuníssimo que o trabalho com e sobre a
leitura tenha por finalidade principal o estudo da gramática fragmentada e
descontextualizada.
Em nossa análise, observamos um esforço do aluno/estagiário na inserção de
atividades de leitura e interpretação de textos logo no início das aulas ministradas. A essas
atividades seguiu-se, na maioria das vezes, um trabalho de natureza mais gramatical. Dos
dez relatórios observados, pontuamos que, em oito deles, há o relato de aulas que se
iniciaram com a leitura e interpretação de um dado gênero textual; outro deles apresentou
a atividade de leitura de um gênero sem nenhum tipo de atividade interpretativa e, em
outro relatório, todas as aulas relatadas referiram-se ao trabalho focado em conteúdos
gramaticais, sem a presença de textos.
A seguir, a título de exemplificação, apresentaremos um quadro com alguns textos
trabalhados pelos alunos/estagiários e as perguntas que eles formularam para nortear as
discussões propostas em sala de aula a respeito dos gêneros apresentados.
Gênero Texto e autoria Perguntas norteadoras para a interpretação
textual
Conto O caboclo, o padre e o estudante,
selecionado por Gustavo Barroso.
Do que trata o texto?
Crônica Circuito fechado, de Ricardo
Ramos.
Isso é um texto? Por quê? Há sentido? Se for um
texto, do que ele trata?
Conto Uma ideia toda azul, de Marina
Colasanti.
Do que trata o texto?
Reportagem
Charge
A turma está a um clique, retirada
da revista Veja.
E pro lugar do Cunha?, de
Ricardo Peters.
Qual o tema do texto? Quais as características que
mais chamam a atenção? Vocês fazem uso das redes
sociais ou de algum site para estudar? Quais
ferramentas são utilizadas? Qual a frequência de
uso? Todos utilizam? Alguém gosta mais de
reuniões presenciais? Quais os motivos para as
respectivas preferências?
Quem são os personagens da charge? Em que local
se encontram os personagens? De que se trata?
Quais os elementos contidos na charge que indicam
do que ela trata? Essa charge é representativa de
algum fato ocorrido?
Lenda Negrinho do pastoreio O que vocês podem me dizer a respeito dessa
imagem? (figura representando o Negrinho do
pastoreio) Vocês conheciam esse texto?
Conto de
fadas
O Barba Azul, de Charles Perrault Quais as principais ideias apresentadas pelo Conto
de fadas lido? Qual elemento torna o conto “O
Barba Azul” um conto de fadas?
Poema Navio negreiro, de Castro Alves Vocês conheciam esse poema? Vocês conheciam o
autor desse poema?
Notícia Sheron Menezzes é a nova vítima
de racistas na internet, veiculada
no site R7.
Vocês já tinham lido essa notícia? Qual função tem
esse texto? Qual a realidade que ele retrata?
Quadro 1: Gêneros textuais trabalhados por alunos do estágio supervisionado na fase de ministração de
aulas de Língua Portuguesa e perguntas formuladas por eles para a atividade de interpretação textual.
Organização: autoras.
A partir de perguntas gerais, como do que trata o texto? Quais os sentidos do
texto? percebemos uma tentativa, por parte do estagiário, de instigar a interpretação
textual e fazer interagir o texto e seu leitor (o aluno). A partir de respostas, os alunos
foram incentivados a perceber aspectos do gênero lido, relacionados a sua estrutura, ao
estilo e aos sentidos que produzem. Notem-se as questões feitas sobre o último gênero do
quadro acima (notícia): Qual a função desse texto? Sobre qual realidade ele retrata? Essas
perguntas, em nossa opinião, apontam para uma tentativa de suscitar no aluno uma
reflexão sobre as funções sociais da leitura, já que discorre sobre uma temática polêmica
e, infelizmente, atual: o racismo exposto nas redes sociais.
Compreendemos claramente que outras questões poderiam ter sido exploradas
nesses contextos, com vistas à compreensão mais global dos textos apresentados e
apreensão dos sentidos e finalidades das leituras propostas, mas entendemos também que
nenhuma atividade é passível de esgotar as possibilidades que um texto apresenta como
objeto de análise e reflexão.
Em alguns procedimentos metodológicos observados, o gênero escolhido serviu
apenas como pretexto para um trabalho mais voltado às questões da norma gramatical.
