A atenccedilatildeo agrave crise em sauacutede mental refletindo sobre as praacuteticas a organizaccedilatildeo do
cuidado e os sentidos da crise
REBECCA DORNELES ROQUETTE
RIO DE JANEIRO - RJ
2019
Rebecca Dorneles Roquette
A atenccedilatildeo agrave crise em sauacutede mental refletindo sobre as praacuteticas a organizaccedilatildeo do cuidado e os
sentidos da crise
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sauacutede Puacuteblica da Escola
Nacional de Sauacutede Puacuteblica Seacutergio Arouca
Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz como requisito
parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em
Sauacutede Puacuteblica na aacuterea de concentraccedilatildeo
Poliacuteticas Planejamento Gestatildeo e Praacuteticas em
Sauacutede
Orientadora Tatiana Wargas de Faria Baptista
Rio de Janeiro
2019
Rebecca Dorneles Roquette
A atenccedilatildeo agrave crise em sauacutede mental refletindo sobre as praacuteticas a organizaccedilatildeo do cuidado e os
sentidos da crise
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sauacutede Puacuteblica da Escola
Nacional de Sauacutede Puacuteblica Seacutergio Arouca
Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz como requisito
parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em
Sauacutede Puacuteblica na aacuterea de concentraccedilatildeo
Poliacuteticas Planejamento Gestatildeo e Praacuteticas em
Sauacutede
Aprovado em 03072019
Banca Examinadora
Prof Dr Maria Paula Cerqueira Gomes
Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psiquiatria da UFRJ
Prof Dr Lilian Miranda
Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Sergio Arouca - ENSPFiocruz
Profordf Dra Tatiana Wargas de Faria Baptista (Orientadora)
Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Sergio Arouca - ENSPFiocruz
Rio de Janeiro
2019
AGRADECIMENTOS
A conclusatildeo de um Mestrado natildeo eacute tarefa faacutecil Tendo esse trabalho se ocupado
fundamentalmente do tema do cuidado natildeo poderia deixar de agradecer agrave todos aqueles que
contribuiacuteram e tornaram possiacutevel a realizaccedilatildeo desse estudo Sendo assim eu agradeccedilo
Aos meus pais que sempre me apoiaram e me incentivaram na minha trajetoacuteria
profissional Agrave minha matildee por ter sonhado acreditado e vibrado com todas as minhas
conquistas Ao meu pai pelas conversas e pelo interesse em minhas questotildees
Agrave minha avoacute Helena por ter sido uma mulher agrave frente de seu tempo e por ter me
inspirado nas minhas escolhas ateacute aqui
Agrave Victor Gonccedilalves pelo suporte pelo carinho pelo amor inesgotaacutevel Por ter
compreendido e aceitado as mudanccedilas de planos e rotinas necessaacuterias para que eu concluiacutesse
esse processo pelas diversas vezes em que emprestou a casa para que eu me concentrasse
melhor
Agrave Nataacutelia Fortes pela longa amizade pela fraternidade pela confianccedila
Agrave David Llanos por ter rezado por mim acreditado nessa conquista e na tatildeo sonhada
comemoraccedilatildeo com todas as ldquochiquitissesrdquo
Aos meus amigos de faculdade em especial agrave Luacutecia Scarlati Karine Alane Karina
Lang e Aline Martins que sempre me acompanham com amoras e com amor
Agrave Fernanda Resende um presente que apareceu na minha vida Amiga forte e
companheira parceira na sauacutede mental e na vida
Agrave minha orientadora Tatiana Wargas pela disponibilidade pela paciecircncia com meus
atrasos pela leitura carinhosa pelos apontamentos e contribuiccedilotildees certeiras
Agrave professora Maria Paula Cerqueira a quem eu muito admiro pela forccedila e delicadeza
de suas contribuiccedilotildees nas aulas e EPacutes durante o periacuteodo de residecircncia e na minha banca de
conclusatildeo de curso Seguiu me inspirando durante a escrita desse trabalho e agora novamente
aceitou carinhosamente o convite para fazer parte desta banca
Agrave professora Lilian Miranda membro dessa banca que me deu aula e compartilha do
interesse pelo campo da sauacutede mental Esse trabalho conta com seus artigos e certamente com
muito de sua inspiraccedilatildeo
Agrave Martinho Silva e Gustavo Correa Matta agradeccedilo pela disponibilidade pela leitura e
pelo interesse em aceitar o convite para compor essa banca
Agrave Flaacutevia Fasciotti minha professora e eterna tutora da Residecircncia Sempre estaraacute
presente em todos os passos da minha formaccedilatildeo
Aos meus amigos de turma do Mestrado agradeccedilo imensamente pelo companheirismo
pela forccedila pelo carinho com que vivemos esse processo
Aos amigos da turma de Residecircncia em especial a Isabel Kraml Flavia Azevedo Thais
Beiral Andressa Ferreira Clara Andrade que estiveram sempre por perto e que compartilham
comigo o amor pela sauacutede mental
Agrave Guilherme Cacircndido Aline de Alvarenga Lais Macedo Juliane Lessa Jackson
Machado colegas e parceiros na sauacutede mental Aos pacientes que me encantaram
surpreenderam e me ensinaram tanto nesse caminho
Aos amigos Alexandre Rinaldi Thaiacutes Helena Veloso Mayara Ribeiro Jessica Aguillar
Tiago Nunes Iasmin Rocha e outros
A minha analista Tatiane Grova pelo acolhimento e pela leveza que permitiu com que
eu sustentasse esse processo
Agrave ENSP e a FIOCRUZ pela oportunidade de poder avanccedilar na minha formaccedilatildeo estudar
e contribuir para a produccedilatildeo de conhecimento no campo
A CAPES pelo financiamento agrave esta pesquisa e a possibilidade de tornaacute-la realidade
RESUMO
Essa dissertaccedilatildeo teve como objeto o cuidado agraves pessoas em situaccedilatildeo de crise na Rede de
Atenccedilatildeo Psicossocial Atraveacutes de um estudo de revisatildeo bibliograacutefica de 21 artigos cientiacuteficos
buscamos identificar como a crise tem sido acolhida nos serviccedilos de sauacutede No que se refere agraves
praacuteticas de cuidado interessa-nos saber quais satildeo as principais dificuldades e ferramentas
cliacutenicas que os profissionais encontram no manejo das situaccedilotildees de crise Entendendo que a
Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo que ainda estaacute em andamento e que depende
fundamentalmente de como os serviccedilos se organizam e se articulam de maneira a compor uma
rede de cuidados que possa substituir o Hospital Psiquiaacutetrico coloca-se tambeacutem a questatildeo de
quais satildeo as principais dificuldades que os serviccedilos encontram para sustentar o acolhimento da
crise no territoacuterio e quais os possiacuteveis caminhos para superaacute-las na direccedilatildeo de um cuidado em
liberdade
Palavras chaves crise sauacutede mental praacuteticas de cuidado RAPS serviccedilos de sauacutede
ABSTRACT
This dissertation had as object the care of people in situation of crisis in the Network of
Psychosocial Attention Through a bibliographical review study of 21 scientific articles we
sought to identify how the health services deals with pacient crisis Regarding to care practices
we are interested in the main difficulties and clinical tools that professionals find in the
management of crisis situations Understanding that the Psychiatric Reform is a process that is
still in progress and depends fundamentally on how services are organized and articulated in
order to create a network of care that can replace the Psychiatric Hospital arises the concern
of what are the main difficulties that the health services faces to provide the care of the crisis in
the territory and the possible ways to overcome them in the direction of care in freedom
Key words crisis mental health care practices Network of Psychosocial Attention
health services
LISTA DE GRAacuteFICOS
Graacutefico 1- Inversatildeo dos gastos (2002 a 2013) 30
Graacutefico 2- Seacuterie histoacuterica de Expansatildeo dos CAPS (2002 a 2014)31
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial por tipo UF e por indicador de CAPS100mil
habitantes (BRASILdez 2014)32
Quadro 2- Oferta de leitos de sauacutede mental em Hospitais Gerais (2014)34
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em CAPS III- Secretaria Municipal de Sauacutede do
Rio de Janeiro (setembro 2015)34
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB- Atenccedilatildeo Baacutesica
ACS- Agente Comunitaacuterio de Sauacutede
AP- Aacuterea Programaacutetica
AT- Acompanhamento Terapecircutico
CAPS- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial
CAPS II- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo II
CAPS III- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo III
CAPSad- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas
CAPSad III - Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas tipo III
CAPSi- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infantil
CF- Cliacutenica da Famiacutelia
ENSP- Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica
FIOCRUZ- Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz
IT- Itineraacuterio Terapecircutico
NASF- Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia
PNSM- Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental
RAPS- Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial
RPB- Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
SAMU- Serviccedilo Moacutevel de Urgecircncia
SRT- Residecircncia Terapecircutica
SUS- Sistema Uacutenico de Sauacutede
UBS- Unidade Baacutesica de sauacutede
VD- Visita Domiciliar
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
10 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA 16
11Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria 16
12A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira25
2 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL 34
21Reflexotildees sobre a Crise e o Cuidado em Sauacutede Mental34
22O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS39
3 METODOLOGIA 46
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA 49
41 Os Sentidos da Crise49
412 Crise como Ameaccedila Social Periculosidade e Risco50
413 Crise como Perda e Isolamento Social54
414 Crise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidos 58
42 Desafios e Potencialidades no Acolhimento agrave Crise64
43 Organizaccedilatildeo da Rede de Cuidados76
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS89
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS95
11
INTRODUCcedilAtildeO
Para o filoacutesofo Gilles Deleuze (1988) pensar natildeo eacute um exerciacutecio natural do ser humano
como costumamos acreditar no senso comum Tampouco se trata de um processo interior ou
subjetivo da ordem de uma reflexatildeo voluntaacuteria Pensamos a partir dos encontros mais insoacutelitos
quando algo nos irrompe agrave consciecircncia de maneira intempestiva e nos forccedila a pensar Pensar
nesse sentido eacute muito mais da ordem de um acontecimento do que da reflexatildeo
A abordagem tradicional da filosofia de Platatildeo agrave Kant tem na representaccedilatildeo o
fundamento do pensamento O conhecimento para esses autores se constroacutei a partir de um
julgamento criacutetico em busca da verdade Em seu livro Diferenccedila e Repeticcedilatildeo (1988) Deleuze
questiona essa tradiccedilatildeo filosoacutefica e sustenta a ideia de um pensamento que natildeo depende mais
de uma relaccedilatildeo com a verdade mas de uma relaccedilatildeo com a diferenccedila Conforme Sangiovanni a
partir da leitura de Deleuze ldquoeacute a partir do encontro com a diferenccedila que ocorre o pensamento
ou seja na relaccedilatildeo exterior natildeo hegemocircnica eacute que satildeo criadas as condiccedilotildees do pensarrdquo
(201386)
Para Deleuze haacute no encontro com a diferenccedila a forccedila de algo novo que necessariamente
nos tira do lugar e que impotildee a necessidade de pensar Nessa mesma linha de pensamento
Benetti destaca ldquoo que funda o pensamento eacute o encontro com algo violento Em outros termos
aquilo que mexe e que marca e portanto desencadeia a paixatildeo de pensarrdquo (DELEUZE 2010
95)
A crise em sauacutede mental tema desse trabalho surgiu para mim como objeto de reflexatildeo
exatamente no plano do concreto de algo que irrompe e se coloca de forma violenta a partir
da necessidade dos casos e do encontro real com o sofrimento do outro A crise fala de um
tempo in ato no aqui e agora que natildeo respeita nossas possibilidades de elaboraccedilotildees teoacutericas
preacutevias sobre o assunto e exige que estejamos inteiramente presentes e disponiacuteveis para o outro
no momento em que ele precisa
Eacute a partir dessa abertura inicial da possibilidade de ser pego de surpresa e mesmo assim
estar junto servindo de suporte para o sofrimento do outro se deixando afetar e marcar por essa
experiecircncia que algum caminho pode se dar Eacute um trabalho que soacute pode acontecer atraveacutes do
contato do encontro com o outro e da possibilidade de estar disponiacutevel para construir algo
juntos
12
A crise aponta para um momento em que as praacuteticas de cuidado e as antigas soluccedilotildees
que o sujeito podia engendrar para lidar com seu sofrimento psiacutequico de alguma forma natildeo
satildeo mais suficientes Segundo Knobloch (1998) a crise pode ser entendida como ldquoalgo
insuportaacutevel no sentido literal de natildeo haver suporte experiecircncia que nos habita como um
abismo de perda de sentido em que se perdem as principais ligaccedilotildeesrdquo (apud FERIGATO et al
2016 33) Algo se rompe algo se perde Natildeo eacute mais possiacutevel continuar a se viver da maneira
em que se estava anteriormente O que fazer
Essa ruptura com uma certa organizaccedilatildeo psiacutequica geralmente eacute entendida pelos
profissionais da sauacutede como algo negativo No entanto se tomamos a loucura e a crise que eacute a
radicalidade dessa ruptura como fenocircmenos de questionamento da ordem social e do status quo
da sociedade talvez possamos relanccedilar algumas perguntas e abrir outras possibilidades de
convivecircncia com a loucura
Apesar do sofrimento que estaacute ligado a vivecircncia da crise sua incidecircncia pode ser vista
como um evento analisador capaz de indicar a necessidade de uma mudanccedila nos modos do
sujeito se relacionar consigo mesmo com o seu tratamento e com o mundo agrave sua volta Assim
eacute precisamente nesse momento em que nada mais parece conseguir estabilizar um sujeito que
nos vemos obrigados a repensar nossas praacuteticas e ofertas de cuidado
Deslocar a perspectiva de compreensatildeo da loucura desse modo significa tomaacute-la em
sua dimensatildeo criativa no que ela traz de revolucionaacuterio e de produccedilatildeo de novos sentidos de
vida Isso implica em uma mudanccedila de atitude eacutetica e poliacutetica para com a loucura natildeo mais no
sentido de reprimi-la ou tentar a todo custo reestabelecer a normalidade perdida mas de aceitar
o movimento de crise como vaacutelido dentro da histoacuteria de vida daquelas pessoas e buscar o que
podemos construir a partir dele isto eacute o que ele pode nos sinalizar sobre as possibilidades de
vida daquele sujeito
Dessa forma algumas questotildees que pretendemos colocar com essa pesquisa satildeo Como
temos acolhido os sujeitos em crise na rede de atenccedilatildeo psicossocial Quais satildeo as principais
dificuldades nesse acolhimento Quais satildeo as nossas principais ferramentas cliacutenicas Quais satildeo
os desafios que o acolhimento agrave crise na rede substitutiva nos coloca Como pensar um
acolhimento agrave crise que natildeo seja apenas baseado na loacutegica de ldquoapagar incecircndiosrdquo Isto eacute que
outras formas de cuidado satildeo possiacuteveis para aleacutem da remissatildeo de sintomas Como trabalhar na
direccedilatildeo de um acolhimento que considere verdadeiramente o sofrimento do sujeito entendendo
a crise natildeo como um momento isolado de sua vida mas como parte de sua histoacuteria
13
Quanto aos aspectos macroestruturais que fundamentam esse trabalho haacute que se
ressaltar que a atenccedilatildeo agrave crise tem sido indicada na literatura como um dos principais desafios
para efetivaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica Embora tenha havido uma mudanccedila no modelo de
sauacutede orientada para um cuidado em liberdade alguns aspectos como a insuficiecircncia da
cobertura dos serviccedilos substitutivos no cenaacuterio local e nacional a baixa articulaccedilatildeo
intersetorial a fragmentaccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e os deacuteficits em relaccedilatildeo aos recursos
humanos e estruturais (BRASIL 2015) tecircm constituiacutedo grandes obstaacuteculos no que se refere a
capacidade dos serviccedilos de acolherem a crise no territoacuterio
No que tange ao cenaacuterio atual o SUS vem sofrendo um forte processo de desmonte
atraveacutes de poliacuteticas de Estado que ameaccedilam seu caraacuteter puacuteblico integral e universal Quanto ao
financiamento destaca-se a Emenda agrave Constituiccedilatildeo 952016 que estabelece um teto para as
despesas em sauacutede puacuteblica considerando o orccedilamento do ano anterior corrigido pela inflaccedilatildeo
sem o aumento real mesmo que haja crescimento econocircmico Isso significa que qualquer
aumento populacional mudanccedilas de perfil demograacutefico ou de quadro sanitaacuterio do paiacutes natildeo
seratildeo acompanhadas pelo incremento das ofertas em sauacutede devido ao congelamento dos gastos
ainda que as receitas tenham aumentado naquele ano Com isso ateacute mesmo a incorporaccedilatildeo de
avanccedilos tecnoloacutegicos fica comprometida contribuindo para ampliar a defasagem do sistema
puacuteblico de sauacutede em relaccedilatildeo aos atendimentos oferecidos pela iniciativa privada
Quanto aos aspectos legislativos e institucionais a recente Nota Teacutecnica 112019
institui uma seacuterie de mudanccedilas que implicam em graves retrocessos na rede assistencial Na
Poliacutetica de Aacutelcool e Outras Drogas o documento confirma o abandono da estrateacutegia de Reduccedilatildeo
de Danos uma abordagem que tem se mostrado eficaz e vem sendo utilizada em diversos
paiacuteses como Canadaacute Portugal Espanha Holanda e alguns estados dentro dos Estados Unidos
Aposta enquanto uacutenica modalidade de tratamento na abstinecircncia total a ser alcanccedilada por meio
internaccedilatildeo de longo prazo reconhecendo enquanto um dispositivo da Rede SUS as
Comunidades Terapecircuticas instituiccedilotildees majoritariamente religiosas focadas no isolamento e
nas praacuteticas religiosas
Quanto agrave organizaccedilatildeo dos serviccedilos os Hospitais Psiquiaacutetricos passam a ser
reconhecidos como parte da RAPS e os Hospitais Gerais ganham ldquoUnidades Psiquiaacutetricas
Especializadasrdquo com capacidade de ateacute 30 leitos para internaccedilotildees psiquiaacutetricas funcionando
como ldquominirdquo Hospitais Psiquiaacutetricos dentro dos Hospitais Gerais o que reproduz novamente a
loacutegica cronificante e alienadora do Hospital Outro ponto eacute a defesa da internaccedilatildeo de crianccedilas e
adolescentes contrariando ECA (Lei 8069 de 1990) Reforccedilamos que essas medidas aleacutem de
14
deslegitimarem o CAPS III como dispositivo privilegiado para o atendimento da crise
claramente contradizem a Poliacutetica de Desinstitucionalizaccedilatildeo e de descredenciamento e
fechamento de Hospitais Psiquiaacutetricos
Na Atenccedilatildeo Baacutesica no municiacutepio do Rio de Janeiro a poliacutetica de ldquoReestruturaccedilatildeo da
Atenccedilatildeo Baacutesicardquo e os cortes previstos na Lei Orccedilamentaacuteria de 2019 foram responsaacuteveis por um
processo de demissatildeo em massa que previa para o ano de 2019 um corte de 239 equipes no
municiacutepio - 184 de sauacutede da famiacutelia e 55 de sauacutede bucal gerando um total de 1400 demissotildees
Segundo levantamento do Nenhum Serviccedilo a Menos em 012019 jaacute haviam sido demitidos 479
servidores sendo a grande maioria deles Agentes Comunitaacuterios da Sauacutede Entre as
mobilizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores foram pautas tambeacutem os atrasos nos salaacuterios
a falta de insumos nas unidades e o descompromisso da Gestatildeo Municipal com o direito agrave
Sauacutede
Assim vecirc-se um avanccedilo preocupante de uma poliacutetica de Estado que visa sucatear a
sauacutede puacuteblica e vai de encontro aos ideais defendidos pela Reforma Sanitaacuteria e aos direitos
promulgados na Constituiccedilatildeo de 1988 que fazem referecircncia agrave sauacutede como direito social
universal garantido pelo Estado
Essas questotildees tornam-se especialmente importantes quando falamos da atenccedilatildeo agrave crise
pois a crise natildeo eacute apenas a crise do usuaacuterio (enquanto um sujeito isolado no mundo e no espaccedilo)
mas tambeacutem a crise do Estado das poliacuteticas puacuteblicas e especialmente das instituiccedilotildees
Desse modo torna-se imprescindiacutevel investir em pesquisas que apontem quais satildeo os
impasses que os profissionais de sauacutede encontram para atender as situaccedilotildees de crise nos serviccedilos
substitutivos e quais estrateacutegias satildeo necessaacuterias no plano micro e macropoliacutetico para mudar o
itineraacuterio dos usuaacuterios em crise do hospital para os serviccedilos substitutivos
Nesse sentido destacamos como objetivo geral deste estudo analisar as fragilidades e
potencialidades apontadas na bibliografia cientiacutefica para a organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da
assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica
Como objetivos especiacuteficos buscaremos
Problematizar as noccedilotildees de crise em sauacutede mental presentes na literatura
e suas repercussotildees para o cuidado
Identificar os desafios e potencialidades encontrados nas praacuteticas de
acolhimento agrave crise na RAPS
Refletir sobre a forma como os serviccedilos tecircm se organizado para responder
agraves demandas de crise
15
Com o intuito de alcanccedilar nossos objetivos realizamos uma pesquisa de revisatildeo
bibliograacutefica de artigos cientiacuteficos que tomaram com objeto os sentidos da crise as praacuteticas de
cuidado e a organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos na resposta agrave crise
Quanto agrave organizaccedilatildeo dessa dissertaccedilatildeo no primeiro capiacutetulo encontramos o referencial
teoacuterico que foi dividido em dois eixos principais No primeiro ldquoDo modelo asilar agraves Reformas
na Psiquiatriardquo retomamos a histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica no mundo explicitando como as
diversas concepccedilotildees de loucura e de crise presentes na sociedade foram responsaacuteveis pela
organizaccedilatildeo de diferentes modelos de cuidado No segundo ldquoA Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileirardquo vemos as repercussotildees da mudanccedila da loacutegica do cuidado no desenvolvimento da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e na reorganizaccedilatildeo da assistecircncia Para esse capiacutetulo usamos
os seguintes autores como referecircncia Foucault Amarante Tenoacuterio Caponi DellacuteAcqua e
Mezzina Birman e outros
No segundo capiacutetulo buscamos discutir mais agrave fundo o conceito de crise e suas relaccedilotildees
com as poliacuteticas de sauacutede no contexto do SUS Na primeira parte ldquoReflexotildees sobre a crise e
o cuidado em sauacutede mentalrdquo faremos uma retomada da origem etimoloacutegica do termo ldquocriserdquo
explicitando seus diversos significados A partir das reflexotildees de autores como DelacuteAcqua
Feriagato Bailarin Corbisier ressaltamos a crise em seu vieacutes criativo produtor de novas
possibilidades de vida Na segunda parte ldquoO Acolhimento agrave crise e a Organizaccedilatildeo do SUSrdquo
contextualizamos os desafios do atendimento agrave crise dentro da loacutegica do SUS A partir das
contribuiccedilotildees de Ceciacutelio (1997) expomos as contradiccedilotildees de um modelo idealizado de SUS
conforme preconizado pelas Poliacuteticas Puacuteblicas que na tentativa de regular todos os fluxos e
linhas de cuidado perde a proximidade com o sujeito e suas reais necessidades de sauacutede
O terceiro capiacutetulo se destina a apresentaccedilatildeo da metodologia utilizada seus aspectos
teoacutericos os caminhos percorridos na seleccedilatildeo dos artigos as bases utilizadas e os criteacuterios de
inclusatildeo de exclusatildeo dos artigos
O quarto capiacutetulo ldquoReflexatildeo e Discussatildeo da Literaturardquo concentra a revisatildeo dos artigos
No intuito de facilitar a anaacutelise dividimos esse capitulo em trecircs eixos conceituais ldquoos sentidos
da criserdquo ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo e a ldquoorganizaccedilatildeo da rede de
cuidadosrdquo
16
1 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA
11 Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria
Ateacute o seacuteculo XVIII na Europa a loucura natildeo era considerada uma doenccedila Ao longo da
histoacuteria a loucura jaacute teve diversos sentidos e explicaccedilotildees figurando desde algo ligado ao
sagrado e ao profeacutetico agrave possessatildeo demoniacuteaca Com a ascensatildeo da sociedade burguesa a
loucura jaacute tinha o estatuto de algo ldquoestranhordquo e junto com todos aqueles considerados
ldquoindesejaacuteveisrdquo agrave sociedade leprosos sifiliacuteticos aleijados mendigos etc comeccedila a ser
confinada nas entatildeo chamadas ldquocasas de internaccedilatildeordquo grandes instituiccedilotildees filantroacutepicas ou
religiosas que tinham como objetivo afastar a pobreza e a miseacuteria das ruas em uma grande
medida de higiene social Segundo Foucault
Estranha superfiacutecie a que comporta as medidas de internamento Doentes veneacutereos
devassos dissipadores homossexuais blasfemadores alquimistas libertinos toda
uma populaccedilatildeo matizada se vecirc repentinamente na segunda metade do seacuteculo XVII
rejeitada para aleacutem de uma linha de divisatildeo e reclusa em asilos que se tornaratildeo em
um ou dois seacuteculos os campos fechados da loucura (2002 116)
Esse periacuteodo histoacuterico eacute denominado pelo autor como a ldquoA Grande Internaccedilatildeordquo (2002)
fazendo alusatildeo ao fato de que a internaccedilatildeo natildeo era apenas para os loucos mas para toda a sorte
de indiviacuteduos que por algum motivo perturbavam a ordem social Esse periacuteodo se inscreve
desde o seacuteculo XVII ateacute o final seacuteculo XVIII e seu fim inaugura a emergecircncia da psiquiatria
enquanto ciecircncia (RIBEIRO PINTO 2011)
As ldquocasas de internaccedilatildeordquo natildeo tinham como objetivo a cura de enfermos ou a reabilitaccedilatildeo
dessas pessoas Eram verdadeiros depoacutesitos humanos lugares de exclusatildeo social da pobreza e
da miseacuteria produzidas pelos regimes absolutistas da eacutepoca Laacute permaneciam isolados e
esquecidos esperando a proacutepria morte
As primeiras casas surgiram nas regiotildees mais industrializadas do paiacutes como uma
alternativa para crise econocircmica atraveacutes da exploraccedilatildeo da matildeo de obra barata Segundo o
regulamento de uma das casas ldquoos internos devem trabalhar todos Determina-se o valor exato
de sua produccedilatildeo e daacute-se-lhes a quarta parte Pois o trabalho natildeo eacute apenas ocupaccedilatildeo deve ser
produtivordquo (FOUCAULT 2002 67)
Os loucos natildeo recebiam tratamento diferenciado em relaccedilatildeo aos outros pobres poreacutem
distinguiam-se pela ldquoincapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida
17
coletivardquo (FOUCAULT 2002 73) Assim comeccedila-se a se pensar a loucura como um caso agrave
parte uma vez que ela natildeo responde da mesma forma agraves demandas de produtividade
Com a expansatildeo industrial o pobre passa a ser necessaacuterio nas cidades logo natildeo podia
mais estar internado mas e o pobre e louco A quem caberia a responsabilidade de assistecircncia
dessas pessoas Aos poucos as casas de internaccedilatildeo foram mudando de figura
O poder exercido no interior dessas Instituiccedilotildees pertencia agrave Igreja e ao Estado mas
em funccedilatildeo das revoluccedilotildees francesa e industrial do surgimento de novos atores sociais
ndash a burguesia a classe meacutedia o proletariado - e do surgimento de uma nova
racionalidade na produccedilatildeo do conhecimento essas instituiccedilotildees vatildeo gradativamente se
transformando em instituiccedilotildees meacutedicas (BARRIacuteGIO 2010 18)
Em 1791 na Franccedila eacute decretada uma lei que responsabiliza as famiacutelias por vigiar seus
loucos evitando que eles fiquem ldquovagando na ruardquo ou cometam alguma ldquodesordemrdquo No
entanto para as famiacutelias mais pobres que natildeo tinham condiccedilotildees de assistir seus familiares
chegam vaacuterios pedidos de internaccedilatildeo ao Ministeacuterio do Interior Nesse cenaacuterio destacam-se
duas instituiccedilotildees que sob agrave eacutegide da Medicina comeccedilam a se configurar enquanto os primeiros
hospitais especializados no tratamento da loucura Bicecirctre para o puacuteblico masculino e
Salpetriegravere para o puacuteblico feminino (HENNA 2014)
Em 1792 o meacutedico Phillipe Pinel assumiu a direccedilatildeo do Hospital de Bicetrecirc em Paris
onde operou inuacutemeras transformaccedilotildees consideradas atualmente por alguns autores como a
primeira Reforma da Psiquiatria Pinel inspirado pelos ideais de igualdade fraternidade e
liberdade da Revoluccedilatildeo Francesa libertou os loucos das correntes aboliu teacutecnicas como ldquoa
imersatildeo em aacutegua gelada os golpes as sangrias e as torturasrdquo (CAPONI 2012 49) e combateu
o pensamento da eacutepoca que a loucura era um fenocircmeno de possessatildeo demoniacuteaca
A funccedilatildeo meacutedica eacute claramente introduzida em Bicecirctre trata-se agora de rever todos
os internamentos por demecircncia que foram decretados no passado E pela primeira vez
na histoacuteria do Hospital Geral eacute nomeado para as enfermarias de Bicecirctre um homem
que jaacute adquiriu certa reputaccedilatildeo no conhecimento das doenccedilas do espiacuterito a designaccedilatildeo
de Pinel prova por si soacute que a presenccedila de loucos em Bicecirctre jaacute eacute um problema meacutedico
(FOUCAULT 2002 464)
A Psiquiatria de Pinel teve como objetivo demarcar os precisos limites entre a
normalidade e a loucura Devem-se a ele os primeiros esforccedilos no sentido de separar e
classificar os diversos tipos de desvio ou alienaccedilatildeo mentalrdquo com o intuito de estudaacute-los e
trataacute-los Com Pinel a loucura comeccedila a ganhar o status de uma ldquodoenccedila mentalrdquo com
sintomatologia proacutepria que requer cura e tratamento
Em seu Traite Medico-Philosophique sur IAlienation Mentale Pinel (1801) afirma que
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Os alienados longe de serem culpados a quem se deve punir satildeo doentes cujo
doloroso estado merece toda a consideraccedilatildeo devida a humanidade que sofre e para
quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razatildeo desviada (apud
PEREIRA 2004 114 grifo nosso)
Hegel inspirado pelos estudos de Pinel afirma que a loucura natildeo eacute uma perda total da
razatildeo mas a contradiccedilatildeo de uma razatildeo que ainda existe O alienado eacute portanto um ser em
contradiccedilatildeo consigo mesmo mas que preserva em algum lugar um ponto lucidez
O verdadeiro tratamento apega-se a concepccedilatildeo de que a alienaccedilatildeo natildeo eacute a perda
abstrata da razatildeo nem do lado da inteligecircncia nem do lado da vontade ou da sua
responsabilidade mas um simples desarranjo do espiacuterito uma contradiccedilatildeo na
razatildeo que ainda existe assim como a doenccedila fiacutesica natildeo eacute uma perda abstrata isto eacute
completa da sauacutede (isso seria a morte) mas eacute uma contradiccedilatildeo dentro dela Esse
tratamento humano isto eacute tatildeo benevolente quanto razoaacutevel da loucura pressupotildee que
o doente eacute razoaacutevel e aiacute encontra um soacutelido ponto para abordaacute-lo desse lado (HEGEL
apud FOUCAULT 1972 524 grifo nosso)
Sendo a alienaccedilatildeo um distuacuterbio das paixotildees no interior da proacutepria razatildeo e natildeo fora dela
o tratamento possiacutevel para a loucura era buscar reestabelecer a normalidade perdida Conforme
afirma Pinel (1801) ldquohaacute sempre um resto de razatildeo mesmo no mais alienado dos alienadosrdquo e
se haacute um resto de razatildeo para Pinel era possiacutevel resgataacute-la (apud CAPONI 2012 48)
Os meios propostos por Pinel para reestabelecer o equiliacutebrio do doente constituiacuteam no
que ele chamou de ldquotratamento moralrdquo O termo moral nesse sentido era usado para designar
aquilo que pertence ao espiacuterito em contraposiccedilatildeo ao que eacute fiacutesico Assim o tratamento moral
visava reeducar o ldquodoenterdquo no sentido de ldquocriar estrateacutegias para dominar as paixotildees e recuperar
a razatildeordquo (CAPONI 2012 53)
O chamado tratamento moral praticado pelos alienistas incluiacutea o afastamento dos
doentes do contato exterior com todas as influecircncias da vida social e de qualquer
contato que pudesse modificar o que era considerado o desenvolvimento natural da
doenccedila (PEREIRA 2004 114)
A estrateacutegia de isolamento praticada com o tratamento moral procurava manter distacircncia
das condiccedilotildees que Pinel acreditava terem contribuiacutedo para o desenvolvimento da doenccedila
Segundo seus estudos tratavam-se de elementos de ordem social e afetiva que ele relacionava
com certos tipos de alienaccedilatildeo mental
Existe uma marcada diferenccedila na frequecircncia de certas causas conforme as espeacutecies de
alienaccedilatildeo problemas domeacutesticos produzem mais frequentemente a mania uma
devoccedilatildeo muito exaltada determina a melancolia Um amor contrariado e infeliz parece
ser a fonte fecunda para duas espeacutecies de alienaccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo ao idiotismo os
estudos indicam que as causas fiacutesicas como um viacutecio de conformaccedilatildeo podem estar na
origem da maior parte dos casos (PINEL apud CAPONI 2012 48)
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Podemos ver que as ldquocausas moraisrdquo mais frequentes da alienaccedilatildeo satildeo experiecircncias
comuns a vida cotidiana ( amor contrariado problemas domeacutesticos devoccedilatildeo religiosa etc) que
poderiam ser revertidas com o tratamento atraveacutes da submissatildeo do doente a um ambiente de
controle onde seria possiacutevel dominar as paixotildees desenfreadas e os comportamentos
inadequados atraveacutes da ldquovoz da razatildeordquo representada pela figura do psiquiatra
Conforme Pinel
A terapecircutica da loucura eacute a arte de subjulgar e dominar por assim dizer o alienado
pondo-o em extrema dependecircncia de um homem que por suas qualidades fiacutesicas e
morais estaacute apto para exercer sobre ele um domiacutenio irresistiacutevel algueacutem capaz de
mudar a cadeia viciosa de suas ideacuteias (FOUCAULT 2003 apud CAPONI 2012 41)
Assim dois elementos mostram-se fundamentais para o sucesso do tratamento moral
isolamento e poder Por um lado a ideia de privar o doente do contato com as condiccedilotildees que
ocasionaram a sua doenccedila resulta no seu isolamento por outro a submissatildeo a um ambiente
riacutegido de regras firmes e incontestaacuteveis seria o fator imprescindiacutevel para exercer o controle das
paixotildees
A proacutepria organizaccedilatildeo do espaccedilo e das rotinas do ambiente asilar eram pensadas de
modo que a disciplina do ambiente pudesse se refletir tambeacutem nos pacientes operando assim
uma espeacutecie de ldquocontenccedilatildeordquo pelo ambiente (CAPONI 2012) As regras condutas horaacuterios e
regimentos do hospital tinham como objetivo reeducar a mente do ldquoalienadordquo afastar os deliacuterios
e ldquochamar agrave consciecircncia agrave realidaderdquo (AMARANTE 200733) Assim o hospital passa a ser
natildeo somente o lugar onde acontece o tratamento mas ele proacuteprio um instrumento ldquoterapecircuticordquo
Este tratamento exige uma reorganizaccedilatildeo interna do espaccedilo asilar uma distribuiccedilatildeo
minuciosa das diferentes espeacutecies de doente ficando os melancoacutelicos mais proacuteximos
do paacutetio e situando-se o restando dos pacientes mais longe de acordo com a sua
periculosidade Assim como existe uma minuciosa descriccedilatildeo e organizaccedilatildeo do
espaccedilo algo semelhante ocorreraacute com o controle do tempo As atividades exercidas
no asilo tem tempos estabelecidas assim como os tratamentos para cada tipo de
doenccedila As regras seratildeo previamente estabelecidas e fixadas sendo que cada
estrateacutegia disciplinar pretende contrapor a loucura agrave racionalidade e agrave mesura
representadas pelo saber meacutedico Define-se assim o modelo que deve ser interiorizado
por esse tipo de ortopedia moral que rege nos asilos (CAPONI2012 50)
Vecirc-se entatildeo que o surgimento dos hospitais psiquiaacutetricos nasce estreitamente ligado agrave
concepccedilatildeo de loucura enquanto doenccedila mental e a ideia de um tratamento que usa como
recursos terapecircuticos o isolamento a disciplina e a autoridade Com o alienismo o hospital
deixa de ser um espaccedilo de assistecircncia e filantropia para se tornar de fato uma instituiccedilatildeo
meacutedica Comeccedila-se a se estabelecer uma diferenccedila entre o louco o criminoso o pobre e o
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doente dos oacutergatildeos de modo que se torna necessaacuterio isolar o louco dos demais internos em um
ambiente separado afim de observaacute-lo e estudar a natureza de sua doenccedila Embora os loucos jaacute
fossem institucionalizados antes do alienismo haacute nesse momento uma marcada diferenccedila a
clausura em questatildeo natildeo se daacute mais por caridade ou repressatildeo mas ldquopor um imperativo
terapecircuticordquo (AMARANTE 2007 33)
Assim as condiccedilotildees de possibilidade para o surgimento do manicocircmio enquanto uma
instituiccedilatildeo de isolamento da loucura contemplam tanto os alienistas e seu entendimento sobre
a loucura quanto agraves necessidades da sociedade como um todo Por um lado a concepccedilatildeo que
se tinha em relaccedilatildeo agrave loucura exigia o reestabelecimento da razatildeo atraveacutes de uma reeducaccedilatildeo
moral cujos alicerces eram o isolamento e as riacutegidas disciplinas institucionais por outro
haviam os anseios da populaccedilatildeo por isolamento e exclusatildeo daqueles que desviam da norma
social e que por isso lhe parecem estranhos e perigosos
Foi assim que segundo Amarante (2007 33) ldquoo alienismo pineliano ganhou o mundordquo
e embora tenha havido algumas criacuteticas a esse modelo ele soacute seraacute efetivamente questionado no
seacuteculo XX no contexto do poacutes-guerra na Europa
As duas grandes Guerras Mundiais voltaram a sociedade para uma reflexatildeo sobre a
natureza humana a crueldade e solidariedade com o proacuteximo No poacutes-Segunda Guerra com a
queda do nazismo especificamente percebeu-se que as condiccedilotildees de vida oferecidas nos
hospitais psiquiaacutetricos pouco se distanciavam daquelas oferecidas aos judeus nos campos de
concentraccedilatildeo nazistas (AMARANTE 2007)
Paralelamente a Europa sofreu um forte abalo econocircmico Segundo Heidrich (2007
38) ldquoos autores destacam que soacute na Franccedila 40 mil doentes mentais morreram nos asilos devido
agraves maacutes condiccedilotildees e a falta de alimentaccedilatildeordquo Houve uma perda consideraacutevel da matildeo-de-obra
disponiacutevel que fora lanccedilada ao campo de batalha e jaacute natildeo havia mais quem pudesse reconstruir
a economia e reparar os danos do poacutes-guerra
Nessa atual conjuntura natildeo era mais possiacutevel assistir-se passivamente ao
deterioramento do espetaacuteculo asilar natildeo era mais possiacutevel aceitar uma situaccedilatildeo em
que um conjunto de homens passiacuteveis de atividade pudessem estar espantosamente
estragados no hospiacutecio Passou-se a enxergar como um grande absurdo esse montante
de desperdiacutecio da forccedila de trabalho (BIRMAN COSTA 1994 46-7)
Segundo Birman e Costa (1994) lidos por Heidrich (2007) haviam duas preocupaccedilotildees
centrais que demandavam a reforma do modelo asilar
Por um lado a preocupaccedilatildeo dos proacuteprios psiquiatras com relaccedilatildeo agrave sua impotecircncia
terapecircutica por outro as preocupaccedilotildees governamentais geradas pelos altos iacutendices
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de cronicidade das doenccedilas mentais com sua consequente incapacidade social Dessa
forma a psiquiatria social aparece transferindo o campo de atuaccedilatildeo da psiquiatria da
doenccedila mental para a sauacutede mental ( BIRMAN COSTA 1994 apud HEIDRICH
2007 36-7)
O Hospital Psiquiaacutetrico comeccedila a aparecer entatildeo como o principal responsaacutevel pela
degradaccedilatildeo dos pacientes e pela manutenccedilatildeo e pela cronicidade de sua doenccedila Assim surgem
vaacuterias experiecircncias com o objetivo de transformar o ambiente asilar e reabilitar os pacientes
para a vida social e para o trabalho
Segundo Amarante (2007) esses movimentos reformistas foram divididos em ldquodois
grupos mais umrdquo
O primeiro grupo composto pela Comunidade Terapecircutica e pela Psicoterapia
Institucional destaca duas experiecircncias que investiram no princiacutepio de que o fracasso
estava na forma de gestatildeo do proacuteprio hospital e que a soluccedilatildeo portanto seria
introduzir mudanccedilas na instituiccedilatildeo O segundo grupo eacute formado pela Psicoterapia de
Setor e Psiquiatria Preventiva experiecircncias que acreditavam que o modelo hospitalar
estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ldquopelas beiradasrdquo como se diz
na linguagem popular isto eacute deveria ser tornado obsoleto a partir da construccedilatildeo de
serviccedilos assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapecircutico (hospitais dia
oficinas terapecircuticas centros de sauacutede mental etc) ao mesmo tempo que iriam
diminuindo a importacircncia e a necessidade do hospital psiquiaacutetrico No lsquooutrorsquo grupo
em que estatildeo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica o termo reforma parece
inadequado Ambas consideram que a questatildeo mesma estaria no modelo cientiacutefico
psiquiaacutetrico que eacute todo ele colocado em xeque assim como suas instituiccedilotildees
assistenciais (AMARANTE 2007 41)
O primeiro grupo formado pela Comunidade Terapecircutica (Inglaterra e EUA) e pela a
Psicoterapia Institucional (Franccedila) acreditava em uma reforma do ambiente hospitalar de modo
a humanizaacute-lo e tornaacute-lo efetivamente terapecircutico Assim empreenderam propostas de
democratizar o hospital dissolver a rigidez da hierarquia e da disciplina do ambiente hospitalar
de modo a horizontalizar as relaccedilotildees de poder Todos deviam fazer parte de uma mesma
comunidade terapecircutica e lutar contra a violecircncia institucional O sistema eacute pensado de modo a
apostar no potencial terapecircutico do coletivo e a incluir o sujeito que experiecircncia o sofrimento
como co-participante de seu tratamento Jaacute vemos aiacute uma inversatildeo em relaccedilatildeo a psiquiatria
pineliana e ao modo tradicional de se entender a loucura poreacutem natildeo haacute um questionamento em
relaccedilatildeo a necessidade de institucionalizaccedilatildeo do louco
O segundo grupo composto pela Psiquiatria de Setor (Franccedila) e pela Psiquiatria
Preventiva (EUA) jaacute apontava para a necessidade de um trabalho externo ao manicocircmio A
Psiquiatria de Setor se destacou por criar serviccedilos externos agrave internaccedilatildeo os CSM (Centros de
Sauacutede Mental) distribuiacutedos pelo territoacuterio de acordo com o contingente populacional nos
diferentes setores administrativos das regiotildees francesas O hospital por sua vez era tambeacutem
dividido em vaacuterios setores de modo que pacientes de uma mesma regiatildeo administrativa fossem
22
sempre internados no mesmo setor do hospital e quando recebessem alta eram enviados ao CMS
correspondente (AMARANTE 2007)
Organizar o cuidado desse modo permitia que o sujeito pudesse ser acompanhado pela
mesma equipe multiprofissional desde a internaccedilatildeo hospitalar ateacute a alta e encaminhamento para
o CMS do setor contando com o viacutenculo como um recurso terapecircutico Comeccedila-se a se
construir a ideia de uma equipe multidisciplinar de modo que o cuidado natildeo ficasse mais apenas
centralizado na figura do meacutedico
A Psiquiatria Preventiva tambeacutem conhecida como Psiquiatria Comunitaacuteria buscou
aplicar o meacutetodo da Medicina Preventiva agrave Psiquiatria visando reduzir a incidecircncia das doenccedilas
mentais na populaccedilatildeo Caplan fundador dessa corrente acreditava que ldquotodas as doenccedilas
mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocementerdquo (apud AMARANTE
2007 48)
Para a Psiquiatria Preventiva o conceito de crise passa a ser norteador A crise era
entendida a partir do vieacutes socioloacutegico de ldquoadaptaccedilatildeo e desadaptaccedilatildeo socialrdquo Segundo Joel
Birman e Jurandir Freire Costa atraveacutes da leitura de Amarante as crises eram classificadas em
dois grandes grupos
1) Evolutivas-quando relacionadas a processos normais do desenvolvimento fiacutesico
emocional ou social Em tais processos na passagem de uma fase agrave outra da vida a
conduta natildeo estaria caracterizada por um padratildeo estabelecido Tratar-se-ia de um
periacuteodo transitoacuterio quando o indiviacuteduo perderia sua caracterizaccedilatildeo anterior sem no
entanto adquirir uma nova organizaccedilatildeo Na hipoacutetese de os conflitos gerados natildeo
serem bem absorvidos poderiam levar agrave desadaptaccedilatildeo que natildeo sendo elaborados pela
pessoa poderiam conduzir agrave doenccedila mental
2) Acidentais- quando precipitadas por alguma perda ou risco (desemprego separaccedilatildeo
conjugal falecimento de uma pessoa querida etc) A perturbaccedilatildeo emocional
ocasionada pela crise provocaria eventualmente o surgimento de alguma enfermidade
mental assim torna-se um momento estrateacutegico de intervenccedilatildeo preventiva na medida
em que em contrapartida a crise pode ser encarada como uma possibilidade de
crescimento para o indiviacuteduo (Birman e Costa 1998 apud AMARANTE 2007 49-
50)
Entendendo que algumas situaccedilotildees sejam elas relativas ao desenvolvimento natural do
ser humano ou a condiccedilotildees externas diversas apontam para momentos mais delicados da vida
a Psiquiatria Preventiva propocircs estrateacutegias de trabalho de base comunitaacuteria investindo em
equipes de sauacutede mental que pudessem acompanhar os usuaacuterios preventivamente identificando
e intervindo na crise em seu vieacutes individual familiar e social
Tambeacutem foram implantados vaacuterios serviccedilos comunitaacuterios de cuidado com o objetivo de
acompanhar os usuaacuterios preventivamente diminuindo a incidecircncia das doenccedilas mentais e a
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necessidade de internaccedilotildees psiquiaacutetricas de modo que aos poucos o hospital se tornasse um
recurso obsoleto e desnecessaacuterio (AMARANTE 2007)
No entanto aconteceu paradoxalmente um aumento importante da demanda psiquiaacutetrica
nos EUA tanto nos serviccedilos extra hospitalares quanto nos hospitais psiquiaacutetricos ldquoos proacuteprios
serviccedilos comunitaacuterios se transformaram em grandes captadores e encaminhadores de novas
clientelas para os hospitais psiquiaacutetricosrdquo (AMARANTE 2007 51)
Assim vemos que embora tenha havido uma mudanccedila na estruturaccedilatildeo dos serviccedilos ela
natildeo eacute suficiente sem uma mudanccedila de mentalidade em relaccedilatildeo agrave loucura e aos modos de trataacute-
la Ainda que os novos dispositivos tenham sido pensados para evitar as internaccedilotildees
psiquiaacutetricas isso natildeo ocorreraacute se os profissionais continuam a pensar do mesmo modo e se natildeo
haacute um trabalho com a sociedade no sentido de questionar a exclusatildeo da loucura e inventar novas
possibilidades de convivecircncia
Nesse ponto a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica Italiana se destacam das
demais propostas de reformas da psiquiatria Para a Antipsiquiatria as pessoas tidas como
loucas eram reprimidas e violentadas natildeo soacute nos hospitais mas na sociedade como um todo
Logo ldquoa experiecircncia dita patoloacutegica ocorria natildeo no indiviacuteduo na condiccedilatildeo de corpo ou mente
doente mas nas relaccedilotildees estabelecidas entre ele e a sociedaderdquo (AMARANTE 2007 35)
Assim natildeo era apenas a instituiccedilatildeo que precisava mudar tampouco o sujeito dito louco mas a
proacutepria relaccedilatildeo entre loucura e sociedade
O princiacutepio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiecircncia esta seria
por si soacute terapecircutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de
reorganizaccedilatildeo interior Ao lsquoterapeutarsquo competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a
superar esse processo acompanhando-a protegendo-a inclusive da violecircncia da
proacutepria psiquiatria (AMARANTE 2007 54)
Quanto agrave experiecircncia italiana Franco Basaglia (1968) precursor do movimento
entendia que era preciso superar natildeo apenas o manicocircmio mas todo o aparato manicomial isto
eacute natildeo soacute a estrutura fiacutesica do hospital mas o conjunto de seus saberes e praacuteticas cientiacuteficas
sociais juriacutedicas e legislativas
Essa inflexatildeo destaca que a luta natildeo eacute contra o manicocircmio em si mas contra toda e
qualquer praacutetica manicomial Com isso Basaglia (1968) chama atenccedilatildeo para o fato de que
mesmo nos dispositivos ditos ldquonovosrdquo eacute possiacutevel haver uma reproduccedilatildeo de praacuteticas autoritaacuterias
e opressoras em relaccedilatildeo agrave loucura Vale dizer que foi esse movimento que serviu de inspiraccedilatildeo
e base para a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira tema do nosso proacuteximo capiacutetulo
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Inspirado na Psiquiatria Comunitaacuteria Basaglia tambeacutem criou centros regionalizados
para atender as demandas de sauacutede mental No entanto diferente desse primeiro movimento
natildeo eram dispositivos que davam continuidade ao tratamento apoacutes a alta e que reinternavam os
pacientes nos manicocircmios nos momentos de crise mas serviccedilos que constituiacuteam por excelecircncia
o modelo de tratamento em sauacutede mental rejeitando definitivamente o hospital como lugar de
tratamento
Quanto ao entendimento da loucura haacute tambeacutem nesse ponto uma ruptura
epistemoloacutegica importante com o paradigma anterior Basaglia (1968) considera que o mal
obscuro da psiquiatria foi ter colocado o sujeito entre parecircnteses e ter elegido como seu objeto
de estudo ldquoa doenccedilardquo (apud AMARANTE 2007) Assim a proposta da Psiquiatria
Democraacutetica Italiana consiste em operar uma inversatildeo colocar a doenccedila entre parecircnteses e
tomar o sujeito como o objeto da psiquiatria Importante destacar que isto natildeo significa negar a
doenccedila enquanto um estado de produccedilatildeo de dor e sofrimento mas compreender que a totalidade