Como exemplo, temos o relato de uma aula em que a crônica Hierarquia, de Millôr
Fernandes, introduziu o ensino das conjunções subordinativas:
[...] essa aula foi introduzida pela leitura da crônica Hierarquia de
Millôr Fernandes. Após a leitura, conceituei e exemplifiquei cada uma
das conjunções subordinativas, explicando que se dividem em
integrantes e adverbiais. Fragmentos do texto foram recortados para que
os alunos identificassem as conjunções causais, adverbiais, concessivas
etc. (Texto extraído de relatório 8)
Nesse exemplo, observamos um pensamento ainda comum entre os estudantes e
os professores de Língua Portuguesa: o de que estudar gramática é ainda uma atividade
desvinculada dos usos, é ainda uma atividade fragmentada, que pressupõe a análise de
frases isoladas, de seus elementos, conceitos e classificações. Não estamos defendendo
aqui que o ensino de língua deva se distanciar dos estudos gramaticais. O contrário disso.
Acreditamos que não há como estudar a língua sem estudar sua gramática, suas
regularidades, mas entendemos que esse estudo pode e deve levar em conta que as regras
gramaticais servem ao funcionamento da língua e isso e é isso que deve ser priorizado em
sala de aula.
Produção textual
Não é recente a defesa de um ensino de língua pautado no texto, de onde devem
partir as atividades de leitura e escrita, como antes já afirmamos. Há décadas, os PCN, os
livros didáticos e as publicações que se destinam a pensar o ensino de português orientam
que o trabalho de escrita deve prever uma série de procedimentos, que leve em conta o
planejamento, a organização de ideias, as primeiras tentativas de escrita, as revisões e a
reescrita.
Mesmo assim, persiste a ideia de produção textual como instrumento para
correção gramatical, como uma prática “[...] artificial e inexpressiva, realizada em
‘exercícios’ de criar listas de palavras soltas ou, ainda, de formar frases, [...] uma escrita
sem função, destituída de qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção [...]”
(ANTUNES, 2003, p. 26). Diante da constatação dessa realidade, é cada vez mais
relevante que os graduandos de Letras sejam incentivados a planejar atividades
contextualizadas de escrita na fase do estágio supervisionado, que municiem seu futuro
aluno com informações e mecanismos textuais e discursivos que concorram para a
coerência e a coesão de seus textos.
Apesar disso, ainda é notável a dificuldade demonstrada pelos “futuros
professores de português” na organização de atividades de escrita que prevejam seus
diferentes usos sociais e suas diferentes funções comunicativas. Dos dez relatórios
observados, encontramos em apenas dois o esforço de inserção de práticas de escrita que
tomem a língua como “[...] uma atividade sociointerativa desenvolvida em contextos
comunicativos historicamente situados” (MARCUSCHI, 2008, p. 61).
A primeira atividade destacada referiu-se à produção de um texto argumentativo
que respondesse à seguinte questão: O uso da tecnologia ajuda ou atrapalha os estudos?
O exercício contou com as seguintes etapas antecedentes: leitura coletiva da reportagem
A turma está a um clique, questionamentos sobre a temática do texto, discussão sobre o
gênero em questão: seus conceitos e estrutura, releitura individual do texto, exercício para
marcação de elementos textuais que revelassem os aspectos positivos e negativos no uso
da tecnologia, marcação de elementos textuais que revelassem o posicionamento do autor.
A segunda atividade analisada referiu-se à produção do gênero notícia. Foi pedido
para que os alunos escrevessem sobre um fato ocorrido com eles ou que tivessem lido em
algum lugar. No encontro seguinte com a turma, o estagiário conceituou o gênero notícia,
apresentando sua estrutura (título, subtítulo, lead, corpo da matéria) por meio de outras
notícias compartilhadas. Foi devolvida, então, a primeira produção com correções e
pedido que os alunos reescrevessem o texto.
Pudemos perceber o empenho por parte desses alunos/estagiários em elaborar uma
sequência de atividades que culminasse em uma produção textual. Foram propostas as
leituras de textos diversos e incentivado o debate sobre temas e estruturas desses textos,
para a partir daí ser sugerida a atividade de escrita e reescrita.