do sujeito natildeo se reduz agrave ela
Com isto o objeto da Psiquiatria se desloca da ldquodoenccedila mentalrdquo para a ldquosauacutede mentalrdquo
e o mandato dessa ciecircncia deixa de ser centrado na cura do paciente para se tornar uma
preocupaccedilatildeo com a sua sauacutede e com seu bem-estar social
Assim vemos que os significados da loucura na sociedade e os modelos assistenciais
desenhados para dar conta dessa questatildeo nunca foram objetos ldquodadosrdquo historicamente mas
construccedilotildees sociais Diferentes noccedilotildees de crise e de loucura permitiram a emergecircncia de
diferentes modelos de assistecircncia Com isto podemos observar que os modos de compreensatildeo
da crise e da loucura influem nas nossas ofertas de cuidado assim como nossas ofertas de
cuidado tambeacutem dizem algo do modo como estamos pensando e compreendendo a loucura e as
intervenccedilotildees possiacuteveis em uma situaccedilatildeo de crise
12 A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
O movimento de Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira encontra suas origens no final da
deacutecada de 1970 no bojo dos movimentos sociais ligados agrave luta contra a ditadura e dentro de um
movimento mais amplo de reformas no setor da sauacutede Dentre esses movimentos emergentes
em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores da Sauacutede Mental (MTSM) que assumiu um
papel importante na criacutetica e na oposiccedilatildeo ao regime militar em especial no que concernia agraves
situaccedilotildees de violaccedilatildeo dos direitos humanos dentro dos hospitais psiquiaacutetricos Esse movimento
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permitiu colocar em evidecircncia a violecircncia e a miseacuteria agraves quais eram submetidas as pessoas com
transtorno mental internadas nos hospitais da rede puacuteblica aleacutem de reivindicar melhorias nas
condiccedilotildees de trabalho dos profissionais de sauacutede (AMARANTE 1998)
Segundo Amarante (1998) um ponto crucial para o surgimento desse movimento foi o
que se denominou a ldquocrise da Divisatildeo Nacional de Sauacutede Mentalrdquo1 movimento de denuacutencia e
criacutetica agraves peacutessimas condiccedilotildees em que se encontravam os quatro hospitais da Divisatildeo Nacional
de Sauacutede Mental do Ministeacuterio da Sauacutede no Rio de Janeiro (Centro Psiquiaacutetrico Pedro II ndash
CPPII Hospital Pinel Colocircnia Juliano Moreira ndash CJM e Manicocircmio Judiciaacuterio Heitor
Carrilho) Essa situaccedilatildeo culminou na greve de meacutedicos e funcionaacuterios no primeiro trimestre de
1978 seguida da demissatildeo de 260 estagiaacuterios e profissionais
Na eacutepoca devido ao destaque do Rio de Janeiro como ex-capital federal e como capital
cultural do Brasil somado a gravidade dessas denuacutencias terem ocorrido dentro de um oacutergatildeo
federal constatou-se um verdadeiro escacircndalo no modo como o Estado tratava os pacientes
com transtorno mental e seus funcionaacuterios Isso permitiu com que a situaccedilatildeo atingisse
repercussatildeo nacional tanto atraveacutes da divulgaccedilatildeo na miacutedia quanto pelo debate em setores
expressivos da sociedade brasileira o que impulsionou o movimento de Reforma por todo o
paiacutes (AMARANTE 1998)
Em 1987 surge o Movimento de Luta Antimanicomial a partir do Encontro dos
Trabalhadores da Sauacutede Mental que reuniu mais de 350 trabalhadores na cidade de Bauru no
estado de Satildeo Paulo O movimento assumiu um papel importante no processo de construccedilatildeo da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira contribuindo no fortalecimento e na organizaccedilatildeo dos
trabalhadores usuaacuterios e familiares em torno das pautas e reivindicaccedilotildees da aacuterea
(VASCONCELOS 2008)
Na deacutecada de 1980 haacute um fortalecimento dos movimentos reformistas Segundo
Tenoacuterio (2002) houve um amadurecimento da criacutetica ao modelo asilarsegregador e uma
contestaccedilatildeo mais forte em relaccedilatildeo agraves internaccedilotildees conveniadas
a deacutecada de 1980 assistiu ainda a trecircs processos tambeacutem importantes para a
consolidaccedilatildeo das caracteriacutesticas atuais do movimento da reforma a ampliaccedilatildeo dos
atores sociais envolvidos no processo a iniciativa de reformulaccedilatildeo legislativa e o
surgimento de experiecircncias institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo
tipo de cuidado em sauacutede mental (TENOacuteRIO 2002 27)
1 Oacutergatildeo do Ministeacuterio da Sauacutede responsaacutevel pela formulaccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede do subsetor sauacutede mental
26
Em 1989 o deputado Paulo Delgado propotildee o projeto de lei no 365789 estabelecendo
os direitos das pessoas com transtorno mental e prevendo a extinccedilatildeo dos manicocircmios poreacutem
devido aos fortes lobbies dos proprietaacuterios de hospitais psiquiaacutetricos o projeto natildeo eacute aprovado
mas produz a ampliaccedilatildeo do debate em torno da reestruturaccedilatildeo da assistecircncia por todo o paiacutes
A intensificaccedilatildeo do debate e a popularizaccedilatildeo da causa da reforma desencadeadas pela
iniciativa de revisatildeo legislativa certamente impulsionaram os avanccedilos que a luta
alcanccedilou nos anos seguintes Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiaacutetrica
proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou a situaccedilatildeo curiosa de ser
uma lei que produziu seus efeitos antes de ser aprovada (TENOacuteRIO 2002 28
grifo nosso)
Embora a lei natildeo tenha sido aprovada nesse primeiro momento ela teve efeitos
importantes na organizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos serviccedilos em prol da Reforma Psiquiaacutetrica A
partir de 1992 os movimentos sociais conseguem aprovar em vaacuterios estados do Brasil as
primeiras leis que determinam a substituiccedilatildeo progressiva dos leitos psiquiaacutetricos por uma rede
integrada de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental (BRASIL 2005 8) Nesse contexto atraveacutes
PortariaSNAS nordm 2241992 surgem os Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e os Nuacutecleos
de Atenccedilatildeo Psicossocial (NAPS) dois importantes dispositivos com a proposta de atuarem de
formas substitutiva ao modelo asilar
Ainda nesse ano destaca-se um outro marco na histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileira a II Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental Esta conferecircncia contou com a ampla
participaccedilatildeo dos usuaacuterios e familiares de sauacutede mental cabe ressaltar que aproximadamente
20 dos delegados da conferecircncia eram usuaacuterios dos serviccedilos de sauacutede mental ou familiares de
usuaacuterios
Segundo Tenoacuterio (2002) a conferecircncia estabelece dois marcos conceituais importantes
a atenccedilatildeo integral e a cidadania
Segundo essa referecircncia satildeo desenvolvidos o tema dos direitos e da legislaccedilatildeo e a
questatildeo do modelo e da rede de atenccedilatildeo na perspectiva da municipalizaccedilatildeo As
recomendaccedilotildees gerais sobre o modelo de atenccedilatildeo propunham a adoccedilatildeo dos conceitos
de territoacuterio e responsabilidade como forma de ruptura com o modelo
hospitalocecircntrico e de garantir o direito dos usuaacuterios agrave assistecircncia e agrave recusa ao
tratamento bem como a obrigaccedilatildeo do serviccedilo em natildeo abandonaacute-los agrave proacutepria sorte
(Ministeacuterio da Sauacutede Brasil 1994 22 apud TENOacuteRIO 2002)
Ao longo da deacutecada de 1990 a proposta da construccedilatildeo de uma rede de serviccedilos que
possibilitasse a extinccedilatildeo dos manicocircmios ganhou forccedila e houve uma expansatildeo significativa dos
serviccedilos de atenccedilatildeo diaacuteria substitutivos aos hospitalares Nesse periacuteodo entre os muitos pontos
importantes destacam-se
a penetraccedilatildeo crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiaacutetrico (natildeo obstante
o triunfalismo da psiquiatria bioloacutegica) a permanecircncia continuada de diretrizes
27
reformistas no campo das poliacuteticas puacuteblicas com os postos de coordenaccedilatildeo e gerecircncia
ocupados por partidaacuterios da reforma (no caso do Rio de Janeiro nos trecircs niacuteveis
gestores federal estadual e municipal) a existecircncia de experiecircncias renovadoras com
resultados iniciais positivos em todas as regiotildees do paiacutes a capacidade das experiecircncias
mais antigas de manter sua vitalidade os reiterados indiacutecios de um novo olhar sobre
a loucura vicejando no espaccedilo social um olhar natildeo mais tatildeo fortemente marcado pelos
estigmas do preconceito e do medo (TENOacuteRIO 200241)
Depois de 12 anos tramitando no congresso eacute aprovado em 2001 um projeto substitutivo
da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado a lei 10216 que sofreu muitas modificaccedilotildees no
texto original A referida lei ldquodispotildee sobre a proteccedilatildeo das pessoas com transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sauacutede mentalrdquo (BRASIL 2001) No artigo 2ordm paraacutegrafo
uacutenico estabelece que satildeo direitos da pessoa com transtorno mental
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de sauacutede consentacircneo agraves suas
necessidades II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua sauacutede visando alcanccedilar sua recuperaccedilatildeo pela inserccedilatildeo na famiacutelia no
trabalho e na comunidade III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e
exploraccedilatildeo IV ndash ter garantia de sigilo nas informaccedilotildees prestadas V ndash ter direito agrave
presenccedila meacutedica em qualquer tempo para esclarecer a necessidade ou natildeo de sua
hospitalizaccedilatildeo involuntaacuteria VI ndash ter livre acesso aos meios de comunicaccedilatildeo
disponiacuteveis VII ndash receber o maior nuacutemero de informaccedilotildees a respeito de sua doenccedila e
de seu tratamento VIII ndash ser tratada em ambiente terapecircutico pelos meios menos
invasivos possiacuteveis IX ndash ser tratada preferencialmente em serviccedilos comunitaacuterios de
sauacutede mental (BRASIL 2001)
A lei 10216 tambeacutem regulamenta as internaccedilotildees psquiaacutetricas e redireciona o modelo
assistencial em sauacutede
Aleacutem dos CAPS previu-se a implantaccedilatildeo de ambulatoacuterios de sauacutede mental NAPS
residecircncias terapecircuticas hospitais-dia unidades de psiquiatria em hospitais gerais
lares protegidos e centros de convivecircncia e cultura (BRASIL 2001 apud BARROSO
SILVA 2011 73)
Previram-se tambeacutem a criaccedilatildeo de oficinas de trabalho protegido unidades de
preparaccedilatildeo para a reinserccedilatildeo social dos pacientes e serviccedilos para o atendimento agraves
famiacutelias (BARROSO SILVA 201173 )
Apoacutes a aprovaccedilatildeo da lei 10216 surgiram mais duas portarias que instituiacuteam os serviccedilos
residenciais terapecircuticos (106 e 1220 ambas de 2000)
outras oito leis estaduais e diversas portarias e programas foram criados para
regulamentaccedilatildeo do atendimento psiquiaacutetrico comunitaacuterio Merecem destaque o
programa ldquoDe volta para casardquo (BRASIL 2003) e a portaria 336GM que atribui aos
CAPS o papel central na psiquiatria comunitaacuteria brasileira (DELGADO et al 2007)
(BARROSO SILVA 2011 74)
Quanto agraves mudanccedilas na assistecircncia e na superaccedilatildeo do modelo manicomial desde a
aprovaccedilatildeo da lei cabe levantar alguns dados para fins de anaacutelise Destaca-se como um avanccedilo
significativo na RPB a inversatildeo da curva do financiamento do SUS para a sauacutede mental a
partir de 2006 O valor anteriormente destinado aos hospitais psiquiaacutetricos passa a ser investido
em igual proporccedilatildeo nos serviccedilos de natureza aberta e comunitaacuteria (Graacutefico 1) o que mostra um
28
fortalecimento da rede substitutiva e um empenho na efetiva transformaccedilatildeo do modelo de
assistecircncia de acordo com as novas diretrizes da RPB (BRASIL 2015)
Cabe mencionar que os gastos em Atenccedilatildeo Comunitaacuteria Territorial incluem natildeo
somente os CAPS mas todos os serviccedilos da rede substitutiva tais como Serviccedilos Residenciais
Terapecircuticos (SRT) Centros de Convivecircncia Oficinas de geraccedilatildeo de renda aleacutem de programas
de incentivo financeiro como o Programa Volta para Casa
Quanto agrave expansatildeo dos CAPS desde a aprovaccedilatildeo da Lei 10216 dados do Ministeacuterio da
Sauacutede (2015) apontam uma expansatildeo meacutedia significativa e contiacutenua em todo o territoacuterio
nacional Desde 2002 ateacute 2014 houve um aumento de aproximadamente 150 CAPS por ano
chegando ao total de 2209 serviccedilos em 2014 nas diferentes modalidades como pode ser visto
no Graacutefico 2 (BRASIL 2015)
29
Graacutefico 2 - Seacuterie histoacuterica de expansatildeo de CAPS (2002 a 2014)
Fonte Sauacutede Mental em Dados BRASIL 2015 Elaboraccedilatildeo proacutepria
Vale ressaltar entretanto que a modalidade de CAPS tipo III (com funcionamento 24hrs
e leitos de acolhimento noturno) natildeo acompanhou esse crescimento Como podemos observar
no Quadro 1 no ano de 2014 dos 2209 CAPS existentes no paiacutes apenas 154 eram do tipo III
Considerando que 65 satildeo CAPS ad III destinados aos usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas temos
somente 85 CAPS do tipo III especificamente com capacidade de oferecer acolhimento noturno
agrave crise psicoacutetica e outros transtornos mentais graves percentual correspondente a apenas 38
do total de CAPS no paiacutes (BRASIL 2015)
Quanto a distribuiccedilatildeo dos CAPS III em 2014 verifica-se uma concentraccedilatildeo da oferta
desses serviccedilos em Satildeo Paulo e Minas Gerais que contavam com 35 e 12 unidades
respectivamente Os estados que figuraram em seguida com o maior nuacutemero de CAPS III foram
Paraiacuteba e Pernambuco com quatro serviccedilos cada um Paraacute Bahia Cearaacute Maranhatildeo Sergipe
Paranaacute e Rio de Janeiro contavam com trecircs CAPS III cada um Natildeo possuiacuteam CAPS III os
estados de Acre Amapaacute Rondocircnia Tocantins Alagoas Espiacuterito Santo Mato Grosso e o
Distrito Federal (Quadro 1)
30
31
A baixa participaccedilatildeo dos CAPS III no total de CAPS bem como a ausecircncia deste serviccedilo
em diversos estados mostra que sua proposta natildeo foi assumida pela gestatildeo municipal na escala
observada para os outros tipos de serviccedilos (COSTA et al 2011) Vale ressaltar que a
implantaccedilatildeo dos CAPS III ficou aqueacutem do esperado pelo proacuteprio MS (BRASIL 2011) o que
impacta diretamente na capacidade da RAPS acolher agrave crise em uma proposta de cuidado
substitutiva ao Hospital Psiquiaacutetrico
Em relaccedilatildeo a quantidade de leitos disponiacuteveis para a atenccedilatildeo agrave crise verificamos que haacute
uma marcada preponderacircncia dos leitos em hospitais psiquiaacutetricos em detrimento dos leitos de
sauacutede mental em hospitais gerais e em CAPS III Chama atenccedilatildeo especialmente o fato de que
a quantidade de leitos disponiacuteveis em CAPS III quando comparada ao total de leitos no cenaacuterio
nacional e local eacute praticamente nula alcanccedilando uma meacutedia de 238 e 1 2 em 2014
respectivamente
No cenaacuterio nacional segundo o Ministeacuterio da Sauacutede haviam 25988 leitos em hospitais
psiquiaacutetricos em 2014 (BRASIL 2015) Nos hospitais gerais considerando que o MS faz
distinccedilatildeo entre ldquoleitos de sauacutede mentalrdquo e de ldquopsiquiatriardquo de acordo com o CNES em 2014
haviam 4620 leitos de psiquiatria em HG pediaacutetricos e maternidades destinados ao SUS
(BRASIL 2015) No mesmo ano constam 888 leitos de sauacutede mental em hospitais gerais
conforme podemos ver no Quadro 2 resultando em uma soma de 5508 leitos disponiacuteveis para
a sauacutede mental em hospitais gerais no Brasil
Considerando que de acordo com Portaria 336 que rege o funcionamento dos CAPS
cada CAPS III deve ter no maacuteximo 5 leitos (BRASIL 2002) e que em 2014 de acordo com o
Quadro 1 constavam 154 CAPS III espalhados pelo territoacuterio nacional tomando para fins de
estimativa a capacidade maacutexima de leitos por CAPS teriacuteamos aproximadamente 770 leitos nos
CAPS III destinados a retaguarda noturna nos casos de crise Esse percentual correspondente
a apenas 2 38 do total de leitos o que significa que aproximadamente 8055 dos leitos estatildeo
nos hospitais psiquiaacutetricos
No municiacutepio do Rio de Janeiro de acordo com o Quadro 3 dos 1572 leitos
psiquiaacutetricos existentes 1504 se localizam em hospitais psiquiaacutetricos representando 975
do total de leitos Apenas 31 (49 leitos) se localizam em hospitais gerais e 1 2 (19) nos
CAPS III (BRASIL 2015)
32
Fonte Sauacutede Mental em Dados Brasil (2015)
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo
IIIndashSecretaria Municipal de Sauacutede do Rio de Janeirondashsetembro de 2015
FonteCNESMinisteacuterio da Sauacutede setembro de 2015
Localizaccedilatildeo
dos Leitos
Quantidade Porcentagem
Hospital
Psiquiaacutetrico
1504 957
Hospitais
Gerais
49 31
CAPS III 19 12
Total 1572 100
33
Desse modo embora tenhamos conquistado alguns avanccedilos significativos no processo
de reestruturaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede mental ao longo dos uacuteltimos 30 anos destaca-se a
reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do nuacutemero de
CAPS a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na atenccedilatildeo
comunitaacuteria e territorial etc na praacutetica os hospitais psiquiaacutetricos continuam ocupando um
lugar central na assistecircncia agrave crise constituindo-se muitas vezes na porta de entrada do usuaacuterio
ao sistema de sauacutede
Assim o cenaacuterio atual eacute marcado pela expansatildeo dos serviccedilos substitutivos mas tambeacutem
pela permanecircncia do hospitais psiquiaacutetricos e dispositivos tradicionais determinando a
coexistecircncia de dois modelos de cuidado opostos e mutuamente excludentes o tradicional
modelo asilar e o modelo substitutivo de modo que a RAPS no momento se caracteriza muito
mais por ser complementar do que substitutiva ao modelo asilar como era de se esperar
Logo os manicocircmios natildeo apenas resistem como insistem e se queremos
desinstitucionalizar e acolher a crise no territoacuterio eacute imprescindiacutevel perguntar ao que a
institucionalizaccedilatildeo de um paciente estaacute respondendo Qual eacute o problema que ela coloca Como
desmontar a soluccedilatildeo institucional (a internaccedilatildeo) e reconstruir o problema sobre outras bases
Importante dizer que construir novos arranjos para lidar com a crise natildeo se trata apenas
de aumentar a capacidade de resolutividade dos serviccedilos Eacute preciso ampliar o cuidado para
atender a crise de forma integral Isso significa fazer articulaccedilotildees com o que haacute de produccedilatildeo de
vida tambeacutem fora do espaccedilo dos serviccedilos isto eacute na vida na comunidade na cidade Persiste
desse modo o desafio de romper natildeo soacute com o manicocircmio mas com toda loacutegica e praacutetica de
segregaccedilatildeo da loucura
34
20 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL
21 Reflexotildees sobre a crise e o cuidado
Segundo Moebus e Fernandes (sd) a palavra crise em sua origem grega (krisis ou
Kriacutenein) significa um estado no qual uma decisatildeo tem que ser tomada Esse termo era usado
pelos meacutedicos da antiguidade grega no intuito de se referir a um ponto na evoluccedilatildeo da doenccedila
do paciente no qual ele tanto poderia apresentar uma melhora em direccedilatildeo agrave cura ou piora em
direccedilatildeo agrave morte A ideia de crise portanto aproximava-se nesse contexto agrave noccedilatildeo de um
momento criacutetico decisivo cujo desfecho poderia ser tanto positivo quanto negativo
Jaacute a origem sacircnscrita da palavra eacute kri ou kir que significa ldquodesembaraccedilarrdquo ou purificar
Compartilhando desse mesmo sentido podemos destacar a palavra ldquocrisolrdquo que significa
ldquoelemento quiacutemico que purifica o ouro das gangas limpando-o dos elementos que se fixaram
no metal pelo seu processo vital ou histoacuterico e ao longo do tempo tomaram conta de seu cerne
a ponto de comprometerem sua substacircncia em sirdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN
200732) Crise nessa acepccedilatildeo carrega um teor de transformaccedilatildeo e purificaccedilatildeo em que a
substacircncia pode alcanccedilar sua verdadeira essecircncia
Destaca-se nessas significaccedilotildees originaacuterias da palavra elementos que trazem a ideia de
crise associada agrave um desequiliacutebrio transitoacuterio a um processo de mudanccedila transformaccedilatildeo com
possibilidade de evoluir de maneira positiva Eacute um momento de descontinuidade e perturbaccedilatildeo
da normalidade da vida em algo que eacute deixado para traacutes poreacutem ao mesmo tempo por isso
mesmo abre-se uma nova possibilidade de ser e estar no mundo
Outros autores de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica relacionam o conceito de crise ao conceito de
trauma que para Freud diz respeito ldquoa uma vivecircncia que traz um grande aumento da excitaccedilatildeo
da vida psiacutequica em um curto espaccedilo de tempo tendo por caracteriacutestica o fracasso de sua
liquidaccedilatildeo por meios habituaisrdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Nesse mesmo sentido segundo Laplanche e Pontalis (1986 768) ldquoo trauma consiste
em um acontecimento da crise que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se
acha o indiviacuteduo de lhe responder de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos
patogecircnicos que provoca na organizaccedilatildeo psiacutequicardquo
Haacute nessas definiccedilotildees algo da ordem de um excesso que rompe com o estado de
equiliacutebrio que o indiviacuteduo se encontra e transborda lanccedilando-o em direccedilatildeo a algo estranho e
desconhecido Essa ruptura eacute vivenciada pelo sujeito como algo assustador ao qual ele natildeo
35
encontra recursos psiacutequicos para responder ou mesmo para atribuir qualquer tipo de
significaccedilatildeo As soluccedilotildees que o sujeito costumeiramente encontrava para lidar com seu
sofrimento de alguma forma natildeo satildeo mais suficientes daiacute resultando entatildeo seu estado de
anguacutestia
Knobloch (1998) estudiosa de Ferenczi designa a crise como uma ldquoexperiecircncia limite
natildeo por ser uma experiecircncia que desafia o limite mas por extravasar o delimitado ldquoEacute uma
experiecircncia que traz um excesso excesso do que eacute insuportaacutevel e intoleraacutevel Ruptura em que
se redistribuem de uma maneira brutal as condiccedilotildees da realidade rdquo (apud FERIGATO
CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Para Birman (1983) a pessoa em crise encontra-se em um estado mental no qual ldquoa
anguacutestia provocada pelo que nos escapa eacute tatildeo importante que ficamos com o sentimento de que
a nossa proacutepria vida estaacute escapando uma experiecircncia de perda de seus sistemas de referecircncia
isto eacute a ameaccedila de perda da proacutepria identidaderdquo (apud FERIGATO CAMPOS BALLARIN
2007 35)
Se por um lado haacute a forccedila de um questionamento das convicccedilotildees mais fundamentais de
um indiviacuteduo por outro haacute tambeacutem uma abertura um espaccedilo para a criaccedilatildeo de algo novo de
outros arranjos e possibilidades de organizaccedilatildeo psiacutequica Embora essa vivecircncia seja marcada
por uma extrema sensaccedilatildeo de anguacutestia invasatildeo e sofrimento podemos apontar tambeacutem sua
potecircncia em produzir um desvio em caracterizar a saiacuteda de um lugar historicamente dado para
outro a ser construiacutedo exigindo outras ligaccedilotildees ateacute entatildeo inexistentes (FERIGATO CAMPOS
BALLARIN 2007)
Podemos ver a crise como um acontecimento extremo poreacutem muitas vezes necessaacuterio
na vida de um sujeito Eacute um momento que marca uma diferenccedila a partir da qual natildeo eacute mais
possiacutevel se viver do modo em que se estava vivendo anteriormente Eacute preciso reelaborar a
experiecircncia para habitar outro territoacuterio existencial
No entanto na histoacuteria da Psiquiatria especialmente na Psiquiatria claacutessica-asilar e
hospitalocecircntrica o sentido de crise perdeu sua dimensatildeo de renovaccedilatildeo O que rompe com a
organizaccedilatildeo e com o equiliacutebrio de um indiviacuteduo foi automaticamente entendido como algo
destrutivo que coloca o sujeito em um lugar de exclusatildeo social
A crise e toda a complexidade ligada ao sofrimento de um sujeito foi reduzida agrave
ldquoagudizaccedilatildeo da sintomatologia psiquiaacutetricardquo isto eacute a gama de sinais e sintomas (deliacuterios
alucinaccedilotildees agitaccedilatildeo psicomotora etc) caracteriacutesticos de uma determinada doenccedila Nesse
36
sentido o objetivo da intervenccedilatildeo dos psiquiatras era garantir a remissatildeo completa dos
sintomas em curto periacuteodo de tempo para que o sujeito pudesse voltar a seu estado de
ldquonormalidaderdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007) desconsiderando desse modo as
vivecircncias e situaccedilotildees que possivelmente contribuiacuteram para a eclosatildeo da situaccedilatildeo de crise em
que o sujeito se encontra
Nessa perspectiva a crise eacute entendida como um momento isolado da vida do sujeito
que nada tem a ver com sua histoacuteria com suas relaccedilotildees ou seu contexto soacutecio-afetivo Por isso
o cuidado possiacutevel tem como direccedilatildeo a estabilizaccedilatildeo dos sintomas isto eacute o silenciamento
daquilo que aparece como socialmente inapropriado ou inadequado na conduta do sujeito
Assim a medicaccedilatildeo a contenccedilatildeo fiacutesica e a internaccedilatildeo aparecem como os principais recursos
terapecircuticos aplacando a intensidade do momento fazendo um corte na experiecircncia de
sofrimento do sujeito para que apoacutes algum tempo ele volte naturalmente ao seu estado de
ldquonormalidaderdquo
Tecnologias de cuidado com base na classificaccedilatildeo de distuacuterbios e homogeneizaccedilatildeo de
grupos de problemas tambeacutem satildeo utilizadas com o intuito de preacute-estabelecer condutas e
respostas padratildeo para toda e qualquer situaccedilatildeo de crise que possa vir a emergir Segundo
Dell`Acqua e Mezzina (1991) o serviccedilo passa a responder agrave crise atraveacutes do seu proacuteprio
sintoma Assim toda a complexidade da existecircncia de sofrimento de um sujeito reduz-se a um
mero sinal caracteriacutestico da crise
Ao longo da histoacuteria da Psiquiatria a crise sempre foi vista como uma crise do paciente
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Pinel apostava em uma proposta terapecircutica de
confinamento da loucura em um ambiente controlado para que os alienistas pudessem
recuperar e ldquocorrigirrdquo os erros de pensamento que incidiam sobre as pessoas em situaccedilatildeo de
crise O tratamento natildeo visava agir diretamente nas questotildees sociais e afetivas que tinham
relaccedilatildeo com a experiecircncia de sofrimento vivenciada pelo sujeito mas pretendia isolar o sujeito
para entatildeo ldquoconsertaacute-lordquo em uma clara perspectiva de que o problema estava no sujeito
Com o advento da Psicanaacutelise vemos uma inversatildeo dessa loacutegica Para Freud o deliacuterio
eacute uma tentativa de cura que visa dar sentido a uma experiecircncia psiacutequica de sofrimento Sendo
assim ldquonatildeo haacute o que ser corrigido haacute o que ser escutado Haacute o que ser recuperado Haacute o que
ser construiacutedordquo (CORBISIER 1991 10)
Com Pinel aqueles que se encontravam desviados de sua verdadeira razatildeo deviam ser
conduzidos novamente agrave realidade atraveacutes da correccedilatildeo dos sentimentos comportamentos e
37
pensamentos equivocados Com Freud o deliacuterio eacute entendido como uma forma do sujeito
construir um sentido para uma experiecircncia perturbadora (como por exemplo ouvir vozes ver
coisas que natildeo existem etc) que lhe causa sofrimento Assim o problema natildeo estaacute no sujeito
nem no deliacuterio nem nos sintomas mas no modo como ele consegue ou natildeo atribuir sentido ao
que vivencia
Atribuindo um sentido (ainda que delirante) a vivecircncias que satildeo perturbadoras o sujeito
pode ressignificar sua relaccedilatildeo com o mundo e encontrar modos menos angustiantes de estar na
vida Natildeo eacute necessaacuterio portanto ldquoadequarrdquo o pensamento de um sujeito agrave realidade O deliacuterio
pode ele mesmo ser um ponto de estabilizaccedilatildeo na medida que oferece alguma possibilidade de
inserir novamente o sujeito no campo do simboacutelico isto eacute de refazer as conexotildees perdidas na
situaccedilatildeo de crise Se a crise eacute marcada por uma ruptura a possibilidade de construccedilatildeo de um
deliacuterio pode ser justamente aquilo que reconecta o sujeito ao mundo que lhe cerca
Assim eacute preciso escutar as diferenccedilas e tratar do sofrimento que ela pode vir a ocasionar
sem no entanto aboli-las A Psicanaacutelise traz em sua aposta na escuta a possibilidade de
recuperar as diferenccedilas Atraveacutes da fala o sujeito vai contando sua histoacuteria e resgatando aquilo
que lhe pertence que lhe eacute peculiar e o que o constitui Essa experiecircncia permite estabelecer
um corte com as tentativas homogeneizantes da Psiquiatria Claacutessica de lidar com a loucura A
aposta na fala permite ao sujeito construir novos sentidos para o seu sofrimento e perceber que
a presenccedila de um outro que o escute pode produzir algum aliacutevio para sua dor
Embora possamos agrupar sinais e sintomas comuns a psicose (deliacuterio alucinaccedilatildeo
dificuldade em construir laccedilo social etc) cada sujeito vai imprimir em seu sintoma a sua marca
Assim cada loucura eacute singular pois cada um delira de um jeito cada um faz laccedilo social de um
jeito etc Na sintomatologia de um sujeito vamos encontrar elementos que pertencem a sua
cultura agrave sua histoacuteria pessoal e aos seus prazeres e desprazeres em torno da vida Logo as
intervenccedilotildees vatildeo ser diferentes a depender daquilo que o sujeito traz
Nesse ponto vale fazer uma distinccedilatildeo entre emergecircncia psiquiaacutetrica e urgecircncia
subjetiva A emergecircncia psiquiaacutetrica se refere a emergecircncia do sintoma Logo o alvo de sua
intervenccedilatildeo eacute o corpo bioloacutegico O caos de sentimentos e de pensamentos supostamente sem
sentido que emergem na crise psicoacutetica devem ser suprimidos atraveacutes da medicaccedilatildeo restituindo
o corpo ao estado que se encontrava anteriormente (BARRETO 2004)
No afatilde de se estabilizar o sujeito suprimindo seu sintoma natildeo haacute tempo para pensar o
que se coloca em questatildeo em uma crise psicoacutetica Natildeo haacute espaccedilo para direcionar um olhar para
38
o sujeito que estaacute inserido naquela situaccedilatildeo emergencial e ver o que nela haacute de singular pois
ldquohaacute coisas para fazer O clinico seleciona coisas para fazer e simplifica a situaccedilatildeordquo (BARRETO
2004 2) a fim de devolver o sujeito ao seu estado de normalidade
A partir da referecircncia da Psicanaacutelise a urgecircncia subjetiva eacute entendida como a urgecircncia
do sujeito que estaacute em crise logo abrange o sintoma mas natildeo se reduz a ele Barreto (2004)
aponta que na crise psicoacutetica acontece uma ruptura com a cadeia de significantes de modo que
a manifestaccedilatildeo dos sintomas que se seguem ao momento de crise expressa uma
ldquoimpossibilidade de significar minimamente pela fala um gozo que natildeo encontra o significante
necessaacuterio para transformaacute-lordquo (BARRETO 2004 1)
A urgecircncia subjetiva se refere portanto ao que haacute de singular em cada crise no
sofrimento do sujeito que se constitui enquanto demanda para um outro Nesse sentido ela
aponta para a necessidade de uma intervenccedilatildeo que natildeo pode ser adiada dada a gravidade em
que se encontra o sujeito poreacutem eacute o avesso da contenccedilatildeo do sintoma pois se utiliza da urgecircncia
que o sujeito coloca para construir a partir dela alguma outra resposta possiacutevel a ser fabricada
no caso a caso
Assim reintroduzir a dimensatildeo subjetiva no sujeito eacute a proposta da Psicanaacutelise
(SELDES 2004)
A psiquiatria apresenta uma resposta para o sujeito atraveacutes de uma nomenclatura
diagnoacutestica oriunda dos manuais de classificaccedilatildeo no vieacutes de uma certeza do Outro o
grande outro da ciecircncia A psicanaacutelise aponta sua resposta ao sujeito quando diz um
sim a sua descoberta sim a sua soluccedilatildeo delirante sim a qualquer possibilidade em
que o sujeito possa se agarrar e retomar minimante seu discurso e o seu laccedilo social O
psicanalista natildeo deteacutem o saber o saber eacute do sujeito (SILVA J 2011 44)
Acolher a crise nessa perspectiva natildeo eacute abordar o paciente que chega aos serviccedilos de
emergecircncia em sauacutede mental procurando encontrar onde estaacute a integridade do sujeito dentro da
crise isto eacute natildeo se trata de fazer uma separaccedilatildeo entre o sujeito e sua loucura para entatildeo extrair-
lhe lsquoa peacuterola que seria a razatildeordquo2 mas sim ouvir o que ali dentro da loucura se coloca enquanto
sujeito
Nesse sentido quando acolhemos um usuaacuterio em crise o que a experiecircncia de crise de
um sujeito pode colocar de questatildeo sobre sua histoacuteria sua vida seu cotidiano Nossa
2 Referecircncia ao livro O Alienista de Machado de Assis especificamente ao seguinte trecho ldquosuponho o espiacuterito
humano uma vasta concha o meu fim Sr Soares eacute ver se posso extrair a peacuterola que eacute a razatildeo por outros
termos demarquemos definitivamente os limites da razatildeo e da loucura A razatildeo eacute o perfeito equiliacutebrio de todas
as faculdades fora daiacute insacircnia insacircnia e soacute insacircniardquo (ASSIS 1882 261)
39
intervenccedilatildeo tem contribuiacutedo para oferecer novas possibilidades de vida a esses sujeitos ou
estamos somente silenciando sintomas
Entendemos que o modo como os profissionais compreendem a crise influencia
significativamente a produccedilatildeo de cuidado Concepccedilotildees de crise centradas nos aspectos
puramente sintomaacuteticos desencadearatildeo intervenccedilotildees no sentido de suprimir o mais
rapidamente possiacutevel os sintomas Ao passo que concepccedilotildees de crise mais abrangentes tem mais
possibilidade de remeter ao sujeito o que essa crise coloca como questatildeo na sua vida e quais
satildeo as possibilidades outras de manejo para esses conflitos Logo uma concepccedilatildeo ampla de
crise (que considere os aspectos sociais afetivos e subjetivos) pode oferecer ao sujeito a
possibilidade de se recolocar em relaccedilatildeo ao seu sintoma e encontrar outros caminhos para lidar
com seu sofrimento
22 O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS
No capiacutetulo anterior vimos como diferentes formas de compreender a loucura ao longo
da histoacuteria produziram impactos nos modos de intervir e lidar com a crise Intervenccedilotildees
baseadas na autoridade no poder na disciplina e no confinamento remetem agrave loucura enquanto
iacutendice de uma anormalidade e falam de uma concepccedilatildeo de ldquocuidadordquo que visa ldquoconsertarrdquo os
sujeitos atraveacutes da correccedilatildeo de seus comportamentos e sentimentos supostamente inadequados
Por outro lado intervenccedilotildees com base no acolhimento na construccedilatildeo de sentidos e na
contextualizaccedilatildeo dos conflitos do sujeito falam de uma concepccedilatildeo de crise que valoriza o
sujeito e sua histoacuteria e o entende como parte de um mundo que o afeta e o transforma
Assim se olhar para as praacuteticas de cuidado pode lanccedilar luz sobre as concepccedilotildees de
loucura presentes na sauacutede mental quando olhamos para o modo como a rede se organiza e se
estrutura para acolher a crise sobre que concepccedilotildees de crise ela nos fala Que sentidos de crise
estatildeo presentes no modo como o SUS foi idealizado e preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas de
sauacutede E que sentidos de crise emergem quando observamos o modo como os usuaacuterios e
trabalhadores efetivamente usam e vivenciam o SUS em cotidiano Como as poliacuteticas de sauacutede
pensam a crise E que questotildees a crise traz agraves poliacuteticas de sauacutede Quais satildeo seus
distanciamentos e aproximaccedilotildees
Tradicionalmente muitos autores tecircm se utilizado da imagem de uma piracircmide para
ldquorepresentar o modelo tecno-assistencial que gostariacuteamos de construir com a implantaccedilatildeo plena
do SUSrdquo (CECIacuteLIO 1997470) Na ampla base da piracircmide estariam dispostos os serviccedilos de
baixa complexidade como as cliacutenicas da famiacutelia que oferecem atendimento para populaccedilatildeo de
40
sua aacuterea de abrangecircncia dentro das atribuiccedilotildees estabelecidas para o niacutevel de atenccedilatildeo primaacuteria
constituindo-se na porta de entrada privilegiada para os niacuteveis de maior complexidade do
sistema de sauacutede Na parte intermediaacuteria estariam localizados os serviccedilos da atenccedilatildeo
secundaacuteria que satildeo ldquobasicamente os serviccedilos ambulatoriais com suas especialidades cliacutenicas e
ciruacutergicas o conjunto de serviccedilos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico alguns serviccedilos de
atendimento a urgecircncia e emergecircncia e os hospitais gerais normalmente pensados como sendo
hospitais distritaisrdquo (CECIacuteLIO 1997 470) No topo da piracircmide encontramos por fim os
serviccedilos mais complexos como os grandes hospitais de caraacuteter regional estadual ou ateacute mesmo
nacional
O objetivo deste modelo eacute estabelecer um fluxo ordenado de pacientes atraveacutes de
mecanismos de referecircncia e contra referecircncia que regulam o acesso entre os niacuteveis de atenccedilatildeo
em sauacutede tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima na piracircmide Dessa forma para
cada necessidade de sauacutede a pessoa eacute encaminhada para o niacutevel de complexidade adequado
evitando sobrecarregar os hospitais e ambulatoacuterios com demandas de baixa complexidade e ao
mesmo tempo trabalhando na atenccedilatildeo baacutesica com estrateacutegias de prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da
sauacutede evitando o agravo de doenccedilas que se natildeo tratadas podem demandar intervenccedilotildees
meacutedicas mais complexas
No entanto no dia a dia do SUS a realidade tem se mostrado bem distante desse modelo
idealizado Como aponta Ceciacutelio (1997 471) ldquoa piracircmide a despeito da justeza dos princiacutepios
que representa tem sido muito mais um desejo dos teacutecnicos e gerentes do sistema do que uma
realidade com a qual a populaccedilatildeo usuaacuteria possa contarrdquo
Na praacutetica a populaccedilatildeo burla o tempo inteiro os fluxos da regulaccedilatildeo formal Buscam
ajuda onde acreditam que vatildeo encontraacute-la tentando acessar o sistema por onde eacute mais faacutecil ou
muitas vezes por onde eacute mais possiacutevel Na tentativa de resolver seus problemas percorrem
vaacuterias unidades de sauacutede diferentes ateacute conseguirem o que desejam um remeacutedio uma consulta
um encaminhamento uma indicaccedilatildeo de internaccedilatildeo Natildeo raro falsificam o comprovante de
residecircncia ou usam o de outra pessoa visando conseguir atendimento em uma unidade mais
proacutexima ou mais bem equipada Do mesmo modo questionam o tratamento chegando a ter em
alguns casos dois meacutedicos e dois tratamentos diferentes para uma mesma questatildeo de sauacutede sem
que um meacutedico saiba da existecircncia do outro
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Haacute quem pense que todo o problema satildeo os usuaacuterios que ldquobagunccedilamrdquo o sistema natildeo
seguem os fluxos estabelecidos pois natildeo conhecem o funcionamento do sistema e buscam
atendimento em locais inapropriados por ignoracircncia ou maacute-feacute
Ceciacutelio (1997) expotildee esse problema ao trazer a tensatildeo existente entre o que denomina o
ldquousuaacuterio-fabricadordquo e o ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo Segundo o autor o usuaacuterio-fabricado seria o
ldquousuaacuterio idealrdquo normatizado pelas estrateacutegias da Medicina Preventiva que atraveacutes de uma
perspectiva individualista de ldquohaacutebitos saudaacuteveisrdquo pretende ldquofabricarrdquo sujeitos esclarecidos e
por isso menos dependentes do sistema de sauacutede Trata-se entatildeo de produzir um usuaacuterio
disciplinado educado que segue as orientaccedilotildees meacutedicas e leva uma vida saudaacutevel e regrada
O ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo por sua vez eacute aquele que natildeo necessariamente segue as
indicaccedilotildees meacutedicas mas batalha por sua conta e risco para conseguir o acesso agrave tecnologia de
cuidado que supotildee que precisa no dispositivo de sauacutede que julga ser o mais adequado tendo
como perspectiva sua experiecircncia com a doenccedila suas crenccedilas e desejos pessoais Assim o
tempo todo ele transgride agraves regras quebra os fluxos testa e contesta o sistema produzindo agrave
sua maneira seu caminho dentro do SUS Como destaca Ceciacutelio (1997) ldquoo usuaacuterio-fabricador
com sua accedilatildeo concreta e protagonismo com suas buscas e com seus ousados experimentos de
tentativas e erros vai produzindo circuitos opccedilotildees caminhos que soacute em parte correspondem agrave
normalizaccedilatildeo oficial do sistemardquo (ibidem 288)
Contra a perspectiva de um sistema de sauacutede ideal e racionalizado o usuaacuterio-fabricador
eacute aquele que usa o SUS real e por isso encontra suas falhas e furos propondo soluccedilotildees agrave sua
maneira atraveacutes de sua experiecircncia no sistema ldquoDaiacute a ser uma prepotecircncia tecnocraacutetica dizer
que o povatildeo eacute deseducado que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de
sauacutede As pessoas acessam o sistema por onde eacute mais faacutecil ou possiacutevelrdquo (CECILIO1997 472)
E porque natildeo incluir esse saber leigo do usuaacuterio nas estrateacutegias de planejamento e
organizaccedilatildeo do cuidado em sauacutede Por que natildeo ouvir o que esses usuaacuterios tecircm a nos dizer e
incorporaacute-los como parceiros na construccedilatildeo de um SUS possiacutevel natildeo aquele idealizado mas
um que faccedila mais sentido na perspectiva de quem de fato o utiliza
Precisamos considerar que o SUS eacute feito de pessoais reais usuaacuterios trabalhadores
meacutedicos enfermeiros psicoacutelogos que ao se moverem de acordo com suas eacuteticas profissionais
seus saberes experiecircncias esperanccedilas e desejos imprimem novos significados agrave um sistema
que estaacute em permanente construccedilatildeo Esses atores ldquoproduzem inventam resistem e configuram
um cuidado que afinal nunca eacute como noacutes (gestores sanitaristas pensadores formuladores)
42
teimamos em querer normalizar formatar produzir agrave nossa imagem e semelhanccedilardquo (CECIacuteLIO
2012287)
Assim como os usuaacuterios os trabalhadores de sauacutede no encontro com as necessidades
reais de seus pacientes e com as barreiras de acesso do sistema tambeacutem burlam a regulaccedilatildeo
formal muitas vezes se utilizando de seus contatos pessoais relaccedilotildees de conhecimento e
confianccedila para produzir fluxos que possam garantir a continuidade do cuidado oferecido
especialmente nos casos difiacuteceis em que a complexidade dos pacientes natildeo se encaixa na
caixinha de cuidados formalmente oferecida pelo SUS
Quando falamos de um usuaacuterio em crise precisamos pensar que a caixinha de cuidados
padratildeo frequentemente natildeo vai dar conta da complexidade colocada em uma crise psicoacutetica
Muitas vezes a razatildeo pela qual um usuaacuterio vai parar na emergecircncia ou no hospital psiquiaacutetrico
eacute justamente porque os recursos que ele dispotildee para lidar com seu sofrimento natildeo foram mais
capazes de sustentar uma estabilizaccedilatildeo Daiacute a necessidade de podermos pensar outros recursos
outras regulaccedilotildees outros dispositivos
Um usuaacuterio em crise eacute por excelecircncia um usuaacuterio-fabricador As soluccedilotildees que ele vai
engendrar para seu sofrimento vatildeo exceder em muito os limites de um sistema de sauacutede
organizado sob a figura de uma piracircmide em niacuteveis crescentes de complexidade Quando esse
usuaacuterio consegue pedir ajuda ele o faraacute sob a sua loacutegica a partir da suas expectativas e
singularidades Ele pode ir na cliacutenica da famiacutelia no hospital na emergecircncia na poliacutecia na casa
da vizinha na Igreja na escola onde achar possiacutevel obter a ajuda que precisa ainda que suas
escolhas sejam um tanto inusitadas Do mesmo modo quando um usuaacuterio entra em crise isso
tambeacutem pode acontecer em qualquer ponto do sistema e noacutes enquanto profissionais precisamos
ser capazes de oferecer algum suporte a esse sujeito onde ele estiver e na hora em que precisa
da ajuda
A crise natildeo espera o nosso tempo o tempo do encaminhamento do acolhimento-
triagem da discussatildeo de caso do contato com o profissional de referecircncia ela acontece quando
se menos espera e por isso eacute importante que natildeo soacute o dispositivo de referecircncia esteja preparado
para acolhecirc-la mas que todas as portas de entrada do sistema estejam qualificadas enquanto
espaccedilos privilegiados para o acolhimento e reconhecimento das necessidades dos usuaacuterios
Eacute nesse sentido que Ceciacutelio (1997) propotildee uma mudanccedila na imagem de representaccedilatildeo
do modelo de sauacutede da piracircmide ao ciacuterculo Pensar o sistema de sauacutede enquanto ciacuterculo natildeo
significa abandonar os ideais da Reforma Sanitaacuteria no que diz respeito a um comprometimento
43
com a equidade o atendimento universal integral e de boa qualidade mas ao contraacuterio tomar
esses princiacutepios na sua radicalidade e pensaacute-los sob a luz das necessidades reais das pessoas e
do uso que fazem do sistema O formato do ciacuterculo reforccedila um valor essencial do SUS a
integralidade Apostar na imagem do ciacuterculo significa pensar o sistema de sauacutede menos
enquanto um fluxo hierarquizado de pessoas e mais enquanto uma rede em que todos os pontos
satildeo uma porta de acesso qualificada e possiacutevel para o usuaacuterio
Segundo Ceciacutelio (1997 475) ldquo O ciacuterculo se associa com a ideacuteia de movimento de
muacuteltiplas alternativas de entrada e saiacuteda Ele natildeo hierarquiza Abre possibilidadesrdquo Trata-se
de relativizar a hierarquizaccedilatildeo dos serviccedilos abrindo espaccedilo para que o acolhimento possa se
dar onde o paciente solicita ajuda Natildeo estamos negando com isso a especificidade e a missatildeo
diferenciada de cada serviccedilo mas tentando produzir uma rede menos fragmentada e mais
proacutexima da realidade dos usuaacuterios
A loacutegica horizontal dos vaacuterios serviccedilos de sauacutede colocados na superfiacutecie plana do
ciacuterculo eacute mais coerente com a ideacuteia de que todo e qualquer serviccedilo de sauacutede eacute espaccedilo
de alta densidade tecnoloacutegica que deve ser colocada a serviccedilo da vida dos cidadatildeos
Por esta concepccedilatildeo o que importa mais eacute a garantia de acesso ao serviccedilo adequado agrave
tecnologia adequada no momento apropriado e como responsabilidade intransferiacutevel
do sistema de sauacutede Trabalhando assim o centro das nossas preocupaccedilotildees eacute o usuaacuterio
e natildeo a construccedilatildeo de modelos assistenciais aprioriacutesticos aparentemente capazes de
introduzir uma racionalidade que se supotildee ser a melhor para as pessoas
(CECIacuteLIO1997 477)
Eacute importante ressaltar que defender o sistema de sauacutede enquanto um ciacuterculo natildeo se
limita agrave uma mera inflexatildeo teoacuterica mas a possibilidade de garantir que a integralidade seja uma
missatildeo colocada para todos os serviccedilos de sauacutede e natildeo para cada paciente individualmente em
sua peregrinaccedilatildeo pelos dispositivos de sauacutede Nesse sentido trata-se de apostar na continuidade
da linha de cuidado trabalhando para que o paciente tenha acesso agrave assistecircncia por onde ele
chega do modo como chega
Isso significa deslocar um pouco a ideia de referecircncia Ainda que o CAPS seja o serviccedilo
com maior possibilidade e capacidade de atender uma crise psicoacutetica todos os serviccedilos devem
ser capazes de oferecer algum acolhimento agrave crise Se em uma crise psicoacutetica o que estaacute
colocado eacute a fragmentaccedilatildeo do sujeito natildeo eacute possiacutevel que ele consiga se reestruturar em um
sistema igualmente fragmentado
No encontro do usuaacuterio com a equipe o que deve nortear a produccedilatildeo do cuidado eacute a
escuta das necessidades de sauacutede da pessoa que busca o serviccedilo Ainda que o serviccedilo em questatildeo
seja apenas um serviccedilo de passagem na linha de cuidado do usuaacuterio ter o compromisso e a
preocupaccedilatildeo de se fazer sempre a melhor escuta e a melhor devolutiva possiacutevel pode fazer toda
44
a diferenccedila no acolhimento de um sujeito e na continuidade de sua linha de cuidado O essencial
nesse contexto eacute que o encaminhamento natildeo seja meramente uma transferecircncia de
responsabilidade sem que nada tenha sido construiacutedo no caminho
Escutar nesse sentido natildeo se iguala a atender todas as possiacuteveis demandas que traz o
usuaacuterio A demanda eacute o pedido expliacutecito mas as necessidades podem ser bem outras A
demanda pode ser por internaccedilatildeo pela troca de medicamento pela troca do profissional de
referecircncia etc Pode ir dos pedidos mais pragmaacuteticos aos mais delirantes mas nem sempre o
que o usuaacuterio formula enquanto demanda eacute o que ele quer nos pedir
Eacute preciso estar atento tambeacutem para o que pode estar incluiacutedo no seu pedido elementos
como o viacutenculo com a equipe suas relaccedilotildees pessoais o modo como lida com seus sentimentos
sua condiccedilatildeo de vida suas expectativas e sonhos etc Cabe a equipe conhecer o usuaacuterio e ter a
sensibilidade de buscar compreender o que estaacute para aleacutem do pedido expliacutecito ajudando-o a
construir uma saiacuteda possiacutevel para seu sofrimento
Assim a integralidade da atenccedilatildeo no espaccedilo singular de cada serviccedilo de sauacutede
poderia ser definida como o esforccedilo da equipe de sauacutede de traduzir e atender da
melhor forma possiacutevel tais necessidades sempre complexas mas principalmente
tendo que ser captadas em sua expressatildeo individual () Cada atendimento de cada
profissional deve estar compromissado com a maior integralidade possiacutevel sempre