Sabemos que o estágio supervisionado se desenvolve em um delimitado espaço
de tempo, que muitas vezes não permite a continuação de atividades mais elaboradas,
mais aprofundadas de escrita e reescrita, tão necessárias à formação de um escritor
proficente. Por isso, também compreendemos, de certo modo, a escolha da maioria dos
alunos em não propor atividades mais extensas de produção textual, limitando-se, muitas
vezes, a exercícios escritos de interpretação de textos, como foi o caso da produção do
texto argumentativo, que exigiu respostas mais curtas e objetivas.
A análise desses documentos e a constatação de que, dos dez relatórios lidos,
apenas dois propuseram atividades de produção de textos mais elaboradas corrobora a
discussão realizada por estudiosos e professores de língua que destacam, ao pensar a
escrita proposta em sala de aula, a continuação de uma tradição que perpetua práticas
superficiais e desconectadas de contextos comunicativos, que não estimula a formação de
escritores inseridos em situações reais de enunciação, capazes de se comunicar por meio
dos mais diversos gêneros escritos.
Em texto anteriormente publicado1 sobre as escolhas metodológicas dos
alunos/estagiários para turmas do ensino fundamental, observamos que a situação é ainda
mais complexa. Dos dez relatórios observados, apenas em um havia uma proposta de
atividades de escrita. Nos outros nove relatórios, os exercícios dividiam-se em leitura,
interpretação e trabalho com a gramática. No ensino médio, quando as escolas se
empenham mais ativamente em capacitar o aluno para o ENEM, tem-se justificado o
trabalho de produção textual, anteriormente tão relegado. É justamente nessa fase que os
professores se perguntam: por que os meus alunos não produzem textos? Por que há tanta
dificuldade na formulação de uma redação a partir de um tema proposto? A resposta pode
ser encontrada na análise do ensino de língua no nível fundamental, quando as atividades
1 Gêneros textuais no ensino de Língua Portuguesa: experiências no estágio supervisionado. In: IV
Simpósio Nacional de Linguagens e Gêneros Textuais – SINALGE, 2017, Campina Grande. Anais IV
SINALGE, 2017. v. 1. p. 1-12.
de produção textual são preteridas em função do “tempo de aula” destinado ao que
“realmente importa”, ou seja, ao ensino classificatório e metalinguístico da gramática.
Análise linguística
Travaglia (2011, p. 39) assinala que o ensino de Língua Portuguesa não pode
perder de foco os seguintes pontos: “[...] a questão do ensino de gramática ser feito sempre
como algo desvinculado do ensino de vocabulário e de produção/compreensão de textos”
e “[...] a própria concepção que se tem de linguagem, de gramática e de texto [...]”,
assegurando que a principal discussão a ser tratada por professores e estudiosos não deve
ser o ensino ou não de gramática, uma vez que o homem se comunica por meio de textos,
e o que é textual é, necessariamente, gramatical. O principal questionamento a ser feito é,
então: por que ainda são priorizadas as atividades metalinguísticas em detrimento das
atividades epilinguísticas? Ou, de outra forma: por que os professores de Língua
Portuguesa ainda priorizam as atividades de definições e classificações das unidades da
língua em detrimento do estudo das regras de uso dessas unidades?
Ainda conforme Travaglia (2011, p. 40), essas questões são tão enraizadas na
escola que há uma divisão das aulas de Português em: “[...] aulas de gramática, aulas de
redação e aulas de leitura com professores diferentes”, como se fosse possível desvincular
essas instâncias. Em nosso estudo, percebemos que, dos dez relatórios observados, sete
trazem relatos de aulas planejadas em torno de um assunto gramatical. Mesmo as aulas
que foram introduzidas pela leitura de determinados gêneros, e sua posterior
interpretação, tiveram por objetivo principal um estudo de base mais conceitual e
classificatória. Vejamos:
Questões
gramaticais Procedimentos de ensino
Pontuação “A partir da leitura do texto, comecei a explicação sobre cada sinal de pontuação
(ponto final, vírgula, reticências, ponto e vírgula, dois pontos, travessão, ponto de
interrogação, ponto de exclamação e aspas) utilizando o próprio texto para
exemplificar, assim como outros enunciados. Escrevi os conceitos e funções de
cada sinal de pontuação na lousa”. (Texto extraído do relatório 1).