mas tambeacutem ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida soacute seraacute
alcanccedilada como fruto do trabalho solidaacuterio da equipe de sauacutede com seus muacuteltiplos
saberes e praacuteticas Maior integralidade possiacutevel na abordagem de cada profissional
maior integralidade possiacutevel como fruto de um trabalho multiprofissional (CECIacuteLIO
2009 120 121)
A integralidade nesse sentido eacute mais do que cada serviccedilo fazendo sua parte eacute mais do
que o modelo da piracircmide pode oferecer A imagem da piracircmide faz pensar os serviccedilos mais
complexos como lugares de ldquofinalizaccedilatildeo do cuidadordquo da ldquouacuteltima palavrardquo na cliacutenica do sujeito
de ldquoatendimento de demandas pontuais superespecializadas especiacuteficas e por isso mesmo
descompromissados com a integralidaderdquo (CECIacuteLIO 2009 122) Assim escuta qualificada
natildeo eacute missatildeo colocada somente para os ambulatoacuterios e nem o acolhimento agrave crise eacute uma
responsabilidade somente do CAPS Conforme Ceciacutelio (2009 123) ldquo a integralidade natildeo se
realiza nunca em um serviccedilo integralidade eacute objetivo de rederdquo Desse modo todos os serviccedilos
precisam se articular no sentido de dar seguimento ao cuidado de um sujeito em crise e natildeo
apenas o serviccedilo de referecircncia ou a atenccedilatildeo baacutesica que tem sido apontada como o lugar
privilegiado na coordenaccedilatildeo do cuidado
Haacute que se destacar que uma rede soacute seraacute efetivamente integral se for conectada com os
outros dispositivos do territoacuterio onde a vida acontece espaccedilos de cultura e lazer instituiccedilotildees
45
fora do setor sauacutede (ligadas a educaccedilatildeo justiccedila assistecircncia social e outras) associaccedilotildees de
bairros e movimentos organizados instituiccedilotildees religiosas etc Cada territoacuterio carrega em si
uma histoacuteria de ocupaccedilatildeo dos espaccedilos seus usos e costumes sua influecircncia econocircmica e
poliacutetica seu papel social etc Assim pensar a organizaccedilatildeo de um CAPS em uma cidade do
interior eacute diferente de pensar a organizaccedilatildeo desse mesmo serviccedilo em uma metroacutepole ou em uma
periferia A divisatildeo entre bairros pobres e ricos as regiotildees de comeacutercio de meretriacutecio
comunidades regiotildees atravessadas pelo poder do traacutefico e das miliacutecias influem diretamente
nos modos de vida das pessoas
Sendo assim ldquoorganizar um serviccedilo substitutivo que opere segundo a loacutegica do territoacuterio
eacute olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugarrdquo (YASUI LIMA 2010597) Eacute considerar o
contexto de vida das pessoas e suas necessidades de sauacutede Eacute entender que a organizaccedilatildeo da
rede seu acesso e suas ofertas de cuidado precisam fazer sentido na vida daquele que
experiencia o SUS e que enfrenta no seu cotidiano suas barreiras limites e insuficiecircncias
46
3 METODOLOGIA
Segundo Turato (2003) meacutetodo eacute um ldquoconjunto de regras que elegemos num
determinado contexto para se obter dados que nos auxiliem nas explicaccedilotildees ou compreensotildees
dos aspectos ou fenocircmenos constituintes do mundordquo (ibidem 153) Na investigaccedilatildeo cientiacutefica
identificamos comumente dois tipos de metodologia de pesquisa a do tipo quantitativo e do
tipo qualitativo sendo tambeacutem possiacutevel uma mistura desses dois tipos denominada pesquisa
quali-quanti
Estudos quantitativos satildeo mais indicados para pesquisas interessadas em trabalhar com
dados e variaacuteveis de forma objetiva isto eacute quantificaacutevel Jaacute a pesquisa qualitativa permite uma
reflexatildeo mais profunda de fenocircmenos natildeo quantificaacuteveis sendo por isso mais indicada para
tratar de questotildees de ordem subjetiva cultural ou social
Segundo Minayo a pesquisa qualitativa eacute aquela que ldquotrabalha com o universo de
significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo
mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave
operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveisrdquo (2014 22) sendo portanto mais adequada para estudar
fenocircmenos da existecircncia humana que natildeo podem ser quantificados como eacute o caso do objeto
dessa pesquisa
Visando atingir o objetivo desse estudo ndash discutir e analisar os avanccedilos e desafios na
organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo de cuidados aos pacientes em situaccedilatildeo de crise em sauacutede mental-
realizaremos um estudo de revisatildeo bibliograacutefica integrativa de artigos cientiacuteficos da literatura
nacional
Dentre os meacutetodos de revisatildeo a revisatildeo integrativa torna-se especialmente interessante
para essa pesquisa pois permite combinar estudos de literatura teoacuterica e empiacuterica de modo que
tenhamos uma visatildeo mais ampla e concreta dos impasses que se colocam no atendimento agrave
crise no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede mental
Assim foi feita uma busca preliminar na Biblioteca Virtual em Sauacutede (BVS) e no Scielo
no mecircs de Janeiro de 2019 a partir dos seguintes descritores e combinaccedilotildees
1) ldquosauacutede mental and crise and cuidadordquo
2) ldquosauacutede mental and crise and serviccedilos de sauacutederdquo
47
Optou-se por trabalhar com textos em formato de artigos cientiacuteficos Foram
considerados os seguintes criteacuterios de exclusatildeo artigos duplicados texto completo
indisponiacutevel natildeo se aplicam a aacuterea do estudo entendimento de crise relacionado ao
acontecimento de eventos criacuteticos como cataacutestrofes ambientais incecircndios trageacutedias em massa
(queda de aviatildeo desabamentos) etc sofrimento psiacutequico em decorrecircncia de doenccedila orgacircnica
de maior gravidade (exemplo cacircncer HIV etc) toda a sorte de assuntos relacionados aos
familiares de pessoas com transtorno mental estudos que natildeo abordam o contexto brasileiro ou
que natildeo localizam a reflexatildeo das praacuteticas de cuidado no acircmbito do SUS e da Reforma
Psiquiaacutetrica questotildees especiacuteficas do cuidado de uma categoria profissional em particular
(enfermeiros meacutedicos etc) estudos de vieacutes histoacuterico epidemioloacutegico normativo ou educativo
(guias cartilhas documentos oficiais etc)
Na BVS na primeira busca encontramos 89 resultados Foi aplicado o filtro de idioma
portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 85 referecircncias disponiacuteveis Em seguida foram excluiacutedas
21 referecircncias duplicadas 2 em formato de dissertaccedilatildeo e outras 43 com a aplicaccedilatildeo dos criteacuterios
de exclusatildeo Apoacutes a leitura dos resumos foram excluiacutedas mais 9 referecircncias segundo os
criteacuterios de exclusatildeo restando um total de 10 artigos
Na segunda busca ainda na BVS encontramos 2253 resultados Foram aplicados os
seguintes filtros idioma portuguecircs e texto completo disponiacutevel gerando uma reduccedilatildeo para 123
referecircncias Apoacutes o cruzamento com a primeira pesquisa excluiacutemos mais 15 referecircncias
Eliminamos as referecircncias duplicadas e aplicamos os criteacuterios de exclusatildeo restando um total
de 28 referecircncias Excluiacutemos mais 3 referecircncias que natildeo se encaixavam no formato de texto
escolhido para anaacutelise restando um total de 25 artigos Apoacutes a leitura dos resumos foram
excluiacutedas mais 14 referecircncias segundo os criteacuterios de exclusatildeo sobrando um total de 11 artigos
Nas buscas do Scielo natildeo foi possiacutevel encontrar nenhum resultado que pudesse ser
aproveitado para a nossa pesquisa Na primeira busca encontramos 48 referecircncias Foi aplicado
filtro de idioma portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 44 referecircncias Apoacutes o entrecruzamento
dos resultados com o levantamento na BVS excluiacutemos 14 referecircncias Em seguida excluiacutemos
mais 14 resultados repetidos Os 16 artigos restantes tambeacutem foram eliminados por natildeo se
aplicarem a aacuterea do nosso estudo ou natildeo respeitarem os criteacuterios para inclusatildeo
Na segunda busca encontramos 28 resultados Apoacutes a aplicaccedilatildeo do filtro de idioma
portuguecircs restaram 26 referecircncias das quais 9 estavam duplicadas e 12 foram eliminadas por
cruzamento As 5 referecircncias restantes tambeacutem foram eliminadas por natildeo se aplicarem a nossa
48
aacuterea de estudo ou natildeo se encaixarem nos criteacuterios para inclusatildeo Trabalharemos desse modo
somente com os resultados encontrados na busca da BVS que somaram um total de 21 artigos
A anaacutelise das questotildees suscitadas a partir desta revisatildeo teraacute abordagem qualitativa e se
organizaraacute em torno de trecircs eixos temaacuteticos a saber sentidos da crise desafios e
potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidados
Segundo Minayo
Fazer uma anaacutelise temaacutetica consiste em descobrir os nuacutecleos de sentido que compotildeem
uma comunicaccedilatildeo cuja presenccedila ou frequecircncia signifiquem alguma coisa para o
objeto analiacutetico visado Para uma anaacutelise de significados a presenccedila de determinados
temas denota estruturas de relevacircnciavalores de referecircncia e modelos de
comportamento presentes ou subjacentes no discursordquo (MINAYO 2014 316)
Assim esperamos que essa anaacutelise possa lanccedilar luz sobre as questotildees mais relevantes
levantadas na literatura em torno do acolhimento agrave crise apontando os principais desafios que
ela impotildee na construccedilatildeo e sustentaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica no cotidiano das praacuteticas e dos
serviccedilos de sauacutede Os eixos temaacuteticos seratildeo correlacionados com o referencial teoacuterico dessa
pesquisa visando alcanccedilar uma anaacutelise mais profunda e feacutertil dos temas em questatildeo
49
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA
Conforme foi explicitado no capiacutetulo de metodologia a discussatildeo e reflexatildeo dos artigos
alvos dessa revisatildeo se organizaraacute a partir de trecircs categorias temaacuteticas sentidos de crise desafios
e potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidado
Nosso caminho para a formulaccedilatildeo dessas categorias comeccedilou a partir dos descritores
usados nas buscas das plataformas Da leitura dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise
and cuidado and sauacutede mentalrdquo emergiram a maior parte das questotildees relacionadas aos modos
de compreender e significar a crise em sauacutede mental suas repercussotildees sobre as praacuteticas de
cuidado bem como os desafios e estrateacutegias encontrados pelos profissionais no manejo da crise
em seu cotidiano de trabalho Assim desdobramos esse eixo em duas outras categorias
ldquosentidos de criserdquo e ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo
Dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise and sauacutede mental and serviccedilos de
sauacutederdquo emergiram predominantemente as questotildees relacionadas agrave forma como os serviccedilos tecircm
se organizado para receber e acolher as situaccedilotildees de crise Desse eixo fazem parte natildeo soacute as
questotildees relacionadas ao papel de cada serviccedilo e sua organizaccedilatildeo interna para lidar com as
situaccedilotildees de crise como tambeacutem sua possibilidade de articulaccedilatildeo com os outros serviccedilos da
RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e dispositivos do territoacuterio na construccedilatildeo de uma
resposta integral e complexa agraves demandas da crise Esses resultados estatildeo concentrados no eixo
ldquoorganizaccedilatildeo da rede de cuidadosrdquo
41 OS SENTIDOS DA CRISE
Dos muitos sentidos e significados em torno da crise destacamos trecircs que pela forccedila e
intensidade com que aparecem nos artigos atraveacutes das falas dos profissionais das narrativas
dos usuaacuterios e familiares e das situaccedilotildees que emergiram no campo de pesquisa desdobraram-
se em subcategorias na nossa anaacutelise a crise enquanto ameaccedila social a crise enquanto perda e
isolamento e a crise enquanto apropriaccedilatildeo da experiecircncia da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidos
O sentido negativo da crise enquanto ldquoameaccedila socialrdquo aparece sobretudo na fala dos
profissionais e familiares remetendo a figura do louco como ser fora de si agressivo sem
controle apresentado risco para si e para os outros agrave sua volta Os estudos de Pereira Saacute e
Miranda (2017) Milhomens e Martin (2014) Lima (2012) Garcia e Costa (2014) Brito
Bonfada e Guimaratildees (2015) abordam essa realidade Nessas narrativas observamos que a
complexidade do fenocircmeno da loucura eacute reduzida a manifestaccedilatildeo dos sintomas agressivos e
50
violentos operando um recorte muito simploacuterio da vivecircncia da crise e do contexto em que ela
ocorre Vemos como a representaccedilatildeo desse imaginaacuterio fortalece e justifica mecanismos de
controle e vigilacircncia que remontam agrave Psiquiatria Tradicional mesmo nos serviccedilos substitutivos
A crise enquanto ldquoexperiecircncia de perda e isolamentordquo foi um sentido que apareceu
especialmente nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da
primeira crise como nas pesquisas de Pereira Saacute Miranda (2017) e Milhomens Martin (2014)
A peculiaridade dos sintomas que emergem e o estigma social relacionado a eles parecem
reforccedilar nesse primeiro momento um sentido da crise enquanto perda da normalidade e
consequentemente enquanto iacutendice de uma doenccedila ou anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida Por outro lado encontramos esse sentido tambeacutem em estudos
com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees resultando em uma perda dos viacutenculos
afetivos sociais e laborativos A pesquisa de Fiorati e Saeki (2008) com homens de 30 a 50
anos em uma unidade de internaccedilatildeo em Satildeo Paulo aponta para esse resultado
A crise enquanto ldquoapropriaccedilatildeo da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidosrdquo expressa a
construccedilatildeo de um outro sentido de crise que se opotildee aos dois uacuteltimos e abre possibilidades de
vecirc-la em seu vieacutes positivo Nessa categoria destacamos os momentos em que foi possiacutevel
deslocar-se da compreensatildeo da crise como um evento limitante ou signo de anormalidade e
entendecirc-la como um evento analisador que diz do sujeito e de sua histoacuteria Vale ressaltar que o
diaacutelogo com as pesquisas de Milhomens e Martin (2014) e Costa (2007) apontaram elementos
e reflexotildees importantes na construccedilatildeo desse sentido
411 CRISE COMO AMEACcedilA SOCIAL PERICULOSIDADE E RISCO
A loucura entendida como uma ameaccedila social remonta aos primoacuterdios da Psiquiatria
Tradicional e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo e disciplinarizaccedilatildeo do seacuteculo XVIII e XIX quando
se inicia o processo de transformaccedilatildeo da loucura em patologia mental
Segundo Jardim (2007178) ldquoo conceito do risco se coloca aqui a partir do momento
que a crise eacute o prenuacutencio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doenccedila mental
(instalada ou futura)rdquo marcada por comportamentos hostis e intimidadores como mudanccedilas
bruscas de humor pensamentos persecutoacuterios e agressividade dirigida agrave si mesmo ou agrave outros
Na revisatildeo da literatura as falas dos familiares profissionais e dos pacientes reforccedilaram
esse sentido caracterizando a vivecircncia da crise enquanto momento de desorganizaccedilatildeo em que
emergem comportamentos associados agrave violecircncia ameaccedila e medo
51
Luciana ldquogritava dentro de casa quebrava tudo jogou o computador novo no chatildeo
que era o xodoacute delardquo Na terceira crise a adolescente natildeo se reconheceria como matildee
da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho ficando com o
corpo debilitado (PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Minha matildee vinha falar comigo e eu agredia ela Ela falava lsquoEu sou sua matildeersquo E eu
falava que natildeo era PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Eu agredia meus pais quase todo o dia era discussatildeo em casa era um inferno aqui
quase todo dia era discussatildeo porque eu natildeo trabalhava eu natildeo fazia curso eu natildeo saia
de casa [] O preacutedio chegou a denunciar ateacute porque era briga constante (R homem
20 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1111)
Para os nossos entrevistados as pessoas que entram em crise em alguns
momentossituaccedilotildeestornam-se ldquoperigosas violentas agressivas brabas despertam
medo incomodam os outros quebram e destroem as coisas gritamrdquo termos utilizados
pelos entrevistados (LIMA ET AL 2012 428)
Em um estudo com profissionais em um CAPS II de Aracaju (SE) para aleacutem do sentido
da crise associado ao da violecircncia coloca-se tambeacutem o fato de essas pessoas estarem em intenso
sofrimento psiacutequico
satildeo consideradas como pessoas em alto niacutevel de sofrimento porque estatildeo angustiadas
ouvem vozes de comando necessitam de vigilacircncia contiacutenua estatildeo confusas
colocam-se em risco de morte desestruturam as famiacutelias (LIMA ET AL 2012 428)
O risco envolvido na crise se transmite para os profissionais no campo das praacuteticas de
cuidado como uma necessidade constante de monitoramento vigilacircncia e controle da pessoa
em crise como reafirma um dos profissionais desse estudo a seguir
Crise a partir de uma necessidade de vigilacircncia sendo muito exigente enquanto forma
de cuidado gerando um impacto sobre a vida de todos preocupaccedilotildees e uma dedicaccedilatildeo
quase exclusiva agrave pessoa doente (Profissional de um CAPS II Aracaju SE) (LIMA
ET AL 2012 429)
Esse aspecto aparece tambeacutem no estudo de Garcia e Costa (2014) que trazem como
analisador o manejo da crise de uma usuaacuteria em estado de agressividade em um CAPS I em
Porto Real RJ
Gritos cadeiras ao alto mesas jogadas telefone quebrado agressividade Eis um
momento de surto de uma paciente no Caps A equipe pega de surpresa precisa agir
prontamente algo tem que ser feito (GARCIA COSTA 2014 400)
Nessa situaccedilatildeo na tentativa de restaurar a paz e a ordem no serviccedilo alguns profissionais
comeccedilam a demandar o poder policial e a presenccedila de um guarda municipal de plantatildeo no
CAPS como observamos nos trechos a seguir
discutiu-se o caso em reuniatildeo de equipe retomou-se sua histoacuteria foram feitas
propostas ndash produccedilatildeo de saber atravessadas por relaccedilotildees de poder que reivindicavam
lsquoordemrsquo e lsquorespeitorsquo a serem garantidos por um poder policialesco materializado nos
agentes da guarda municipal (GARCIA COSTA 2014 201)
Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito evitando que as crises
aconteccedilam como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta Com
52
a accedilatildeo da guarda seja ela ativa ou passiva de coibir esses eventos intempestivos os
pacientes evitariam ter crises por estarem sendo vigiados (ibidem 405)
Os autores destacam que a aposta na vigilacircncia como forma de controle e prevenccedilatildeo das
crises diz respeito agrave uma visatildeo de crise em que o deacuteficit estaacute no sujeito que natildeo consegue
responder de forma adequada agraves exigecircncias da vida A intervenccedilatildeo vem no sentido de favorecer
o instituiacutedo e reintroduzir a ldquonormardquo Eacute como se algo faltasse agravequele sujeito e ldquona situaccedilatildeo
apresentada precisaria ser tamponada preenchida quer pela guarda municipal por medicaccedilatildeo
ou terapiasrdquo (Garcia Costa 2014 405)
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade De tudo que se apresenta
em uma crise psicoacutetica a agressividade eacute o que fica o que marca e exige atenccedilatildeo urgente Eacute
vista como um sintoma isolado e de suma importacircncia que necessita ser suprimido o quanto
antes Assim recorre-se a praacuteticas como a contenccedilatildeo mecacircnica ou medicamentosa visando
extrair cirurgicamente o sintoma sem precisar lidar com a loucura e com o sofrimento que se
coloca em uma crise psicoacutetica
A reduccedilatildeo da complexidade de uma crise psicoacutetica aos seus sintomas agressivos reforccedila
o medo e o estigma em relaccedilatildeo agrave loucura legitimando condutas que a tratam como mera
contravenccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo da ordem social favorecendo o uso de recursos coercitivos como
o poder policial a guarda municipal e outras instacircncias que visam tratar da criminalidade e natildeo
da sauacutede de uma pessoa
Essa realidade eacute encontrada em uma pesquisa realizada com 24 profissionais de diversas
categorias da equipe de SAMU do municiacutepio de Natal- RN Observou-se que a equipe guarda
uma percepccedilatildeo do paciente em crise como um marginal ou ateacute mesmo como um animal sendo
frequente o uso da forccedila policial nas intervenccedilotildees dessa equipe como se percebe na fala a
seguir
A poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente doente mental () e quando a poliacutecia
chega eles amansam na mesma hora A maioria dos policiais jaacute vem pensando em
descer o bastatildeo entatildeo por isso que os pacientes tecircm medo (Entrevistado 13) (BRITO
BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1300 grifos nossos)
A gente precisa do apoio da poliacutecia pra prender pra interceptar (Entrevistado 2)
(idem 1298 grifos nossos)
O uso dos termos ldquoprenderrdquo e ldquointerceptarrdquo apontam para um entendimento da crise
como fenocircmeno do campo do julgamento moral e da criminalidade As contenccedilotildees satildeo
realizadas pela equipe da poliacutecia que usa de violecircncia deflagrada como ldquodescer o bastatildeordquo
mostrando total despreparo para atuar nessas situaccedilotildees Nota-se que embora os profissionais
53
reconheccedilam que a poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente psiquiaacutetrico recorre-se agrave ela na
tentativa de ldquodominarrdquo o paciente pelo medo subjugando-o como a um animal ldquoamansam na
mesma horardquo ldquopor isso eles tem medordquo Conforme lembra Caponi (2009) ldquonas entrelinhas
dessas accedilotildees estatildeo as relaccedilotildees de poder que caracterizam a Psiquiatria Claacutessica e sua autoridade
de tomar o corpo como objeto de suas praacuteticasrdquo (apud BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2015 1298 )
Assim embora o discurso em relaccedilatildeo agrave loucura tenha mudado e incorporado os
princiacutepios da Reforma Psiquiaacutetrica vemos que quando a crise emerge e com ela a dificuldade
de sustentar com o usuaacuterio um modo protegido de estar com ele a primeira resposta dos serviccedilos
ainda segue a loacutegica do enclausuramento da violecircncia e da imposiccedilatildeo pela autoridade
A associaccedilatildeo entre crise e risco se desdobra em sentimentos de ameaccedila e medo que
justificam praacuteticas de repressatildeo como prevenccedilatildeo da possiacutevel periculosidade da pessoa em crise
como vemos a seguir
A gente notando que ele ainda estaacute agitado inquieto e que agraves vezes ele pode dar o
surto de novo a poliacutecia vai na ambulacircncia sentado com a gente (Entrevistado 7)
(BRITO BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1298)
Acredito que a falta de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz
com que o atendimento siga uma forma natildeo correta (ibidem 1298)
Segundo DelacuteAcqua e Mezzina (2005) o risco implicado na crise eacute compreendido na
Psiquiatria Claacutessica enquanto iacutendice de desadaptaccedilatildeo e desequiliacutebrio proacuteprio da doenccedila mental
Assim o fator periculosidade natildeo sendo algo passiacutevel de desconstruccedilatildeomanejo e a resposta do
medo agrave ele associada fala-nos de uma cadeia estabelecida doenccedila mental- periculosidade-
internaccedilatildeo que estaacute ldquoprofundamente enraizada nos teacutecnicos como cultura forma de agir e
pensar a loucurardquo (SILVA DIMENSTEIN 2014 42)
Cabe aqui ressaltar que natildeo se trata de negar que em uma situaccedilatildeo de crise possa haver
riscos envolvidos para integridade fiacutesica da pessoa em crise e dos demais e que isso causa medo
mas eacute preciso trabalhar em uma outra direccedilatildeo para lidar com o medo que natildeo seja atemorizar
e moralizar aqueles que precisam de cuidados especialmente quando isso eacute feito em parceria
com a poliacutecia
Isso natildeo significa que natildeo se possa utilizar de recursos como a medicaccedilatildeo ou a
contenccedilatildeo mecacircnica em situaccedilotildees extremas mas faz diferenccedila quando trabalhamos em uma
loacutegica em que esses satildeo os uacuteltimos recursos disponiacuteveis e natildeo nossa primeira resposta frente agrave
crise Praacuteticas como essas ainda satildeo tomadas no campo de ldquosoluccedilotildees maacutegicasrdquo para a remissatildeo
54
dos sintomas agressivos quando deveriam ser vistas no maacuteximo como um arranjo incocircmodo
imposto por conjunturas que em niacutevel macro e micro natildeo tem conseguido sustentar a crise no
modelo substitutivo
Desse modo Brito Bonfada e Guimaratildees assinalam que urge avanccedilar na compreensatildeo
da crise enquanto evento que demanda ldquoacolhimento diaacutelogo aproximaccedilatildeo entre sujeitos
envolvidos e respeito agraves necessidades subjetivas e particularidades de cada usuaacuterio dos serviccedilos
de sauacutederdquo (2015 1301) Para tanto faz-se necessaacuterio investir em praacuteticas de educaccedilatildeo
permanente que possam trabalhar com as equipes na direccedilatildeo da construccedilatildeo de um suporte
teacutecnico-conceitual de apoio agrave crise que tenha como base os pressupostos da Reforma
Psiquiaacutetrica Essa capacitaccedilatildeo deve envolver a discussatildeo da crise enquanto um fenocircmeno
complexo que natildeo se restringe aos sintomas apresentados mas diz do modo do sujeito se
posicionar no mundo e das conjunturas conflitivas que o afligem
412 CRISE COMO PERDA E ISOLAMENTO SOCIAL
A primeira crise aparece como um ponto de ruptura a partir do qual algo muda
radicalmente e a vida natildeo pode mais se dar como antes A crise eacute vista como a descoberta de
uma ldquodoenccedilardquo e sentida como um ponto de corte a partir do qual todos os aspectos da vida
precisam ser reavaliados Os pacientes e familiares natildeo sabem mais se podem continuar com
sua rotina de antes e estabelecem uma seacuterie de limitaccedilotildees com o objetivo de ldquoevitar novas
crisesrdquo
A possibilidade de seguir na vida os sonhos os planos e objetivos ficam todos em
suspenso como se qualquer conduta repentina pudesse disparar uma nova crise Vive-se agrave
espreita em estado de alerta atento aos sintomas temendo colocar em risco a estabilidade
conquistada com o tratamento Natildeo se pode retomar a vida como antes e tambeacutem natildeo se sabe o
que eacute possiacutevel sustentar dali em diante iniciando-se entatildeo um processo de paralizaccedilatildeo e
mortificaccedilatildeo da vida
No estudo de Pereira Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise em um CAPSi
do Rio de Janeiro nota-se que a experiecircncia da crise se desdobrou em medo inseguranccedila e
perda do interesse nas atividades do cotidiano o que pode ser destacado nas falas a seguir
Thiago deixou de jogar futebol com os amigos de ir agrave escola ldquoporque eacute melhor natildeordquo
(sic) () Leticia tambeacutem deixou de frequentar a escola apoacutes a uacuteltima crise e perdeu
o interesse pelas atividades diaacuterias que antes realizava Sua matildee ao mesmo tempo
natildeo ldquoconfiavardquo mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha
temendo que esta pudesse ldquose perderrdquo (ibidem 3739)
55
Haacute um certo recuo diante da vida um fechamento em si mesmo como forma de defesa
contra a loucura e o estigma social associado agrave ela Com isso tem-se a perda das antigas
amizades e a dificuldade de se estabelecer novos laccedilos sociais em um processo crescente de
empobrecimento da vida
Ela soacute gosta de dormir vocecirc falou Leticia Soacute quer saber de dormir Antes ela gostava
de fazer as coisas agora natildeo gosta natildeo Natildeo ajuda em casa natildeo faz nenhum trabalho
soacute dorme [hellip] Antes dela ter essa crise uacuteltima ela vinha no centro pra mim fazia as
coisas Mas agora ela anda tatildeo desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as
coisas [hellip] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro pegar o
ocircnibus errado natildeo sei (ibidem3739)
No estudo de Milhomes e Martin (2014) com um grupo de jovens que fazem
acompanhamento em um CAPS II na cidade de Satildeo Paulo quando questionados sobre saiacutedas
os jovens mencionavam idas agrave igreja mercados e festas de familiares A grande maioria referia
ficar em casa com a famiacutelia auxiliando nas tarefas da casa e da vida domeacutestica de modo que
pouco se falava sobre festas ou encontro com os amigos Majoritariamente o grupo de amigos
que esses usuaacuterios tinham contato era o do CAPS havendo apenas um dos seis jovens
entrevistados que participava de um grupo de funk fora do CAPS ldquoNota-se que apoacutes a primeira
crise psiacutequica esses jovens se veem afastados das antigas amizades apresentando importante
isolamento social e perda destes pontos de partilhardquo (ibidem 1113)
Quanto agraves possibilidades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho esse mesmo estudo aponta
que apoacutes o iniacutecio do tratamento a inserccedilatildeo possiacutevel desses jovens no mercado de trabalho se
deu predominantemente pela via do trabalho informal atraveacutes de ldquobicosrdquo e negoacutecios familiares
que permitiam uma maior flexibilidade de horaacuterios e conciliaccedilatildeo com a frequecircncia no
tratamento
Nenhum dos jovens no periacuteodo das entrevistas possuiacutea emprego formal Cinco deles
haviam trabalhado com carteira assinada antes da primeira crise e somente um
retomou este tipo de emprego apoacutes a crise enquanto os outros apesar das tentativas
natildeo conseguiram exercendo uma atividade laborativa sob outros moldes
(MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Embora natildeo se possa deixar de considerar que a primazia do trabalho informal estaacute
relacionada agrave um contexto mais amplo da economia nacional nos uacuteltimos tempos a
precariedade e falta de espaccedilo para a inserccedilatildeo de pessoas com transtorno mental no mundo do
trabalho impacta diretamente na sauacutede mental dessas pessoas trazendo prejuiacutezos ao seu
processo de construccedilatildeo de autonomia reinserccedilatildeo social e independecircncia financeira
Outros estudos como a pesquisa de Fiorati e Saeki com homens com idades entre 30 e
50 anos em uma unidade de internaccedilatildeo na cidade de Satildeo Paulo apontam resultados parecidos
56
ldquoos usuaacuterios atendidos por noacutes interromperam seus processos de escolaridade ou atividade
profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade
produtivardquo (2008 767) Essa ruptura estendeu-se ainda no campo dos viacutenculos afetivos e
sociais dos participantes ldquoseus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados
casamentos interrompidos ou nunca iniciados Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de
redes de relacionamento social natildeo namoravam natildeo tinham amizades ou qualquer ligaccedilatildeo
interpessoal espontacircneardquo (ibidem 768)
O estudo de Milhomens e Martin (2014) se propocircs a pensar as causas desse isolamento
social percebido apoacutes o episoacutedio de crise Em entrevista com os jovens participantes um dos
motivos apontados por eles era ldquoa vergonha e a dificuldade de lidar com esses encontros e
exposiccedilotildees perante olhares e perguntas que causam incocircmodordquo (ibidem 1114)
A vergonha figurava como motivo de restriccedilatildeo da circulaccedilatildeo pelo territoacuterio pois assim
evitava-se o possiacutevel desconforto de encontrar amigos ou vizinhos ter que cumprimentaacute-los e
dar-lhes explicaccedilotildees sobre a vivecircncia da crise A experiecircncia da vergonha pode ser tatildeo
assustadora a ponto como em um dos casos do entrevistado sequer sentir-se confortaacutevel para
retornar a sua antiga residecircncia
Aiacute depois eu natildeo voltei mais pra casa fiquei meio traumatizado com vergonha
tambeacutem na eacutepoca Tudo essas coisas da crise de iniacutecio vocecirc natildeo sabe neacute entatildeo fica
ndash Olha o cara eacute doido [] (vergonha) das coisas que eu fiz neacute [] mesmo se eu
pudesse eu natildeo voltaria a morar laacute sei laacute por vergonha essas coisas (M homem
28 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Segundo esse mesmo estudo outro aspecto do isolamento se daacute como uma defesa e uma
resposta pelos usuaacuterios terem se sentido abandonados pelos amigos nos momentos em que
mais precisavam deles isto eacute nos periacuteodos de crise
Ah mudei assim que agora eu tomo remeacutedio agraves vezes assim pra amizade eu fico
mais na minha As pessoas estatildeo conversando e eu natildeo tenho parece assim que eu
natildeo tenho assunto com as pessoas sabe [] Era aquela flor amiga pra laacute amiga pra
caacute Aiacute quando quando que eu caiacute numa cama todo mundo desapareceu[] (D
mulher 20 anos) (ibidem1113)
O fato de precisar fazer um tratamento e tomar medicaccedilatildeo psiquiaacutetrica tambeacutem aparece
como um elemento que imprime uma marca e estabelece uma diferenccedila separando
categoricamente loucura de normalidade em um caminho sem volta como se a partir daquele
ponto eles nunca mais pudessem ser como os outros
Letiacutecia lamenta ainda por ter ficado ldquodiferente das outras pessoasrdquo pois devido agrave crise
ldquoprecisava de tratamentordquo Relatava tambeacutem uma dificuldade em escrever e ldquocopiarrdquo
a mateacuteria porque a medicaccedilatildeo fazia sua matildeo tremer (PEREIRA SAacute MIRANDA
2017 3739)
57
Essa diferenccedila tambeacutem aparece na perspectiva dos profissionais No estudo de Pereira
Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise na perspectiva dos profissionais a crise traz
uma perda natildeo apenas da vida que se tinha mas da vida que o adolescente ainda poderia ter
[hellip] natildeo vai ser igual nunca Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que
surtam voltarem a ser como eram antes[hellip]Porque eu acho que a psicose eacute isso ne
Vocecirc perde algo do que vocecirc tinha e tambeacutem perde a habilidade de adquirir novas
aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivos neacute (Profissional do serviccedilo)
(PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3740)
Nesse sentido a crise na infacircncia aparece para os profissionais como ainda mais grave
do que na vida adulta visto que desde aquele momento a perda jaacute estaria colocada limitando
as possibilidades do adolescente para toda a vida como vemos nas falas a seguir
Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertoacuterio tatildeo comeccedilando a
vida ainda tatildeo no meio do ciclo acadecircmico [hellip] parece que a cada surto se perde um
pouquinho Vai se perdendo algo Eacute muito cedo neacute O prognoacutestico eu considero mais
negativo na adolescecircncia do que na fase adulta (Profissional do serviccedilo) (PEREIRA
SAacute MIRANDA 2017 3740)
Talvez eu ache que o surto do adolescente eacute muito mais florido Impactante eacute a
palavra Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto Eacute mais
impactante sim Porque pega os pais numa situaccedilatildeo de Poxa o cara tava na escola
tava andando as coisas tatildeo indo E esse adolescente eacute ainda um pouco dependente e
aiacute eu acho que a inserccedilatildeo da famiacutelia eacute diferente da famiacutelia do adulto Porque o adulto
jaacute eacute dono de si jaacute tem um caminho andado natildeo sei acho que eacute por aiacute (Profissional
do serviccedilo) (ibidem3740)
Porque quando eacute uma crianccedila pequena esses pais jaacute vatildeo percebendo que lsquoPoxa vida
tem alguma coisa diferente com elersquo E mesmo que seja assim lsquoEle foi normalzinho
ateacute dois anos eacute diferente dele ser normalzinho ateacute dezesseis anos ateacute quinze anos O
que aconteceu com essa criatura que numa semana taacute bem e na outra semana natildeo
Que tira roupa na rua ou bate ou que agride o pairsquo [hellip] (Profissional do serviccedilo)
(ibidem3740)
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede As perdas que os usuaacuterios
vivenciam a perda da autonomia das relaccedilotildees sociais da capacidade laborativa etc satildeo apenas
um reflexo maior dos efeitos dessa diferenccedila na nossa sociedade
Retomando a fala de uma profissional ldquonatildeo vai ser igual nuncardquo natildeo se trata de negar
essa diferenccedila Poreacutem eacute preciso entender que a perda em questatildeo natildeo eacute a perda da ldquohabilidade
de adquirir novas aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivosrdquo mas a perda do
sentido isto eacute da construccedilatildeo de mundo que havia antes da vivecircncia da crise (PEREIRA SAacute
MIRANDA 2017 3740)
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Como qualquer outra experiecircncia singular e impactante que vivemos em nossas vidas
a crise tem o poder de questionar o modo de vida de uma pessoa recriando o mundo e
redistribuindo os sentidos ao redor dela Nem sempre os sentidos construiacutedos seratildeo
compartilhados ou compreensiacuteveis mas eacute possiacutevel sustentar estar junto com algueacutem mesmo
assim mesmo sem entender do mesmo modo que sustentamos estar junto com pessoas que
compartilham de visotildees de mundo muito diferentes das nossas A loucura nesse ponto eacute soacute mais
um modo de se relacionar com o mundo como tantos outros diferentes dos nossos Os sentidos
construiacutedos a partir de uma crise natildeo seratildeo os mesmos de antes mas tambeacutem podem ser potentes
e criadores de vida
413 CRISE COMO APROPRIACcedilAtildeO DA EXPERIEcircNCIA E RECONSTRUCcedilAtildeO DE
SENTIDOS
Na pesquisa de Milhomens e Martin (2014) com jovens em um CAPS adulto em Satildeo
Paulo observou-se que alguns entrevistados especialmente os que jaacute estavam haacute mais de dois
anos em acompanhamento
com a experiecircncia das crises vatildeo adquirindo estrateacutegias e ampliando as formas de
lidar e de se perceber em relaccedilatildeo ao proacuteximo Um dos entrevistados diz que pede para
que seus pais o avisem quando ele natildeo estiver bem Outra integrante diz que quando
percebe olhares estranhos para ela cogita a possibilidade ser somente uma impressatildeo
errada ldquocoisa da minha cabeccedila3rdquo (D mulher 20 anos) (ibidem1114)
Quando questionados sobre a compreensatildeo que tinham sobre o termo ldquoloucurardquo
percebe-se que em alguns casos natildeo se tinha a concepccedilatildeo por doenccedila ateacute a chegada ao CAPS
Aiacute foi aonde que eu fiquei ruim neacute num tava conhecendo ningueacutem tava vendo coisa
e eu jaacute tinha esse negoacutecio de escutar vozes mas pra mim era um negoacutecio normal
(F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Eacute importante ressaltar que reconhecer o fato de ouvir vozes como algo ldquonormalrdquo natildeo
significa que natildeo haja sofrimento implicado nessa vivecircncia visto que ldquoescutar vozesrdquo e ldquover
coisasrdquo falam de uma certa experiecircncia de invasatildeo da consciecircncia Do mesmo modo podemos
imaginar que natildeo reconhecer as pessoas com quem habitualmente se convive deve ser algo um
tanto assustador No entanto o que gostariacuteamos de destacar com esse trecho eacute o fato dessa
experiecircncia natildeo ter sido considerada pelo entrevistado como signo de uma ldquodoenccedilardquo Embora
3 Alterado pela pesquisadora a partir do texto original ldquocoisa da minha cabe drdquo (D mulher 20 anos)
(MILHOMENS A E MARTIN D 2014 1114) pelo fato da mesma entender que houve erro de digitaccedilatildeo na
palavra ldquocabeccedilardquo
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os diagnoacutesticos possam ser importantes para a praacutetica cliacutenica os efeitos desse diagnoacutestico para
os pacientes se mostram muito mais limitantes do que propulsores de vida
Vemos que mesmo nas situaccedilotildees em que haacute um julgamento social em torno da doenccedila
quando o usuaacuterio consegue se apropriar da sua experiecircncia em relaccedilatildeo agrave loucura com
tranquilidade e maturidade ele encontra forccedilas para lidar com situaccedilotildees que antes eram motivo
de vergonha ou isolamento como vemos na fala a seguir
Os outros me chamavam de Elias Maluco Hoje em dia os outros chama ainda eu levo
na brincadeira eu natildeo me sinto ofendido Quando eu tava ruim eu me sentia ofendido
entendeu Eu levo numa boa entendeu (F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Retomando a categoria anterior ldquoa crise como perda e isolamento socialrdquo Milhomens
e Martin (2014) assinalam que apoacutes o episoacutedio de crise alguns participantes de sua pesquisa
deixaram de sair e de circular pelo territoacuterio para natildeo ter que lidar com os questionamentos dos
vizinhos amigos e conhecidos em torno da sua doenccedila Nesse sentido a fala do usuaacuterio acima
fomenta outras formas de lidar com os possiacuteveis obstaacuteculos que a sociedade impotildee agrave loucura
Sua apropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da loucura faz com que ele natildeo se abale ao ser
chamado de ldquomalucordquo Haacute aiacute a invenccedilatildeo de uma forccedila e de uma potecircncia de vida que sustenta
novas possibilidades de estar na comunidade apesar das adversidades
Outro aspecto que nos chamou atenccedilatildeo nesse estudo foi a relaccedilatildeo que alguns usuaacuterios
conseguiram estabelecer com a sua medicaccedilatildeo Embora a maioria natildeo soubesse informar os
nomes e quantidades bem como a finalidade teacutecnica das mesmas muitos conseguiam mostrar
propriedade na avaliaccedilatildeo dos ldquoganhos e perdasrdquo que a medicaccedilatildeo causava em suas vidas
MILHOMENS MARTIN 2014)
Um dos impasses vivenciados por eles nesse sentido era o conflito entre beber eou
usar drogas e ter que tomar a medicaccedilatildeo Sabe-se que a interrupccedilatildeo do tratamento
medicamentoso pode causar efeitos colaterais importantes e ateacute mesmo agravar os sintomas do
quadro que se pretendia tratar Posto isso esses jovens se viam no dilema de ter que optar entre
um e outro avaliando seus riscos e benefiacutecios como vemos na fala a seguir
Aiacute os moleques tava indo fumando uma maconha laacute aiacute eu ia ficava olhando ndash Seraacute
que eu posso Seraacute que natildeo posso ndash aiacute parei de tomar o remeacutedio pra natildeo prejudicar
tipo pensei assim ndash Se eu para de tomar o remeacutedio acho que eu vou poder beber e
vou poder usar droga [] Sem (a medicaccedilatildeo) fico agitado fico agitado ando de um
lado pro outro arrumo a casa arrumo tudo [risos] e tipo jaacute o coraccedilatildeo sei laacute meio que
acelera Eu sei lidar com isso entendeu Pra ficar mais tranquumlilo fumo um cigarro
fumo ateacute mais cigarro quando acelera o coraccedilatildeo mas isso tipo se eu ficar uns por
exemplo ficar hoje hoje eacute quinta se eu ficar ateacute quarta sem tomar eu fico tranquumlilo
mas como a meacutedica falou a medicaccedilatildeo fica no organismo tem uns dias e tal mas se
eu passar de uma semana sem tomar vixi sei laacute eu natildeo sei se eacute isso ou eacute psicoloacutegico
60
pode daacute uma inseguranccedila vocecirc jaacute fica meio com receio aiacute jaacute fica pilhado deve ser
isso tambeacutem (J homem 24 anos)- (MILHOMENS MARTIN 2014 1116)
Observa-se por outro lado que embora a capacidade de autonomia e de participaccedilatildeo do
usuaacuterio no seu tratamento seja valorizada no modelo substitutivo o questionamento em relaccedilatildeo
aos proacutes e contras do uso da medicaccedilatildeo natildeo foi acolhido pelo serviccedilo e como consequecircncia os
usuaacuterios acabavam por fazer uma gestatildeo solitaacuteria da sua medicaccedilatildeo sem poder contar com o
serviccedilo enquanto um parceiro nessa decisatildeo
Quando um desses jovens fazia uma escolha em relaccedilatildeo ao seu tratamento como
interromper o uso da medicaccedilatildeo para fazer uso de drogas ou para conseguir levantar
cedo para estudar tal atitude era vista pelo serviccedilo como contraacuteria ao tratamento
Como se o exerciacutecio da autonomia soacute coubesse quando exercida em concordacircncia com
a disciplina oferecida pelo serviccedilo Optar por natildeo mais fazer uso da medicaccedilatildeo eacute
tratado como irresponsabilidade ou ldquopiora do quadrordquo (ibidem 1117)
Assim vemos que a relaccedilatildeo dos usuaacuterios com o serviccedilo sofre algumas tensotildees e muitas
vezes satildeo os proacuteprios usuaacuterios que vatildeo encontrar meios de ressignificar e modificar essas
relaccedilotildees como podemos ver na fala desse entrevistado a respeito dos grupos oferecidos no
CAPS
Os grupos eacute pra iniacutecio da crise quando tudo eacute novidade entatildeo todo grupo eacute
interessante por mais babacatildeo assim Quando a gente vai melhorando assim parece
ser meio babaca mas natildeo eacute Porque a gente natildeo taacute acostumado mas assim pintar
essas coisas que parece que eacute pra crianccedila neacute mas nossa mente taacute como de crianccedila
entatildeo parecia uma coisa meia agraves vezes quando passava em mim eu falava ndash O que
eu tocirc fazendo aqui ndash mas esses grupos me fizeram enxergar que tinha mais gente
igual eu que tinha gente numa fase pior que a minha outras melhores me ajudou
bastante (M homem 28 anos) (ibidem 1117)
Segundo os pesquisadores ldquopintar desenhos infantis e promover brincadeiras de
crianccedilas eram atividades rotineiras neste serviccedilo utilizadas com o intuito de entreter as pessoas
que ali estavamrdquo (MILHOMENS MARTIN 2014 paacutegina) Tais atividades promovidas de
forma burocraacutetica e sem aproximaccedilatildeo real com o cotidiano dos usuaacuterios contribuem para a
interrupccedilatildeo ou desistecircncia do tratamento Mesmo assim o entrevistado surpreende e lanccedila um
outro olhar para o serviccedilo reconhecendo o que na sua perspectiva ele traz de efetivamente
importante para o seu tratamento a possibilidade de se reconhecer na experiecircncia do outro e de
se conectar com pessoas que vivem os mesmos problemas e questotildees Esse eacute um elemento
proacuteprio do dispositivo grupal que por si soacute jaacute imprime um novo significado ao tratamento
oferecendo um lugar diferente do de incapacitado e infantilizado
Os usuaacuterios vatildeo encontrando cada um agrave sua maneira meios de lidar com as crises com
o estigma social e com a necessidade de sustentar seu tratamento Os recursos apontados por
eles aparecem como algo da ordem da construccedilatildeo de um saber leigo advindo da experiecircncia
subjetiva da crise e da relaccedilatildeo que eles mantem com o seu contexto soacutecio-cultural
61
Notamos que nesse processo os usuaacuterios foram capazes de criar estrateacutegias para o
enfrentamento da sua condiccedilatildeo ressignificando a relaccedilatildeo com o tratamento e encontrando
meios de estar na vida social ldquomantendo-se em movimento na composiccedilatildeo contiacutenua de novos
territoacuterios tendo a crise como principal agente de mudanccedilas e criaccedilotildeesrdquo (GUATTARI
ROLNIK 1996 apud MILHOMENS MARTIN 2014 876)
Na pesquisa de Costa (2007) com um integrante da luta antimanicomial e profissionais
da enfermaria de agudos feminina do IMAS Nise da Silveira e do EAT (Espaccedilo Aberto ao
Tempo) tambeacutem encontramos olhares e concepccedilotildees em torno da crise que se afastam da
perspectiva claacutessica medicalocecircntrica da crise enquanto iacutendice de desajuste do quadro
psicopatoloacutegico resultando em periculosidade e risco social como vemos na fala a seguir
Para mim a concepccedilatildeo que eu tenho de crise eacute a seguinte eacute quando seus pensamentos
estatildeo de tal ordem bagunccedilados que vocecirc natildeo consegue fazer coisas corriqueiras que
vocecirc geralmente costuma fazer Para mim isso eacute uma crise Natildeo significa que isso
seja uma coisa violenta que vocecirc tenha uma crise e fique violento Vocecirc pode ter uma
crise de depressatildeo pode ficar muito triste natildeo conseguir se relacionar com as pessoas
Entatildeo para mim crise eacute quando vocecirc estaacute em um estado tal de confusatildeo de
imobilidade que vocecirc natildeo consegue fazer suas coisas corriqueiras Isso para mim eacute
uma concepccedilatildeo (Integrante do Movimento da Luta Antimanicomial) (COSTA
2007 105)
Para esse usuaacuterio a crise aparece enquanto um estado de confusatildeo em que os
pensamentos estatildeo de tal modo desorganizados que fica difiacutecil dar conta ateacute mesmo das coisas
mais simples do cotidiano Haacute nessa concepccedilatildeo a ideia da crise relacionada a uma perda que eacute
a perda das referecircncias de mundo que se havia constituiacutedo ateacute entatildeo A crise vem e mexe com
o sistema de referecircncia do sujeito ldquobagunccedilardquo os pensamentos A agressividade eacute um dos modos
de se reagir agrave essa ruptura com o instituiacutedo mas natildeo o uacutenico Assim o que fica enquanto questatildeo
dessa fala eacute o que fazer para que essa perda de sentidos natildeo seja paralisante De que modo
podemos aproveitar o movimento da crise para reconstruir os sentidos perdidos e imprimir
novos movimentos de vida aos sujeitos
A fala desse profissional aponta alguns caminhos
[] Pelo menos como eu vejo o surto psicoacutetico eacute exatamente a colocaccedilatildeo em xeque
das referecircncias que sustentavam uma situaccedilatildeo sustentavam um estado de coisas que
de repente rui ou ameaccedila ruir ou comeccedila a ficar em questatildeo ()Muitas vezes o que
a gente vecirc na loucura eacute uma perda mesmo de sentido (Psiquiatra supervisor da equipe
da enfermaria de agudos feminina) (COSTA 2007 104 grifos nossos)
[] Entatildeo muitas vezes o que a gente acredita o que gente constroacutei a partir da nossa
praacutetica eacute que a possibilidade de algueacutem estar intervindo trabalhando junto na crise
pode muitas vezes em algumas situaccedilotildees facilitar a possibilidade de construccedilatildeo ou
reconstruccedilatildeo de referecircncias Quais vatildeo ser em princiacutepio a gente sugere que natildeo se
sabe Porque tem uma seacuterie de fatores sociais em volta proacuteximo do sujeito no
contexto da famiacutelia que tendem muitas vezes a querer recobrar ou retomar uma
62
situaccedilatildeo anterior [] eu acho que quando a gente estaacute intervindo junto na crise a
gente tem que ter o cuidado de natildeo querer construir novos sentidos ou tatildeo pouco
querer reconstruir os velhos porque a gente natildeo sabe Porque eacute possiacutevel que alguns
natildeo suportem retomar aquilo nem tenham a menor condiccedilatildeo a gente natildeo tem como
saber isso antes A gente tem que estar acompanhando junto com cuidado fazendo o
que for preciso Agora eacute claro que por isso mesmo a crise eacute um momento privilegiado
de possibilidades de emergirem novos sentidos muitas vezes essa produccedilatildeo de
sentido eacute do proacuteprio sujeito Pode ser um sentido delirante mas enfim eacute delirante no
sentido positivo E aiacute eacute claro que se espera que a intervenccedilatildeo natildeo seja para calar esse
sentido (Psiquiatra supervisor da equipe da enfermaria de agudos feminina) (ibidem103 grifos nossos)
Haacute uma preocupaccedilatildeo colocada em natildeo se adiantar em querer restituir o estado de coisas
anterior pois a gente natildeo sabe pode ser que o sujeito natildeo sustente mais retornar agrave vida que ele
levava antes Nessa perspectiva a crise eacute mais do que apenas um estado de desequiliacutebrio
momentacircneo ela eacute iacutendice de que algo precisa ser mudado Os velhos arranjos que o sujeito
tinha para lidar com o sofrimento natildeo satildeo mais suficientes e com isto surge a necessidade de
rever esses arranjos e pensar em novas formas de organizaccedilatildeo para o sujeito e seu cotidiano
Segundo um dos entrevistados
A crise pode ser uma grande chance de vocecirc produzir alguma coisa com aquele
indiviacuteduo alguma coisa diferente produzir a mudanccedila Ou pode ser a chance de vocecirc
fazer exatamente nada no sentido de que tirou da crise o cara volta para a vida
exatamente igual (Psiquiatra da enfermaria de agudos feminina) (ibidem 102)
Voltar exatamente igual seria justamente ignorar o que a crise produz em termos de
subjetividade no sujeito Se tomamos a crise como iacutendice de uma mudanccedila na subjetividade
isto eacute na forma como aquele sujeito se constitui para o mundo entatildeo eacute preciso pensar se os
recursos que ele tem estatildeo agrave altura da nova realidade psiacutequica em que ele se encontra Assim eacute
preciso tomar a crise enquanto um acontecimento que pode apontar para a necessidade de uma
mudanccedila na realidade concreta do sujeito no modo em que ele vive nas suas relaccedilotildees sociais
no modo como organiza seu cotidiano etc A crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um
evento analisador4 que ldquo propicia a criaccedilatildeo de recursos e estabelece uma urgecircncia de
realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (COSTA 2007
101)
Sobre esse aspecto uma profissional conta
Uma coisa que eu lembrei que vocecirc falou da crise me lembrei do CH Ele morava na
casa dos pais que morreram e que foi a casa onde ele cresceu Os pais eram muito
austeros e ele tem muitas recordaccedilotildees naquela casa Ele haacute muito tempo vinha pedindo
para sair daquela casa principalmente quando ele estava ldquoem criserdquo quando ele natildeo
estava ldquobemrdquo Quando algumas coisas aparecem a agressividade por exemplo eacute um
dos sinais de quando ele estaacute em crise aquela doccedilura dele toda natildeo aparece aparece
4 Ver Guattari F (2004) Psicanaacutelise e transversalidade ensaios de anaacutelise institucional Aparecida SP Ideacuteias
amp Letras (Original publicado em 1972)
63
mais uma agressividade uma irritabilidade No caso dele parece que satildeo duas pessoas
parece que duas pessoas habitam o mesmo corpo E ele falava muito de querer sair e
quando ele melhorava acabava que O tempo passou eu natildeo sei muito bem montar
essa histoacuteria um trabalho que a Carla fez e a famiacutelia entendeu que era mais do que
quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil tambeacutem e aiacute se comeccedilou
a procurar a casa E aiacute teve um periacuteodo minus porque ao mesmo tempo em que ele queria
sair quando ele viu a saiacuteda isso mexeu minus em que ele natildeo ficou bem e pedia para ficar
no hospital porque para ele era insuportaacutevel ficar naquela casa mas a outra casa ainda
natildeo tinha saiacutedo e a gente ldquoNatildeo mas aqui no hospital natildeo vamos negociar vocecirc fica
um diardquo E aiacute acabou que ele conseguiu alugar a casa dele estaacute superfeliz Mas esse
periacuteodo da procura da casa foi um periacuteodo em que ele pode ateacute natildeo ter entrado numa
crise mas ele natildeo estava bem natildeo estava bem por todas essas mudanccedilas porque ele
natildeo queria tambeacutem eacute difiacutecil mudar Eu natildeo sei mas numa loacutegica psiquiaacutetrica
tradicional talvez nunca se mexesse na casa e talvez diriam ldquoViu soacute como natildeo foi
bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo (Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)
(ibidem 102)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado da histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social habitacional e
relacional Eacute a partir dela que a equipe entende que natildeo eacute mais possiacutevel sustentar a permanecircncia
do usuaacuterio naquela casa A profissional ao mesmo tempo ressalta o quanto eacute difiacutecil e delicado
esse trabalho que face agrave menor mudanccedila na sintomatologia do usuaacuterio corre o risco de ser
inteiramente questionado ldquo viu como natildeo foi bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo
Assim desconstruir o paradigma manicomial implica em uma aposta incansaacutevel no
sujeito em dar creacutedito ao que ele fala e aponta como direccedilotildees possiacuteveis para seu cuidado Ainda
assim eacute preciso reconhecer que o que quer que se construa com ele seraacute sempre uma construccedilatildeo
provisoacuteria posto que as pessoas estatildeo em constante movimento de territorizalizaccedilatildeo e
desterritorializaccedilatildeo de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo de si proacuteprio e do mundo ao seu redor
Estar aberto para essa construccedilatildeo exige que os profissionais possam rever as concepccedilotildees
de crise que embasam suas praacuteticas No lugar das certezas da Psiquiatria Claacutessica eacute preciso
abrir espaccedilo para uma ldquopraacutetica aberta agrave invenccedilatildeo agrave singularidade cuja tecnologia se vai
construindo permeaacutevel aos elementos de vidardquo (Costa 2007 105) A narrativa a seguir fala
um pouco desse aspecto do trabalho
Para mim eacute isso crise eacute isso Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o
sobrinho dele morreu assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver
com uma situaccedilatildeo que ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele
continuou trabalhando na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de
trabalho E eu me lembro que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele
tirar todos os documentos E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do
nascimento dele e ele me mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e
nasceu e contou histoacuteria A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com
ele porque ele explodiu[] E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos
de novo E a gente entendeu que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia
muito que a gente o ajudasse eacute como se ele pulverizasse e a gente entendia que ele
tinha um pedido de organizaccedilatildeo Tanto eacute que ele pediu para arrumar a cantina ele
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queria arrumar as coisas da cantina depois do expediente Os documentos eu acho
que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que ele acabou entre aspas
perdendo Acho que a coisa foi meio por aiacute mas isso foi a histoacuteria dele com J seria
outra coisa com N seria outra Eu acho que vai muito por aiacute Por isso que eu natildeo tenho
uma coisa pronta Mas nas vivecircncias a gente vai vendo como vai fazendo (Psicoacuteloga
do Espaccedilo Aberto ao Tempo) (ibidem 105)
A perspectiva dessa profissional se contrapotildee a uma visatildeo mais tradicionalista da crise
que ldquovai dizer que [a crise] eacute um sintoma que ela estaacute descolada da realidade e vocecirc tem que
fazer a remissatildeo do sintoma entatildeo quando ele [o paciente] melhora eacute porque ele paacutera de delirar
e funciona em um registro mais normal mesmo que seja dopado de medicaccedilatildeo mesmo que
vocecirc esteja matando eacute isso(Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)rdquo (Costa 2007 105)
Acompanhar o movimento do sujeito em seus percursos e trajetoacuterias em busca de sauacutede
(no Parque da Catacumba na arrumaccedilatildeo da cantina na retirada dos documentos) diz de uma
postura diante da crise fundada na sustentaccedilatildeo de um natildeo saber A sustentaccedilatildeo de natildeo ter uma
resposta agrave priori eacute o que vai permitir que se possa embarcar com o paciente em novos sentidos
para sua loucura Normalmente o senso comum tende a acreditar que uma pessoa em surto
psicoacutetico faz e fala coisas sem sentido e que por isso devemos ignoraacute-las A ideia aqui eacute agir no
sentido inverso tomar as accedilotildees e falas do sujeito em crise como um saber legiacutetimo sobre si
Trata-se de retomar um pouco a ideia de Freud do deliacuterio enquanto uma tentativa de cura e
apostar na capacidade inventiva do sujeito de criar saiacutedas para seu sofrimento
Enquanto uma visatildeo mais tradicionalista da crise retiraria o sujeito do seu contexto de
vida para isolaacute-lo em uma instituiccedilatildeo de tratamento sob a justificativa de monitorar avaliar e
examinar a evoluccedilatildeo do quadro psicopatoloacutegico uma visatildeo mais ampliada da crise vai situar
esse acontecimento dentro do contexto de vida da pessoa e buscar superaacute-la trabalhando com
os elementos que fazem parte de seu cotidiano como o territoacuterio as relaccedilotildees sociais a histoacuteria
de vida etc Trata-se portanto de buscar uma saiacuteda da crise a partir da histoacuteria de vida do
sujeito e de sua realidade acolhendo os caminhos que ele aponta Vista desse modo a crise eacute
um modo de subjetivaccedilatildeo que soacute se constitui no mundo concreto e coletivo o qual o sujeito faz
parte e soacute pode se transformar na medida em que esse mundo tambeacutem se transforma para ele
42 DESAFIOS E POTENCIALIDADES NO ACOLHIMENTO A CRISE
Segundo a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (2013)
Acolher eacute reconhecer o que o outro traz como legiacutetima e singular necessidade de
sauacutede O acolhimento deve comparecer e sustentar a relaccedilatildeo entre equipesserviccedilos e
usuaacuterios populaccedilotildees Como valor das praacuteticas de sauacutede o acolhimento eacute construiacutedo
de forma coletiva a partir da anaacutelise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
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construccedilatildeo de relaccedilotildees de confianccedila compromisso e viacutenculo entre as
equipesserviccedilos trabalhadorequipes e usuaacuterio com sua rede socioafetiva (spag)
Tal poliacutetica considera ainda que o acolhimento eacute uma postura eacutetica e tecnologia
relacional de escuta qualificada a ser oferecida de acordo com agraves necessidades dos usuaacuterios e a
partir de uma avaliaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade gravidade e riscordquo (BRASIL 2013)
Tendo essa concepccedilatildeo de acolhimento como direccedilatildeo visamos atraveacutes da anaacutelise dos
artigos estudados nessa pesquisa trazer algumas contribuiccedilotildees para pensar como tem se dado
o acolhimento agrave crise na RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e quais satildeo os principais
impasses estrateacutegias e ferramentas cliacutenicas que os profissionais encontram na prestaccedilatildeo desse
cuidado no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede
Desse modo a partir da revisatildeo da literatura podemos dizer que um dos primeiros
desafios que se coloca no acircmbito do acolhimento agrave crise eacute que este natildeo seja apenas um processo
de triagem Sobre esse aspecto a pesquisa de Paulon et al (2012) encontrou resultados
relevantes Os autores entrevistaram trabalhadores e gestores de emergecircncias de hospitais gerais
na cidade de Porto AlegreRS aleacutem de analisarem os protocolos utilizados por essas unidades
no processo de acolhimento
Nos protocolos analisados por Paulon et ali (2012) chama atenccedilatildeo o fato de que em
nenhum momento a palavra ldquoacolhimentordquo eacute utilizada Os autores destacam que em um desses
documentos a palavra ldquotriagemrdquo eacute utilizada em seu lugar como um criteacuterio que permite
ldquoclassificar e escolherrdquo
O texto de introduccedilatildeo deste documento segue descrevendo a origem militar desse
termo utilizado em campos de batalha para escolher ldquoquem valeria a pena salvarrdquo de
acordo com os recursos disponiacuteveis dentre aqueles feridos em combate ldquoo objetivo
geral da classificaccedilatildeo era retornar o maior nuacutemero possiacutevel de soldados ao campo de
batalhardquo (FERNANDES RAMOS FRUSTOCKL FRANCcedilA sd 1 apud PAULON
ET AL 2012 75)
Difiacutecil pensar em produzir relaccedilotildees de cuidado a partir de um texto que orienta os
profissionais a pensarem nos seus pacientes como ldquosoldados em um campo de batalhardquo Vemos
que essa concepccedilatildeo de acolhimento enquanto triagem natildeo se restringe apenas a burocracia de
um documento sem efeitos na praacutetica mas encontra-se presente e viva no discurso dos
profissionais desse hospital como observamos na fala a seguir ldquono acolhimento os pacientes
relatam o seu problema e a partir daiacute eacute triado de acordo com a classificaccedilatildeo de riscordquo (
PAULON ET AL 2012 76 grifo do autor)
Outra profissional entrevistada associa o acolhimento ao filme ldquoTempos Modernosrdquo
relembrando a cena em que o personagem de Carlitos de tanto apertar parafusos sai repetindo
66
os movimentos desconexos rua afora Em seguida acrescenta que ldquoa sua proacutexima escala de
acolhimento ocorreraacute dali a dois meses e sente-se aliviada por isso pois prefere ficar nas
maacutequinas de raios-X do que ficar ali na linha de frenterdquo (ibidem 76)
Talvez o comentaacuterio da enfermeira revele um querer colocar as coisas em seus
ldquodevidos lugaresrdquo uma vez que o trabalho com a maquinaria requer mais
apropriadamente o tipo de conduta que lhe parece ser exigida para atuar nos
acolhimentos da emergecircncia Aleacutem disso as maacutequinas de raio-X natildeo precisam ser
esvaziadas de subjetividade do conteuacutedo psicossocial que insiste em ser sugado das
ldquopessoas-parafusordquo da linha de montagem do acolhimentotriagem (ibidem 76)
O acolhimento-triagem transforma a linha de cuidado em ldquolinha de montagemrdquo
tomando o sujeito como um objeto que precisa ser ldquotriadordquo ldquoencaminhadordquo e ldquoclassificadordquo
de acordo com os criteacuterios de um protocolo Perde-se a dimensatildeo leve e relacional desse
cuidado Aspectos como a escuta a produccedilatildeo de viacutenculo e a valorizaccedilatildeo do encontro natildeo tecircm
espaccedilo para emergir em meio ao tempo altamente controlado e aos procedimentos mecanizados
desse cuidado
Com resultado produz-se uma burocratizaccedilatildeo dos dois lados os pacientes veem o
acolhimento como mais um empecilho para ldquoresolverrdquo suas necessidades de sauacutede ou mesmo
para ldquousufruir do consumo de sua dose procedimentalrdquo e os teacutecnicos como castigo obrigaccedilatildeo e
perda de tempo pois estatildeo se afastando do cuidado que seria ldquoo verdadeiro cuidadordquo o cuidado
dos procedimentos das maacutequinas da medicaccedilatildeo etc
O que prevalece assim eacute um cuidado predominantemente vertical de procedimentos
biomeacutedicos para com um usuaacuterio submisso e em estado de passividade uma perfeita
apresentaccedilatildeo do claacutessico ldquopacienterdquo (ibidem 78)
Ao referir-se sobre o acolhimento palavras como ldquoraacutepido efetivo e estabilizadordquo foram
uma constante no discurso dos profissionais Segundo um dos entrevistados
A nossa proposta de acolhimento eacute um acolhimento raacutepido ele tem que ser raacutepido e
efetivo Porque agraves vezes o paciente chega pra mim e eu tenho que conseguir classificar
ele raacutepido justamente pra ele ter um atendimento mais raacutepido (sic)rdquo (ibidem 78)
O risco e a possibilidade de morte muitas vezes colocada associada agrave percepccedilatildeo de um
corpo fiacutesico em colapso eacute o que demanda a accedilatildeo raacutepida O diaacutelogo torna-se empobrecido e
restrito ao que estaacute prescrito nos protocolos de atendimento e o contato reduz-se a execuccedilatildeo de
procedimentos biomeacutedicos que visam a estabilizaccedilatildeo (medicaccedilatildeo afericcedilatildeo dos sinais vitais
entre outros)
A funccedilatildeo da emergecircncia segundo os entrevistados seria devolver a estabilidade das
funccedilotildees orgacircnicas ao corpo que estaacute sendo assistido () E todos os procedimentos
precisam ser feitos rapidamente pois a depender da gravidade do dano instalado
naquele organismo esse desequiliacutebrio poderaacute levar agrave morte (ibidem 78)
67
Entende-se que eacute necessaacuterio que a pessoa em situaccedilatildeo de crise tenha acesso ao cuidado
de forma raacutepida No entanto o que se observa eacute que a rapidez mencionada pelos profissionais
natildeo se restringe somente ao tempo de espera do atendimento mas as etapas e fases do
acolhimento Assim no intuito de ldquoacelerarrdquo a linha de cuidado o paciente recebe um
atendimento fragmentado e burocratizado cujo objetivo eacute conseguir determinar no menor
tempo possiacutevel qual paciente pode esperar qual deve ser atendido imediatamente qual deve ser
encaminhado para outro serviccedilo e qual deveraacute ser internado Sobre esse aspecto um entrevistado
ressalta
O funcionamento da emergecircncia eacute uma coisa mais Mc Donaldrsquos natildeo tem entrada
primeiro prato segundo prato terceiro prato Eles querem ver quem eacute que tem risco
que tenha que internar senatildeo olham o que precisa e lsquodeursquo A emergecircncia eacute voltada
para o foco da doenccedila ela focaliza no tratamento que estanque aquele sofrimento
emergenterdquo (sic) (ibidem 79 grifos nossos)
Os autores pontuam que essas satildeo decisotildees complexas que natildeo podem ser tomadas ldquono
menor tempo possiacutevelrdquo sem que haja necessariamente um processo de simplificaccedilatildeo do
atendimento no qual ldquoo trabalhador tenta adequar a demanda trazida pelo usuaacuterio agravequilo de
que o serviccedilo dispotildee para poder lidar com ela e salvaguardar algum sucesso no resultado do
trabalhordquo (ibidem 79)
Assim tem-se o que Merhy (2002) descreve como ldquotrabalho mortordquo isto eacute um cuidado
que ldquonatildeo estaacute em movimento- em relaccedilatildeordquo (apud PAULON ET AL 2012 79) O sujeito eacute
visto como um ldquoproblemardquo que precisa ser ldquoresolvidordquo a partir do uso das tecnologias que o
serviccedilo dispotildee Natildeo haacute tempo para se descobrir o que haacute de singular na crise daquele sujeito ou
inventar outras articulaccedilotildees que possam dar conta desse sofrimento
Esvazia-se o processo isolam-se as anguacutestias e a complexidade do atendimento da
pessoa que demanda cuidados adequando-a ao que o hospital pode fornecer ldquoOlham
o que precisa e lsquodeursquordquo (sic) (PAULON ET AL 2012 79 grifo do autor)
O acolhimento-triagem eacute a expressatildeo de todo um modo de cuidado duro constituiacutedo por
certos ldquosaberes bem definidosrdquo orientados para que as respostas sejam as mais adequadas e
eficientes no menor tempo possiacutevel Em nome de ideais como a otimizaccedilatildeo do tempo e dos
recursos reduccedilatildeo dos custos e do foco na sintomatologia produz-se um cuidado
homogeneizado padratildeo ldquoMc Donaldsrdquo que jaacute tem em sua cesta de ferramentas todas as
respostas possiacuteveis Assim cabe perguntar
Se o foco da atenccedilatildeo estaacute direcionado aos sinais vitais e agrave sintomatologia fiacutesica
presente no quadro cliacutenico em nome de uma agilidade e eficiecircncia no atendimento
qual seraacute o espaccedilo reservado para tudo o que natildeo estiver inscrito nesse script O que
sobra do sujeito-usuaacuterio que chega com sofrimentos difusos numa emergecircncia Que
acontece quando o tipo de dor e sofrimento que ldquourgerdquo num usuaacuterio eacute de outra ordem
68
que natildeo aquela que costuma estar no foco desses serviccedilos (PAULON ET AL 2012
81)
Parece que haacute um despreparo para lidar com as situaccedilotildees subjetivas que fogem do olhar
cartesiano da Medicina Tradicional e que exigem dos trabalhadores uma disponibilidade outra
de entrar em contato com a pessoa em sofrimento emprestar seu tempo seu corpo seu afeto
As entrevistas apontam que ldquoos profissionais sentem medo de cuidar daquilo que
desconhecem do que natildeo foram capacitadosrdquo (sic)rdquo (ibidem 86) Um outro desafio que
podemos destacar relacionado a esse despreparo eacute a interferecircncia do preconceito e do
julgamento moral no atendimento agrave algumas situaccedilotildees de sauacutede mental Segundo os
pesquisadores
O julgamento moral estaacute presente desde a triagem a qual culmina em uma
classificaccedilatildeo de risco que mescla a objetividade de protocolos organicistas com um
olhar moralizante da situaccedilatildeo que se encontra o usuaacuterio que chega para atendimento
o que acaba relegando a sauacutede mental a um segundo plano e fazendo seleccedilotildees a partir
de determinados paracircmetros como [] a comunhatildeo de preconceitos e valores sociais
no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como ldquoessencialmente natildeo
urgentesrdquo (os alcooacutelatras drogados e pacientes psiquiaacutetricos) a presteza maior no
atendimento a usuaacuterios de classe social e niacutevel cultural mais abastados a importacircncia
da identificaccedilatildeo dos que fingem ou estatildeo dizendo a verdade sobre suas urgecircncias e no
consenso de que se a dor ou o problema eacute antigo quem esperou tanto para acessar o
serviccedilo pode esperar mais (Neves 2006 692 apud PAULON ET AL 2012 84)
No caso de crises relacionadas ao uso abusivo de aacutelcool e outras drogas a equipe das
emergecircncias tende a assumir uma postura acusatoacuteria relegando a responsabilidade da crise ao
usuaacuterio que teria escolhido seguir esse caminho Acredita-se que por estes nada se tem a fazer
e que o melhor eacute ldquocuidar de quem realmente quer ser cuidadordquo Na praacutetica o atendimento dessas
situaccedilotildees revela ldquodescaso incapacidade de escuta ou ateacute negligecircncia para com sujeitos em crise
de abstinecircncia ou torporrdquo (PAULON ET AL 2012 85) Os autores ressaltam que
Nesse sentido subjugar um cidadatildeo que chega agrave emergecircncia com algum tipo de
sofrimento psiacutequico limite reduzindo-o a um lugar de pecado de vergonha pelos seus
atos fora dos padrotildees aceitos socialmente emerge da junccedilatildeo das loacutegicas meacutedica e
judiciaacuteria efetuada pela ativaccedilatildeo de categorias elementares da moralidade de um
discurso essencialmente parental-infantil que eacute o discurso dos cuidadores quando se
imbuem do saber absoluto sobre ldquoo que eacute bom para o outrordquo(ibidem85 )
O atravessamento das expectativas dos profissionais sobre a vida do outro somado aos
valores morais e culturais em vigor na sociedade fomentam um processo de culpabilizaccedilatildeo da
pessoa que procura ajuda o que pode culminar em uma niacutetida desresponsabilizaccedilatildeo com o
cuidado desses pacientes como vemos nos trechos a seguir
Esses sim esses noacutes da equipe de enfermagem temos bastantes dificuldades de lidar
porque tu vecirc o viacutecio como algo que a pessoa vai e faz por que quer tem livre arbiacutetrio
ele escolheu o viacutecio Ateacute as primeiras idas ateacute antes da dependecircncia (sic) (ibidem
84 grifo do autor)
69
Chegaram a dizer que ele era uma pessoa egoiacutesta e que natildeo tinha condiccedilotildees de
convivecircncia que era pra eu e minha matildee sairmos de casa ou botar(mos) ele pra fora
(CONTE ET AL 2015 1745 grifo do autor)
Nesse contexto eacute comum por exemplo que a equipe entenda que o ldquoatendimentordquo
possiacutevel eacute a resoluccedilatildeo da demanda fiacutesica do alcoolista (reestabelecimento dos sinais vitais
hidrataccedilatildeo etc) sem que haja nenhum tipo de encaminhamento para um tratamento continuado
na rede ou mesmo uma abordagem sobre a situaccedilatildeo que a pessoa se encontra naquele momento
Esse olhar do cuidado orgacircnico e centrado nos procedimentos fiacutesicos tem se apresentado
como um outro importante desafio a se transpor no niacutevel das praacuteticas de cuidado Nas
emergecircncias gerais cenaacuterio da pesquisa isso fica especialmente evidente Os profissionais
tendem a atribuir mais valor agrave dor fiacutesica do que a psicoloacutegica Como se quem estivesse sofrendo
por um trauma um corte ou uma fratura precisasse mais do atendimento do que um paciente
esquizofrecircnico dependente quiacutemico ou com crise de ansiedade Desse modo as demandas
subjetivas satildeo vistas como aquelas que ldquopodem esperarrdquo e que tomam lugar das demandas
fiacutesicas compreendidas nesta loacutegica como aquelas ldquorealmente urgentesrdquo Sobre esse aspecto
Jardim e Dimenstein (2007 182) ressaltam
O foco do trabalho das urgecircncias psiquiaacutetricas estaacute primordialmente no procedimento
em sua dimensatildeo bioloacutegica no corpo pensado como objeto de intervenccedilatildeo da
anatomia patoloacutegica e qualquer fator que extrapole esse acircmbito eacute desconsiderado
Entatildeo ateacute mesmo enquanto doenccedila mental a loucura foge da loacutegica das urgecircncias
Natildeo se manifesta enquanto lesatildeo palpaacutevel ou visiacutevel [ela] evoca outros
questionamentos incomoda por diferir tanto das outras demandas natildeo se encaixa no
espaccedilo natildeo se submete agrave autoridade potildee em xeque os teacutecnicos e seus saacutebios
conhecimentos desvela as suas impotecircncias (apud PAULON ET AL 2012 87)
Mesmo nos casos em que claramente sabe-se que o motivo da falecircncia do corpo eacute o
sofrimento subjetivo o alvo do cuidado continua sendo limitado ao reparo do dano provocado
ao corpo fiacutesico
Quando uma crianccedila chega agrave emergecircncia por automutilaccedilatildeo ou mesmo quando um
adulto adentra a sala com os pulsos cortados os profissionais entendem que sua
funccedilatildeo nesse caso eacute de limpar e suturar os ferimentos O motivo da consulta eacute o
ferimento - novamente o fiacutesico - e os possiacuteveis procedimentos que nele possam ser
executados Jaacute os motivos do plano psiacutequico e social que possivelmente causaram tal
emergecircncia (e natildeo raras vezes causaratildeo novamente e justificaratildeo uma reinternaccedilatildeo ndash
uma das variaacuteveis determinantes da hiperlotaccedilatildeo das emergecircncias) natildeo satildeo alvo de
investimentos por parte das equipes (PAULON ET AL 2012 85)
Haacute um certo mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo pois ao contraacuterio da
patologia orgacircnica ele natildeo se submete as loacutegicas de um saber estruturado e natildeo ldquo se resolverdquo a
partir de um manejo ou intervenccedilatildeo O sofrimento subjetivo retorna e continua a colocar em
xeque os profissionais seus saberes e as instituiccedilotildees Em um serviccedilo como a emergecircncia o que
70
natildeo pode ser ldquoresolvidordquo eacute frequentemente esquecido o que natildeo deixa de ser paradoxalmente
uma forma de ldquoresoluccedilatildeordquo do problema
Nos serviccedilos especializados embora a demanda de sauacutede mental seja mais evidente
parece que a direccedilatildeo do cuidado eacute igualmente no sentido de invisibilizaacute-la Pesquisas como a
de Zeferino et al (2016) sobre a percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre a atenccedilatildeo agrave crise
sauacutede mental apontam que a intervenccedilatildeo muitas vezes eacute no sentido de ldquocalarrdquo o sintoma
revelando que embora o modelo de sauacutede tenha mudado as praacuteticas medicalizantes e
hospitalocecircntricas ainda prevalecem
Essa pesquisa foi feita com 156 alunos do curso ldquoCrise e Urgecircncia em Sauacutede Mentalrdquo
ldquotrabalhadores da RAPS com formaccedilatildeo em niacutevel universitaacuterio que atuam no cuidado em sauacutede
mental no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) oriundos das diversas Regiotildees do Brasil
selecionados pelo Ministeacuterio da Sauacutederdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag) Como forma de
cuidado na crise os participantes citaram majoritariamente medidas como ldquocontenccedilatildeo
medicamentosa contenccedilatildeo mecacircnica e internaccedilatildeo accedilotildees que se limitam agrave diminuiccedilatildeo de
sintomasrdquo (idem p) como descrito nas falas abaixo
Quando chegam ao serviccedilo dependendo de como estejam satildeo contidos no leito com
faixas de contenccedilatildeo pelos monitores e depois satildeo vistos pelos meacutedicos Psiquiatras que
determinam a contenccedilatildeo medicamentosa feita a administraccedilatildeo da medicaccedilatildeo ficam
em observaccedilatildeo (E1 A124 - CAPS II) (ibidem spag )
Nas urgecircncias a primeira conduta eacute a intervenccedilatildeo medicamentosa que ocorre pela
equipe de enfermagem tanto na unidade como em domiciacutelio em alguns casos com
apoio da Guarda Municipal para contenccedilatildeo fiacutesica Logo que possiacutevel o paciente eacute
avaliado pelo meacutedico que quase sempre orienta a internaccedilatildeo (E1 A64 - CAPS II)
(ibidem spag)
Quando temos um usuaacuterio em crise e a famiacuteliar liga para pedir ajuda da equipe do
CAPS orientamos que entre em contato com o SAMU para levaacute-lo ao hospital e
entatildeo o usuaacuterio ser medicado Se a Crise for muito forte este eacute encaminhado para a
capital onde seraacute internado[] (E1 A147 - CAPS II) (ibidem spag)
Nota-se que as primeiras intervenccedilotildees mencionadas pelos profissionais satildeo a contenccedilatildeo
fiacutesica eou medicamentosa seguida do encaminhamento para o hospital A avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo
de crise eacute vista como uma responsabilidade uacutenica e exclusiva do meacutedico da qual a equipe natildeo
participa Na terceira fala por exemplo observamos que o profissional sequer tenta entender a
situaccedilatildeo que levou o usuaacuterio a entrar em crise O CAPS tampouco parece ser visto como um
dispositivo a ser acionado nas situaccedilotildees de crise O encaminhamento imediato eacute ligar para o
SAMU para que o usuaacuterio seja levado ao hospital
Embora o CAPS seja o dispositivo por excelecircncia substitutivo ao hospital e por isso
privilegiado no atendimento agraves situaccedilotildees de crise a expectativa dos profissionais eacute de que
71
outros serviccedilos se ocupem da crise e que o usuaacuterio retorne ao CAPS quando estiver
ldquoestabilizadordquo conforme vemos a seguir
A equipe tem se mostrado omissa quando presencia um momento de crise e ao inveacutes
de intervir busca encaminhar e se livrar do problema (E1 A141 - CAPS II) (ibidem
spag)
O usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao Hospital Geral para a
estabilizaccedilatildeo retornando ao CAPS assim que estiver compensado para a
continuidade do seu tratamento (E1 A92 - CAPS II) (ibidem spag)
A ideia da estabilizaccedilatildeo associada prioritariamente agrave intervenccedilatildeo farmacoloacutegica e a
hospitalizaccedilatildeo aleacutem de reforccedilar o modelo manicomial deposita a esperanccedila da melhora em uma
soluccedilatildeo externa e maacutegica retirando a possibilidade do sujeito se responsabilizar pelo seu
sintoma e talvez encontrar outra soluccedilatildeo para sua compensaccedilatildeo Segundo os autores ldquoVaacuterias
correntes teoacutericas tem apontado que o objetivo das praacuteticas de sauacutede mental precisa ser a
ampliaccedilatildeo da capacidade de cada um lidar consigo mesmo e com os outros e natildeo apenas a
remissatildeo de sintomasrdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag)
Assim embora alguns profissionais reconheccedilam a necessidade de uma mudanccedila em
relaccedilatildeo a essas praacuteticas parecem ter dificuldades de nortear suas accedilotildees sob a loacutegica do modelo
psicossocial como podemos ver nas falas a seguir
Vejo-me com tantas perguntas sobre crises como identificaacute-la como agir o que natildeo
fazer a resposta medicamentosa me parece faacutecil e raacutepida poreacutem me angustia tecirc-la
como resposta gostaria de descobrir outros caminhos (E1 A52 - CAPS II) (ibidem
spag)
A equipe tem se esforccedilado no cuidar natildeo tem sido faacutecil pois exige um
amadurecimento da mesma procurando natildeo limitar na terapia medicamentosa no
modelo meacutedico-centrado mas sim em acolher natildeo soacute o paciente mas os familiares
buscando interagir com os parceiros da RAPS Nas nossas reuniotildees de equipe sempre
discutimos casos novos (E1 A66 - CAPS I) (ibidem spag)
Destaca-se nesse contexto que a formaccedilatildeo hegemonicamente biomeacutedica e a
inadequaccedilatildeo dos curriacuteculos para aacuterea da sauacutede mental reforccedilam o apelo agrave resposta ldquoprontardquo da
medicaccedilatildeo e contribuem para a manutenccedilatildeo do modelo manicomial ldquoO diagnoacutestico apressado
a conduta extremamente teacutecnica e desumana a medicalizaccedilatildeo de todas as queixas e as
dificuldades no contatordquo (ibidem spag) satildeo expressotildees de um modelo de cuidado duro que
imbuiacutedo dos ideais de neutralidade da praacutetica meacutedica simplifica e compromete a integralidade
do cuidado Sobre esse aspecto um profissional comenta
Trabalhamos ainda focados na praacutetica meacutedica quase em todos os episoacutedios a
medicalizaccedilatildeo ocorre em primeiro lugar Principalmente com a falta de capacitaccedilatildeo
dos profissionais envolvidos Esta atuaccedilatildeo soacute fortalece a dependecircncia do hospital
psiquiaacutetrico (E1 A53 - CAPS II) (ibidem spag)
72
Para agravar a situaccedilatildeo a rede tambeacutem natildeo consegue dar respostas pois tambeacutem natildeo
estaacute preparada para tais situaccedilotildees Ocorre que esse usuaacuterio percorre um caminho de
sofrimento e descaso (E1 A141 - CAPS II) (ibidem spag)
Na pesquisa de Almeida et al (2012) com 14 profissionais de quatro equipes do SAMU
no estado de Santa Catarina a falta de capacitaccedilatildeo teacutecnica para o atendimento agraves situaccedilotildees de
crise tambeacutem aparece enquanto um desafio As dificuldades relatadas pelos profissionais
perpassam o medo a falta de conhecimento sobre a crise e o despreparo no momento de abordar
o paciente
Acredito que a experiecircncia do dia a dia me faz ter certo preparo teacutecnico mas com
dificuldade na questatildeo psicoloacutegica Por ser o SAMU um serviccedilo de Urgecircncia e
Emergecircncia e natildeo de continuaccedilatildeo do cuidado realiza-se o necessaacuterio mas acho que
poderiacuteamos ter um preparo melhor Fico muito em alerta a tudo o que o paciente faz
a forma dele agir e de se expressar Eu abordo porque tem que abordar mas eu natildeo me
sinto preparado Pode-se dizer que estou preparado na medida do possiacutevel pois
consigo realizar teacutecnicas para contenccedilatildeo fiacutesica mas natildeo psicoloacutegica Em algumas
situaccedilotildees natildeo me sinto preparado e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia militar
No caso de agressividade natildeo me sinto preparado Acredito que precisariacuteamos de mais
orientaccedilatildeo pois eacute a uacutenica aacuterea que a gente natildeo tem capacitaccedilatildeo Quando consigo me
aproximar na abordagem a pessoa fica tranquumlila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmo
Com certeza precisa mais coisa para o atendimento orientaccedilatildeo Acredito que a falta
de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz com que o
atendimento siga uma forma natildeo correta
(P1P2P3P4P5P6P7P9P10P13P14)(ALMEIDA ET AL 2012 710)
A falta de preparo muitas vezes eacute o que justifica o uso da forccedila fiacutesica e da agressividade
conforme retratado nas falas ldquoquando consigo me aproximar na abordagem a pessoa fica
tranquila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmordquo ldquoem algumas situaccedilotildees natildeo me sinto preparado
e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia miliarrdquo ldquono caso de agressividade natildeo me sinto
preparadordquo Assim vemos a importacircncia do investimento em processos de educaccedilatildeo
permanente supervisatildeo cliacutenica e cursos de formaccedilatildeo para que os profissionais encontrem meios
de manejar as situaccedilotildees de crise sem necessidade do uso de violecircncia
A formaccedilatildeo precisa ser vista como um ldquoprocesso dinacircmico e contiacutenuo de construccedilatildeo do
conhecimento pautado no diaacutelogo em que todos os atores assumam papel ativo no processo de
aprendizagem atraveacutes de uma abordagem criacutetica e reflexiva da realidaderdquo (ibidem713)
Acreditamos que atraveacutes dela as concepccedilotildees de crise o imaginaacuterio social da loucura e os
conceitos de risco e periculosidade podem ser revisitados e problematizados fornecendo
subsiacutedios para uma praacutetica orientada para a escuta das necessidades do sujeito do viacutenculo e do
cuidado em liberdade
Assim podemos dizer que o cuidado dos profissionais ainda representa em grande parte
caracteriacutesticas do modelo asilar como intervenccedilotildees centradas na contenccedilotildees fiacutesica e
medicamentosa excesso de internaccedilotildees acolhimento burocratizado falta de preparo na
73
abordagem ao paciente em crise resultando no uso da forccedila fiacutesica e da agressividade aleacutem de
praacuteticas de preconceito e discriminaccedilatildeo sendo estes alguns dos principais desafios apontados
pela literatura estudada no acolhimento agrave crise no acircmbito da Reforma Psiquiaacutetrica e do SUS
(Sistema Uacutenico de Sauacutede)
Quanto agraves potencialidades no acolhimento agrave crise podemos destacar algumas estrateacutegias
referidas pela literatura Na pesquisa de Lima et al (2012) da qual participaram profissionais
usuaacuterios gestores e familiares de 11 CAPS nas cidades da Bahia e Sergipe emergiram enquanto
elementos que favorecem o manejo da crise segundo a perspectiva dos participantes
a) acolhimento diurno e noturno b) observaccedilatildeo continuada e contiacutenua c) atenccedilatildeo
domiciliar (visitas domiciliares) d) responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso
e) presenccedila do psiquiatra na equipe para garantir o ecircxito da prescriccedilatildeo f) negociaccedilatildeo
e apoio concreto ao familiar para que o internamento seja o uacuteltimo recurso utilizado
g) elaboraccedilatildeo de cartilha com orientaccedilatildeo sobre como lidar com a crise de pessoas com
transtornos para profissionais natildeo especializados em sauacutede mental e para familiares
h) implantaccedilatildeo das ldquoOficinas de criserdquo 5nos CAPS i) estabelecimento de limites para
os usuaacuterios atraveacutes de regras de convivecircncia para evitar o uso de aacutelcool e outras drogas
no CAPS e como sugerem os parentes j) na perspectiva dos familiares natildeo podem
faltar carinho compreensatildeo e feacute (LIMA ET AL 2012 430 grifo nosso)
Recursos como o acolhimento diurno e noturno quando possiacutevel no caso de CAPS III
associado agrave observaccedilatildeo contiacutenua e agrave responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso indicam a
importacircncia de um cuidado mais intensivo nos momentos de crise Uma estrateacutegia possiacutevel
nesse sentido eacute aumentar a frequecircncia do paciente no serviccedilo para que a equipe possa
acompanhar o caso mais de perto e oferecer suporte antes que a situaccedilatildeo se agrave Isso implica
em uma revisatildeo do Projeto Singular Terapecircutico para construir outros espaccedilos onde o sujeito
possa produzir sauacutede A inclusatildeo de recursos do territoacuterio e espaccedilos no proacuteprio serviccedilo que
possam dar alguma continecircncia agrave desorganizaccedilatildeo e aos sentimentos disruptivos que emergem
na crise tambeacutem eacute uma accedilatildeo fundamental na direccedilatildeo de um cuidado territorial e em liberdade
Outras pesquisas como a de Peireira Saacute e Miranda (2017) indicam a utilizaccedilatildeo da
intensividade do cuidado de forma exitosa permitindo a saiacuteda do estado de crise
O irmatildeo de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora
resultado principalmente do aumento dos dias em que esta permanecia no serviccedilo
da disponibilizaccedilatildeo de um carro para transportaacute-la e da intensificaccedilatildeo dos contatos
dos profissionais com a famiacutelia (ibidem 3738 )
As visitas domiciliares tambeacutem se mostram estrateacutegias muito eficientes nos momentos
de crise em que natildeo eacute possiacutevel para o sujeito ir ateacute o serviccedilo Baseadas em uma tecnologia-leve
e relacional de cuidado tem como suas principais ferramentas a aposta no encontro no viacutenculo
5 Segundo os autores trata-se de um espaccedilo que ldquomanteacutem o usuaacuterio em crise sob acompanhamento intensivo
tendo como premissa soacute recorrer agrave internaccedilatildeo como uacuteltima alternativardquo (LIMA ET AL 2012 429)
74
na escuta qualificada e no diaacutelogo Aleacutem disso indicam a importacircncia de dois elementos
fundamentais na loacutegica da atenccedilatildeo psicossocial a intervenccedilatildeo dentro do contexto de vida do
sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) e a disponibilidade de prestar o cuidado
no momento em que ele eacute necessaacuterio
Outro achado da pesquisa de Lima et al (2012) que reflete a potecircncia da tecnologia
vincular no acolhimento agrave crise eacute a percepccedilatildeo dos profissionais que os usuaacuterios mais antigos e
conhecidos pela equipe tecircm menos chances de serem internados em uma situaccedilatildeo de crise do
que os novos Sobre esse aspecto ressaltamos a fala de uma trabalhadora entrevistada
Uma coisa interessante tambeacutem eacute que os pacientes jaacute conhecidos jaacute usuaacuterios haacute algum
tempo os profissionais de referecircncia deles agraves vezes jaacute datildeo conta de alguma forma A
gente observa situaccedilotildees assim os pacientes novos em geral que satildeo encaminhados pra
emergecircncia tecircm um quadro de agitaccedilatildeo e precisam de medicaccedilatildeo Mas outros casos a
gente jaacute consegue controlar sem medicaccedilatildeo pelos viacutenculos mas os que jaacute satildeo da
casa Os que jaacute tecircm um tempo conosco Como a gente tem vivenciado uma coisa que
se prende ateacute a noacutes psiquiatras porque a gente lida muito com a medicaccedilatildeo aquele
paciente sair daquele quadro sem medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431 grifo nosso)
Assim o viacutenculo e a escuta quando bem utilizados possibilitam a estabilizaccedilatildeo do
quadro de crise sem que haja necessidade de se utilizar tecnologias duras como a internaccedilatildeo
ou (leves-duras) como a medicaccedilatildeo Entrar em contato com a crise entendendo o contexto em
que ela ocorre e permitindo que o sofrimento do sujeito se expresse eacute o ponto de partida para
que algum acolhimento possa se dar
Acolher a crise poder escutar que crise eacute essa crise psiquiaacutetrica crise do sujeito
poder escutar o sujeito e aproveitar a crise como sendo a forma que ele tem de se
manifestar ele conseguiu colocar no sintoma aquele sofrimento todo que ele tava
entatildeo aproveitar fazer uma escuta e acolher aquilo antes de vocecirc calar com a
medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431)
A pesquisa de Willrich et al (2013) com profissionais de um CAPS II em Alegrete (RS)
tambeacutem aponta a importacircncia do viacutenculo e da construccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de reciprocidade com
o usuaacuterio como estrateacutegias fundamentais no acolhimento ao momento de crise como indicam
as falas dos trabalhadores participantes desse estudo
Acho que a gente tem que ter esse cuidado quando a pessoa estaacute em crise ter sempre
algueacutem que possa estar intensivamente mais perto (A4) (ibidem659)
A gente vai para desarmar a gente natildeo vai se o cara estaacute irritado violento eu natildeo
vou laacute para provocar a violecircncia nele Pelo contraacuterio eu quero que ele se apoacuteie em
mim para ver se ele consegue desarmar a tal da violecircncia que estaacute na cabeccedila dele Eacute
assim que eu procedo nesses assuntos () aiacute ele vem e ndash Ah disco voador que natildeo
sei o quecirc Eu natildeo vou dizer que natildeo existe disco voador Eu entro na loucura faccedilo
um flerte com a loucura dele para tentar construir um pouco de sauacutede ir construindo
Num primeiro momento natildeo tem como ir contra () Tem coisas que tu natildeo vai
conseguir manejar tem que ter estar junto com outros Aiacute tem que segurar tem que
sentar tem que acalmar (A6) (ibidem 659 grifo do autor)
75
A possibilidade de sustentar estar junto com o usuaacuterio tomando suas anguacutestias como
reais ainda que resultem de uma experiecircncia alucinatoacuteria ou delirante possibilita a construccedilatildeo
de uma relaccedilatildeo de confianccedila entre o profissional e o usuaacuterio A partir desta relaccedilatildeo o serviccedilo
comeccedila a se constituir enquanto um espaccedilo de apoio como uma referecircncia concreta para o
usuaacuterio de onde buscar ajuda nos momentos de crise
A tomada de responsabilidade desse CAPS em relaccedilatildeo agrave crise se transmite tambeacutem na
clareza de que o suporte nesses momentos precisa ser imediato conforme vemos a seguir
A gente sempre procura eacute pedir para as colegas laacute da frente que quando elas atendem
o telefone eacute para perguntar se eacute urgecircncia ou natildeo Se eacute um caso que um paciente estaacute
agredindo o familiar ou coisa a gente tem que largar tudo que estaacute fazendo para ir
atender (A2)( WILLRICH ET AL 2013 659)
Enquanto na pesquisa de Zeferino et al (2016) mencionada anteriormente a primeira
conduta ao atender uma situaccedilatildeo de crise por telefone era orientar a famiacutelia a chamar o SAMU
vecirc-se que neste CAPS a equipe entende as situaccedilotildees de crise como uma missatildeo desse serviccedilo
e por isso como uma prioridade na agenda Essa postura de ldquolargar tudo o que se estaacute fazendo
para ir atenderrdquo indica um compromisso eacutetico muito forte com o cuidado no territoacuterio e com a
desinstitucionalizaccedilatildeo Isso natildeo significa que a equipe natildeo possa avaliar que eacute necessaacuterio
internar mas antes ela busca apropriar do caso e oferecer suporte
A direccedilatildeo da internaccedilatildeo como o uacuteltimo recurso a ser acionado no cuidado conversa
diretamente com a importacircncia de praacuteticas de prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise e de seu
agravamento Nessa linha de pensamento podemos destacar a fala do profissional a seguir
A estrateacutegia que eu sempre penso e que eu sempre falo para o grupo eacute a estrateacutegia da
prevenccedilatildeo Se eu sei que um usuaacuterio estaacute entrando em crise e eu sei porque ele estaacute
todo o dia aqui com a gente desde laacute da recepccedilatildeo ateacute aqui Se eu sei que um usuaacuterio
estaacute com um problema mais seacuterio eu tenho que antecipar isso () se ele comeccedila a ter
problemas a gente tem que intervir () Entatildeo a gente tem que estar sempre de olho
para prevenir o surto () A visatildeo que a gente procura ter e discutir nas reuniotildees de
equipe eacute assim vamos prevenir () Entatildeo eu acho que a prevenccedilatildeo se chegou mal
aqui atende logo Se precisar levar para o pronto-socorro leva porque a gente natildeo
tem psiquiatra 24 horas oito horas aqui Entatildeo tem certas coisas que a gente natildeo pode
nem querer fazer Vai estar chamando o psiquiatra entatildeo leva para o pronto-socorro
que estaacute ali o carro estaacute aqui Se natildeo estiver vem a ambulacircncia de laacute Se toma uma
atitude para evitar (A3) (WILLRICH ET AL 2013 660 grifo nosso)
Gostariacuteamos de acrescentar que embora seja importante prestar o cuidado de forma
imediata nos momentos de crise evitando que a situaccedilatildeo se agrave devemos estar atentos para
que a direccedilatildeo de prevenir natildeo se transforme em uma caccedila agraves bruxas aos sintomas O objetivo
final natildeo pode ser medicar conter e internar para ldquoprevenirrdquo A direccedilatildeo de cuidado precisa
continuar sendo a autonomia do sujeito e a produccedilatildeo de sua sauacutede
76
Desse modo trabalhar na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise significa primeiramente
trabalhar em rede Natildeo se espera que um serviccedilo sozinho seja capaz de prevenir uma crise mas
o serviccedilo reconhecendo seus limites pode identificar e lanccedilar matildeo de outros recursos do
territoacuterio para compor uma rede de cuidados que verdadeiramente ampare o sujeito Logo saber
que o serviccedilo ldquonatildeo dispotildee de psiquiatra 24hrsrdquo e que natildeo funciona aos finais de semanas e no
periacuteodo noturno satildeo pontos que exigem dos profissionais a responsabilizaccedilatildeo do cuidado
atraveacutes da construccedilatildeo de uma articulaccedilatildeo em rede
O pronto-acolhimento indicado na fala ldquose chegou mal aqui atende logordquo a articulaccedilatildeo
em rede acompanhando o paciente em outros serviccedilos como o pronto-socorro se necessaacuterio a
revisatildeo do PTS (Projeto Terapecircutico Singular) a realizaccedilatildeo de visitas domiciliares e a
disponibilidade de cuidar da crise nos espaccedilos onde ela surge satildeo elementos que aparecem nos
artigos estudados como fundamentais no acolhimento integral agraves situaccedilotildees de crise
Outro ponto mencionado eacute o trabalho em equipe especialmente quando a situaccedilatildeo eacute
grave e pode ocasionar riscos para o profissional ou para terceiros A maioria dos profissionais
indicou ser importante natildeo estar sozinho na abordagem ao paciente em crise
Quando eacute muito assim arriscado eu natildeo vou sozinha Porque olha os casos assim
que eu natildeo estou conseguindo fazer grupo que estaacute muito nervoso que ele estaacute vendo
alguem em mim enfim eu procuro compartilhar isso com algum dos colegas Porque
dai se precisar manejar a gente maneja de dois e melhor que manejar de um [A6]
Eu acho que eacute soacute com cautela Nunca ir sozinha quando vecirc que haacute um risco de perigo
sempre levar mais algueacutem [A23]
Porque aqui a gente tem muita [] todos ajudam Entatildeo quando um estaacute um usuaacuterio
estaacute em surto geralmente todo mundo vem ajudar (WILLRICH J Q ET AL 201156-
57 grifos nossos)
Conforme ressaltam os autores ldquoessas accedilotildees contribuem para a construccedilatildeo de um olhar
que respeita a individualidade e valoriza a subjetividade rdquo (WILLRICH ET AL 2013 662)
Assim acolher eacute mais do que ldquoabrir as portas do serviccedilo para a permanecircnciardquo eacute construir uma
relaccedilatildeo de confianccedila com o usuaacuterio tecer uma rede que o ampare no territoacuterio trabalhar de
forma multidisciplinar e acolher o sofrimento do outro como vaacutelido entendendo-o como parte
da sua experiecircncia e do seu contexto de vida
43 ORGANIZACcedilAtildeO DA REDE DE CUIDADOS