Classe gramatical
Substantivo
“Sendo assim, fui relembrando o texto que eles tinham lido na aula passada. A
partir de algumas palavras do texto fui inserindo o conceito, a classificação e
dando exemplos sobre os substantivos”. (Texto extraído do relatório 2).
Sujeito e predicado
da oração “[...] para não perder muito tempo escrevendo no quadro, levei o assunto que iria
ser trabalhado em sala, impresso, junto com a atividade. Procurei a melhor forma
de trabalhar o assunto: Sujeito e Predicado da oração. Comecei conceituando o
que é o sujeito e os tipos de sujeito e depois falei sobre o predicado. Depois, passei
um exercício. (Texto extraído do relatório 3)
Sujeito da oração “Trabalhei o conceito de sujeito e seus tipos. É bem verdade que alguns alunos
não entenderam o motivo de trabalhar tanto este assunto em todas as séries, mas
conseguiram depreender que há várias situações para usar os mesmos”. (Texto
extraído do relatório 4).
Pronomes “Após mostrar essa definição, fizemos juntos uma interpretação da lenda lida.
Depois disso, indaguei sobre o modo como o autor substitui os sujeitos da frase
por outros referentes. Mostrei para os discentes que ele usa essa estratégia para
tornar o texto coerente. E que também a maioria dos termos usados eram
pronomes pessoais do caso reto a exemplo dos pronomes: eu e eles. Deste modo,
copiei no quadro o conceito de pronomes pessoais: Os pronomes pessoais são
aqueles que indicam as três pessoas do discurso, eu, tu e nós.
Pedi também que os estudantes identificassem no texto palavras que indicassem
posse. Ao examinar a lenda, os alunos apontaram para as seguintes palavras: seu,
seus, sua, nossa, minha. Identificadas as palavras os mostrei que elas se tratavam
de pronomes possessivos, isto é, são palavras que indicam posse em relação as
três pessoas do discurso, escrevi no quadro também essa definição e pedi para que
eles também a copiassem”. (Texto extraído do relatório 6).
Conjunções
subordinativas
“Inicialmente distribui para a turma cópias com os conceitos, classificações e
exemplos do tema a ser tratado ‘Conjunções subordinativas. Solicitei a
participação da turma com as leituras das classificações das conjunções
subordinativas. Após o intervalo finalizamos as classificações e exemplos, em
seguida propus aos alunos uma atividade complementar”. (Texto extraído do
relatório 8)
Verbos no modo
imperativo
“[...] mostrei para os alunos uma diversidade de textos instrucionais, como a
receita, a bula de remédio e o manual de instrução. Após a distribuição, pedi que
os alunos identificassem os verbos no modo imperativo, na qual expliquei no
quadro o significado deste verbo, tendo em vista que sua função é usada para dar
comandos, ordens, fazer um pedido, um convite ou dar um conselho. [...]Solicitei
que cada grupo a partir da explicação identificasse nos textos instrucionais os
tipos de verbos no modo imperativo e qual a sua função nestes textos. [...]Em
seguida, distribuí xerox de uma receita de bolo de chocolate crocante, para que
verificassem e analisassem a estrutura do gênero em questão, e depois
completaram o exercício de acordo com o que foi pensado, ou seja, a aplicação
do verbo no modo imperativo na receita. (Texto extraído do relatório 10).
Quadro 2: Questões gramaticais e procedimentos de ensino observados nos relatórios. Organização:
autoras.
É importante frisar que esses são recortes de uma série de aulas analisadas em
cada relatório visto. São momentos que, muitas vezes, vieram na sequência de uma
atividade de leitura, compreensão e interpretação de texto, como foi anteriormente
colocado. Mas, mesmo ressaltando que há um empenho visível na inserção de gêneros
textuais diversos para serem lidos e discutidos, em sua estrutura e conteúdo temático, o
que é digno de nota, ainda encontramos, no que se refere à análise linguística, um
excessivo apego às questões metalinguísticas de definição e classificação.