A luta pela superaccedilatildeo do aparato manicomial disparada pela Reforma Psiquiaacutetrica
implica nos serviccedilos da Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial (RAPS) a transformaccedilatildeo efetiva da
assistecircncia agraves pessoas em situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico Acreditamos nesse sentido ser
fundamental a possibilidade de construccedilatildeo de uma rede coesa e bem articulada que possa
77
efetivamente substituir o hospital psiquiaacutetrico dispensando a necessidade de centralizaccedilatildeo do
cuidado em um soacute serviccedilo evitando os efeitos negativos jaacute apontados na literatura que uma
instituiccedilatildeo total6 acarreta na vida dos indiviacuteduos agrave ela submetidos
Pensando na organizaccedilatildeo da rede algumas questotildees que pretendemos investigar nesse
capiacutetulo satildeo qual eacute o grau de acessibilidade dos serviccedilos aos sujeitos em crise Quais satildeo suas
maiores barreiras de acesso O que favorece e o que desfavorece a continuidade da linha de
cuidado Como os serviccedilos enxergam seu papel na rede Como se daacute a integraccedilatildeo entre os
serviccedilos no acolhimento aos casos de crise Como eacute a integraccedilatildeo dos serviccedilos com a rede
intersetorial e com os dispositivos do territoacuterio
Vista dessa forma a atenccedilatildeo agrave crise representa um ponto de amarraccedilatildeo de diversas
estrateacutegias propostas pela PNSM sendo um importante analisador das possibilidades de
conexotildees da rede suas articulaccedilotildees com os recursos assistenciais e com os recursos do
territoacuterio sua acessibilidade e seu grau de permeabilidade diante das reais necessidades de
sauacutede das pessoas Considerando que a Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo em construccedilatildeo
cabe discutir quais satildeo os desafios que os serviccedilos encontram para acolher a crise no territoacuterio
uma vez que cada vez mais o hospital tem se tornando um ponto de ldquoescoamentordquo dos fracassos
da rede
Pensando nos aspectos que podem figurar como barreiras de acesso aos usuaacuterios no
SUS uma primeira questatildeo que surge eacute a demora para conseguir iniciar um tratamento Com
base na literatura estudada vaacuterias pesquisas como as dos autores Bonfada et al (2013) Conte
et al (2015) e Pereira Saacute e Miranda L (2014) apontam para a existecircncia de grandes filas de
espera para iniciar o tratamento mesmo nos casos de crise
Conte et al (2015) comentam que as imensas filas de espera satildeo o resultado de um
enorme deacuteficit de profissionais Aleacutem do quantitativo dos profissionais ser insuficiente para
suprir a rede natildeo haacute contrataccedilatildeo temporaacuteria para os casos de licenccedila feacuterias ou afastamento por
motivo de doenccedila Uma das profissionais entrevistada nesse estudo retrata esse quadro
comentando o impacto disso no cuidado ldquovia de regra a gente telefona explica sensibiliza o
colega e ouve olha me desculpa soacute que eu estou com uma lista de espera imensa eu sou soacute
uma A colega entrou de feacuterias e a outra em licenccedila maternidaderdquo (CONTE ET AL 2015
1746)
6 Ver Goffman (2001)
78
Na praacutetica a demora no acesso aos serviccedilos faz com que os usuaacuterios soacute consigam ser
acolhidos quando a situaccedilatildeo jaacute eacute muito grave Bonfada el al (2013) expressam esse aspecto
atraveacutes da fala de um trabalhador do serviccedilo de emergecircncia do SAMU Segundo esse
entrevistado ldquo a populaccedilatildeo natildeo tem acesso aos serviccedilos de psiquiatria Entatildeo os doentes entram
em crise pra poder ter o acesso ao serviccedilo de psiquiatria (E1)rdquo (BONFADA ET AL 2013 230)
Mesmo nos casos de crise os serviccedilos ainda encontram dificuldades para oferecer um pronto-
atendimento Pereira Saacute e Miranda L (2014) pontuam que todos os usuaacuterios participantes de
sua pesquisa ldquoesperaram ao menos uma semana para serem consultados nos serviccedilos mesmo
nas situaccedilotildees de criserdquo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2140)
Conte et al (2015) discutem que a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se
estabelecer uma classificaccedilatildeo de risco na lista de espera contribui ainda mais para dificuldade
de acesso e para a sensaccedilatildeo de impotecircncia e sofrimento dos profissionais diante da demanda
natildeo atendida
Inadequaccedilotildees da estrutura fiacutesica dos serviccedilos tambeacutem satildeo apontadas como barreiras de
acesso Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014)
Natildeo haacute adaptaccedilatildeo do preacutedio para uso de pessoas com necessidades especiais e
tampouco disponibilidade de automoacutevel (ibidem 2150)
O fato de hoje existir uma fila de espera para os primeiros atendimentos tambeacutem eacute
atribuiacutedo a falta de espaccedilo fiacutesico Haacute apenas duas salas pequenas o que prejudica a
realizaccedilatildeo de atividades grupais (ibidem 2150)
Em pesquisa sobre a atuaccedilatildeo do SAMU na cidade de Natal Brito Bonfada e Guimaratildees
(2015) mencionam a falta de ambulacircncias como um dos principais fatores que resultam em
longas filas de espera para os chamados natildeo urgentes e demora mesmo nos chamados urgentes
Percebeu-se que o nuacutemero de ambulacircncias disponiacuteveis ao atendimento da populaccedilatildeo
municipal eacute insuficiente em vaacuterias situaccedilotildees Os chamados superam a capacidade
operacional de atendimento do Samu-Natal gerando longa fila de espera e demora no
atendimento dos chamados natildeo classificados em coacutedigo vermelho ou seja
prioritaacuterios(ibidem 1297)
A superlotaccedilatildeo dos serviccedilos a inadequaccedilatildeo e insuficiecircncia dos equipamentos os deacuteficits
de equipe e as inadequaccedilotildees estruturais tambeacutem satildeo apontados como aspectos que fragilizam
os serviccedilos impossibilitam as accedilotildees no territoacuterio e a integralidade do cuidado especialmente
nos casos mais sensiacuteveis que requerem mais recursos
Algumas dificuldades praacuteticas parecem contribuir para as deficiecircncias percebidas nos
serviccedilos de sauacutede mental entre elas o nuacutemero insuficiente de equipamentos que leva
os existentes a se sobrecarregarem com uma aacuterea de abrangecircncia superior agravequela com
a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido nuacutemero e a escassa
variedade de profissionais que limitam as possibilidades de articulaccedilatildeo de accedilotildees
muacuteltiplas e criativas Em decorrecircncia dessas deficiecircncias a que muitas vezes se soma
79
a total inadequaccedilatildeo da estrutura fiacutesica os serviccedilos ficam fragilizados e assim
impossibilitados de promover accedilotildees territoriais e integrais de cuidado como
acolhimento agrave crise envolvimento da famiacutelia no tratamento e estrateacutegias de
reabilitaccedilatildeo psicossocial (MACHADO SANTOS 2013 710)
No que se refere agrave capacidade dos serviccedilos favorecerem a continuidade do cuidado
prestado no estudo de Conte al (2015) com idosos que tentaram o suiciacutedio na rede de Porto
Alegre (RS) observamos que accedilotildees fragmentadas diagnoacutesticos apressados e ofertas de cuidado
riacutegidas e padronizadas produziram o abandono do tratamento em alguns casos e a fragilizaccedilatildeo
do viacutenculo com o serviccedilo em outros Importante dizer que todos os idosos procuraram ajuda e
tinham os serviccedilos territoriais como referecircncias para sua sauacutede
Em uma das histoacuterias a paciente com diagnoacutestico de depressatildeo foi encaminhada para
um grupo terapecircutico no ambulatoacuterio poreacutem o aumento do nuacutemero dos participantes no grupo
comeccedilou a lhe provocar desconforto ldquoNo iniacutecio era bom mas depois vinham muitos
[participantes] cada um levava muitos problemas Agraves vezes tu ia[s] laacute numa boa e saias ruimrdquo
(CONTE ET AL 20151743 grifo do autor)
Por conta disso e das frequentes trocas de profissionais de referecircncia essa senhora
abandonou o tratamento iniciando a partir daiacute um circuito de sucessivas internaccedilotildees e uma
tentativa de suiciacutedio No momento em que a paciente deixou de frequentar o grupo o
ambulatoacuterio natildeo se ocupou de fazer-lhe uma visita domiciliar ou tentar contato o que poderia
ter evitado o abandono do tratamento e a posterior tentativa de suiciacutedio Por conta proacutepria a
paciente buscou ajuda e se inseriu na associaccedilatildeo do bairro que promovia atividades de lazer
(churrascos bailes e jogos) conseguindo por meio desse recurso superar a falta de vontade de
viver
Embora essa histoacuteria tenha um desfecho positivo chama atenccedilatildeo a falta de
responsabilidade do serviccedilo sobre a linha de cuidado dessa paciente Diante do fato dessa
senhora natildeo se ldquoencaixarrdquo mais no grupo o ambulatoacuterio natildeo pode ofertar-lhe um outro espaccedilo
de suporte deixando-a desassistida Isso mostra a rigidez e padronizaccedilatildeo dos espaccedilos de
cuidado desse serviccedilo que colocou sobre uma paciente fragilizada a responsabilidade integral
do seu cuidado
Em outro caso o desfecho natildeo foi tatildeo positivo Um senhor com adiccedilatildeo em jogos aacutelcool
e cigarro apoacutes vaacuterias tentativas de tratamento em serviccedilos diferentes recebia ldquoaltardquo por natildeo
aceitar ficar abstinente Segundo o mesmo ldquoSe eu tiver que parar como trago eu natildeo vou me
tratar Antidepressivo e bebida natildeo combinamrdquo (CONTE et al 2015 1744)
80
Em outra ocasiatildeo surgiu a possibilidade de ingressar em um CAPSad para realizar
tratamento do alcoolismo () Poreacutem mais uma vez ele natildeo parou de beber o que
impediu sua adesatildeo ao tratamento Novamente teve alta do tratamento porque natildeo se
enquadrava nos criteacuterios exigidos pelo serviccedilo (CONTE et al 2015 1744)
Ainda que a poliacutetica atual no tratamento de casos de drogadiccedilatildeo seja a Poliacutetica de
Reduccedilatildeo de Danos os serviccedilos em questatildeo parecem desconhecer ou resistir agrave essa alternativa
A rigidez das ofertas de cuidado impostas agrave esse senhor terminaram por deixaacute-lo em completo
abandono impossibilitando qualquer modalidade de tratamento
A Reduccedilatildeo de Danos uma vez que natildeo impotildee a abstinecircncia como condiccedilatildeo do
tratamento poderia ser um caminho na direccedilatildeo de cuidar do abuso do uso do aacutelcool e da melhora
da qualidade de vida desse paciente No entanto a inflexibilidade dos serviccedilos em repensar suas
ofertas de cuidado de modo a considerar as escolhas desejos limites e possibilidades de quem
procura ajuda resultaram na perda do tratamento e na posterior internaccedilatildeo desse idoso pela
famiacutelia em um asilo
O terceiro idoso dessa pesquisa ao deparar-se com adoecimento da esposa que tinha
Alzheimer e com a falta de ajuda dos familiares para lidar com essa situaccedilatildeo tomou para si o
seu cuidado o que ao longo dos anos lhe trouxe um vasto desgaste emocional Segundo os
autores ldquoO cansaccedilo emocional agravado pela descoberta de um tumor na proacutestata o levou agrave
primeira tentativa de suiciacutediordquo (CONTE et al 2015 1744) Na ocasiatildeo esse senhor foi levado
a um pronto-socorro onde foi submetido a uma lavagem estomacal
O peso dos cuidados em relaccedilatildeo agrave esposa somados agrave falta de apoio familiar e a problemas
financeiros motivaram a segunda tentativa de suiciacutedio ldquoEu comprei uma corda Por causa da
desajuda e da pobrezardquo (ibidem 1746) Felizmente o filho chegou na casa agrave tempo e
conseguiu evitar o enforcamento
Apoacutes essa tentativa esse idoso foi internado em um hospital onde recebeu o diagnoacutestico
de Transtorno de Personalidade Nota-se entretanto que a ecircnfase atribuiacuteda ao diagnoacutestico e as
orientaccedilotildees dadas aos familiares em decorrecircncia dele parecem ter contribuiacutedo mais para o
afastamento da famiacutelia do que para o sucesso do manejo cliacutenico de sua condiccedilatildeo Segundo os
pesquisadores ldquoOs filhos passaram a vecirc-lo como manipulador e mal intencionado
interpretavam as tentativas de suiciacutedio como um ato de covardia pra mobilizar culpa na famiacutelia
tornando-se mais hostis em relaccedilatildeo ao pairdquo (CONTE et al 2015 1744)
Durante a entrevista com os pesquisadores esse senhor referiu ldquosentimento de solidatildeo
e sofrimento com a falta de afeto dos filhos Todos os dias eacute muito triste Eu vejo [nora neta
81
filhos] e natildeo falo com ningueacutemrdquo (CONTE et al 2015 1744) aleacutem de sentimentos de desvalia
ldquoEstou virado num resto num lixordquo (ibidem) No momento da pesquisa mantinha viacutenculo com
o serviccedilo apenas para renovar a receita da medicaccedilatildeo
Observamos nesse caso que as accedilotildees de cuidado se restringiram a intervenccedilotildees pontuais
e fragmentadas tendo o modelo biomeacutedico de ldquoqueixa-condutardquo como referecircncia Quando a
tentativa de suiciacutedio se deu por ingestatildeo de medicaccedilatildeo a accedilatildeo da equipe foi cuidar apenas do
corpo fiacutesico realizando uma lavagem estomacal As questotildees existenciais que motivaram a
tentativa de suiciacutedio natildeo foram abordadas e nenhum encaminhamento foi feito para a
continuidade do cuidado Apoacutes a segunda tentativa de suiciacutedio novamente o foco do tratamento
segue o modelo medicalocecircntrico priorizando o diagnoacutestico nosograacutefico e a medicalizaccedilatildeo dos
sintomas ldquoOs sintomas dos idosos foram considerados uma forma de ldquochamar atenccedilatildeordquo e com
isso obter ganhos secundaacuterios banalizando assim o pedido de ajuda contido nos atos
desesperadosrdquo (CONTE et al 2015 1745)
No caso desse senhor o diagnoacutestico serviu apenas para fragilizar ainda mais sua rede
de apoio uma vez que os familiares passaram a vecirc-lo como ldquomanipulador e mal intencionadordquo
A falta de um Projeto Terapecircutico Singular que considerasse seu contexto de vida seus afetos
sua rede familiar e social contribuiu para o agravamento do sentimento de abandono e solidatildeo
favorecendo o risco de uma nova tentativa de suiciacutedio O uacutenico tratamento ofertado pelo serviccedilo
foi o medicamentoso e ficou niacutetida sua insuficiecircncia visto que ao ser entrevistado esse idoso
referiu sentir-se sozinho ter um cotidiano triste e esvaziado
A dificuldade de se pensar espaccedilos de cuidado baseados em tecnologias leves como o
acolhimento e o viacutenculo as oficinas padronizadas e sem perenidade agrave subjetividade do outro
aleacutem de accedilotildees emergenciais e isoladas no momento de crise satildeo apontados pelos autores como
fatores que contribuem para o abandono do tratamento quebra ou fragilizaccedilatildeo da linha de
cuidado
Estudos anteriores (Rosa 2011 Merhy 2007) evidenciaram que ao se depararem
com essas dificuldades inerentes agrave condiccedilatildeo crocircnica os profissionais do serviccedilo
podem ldquodesistirrdquo ou se desobrigar do trato do paciente ldquodifiacutecilrdquo supostamente
refrataacuterio ou ldquonatildeo responsivordquo agrave terapecircutica Em alguns momentos parece haver um
esforccedilo no sentido de ajustar o paciente ao serviccedilo e natildeo o contraacuterio como seria
desejaacutevel (Rosa2011) (MACHADO SANTOS 2013704)
Vecirc-se com isso que crise ainda eacute ldquoa crise do pacienterdquo e raramente os serviccedilos
conseguem eles proacuteprios se colocarem em crise e repensar suas ofertas e modos de cuidado A
interrupccedilatildeo e o abandono do tratamento satildeo vistos como uma dificuldade de ldquoadesatildeordquo do
82
usuaacuterio que nada tem a ver com a forma como os serviccedilos estatildeo pensando e organizando o seu
cuidado Pensando sobre a correspondecircncia entre as necessidades de sauacutede das pessoas e as
ofertas de cuidado os serviccedilos parecem natildeo perceberem o abandono ou interrupccedilatildeo do
tratamento como um analisador de suas praacuteticas Diante do natildeo enquadramento do usuaacuterio ao
modelo de intervenccedilatildeo oferecido os serviccedilos se comportam como se pouco tivessem a oferecer
O estudo de Machado e Santos (2013) aponta para resultados que confirmam esse
problema No CAPS estudado as oficinas e atividades satildeo vistas como parte de um certo
funcionamento burocraacutetico institucional as falas dos pacientes revelam a falta de sentido dessa
rotina onde as atividades parecem existir meramente para legitimar a instituiccedilatildeo preenchendo
um tempo
Vou todo dia mais tem pouca atividade Fico o dia inteiro fazendo nada deitada
Num gosto disso queria participaacute de mais atividade mais num tem vagardquo (E10)
(MACHADO SANTOS 2013 707)
Laacute no serviccedilo que eu trato eles num trabalham eles num ensinam trabalhaacute Eles potildee
laacute os paciente pra ficaacute comendo e bebendo dormindo e o dinheiro deles tudo mecircs
vem na conta O salaacuterio dos paciente vem na conta deles que eacute o benefiacutecio o dinheiro
dos funcionaacuterio vem na conta deles eacute igual aquele ditado que fala ldquoeles finge que
trabalha e eles fingem que satildeo tratadosrdquo Eacute eles tratam que nem robozinho eu pego
o cartatildeo o doutor prescreve a receita pego meu remeacutedio ndash meu tratamento eacute esse
(E8) (ibidem 707)
Outros autores tambeacutem falam de um funcionamento burocratizado do serviccedilo No
estudo de Pereira Saacute e Miranda (2014) vemos que os adolescentes do CAPSi questionam o
sentido de algumas atividades mas ainda assim essas questotildees parecem natildeo surtir efeitos sobre
o modo como a equipe pensa e organiza o cuidado
Importante notar o fato de os adolescentes terem de se adaptar aos grupos sem que
eles sejam pensados mediante a necessidade de cada um deles e das mudanccedilas vividas
ao longo do tempo Diante da insatisfaccedilatildeo dos adolescentes com as atividades os
profissionais natildeo satildeo levados a revecirc-las continuam enfatizando a necessidade de que
frequentem o serviccedilo ldquoa qualquer custordquo Todos relataram a frequente necessidade de
realizar um difiacutecil ldquotrabalhordquo de convencimento para que os adolescentes aceitem
estar no serviccedilo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2151)
Destacamos ainda a fala de uma profissional do serviccedilo que afirma que ldquoO CAPSi natildeo
tem muito mais a oferecer do que um atendimento individual em grupo um suporte agrave famiacutelia
e um suporte meacutedico medicamentosordquo (profissional do serviccedilo) (ibidem 2151) Fica evidente
nesse sentido a limitaccedilatildeo do serviccedilo em repensar suas ofertas de cuidado de modo que a
ldquoadesatildeordquo natildeo seja uma conquista agrave base de uma imposiccedilatildeo mas da produccedilatildeo de um espaccedilo que
faccedila sentido para o usuaacuterio e que lhe proporcione verdadeiramente a sensaccedilatildeo de acolhimento
83
Outro ponto importante no que diz respeito agrave quebra da continuidade do tratamento eacute a
fragmentaccedilatildeo da proacutepria equipe no processo de trabalho Sobre esse aspecto Pereira Saacute e
Miranda (2014) destacam
A equipe eacute ldquodividida por diasrdquo de maneira que cada profissional trabalha dois turnos
aleacutem da reuniatildeo de equipe Cada grupo de usuaacuterios comparece ao serviccedilo apenas num
dia especiacutefico quando encontra seu teacutecnico de referecircncia e sua miniequipe Isso leva
os profissionais a realizarem um trabalho dividido em blocos o que resulta em um
CAPSi de segunda feira e outro de terccedila feira impedindo o compartilhamento de
atuaccedilotildees entre miniequies conhecimento dos usuaacuterios dos serviccedilos aleacutem de restringir
as ofertas terapecircuticas(ibidem 2149)
Cada usuaacuterio tem um teacutecnico de referecircncia e comparece no serviccedilo no dia em que seu
teacutecnico estaacute contando tambeacutem com o suporte da mini-equipe do dia que na ausecircncia do
profissional de referecircncia satildeo os profissionais com mais apropriaccedilatildeo sobre o caso O cuidado
eacute organizado entatildeo de modo que todos os profissionais de referecircncia do usuaacuterio estatildeo
concentrados em um uacutenico dia da semana o dia em que o paciente vai ao serviccedilo Esse eacute um
funcionamento muito comum nos CAPS que entretanto dificulta profundamente o
compartilhamento dos casos
Quando pensamos em uma situaccedilatildeo de crise sabemos que os pacientes natildeo iratildeo respeitar
os dias e escalas dos profissionais de referecircncia para entrar em crise Entatildeo essa divisatildeo dos
usuaacuterios em dias preacute-determinados aleacutem de limitar o Projeto Terapecircutico agraves oficinas realizadas
naqueles dias tambeacutem restringe a capacidade do serviccedilo de se constituir efetivamente enquanto
um ponto de referecircncia na crise pois os profissionais que natildeo tecircm contato com o caso
dificilmente conseguiratildeo ofertar o suporte que esses pacientes necessitam no momento da crise
Aleacutem da fragmentaccedilatildeo do processo de trabalho no interior dos serviccedilos observamos
tambeacutem uma fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e a RAPS Constatamos a partir da
literatura que na maior parte das vezes o contato entre os serviccedilos eacute feito por telefone ou por
encaminhamento escrito entregue diretamente ao usuaacuterio Fica portanto agrave cargo do usuaacuterio a
chegada agrave um outro serviccedilo de modo que a passagem de caso fica prejudicada e o usuaacuterio fica
muitas vezes desassistido no periacuteodo de transiccedilatildeo entre um serviccedilo e outro isto quando natildeo
acaba por desistir do tratamento
Nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e os hospitais observamos que embora a gravidade
envolvida seja maior o compartilhamento do cuidado parece ainda mais difiacutecil Ao discutir a
internaccedilatildeo de uma paciente do CAPSi no hospital geral Pereira Saacute e Miranda (2014) ressaltam
que embora a paciente tenha ficado dez dias internada no hospital natildeo houve comunicaccedilatildeo
84
entre os dois serviccedilos e o CAPSi foi informado da internaccedilatildeo pela proacutepria famiacutelia da paciente
via telefone
Essa dificuldade de interlocuccedilatildeo entre CAPS e hospital eacute apontada tambeacutem no estudo
de Zeferino el al (2016) Segundo os profissionais entrevistados nessa pesquisa
o usuaacuterio e a famiacutelia em crise satildeo levado a um Hospital psiquiaacutetrico e fica afastado
do CAPS por longos periacuteodos() Em alguns casos a famiacutelia jaacute interna o usuaacuterio e soacute
comunica a equipe do CAPS posteriormente [] (ZEFERINO ET AL 2016spg)
Para aleacutem dos casos em que o hospital natildeo comunica a equipe de referecircncia sobre a
internaccedilatildeo de seus usuaacuterios observamos que tambeacutem os CAPS raramente costumam
acompanhar os usuaacuterios que encaminham para o hospital de modo que quem perde eacute o paciente
pois vive a quebra do viacutenculo terapecircutico com a equipe de referecircncia e continua passando pelas
crises sozinho no hospital Sobre esse aspecto Pereira Saacute e Miranda (2014) comentam
Fazendo um balanccedilo geral dos itineraacuterios construiacutedos pode-se perceber que o CAPSi
apresenta dificuldades no planejamento e construccedilatildeo de accedilotildees conjuntas em que
compartilhe outras instacircncias a responsabilidade pelo cuidado dos adolescentes em
crise Eacute bastante raro por exemplo que os profissionais do CAPSi de fato
acompanhem os adolescentes no Hospital Geral Como justificativa para esse cenaacuterio
todos sublinham dificuldades de contato advindas de problemas com os telefones ou
ausecircncia de um carro proacuteprio o que dificultaria o transporte no caso de uma situaccedilatildeo
de maior gravidade que pudesse acontecer no CAPSi (ibidem 2152)
Embora a falta de estrutura possa de fato dificultar a integraccedilatildeo entre os serviccedilos
percebemos que deixar o hospital se ocupar da crise tem sido praacutetica recorrente nos diversos
serviccedilos da rede Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014) nos sujeitos que participaram de sua
pesquisa o hospital geral teve papel central em todos os casos
A equipe do CAPSi entende que o Hospital Geral natildeo eacute o local ideal para as
internaccedilotildees em sauacutede mental Apesar disso atribuem ao suporte medicamentoso agrave
possiacutevel contenccedilatildeo fiacutesica e aos cuidados relativos agrave sauacutede geral a justificativa para
encaminharem ao Hospital Geral os pacientes (ibidem 2150)
O apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises leves podem
ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o hospital Essa eacute
uma direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima absolutamente o
papel do CAPS frente agrave crise
Sabemos que haacute alguns limites na capacidade dos CAPS visto que nem todos satildeo do
tipo III e que alguns serviccedilos sequer tecircm a equipe completa e o aparato estrutural miacutenimo para
funcionar Poreacutem chama atenccedilatildeo a naturalizaccedilatildeo da centralidade da rede em torno do hospital
Um exemplo claro disso aparece na fala de uma profissional desse estudo que orienta a famiacutelia
a levar a paciente ao hospital ldquofrente agrave qualquer intercorrecircnciardquo (PEREIRASAacuteMIRANDA
85
2014 2154) como se o CAPSi natildeo tivesse nenhuma responsabilidade sobre a crise de seus
pacientes
Encaminhamentos precipitados e irrefletidos ao hospital ainda constituem uma praacutetica
muito natural na rede o que coloca o CAPS na posiccedilatildeo de serviccedilo complementar e natildeo
substitutivo ao hospital Vemos que mesmo os profissionais do CAPS ainda contam com o
hospital como se a internaccedilatildeo pudesse proporcionar uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
No estudo de Zeferino el al (2016) um dos profissionais entrevistados ressalta ldquoO
usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao hospital geral para a estabilizaccedilatildeo retornando
ao CAPS assim que estiver compensado para a continuidade do seu tratamento (E1 A92 -
CAPS II)rdquo (spaacuteg)
A centralidade do fluxo das situaccedilotildees de crise para o hospital eacute praacutetica comum tambeacutem
no trabalho do SAMU Embora o SAMU tenha se constituiacutedo enquanto um recurso da rede de
assistecircncia agrave urgecircnciaemergecircncia apoacutes a Reforma Psiquiaacutetrica vemos que o modo de trabalhar
desse serviccedilo ainda eacute muito orientado pela loacutegica biomeacutedica Segundo Brito Bonfada e
Guimaratildees (2015) em pesquisa com a rede de SAMU da cidade de Natal
A partir das fichas de atendimento disponiacuteveis no sistema eletrocircnico de ocorrecircncias
do Samu-Natal observa-se que entre os meses de janeiro a marccedilo de 2010 ocorreram
314 chamadas para urgecircncias em sauacutede mental das quais 74 foram finalizadas
com o transporte para o Hospital Colocircnia Joatildeo Machado hospital psiquiaacutetrico do
municiacutepio de Natal-RN (ibidem 1301 grifo nosso )
Esse nuacutemero eacute confirmado tambeacutem pelas falas dos profissionais
Surto droga alcoolismo tudo leva para laacute a gente trabalha com o Joatildeo Machado
(Entrevistado 24) (ibidem 1302 grifo nosso)
Noacutes natildeo temos muito contato com o CAPS (Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial) A gente pega o
paciente ou na residecircncia ou em via puacuteblica e transfere para o Joatildeo Machado (Entrevistado 24)
(ibidem 1303)
Na realidade as nossas urgecircncias psiquiaacutetricas satildeo muito mais transporte Vocecirc vai
laacute conteacutem o doente e o transporta para hospital psiquiaacutetrico (Entrevistado 1) (ibidem
1302)
Percebemos que essa direcionalidade ao hospital sem levar em conta as possibilidades
assistenciais oferecidas pela rede tem relaccedilatildeo com a maneira como os serviccedilos entendem a
Reforma Psiquiaacutetrica e consequentemente como enxergam seu papel na rede Nesse ponto no
que compete ao SAMU fica clara a desorientaccedilatildeo desse serviccedilo no seu papel diante das crises
Na verdade eu sempre fui contra o Samu atender esse tipo de chamado Eu acho que
deveria existir um setor no hospital psiquiaacutetrico aqui de Natal responsaacutevel por isso
(Entrevistado 2) (BONFADA ET AL 2013 1307)
O Samu natildeo deveria fazer esse serviccedilo acho que deveria ser a poliacutecia militar
(Entrevistado13) (ibidem 1307)
86
Muitas vezes o doente psiquiaacutetrico corre muito mais risco porque a nossa rotina eacute
deixar em segundo plano a urgecircncia psiquiaacutetrica (Entrevistado 1) (ibidem 1308)
No que diz respeito agrave concepccedilatildeo que os profissionais possuem acerca da Reforma
Psiquiaacutetrica os entrevistados parecem acreditar que trata-se de uma Poliacutetica Puacuteblica restrita ao
campo juriacutedico e burocraacutetico poreacutem sem muitas implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos
A Poliacutetica Nacional de sauacutede mental eacute perfeita no papel na praacutetica natildeo estaacute
funcionando e para funcionar vai ser muito difiacutecil (E10)
Para ser muito franca ateacute agora na praacutetica natildeo vi essa reforma acontecer Natildeo acredito
natildeo nessa reforma (E7)
Na maioria das vezes isso natildeo funciona esse negoacutecio de CAPS e tudo mais porque
o proacuteprio paciente natildeo vai aiacute a famiacutelia tambeacutem natildeo tem como levaacute-lo a forccedila Entatildeo
isso aiacute natildeo taacute dando muito resultado natildeo Talvez fosse o caso de fazer o proacuteprio CAPS
mesmo como uns hospitais psiquiaacutetricos (E3)
Esse paciente quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial acaba
negligenciando o proacuteprio tratamento Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em
um hospital internado seria muito mais eficaz pois eacute um tratamento continuado
(E20) (inserir ref ndash as falas dos entrevistados aparecem assim todas juntas Se for
basta a ref ao final ndash autor ano paacutegina) ( BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2013230-231)
A falta de conhecimento sobre o papel dos serviccedilos substitutivos aleacutem das criacuteticas agrave
Reforma Psiquiaacutetrica e as sugestotildees de internaccedilatildeo dos pacientes satildeo fortes indiacutecios de que o
modelo hospitalocecircntrico concebido pela Psiquiatria Claacutessica ainda permanece vivo no ideaacuterio
desses profissionais como referecircncia de qualidade da assistecircncia em sauacutede mental A ideia de
que a RPB eacute perfeita no papel mas que na praacutetica natildeo funciona revela um entendimento
bastante ingecircnuo de que as poliacuteticas por si soacute teriam o efeito de mudar a assistecircncia quando os
profissionais continuam agindo orientados pela loacutegica manicomial
Uma ferramenta que tem sido apontada como capaz de construir e fortalecer a
integralidade da rede e a coordenaccedilatildeo do cuidado eacute o apoio matricial O apoio matricial pode
se dar via CAPS ou via NASF contribuindo para ampliar a resolutividade da Atenccedilatildeo Baacutesica
favorecendo a prevenccedilatildeo dos casos de crise e diluindo a centralidade do CAPS nos casos de
sauacutede mental
Considerando que um dos fortes obstaacuteculos dos CAPS eacute o centramento em si mesmos
fenocircmeno identificado na IV Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental e denominado
ldquoencapsulamentordquo
Ao articular rede o apoio matricial se inclina contra o ldquoencapsulamentordquo e esse tipo
de substituiccedilatildeo total produzindo um efeito reorganizador das demandas de sauacutede
mental na rede com melhor distribuiccedilatildeo e adequaccedilatildeo dos usuaacuterios dentro dos pontos
de assistecircncia em sintonia com suas demandas evitando que todas elas sejam
dirigidas ao CAPS superlotando-o Possibilitando melhor compreensatildeo e
diferenciaccedilatildeo das situaccedilotildees que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem
ser acolhidas eou acompanhadas pela ESF como refletem Bezerra e Dimenstein o
87
matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistecircncia em sauacutede mental
(LIMA DIMENSTEIN 2016 629)
Segundo Lima e Dimenstein (2016) a ESF tem meios de ldquo[] interferir em situaccedilotildees
que transcendem a especificidade do setor sauacutede e tecircm efeitos determinantes sobre as condiccedilotildees
de vida e sauacutede dos indiviacuteduos famiacutelias-comunidaderdquo (ibidem 65) Considerando sua
proximidade com o territoacuterio a ESF eacute um importante recurso na identificaccedilatildeo dos casos de crise
que natildeo chegam aos serviccedilos podendo oferecer atraveacutes do apoio matricial em sauacutede mental o
suporte e o encaminhamento para serviccedilos mais complexos quando necessaacuterio
Outra ferramenta importante na construccedilatildeo da integralidade das redes sobretudo das
redes que vatildeo para aleacutem dos serviccedilos de sauacutede eacute a praacutetica de Acompanhamento Terapecircutico
O AT tem a missatildeo de resgatar a cidadania e o direito de usufruir da vida em casos de pessoas
que foram sistematicamente excluiacutedas da sociedade devido ao seu processo de adoecimento
Sua atuaccedilatildeo visa promover a autonomia do sujeito ampliando sua circulaccedilatildeo pelo territoacuterio e
tecendo redes de cuidado que contam tambeacutem com dispositivos de cultura e lazer
Segundo Fiorati e Saeki (2008) o AT
por ser uma praacutetica cliacutenica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaccedilos
institucionais e tradicionais de tratamento e ser realizada sobretudo nos espaccedilos
puacuteblicos no ambiente domiciliar e social do paciente representaria um caminho
potencial de inserccedilatildeo em redes sociais e movimento de inclusatildeo social (ibidem 764)
Na pesquisa citada acima o AT atuou como um intercessor entre o espaccedilo de cuidado
proporcionado pelos serviccedilos e os dispositivos terapecircuticos do territoacuterio O cuidado se deu nos
serviccedilos mas tambeacutem na vida na rua atraveacutes de cursos de jardinagem desenho capacitaccedilatildeo
profissional parceria com associaccedilotildees culturais escolas e outros (FIORATI SAEKI 2008)
A produccedilatildeo de sauacutede atraveacutes dos dispositivos do territoacuterio tambeacutem aparece na pesquisa
de Conte et al (2015) no caso da senhora que buscou ajuda na associaccedilatildeo de seu bairro
Entretanto foram apontadas poucas iniciativas em nosso estudo que apostassem nos recursos
fora do setor sauacutede como possibilidade de estabilizaccedilatildeo de quadros graves Fica clara nesse
sentido a baixa integraccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e a rede intersetorial territorial sendo
este um dos principais desafios na construccedilatildeo da integralidade do cuidado
Em suma podemos observar que ainda haacute um longo caminho na construccedilatildeo de redes
que possam oferecer de fato algum amparo aos sujeitos em crise A falta de recursos certamente
figura como um dos fatores que impotildee barreiras de acesso ao cuidado motivando muitas vezes
que os profissionais usem seus proacuteprios recursos para garantir a efetividade do tratamento (usar
88
o carro proacuteprio para fazer VD deslocar-se entre um serviccedilo e outro usando recursos proacuteprios
etc)
Somando-se aos aspectos mencionados embora os serviccedilos de sauacutede mental se
proponham a realizar um cuidado extremamente complexo e diversificado funcionam em sua
maioria apenas nos horaacuterios comerciais (de segunda a sexta de 8 agraves 17h) Desse modo ldquodiante
dessa configuraccedilatildeo restrita torna-se pouco provaacutevel que de fato sejam esgotadas todas as
possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internaccedilatildeo
integral tal como prevecirc a Lei da Reforma Psiquiaacutetrica Lei nordm 10216 2001rdquo (Brasil 2004)
Vemos que as possibilidades de superaccedilatildeo desse cenaacuterio ainda partem muitas vezes de
um esforccedilo individual dos trabalhadores em produzir cuidado Diante da falta de CAPS III por
exemplo alguns CAPS II tem se organizado para funcionar em horaacuterio estendido realizando
uma escala no serviccedilo e evitando assim encaminhar o usuaacuterio para internaccedilatildeo Outra alternativa
apontada eacute o acolhimento diurno no CAPS II e o noturno no Hospital Geral eou Hospital
Psiquiaacutetrico evitando a permanecircncia integral na internaccedilatildeo (MARTINI CORACINE 2016)
Entretanto esse tipo de arranjo ainda eacute incipiente e depende em boa medida da ldquoboa vontaderdquo
dos trabalhadores visto que natildeo eacute uma poliacutetica institucionalizada de cuidado e natildeo haacute portanto
recursos previstos para esses deslocamentos
Tendo em vista essa conjuntura eacute possiacutevel perceber que a constituiccedilatildeo de uma rede de
serviccedilos integral e resolutiva nos casos de crise ainda eacute muito fraacutegil A fragmentaccedilatildeo na
comunicaccedilatildeo entre os serviccedilos a dificuldade do compartilhamento dos casos oficinas e grupos
riacutegidos e burocratizados compreensotildees deturpadas e reducionistas acerca do movimento da
Reforma Psiquiaacutetrica baixa articulaccedilatildeo intersetorial e territorial aleacutem de limitaccedilotildees estruturais
dos serviccedilos (ausecircncia de carro institucional baixo nuacutemero de CAPS III deacuteficits de equipe etc)
tem contribuiacutedo para que o hospital permaneccedila vivo e seja o ponto de escoamento de todas
essas dificuldades
Podemos citar como um exemplo dessa problemaacutetica os pacientes ldquorevolving doorrdquo7
nos hospitais psiquiaacutetricos Muitos deles fazem tratamento em algum dispositivo da rede
substitutiva no entanto continuam retornando ao hospital ainda que pontualmente com certa
frequecircncia o que remete as fragilidades da rede jaacute mencionadas anteriormente
7 O termo vem da expressatildeo inglesa ldquoporta-giratoacuteriardquo e eacute usado na sauacutede mental para se referir aos pacientes que
internam de forma recorrente poreacutem em internaccedilotildees curtas
89
Vale lembrar que o hospital se constituiu historicamente como uma soluccedilatildeo para o
problema da loucura na sociedade e mesmo havendo um esforccedilo em deslocar certas categorias
e conceitos no sentido de incluir a loucura no social a institucionalizaccedilatildeo ainda eacute
frequentemente a primeira resposta agraves situaccedilotildees de crise especialmente quando a rede natildeo
encontra meios para responder suas demandas no modelo substitutivo
90
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como foi dito na introduccedilatildeo nosso objetivo com esse estudo foi analisar as fragilidades
e potencialidades na organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto
do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica Consideramos que uma rede forte e bem articulada atua
como um fator de mudanccedila dos itineraacuterios dos usuaacuterios dos hospitais psiquiaacutetricos para os
serviccedilos territoriais No entanto o inverso tambeacutem acontece as fragilidades e insuficiecircncias
da rede tambeacutem contribuem para hospitalizaccedilotildees desnecessaacuterias
Sendo assim olhar para a forma como a crise tem sido acolhida na RAPS pode dar
indiacutecios importantes de como estamos nos posicionando no processo de construccedilatildeo da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira uma vez que costuma ser na falta de uma resposta efetiva da rede
substitutiva nos casos de crise que se recorre a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica
Atraveacutes de nosso referencial teoacuterico analisando o desenvolvimento da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira no plano assistencial percebemos avanccedilos importantes no que se
destaca a reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do
nuacutemero de CAPS e a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na
atenccedilatildeo comunitaacuteria e territorial Entretanto a insuficiecircncia de CAPS III e a permanecircncia de
grandes parques manicomiais no paiacutes indicam que ainda satildeo necessaacuterios grandes esforccedilos para
se superar o modelo manicomial
Pensando sob a luz das contribuiccedilotildees de Basaglia (1985) entendemos que a
permanecircncia dos manicocircmios natildeo se deve apenas a um descompasso entre o avanccedilo da rede
substitutiva e o fechamento dos hospitais psiquiaacutetricos mas tambeacutem a presenccedila ainda
expressiva da loacutegica manicomial nos discursos e praacuteticas em relaccedilatildeo agrave loucura
Sendo assim eacute preciso considerar que a Reforma Psiquiaacutetrica natildeo se restringe apenas as
mudanccedilas assistenciais nos serviccedilos de sauacutede mental mas a uma mudanccedila mais ampla no
processo de compreender e lidar com a loucura na sociedade
Ao longo da histoacuteria da sociedade a loucura jaacute teve diversos signos e significados
figurando desde um estado de sabedoria ligado ao profeacutetico a estados de possessatildeo demoniacuteaca
bruxaria e revolta social Entretanto eacute somente a partir do seacuteculo XVIII com o advento da
Psiquiatria que ela passa a ser compreendida enquanto doenccedila mental e a ser enclausurada e
excluiacuteda em instituiccedilotildees de tratamento
91
Com a emergecircncia da Reforma Psiquiaacutetrica inicia-se um movimento de transformaccedilatildeo
do lugar social da loucura atribuindo-lhe um estatuto que vai aleacutem da sintomatologia
psicopatoloacutegica e afirma a loucura enquanto um modo de ser no mundo Na conjuntura atual
eacute possiacutevel perceber que vivenciamos um momento de ruptura epistemoloacutegica em que os saberes
defendidos pela Reforma e o saber biomeacutedico natildeo se anulam mas convivem lado a lado se
alternando e disputando espaccedilo nos diversos pontos da RAPS
Eacute com base nessa dicotomia de saberes que proponho essa revisatildeo bibliograacutefica
Entendendo que os modos de compreender a crise e a loucura incidem na construccedilatildeo de nossas
ofertas de cuidado e no modelo de tratamento uma primeira questatildeo que se coloca eacute Quais satildeo
os sentidos de crise e de que maneira esses sentidos reverberam na produccedilatildeo de cuidado
A partir da revisatildeo da literatura estudada no primeiro capiacutetulo ldquoOs sentidos da criserdquo
identificamos trecircs eixos temaacuteticos que se desdobraram em categorias de anaacutelise satildeo eles
ldquoCrise como Ameaccedila Social Periculosidade e Riscordquo ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo
e ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
No primeiro eixo ldquoa crise como ameaccedila socialrdquo as vivecircncias da crise aparecem
marcadas por comportamentos hostis e intimidadores O risco envolvido se transmite para os
profissionais no campo das praacuteticas como uma necessidade constante de monitoramento
vigilacircncia e controle A agressividade dos sintomas eacute combatida com intervenccedilotildees igualmente
violentas sendo praacuteticas comuns a contenccedilatildeo fiacutesica medicamentosa e ateacute mesmo o uso da forccedila
policial como formas de reprimir o sujeito e estabelecer a ordem no serviccedilo
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade A agressividade eacute vista
como um sintoma isolado iacutendice de ameaccedila e risco Alguns profissionais acreditam que a
presenccedila da poliacutecia nas intervenccedilotildees eacute necessaacuteria para ldquoimpor respeitordquo como se as crises se
tratassem de manifestaccedilotildees voluntaacuterias Outros trabalhadores parecem perceber o paciente em
crise como um ldquocontraventorrdquo ldquoperturbador da ordem socialrdquo ldquomarginalrdquo e ateacute mesmo
enquanto um ldquoanimalrdquo mencionando palavras como ldquoprenderrdquo e ldquoamansarrdquo ao referir-se a
abordagem ao paciente
Muitas vezes a poliacutecia tambeacutem eacute acionada como forma de ldquodar proteccedilatildeordquo aos
profissionais que se sentem com medo e despreparados para acolher a crise Entretanto os
profissionais reconhecem que a poliacutecia tambeacutem natildeo sabe lidar com o paciente psiquiaacutetrico e
que eacute ainda mais despreparada
92
No segundo eixo a ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo a peculiaridade dos
sintomas que emergem na crise e o estigma social relacionado a eles satildeo compreendidos
enquanto iacutendice da emergecircncia de uma doenccedila ou de anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida como a vergonha o medo de ter novas crises o medo de circular
pelo territoacuterio e de fazer amizades Percebemos que esse significado apareceu especialmente
nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da primeira crise
mas tambeacutem se fez presente em estudos com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees e
que viveram com isso muitas perdas dos seus viacutenculos afetivos sociais e laborativos
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede
No terceiro eixo ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
encontramos experiecircncias relatos e situaccedilotildees que apontaram para outros modos de lidar com a
crise e com a loucura natildeo como marco de uma doenccedila limitante mas como uma experiecircncia
uacutenica e singular que traz em si uma necessidade imperiosa e urgente de reconstruccedilatildeo de
sentidos
Os usuaacuterios relataram caminhos estrateacutegias e ferramentas que permitiram a construccedilatildeo
de um outro modo de lidar com a crise e com seus sintomas Os profissionais retrataram
situaccedilotildees em que foi possiacutevel recolocar-se diante da crise e vecirc-la como um evento analisador
de suas praacuteticas bem como da vida daqueles sujeitos
Em um dos casos o usuaacuterio vinha pedindo haacute muito tempo para sair da casa onde
morava que era a casa onde vivia com os pais antes do falecimento dos mesmos e onde tinha
muitas recordaccedilotildees A partir do seu movimento de crise ldquoa famiacutelia entendeu que era mais do
que quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil E aiacute acabou que ele conseguiu
alugar a casa delerdquo (COSTA 2007 102 grifo do autor)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado na histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social relacional e
habitacional Ela eacute uma resposta a uma situaccedilatildeo que haacute muito tempo jaacute estava insustentaacutevel A
crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um evento analisador que ldquoestabelece uma urgecircncia
de realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (ibidem 103)
93
Em outra situaccedilatildeo a crise aparece enquanto um pedido de ajuda
Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o sobrinho dele morreu
assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver com uma situaccedilatildeo que
ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele continuou trabalhando
na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de trabalho E eu me lembro
que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele tirar todos os documentos
E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do nascimento dele e ele me
mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e nasceu e contou histoacuteria
A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com ele porque ele explodiu[]
E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos de novo E a gente entendeu
que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia muito que a gente o ajudasse
Os documentos eu acho que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que
ele acabou entre aspas perdendo (COSTA 2007 105)
Vemos entatildeo que os modos de produzir cuidado se tecem junto com o sujeito que vai
recontando sua histoacuteria atraveacutes dos elementos que fazem parte de seu cotidiano como o
territoacuterio suas relaccedilotildees sociais seu trabalho seu mundo Assim a produccedilatildeo de cuidado
acontece onde a vida do sujeito estaacute no parque da catacumba na cantina na retirada dos
documentos porque foi preciso destruir uma parte de sua histoacuteria para reconstruiacute-la depois
Trata-se de considerar a crise como um movimento vaacutelido que expressa o sofrimento do sujeito
e sua necessidade de construir e habitar outros territoacuterios existenciais para si
Nosso segundo objetivo especiacutefico diz respeito as praacuteticas de cuidado e se expressa nas
seguintes perguntas Quais satildeo as principais dificuldades do acolhimento agrave crise Quais satildeo as
nossas principais ferramentas cliacutenicas
Como desafios identificamos o acolhimento burocratizado e frio que se expressa
muitas vezes como uma mera triagem do paciente o cuidado orgacircnico centrado nos
procedimentos fiacutesicos e na figura do meacutedico o mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo
o despreparo para abordar e lidar com o paciente em crise que muitas vezes justifica o uso de
medidas violentas o preconceito e do julgamento moral especialmente em relaccedilatildeo aos casos
de usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas e por fim o diagnoacutestico apressado a conduta extremamente
teacutecnica e desumana
Como potencialidades identificamos a aposta no encontro no viacutenculo na escuta
qualificada e no diaacutelogo o pronto-atendimento (a disponibilidade de prestar o cuidado no
momento em que ele eacute necessaacuterio) as visitas domiciliares e a intervenccedilatildeo dentro do contexto
de vida do sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) a revisatildeo do PTS (Projeto
Terapecircutico Singular) o trabalho multidisciplinar e a abordagem conjunta especialmente nos
casos onde pode haver riscos aos profissionais
94
Nosso terceiro objetivo especiacutefico buscou refletir sobre a as formas de organizaccedilatildeo da
rede e se resumem em torno das seguintes perguntas Como os serviccedilos tecircm se organizado para
responder agraves demandas de crise Quais satildeo os desafios que o acolhimento agrave crise na rede
substitutiva nos coloca
Identificamos que o acolhimento agrave crise eacute um dos principais noacutes criacuteticos na organizaccedilatildeo
e na integralidade da rede de cuidados A articulaccedilatildeo entre os serviccedilos ainda se mostra bastante
fragmentada sendo a maior parte dos encaminhamentos feitos de modo apressado sem a devida
discussatildeo sobre o caso (encaminhamentos por escrito ou via telefone) O acompanhamento dos
serviccedilos de referecircncia aos casos mais graves durante a internaccedilatildeo eacute bastante raro havendo uma
certa expectativa de que o hospital se ocupe dos casos mais graves e da crise e que o usuaacuterio
retorne ao serviccedilo de referecircncia quando estabilizado
Diante das dificuldades colocadas na crise psicoacutetica os profissionais tendem a fazer
encaminhamentos irrefletidos ao hospital esperando uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
Nota-se que a justificativa para esse encaminhamento passa muitas vezes pelo fato do hospital
ter mais ldquorecursos materiaisrdquo aleacutem de mecanismos de ldquocontrolerdquo e ldquomonitoramentordquo dos casos
Ressaltamos que o apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises
leves podem ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o
hospital direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima
absolutamente o papel do CAPS frente agrave crise