As aulas comumente obedeceram uma sequência: apresentação de um texto,
formulação de perguntas que suscitaram uma interpretação sobre ele e apresentação de
questões referentes ao gênero trabalhado: temática, autoria, estrutura composicional. A
partir desse momento, quando são “concluídas as atividades sobre o texto”, passa-se para
a segunda fase da aula, ocasião em que o texto se torna o objeto onde serão “encontradas”
as questões gramaticais estudadas. O caráter, por vezes maçante, desse tipo de atividade
gramatical ficou demonstrado na observação feita pelo estagiário sobre os comentários
dos alunos a respeito do trabalho com o assunto sujeito da oração, quando pontuou que
eles (os alunos) “não entendiam o motivo de trabalhar tanto esse assunto” (Texto extraído
do relatório 4, grifo nosso).
Embora esse modo de proceder esteja presente na maioria dos relatórios, é
importante ressaltar que, em alguns momentos, observamos uma preocupação, ainda que
tímida, em pensar o funcionamento das regras gramaticais. No último trecho apresentado
percebemos os termos aplicação e função sinalizando uma tentativa do estagiário de
refletir junto ao discente sobre a utilização real das unidades da língua. No relato extraído
do sexto relatório, percebemos um cuidado do estagiário em mostrar como os pronomes
servem à construção do texto e como competem para sua coerência: “[...] indaguei sobre
o modo como o autor substitui os sujeitos da frase por outros referentes. Mostrei para os
discentes que ele usa essa estratégia para tornar o texto coerente [...]”. (Texto extraído
do relatório 6).
Além dessas observações, ainda destacamos como algo positivo que, em três
relatórios, todas as aulas desenvolveram-se com vistas ao trabalho de leitura e
compreensão de textos, com atividades que sinalizaram um cuidado em pensar como os
recursos gramaticais foram selecionados para que as construções morfossintáticas e
semânticas produzissem os efeitos de sentido pretendidos, como depreendemos do quinto
relatório lido: “feito a leitura e releitura da reportagem, perguntei o que no texto competia
para a tecnologia ser vista como algo negativo ou positivo, criando com eles um
‘mapeamento dos pontos argumentativos do texto’” (trecho extraído do relatório 5).
A análise dos relatórios também nos levou a acreditar que já caminhamos, mesmo
em passos trôpegos, para a inserção dos gêneros textuais nas aulas de português. Em
microaulas ministradas pelos graduandos em disciplinas de estágio, as leituras de textos
costumam encabeçar as aulas, as quais se sucedem eventos de interpretação e exercícios
gramaticais. Todavia, precisamos reconhecer que ainda não conseguimos avançar na
preparação e inclusão de atividades gramaticais que extrapolem o ensino fragmentado e
prescritivo da gramática e que, nas palavras de Antunes (2003, p. 97), “[...] privilegie, de
fato, a aplicabilidade real de suas regras”.
Considerações finais
Os relatórios de estágio são documentos reveladores das dificuldades encontradas
pelos alunos (futuros professores de Língua Portuguesa) na etapa do curso em que,
finalmente, transformam os saberes teórico-metodológicos aprendidos em efetivas
práticas pedagógicas. O aluno de Letras convive com um dilema: sua própria formação,
de base mais estruturalista, enraizada em pelo menos doze anos de sala de aula, é agora
contestada e revista por teorias e concepções sociointeracionistas da linguagem.
Por mais que as disciplinas das graduações contemplem em suas ementas esses
novos olhares e procedimentos, há um saber e um fazer aprendidos com seus professores
do ensino básico que, de certa forma, cristalizados, bloqueiam esse “novo pensar” sobre
gramática, esse procedimento “epilinguístico”, essa necessidade de organizar aulas
voltadas para o desenvolvimento da língua oral e escrita a partir de gêneros, como
orientam os PCN. Nas dificuldades relatadas e analisadas nos relatórios revelam-se duas
questões: o aluno/estagiário identifica que sua própria formação é o reflexo do que é
contestado e repensado no curso de Letras e ele reconhece que a falta de vivência em sua
formação básica, com atividades socionteracionistas de linguagem, dificulta seu
pensar/agir, agora, como professor.
O fato é que é cada vez mais importante refletirmos sobre esse tema, na tentativa
de, não apenas, encontrarmos soluções e ações que promovam um ensino significativo
que favoreça à formação de sujeitos leitores e produtores de gêneros textuais, mais, e tão
importante quanto, encontrarmos meios que auxiliem esse futuro professor em formação
a estabelecer uma ponte entre as tantas teorias sobre a linguagem e as práticas
pedagógicas agora pensadas para a melhoria da aula de português.
Referências
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GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
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