Quanto ao entendimento da Reforma Psiquiaacutetrica na rede nossos resultados dialogam
com as reflexotildees levantadas em nosso marco teoacuterico natildeo haacute uma compreensatildeo uniforme sobre
esse processo e os profissionais mostram-se tanto identificados com a loacutegica manicomial
quanto com alguns pressupostos da RP e do novo modelo de cuidado Alguns profissionais
tambeacutem mostram entender a RP como uma mera mudanccedila administrativajuriacutedica sem muitas
implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos o que reafirma papeacuteis engessados e fluxos
burocratizados nos serviccedilos contribuindo para que o hospital continue sendo a porta de entrada
e o destino da maior parte dos casos de crise acolhidos na rede
Enquanto desafios nesse processo ressaltamos a demora para conseguir iniciar um
tratamento a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se estabelecer uma classificaccedilatildeo
de risco na lista de espera o deacuteficit de profissionais inadequaccedilotildees na estrutura fiacutesica que
prejudicam o acesso de pessoas com necessidades especiais e de atividades grupais
insuficiecircncias de equipamentos ofertas de cuidado riacutegidas e padronizadas fragmentaccedilatildeo da
95
equipe no processo de trabalho em dias e turnos especiacuteficos da semana fragmentaccedilatildeo nas
relaccedilotildees entre os serviccedilos fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre a RAPS e a rede intersetorial e
territorial
Destacamos que as iniciativas de superaccedilatildeo dessas fragilidades ainda se concentram
muito nos esforccedilos individuais dos trabalhadores havendo pouco investimento puacuteblico em
oferecer os recursos miacutenimos para se acolher a crise de acordo com os ideais da RP
Identificamos por outro lado como ferramentas importantes na tessitura e no fortalecimento
das redes de cuidado a praacutetica do AT e do apoio matricial que podem oferecer um espaccedilo de
cuidado mais proacuteximo ao territoacuterio e agrave rede intersetorial
Por fim frisamos como limitaccedilotildees desse estudo o fato de nossa revisatildeo bibliograacutefica se
ater somente a artigos cientiacuteficos de modo que algumas dissertaccedilotildees que poderiam agregar um
significado mais profundo a certos temas foram excluiacutedas na nossa seleccedilatildeo Tambeacutem foi um
recorte dessa pesquisa o cuidado agrave crise no contexto brasileiro permanecendo enquanto questatildeo
quais satildeo as possiacuteveis contribuiccedilotildees ao nosso tema no contexto internacional
Como potencialidades dessa pesquisa destacamos a produccedilatildeo de conhecimento teoacuterico
sobre o tema a ampliaccedilatildeo do debate aos profissionais da rede de sauacutede mental e a identificaccedilatildeo
e problematizaccedilatildeo dos pontos de fragilidade e potencialidades no processo de construccedilatildeo da
RPB
96
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Vozes 2003
VAINER A Demanda e utilizaccedilatildeo do acolhimento noturno em Centro de Atenccedilatildeo
Psicossocial III na cidade do Rio de Janeiro2016
WILLRICH J Q ET AL Periculosidade versus cidadania os sentidos da atenccedilatildeo agrave crise nas
praacuteticas discursivas dos profissionais de um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Physis (Rio J)
21(1) 47-64 2011
WILLRICH J Q ET AL Os sentidos construiacutedos na atenccedilatildeo agrave crise no territoacuterio o Centro de
Atenccedilatildeo Psicossocial como protagonista Rev Esc Enferm USP 47(3) 657-663 jun 2013
YASUI S Rupturas e encontros desafios da reforma psiquiaacutetrica brasileira Rio de Janeiro
Fiocruz 2010
ZEFERINO M T ET AL Percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre o cuidado agraves crises na
Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial Esc Anna Nery Rev Enferm 2016
Rebecca Dorneles Roquette
A atenccedilatildeo agrave crise em sauacutede mental refletindo sobre as praacuteticas a organizaccedilatildeo do cuidado e os
sentidos da crise
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sauacutede Puacuteblica da Escola
Nacional de Sauacutede Puacuteblica Seacutergio Arouca
Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz como requisito
parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em
Sauacutede Puacuteblica na aacuterea de concentraccedilatildeo
Poliacuteticas Planejamento Gestatildeo e Praacuteticas em
Sauacutede
Orientadora Tatiana Wargas de Faria Baptista
Rio de Janeiro
2019
Rebecca Dorneles Roquette
A atenccedilatildeo agrave crise em sauacutede mental refletindo sobre as praacuteticas a organizaccedilatildeo do cuidado e os
sentidos da crise
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sauacutede Puacuteblica da Escola
Nacional de Sauacutede Puacuteblica Seacutergio Arouca
Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz como requisito
parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em
Sauacutede Puacuteblica na aacuterea de concentraccedilatildeo
Poliacuteticas Planejamento Gestatildeo e Praacuteticas em
Sauacutede
Aprovado em 03072019
Banca Examinadora
Prof Dr Maria Paula Cerqueira Gomes
Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psiquiatria da UFRJ
Prof Dr Lilian Miranda
Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Sergio Arouca - ENSPFiocruz
Profordf Dra Tatiana Wargas de Faria Baptista (Orientadora)
Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Sergio Arouca - ENSPFiocruz
Rio de Janeiro
2019
AGRADECIMENTOS
A conclusatildeo de um Mestrado natildeo eacute tarefa faacutecil Tendo esse trabalho se ocupado
fundamentalmente do tema do cuidado natildeo poderia deixar de agradecer agrave todos aqueles que
contribuiacuteram e tornaram possiacutevel a realizaccedilatildeo desse estudo Sendo assim eu agradeccedilo
Aos meus pais que sempre me apoiaram e me incentivaram na minha trajetoacuteria
profissional Agrave minha matildee por ter sonhado acreditado e vibrado com todas as minhas
conquistas Ao meu pai pelas conversas e pelo interesse em minhas questotildees
Agrave minha avoacute Helena por ter sido uma mulher agrave frente de seu tempo e por ter me
inspirado nas minhas escolhas ateacute aqui
Agrave Victor Gonccedilalves pelo suporte pelo carinho pelo amor inesgotaacutevel Por ter
compreendido e aceitado as mudanccedilas de planos e rotinas necessaacuterias para que eu concluiacutesse
esse processo pelas diversas vezes em que emprestou a casa para que eu me concentrasse
melhor
Agrave Nataacutelia Fortes pela longa amizade pela fraternidade pela confianccedila
Agrave David Llanos por ter rezado por mim acreditado nessa conquista e na tatildeo sonhada
comemoraccedilatildeo com todas as ldquochiquitissesrdquo
Aos meus amigos de faculdade em especial agrave Luacutecia Scarlati Karine Alane Karina
Lang e Aline Martins que sempre me acompanham com amoras e com amor
Agrave Fernanda Resende um presente que apareceu na minha vida Amiga forte e
companheira parceira na sauacutede mental e na vida
Agrave minha orientadora Tatiana Wargas pela disponibilidade pela paciecircncia com meus
atrasos pela leitura carinhosa pelos apontamentos e contribuiccedilotildees certeiras
Agrave professora Maria Paula Cerqueira a quem eu muito admiro pela forccedila e delicadeza
de suas contribuiccedilotildees nas aulas e EPacutes durante o periacuteodo de residecircncia e na minha banca de
conclusatildeo de curso Seguiu me inspirando durante a escrita desse trabalho e agora novamente
aceitou carinhosamente o convite para fazer parte desta banca
Agrave professora Lilian Miranda membro dessa banca que me deu aula e compartilha do
interesse pelo campo da sauacutede mental Esse trabalho conta com seus artigos e certamente com
muito de sua inspiraccedilatildeo
Agrave Martinho Silva e Gustavo Correa Matta agradeccedilo pela disponibilidade pela leitura e
pelo interesse em aceitar o convite para compor essa banca
Agrave Flaacutevia Fasciotti minha professora e eterna tutora da Residecircncia Sempre estaraacute
presente em todos os passos da minha formaccedilatildeo
Aos meus amigos de turma do Mestrado agradeccedilo imensamente pelo companheirismo
pela forccedila pelo carinho com que vivemos esse processo
Aos amigos da turma de Residecircncia em especial a Isabel Kraml Flavia Azevedo Thais
Beiral Andressa Ferreira Clara Andrade que estiveram sempre por perto e que compartilham
comigo o amor pela sauacutede mental
Agrave Guilherme Cacircndido Aline de Alvarenga Lais Macedo Juliane Lessa Jackson
Machado colegas e parceiros na sauacutede mental Aos pacientes que me encantaram
surpreenderam e me ensinaram tanto nesse caminho
Aos amigos Alexandre Rinaldi Thaiacutes Helena Veloso Mayara Ribeiro Jessica Aguillar
Tiago Nunes Iasmin Rocha e outros
A minha analista Tatiane Grova pelo acolhimento e pela leveza que permitiu com que
eu sustentasse esse processo
Agrave ENSP e a FIOCRUZ pela oportunidade de poder avanccedilar na minha formaccedilatildeo estudar
e contribuir para a produccedilatildeo de conhecimento no campo
A CAPES pelo financiamento agrave esta pesquisa e a possibilidade de tornaacute-la realidade
RESUMO
Essa dissertaccedilatildeo teve como objeto o cuidado agraves pessoas em situaccedilatildeo de crise na Rede de
Atenccedilatildeo Psicossocial Atraveacutes de um estudo de revisatildeo bibliograacutefica de 21 artigos cientiacuteficos
buscamos identificar como a crise tem sido acolhida nos serviccedilos de sauacutede No que se refere agraves
praacuteticas de cuidado interessa-nos saber quais satildeo as principais dificuldades e ferramentas
cliacutenicas que os profissionais encontram no manejo das situaccedilotildees de crise Entendendo que a
Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo que ainda estaacute em andamento e que depende
fundamentalmente de como os serviccedilos se organizam e se articulam de maneira a compor uma
rede de cuidados que possa substituir o Hospital Psiquiaacutetrico coloca-se tambeacutem a questatildeo de
quais satildeo as principais dificuldades que os serviccedilos encontram para sustentar o acolhimento da
crise no territoacuterio e quais os possiacuteveis caminhos para superaacute-las na direccedilatildeo de um cuidado em
liberdade
Palavras chaves crise sauacutede mental praacuteticas de cuidado RAPS serviccedilos de sauacutede
ABSTRACT
This dissertation had as object the care of people in situation of crisis in the Network of
Psychosocial Attention Through a bibliographical review study of 21 scientific articles we
sought to identify how the health services deals with pacient crisis Regarding to care practices
we are interested in the main difficulties and clinical tools that professionals find in the
management of crisis situations Understanding that the Psychiatric Reform is a process that is
still in progress and depends fundamentally on how services are organized and articulated in
order to create a network of care that can replace the Psychiatric Hospital arises the concern
of what are the main difficulties that the health services faces to provide the care of the crisis in
the territory and the possible ways to overcome them in the direction of care in freedom
Key words crisis mental health care practices Network of Psychosocial Attention
health services
LISTA DE GRAacuteFICOS
Graacutefico 1- Inversatildeo dos gastos (2002 a 2013) 30
Graacutefico 2- Seacuterie histoacuterica de Expansatildeo dos CAPS (2002 a 2014)31
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial por tipo UF e por indicador de CAPS100mil
habitantes (BRASILdez 2014)32
Quadro 2- Oferta de leitos de sauacutede mental em Hospitais Gerais (2014)34
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em CAPS III- Secretaria Municipal de Sauacutede do
Rio de Janeiro (setembro 2015)34
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB- Atenccedilatildeo Baacutesica
ACS- Agente Comunitaacuterio de Sauacutede
AP- Aacuterea Programaacutetica
AT- Acompanhamento Terapecircutico
CAPS- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial
CAPS II- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo II
CAPS III- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo III
CAPSad- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas
CAPSad III - Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas tipo III
CAPSi- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infantil
CF- Cliacutenica da Famiacutelia
ENSP- Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica
FIOCRUZ- Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz
IT- Itineraacuterio Terapecircutico
NASF- Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia
PNSM- Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental
RAPS- Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial
RPB- Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
SAMU- Serviccedilo Moacutevel de Urgecircncia
SRT- Residecircncia Terapecircutica
SUS- Sistema Uacutenico de Sauacutede
UBS- Unidade Baacutesica de sauacutede
VD- Visita Domiciliar
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
10 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA 16
11Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria 16
12A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira25
2 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL 34
21Reflexotildees sobre a Crise e o Cuidado em Sauacutede Mental34
22O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS39
3 METODOLOGIA 46
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA 49
41 Os Sentidos da Crise49
412 Crise como Ameaccedila Social Periculosidade e Risco50
413 Crise como Perda e Isolamento Social54
414 Crise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidos 58
42 Desafios e Potencialidades no Acolhimento agrave Crise64
43 Organizaccedilatildeo da Rede de Cuidados76
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS89
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS95
11
INTRODUCcedilAtildeO
Para o filoacutesofo Gilles Deleuze (1988) pensar natildeo eacute um exerciacutecio natural do ser humano
como costumamos acreditar no senso comum Tampouco se trata de um processo interior ou
subjetivo da ordem de uma reflexatildeo voluntaacuteria Pensamos a partir dos encontros mais insoacutelitos
quando algo nos irrompe agrave consciecircncia de maneira intempestiva e nos forccedila a pensar Pensar
nesse sentido eacute muito mais da ordem de um acontecimento do que da reflexatildeo
A abordagem tradicional da filosofia de Platatildeo agrave Kant tem na representaccedilatildeo o
fundamento do pensamento O conhecimento para esses autores se constroacutei a partir de um
julgamento criacutetico em busca da verdade Em seu livro Diferenccedila e Repeticcedilatildeo (1988) Deleuze
questiona essa tradiccedilatildeo filosoacutefica e sustenta a ideia de um pensamento que natildeo depende mais
de uma relaccedilatildeo com a verdade mas de uma relaccedilatildeo com a diferenccedila Conforme Sangiovanni a
partir da leitura de Deleuze ldquoeacute a partir do encontro com a diferenccedila que ocorre o pensamento
ou seja na relaccedilatildeo exterior natildeo hegemocircnica eacute que satildeo criadas as condiccedilotildees do pensarrdquo
(201386)
Para Deleuze haacute no encontro com a diferenccedila a forccedila de algo novo que necessariamente
nos tira do lugar e que impotildee a necessidade de pensar Nessa mesma linha de pensamento
Benetti destaca ldquoo que funda o pensamento eacute o encontro com algo violento Em outros termos
aquilo que mexe e que marca e portanto desencadeia a paixatildeo de pensarrdquo (DELEUZE 2010
95)
A crise em sauacutede mental tema desse trabalho surgiu para mim como objeto de reflexatildeo
exatamente no plano do concreto de algo que irrompe e se coloca de forma violenta a partir
da necessidade dos casos e do encontro real com o sofrimento do outro A crise fala de um
tempo in ato no aqui e agora que natildeo respeita nossas possibilidades de elaboraccedilotildees teoacutericas
preacutevias sobre o assunto e exige que estejamos inteiramente presentes e disponiacuteveis para o outro
no momento em que ele precisa
Eacute a partir dessa abertura inicial da possibilidade de ser pego de surpresa e mesmo assim
estar junto servindo de suporte para o sofrimento do outro se deixando afetar e marcar por essa
experiecircncia que algum caminho pode se dar Eacute um trabalho que soacute pode acontecer atraveacutes do
contato do encontro com o outro e da possibilidade de estar disponiacutevel para construir algo
juntos
12
A crise aponta para um momento em que as praacuteticas de cuidado e as antigas soluccedilotildees
que o sujeito podia engendrar para lidar com seu sofrimento psiacutequico de alguma forma natildeo
satildeo mais suficientes Segundo Knobloch (1998) a crise pode ser entendida como ldquoalgo
insuportaacutevel no sentido literal de natildeo haver suporte experiecircncia que nos habita como um
abismo de perda de sentido em que se perdem as principais ligaccedilotildeesrdquo (apud FERIGATO et al
2016 33) Algo se rompe algo se perde Natildeo eacute mais possiacutevel continuar a se viver da maneira
em que se estava anteriormente O que fazer
Essa ruptura com uma certa organizaccedilatildeo psiacutequica geralmente eacute entendida pelos
profissionais da sauacutede como algo negativo No entanto se tomamos a loucura e a crise que eacute a
radicalidade dessa ruptura como fenocircmenos de questionamento da ordem social e do status quo
da sociedade talvez possamos relanccedilar algumas perguntas e abrir outras possibilidades de
convivecircncia com a loucura
Apesar do sofrimento que estaacute ligado a vivecircncia da crise sua incidecircncia pode ser vista
como um evento analisador capaz de indicar a necessidade de uma mudanccedila nos modos do
sujeito se relacionar consigo mesmo com o seu tratamento e com o mundo agrave sua volta Assim
eacute precisamente nesse momento em que nada mais parece conseguir estabilizar um sujeito que
nos vemos obrigados a repensar nossas praacuteticas e ofertas de cuidado
Deslocar a perspectiva de compreensatildeo da loucura desse modo significa tomaacute-la em
sua dimensatildeo criativa no que ela traz de revolucionaacuterio e de produccedilatildeo de novos sentidos de
vida Isso implica em uma mudanccedila de atitude eacutetica e poliacutetica para com a loucura natildeo mais no
sentido de reprimi-la ou tentar a todo custo reestabelecer a normalidade perdida mas de aceitar
o movimento de crise como vaacutelido dentro da histoacuteria de vida daquelas pessoas e buscar o que
podemos construir a partir dele isto eacute o que ele pode nos sinalizar sobre as possibilidades de
vida daquele sujeito
Dessa forma algumas questotildees que pretendemos colocar com essa pesquisa satildeo Como
temos acolhido os sujeitos em crise na rede de atenccedilatildeo psicossocial Quais satildeo as principais
dificuldades nesse acolhimento Quais satildeo as nossas principais ferramentas cliacutenicas Quais satildeo
os desafios que o acolhimento agrave crise na rede substitutiva nos coloca Como pensar um
acolhimento agrave crise que natildeo seja apenas baseado na loacutegica de ldquoapagar incecircndiosrdquo Isto eacute que
outras formas de cuidado satildeo possiacuteveis para aleacutem da remissatildeo de sintomas Como trabalhar na
direccedilatildeo de um acolhimento que considere verdadeiramente o sofrimento do sujeito entendendo
a crise natildeo como um momento isolado de sua vida mas como parte de sua histoacuteria
13
Quanto aos aspectos macroestruturais que fundamentam esse trabalho haacute que se
ressaltar que a atenccedilatildeo agrave crise tem sido indicada na literatura como um dos principais desafios
para efetivaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica Embora tenha havido uma mudanccedila no modelo de
sauacutede orientada para um cuidado em liberdade alguns aspectos como a insuficiecircncia da
cobertura dos serviccedilos substitutivos no cenaacuterio local e nacional a baixa articulaccedilatildeo
intersetorial a fragmentaccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e os deacuteficits em relaccedilatildeo aos recursos
humanos e estruturais (BRASIL 2015) tecircm constituiacutedo grandes obstaacuteculos no que se refere a
capacidade dos serviccedilos de acolherem a crise no territoacuterio
No que tange ao cenaacuterio atual o SUS vem sofrendo um forte processo de desmonte
atraveacutes de poliacuteticas de Estado que ameaccedilam seu caraacuteter puacuteblico integral e universal Quanto ao
financiamento destaca-se a Emenda agrave Constituiccedilatildeo 952016 que estabelece um teto para as
despesas em sauacutede puacuteblica considerando o orccedilamento do ano anterior corrigido pela inflaccedilatildeo
sem o aumento real mesmo que haja crescimento econocircmico Isso significa que qualquer
aumento populacional mudanccedilas de perfil demograacutefico ou de quadro sanitaacuterio do paiacutes natildeo
seratildeo acompanhadas pelo incremento das ofertas em sauacutede devido ao congelamento dos gastos
ainda que as receitas tenham aumentado naquele ano Com isso ateacute mesmo a incorporaccedilatildeo de
avanccedilos tecnoloacutegicos fica comprometida contribuindo para ampliar a defasagem do sistema
puacuteblico de sauacutede em relaccedilatildeo aos atendimentos oferecidos pela iniciativa privada
Quanto aos aspectos legislativos e institucionais a recente Nota Teacutecnica 112019
institui uma seacuterie de mudanccedilas que implicam em graves retrocessos na rede assistencial Na
Poliacutetica de Aacutelcool e Outras Drogas o documento confirma o abandono da estrateacutegia de Reduccedilatildeo
de Danos uma abordagem que tem se mostrado eficaz e vem sendo utilizada em diversos
paiacuteses como Canadaacute Portugal Espanha Holanda e alguns estados dentro dos Estados Unidos
Aposta enquanto uacutenica modalidade de tratamento na abstinecircncia total a ser alcanccedilada por meio
internaccedilatildeo de longo prazo reconhecendo enquanto um dispositivo da Rede SUS as
Comunidades Terapecircuticas instituiccedilotildees majoritariamente religiosas focadas no isolamento e
nas praacuteticas religiosas
Quanto agrave organizaccedilatildeo dos serviccedilos os Hospitais Psiquiaacutetricos passam a ser
reconhecidos como parte da RAPS e os Hospitais Gerais ganham ldquoUnidades Psiquiaacutetricas
Especializadasrdquo com capacidade de ateacute 30 leitos para internaccedilotildees psiquiaacutetricas funcionando
como ldquominirdquo Hospitais Psiquiaacutetricos dentro dos Hospitais Gerais o que reproduz novamente a
loacutegica cronificante e alienadora do Hospital Outro ponto eacute a defesa da internaccedilatildeo de crianccedilas e
adolescentes contrariando ECA (Lei 8069 de 1990) Reforccedilamos que essas medidas aleacutem de
14
deslegitimarem o CAPS III como dispositivo privilegiado para o atendimento da crise
claramente contradizem a Poliacutetica de Desinstitucionalizaccedilatildeo e de descredenciamento e
fechamento de Hospitais Psiquiaacutetricos
Na Atenccedilatildeo Baacutesica no municiacutepio do Rio de Janeiro a poliacutetica de ldquoReestruturaccedilatildeo da
Atenccedilatildeo Baacutesicardquo e os cortes previstos na Lei Orccedilamentaacuteria de 2019 foram responsaacuteveis por um
processo de demissatildeo em massa que previa para o ano de 2019 um corte de 239 equipes no
municiacutepio - 184 de sauacutede da famiacutelia e 55 de sauacutede bucal gerando um total de 1400 demissotildees
Segundo levantamento do Nenhum Serviccedilo a Menos em 012019 jaacute haviam sido demitidos 479
servidores sendo a grande maioria deles Agentes Comunitaacuterios da Sauacutede Entre as
mobilizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores foram pautas tambeacutem os atrasos nos salaacuterios
a falta de insumos nas unidades e o descompromisso da Gestatildeo Municipal com o direito agrave
Sauacutede
Assim vecirc-se um avanccedilo preocupante de uma poliacutetica de Estado que visa sucatear a
sauacutede puacuteblica e vai de encontro aos ideais defendidos pela Reforma Sanitaacuteria e aos direitos
promulgados na Constituiccedilatildeo de 1988 que fazem referecircncia agrave sauacutede como direito social
universal garantido pelo Estado
Essas questotildees tornam-se especialmente importantes quando falamos da atenccedilatildeo agrave crise
pois a crise natildeo eacute apenas a crise do usuaacuterio (enquanto um sujeito isolado no mundo e no espaccedilo)
mas tambeacutem a crise do Estado das poliacuteticas puacuteblicas e especialmente das instituiccedilotildees
Desse modo torna-se imprescindiacutevel investir em pesquisas que apontem quais satildeo os
impasses que os profissionais de sauacutede encontram para atender as situaccedilotildees de crise nos serviccedilos
substitutivos e quais estrateacutegias satildeo necessaacuterias no plano micro e macropoliacutetico para mudar o
itineraacuterio dos usuaacuterios em crise do hospital para os serviccedilos substitutivos
Nesse sentido destacamos como objetivo geral deste estudo analisar as fragilidades e
potencialidades apontadas na bibliografia cientiacutefica para a organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da
assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica
Como objetivos especiacuteficos buscaremos
Problematizar as noccedilotildees de crise em sauacutede mental presentes na literatura
e suas repercussotildees para o cuidado
Identificar os desafios e potencialidades encontrados nas praacuteticas de
acolhimento agrave crise na RAPS
Refletir sobre a forma como os serviccedilos tecircm se organizado para responder
agraves demandas de crise
15
Com o intuito de alcanccedilar nossos objetivos realizamos uma pesquisa de revisatildeo
bibliograacutefica de artigos cientiacuteficos que tomaram com objeto os sentidos da crise as praacuteticas de
cuidado e a organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos na resposta agrave crise
Quanto agrave organizaccedilatildeo dessa dissertaccedilatildeo no primeiro capiacutetulo encontramos o referencial
teoacuterico que foi dividido em dois eixos principais No primeiro ldquoDo modelo asilar agraves Reformas
na Psiquiatriardquo retomamos a histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica no mundo explicitando como as
diversas concepccedilotildees de loucura e de crise presentes na sociedade foram responsaacuteveis pela
organizaccedilatildeo de diferentes modelos de cuidado No segundo ldquoA Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileirardquo vemos as repercussotildees da mudanccedila da loacutegica do cuidado no desenvolvimento da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e na reorganizaccedilatildeo da assistecircncia Para esse capiacutetulo usamos
os seguintes autores como referecircncia Foucault Amarante Tenoacuterio Caponi DellacuteAcqua e
Mezzina Birman e outros
No segundo capiacutetulo buscamos discutir mais agrave fundo o conceito de crise e suas relaccedilotildees
com as poliacuteticas de sauacutede no contexto do SUS Na primeira parte ldquoReflexotildees sobre a crise e
o cuidado em sauacutede mentalrdquo faremos uma retomada da origem etimoloacutegica do termo ldquocriserdquo
explicitando seus diversos significados A partir das reflexotildees de autores como DelacuteAcqua
Feriagato Bailarin Corbisier ressaltamos a crise em seu vieacutes criativo produtor de novas
possibilidades de vida Na segunda parte ldquoO Acolhimento agrave crise e a Organizaccedilatildeo do SUSrdquo
contextualizamos os desafios do atendimento agrave crise dentro da loacutegica do SUS A partir das
contribuiccedilotildees de Ceciacutelio (1997) expomos as contradiccedilotildees de um modelo idealizado de SUS
conforme preconizado pelas Poliacuteticas Puacuteblicas que na tentativa de regular todos os fluxos e
linhas de cuidado perde a proximidade com o sujeito e suas reais necessidades de sauacutede
O terceiro capiacutetulo se destina a apresentaccedilatildeo da metodologia utilizada seus aspectos
teoacutericos os caminhos percorridos na seleccedilatildeo dos artigos as bases utilizadas e os criteacuterios de
inclusatildeo de exclusatildeo dos artigos
O quarto capiacutetulo ldquoReflexatildeo e Discussatildeo da Literaturardquo concentra a revisatildeo dos artigos
No intuito de facilitar a anaacutelise dividimos esse capitulo em trecircs eixos conceituais ldquoos sentidos
da criserdquo ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo e a ldquoorganizaccedilatildeo da rede de
cuidadosrdquo
16
1 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA
11 Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria
Ateacute o seacuteculo XVIII na Europa a loucura natildeo era considerada uma doenccedila Ao longo da
histoacuteria a loucura jaacute teve diversos sentidos e explicaccedilotildees figurando desde algo ligado ao
sagrado e ao profeacutetico agrave possessatildeo demoniacuteaca Com a ascensatildeo da sociedade burguesa a
loucura jaacute tinha o estatuto de algo ldquoestranhordquo e junto com todos aqueles considerados
ldquoindesejaacuteveisrdquo agrave sociedade leprosos sifiliacuteticos aleijados mendigos etc comeccedila a ser
confinada nas entatildeo chamadas ldquocasas de internaccedilatildeordquo grandes instituiccedilotildees filantroacutepicas ou
religiosas que tinham como objetivo afastar a pobreza e a miseacuteria das ruas em uma grande
medida de higiene social Segundo Foucault
Estranha superfiacutecie a que comporta as medidas de internamento Doentes veneacutereos
devassos dissipadores homossexuais blasfemadores alquimistas libertinos toda
uma populaccedilatildeo matizada se vecirc repentinamente na segunda metade do seacuteculo XVII
rejeitada para aleacutem de uma linha de divisatildeo e reclusa em asilos que se tornaratildeo em
um ou dois seacuteculos os campos fechados da loucura (2002 116)
Esse periacuteodo histoacuterico eacute denominado pelo autor como a ldquoA Grande Internaccedilatildeordquo (2002)
fazendo alusatildeo ao fato de que a internaccedilatildeo natildeo era apenas para os loucos mas para toda a sorte
de indiviacuteduos que por algum motivo perturbavam a ordem social Esse periacuteodo se inscreve
desde o seacuteculo XVII ateacute o final seacuteculo XVIII e seu fim inaugura a emergecircncia da psiquiatria
enquanto ciecircncia (RIBEIRO PINTO 2011)
As ldquocasas de internaccedilatildeordquo natildeo tinham como objetivo a cura de enfermos ou a reabilitaccedilatildeo
dessas pessoas Eram verdadeiros depoacutesitos humanos lugares de exclusatildeo social da pobreza e
da miseacuteria produzidas pelos regimes absolutistas da eacutepoca Laacute permaneciam isolados e
esquecidos esperando a proacutepria morte
As primeiras casas surgiram nas regiotildees mais industrializadas do paiacutes como uma
alternativa para crise econocircmica atraveacutes da exploraccedilatildeo da matildeo de obra barata Segundo o
regulamento de uma das casas ldquoos internos devem trabalhar todos Determina-se o valor exato
de sua produccedilatildeo e daacute-se-lhes a quarta parte Pois o trabalho natildeo eacute apenas ocupaccedilatildeo deve ser
produtivordquo (FOUCAULT 2002 67)
Os loucos natildeo recebiam tratamento diferenciado em relaccedilatildeo aos outros pobres poreacutem
distinguiam-se pela ldquoincapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida
17
coletivardquo (FOUCAULT 2002 73) Assim comeccedila-se a se pensar a loucura como um caso agrave
parte uma vez que ela natildeo responde da mesma forma agraves demandas de produtividade
Com a expansatildeo industrial o pobre passa a ser necessaacuterio nas cidades logo natildeo podia
mais estar internado mas e o pobre e louco A quem caberia a responsabilidade de assistecircncia
dessas pessoas Aos poucos as casas de internaccedilatildeo foram mudando de figura
O poder exercido no interior dessas Instituiccedilotildees pertencia agrave Igreja e ao Estado mas
em funccedilatildeo das revoluccedilotildees francesa e industrial do surgimento de novos atores sociais
ndash a burguesia a classe meacutedia o proletariado - e do surgimento de uma nova
racionalidade na produccedilatildeo do conhecimento essas instituiccedilotildees vatildeo gradativamente se
transformando em instituiccedilotildees meacutedicas (BARRIacuteGIO 2010 18)
Em 1791 na Franccedila eacute decretada uma lei que responsabiliza as famiacutelias por vigiar seus
loucos evitando que eles fiquem ldquovagando na ruardquo ou cometam alguma ldquodesordemrdquo No
entanto para as famiacutelias mais pobres que natildeo tinham condiccedilotildees de assistir seus familiares
chegam vaacuterios pedidos de internaccedilatildeo ao Ministeacuterio do Interior Nesse cenaacuterio destacam-se
duas instituiccedilotildees que sob agrave eacutegide da Medicina comeccedilam a se configurar enquanto os primeiros
hospitais especializados no tratamento da loucura Bicecirctre para o puacuteblico masculino e
Salpetriegravere para o puacuteblico feminino (HENNA 2014)
Em 1792 o meacutedico Phillipe Pinel assumiu a direccedilatildeo do Hospital de Bicetrecirc em Paris
onde operou inuacutemeras transformaccedilotildees consideradas atualmente por alguns autores como a
primeira Reforma da Psiquiatria Pinel inspirado pelos ideais de igualdade fraternidade e
liberdade da Revoluccedilatildeo Francesa libertou os loucos das correntes aboliu teacutecnicas como ldquoa
imersatildeo em aacutegua gelada os golpes as sangrias e as torturasrdquo (CAPONI 2012 49) e combateu
o pensamento da eacutepoca que a loucura era um fenocircmeno de possessatildeo demoniacuteaca
A funccedilatildeo meacutedica eacute claramente introduzida em Bicecirctre trata-se agora de rever todos
os internamentos por demecircncia que foram decretados no passado E pela primeira vez
na histoacuteria do Hospital Geral eacute nomeado para as enfermarias de Bicecirctre um homem
que jaacute adquiriu certa reputaccedilatildeo no conhecimento das doenccedilas do espiacuterito a designaccedilatildeo
de Pinel prova por si soacute que a presenccedila de loucos em Bicecirctre jaacute eacute um problema meacutedico
(FOUCAULT 2002 464)
A Psiquiatria de Pinel teve como objetivo demarcar os precisos limites entre a
normalidade e a loucura Devem-se a ele os primeiros esforccedilos no sentido de separar e
classificar os diversos tipos de desvio ou alienaccedilatildeo mentalrdquo com o intuito de estudaacute-los e
trataacute-los Com Pinel a loucura comeccedila a ganhar o status de uma ldquodoenccedila mentalrdquo com
sintomatologia proacutepria que requer cura e tratamento
Em seu Traite Medico-Philosophique sur IAlienation Mentale Pinel (1801) afirma que
18
Os alienados longe de serem culpados a quem se deve punir satildeo doentes cujo
doloroso estado merece toda a consideraccedilatildeo devida a humanidade que sofre e para
quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razatildeo desviada (apud
PEREIRA 2004 114 grifo nosso)
Hegel inspirado pelos estudos de Pinel afirma que a loucura natildeo eacute uma perda total da
razatildeo mas a contradiccedilatildeo de uma razatildeo que ainda existe O alienado eacute portanto um ser em
contradiccedilatildeo consigo mesmo mas que preserva em algum lugar um ponto lucidez
O verdadeiro tratamento apega-se a concepccedilatildeo de que a alienaccedilatildeo natildeo eacute a perda
abstrata da razatildeo nem do lado da inteligecircncia nem do lado da vontade ou da sua
responsabilidade mas um simples desarranjo do espiacuterito uma contradiccedilatildeo na
razatildeo que ainda existe assim como a doenccedila fiacutesica natildeo eacute uma perda abstrata isto eacute
completa da sauacutede (isso seria a morte) mas eacute uma contradiccedilatildeo dentro dela Esse
tratamento humano isto eacute tatildeo benevolente quanto razoaacutevel da loucura pressupotildee que
o doente eacute razoaacutevel e aiacute encontra um soacutelido ponto para abordaacute-lo desse lado (HEGEL
apud FOUCAULT 1972 524 grifo nosso)
Sendo a alienaccedilatildeo um distuacuterbio das paixotildees no interior da proacutepria razatildeo e natildeo fora dela
o tratamento possiacutevel para a loucura era buscar reestabelecer a normalidade perdida Conforme
afirma Pinel (1801) ldquohaacute sempre um resto de razatildeo mesmo no mais alienado dos alienadosrdquo e
se haacute um resto de razatildeo para Pinel era possiacutevel resgataacute-la (apud CAPONI 2012 48)
Os meios propostos por Pinel para reestabelecer o equiliacutebrio do doente constituiacuteam no
que ele chamou de ldquotratamento moralrdquo O termo moral nesse sentido era usado para designar
aquilo que pertence ao espiacuterito em contraposiccedilatildeo ao que eacute fiacutesico Assim o tratamento moral
visava reeducar o ldquodoenterdquo no sentido de ldquocriar estrateacutegias para dominar as paixotildees e recuperar
a razatildeordquo (CAPONI 2012 53)
O chamado tratamento moral praticado pelos alienistas incluiacutea o afastamento dos
doentes do contato exterior com todas as influecircncias da vida social e de qualquer
contato que pudesse modificar o que era considerado o desenvolvimento natural da
doenccedila (PEREIRA 2004 114)
A estrateacutegia de isolamento praticada com o tratamento moral procurava manter distacircncia
das condiccedilotildees que Pinel acreditava terem contribuiacutedo para o desenvolvimento da doenccedila
Segundo seus estudos tratavam-se de elementos de ordem social e afetiva que ele relacionava
com certos tipos de alienaccedilatildeo mental
Existe uma marcada diferenccedila na frequecircncia de certas causas conforme as espeacutecies de
alienaccedilatildeo problemas domeacutesticos produzem mais frequentemente a mania uma
devoccedilatildeo muito exaltada determina a melancolia Um amor contrariado e infeliz parece
ser a fonte fecunda para duas espeacutecies de alienaccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo ao idiotismo os
estudos indicam que as causas fiacutesicas como um viacutecio de conformaccedilatildeo podem estar na
origem da maior parte dos casos (PINEL apud CAPONI 2012 48)
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Podemos ver que as ldquocausas moraisrdquo mais frequentes da alienaccedilatildeo satildeo experiecircncias
comuns a vida cotidiana ( amor contrariado problemas domeacutesticos devoccedilatildeo religiosa etc) que
poderiam ser revertidas com o tratamento atraveacutes da submissatildeo do doente a um ambiente de
controle onde seria possiacutevel dominar as paixotildees desenfreadas e os comportamentos
inadequados atraveacutes da ldquovoz da razatildeordquo representada pela figura do psiquiatra
Conforme Pinel
A terapecircutica da loucura eacute a arte de subjulgar e dominar por assim dizer o alienado
pondo-o em extrema dependecircncia de um homem que por suas qualidades fiacutesicas e
morais estaacute apto para exercer sobre ele um domiacutenio irresistiacutevel algueacutem capaz de
mudar a cadeia viciosa de suas ideacuteias (FOUCAULT 2003 apud CAPONI 2012 41)
Assim dois elementos mostram-se fundamentais para o sucesso do tratamento moral
isolamento e poder Por um lado a ideia de privar o doente do contato com as condiccedilotildees que
ocasionaram a sua doenccedila resulta no seu isolamento por outro a submissatildeo a um ambiente
riacutegido de regras firmes e incontestaacuteveis seria o fator imprescindiacutevel para exercer o controle das
paixotildees
A proacutepria organizaccedilatildeo do espaccedilo e das rotinas do ambiente asilar eram pensadas de
modo que a disciplina do ambiente pudesse se refletir tambeacutem nos pacientes operando assim
uma espeacutecie de ldquocontenccedilatildeordquo pelo ambiente (CAPONI 2012) As regras condutas horaacuterios e
regimentos do hospital tinham como objetivo reeducar a mente do ldquoalienadordquo afastar os deliacuterios
e ldquochamar agrave consciecircncia agrave realidaderdquo (AMARANTE 200733) Assim o hospital passa a ser
natildeo somente o lugar onde acontece o tratamento mas ele proacuteprio um instrumento ldquoterapecircuticordquo
Este tratamento exige uma reorganizaccedilatildeo interna do espaccedilo asilar uma distribuiccedilatildeo
minuciosa das diferentes espeacutecies de doente ficando os melancoacutelicos mais proacuteximos
do paacutetio e situando-se o restando dos pacientes mais longe de acordo com a sua
periculosidade Assim como existe uma minuciosa descriccedilatildeo e organizaccedilatildeo do
espaccedilo algo semelhante ocorreraacute com o controle do tempo As atividades exercidas
no asilo tem tempos estabelecidas assim como os tratamentos para cada tipo de
doenccedila As regras seratildeo previamente estabelecidas e fixadas sendo que cada
estrateacutegia disciplinar pretende contrapor a loucura agrave racionalidade e agrave mesura
representadas pelo saber meacutedico Define-se assim o modelo que deve ser interiorizado
por esse tipo de ortopedia moral que rege nos asilos (CAPONI2012 50)
Vecirc-se entatildeo que o surgimento dos hospitais psiquiaacutetricos nasce estreitamente ligado agrave
concepccedilatildeo de loucura enquanto doenccedila mental e a ideia de um tratamento que usa como
recursos terapecircuticos o isolamento a disciplina e a autoridade Com o alienismo o hospital
deixa de ser um espaccedilo de assistecircncia e filantropia para se tornar de fato uma instituiccedilatildeo
meacutedica Comeccedila-se a se estabelecer uma diferenccedila entre o louco o criminoso o pobre e o
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doente dos oacutergatildeos de modo que se torna necessaacuterio isolar o louco dos demais internos em um
ambiente separado afim de observaacute-lo e estudar a natureza de sua doenccedila Embora os loucos jaacute
fossem institucionalizados antes do alienismo haacute nesse momento uma marcada diferenccedila a
clausura em questatildeo natildeo se daacute mais por caridade ou repressatildeo mas ldquopor um imperativo
terapecircuticordquo (AMARANTE 2007 33)
Assim as condiccedilotildees de possibilidade para o surgimento do manicocircmio enquanto uma
instituiccedilatildeo de isolamento da loucura contemplam tanto os alienistas e seu entendimento sobre
a loucura quanto agraves necessidades da sociedade como um todo Por um lado a concepccedilatildeo que
se tinha em relaccedilatildeo agrave loucura exigia o reestabelecimento da razatildeo atraveacutes de uma reeducaccedilatildeo
moral cujos alicerces eram o isolamento e as riacutegidas disciplinas institucionais por outro
haviam os anseios da populaccedilatildeo por isolamento e exclusatildeo daqueles que desviam da norma
social e que por isso lhe parecem estranhos e perigosos
Foi assim que segundo Amarante (2007 33) ldquoo alienismo pineliano ganhou o mundordquo
e embora tenha havido algumas criacuteticas a esse modelo ele soacute seraacute efetivamente questionado no
seacuteculo XX no contexto do poacutes-guerra na Europa
As duas grandes Guerras Mundiais voltaram a sociedade para uma reflexatildeo sobre a
natureza humana a crueldade e solidariedade com o proacuteximo No poacutes-Segunda Guerra com a
queda do nazismo especificamente percebeu-se que as condiccedilotildees de vida oferecidas nos
hospitais psiquiaacutetricos pouco se distanciavam daquelas oferecidas aos judeus nos campos de
concentraccedilatildeo nazistas (AMARANTE 2007)
Paralelamente a Europa sofreu um forte abalo econocircmico Segundo Heidrich (2007
38) ldquoos autores destacam que soacute na Franccedila 40 mil doentes mentais morreram nos asilos devido
agraves maacutes condiccedilotildees e a falta de alimentaccedilatildeordquo Houve uma perda consideraacutevel da matildeo-de-obra
disponiacutevel que fora lanccedilada ao campo de batalha e jaacute natildeo havia mais quem pudesse reconstruir
a economia e reparar os danos do poacutes-guerra
Nessa atual conjuntura natildeo era mais possiacutevel assistir-se passivamente ao
deterioramento do espetaacuteculo asilar natildeo era mais possiacutevel aceitar uma situaccedilatildeo em
que um conjunto de homens passiacuteveis de atividade pudessem estar espantosamente
estragados no hospiacutecio Passou-se a enxergar como um grande absurdo esse montante
de desperdiacutecio da forccedila de trabalho (BIRMAN COSTA 1994 46-7)
Segundo Birman e Costa (1994) lidos por Heidrich (2007) haviam duas preocupaccedilotildees
centrais que demandavam a reforma do modelo asilar
Por um lado a preocupaccedilatildeo dos proacuteprios psiquiatras com relaccedilatildeo agrave sua impotecircncia
terapecircutica por outro as preocupaccedilotildees governamentais geradas pelos altos iacutendices
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de cronicidade das doenccedilas mentais com sua consequente incapacidade social Dessa
forma a psiquiatria social aparece transferindo o campo de atuaccedilatildeo da psiquiatria da
doenccedila mental para a sauacutede mental ( BIRMAN COSTA 1994 apud HEIDRICH
2007 36-7)
O Hospital Psiquiaacutetrico comeccedila a aparecer entatildeo como o principal responsaacutevel pela
degradaccedilatildeo dos pacientes e pela manutenccedilatildeo e pela cronicidade de sua doenccedila Assim surgem
vaacuterias experiecircncias com o objetivo de transformar o ambiente asilar e reabilitar os pacientes
para a vida social e para o trabalho
Segundo Amarante (2007) esses movimentos reformistas foram divididos em ldquodois
grupos mais umrdquo
O primeiro grupo composto pela Comunidade Terapecircutica e pela Psicoterapia
Institucional destaca duas experiecircncias que investiram no princiacutepio de que o fracasso
estava na forma de gestatildeo do proacuteprio hospital e que a soluccedilatildeo portanto seria
introduzir mudanccedilas na instituiccedilatildeo O segundo grupo eacute formado pela Psicoterapia de
Setor e Psiquiatria Preventiva experiecircncias que acreditavam que o modelo hospitalar
estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ldquopelas beiradasrdquo como se diz
na linguagem popular isto eacute deveria ser tornado obsoleto a partir da construccedilatildeo de
serviccedilos assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapecircutico (hospitais dia
oficinas terapecircuticas centros de sauacutede mental etc) ao mesmo tempo que iriam
diminuindo a importacircncia e a necessidade do hospital psiquiaacutetrico No lsquooutrorsquo grupo
em que estatildeo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica o termo reforma parece
inadequado Ambas consideram que a questatildeo mesma estaria no modelo cientiacutefico
psiquiaacutetrico que eacute todo ele colocado em xeque assim como suas instituiccedilotildees
assistenciais (AMARANTE 2007 41)
O primeiro grupo formado pela Comunidade Terapecircutica (Inglaterra e EUA) e pela a
Psicoterapia Institucional (Franccedila) acreditava em uma reforma do ambiente hospitalar de modo
a humanizaacute-lo e tornaacute-lo efetivamente terapecircutico Assim empreenderam propostas de
democratizar o hospital dissolver a rigidez da hierarquia e da disciplina do ambiente hospitalar
de modo a horizontalizar as relaccedilotildees de poder Todos deviam fazer parte de uma mesma
comunidade terapecircutica e lutar contra a violecircncia institucional O sistema eacute pensado de modo a
apostar no potencial terapecircutico do coletivo e a incluir o sujeito que experiecircncia o sofrimento
como co-participante de seu tratamento Jaacute vemos aiacute uma inversatildeo em relaccedilatildeo a psiquiatria
pineliana e ao modo tradicional de se entender a loucura poreacutem natildeo haacute um questionamento em
relaccedilatildeo a necessidade de institucionalizaccedilatildeo do louco
O segundo grupo composto pela Psiquiatria de Setor (Franccedila) e pela Psiquiatria
Preventiva (EUA) jaacute apontava para a necessidade de um trabalho externo ao manicocircmio A
Psiquiatria de Setor se destacou por criar serviccedilos externos agrave internaccedilatildeo os CSM (Centros de
Sauacutede Mental) distribuiacutedos pelo territoacuterio de acordo com o contingente populacional nos
diferentes setores administrativos das regiotildees francesas O hospital por sua vez era tambeacutem
dividido em vaacuterios setores de modo que pacientes de uma mesma regiatildeo administrativa fossem
22
sempre internados no mesmo setor do hospital e quando recebessem alta eram enviados ao CMS
correspondente (AMARANTE 2007)
Organizar o cuidado desse modo permitia que o sujeito pudesse ser acompanhado pela
mesma equipe multiprofissional desde a internaccedilatildeo hospitalar ateacute a alta e encaminhamento para
o CMS do setor contando com o viacutenculo como um recurso terapecircutico Comeccedila-se a se
construir a ideia de uma equipe multidisciplinar de modo que o cuidado natildeo ficasse mais apenas
centralizado na figura do meacutedico
A Psiquiatria Preventiva tambeacutem conhecida como Psiquiatria Comunitaacuteria buscou
aplicar o meacutetodo da Medicina Preventiva agrave Psiquiatria visando reduzir a incidecircncia das doenccedilas
mentais na populaccedilatildeo Caplan fundador dessa corrente acreditava que ldquotodas as doenccedilas
mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocementerdquo (apud AMARANTE
2007 48)
Para a Psiquiatria Preventiva o conceito de crise passa a ser norteador A crise era
entendida a partir do vieacutes socioloacutegico de ldquoadaptaccedilatildeo e desadaptaccedilatildeo socialrdquo Segundo Joel
Birman e Jurandir Freire Costa atraveacutes da leitura de Amarante as crises eram classificadas em
dois grandes grupos
1) Evolutivas-quando relacionadas a processos normais do desenvolvimento fiacutesico
emocional ou social Em tais processos na passagem de uma fase agrave outra da vida a
conduta natildeo estaria caracterizada por um padratildeo estabelecido Tratar-se-ia de um
periacuteodo transitoacuterio quando o indiviacuteduo perderia sua caracterizaccedilatildeo anterior sem no
entanto adquirir uma nova organizaccedilatildeo Na hipoacutetese de os conflitos gerados natildeo
serem bem absorvidos poderiam levar agrave desadaptaccedilatildeo que natildeo sendo elaborados pela
pessoa poderiam conduzir agrave doenccedila mental
2) Acidentais- quando precipitadas por alguma perda ou risco (desemprego separaccedilatildeo
conjugal falecimento de uma pessoa querida etc) A perturbaccedilatildeo emocional
ocasionada pela crise provocaria eventualmente o surgimento de alguma enfermidade
mental assim torna-se um momento estrateacutegico de intervenccedilatildeo preventiva na medida
em que em contrapartida a crise pode ser encarada como uma possibilidade de
crescimento para o indiviacuteduo (Birman e Costa 1998 apud AMARANTE 2007 49-
50)
Entendendo que algumas situaccedilotildees sejam elas relativas ao desenvolvimento natural do
ser humano ou a condiccedilotildees externas diversas apontam para momentos mais delicados da vida
a Psiquiatria Preventiva propocircs estrateacutegias de trabalho de base comunitaacuteria investindo em
equipes de sauacutede mental que pudessem acompanhar os usuaacuterios preventivamente identificando
e intervindo na crise em seu vieacutes individual familiar e social
Tambeacutem foram implantados vaacuterios serviccedilos comunitaacuterios de cuidado com o objetivo de
acompanhar os usuaacuterios preventivamente diminuindo a incidecircncia das doenccedilas mentais e a
23
necessidade de internaccedilotildees psiquiaacutetricas de modo que aos poucos o hospital se tornasse um
recurso obsoleto e desnecessaacuterio (AMARANTE 2007)
No entanto aconteceu paradoxalmente um aumento importante da demanda psiquiaacutetrica
nos EUA tanto nos serviccedilos extra hospitalares quanto nos hospitais psiquiaacutetricos ldquoos proacuteprios
serviccedilos comunitaacuterios se transformaram em grandes captadores e encaminhadores de novas
clientelas para os hospitais psiquiaacutetricosrdquo (AMARANTE 2007 51)
Assim vemos que embora tenha havido uma mudanccedila na estruturaccedilatildeo dos serviccedilos ela
natildeo eacute suficiente sem uma mudanccedila de mentalidade em relaccedilatildeo agrave loucura e aos modos de trataacute-
la Ainda que os novos dispositivos tenham sido pensados para evitar as internaccedilotildees
psiquiaacutetricas isso natildeo ocorreraacute se os profissionais continuam a pensar do mesmo modo e se natildeo
haacute um trabalho com a sociedade no sentido de questionar a exclusatildeo da loucura e inventar novas
possibilidades de convivecircncia
Nesse ponto a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica Italiana se destacam das
demais propostas de reformas da psiquiatria Para a Antipsiquiatria as pessoas tidas como
loucas eram reprimidas e violentadas natildeo soacute nos hospitais mas na sociedade como um todo
Logo ldquoa experiecircncia dita patoloacutegica ocorria natildeo no indiviacuteduo na condiccedilatildeo de corpo ou mente
doente mas nas relaccedilotildees estabelecidas entre ele e a sociedaderdquo (AMARANTE 2007 35)
Assim natildeo era apenas a instituiccedilatildeo que precisava mudar tampouco o sujeito dito louco mas a
proacutepria relaccedilatildeo entre loucura e sociedade
O princiacutepio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiecircncia esta seria
por si soacute terapecircutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de
reorganizaccedilatildeo interior Ao lsquoterapeutarsquo competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a
superar esse processo acompanhando-a protegendo-a inclusive da violecircncia da
proacutepria psiquiatria (AMARANTE 2007 54)
Quanto agrave experiecircncia italiana Franco Basaglia (1968) precursor do movimento
entendia que era preciso superar natildeo apenas o manicocircmio mas todo o aparato manicomial isto
eacute natildeo soacute a estrutura fiacutesica do hospital mas o conjunto de seus saberes e praacuteticas cientiacuteficas
sociais juriacutedicas e legislativas
Essa inflexatildeo destaca que a luta natildeo eacute contra o manicocircmio em si mas contra toda e
qualquer praacutetica manicomial Com isso Basaglia (1968) chama atenccedilatildeo para o fato de que
mesmo nos dispositivos ditos ldquonovosrdquo eacute possiacutevel haver uma reproduccedilatildeo de praacuteticas autoritaacuterias
e opressoras em relaccedilatildeo agrave loucura Vale dizer que foi esse movimento que serviu de inspiraccedilatildeo
e base para a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira tema do nosso proacuteximo capiacutetulo
24
Inspirado na Psiquiatria Comunitaacuteria Basaglia tambeacutem criou centros regionalizados
para atender as demandas de sauacutede mental No entanto diferente desse primeiro movimento
natildeo eram dispositivos que davam continuidade ao tratamento apoacutes a alta e que reinternavam os
pacientes nos manicocircmios nos momentos de crise mas serviccedilos que constituiacuteam por excelecircncia
o modelo de tratamento em sauacutede mental rejeitando definitivamente o hospital como lugar de
tratamento
Quanto ao entendimento da loucura haacute tambeacutem nesse ponto uma ruptura
epistemoloacutegica importante com o paradigma anterior Basaglia (1968) considera que o mal
obscuro da psiquiatria foi ter colocado o sujeito entre parecircnteses e ter elegido como seu objeto
de estudo ldquoa doenccedilardquo (apud AMARANTE 2007) Assim a proposta da Psiquiatria
Democraacutetica Italiana consiste em operar uma inversatildeo colocar a doenccedila entre parecircnteses e
tomar o sujeito como o objeto da psiquiatria Importante destacar que isto natildeo significa negar a
doenccedila enquanto um estado de produccedilatildeo de dor e sofrimento mas compreender que a totalidade
do sujeito natildeo se reduz agrave ela
Com isto o objeto da Psiquiatria se desloca da ldquodoenccedila mentalrdquo para a ldquosauacutede mentalrdquo
e o mandato dessa ciecircncia deixa de ser centrado na cura do paciente para se tornar uma
preocupaccedilatildeo com a sua sauacutede e com seu bem-estar social
Assim vemos que os significados da loucura na sociedade e os modelos assistenciais
desenhados para dar conta dessa questatildeo nunca foram objetos ldquodadosrdquo historicamente mas
construccedilotildees sociais Diferentes noccedilotildees de crise e de loucura permitiram a emergecircncia de
diferentes modelos de assistecircncia Com isto podemos observar que os modos de compreensatildeo
da crise e da loucura influem nas nossas ofertas de cuidado assim como nossas ofertas de
cuidado tambeacutem dizem algo do modo como estamos pensando e compreendendo a loucura e as
intervenccedilotildees possiacuteveis em uma situaccedilatildeo de crise
12 A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
O movimento de Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira encontra suas origens no final da
deacutecada de 1970 no bojo dos movimentos sociais ligados agrave luta contra a ditadura e dentro de um
movimento mais amplo de reformas no setor da sauacutede Dentre esses movimentos emergentes
em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores da Sauacutede Mental (MTSM) que assumiu um
papel importante na criacutetica e na oposiccedilatildeo ao regime militar em especial no que concernia agraves
situaccedilotildees de violaccedilatildeo dos direitos humanos dentro dos hospitais psiquiaacutetricos Esse movimento
25
permitiu colocar em evidecircncia a violecircncia e a miseacuteria agraves quais eram submetidas as pessoas com
transtorno mental internadas nos hospitais da rede puacuteblica aleacutem de reivindicar melhorias nas
condiccedilotildees de trabalho dos profissionais de sauacutede (AMARANTE 1998)
Segundo Amarante (1998) um ponto crucial para o surgimento desse movimento foi o
que se denominou a ldquocrise da Divisatildeo Nacional de Sauacutede Mentalrdquo1 movimento de denuacutencia e
criacutetica agraves peacutessimas condiccedilotildees em que se encontravam os quatro hospitais da Divisatildeo Nacional
de Sauacutede Mental do Ministeacuterio da Sauacutede no Rio de Janeiro (Centro Psiquiaacutetrico Pedro II ndash
CPPII Hospital Pinel Colocircnia Juliano Moreira ndash CJM e Manicocircmio Judiciaacuterio Heitor
Carrilho) Essa situaccedilatildeo culminou na greve de meacutedicos e funcionaacuterios no primeiro trimestre de
1978 seguida da demissatildeo de 260 estagiaacuterios e profissionais
Na eacutepoca devido ao destaque do Rio de Janeiro como ex-capital federal e como capital
cultural do Brasil somado a gravidade dessas denuacutencias terem ocorrido dentro de um oacutergatildeo
federal constatou-se um verdadeiro escacircndalo no modo como o Estado tratava os pacientes
com transtorno mental e seus funcionaacuterios Isso permitiu com que a situaccedilatildeo atingisse
repercussatildeo nacional tanto atraveacutes da divulgaccedilatildeo na miacutedia quanto pelo debate em setores
expressivos da sociedade brasileira o que impulsionou o movimento de Reforma por todo o
paiacutes (AMARANTE 1998)
Em 1987 surge o Movimento de Luta Antimanicomial a partir do Encontro dos
Trabalhadores da Sauacutede Mental que reuniu mais de 350 trabalhadores na cidade de Bauru no
estado de Satildeo Paulo O movimento assumiu um papel importante no processo de construccedilatildeo da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira contribuindo no fortalecimento e na organizaccedilatildeo dos
trabalhadores usuaacuterios e familiares em torno das pautas e reivindicaccedilotildees da aacuterea
(VASCONCELOS 2008)
Na deacutecada de 1980 haacute um fortalecimento dos movimentos reformistas Segundo
Tenoacuterio (2002) houve um amadurecimento da criacutetica ao modelo asilarsegregador e uma
contestaccedilatildeo mais forte em relaccedilatildeo agraves internaccedilotildees conveniadas
a deacutecada de 1980 assistiu ainda a trecircs processos tambeacutem importantes para a
consolidaccedilatildeo das caracteriacutesticas atuais do movimento da reforma a ampliaccedilatildeo dos
atores sociais envolvidos no processo a iniciativa de reformulaccedilatildeo legislativa e o
surgimento de experiecircncias institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo
tipo de cuidado em sauacutede mental (TENOacuteRIO 2002 27)
1 Oacutergatildeo do Ministeacuterio da Sauacutede responsaacutevel pela formulaccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede do subsetor sauacutede mental
26
Em 1989 o deputado Paulo Delgado propotildee o projeto de lei no 365789 estabelecendo
os direitos das pessoas com transtorno mental e prevendo a extinccedilatildeo dos manicocircmios poreacutem
devido aos fortes lobbies dos proprietaacuterios de hospitais psiquiaacutetricos o projeto natildeo eacute aprovado
mas produz a ampliaccedilatildeo do debate em torno da reestruturaccedilatildeo da assistecircncia por todo o paiacutes
A intensificaccedilatildeo do debate e a popularizaccedilatildeo da causa da reforma desencadeadas pela
iniciativa de revisatildeo legislativa certamente impulsionaram os avanccedilos que a luta
alcanccedilou nos anos seguintes Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiaacutetrica
proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou a situaccedilatildeo curiosa de ser
uma lei que produziu seus efeitos antes de ser aprovada (TENOacuteRIO 2002 28
grifo nosso)
Embora a lei natildeo tenha sido aprovada nesse primeiro momento ela teve efeitos
importantes na organizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos serviccedilos em prol da Reforma Psiquiaacutetrica A
partir de 1992 os movimentos sociais conseguem aprovar em vaacuterios estados do Brasil as
primeiras leis que determinam a substituiccedilatildeo progressiva dos leitos psiquiaacutetricos por uma rede
integrada de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental (BRASIL 2005 8) Nesse contexto atraveacutes
PortariaSNAS nordm 2241992 surgem os Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e os Nuacutecleos
de Atenccedilatildeo Psicossocial (NAPS) dois importantes dispositivos com a proposta de atuarem de
formas substitutiva ao modelo asilar
Ainda nesse ano destaca-se um outro marco na histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileira a II Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental Esta conferecircncia contou com a ampla
participaccedilatildeo dos usuaacuterios e familiares de sauacutede mental cabe ressaltar que aproximadamente
20 dos delegados da conferecircncia eram usuaacuterios dos serviccedilos de sauacutede mental ou familiares de
usuaacuterios
Segundo Tenoacuterio (2002) a conferecircncia estabelece dois marcos conceituais importantes
a atenccedilatildeo integral e a cidadania
Segundo essa referecircncia satildeo desenvolvidos o tema dos direitos e da legislaccedilatildeo e a
questatildeo do modelo e da rede de atenccedilatildeo na perspectiva da municipalizaccedilatildeo As
recomendaccedilotildees gerais sobre o modelo de atenccedilatildeo propunham a adoccedilatildeo dos conceitos
de territoacuterio e responsabilidade como forma de ruptura com o modelo
hospitalocecircntrico e de garantir o direito dos usuaacuterios agrave assistecircncia e agrave recusa ao
tratamento bem como a obrigaccedilatildeo do serviccedilo em natildeo abandonaacute-los agrave proacutepria sorte
(Ministeacuterio da Sauacutede Brasil 1994 22 apud TENOacuteRIO 2002)
Ao longo da deacutecada de 1990 a proposta da construccedilatildeo de uma rede de serviccedilos que
possibilitasse a extinccedilatildeo dos manicocircmios ganhou forccedila e houve uma expansatildeo significativa dos
serviccedilos de atenccedilatildeo diaacuteria substitutivos aos hospitalares Nesse periacuteodo entre os muitos pontos
importantes destacam-se
a penetraccedilatildeo crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiaacutetrico (natildeo obstante
o triunfalismo da psiquiatria bioloacutegica) a permanecircncia continuada de diretrizes
27
reformistas no campo das poliacuteticas puacuteblicas com os postos de coordenaccedilatildeo e gerecircncia
ocupados por partidaacuterios da reforma (no caso do Rio de Janeiro nos trecircs niacuteveis
gestores federal estadual e municipal) a existecircncia de experiecircncias renovadoras com
resultados iniciais positivos em todas as regiotildees do paiacutes a capacidade das experiecircncias
mais antigas de manter sua vitalidade os reiterados indiacutecios de um novo olhar sobre
a loucura vicejando no espaccedilo social um olhar natildeo mais tatildeo fortemente marcado pelos
estigmas do preconceito e do medo (TENOacuteRIO 200241)
Depois de 12 anos tramitando no congresso eacute aprovado em 2001 um projeto substitutivo
da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado a lei 10216 que sofreu muitas modificaccedilotildees no
texto original A referida lei ldquodispotildee sobre a proteccedilatildeo das pessoas com transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sauacutede mentalrdquo (BRASIL 2001) No artigo 2ordm paraacutegrafo
uacutenico estabelece que satildeo direitos da pessoa com transtorno mental
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de sauacutede consentacircneo agraves suas
necessidades II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua sauacutede visando alcanccedilar sua recuperaccedilatildeo pela inserccedilatildeo na famiacutelia no
trabalho e na comunidade III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e
exploraccedilatildeo IV ndash ter garantia de sigilo nas informaccedilotildees prestadas V ndash ter direito agrave
presenccedila meacutedica em qualquer tempo para esclarecer a necessidade ou natildeo de sua
hospitalizaccedilatildeo involuntaacuteria VI ndash ter livre acesso aos meios de comunicaccedilatildeo
disponiacuteveis VII ndash receber o maior nuacutemero de informaccedilotildees a respeito de sua doenccedila e
de seu tratamento VIII ndash ser tratada em ambiente terapecircutico pelos meios menos
invasivos possiacuteveis IX ndash ser tratada preferencialmente em serviccedilos comunitaacuterios de
sauacutede mental (BRASIL 2001)
A lei 10216 tambeacutem regulamenta as internaccedilotildees psquiaacutetricas e redireciona o modelo
assistencial em sauacutede
Aleacutem dos CAPS previu-se a implantaccedilatildeo de ambulatoacuterios de sauacutede mental NAPS
residecircncias terapecircuticas hospitais-dia unidades de psiquiatria em hospitais gerais
lares protegidos e centros de convivecircncia e cultura (BRASIL 2001 apud BARROSO
SILVA 2011 73)
Previram-se tambeacutem a criaccedilatildeo de oficinas de trabalho protegido unidades de
preparaccedilatildeo para a reinserccedilatildeo social dos pacientes e serviccedilos para o atendimento agraves
famiacutelias (BARROSO SILVA 201173 )
Apoacutes a aprovaccedilatildeo da lei 10216 surgiram mais duas portarias que instituiacuteam os serviccedilos
residenciais terapecircuticos (106 e 1220 ambas de 2000)
outras oito leis estaduais e diversas portarias e programas foram criados para
regulamentaccedilatildeo do atendimento psiquiaacutetrico comunitaacuterio Merecem destaque o
programa ldquoDe volta para casardquo (BRASIL 2003) e a portaria 336GM que atribui aos
CAPS o papel central na psiquiatria comunitaacuteria brasileira (DELGADO et al 2007)
(BARROSO SILVA 2011 74)
Quanto agraves mudanccedilas na assistecircncia e na superaccedilatildeo do modelo manicomial desde a
aprovaccedilatildeo da lei cabe levantar alguns dados para fins de anaacutelise Destaca-se como um avanccedilo
significativo na RPB a inversatildeo da curva do financiamento do SUS para a sauacutede mental a
partir de 2006 O valor anteriormente destinado aos hospitais psiquiaacutetricos passa a ser investido
em igual proporccedilatildeo nos serviccedilos de natureza aberta e comunitaacuteria (Graacutefico 1) o que mostra um
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fortalecimento da rede substitutiva e um empenho na efetiva transformaccedilatildeo do modelo de
assistecircncia de acordo com as novas diretrizes da RPB (BRASIL 2015)
Cabe mencionar que os gastos em Atenccedilatildeo Comunitaacuteria Territorial incluem natildeo
somente os CAPS mas todos os serviccedilos da rede substitutiva tais como Serviccedilos Residenciais
Terapecircuticos (SRT) Centros de Convivecircncia Oficinas de geraccedilatildeo de renda aleacutem de programas
de incentivo financeiro como o Programa Volta para Casa
Quanto agrave expansatildeo dos CAPS desde a aprovaccedilatildeo da Lei 10216 dados do Ministeacuterio da
Sauacutede (2015) apontam uma expansatildeo meacutedia significativa e contiacutenua em todo o territoacuterio
nacional Desde 2002 ateacute 2014 houve um aumento de aproximadamente 150 CAPS por ano
chegando ao total de 2209 serviccedilos em 2014 nas diferentes modalidades como pode ser visto
no Graacutefico 2 (BRASIL 2015)
29
Graacutefico 2 - Seacuterie histoacuterica de expansatildeo de CAPS (2002 a 2014)
Fonte Sauacutede Mental em Dados BRASIL 2015 Elaboraccedilatildeo proacutepria
Vale ressaltar entretanto que a modalidade de CAPS tipo III (com funcionamento 24hrs
e leitos de acolhimento noturno) natildeo acompanhou esse crescimento Como podemos observar
no Quadro 1 no ano de 2014 dos 2209 CAPS existentes no paiacutes apenas 154 eram do tipo III
Considerando que 65 satildeo CAPS ad III destinados aos usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas temos
somente 85 CAPS do tipo III especificamente com capacidade de oferecer acolhimento noturno
agrave crise psicoacutetica e outros transtornos mentais graves percentual correspondente a apenas 38
do total de CAPS no paiacutes (BRASIL 2015)
Quanto a distribuiccedilatildeo dos CAPS III em 2014 verifica-se uma concentraccedilatildeo da oferta
desses serviccedilos em Satildeo Paulo e Minas Gerais que contavam com 35 e 12 unidades
respectivamente Os estados que figuraram em seguida com o maior nuacutemero de CAPS III foram
Paraiacuteba e Pernambuco com quatro serviccedilos cada um Paraacute Bahia Cearaacute Maranhatildeo Sergipe
Paranaacute e Rio de Janeiro contavam com trecircs CAPS III cada um Natildeo possuiacuteam CAPS III os
estados de Acre Amapaacute Rondocircnia Tocantins Alagoas Espiacuterito Santo Mato Grosso e o
Distrito Federal (Quadro 1)
30
31
A baixa participaccedilatildeo dos CAPS III no total de CAPS bem como a ausecircncia deste serviccedilo
em diversos estados mostra que sua proposta natildeo foi assumida pela gestatildeo municipal na escala
observada para os outros tipos de serviccedilos (COSTA et al 2011) Vale ressaltar que a
implantaccedilatildeo dos CAPS III ficou aqueacutem do esperado pelo proacuteprio MS (BRASIL 2011) o que
impacta diretamente na capacidade da RAPS acolher agrave crise em uma proposta de cuidado
substitutiva ao Hospital Psiquiaacutetrico
Em relaccedilatildeo a quantidade de leitos disponiacuteveis para a atenccedilatildeo agrave crise verificamos que haacute
uma marcada preponderacircncia dos leitos em hospitais psiquiaacutetricos em detrimento dos leitos de
sauacutede mental em hospitais gerais e em CAPS III Chama atenccedilatildeo especialmente o fato de que
a quantidade de leitos disponiacuteveis em CAPS III quando comparada ao total de leitos no cenaacuterio
nacional e local eacute praticamente nula alcanccedilando uma meacutedia de 238 e 1 2 em 2014
respectivamente
No cenaacuterio nacional segundo o Ministeacuterio da Sauacutede haviam 25988 leitos em hospitais
psiquiaacutetricos em 2014 (BRASIL 2015) Nos hospitais gerais considerando que o MS faz
distinccedilatildeo entre ldquoleitos de sauacutede mentalrdquo e de ldquopsiquiatriardquo de acordo com o CNES em 2014
haviam 4620 leitos de psiquiatria em HG pediaacutetricos e maternidades destinados ao SUS
(BRASIL 2015) No mesmo ano constam 888 leitos de sauacutede mental em hospitais gerais
conforme podemos ver no Quadro 2 resultando em uma soma de 5508 leitos disponiacuteveis para
a sauacutede mental em hospitais gerais no Brasil
Considerando que de acordo com Portaria 336 que rege o funcionamento dos CAPS
cada CAPS III deve ter no maacuteximo 5 leitos (BRASIL 2002) e que em 2014 de acordo com o
Quadro 1 constavam 154 CAPS III espalhados pelo territoacuterio nacional tomando para fins de
estimativa a capacidade maacutexima de leitos por CAPS teriacuteamos aproximadamente 770 leitos nos
CAPS III destinados a retaguarda noturna nos casos de crise Esse percentual correspondente
a apenas 2 38 do total de leitos o que significa que aproximadamente 8055 dos leitos estatildeo
nos hospitais psiquiaacutetricos
No municiacutepio do Rio de Janeiro de acordo com o Quadro 3 dos 1572 leitos
psiquiaacutetricos existentes 1504 se localizam em hospitais psiquiaacutetricos representando 975
do total de leitos Apenas 31 (49 leitos) se localizam em hospitais gerais e 1 2 (19) nos
CAPS III (BRASIL 2015)
32
Fonte Sauacutede Mental em Dados Brasil (2015)
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo
IIIndashSecretaria Municipal de Sauacutede do Rio de Janeirondashsetembro de 2015
FonteCNESMinisteacuterio da Sauacutede setembro de 2015
Localizaccedilatildeo
dos Leitos
Quantidade Porcentagem
Hospital
Psiquiaacutetrico
1504 957
Hospitais
Gerais
49 31
CAPS III 19 12
Total 1572 100
33
Desse modo embora tenhamos conquistado alguns avanccedilos significativos no processo
de reestruturaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede mental ao longo dos uacuteltimos 30 anos destaca-se a
reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do nuacutemero de
CAPS a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na atenccedilatildeo
comunitaacuteria e territorial etc na praacutetica os hospitais psiquiaacutetricos continuam ocupando um
lugar central na assistecircncia agrave crise constituindo-se muitas vezes na porta de entrada do usuaacuterio
ao sistema de sauacutede
Assim o cenaacuterio atual eacute marcado pela expansatildeo dos serviccedilos substitutivos mas tambeacutem
pela permanecircncia do hospitais psiquiaacutetricos e dispositivos tradicionais determinando a
coexistecircncia de dois modelos de cuidado opostos e mutuamente excludentes o tradicional
modelo asilar e o modelo substitutivo de modo que a RAPS no momento se caracteriza muito
mais por ser complementar do que substitutiva ao modelo asilar como era de se esperar
Logo os manicocircmios natildeo apenas resistem como insistem e se queremos
desinstitucionalizar e acolher a crise no territoacuterio eacute imprescindiacutevel perguntar ao que a
institucionalizaccedilatildeo de um paciente estaacute respondendo Qual eacute o problema que ela coloca Como
desmontar a soluccedilatildeo institucional (a internaccedilatildeo) e reconstruir o problema sobre outras bases
Importante dizer que construir novos arranjos para lidar com a crise natildeo se trata apenas
de aumentar a capacidade de resolutividade dos serviccedilos Eacute preciso ampliar o cuidado para
atender a crise de forma integral Isso significa fazer articulaccedilotildees com o que haacute de produccedilatildeo de
vida tambeacutem fora do espaccedilo dos serviccedilos isto eacute na vida na comunidade na cidade Persiste
desse modo o desafio de romper natildeo soacute com o manicocircmio mas com toda loacutegica e praacutetica de
segregaccedilatildeo da loucura
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20 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL
21 Reflexotildees sobre a crise e o cuidado
Segundo Moebus e Fernandes (sd) a palavra crise em sua origem grega (krisis ou
Kriacutenein) significa um estado no qual uma decisatildeo tem que ser tomada Esse termo era usado
pelos meacutedicos da antiguidade grega no intuito de se referir a um ponto na evoluccedilatildeo da doenccedila
do paciente no qual ele tanto poderia apresentar uma melhora em direccedilatildeo agrave cura ou piora em
direccedilatildeo agrave morte A ideia de crise portanto aproximava-se nesse contexto agrave noccedilatildeo de um
momento criacutetico decisivo cujo desfecho poderia ser tanto positivo quanto negativo
Jaacute a origem sacircnscrita da palavra eacute kri ou kir que significa ldquodesembaraccedilarrdquo ou purificar
Compartilhando desse mesmo sentido podemos destacar a palavra ldquocrisolrdquo que significa
ldquoelemento quiacutemico que purifica o ouro das gangas limpando-o dos elementos que se fixaram
no metal pelo seu processo vital ou histoacuterico e ao longo do tempo tomaram conta de seu cerne
a ponto de comprometerem sua substacircncia em sirdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN
200732) Crise nessa acepccedilatildeo carrega um teor de transformaccedilatildeo e purificaccedilatildeo em que a
substacircncia pode alcanccedilar sua verdadeira essecircncia
Destaca-se nessas significaccedilotildees originaacuterias da palavra elementos que trazem a ideia de
crise associada agrave um desequiliacutebrio transitoacuterio a um processo de mudanccedila transformaccedilatildeo com
possibilidade de evoluir de maneira positiva Eacute um momento de descontinuidade e perturbaccedilatildeo
da normalidade da vida em algo que eacute deixado para traacutes poreacutem ao mesmo tempo por isso
mesmo abre-se uma nova possibilidade de ser e estar no mundo
Outros autores de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica relacionam o conceito de crise ao conceito de
trauma que para Freud diz respeito ldquoa uma vivecircncia que traz um grande aumento da excitaccedilatildeo
da vida psiacutequica em um curto espaccedilo de tempo tendo por caracteriacutestica o fracasso de sua
liquidaccedilatildeo por meios habituaisrdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Nesse mesmo sentido segundo Laplanche e Pontalis (1986 768) ldquoo trauma consiste
em um acontecimento da crise que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se
acha o indiviacuteduo de lhe responder de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos
patogecircnicos que provoca na organizaccedilatildeo psiacutequicardquo
Haacute nessas definiccedilotildees algo da ordem de um excesso que rompe com o estado de
equiliacutebrio que o indiviacuteduo se encontra e transborda lanccedilando-o em direccedilatildeo a algo estranho e
desconhecido Essa ruptura eacute vivenciada pelo sujeito como algo assustador ao qual ele natildeo
35
encontra recursos psiacutequicos para responder ou mesmo para atribuir qualquer tipo de
significaccedilatildeo As soluccedilotildees que o sujeito costumeiramente encontrava para lidar com seu
sofrimento de alguma forma natildeo satildeo mais suficientes daiacute resultando entatildeo seu estado de
anguacutestia
Knobloch (1998) estudiosa de Ferenczi designa a crise como uma ldquoexperiecircncia limite
natildeo por ser uma experiecircncia que desafia o limite mas por extravasar o delimitado ldquoEacute uma
experiecircncia que traz um excesso excesso do que eacute insuportaacutevel e intoleraacutevel Ruptura em que
se redistribuem de uma maneira brutal as condiccedilotildees da realidade rdquo (apud FERIGATO
CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Para Birman (1983) a pessoa em crise encontra-se em um estado mental no qual ldquoa
anguacutestia provocada pelo que nos escapa eacute tatildeo importante que ficamos com o sentimento de que
a nossa proacutepria vida estaacute escapando uma experiecircncia de perda de seus sistemas de referecircncia
isto eacute a ameaccedila de perda da proacutepria identidaderdquo (apud FERIGATO CAMPOS BALLARIN
2007 35)
Se por um lado haacute a forccedila de um questionamento das convicccedilotildees mais fundamentais de
um indiviacuteduo por outro haacute tambeacutem uma abertura um espaccedilo para a criaccedilatildeo de algo novo de
outros arranjos e possibilidades de organizaccedilatildeo psiacutequica Embora essa vivecircncia seja marcada
por uma extrema sensaccedilatildeo de anguacutestia invasatildeo e sofrimento podemos apontar tambeacutem sua
potecircncia em produzir um desvio em caracterizar a saiacuteda de um lugar historicamente dado para
outro a ser construiacutedo exigindo outras ligaccedilotildees ateacute entatildeo inexistentes (FERIGATO CAMPOS
BALLARIN 2007)
Podemos ver a crise como um acontecimento extremo poreacutem muitas vezes necessaacuterio
na vida de um sujeito Eacute um momento que marca uma diferenccedila a partir da qual natildeo eacute mais
possiacutevel se viver do modo em que se estava vivendo anteriormente Eacute preciso reelaborar a
experiecircncia para habitar outro territoacuterio existencial
No entanto na histoacuteria da Psiquiatria especialmente na Psiquiatria claacutessica-asilar e
hospitalocecircntrica o sentido de crise perdeu sua dimensatildeo de renovaccedilatildeo O que rompe com a
organizaccedilatildeo e com o equiliacutebrio de um indiviacuteduo foi automaticamente entendido como algo
destrutivo que coloca o sujeito em um lugar de exclusatildeo social
A crise e toda a complexidade ligada ao sofrimento de um sujeito foi reduzida agrave
ldquoagudizaccedilatildeo da sintomatologia psiquiaacutetricardquo isto eacute a gama de sinais e sintomas (deliacuterios
alucinaccedilotildees agitaccedilatildeo psicomotora etc) caracteriacutesticos de uma determinada doenccedila Nesse
36
sentido o objetivo da intervenccedilatildeo dos psiquiatras era garantir a remissatildeo completa dos
sintomas em curto periacuteodo de tempo para que o sujeito pudesse voltar a seu estado de
ldquonormalidaderdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007) desconsiderando desse modo as
vivecircncias e situaccedilotildees que possivelmente contribuiacuteram para a eclosatildeo da situaccedilatildeo de crise em
que o sujeito se encontra
Nessa perspectiva a crise eacute entendida como um momento isolado da vida do sujeito
que nada tem a ver com sua histoacuteria com suas relaccedilotildees ou seu contexto soacutecio-afetivo Por isso
o cuidado possiacutevel tem como direccedilatildeo a estabilizaccedilatildeo dos sintomas isto eacute o silenciamento
daquilo que aparece como socialmente inapropriado ou inadequado na conduta do sujeito
Assim a medicaccedilatildeo a contenccedilatildeo fiacutesica e a internaccedilatildeo aparecem como os principais recursos
terapecircuticos aplacando a intensidade do momento fazendo um corte na experiecircncia de
sofrimento do sujeito para que apoacutes algum tempo ele volte naturalmente ao seu estado de
ldquonormalidaderdquo
Tecnologias de cuidado com base na classificaccedilatildeo de distuacuterbios e homogeneizaccedilatildeo de
grupos de problemas tambeacutem satildeo utilizadas com o intuito de preacute-estabelecer condutas e
respostas padratildeo para toda e qualquer situaccedilatildeo de crise que possa vir a emergir Segundo
Dell`Acqua e Mezzina (1991) o serviccedilo passa a responder agrave crise atraveacutes do seu proacuteprio
sintoma Assim toda a complexidade da existecircncia de sofrimento de um sujeito reduz-se a um
mero sinal caracteriacutestico da crise
Ao longo da histoacuteria da Psiquiatria a crise sempre foi vista como uma crise do paciente
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Pinel apostava em uma proposta terapecircutica de
confinamento da loucura em um ambiente controlado para que os alienistas pudessem
recuperar e ldquocorrigirrdquo os erros de pensamento que incidiam sobre as pessoas em situaccedilatildeo de
crise O tratamento natildeo visava agir diretamente nas questotildees sociais e afetivas que tinham
relaccedilatildeo com a experiecircncia de sofrimento vivenciada pelo sujeito mas pretendia isolar o sujeito
para entatildeo ldquoconsertaacute-lordquo em uma clara perspectiva de que o problema estava no sujeito
Com o advento da Psicanaacutelise vemos uma inversatildeo dessa loacutegica Para Freud o deliacuterio
eacute uma tentativa de cura que visa dar sentido a uma experiecircncia psiacutequica de sofrimento Sendo
assim ldquonatildeo haacute o que ser corrigido haacute o que ser escutado Haacute o que ser recuperado Haacute o que
ser construiacutedordquo (CORBISIER 1991 10)
Com Pinel aqueles que se encontravam desviados de sua verdadeira razatildeo deviam ser
conduzidos novamente agrave realidade atraveacutes da correccedilatildeo dos sentimentos comportamentos e
37
pensamentos equivocados Com Freud o deliacuterio eacute entendido como uma forma do sujeito
construir um sentido para uma experiecircncia perturbadora (como por exemplo ouvir vozes ver
coisas que natildeo existem etc) que lhe causa sofrimento Assim o problema natildeo estaacute no sujeito
nem no deliacuterio nem nos sintomas mas no modo como ele consegue ou natildeo atribuir sentido ao
que vivencia
Atribuindo um sentido (ainda que delirante) a vivecircncias que satildeo perturbadoras o sujeito
pode ressignificar sua relaccedilatildeo com o mundo e encontrar modos menos angustiantes de estar na
vida Natildeo eacute necessaacuterio portanto ldquoadequarrdquo o pensamento de um sujeito agrave realidade O deliacuterio
pode ele mesmo ser um ponto de estabilizaccedilatildeo na medida que oferece alguma possibilidade de
inserir novamente o sujeito no campo do simboacutelico isto eacute de refazer as conexotildees perdidas na
situaccedilatildeo de crise Se a crise eacute marcada por uma ruptura a possibilidade de construccedilatildeo de um
deliacuterio pode ser justamente aquilo que reconecta o sujeito ao mundo que lhe cerca
Assim eacute preciso escutar as diferenccedilas e tratar do sofrimento que ela pode vir a ocasionar
sem no entanto aboli-las A Psicanaacutelise traz em sua aposta na escuta a possibilidade de
recuperar as diferenccedilas Atraveacutes da fala o sujeito vai contando sua histoacuteria e resgatando aquilo
que lhe pertence que lhe eacute peculiar e o que o constitui Essa experiecircncia permite estabelecer
um corte com as tentativas homogeneizantes da Psiquiatria Claacutessica de lidar com a loucura A
aposta na fala permite ao sujeito construir novos sentidos para o seu sofrimento e perceber que
a presenccedila de um outro que o escute pode produzir algum aliacutevio para sua dor
Embora possamos agrupar sinais e sintomas comuns a psicose (deliacuterio alucinaccedilatildeo
dificuldade em construir laccedilo social etc) cada sujeito vai imprimir em seu sintoma a sua marca
Assim cada loucura eacute singular pois cada um delira de um jeito cada um faz laccedilo social de um
jeito etc Na sintomatologia de um sujeito vamos encontrar elementos que pertencem a sua
cultura agrave sua histoacuteria pessoal e aos seus prazeres e desprazeres em torno da vida Logo as
intervenccedilotildees vatildeo ser diferentes a depender daquilo que o sujeito traz
Nesse ponto vale fazer uma distinccedilatildeo entre emergecircncia psiquiaacutetrica e urgecircncia
subjetiva A emergecircncia psiquiaacutetrica se refere a emergecircncia do sintoma Logo o alvo de sua
intervenccedilatildeo eacute o corpo bioloacutegico O caos de sentimentos e de pensamentos supostamente sem
sentido que emergem na crise psicoacutetica devem ser suprimidos atraveacutes da medicaccedilatildeo restituindo
o corpo ao estado que se encontrava anteriormente (BARRETO 2004)
No afatilde de se estabilizar o sujeito suprimindo seu sintoma natildeo haacute tempo para pensar o
que se coloca em questatildeo em uma crise psicoacutetica Natildeo haacute espaccedilo para direcionar um olhar para
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o sujeito que estaacute inserido naquela situaccedilatildeo emergencial e ver o que nela haacute de singular pois
ldquohaacute coisas para fazer O clinico seleciona coisas para fazer e simplifica a situaccedilatildeordquo (BARRETO
2004 2) a fim de devolver o sujeito ao seu estado de normalidade
A partir da referecircncia da Psicanaacutelise a urgecircncia subjetiva eacute entendida como a urgecircncia
do sujeito que estaacute em crise logo abrange o sintoma mas natildeo se reduz a ele Barreto (2004)
aponta que na crise psicoacutetica acontece uma ruptura com a cadeia de significantes de modo que
a manifestaccedilatildeo dos sintomas que se seguem ao momento de crise expressa uma
ldquoimpossibilidade de significar minimamente pela fala um gozo que natildeo encontra o significante
necessaacuterio para transformaacute-lordquo (BARRETO 2004 1)
A urgecircncia subjetiva se refere portanto ao que haacute de singular em cada crise no
sofrimento do sujeito que se constitui enquanto demanda para um outro Nesse sentido ela
aponta para a necessidade de uma intervenccedilatildeo que natildeo pode ser adiada dada a gravidade em
que se encontra o sujeito poreacutem eacute o avesso da contenccedilatildeo do sintoma pois se utiliza da urgecircncia
que o sujeito coloca para construir a partir dela alguma outra resposta possiacutevel a ser fabricada
no caso a caso
Assim reintroduzir a dimensatildeo subjetiva no sujeito eacute a proposta da Psicanaacutelise
(SELDES 2004)
A psiquiatria apresenta uma resposta para o sujeito atraveacutes de uma nomenclatura
diagnoacutestica oriunda dos manuais de classificaccedilatildeo no vieacutes de uma certeza do Outro o
grande outro da ciecircncia A psicanaacutelise aponta sua resposta ao sujeito quando diz um
sim a sua descoberta sim a sua soluccedilatildeo delirante sim a qualquer possibilidade em
que o sujeito possa se agarrar e retomar minimante seu discurso e o seu laccedilo social O
psicanalista natildeo deteacutem o saber o saber eacute do sujeito (SILVA J 2011 44)
Acolher a crise nessa perspectiva natildeo eacute abordar o paciente que chega aos serviccedilos de
emergecircncia em sauacutede mental procurando encontrar onde estaacute a integridade do sujeito dentro da
crise isto eacute natildeo se trata de fazer uma separaccedilatildeo entre o sujeito e sua loucura para entatildeo extrair-
lhe lsquoa peacuterola que seria a razatildeordquo2 mas sim ouvir o que ali dentro da loucura se coloca enquanto
sujeito
Nesse sentido quando acolhemos um usuaacuterio em crise o que a experiecircncia de crise de
um sujeito pode colocar de questatildeo sobre sua histoacuteria sua vida seu cotidiano Nossa
2 Referecircncia ao livro O Alienista de Machado de Assis especificamente ao seguinte trecho ldquosuponho o espiacuterito
humano uma vasta concha o meu fim Sr Soares eacute ver se posso extrair a peacuterola que eacute a razatildeo por outros
termos demarquemos definitivamente os limites da razatildeo e da loucura A razatildeo eacute o perfeito equiliacutebrio de todas
as faculdades fora daiacute insacircnia insacircnia e soacute insacircniardquo (ASSIS 1882 261)
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intervenccedilatildeo tem contribuiacutedo para oferecer novas possibilidades de vida a esses sujeitos ou
estamos somente silenciando sintomas
Entendemos que o modo como os profissionais compreendem a crise influencia
significativamente a produccedilatildeo de cuidado Concepccedilotildees de crise centradas nos aspectos
puramente sintomaacuteticos desencadearatildeo intervenccedilotildees no sentido de suprimir o mais
rapidamente possiacutevel os sintomas Ao passo que concepccedilotildees de crise mais abrangentes tem mais
possibilidade de remeter ao sujeito o que essa crise coloca como questatildeo na sua vida e quais
satildeo as possibilidades outras de manejo para esses conflitos Logo uma concepccedilatildeo ampla de
crise (que considere os aspectos sociais afetivos e subjetivos) pode oferecer ao sujeito a
possibilidade de se recolocar em relaccedilatildeo ao seu sintoma e encontrar outros caminhos para lidar
com seu sofrimento
22 O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS
No capiacutetulo anterior vimos como diferentes formas de compreender a loucura ao longo
da histoacuteria produziram impactos nos modos de intervir e lidar com a crise Intervenccedilotildees
baseadas na autoridade no poder na disciplina e no confinamento remetem agrave loucura enquanto
iacutendice de uma anormalidade e falam de uma concepccedilatildeo de ldquocuidadordquo que visa ldquoconsertarrdquo os
sujeitos atraveacutes da correccedilatildeo de seus comportamentos e sentimentos supostamente inadequados
Por outro lado intervenccedilotildees com base no acolhimento na construccedilatildeo de sentidos e na
contextualizaccedilatildeo dos conflitos do sujeito falam de uma concepccedilatildeo de crise que valoriza o
sujeito e sua histoacuteria e o entende como parte de um mundo que o afeta e o transforma
Assim se olhar para as praacuteticas de cuidado pode lanccedilar luz sobre as concepccedilotildees de
loucura presentes na sauacutede mental quando olhamos para o modo como a rede se organiza e se
estrutura para acolher a crise sobre que concepccedilotildees de crise ela nos fala Que sentidos de crise
estatildeo presentes no modo como o SUS foi idealizado e preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas de
sauacutede E que sentidos de crise emergem quando observamos o modo como os usuaacuterios e
trabalhadores efetivamente usam e vivenciam o SUS em cotidiano Como as poliacuteticas de sauacutede
pensam a crise E que questotildees a crise traz agraves poliacuteticas de sauacutede Quais satildeo seus
distanciamentos e aproximaccedilotildees
Tradicionalmente muitos autores tecircm se utilizado da imagem de uma piracircmide para
ldquorepresentar o modelo tecno-assistencial que gostariacuteamos de construir com a implantaccedilatildeo plena
do SUSrdquo (CECIacuteLIO 1997470) Na ampla base da piracircmide estariam dispostos os serviccedilos de
baixa complexidade como as cliacutenicas da famiacutelia que oferecem atendimento para populaccedilatildeo de
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sua aacuterea de abrangecircncia dentro das atribuiccedilotildees estabelecidas para o niacutevel de atenccedilatildeo primaacuteria
constituindo-se na porta de entrada privilegiada para os niacuteveis de maior complexidade do
sistema de sauacutede Na parte intermediaacuteria estariam localizados os serviccedilos da atenccedilatildeo
secundaacuteria que satildeo ldquobasicamente os serviccedilos ambulatoriais com suas especialidades cliacutenicas e
ciruacutergicas o conjunto de serviccedilos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico alguns serviccedilos de
atendimento a urgecircncia e emergecircncia e os hospitais gerais normalmente pensados como sendo
hospitais distritaisrdquo (CECIacuteLIO 1997 470) No topo da piracircmide encontramos por fim os
serviccedilos mais complexos como os grandes hospitais de caraacuteter regional estadual ou ateacute mesmo
nacional
O objetivo deste modelo eacute estabelecer um fluxo ordenado de pacientes atraveacutes de
mecanismos de referecircncia e contra referecircncia que regulam o acesso entre os niacuteveis de atenccedilatildeo
em sauacutede tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima na piracircmide Dessa forma para
cada necessidade de sauacutede a pessoa eacute encaminhada para o niacutevel de complexidade adequado
evitando sobrecarregar os hospitais e ambulatoacuterios com demandas de baixa complexidade e ao
mesmo tempo trabalhando na atenccedilatildeo baacutesica com estrateacutegias de prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da
sauacutede evitando o agravo de doenccedilas que se natildeo tratadas podem demandar intervenccedilotildees
meacutedicas mais complexas
No entanto no dia a dia do SUS a realidade tem se mostrado bem distante desse modelo
idealizado Como aponta Ceciacutelio (1997 471) ldquoa piracircmide a despeito da justeza dos princiacutepios
que representa tem sido muito mais um desejo dos teacutecnicos e gerentes do sistema do que uma
realidade com a qual a populaccedilatildeo usuaacuteria possa contarrdquo
Na praacutetica a populaccedilatildeo burla o tempo inteiro os fluxos da regulaccedilatildeo formal Buscam
ajuda onde acreditam que vatildeo encontraacute-la tentando acessar o sistema por onde eacute mais faacutecil ou
muitas vezes por onde eacute mais possiacutevel Na tentativa de resolver seus problemas percorrem
vaacuterias unidades de sauacutede diferentes ateacute conseguirem o que desejam um remeacutedio uma consulta
um encaminhamento uma indicaccedilatildeo de internaccedilatildeo Natildeo raro falsificam o comprovante de
residecircncia ou usam o de outra pessoa visando conseguir atendimento em uma unidade mais
proacutexima ou mais bem equipada Do mesmo modo questionam o tratamento chegando a ter em
alguns casos dois meacutedicos e dois tratamentos diferentes para uma mesma questatildeo de sauacutede sem
que um meacutedico saiba da existecircncia do outro
41
Haacute quem pense que todo o problema satildeo os usuaacuterios que ldquobagunccedilamrdquo o sistema natildeo
seguem os fluxos estabelecidos pois natildeo conhecem o funcionamento do sistema e buscam
atendimento em locais inapropriados por ignoracircncia ou maacute-feacute
Ceciacutelio (1997) expotildee esse problema ao trazer a tensatildeo existente entre o que denomina o
ldquousuaacuterio-fabricadordquo e o ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo Segundo o autor o usuaacuterio-fabricado seria o
ldquousuaacuterio idealrdquo normatizado pelas estrateacutegias da Medicina Preventiva que atraveacutes de uma
perspectiva individualista de ldquohaacutebitos saudaacuteveisrdquo pretende ldquofabricarrdquo sujeitos esclarecidos e
por isso menos dependentes do sistema de sauacutede Trata-se entatildeo de produzir um usuaacuterio
disciplinado educado que segue as orientaccedilotildees meacutedicas e leva uma vida saudaacutevel e regrada
O ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo por sua vez eacute aquele que natildeo necessariamente segue as
indicaccedilotildees meacutedicas mas batalha por sua conta e risco para conseguir o acesso agrave tecnologia de
cuidado que supotildee que precisa no dispositivo de sauacutede que julga ser o mais adequado tendo
como perspectiva sua experiecircncia com a doenccedila suas crenccedilas e desejos pessoais Assim o
tempo todo ele transgride agraves regras quebra os fluxos testa e contesta o sistema produzindo agrave
sua maneira seu caminho dentro do SUS Como destaca Ceciacutelio (1997) ldquoo usuaacuterio-fabricador
com sua accedilatildeo concreta e protagonismo com suas buscas e com seus ousados experimentos de
tentativas e erros vai produzindo circuitos opccedilotildees caminhos que soacute em parte correspondem agrave
normalizaccedilatildeo oficial do sistemardquo (ibidem 288)
Contra a perspectiva de um sistema de sauacutede ideal e racionalizado o usuaacuterio-fabricador
eacute aquele que usa o SUS real e por isso encontra suas falhas e furos propondo soluccedilotildees agrave sua
maneira atraveacutes de sua experiecircncia no sistema ldquoDaiacute a ser uma prepotecircncia tecnocraacutetica dizer
que o povatildeo eacute deseducado que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de
sauacutede As pessoas acessam o sistema por onde eacute mais faacutecil ou possiacutevelrdquo (CECILIO1997 472)
E porque natildeo incluir esse saber leigo do usuaacuterio nas estrateacutegias de planejamento e
organizaccedilatildeo do cuidado em sauacutede Por que natildeo ouvir o que esses usuaacuterios tecircm a nos dizer e
incorporaacute-los como parceiros na construccedilatildeo de um SUS possiacutevel natildeo aquele idealizado mas
um que faccedila mais sentido na perspectiva de quem de fato o utiliza
Precisamos considerar que o SUS eacute feito de pessoais reais usuaacuterios trabalhadores
meacutedicos enfermeiros psicoacutelogos que ao se moverem de acordo com suas eacuteticas profissionais
seus saberes experiecircncias esperanccedilas e desejos imprimem novos significados agrave um sistema
que estaacute em permanente construccedilatildeo Esses atores ldquoproduzem inventam resistem e configuram
um cuidado que afinal nunca eacute como noacutes (gestores sanitaristas pensadores formuladores)
42
teimamos em querer normalizar formatar produzir agrave nossa imagem e semelhanccedilardquo (CECIacuteLIO
2012287)
Assim como os usuaacuterios os trabalhadores de sauacutede no encontro com as necessidades
reais de seus pacientes e com as barreiras de acesso do sistema tambeacutem burlam a regulaccedilatildeo
formal muitas vezes se utilizando de seus contatos pessoais relaccedilotildees de conhecimento e
confianccedila para produzir fluxos que possam garantir a continuidade do cuidado oferecido
especialmente nos casos difiacuteceis em que a complexidade dos pacientes natildeo se encaixa na
caixinha de cuidados formalmente oferecida pelo SUS
Quando falamos de um usuaacuterio em crise precisamos pensar que a caixinha de cuidados
padratildeo frequentemente natildeo vai dar conta da complexidade colocada em uma crise psicoacutetica
Muitas vezes a razatildeo pela qual um usuaacuterio vai parar na emergecircncia ou no hospital psiquiaacutetrico
eacute justamente porque os recursos que ele dispotildee para lidar com seu sofrimento natildeo foram mais
capazes de sustentar uma estabilizaccedilatildeo Daiacute a necessidade de podermos pensar outros recursos
outras regulaccedilotildees outros dispositivos
Um usuaacuterio em crise eacute por excelecircncia um usuaacuterio-fabricador As soluccedilotildees que ele vai
engendrar para seu sofrimento vatildeo exceder em muito os limites de um sistema de sauacutede
organizado sob a figura de uma piracircmide em niacuteveis crescentes de complexidade Quando esse
usuaacuterio consegue pedir ajuda ele o faraacute sob a sua loacutegica a partir da suas expectativas e
singularidades Ele pode ir na cliacutenica da famiacutelia no hospital na emergecircncia na poliacutecia na casa
da vizinha na Igreja na escola onde achar possiacutevel obter a ajuda que precisa ainda que suas
escolhas sejam um tanto inusitadas Do mesmo modo quando um usuaacuterio entra em crise isso
tambeacutem pode acontecer em qualquer ponto do sistema e noacutes enquanto profissionais precisamos
ser capazes de oferecer algum suporte a esse sujeito onde ele estiver e na hora em que precisa
da ajuda
A crise natildeo espera o nosso tempo o tempo do encaminhamento do acolhimento-
triagem da discussatildeo de caso do contato com o profissional de referecircncia ela acontece quando
se menos espera e por isso eacute importante que natildeo soacute o dispositivo de referecircncia esteja preparado
para acolhecirc-la mas que todas as portas de entrada do sistema estejam qualificadas enquanto
espaccedilos privilegiados para o acolhimento e reconhecimento das necessidades dos usuaacuterios
Eacute nesse sentido que Ceciacutelio (1997) propotildee uma mudanccedila na imagem de representaccedilatildeo
do modelo de sauacutede da piracircmide ao ciacuterculo Pensar o sistema de sauacutede enquanto ciacuterculo natildeo
significa abandonar os ideais da Reforma Sanitaacuteria no que diz respeito a um comprometimento
43
com a equidade o atendimento universal integral e de boa qualidade mas ao contraacuterio tomar
esses princiacutepios na sua radicalidade e pensaacute-los sob a luz das necessidades reais das pessoas e
do uso que fazem do sistema O formato do ciacuterculo reforccedila um valor essencial do SUS a
integralidade Apostar na imagem do ciacuterculo significa pensar o sistema de sauacutede menos
enquanto um fluxo hierarquizado de pessoas e mais enquanto uma rede em que todos os pontos
satildeo uma porta de acesso qualificada e possiacutevel para o usuaacuterio
Segundo Ceciacutelio (1997 475) ldquo O ciacuterculo se associa com a ideacuteia de movimento de
muacuteltiplas alternativas de entrada e saiacuteda Ele natildeo hierarquiza Abre possibilidadesrdquo Trata-se
de relativizar a hierarquizaccedilatildeo dos serviccedilos abrindo espaccedilo para que o acolhimento possa se
dar onde o paciente solicita ajuda Natildeo estamos negando com isso a especificidade e a missatildeo
diferenciada de cada serviccedilo mas tentando produzir uma rede menos fragmentada e mais
proacutexima da realidade dos usuaacuterios
A loacutegica horizontal dos vaacuterios serviccedilos de sauacutede colocados na superfiacutecie plana do
ciacuterculo eacute mais coerente com a ideacuteia de que todo e qualquer serviccedilo de sauacutede eacute espaccedilo
de alta densidade tecnoloacutegica que deve ser colocada a serviccedilo da vida dos cidadatildeos
Por esta concepccedilatildeo o que importa mais eacute a garantia de acesso ao serviccedilo adequado agrave
tecnologia adequada no momento apropriado e como responsabilidade intransferiacutevel
do sistema de sauacutede Trabalhando assim o centro das nossas preocupaccedilotildees eacute o usuaacuterio
e natildeo a construccedilatildeo de modelos assistenciais aprioriacutesticos aparentemente capazes de
introduzir uma racionalidade que se supotildee ser a melhor para as pessoas
(CECIacuteLIO1997 477)
Eacute importante ressaltar que defender o sistema de sauacutede enquanto um ciacuterculo natildeo se
limita agrave uma mera inflexatildeo teoacuterica mas a possibilidade de garantir que a integralidade seja uma
missatildeo colocada para todos os serviccedilos de sauacutede e natildeo para cada paciente individualmente em
sua peregrinaccedilatildeo pelos dispositivos de sauacutede Nesse sentido trata-se de apostar na continuidade
da linha de cuidado trabalhando para que o paciente tenha acesso agrave assistecircncia por onde ele
chega do modo como chega
Isso significa deslocar um pouco a ideia de referecircncia Ainda que o CAPS seja o serviccedilo
com maior possibilidade e capacidade de atender uma crise psicoacutetica todos os serviccedilos devem
ser capazes de oferecer algum acolhimento agrave crise Se em uma crise psicoacutetica o que estaacute
colocado eacute a fragmentaccedilatildeo do sujeito natildeo eacute possiacutevel que ele consiga se reestruturar em um
sistema igualmente fragmentado
No encontro do usuaacuterio com a equipe o que deve nortear a produccedilatildeo do cuidado eacute a
escuta das necessidades de sauacutede da pessoa que busca o serviccedilo Ainda que o serviccedilo em questatildeo
seja apenas um serviccedilo de passagem na linha de cuidado do usuaacuterio ter o compromisso e a
preocupaccedilatildeo de se fazer sempre a melhor escuta e a melhor devolutiva possiacutevel pode fazer toda
44
a diferenccedila no acolhimento de um sujeito e na continuidade de sua linha de cuidado O essencial
nesse contexto eacute que o encaminhamento natildeo seja meramente uma transferecircncia de
responsabilidade sem que nada tenha sido construiacutedo no caminho
Escutar nesse sentido natildeo se iguala a atender todas as possiacuteveis demandas que traz o
usuaacuterio A demanda eacute o pedido expliacutecito mas as necessidades podem ser bem outras A
demanda pode ser por internaccedilatildeo pela troca de medicamento pela troca do profissional de
referecircncia etc Pode ir dos pedidos mais pragmaacuteticos aos mais delirantes mas nem sempre o
que o usuaacuterio formula enquanto demanda eacute o que ele quer nos pedir
Eacute preciso estar atento tambeacutem para o que pode estar incluiacutedo no seu pedido elementos
como o viacutenculo com a equipe suas relaccedilotildees pessoais o modo como lida com seus sentimentos
sua condiccedilatildeo de vida suas expectativas e sonhos etc Cabe a equipe conhecer o usuaacuterio e ter a
sensibilidade de buscar compreender o que estaacute para aleacutem do pedido expliacutecito ajudando-o a
construir uma saiacuteda possiacutevel para seu sofrimento
Assim a integralidade da atenccedilatildeo no espaccedilo singular de cada serviccedilo de sauacutede
poderia ser definida como o esforccedilo da equipe de sauacutede de traduzir e atender da
melhor forma possiacutevel tais necessidades sempre complexas mas principalmente
tendo que ser captadas em sua expressatildeo individual () Cada atendimento de cada
profissional deve estar compromissado com a maior integralidade possiacutevel sempre
mas tambeacutem ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida soacute seraacute
alcanccedilada como fruto do trabalho solidaacuterio da equipe de sauacutede com seus muacuteltiplos
saberes e praacuteticas Maior integralidade possiacutevel na abordagem de cada profissional
maior integralidade possiacutevel como fruto de um trabalho multiprofissional (CECIacuteLIO
2009 120 121)
A integralidade nesse sentido eacute mais do que cada serviccedilo fazendo sua parte eacute mais do
que o modelo da piracircmide pode oferecer A imagem da piracircmide faz pensar os serviccedilos mais
complexos como lugares de ldquofinalizaccedilatildeo do cuidadordquo da ldquouacuteltima palavrardquo na cliacutenica do sujeito
de ldquoatendimento de demandas pontuais superespecializadas especiacuteficas e por isso mesmo
descompromissados com a integralidaderdquo (CECIacuteLIO 2009 122) Assim escuta qualificada
natildeo eacute missatildeo colocada somente para os ambulatoacuterios e nem o acolhimento agrave crise eacute uma
responsabilidade somente do CAPS Conforme Ceciacutelio (2009 123) ldquo a integralidade natildeo se
realiza nunca em um serviccedilo integralidade eacute objetivo de rederdquo Desse modo todos os serviccedilos
precisam se articular no sentido de dar seguimento ao cuidado de um sujeito em crise e natildeo
apenas o serviccedilo de referecircncia ou a atenccedilatildeo baacutesica que tem sido apontada como o lugar
privilegiado na coordenaccedilatildeo do cuidado
Haacute que se destacar que uma rede soacute seraacute efetivamente integral se for conectada com os
outros dispositivos do territoacuterio onde a vida acontece espaccedilos de cultura e lazer instituiccedilotildees
45
fora do setor sauacutede (ligadas a educaccedilatildeo justiccedila assistecircncia social e outras) associaccedilotildees de
bairros e movimentos organizados instituiccedilotildees religiosas etc Cada territoacuterio carrega em si
uma histoacuteria de ocupaccedilatildeo dos espaccedilos seus usos e costumes sua influecircncia econocircmica e
poliacutetica seu papel social etc Assim pensar a organizaccedilatildeo de um CAPS em uma cidade do
interior eacute diferente de pensar a organizaccedilatildeo desse mesmo serviccedilo em uma metroacutepole ou em uma
periferia A divisatildeo entre bairros pobres e ricos as regiotildees de comeacutercio de meretriacutecio
comunidades regiotildees atravessadas pelo poder do traacutefico e das miliacutecias influem diretamente
nos modos de vida das pessoas
Sendo assim ldquoorganizar um serviccedilo substitutivo que opere segundo a loacutegica do territoacuterio
eacute olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugarrdquo (YASUI LIMA 2010597) Eacute considerar o
contexto de vida das pessoas e suas necessidades de sauacutede Eacute entender que a organizaccedilatildeo da
rede seu acesso e suas ofertas de cuidado precisam fazer sentido na vida daquele que
experiencia o SUS e que enfrenta no seu cotidiano suas barreiras limites e insuficiecircncias
46
3 METODOLOGIA
Segundo Turato (2003) meacutetodo eacute um ldquoconjunto de regras que elegemos num
determinado contexto para se obter dados que nos auxiliem nas explicaccedilotildees ou compreensotildees
dos aspectos ou fenocircmenos constituintes do mundordquo (ibidem 153) Na investigaccedilatildeo cientiacutefica
identificamos comumente dois tipos de metodologia de pesquisa a do tipo quantitativo e do
tipo qualitativo sendo tambeacutem possiacutevel uma mistura desses dois tipos denominada pesquisa
quali-quanti
Estudos quantitativos satildeo mais indicados para pesquisas interessadas em trabalhar com
dados e variaacuteveis de forma objetiva isto eacute quantificaacutevel Jaacute a pesquisa qualitativa permite uma
reflexatildeo mais profunda de fenocircmenos natildeo quantificaacuteveis sendo por isso mais indicada para
tratar de questotildees de ordem subjetiva cultural ou social
Segundo Minayo a pesquisa qualitativa eacute aquela que ldquotrabalha com o universo de
significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo
mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave
operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveisrdquo (2014 22) sendo portanto mais adequada para estudar
fenocircmenos da existecircncia humana que natildeo podem ser quantificados como eacute o caso do objeto
dessa pesquisa
Visando atingir o objetivo desse estudo ndash discutir e analisar os avanccedilos e desafios na
organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo de cuidados aos pacientes em situaccedilatildeo de crise em sauacutede mental-
realizaremos um estudo de revisatildeo bibliograacutefica integrativa de artigos cientiacuteficos da literatura
nacional
Dentre os meacutetodos de revisatildeo a revisatildeo integrativa torna-se especialmente interessante
para essa pesquisa pois permite combinar estudos de literatura teoacuterica e empiacuterica de modo que
tenhamos uma visatildeo mais ampla e concreta dos impasses que se colocam no atendimento agrave
crise no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede mental
Assim foi feita uma busca preliminar na Biblioteca Virtual em Sauacutede (BVS) e no Scielo
no mecircs de Janeiro de 2019 a partir dos seguintes descritores e combinaccedilotildees
1) ldquosauacutede mental and crise and cuidadordquo
2) ldquosauacutede mental and crise and serviccedilos de sauacutederdquo
47
Optou-se por trabalhar com textos em formato de artigos cientiacuteficos Foram
considerados os seguintes criteacuterios de exclusatildeo artigos duplicados texto completo
indisponiacutevel natildeo se aplicam a aacuterea do estudo entendimento de crise relacionado ao
acontecimento de eventos criacuteticos como cataacutestrofes ambientais incecircndios trageacutedias em massa
(queda de aviatildeo desabamentos) etc sofrimento psiacutequico em decorrecircncia de doenccedila orgacircnica
de maior gravidade (exemplo cacircncer HIV etc) toda a sorte de assuntos relacionados aos
familiares de pessoas com transtorno mental estudos que natildeo abordam o contexto brasileiro ou
que natildeo localizam a reflexatildeo das praacuteticas de cuidado no acircmbito do SUS e da Reforma
Psiquiaacutetrica questotildees especiacuteficas do cuidado de uma categoria profissional em particular
(enfermeiros meacutedicos etc) estudos de vieacutes histoacuterico epidemioloacutegico normativo ou educativo
(guias cartilhas documentos oficiais etc)
Na BVS na primeira busca encontramos 89 resultados Foi aplicado o filtro de idioma
portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 85 referecircncias disponiacuteveis Em seguida foram excluiacutedas
21 referecircncias duplicadas 2 em formato de dissertaccedilatildeo e outras 43 com a aplicaccedilatildeo dos criteacuterios
de exclusatildeo Apoacutes a leitura dos resumos foram excluiacutedas mais 9 referecircncias segundo os
criteacuterios de exclusatildeo restando um total de 10 artigos
Na segunda busca ainda na BVS encontramos 2253 resultados Foram aplicados os
seguintes filtros idioma portuguecircs e texto completo disponiacutevel gerando uma reduccedilatildeo para 123
referecircncias Apoacutes o cruzamento com a primeira pesquisa excluiacutemos mais 15 referecircncias
Eliminamos as referecircncias duplicadas e aplicamos os criteacuterios de exclusatildeo restando um total
de 28 referecircncias Excluiacutemos mais 3 referecircncias que natildeo se encaixavam no formato de texto
escolhido para anaacutelise restando um total de 25 artigos Apoacutes a leitura dos resumos foram
excluiacutedas mais 14 referecircncias segundo os criteacuterios de exclusatildeo sobrando um total de 11 artigos
Nas buscas do Scielo natildeo foi possiacutevel encontrar nenhum resultado que pudesse ser
aproveitado para a nossa pesquisa Na primeira busca encontramos 48 referecircncias Foi aplicado
filtro de idioma portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 44 referecircncias Apoacutes o entrecruzamento
dos resultados com o levantamento na BVS excluiacutemos 14 referecircncias Em seguida excluiacutemos
mais 14 resultados repetidos Os 16 artigos restantes tambeacutem foram eliminados por natildeo se
aplicarem a aacuterea do nosso estudo ou natildeo respeitarem os criteacuterios para inclusatildeo
Na segunda busca encontramos 28 resultados Apoacutes a aplicaccedilatildeo do filtro de idioma
portuguecircs restaram 26 referecircncias das quais 9 estavam duplicadas e 12 foram eliminadas por
cruzamento As 5 referecircncias restantes tambeacutem foram eliminadas por natildeo se aplicarem a nossa
48
aacuterea de estudo ou natildeo se encaixarem nos criteacuterios para inclusatildeo Trabalharemos desse modo
somente com os resultados encontrados na busca da BVS que somaram um total de 21 artigos
A anaacutelise das questotildees suscitadas a partir desta revisatildeo teraacute abordagem qualitativa e se
organizaraacute em torno de trecircs eixos temaacuteticos a saber sentidos da crise desafios e
potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidados
Segundo Minayo
Fazer uma anaacutelise temaacutetica consiste em descobrir os nuacutecleos de sentido que compotildeem
uma comunicaccedilatildeo cuja presenccedila ou frequecircncia signifiquem alguma coisa para o
objeto analiacutetico visado Para uma anaacutelise de significados a presenccedila de determinados
temas denota estruturas de relevacircnciavalores de referecircncia e modelos de
comportamento presentes ou subjacentes no discursordquo (MINAYO 2014 316)
Assim esperamos que essa anaacutelise possa lanccedilar luz sobre as questotildees mais relevantes
levantadas na literatura em torno do acolhimento agrave crise apontando os principais desafios que
ela impotildee na construccedilatildeo e sustentaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica no cotidiano das praacuteticas e dos
serviccedilos de sauacutede Os eixos temaacuteticos seratildeo correlacionados com o referencial teoacuterico dessa
pesquisa visando alcanccedilar uma anaacutelise mais profunda e feacutertil dos temas em questatildeo
49
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA
Conforme foi explicitado no capiacutetulo de metodologia a discussatildeo e reflexatildeo dos artigos
alvos dessa revisatildeo se organizaraacute a partir de trecircs categorias temaacuteticas sentidos de crise desafios
e potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidado
Nosso caminho para a formulaccedilatildeo dessas categorias comeccedilou a partir dos descritores
usados nas buscas das plataformas Da leitura dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise
and cuidado and sauacutede mentalrdquo emergiram a maior parte das questotildees relacionadas aos modos
de compreender e significar a crise em sauacutede mental suas repercussotildees sobre as praacuteticas de
cuidado bem como os desafios e estrateacutegias encontrados pelos profissionais no manejo da crise
em seu cotidiano de trabalho Assim desdobramos esse eixo em duas outras categorias
ldquosentidos de criserdquo e ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo
Dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise and sauacutede mental and serviccedilos de
sauacutederdquo emergiram predominantemente as questotildees relacionadas agrave forma como os serviccedilos tecircm
se organizado para receber e acolher as situaccedilotildees de crise Desse eixo fazem parte natildeo soacute as
questotildees relacionadas ao papel de cada serviccedilo e sua organizaccedilatildeo interna para lidar com as
situaccedilotildees de crise como tambeacutem sua possibilidade de articulaccedilatildeo com os outros serviccedilos da
RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e dispositivos do territoacuterio na construccedilatildeo de uma
resposta integral e complexa agraves demandas da crise Esses resultados estatildeo concentrados no eixo
ldquoorganizaccedilatildeo da rede de cuidadosrdquo
41 OS SENTIDOS DA CRISE
Dos muitos sentidos e significados em torno da crise destacamos trecircs que pela forccedila e
intensidade com que aparecem nos artigos atraveacutes das falas dos profissionais das narrativas
dos usuaacuterios e familiares e das situaccedilotildees que emergiram no campo de pesquisa desdobraram-
se em subcategorias na nossa anaacutelise a crise enquanto ameaccedila social a crise enquanto perda e
isolamento e a crise enquanto apropriaccedilatildeo da experiecircncia da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidos
O sentido negativo da crise enquanto ldquoameaccedila socialrdquo aparece sobretudo na fala dos
profissionais e familiares remetendo a figura do louco como ser fora de si agressivo sem
controle apresentado risco para si e para os outros agrave sua volta Os estudos de Pereira Saacute e
Miranda (2017) Milhomens e Martin (2014) Lima (2012) Garcia e Costa (2014) Brito
Bonfada e Guimaratildees (2015) abordam essa realidade Nessas narrativas observamos que a
complexidade do fenocircmeno da loucura eacute reduzida a manifestaccedilatildeo dos sintomas agressivos e
50
violentos operando um recorte muito simploacuterio da vivecircncia da crise e do contexto em que ela
ocorre Vemos como a representaccedilatildeo desse imaginaacuterio fortalece e justifica mecanismos de
controle e vigilacircncia que remontam agrave Psiquiatria Tradicional mesmo nos serviccedilos substitutivos
A crise enquanto ldquoexperiecircncia de perda e isolamentordquo foi um sentido que apareceu
especialmente nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da
primeira crise como nas pesquisas de Pereira Saacute Miranda (2017) e Milhomens Martin (2014)
A peculiaridade dos sintomas que emergem e o estigma social relacionado a eles parecem
reforccedilar nesse primeiro momento um sentido da crise enquanto perda da normalidade e
consequentemente enquanto iacutendice de uma doenccedila ou anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida Por outro lado encontramos esse sentido tambeacutem em estudos
com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees resultando em uma perda dos viacutenculos
afetivos sociais e laborativos A pesquisa de Fiorati e Saeki (2008) com homens de 30 a 50
anos em uma unidade de internaccedilatildeo em Satildeo Paulo aponta para esse resultado
A crise enquanto ldquoapropriaccedilatildeo da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidosrdquo expressa a
construccedilatildeo de um outro sentido de crise que se opotildee aos dois uacuteltimos e abre possibilidades de
vecirc-la em seu vieacutes positivo Nessa categoria destacamos os momentos em que foi possiacutevel
deslocar-se da compreensatildeo da crise como um evento limitante ou signo de anormalidade e
entendecirc-la como um evento analisador que diz do sujeito e de sua histoacuteria Vale ressaltar que o
diaacutelogo com as pesquisas de Milhomens e Martin (2014) e Costa (2007) apontaram elementos
e reflexotildees importantes na construccedilatildeo desse sentido
411 CRISE COMO AMEACcedilA SOCIAL PERICULOSIDADE E RISCO
A loucura entendida como uma ameaccedila social remonta aos primoacuterdios da Psiquiatria
Tradicional e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo e disciplinarizaccedilatildeo do seacuteculo XVIII e XIX quando
se inicia o processo de transformaccedilatildeo da loucura em patologia mental
Segundo Jardim (2007178) ldquoo conceito do risco se coloca aqui a partir do momento
que a crise eacute o prenuacutencio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doenccedila mental
(instalada ou futura)rdquo marcada por comportamentos hostis e intimidadores como mudanccedilas
bruscas de humor pensamentos persecutoacuterios e agressividade dirigida agrave si mesmo ou agrave outros
Na revisatildeo da literatura as falas dos familiares profissionais e dos pacientes reforccedilaram
esse sentido caracterizando a vivecircncia da crise enquanto momento de desorganizaccedilatildeo em que
emergem comportamentos associados agrave violecircncia ameaccedila e medo
51
Luciana ldquogritava dentro de casa quebrava tudo jogou o computador novo no chatildeo
que era o xodoacute delardquo Na terceira crise a adolescente natildeo se reconheceria como matildee
da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho ficando com o
corpo debilitado (PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Minha matildee vinha falar comigo e eu agredia ela Ela falava lsquoEu sou sua matildeersquo E eu
falava que natildeo era PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Eu agredia meus pais quase todo o dia era discussatildeo em casa era um inferno aqui
quase todo dia era discussatildeo porque eu natildeo trabalhava eu natildeo fazia curso eu natildeo saia
de casa [] O preacutedio chegou a denunciar ateacute porque era briga constante (R homem
20 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1111)
Para os nossos entrevistados as pessoas que entram em crise em alguns
momentossituaccedilotildeestornam-se ldquoperigosas violentas agressivas brabas despertam
medo incomodam os outros quebram e destroem as coisas gritamrdquo termos utilizados
pelos entrevistados (LIMA ET AL 2012 428)
Em um estudo com profissionais em um CAPS II de Aracaju (SE) para aleacutem do sentido
da crise associado ao da violecircncia coloca-se tambeacutem o fato de essas pessoas estarem em intenso
sofrimento psiacutequico
satildeo consideradas como pessoas em alto niacutevel de sofrimento porque estatildeo angustiadas
ouvem vozes de comando necessitam de vigilacircncia contiacutenua estatildeo confusas
colocam-se em risco de morte desestruturam as famiacutelias (LIMA ET AL 2012 428)
O risco envolvido na crise se transmite para os profissionais no campo das praacuteticas de
cuidado como uma necessidade constante de monitoramento vigilacircncia e controle da pessoa
em crise como reafirma um dos profissionais desse estudo a seguir
Crise a partir de uma necessidade de vigilacircncia sendo muito exigente enquanto forma
de cuidado gerando um impacto sobre a vida de todos preocupaccedilotildees e uma dedicaccedilatildeo
quase exclusiva agrave pessoa doente (Profissional de um CAPS II Aracaju SE) (LIMA
ET AL 2012 429)
Esse aspecto aparece tambeacutem no estudo de Garcia e Costa (2014) que trazem como
analisador o manejo da crise de uma usuaacuteria em estado de agressividade em um CAPS I em
Porto Real RJ
Gritos cadeiras ao alto mesas jogadas telefone quebrado agressividade Eis um
momento de surto de uma paciente no Caps A equipe pega de surpresa precisa agir
prontamente algo tem que ser feito (GARCIA COSTA 2014 400)
Nessa situaccedilatildeo na tentativa de restaurar a paz e a ordem no serviccedilo alguns profissionais
comeccedilam a demandar o poder policial e a presenccedila de um guarda municipal de plantatildeo no
CAPS como observamos nos trechos a seguir
discutiu-se o caso em reuniatildeo de equipe retomou-se sua histoacuteria foram feitas
propostas ndash produccedilatildeo de saber atravessadas por relaccedilotildees de poder que reivindicavam
lsquoordemrsquo e lsquorespeitorsquo a serem garantidos por um poder policialesco materializado nos
agentes da guarda municipal (GARCIA COSTA 2014 201)
Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito evitando que as crises
aconteccedilam como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta Com
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a accedilatildeo da guarda seja ela ativa ou passiva de coibir esses eventos intempestivos os
pacientes evitariam ter crises por estarem sendo vigiados (ibidem 405)
Os autores destacam que a aposta na vigilacircncia como forma de controle e prevenccedilatildeo das
crises diz respeito agrave uma visatildeo de crise em que o deacuteficit estaacute no sujeito que natildeo consegue
responder de forma adequada agraves exigecircncias da vida A intervenccedilatildeo vem no sentido de favorecer
o instituiacutedo e reintroduzir a ldquonormardquo Eacute como se algo faltasse agravequele sujeito e ldquona situaccedilatildeo
apresentada precisaria ser tamponada preenchida quer pela guarda municipal por medicaccedilatildeo
ou terapiasrdquo (Garcia Costa 2014 405)
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade De tudo que se apresenta
em uma crise psicoacutetica a agressividade eacute o que fica o que marca e exige atenccedilatildeo urgente Eacute
vista como um sintoma isolado e de suma importacircncia que necessita ser suprimido o quanto
antes Assim recorre-se a praacuteticas como a contenccedilatildeo mecacircnica ou medicamentosa visando
extrair cirurgicamente o sintoma sem precisar lidar com a loucura e com o sofrimento que se
coloca em uma crise psicoacutetica
A reduccedilatildeo da complexidade de uma crise psicoacutetica aos seus sintomas agressivos reforccedila
o medo e o estigma em relaccedilatildeo agrave loucura legitimando condutas que a tratam como mera
contravenccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo da ordem social favorecendo o uso de recursos coercitivos como
o poder policial a guarda municipal e outras instacircncias que visam tratar da criminalidade e natildeo
da sauacutede de uma pessoa
Essa realidade eacute encontrada em uma pesquisa realizada com 24 profissionais de diversas
categorias da equipe de SAMU do municiacutepio de Natal- RN Observou-se que a equipe guarda
uma percepccedilatildeo do paciente em crise como um marginal ou ateacute mesmo como um animal sendo
frequente o uso da forccedila policial nas intervenccedilotildees dessa equipe como se percebe na fala a
seguir
A poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente doente mental () e quando a poliacutecia
chega eles amansam na mesma hora A maioria dos policiais jaacute vem pensando em
descer o bastatildeo entatildeo por isso que os pacientes tecircm medo (Entrevistado 13) (BRITO
BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1300 grifos nossos)
A gente precisa do apoio da poliacutecia pra prender pra interceptar (Entrevistado 2)
(idem 1298 grifos nossos)
O uso dos termos ldquoprenderrdquo e ldquointerceptarrdquo apontam para um entendimento da crise
como fenocircmeno do campo do julgamento moral e da criminalidade As contenccedilotildees satildeo
realizadas pela equipe da poliacutecia que usa de violecircncia deflagrada como ldquodescer o bastatildeordquo
mostrando total despreparo para atuar nessas situaccedilotildees Nota-se que embora os profissionais
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reconheccedilam que a poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente psiquiaacutetrico recorre-se agrave ela na
tentativa de ldquodominarrdquo o paciente pelo medo subjugando-o como a um animal ldquoamansam na
mesma horardquo ldquopor isso eles tem medordquo Conforme lembra Caponi (2009) ldquonas entrelinhas
dessas accedilotildees estatildeo as relaccedilotildees de poder que caracterizam a Psiquiatria Claacutessica e sua autoridade
de tomar o corpo como objeto de suas praacuteticasrdquo (apud BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2015 1298 )
Assim embora o discurso em relaccedilatildeo agrave loucura tenha mudado e incorporado os
princiacutepios da Reforma Psiquiaacutetrica vemos que quando a crise emerge e com ela a dificuldade
de sustentar com o usuaacuterio um modo protegido de estar com ele a primeira resposta dos serviccedilos
ainda segue a loacutegica do enclausuramento da violecircncia e da imposiccedilatildeo pela autoridade
A associaccedilatildeo entre crise e risco se desdobra em sentimentos de ameaccedila e medo que
justificam praacuteticas de repressatildeo como prevenccedilatildeo da possiacutevel periculosidade da pessoa em crise
como vemos a seguir
A gente notando que ele ainda estaacute agitado inquieto e que agraves vezes ele pode dar o
surto de novo a poliacutecia vai na ambulacircncia sentado com a gente (Entrevistado 7)
(BRITO BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1298)
Acredito que a falta de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz
com que o atendimento siga uma forma natildeo correta (ibidem 1298)
Segundo DelacuteAcqua e Mezzina (2005) o risco implicado na crise eacute compreendido na
Psiquiatria Claacutessica enquanto iacutendice de desadaptaccedilatildeo e desequiliacutebrio proacuteprio da doenccedila mental
Assim o fator periculosidade natildeo sendo algo passiacutevel de desconstruccedilatildeomanejo e a resposta do
medo agrave ele associada fala-nos de uma cadeia estabelecida doenccedila mental- periculosidade-
internaccedilatildeo que estaacute ldquoprofundamente enraizada nos teacutecnicos como cultura forma de agir e
pensar a loucurardquo (SILVA DIMENSTEIN 2014 42)
Cabe aqui ressaltar que natildeo se trata de negar que em uma situaccedilatildeo de crise possa haver
riscos envolvidos para integridade fiacutesica da pessoa em crise e dos demais e que isso causa medo
mas eacute preciso trabalhar em uma outra direccedilatildeo para lidar com o medo que natildeo seja atemorizar
e moralizar aqueles que precisam de cuidados especialmente quando isso eacute feito em parceria
com a poliacutecia
Isso natildeo significa que natildeo se possa utilizar de recursos como a medicaccedilatildeo ou a
contenccedilatildeo mecacircnica em situaccedilotildees extremas mas faz diferenccedila quando trabalhamos em uma
loacutegica em que esses satildeo os uacuteltimos recursos disponiacuteveis e natildeo nossa primeira resposta frente agrave
crise Praacuteticas como essas ainda satildeo tomadas no campo de ldquosoluccedilotildees maacutegicasrdquo para a remissatildeo
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dos sintomas agressivos quando deveriam ser vistas no maacuteximo como um arranjo incocircmodo
imposto por conjunturas que em niacutevel macro e micro natildeo tem conseguido sustentar a crise no
modelo substitutivo
Desse modo Brito Bonfada e Guimaratildees assinalam que urge avanccedilar na compreensatildeo
da crise enquanto evento que demanda ldquoacolhimento diaacutelogo aproximaccedilatildeo entre sujeitos
envolvidos e respeito agraves necessidades subjetivas e particularidades de cada usuaacuterio dos serviccedilos
de sauacutederdquo (2015 1301) Para tanto faz-se necessaacuterio investir em praacuteticas de educaccedilatildeo
permanente que possam trabalhar com as equipes na direccedilatildeo da construccedilatildeo de um suporte
teacutecnico-conceitual de apoio agrave crise que tenha como base os pressupostos da Reforma
Psiquiaacutetrica Essa capacitaccedilatildeo deve envolver a discussatildeo da crise enquanto um fenocircmeno
complexo que natildeo se restringe aos sintomas apresentados mas diz do modo do sujeito se
posicionar no mundo e das conjunturas conflitivas que o afligem
412 CRISE COMO PERDA E ISOLAMENTO SOCIAL
A primeira crise aparece como um ponto de ruptura a partir do qual algo muda
radicalmente e a vida natildeo pode mais se dar como antes A crise eacute vista como a descoberta de
uma ldquodoenccedilardquo e sentida como um ponto de corte a partir do qual todos os aspectos da vida
precisam ser reavaliados Os pacientes e familiares natildeo sabem mais se podem continuar com
sua rotina de antes e estabelecem uma seacuterie de limitaccedilotildees com o objetivo de ldquoevitar novas
crisesrdquo
A possibilidade de seguir na vida os sonhos os planos e objetivos ficam todos em
suspenso como se qualquer conduta repentina pudesse disparar uma nova crise Vive-se agrave
espreita em estado de alerta atento aos sintomas temendo colocar em risco a estabilidade
conquistada com o tratamento Natildeo se pode retomar a vida como antes e tambeacutem natildeo se sabe o
que eacute possiacutevel sustentar dali em diante iniciando-se entatildeo um processo de paralizaccedilatildeo e
mortificaccedilatildeo da vida
No estudo de Pereira Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise em um CAPSi
do Rio de Janeiro nota-se que a experiecircncia da crise se desdobrou em medo inseguranccedila e
perda do interesse nas atividades do cotidiano o que pode ser destacado nas falas a seguir
Thiago deixou de jogar futebol com os amigos de ir agrave escola ldquoporque eacute melhor natildeordquo
(sic) () Leticia tambeacutem deixou de frequentar a escola apoacutes a uacuteltima crise e perdeu
o interesse pelas atividades diaacuterias que antes realizava Sua matildee ao mesmo tempo
natildeo ldquoconfiavardquo mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha
temendo que esta pudesse ldquose perderrdquo (ibidem 3739)
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Haacute um certo recuo diante da vida um fechamento em si mesmo como forma de defesa
contra a loucura e o estigma social associado agrave ela Com isso tem-se a perda das antigas
amizades e a dificuldade de se estabelecer novos laccedilos sociais em um processo crescente de
empobrecimento da vida
Ela soacute gosta de dormir vocecirc falou Leticia Soacute quer saber de dormir Antes ela gostava
de fazer as coisas agora natildeo gosta natildeo Natildeo ajuda em casa natildeo faz nenhum trabalho
soacute dorme [hellip] Antes dela ter essa crise uacuteltima ela vinha no centro pra mim fazia as
coisas Mas agora ela anda tatildeo desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as
coisas [hellip] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro pegar o
ocircnibus errado natildeo sei (ibidem3739)
No estudo de Milhomes e Martin (2014) com um grupo de jovens que fazem
acompanhamento em um CAPS II na cidade de Satildeo Paulo quando questionados sobre saiacutedas
os jovens mencionavam idas agrave igreja mercados e festas de familiares A grande maioria referia
ficar em casa com a famiacutelia auxiliando nas tarefas da casa e da vida domeacutestica de modo que
pouco se falava sobre festas ou encontro com os amigos Majoritariamente o grupo de amigos
que esses usuaacuterios tinham contato era o do CAPS havendo apenas um dos seis jovens
entrevistados que participava de um grupo de funk fora do CAPS ldquoNota-se que apoacutes a primeira
crise psiacutequica esses jovens se veem afastados das antigas amizades apresentando importante
isolamento social e perda destes pontos de partilhardquo (ibidem 1113)
Quanto agraves possibilidades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho esse mesmo estudo aponta
que apoacutes o iniacutecio do tratamento a inserccedilatildeo possiacutevel desses jovens no mercado de trabalho se
deu predominantemente pela via do trabalho informal atraveacutes de ldquobicosrdquo e negoacutecios familiares
que permitiam uma maior flexibilidade de horaacuterios e conciliaccedilatildeo com a frequecircncia no
tratamento
Nenhum dos jovens no periacuteodo das entrevistas possuiacutea emprego formal Cinco deles
haviam trabalhado com carteira assinada antes da primeira crise e somente um
retomou este tipo de emprego apoacutes a crise enquanto os outros apesar das tentativas
natildeo conseguiram exercendo uma atividade laborativa sob outros moldes
(MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Embora natildeo se possa deixar de considerar que a primazia do trabalho informal estaacute
relacionada agrave um contexto mais amplo da economia nacional nos uacuteltimos tempos a
precariedade e falta de espaccedilo para a inserccedilatildeo de pessoas com transtorno mental no mundo do
trabalho impacta diretamente na sauacutede mental dessas pessoas trazendo prejuiacutezos ao seu
processo de construccedilatildeo de autonomia reinserccedilatildeo social e independecircncia financeira
Outros estudos como a pesquisa de Fiorati e Saeki com homens com idades entre 30 e
50 anos em uma unidade de internaccedilatildeo na cidade de Satildeo Paulo apontam resultados parecidos
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ldquoos usuaacuterios atendidos por noacutes interromperam seus processos de escolaridade ou atividade
profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade
produtivardquo (2008 767) Essa ruptura estendeu-se ainda no campo dos viacutenculos afetivos e
sociais dos participantes ldquoseus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados
casamentos interrompidos ou nunca iniciados Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de
redes de relacionamento social natildeo namoravam natildeo tinham amizades ou qualquer ligaccedilatildeo
interpessoal espontacircneardquo (ibidem 768)
O estudo de Milhomens e Martin (2014) se propocircs a pensar as causas desse isolamento
social percebido apoacutes o episoacutedio de crise Em entrevista com os jovens participantes um dos
motivos apontados por eles era ldquoa vergonha e a dificuldade de lidar com esses encontros e
exposiccedilotildees perante olhares e perguntas que causam incocircmodordquo (ibidem 1114)
A vergonha figurava como motivo de restriccedilatildeo da circulaccedilatildeo pelo territoacuterio pois assim
evitava-se o possiacutevel desconforto de encontrar amigos ou vizinhos ter que cumprimentaacute-los e
dar-lhes explicaccedilotildees sobre a vivecircncia da crise A experiecircncia da vergonha pode ser tatildeo
assustadora a ponto como em um dos casos do entrevistado sequer sentir-se confortaacutevel para
retornar a sua antiga residecircncia
Aiacute depois eu natildeo voltei mais pra casa fiquei meio traumatizado com vergonha
tambeacutem na eacutepoca Tudo essas coisas da crise de iniacutecio vocecirc natildeo sabe neacute entatildeo fica
ndash Olha o cara eacute doido [] (vergonha) das coisas que eu fiz neacute [] mesmo se eu
pudesse eu natildeo voltaria a morar laacute sei laacute por vergonha essas coisas (M homem
28 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Segundo esse mesmo estudo outro aspecto do isolamento se daacute como uma defesa e uma
resposta pelos usuaacuterios terem se sentido abandonados pelos amigos nos momentos em que
mais precisavam deles isto eacute nos periacuteodos de crise
Ah mudei assim que agora eu tomo remeacutedio agraves vezes assim pra amizade eu fico
mais na minha As pessoas estatildeo conversando e eu natildeo tenho parece assim que eu
natildeo tenho assunto com as pessoas sabe [] Era aquela flor amiga pra laacute amiga pra
caacute Aiacute quando quando que eu caiacute numa cama todo mundo desapareceu[] (D
mulher 20 anos) (ibidem1113)
O fato de precisar fazer um tratamento e tomar medicaccedilatildeo psiquiaacutetrica tambeacutem aparece
como um elemento que imprime uma marca e estabelece uma diferenccedila separando
categoricamente loucura de normalidade em um caminho sem volta como se a partir daquele
ponto eles nunca mais pudessem ser como os outros
Letiacutecia lamenta ainda por ter ficado ldquodiferente das outras pessoasrdquo pois devido agrave crise
ldquoprecisava de tratamentordquo Relatava tambeacutem uma dificuldade em escrever e ldquocopiarrdquo
a mateacuteria porque a medicaccedilatildeo fazia sua matildeo tremer (PEREIRA SAacute MIRANDA
2017 3739)
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Essa diferenccedila tambeacutem aparece na perspectiva dos profissionais No estudo de Pereira
Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise na perspectiva dos profissionais a crise traz
uma perda natildeo apenas da vida que se tinha mas da vida que o adolescente ainda poderia ter
[hellip] natildeo vai ser igual nunca Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que
surtam voltarem a ser como eram antes[hellip]Porque eu acho que a psicose eacute isso ne
Vocecirc perde algo do que vocecirc tinha e tambeacutem perde a habilidade de adquirir novas
aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivos neacute (Profissional do serviccedilo)
(PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3740)
Nesse sentido a crise na infacircncia aparece para os profissionais como ainda mais grave
do que na vida adulta visto que desde aquele momento a perda jaacute estaria colocada limitando
as possibilidades do adolescente para toda a vida como vemos nas falas a seguir
Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertoacuterio tatildeo comeccedilando a
vida ainda tatildeo no meio do ciclo acadecircmico [hellip] parece que a cada surto se perde um
pouquinho Vai se perdendo algo Eacute muito cedo neacute O prognoacutestico eu considero mais
negativo na adolescecircncia do que na fase adulta (Profissional do serviccedilo) (PEREIRA
SAacute MIRANDA 2017 3740)
Talvez eu ache que o surto do adolescente eacute muito mais florido Impactante eacute a
palavra Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto Eacute mais
impactante sim Porque pega os pais numa situaccedilatildeo de Poxa o cara tava na escola
tava andando as coisas tatildeo indo E esse adolescente eacute ainda um pouco dependente e
aiacute eu acho que a inserccedilatildeo da famiacutelia eacute diferente da famiacutelia do adulto Porque o adulto
jaacute eacute dono de si jaacute tem um caminho andado natildeo sei acho que eacute por aiacute (Profissional
do serviccedilo) (ibidem3740)
Porque quando eacute uma crianccedila pequena esses pais jaacute vatildeo percebendo que lsquoPoxa vida
tem alguma coisa diferente com elersquo E mesmo que seja assim lsquoEle foi normalzinho
ateacute dois anos eacute diferente dele ser normalzinho ateacute dezesseis anos ateacute quinze anos O
que aconteceu com essa criatura que numa semana taacute bem e na outra semana natildeo
Que tira roupa na rua ou bate ou que agride o pairsquo [hellip] (Profissional do serviccedilo)
(ibidem3740)
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede As perdas que os usuaacuterios
vivenciam a perda da autonomia das relaccedilotildees sociais da capacidade laborativa etc satildeo apenas
um reflexo maior dos efeitos dessa diferenccedila na nossa sociedade
Retomando a fala de uma profissional ldquonatildeo vai ser igual nuncardquo natildeo se trata de negar
essa diferenccedila Poreacutem eacute preciso entender que a perda em questatildeo natildeo eacute a perda da ldquohabilidade
de adquirir novas aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivosrdquo mas a perda do
sentido isto eacute da construccedilatildeo de mundo que havia antes da vivecircncia da crise (PEREIRA SAacute
MIRANDA 2017 3740)
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Como qualquer outra experiecircncia singular e impactante que vivemos em nossas vidas
a crise tem o poder de questionar o modo de vida de uma pessoa recriando o mundo e
redistribuindo os sentidos ao redor dela Nem sempre os sentidos construiacutedos seratildeo
compartilhados ou compreensiacuteveis mas eacute possiacutevel sustentar estar junto com algueacutem mesmo
assim mesmo sem entender do mesmo modo que sustentamos estar junto com pessoas que
compartilham de visotildees de mundo muito diferentes das nossas A loucura nesse ponto eacute soacute mais
um modo de se relacionar com o mundo como tantos outros diferentes dos nossos Os sentidos
construiacutedos a partir de uma crise natildeo seratildeo os mesmos de antes mas tambeacutem podem ser potentes
e criadores de vida
413 CRISE COMO APROPRIACcedilAtildeO DA EXPERIEcircNCIA E RECONSTRUCcedilAtildeO DE
SENTIDOS
Na pesquisa de Milhomens e Martin (2014) com jovens em um CAPS adulto em Satildeo
Paulo observou-se que alguns entrevistados especialmente os que jaacute estavam haacute mais de dois
anos em acompanhamento
com a experiecircncia das crises vatildeo adquirindo estrateacutegias e ampliando as formas de
lidar e de se perceber em relaccedilatildeo ao proacuteximo Um dos entrevistados diz que pede para
que seus pais o avisem quando ele natildeo estiver bem Outra integrante diz que quando
percebe olhares estranhos para ela cogita a possibilidade ser somente uma impressatildeo
errada ldquocoisa da minha cabeccedila3rdquo (D mulher 20 anos) (ibidem1114)
Quando questionados sobre a compreensatildeo que tinham sobre o termo ldquoloucurardquo
percebe-se que em alguns casos natildeo se tinha a concepccedilatildeo por doenccedila ateacute a chegada ao CAPS
Aiacute foi aonde que eu fiquei ruim neacute num tava conhecendo ningueacutem tava vendo coisa
e eu jaacute tinha esse negoacutecio de escutar vozes mas pra mim era um negoacutecio normal
(F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Eacute importante ressaltar que reconhecer o fato de ouvir vozes como algo ldquonormalrdquo natildeo
significa que natildeo haja sofrimento implicado nessa vivecircncia visto que ldquoescutar vozesrdquo e ldquover
coisasrdquo falam de uma certa experiecircncia de invasatildeo da consciecircncia Do mesmo modo podemos
imaginar que natildeo reconhecer as pessoas com quem habitualmente se convive deve ser algo um
tanto assustador No entanto o que gostariacuteamos de destacar com esse trecho eacute o fato dessa
experiecircncia natildeo ter sido considerada pelo entrevistado como signo de uma ldquodoenccedilardquo Embora
3 Alterado pela pesquisadora a partir do texto original ldquocoisa da minha cabe drdquo (D mulher 20 anos)
(MILHOMENS A E MARTIN D 2014 1114) pelo fato da mesma entender que houve erro de digitaccedilatildeo na
palavra ldquocabeccedilardquo
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os diagnoacutesticos possam ser importantes para a praacutetica cliacutenica os efeitos desse diagnoacutestico para
os pacientes se mostram muito mais limitantes do que propulsores de vida
Vemos que mesmo nas situaccedilotildees em que haacute um julgamento social em torno da doenccedila
quando o usuaacuterio consegue se apropriar da sua experiecircncia em relaccedilatildeo agrave loucura com
tranquilidade e maturidade ele encontra forccedilas para lidar com situaccedilotildees que antes eram motivo
de vergonha ou isolamento como vemos na fala a seguir
Os outros me chamavam de Elias Maluco Hoje em dia os outros chama ainda eu levo
na brincadeira eu natildeo me sinto ofendido Quando eu tava ruim eu me sentia ofendido
entendeu Eu levo numa boa entendeu (F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Retomando a categoria anterior ldquoa crise como perda e isolamento socialrdquo Milhomens
e Martin (2014) assinalam que apoacutes o episoacutedio de crise alguns participantes de sua pesquisa
deixaram de sair e de circular pelo territoacuterio para natildeo ter que lidar com os questionamentos dos
vizinhos amigos e conhecidos em torno da sua doenccedila Nesse sentido a fala do usuaacuterio acima
fomenta outras formas de lidar com os possiacuteveis obstaacuteculos que a sociedade impotildee agrave loucura
Sua apropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da loucura faz com que ele natildeo se abale ao ser
chamado de ldquomalucordquo Haacute aiacute a invenccedilatildeo de uma forccedila e de uma potecircncia de vida que sustenta
novas possibilidades de estar na comunidade apesar das adversidades
Outro aspecto que nos chamou atenccedilatildeo nesse estudo foi a relaccedilatildeo que alguns usuaacuterios
conseguiram estabelecer com a sua medicaccedilatildeo Embora a maioria natildeo soubesse informar os
nomes e quantidades bem como a finalidade teacutecnica das mesmas muitos conseguiam mostrar
propriedade na avaliaccedilatildeo dos ldquoganhos e perdasrdquo que a medicaccedilatildeo causava em suas vidas
MILHOMENS MARTIN 2014)
Um dos impasses vivenciados por eles nesse sentido era o conflito entre beber eou
usar drogas e ter que tomar a medicaccedilatildeo Sabe-se que a interrupccedilatildeo do tratamento
medicamentoso pode causar efeitos colaterais importantes e ateacute mesmo agravar os sintomas do
quadro que se pretendia tratar Posto isso esses jovens se viam no dilema de ter que optar entre
um e outro avaliando seus riscos e benefiacutecios como vemos na fala a seguir
Aiacute os moleques tava indo fumando uma maconha laacute aiacute eu ia ficava olhando ndash Seraacute
que eu posso Seraacute que natildeo posso ndash aiacute parei de tomar o remeacutedio pra natildeo prejudicar
tipo pensei assim ndash Se eu para de tomar o remeacutedio acho que eu vou poder beber e
vou poder usar droga [] Sem (a medicaccedilatildeo) fico agitado fico agitado ando de um
lado pro outro arrumo a casa arrumo tudo [risos] e tipo jaacute o coraccedilatildeo sei laacute meio que
acelera Eu sei lidar com isso entendeu Pra ficar mais tranquumlilo fumo um cigarro
fumo ateacute mais cigarro quando acelera o coraccedilatildeo mas isso tipo se eu ficar uns por
exemplo ficar hoje hoje eacute quinta se eu ficar ateacute quarta sem tomar eu fico tranquumlilo
mas como a meacutedica falou a medicaccedilatildeo fica no organismo tem uns dias e tal mas se
eu passar de uma semana sem tomar vixi sei laacute eu natildeo sei se eacute isso ou eacute psicoloacutegico
60
pode daacute uma inseguranccedila vocecirc jaacute fica meio com receio aiacute jaacute fica pilhado deve ser
isso tambeacutem (J homem 24 anos)- (MILHOMENS MARTIN 2014 1116)
Observa-se por outro lado que embora a capacidade de autonomia e de participaccedilatildeo do
usuaacuterio no seu tratamento seja valorizada no modelo substitutivo o questionamento em relaccedilatildeo
aos proacutes e contras do uso da medicaccedilatildeo natildeo foi acolhido pelo serviccedilo e como consequecircncia os
usuaacuterios acabavam por fazer uma gestatildeo solitaacuteria da sua medicaccedilatildeo sem poder contar com o
serviccedilo enquanto um parceiro nessa decisatildeo
Quando um desses jovens fazia uma escolha em relaccedilatildeo ao seu tratamento como
interromper o uso da medicaccedilatildeo para fazer uso de drogas ou para conseguir levantar
cedo para estudar tal atitude era vista pelo serviccedilo como contraacuteria ao tratamento
Como se o exerciacutecio da autonomia soacute coubesse quando exercida em concordacircncia com
a disciplina oferecida pelo serviccedilo Optar por natildeo mais fazer uso da medicaccedilatildeo eacute
tratado como irresponsabilidade ou ldquopiora do quadrordquo (ibidem 1117)
Assim vemos que a relaccedilatildeo dos usuaacuterios com o serviccedilo sofre algumas tensotildees e muitas
vezes satildeo os proacuteprios usuaacuterios que vatildeo encontrar meios de ressignificar e modificar essas
relaccedilotildees como podemos ver na fala desse entrevistado a respeito dos grupos oferecidos no
CAPS
Os grupos eacute pra iniacutecio da crise quando tudo eacute novidade entatildeo todo grupo eacute
interessante por mais babacatildeo assim Quando a gente vai melhorando assim parece
ser meio babaca mas natildeo eacute Porque a gente natildeo taacute acostumado mas assim pintar
essas coisas que parece que eacute pra crianccedila neacute mas nossa mente taacute como de crianccedila
entatildeo parecia uma coisa meia agraves vezes quando passava em mim eu falava ndash O que
eu tocirc fazendo aqui ndash mas esses grupos me fizeram enxergar que tinha mais gente
igual eu que tinha gente numa fase pior que a minha outras melhores me ajudou
bastante (M homem 28 anos) (ibidem 1117)
Segundo os pesquisadores ldquopintar desenhos infantis e promover brincadeiras de
crianccedilas eram atividades rotineiras neste serviccedilo utilizadas com o intuito de entreter as pessoas
que ali estavamrdquo (MILHOMENS MARTIN 2014 paacutegina) Tais atividades promovidas de
forma burocraacutetica e sem aproximaccedilatildeo real com o cotidiano dos usuaacuterios contribuem para a
interrupccedilatildeo ou desistecircncia do tratamento Mesmo assim o entrevistado surpreende e lanccedila um
outro olhar para o serviccedilo reconhecendo o que na sua perspectiva ele traz de efetivamente
importante para o seu tratamento a possibilidade de se reconhecer na experiecircncia do outro e de
se conectar com pessoas que vivem os mesmos problemas e questotildees Esse eacute um elemento
proacuteprio do dispositivo grupal que por si soacute jaacute imprime um novo significado ao tratamento
oferecendo um lugar diferente do de incapacitado e infantilizado
Os usuaacuterios vatildeo encontrando cada um agrave sua maneira meios de lidar com as crises com
o estigma social e com a necessidade de sustentar seu tratamento Os recursos apontados por
eles aparecem como algo da ordem da construccedilatildeo de um saber leigo advindo da experiecircncia
subjetiva da crise e da relaccedilatildeo que eles mantem com o seu contexto soacutecio-cultural
61
Notamos que nesse processo os usuaacuterios foram capazes de criar estrateacutegias para o
enfrentamento da sua condiccedilatildeo ressignificando a relaccedilatildeo com o tratamento e encontrando
meios de estar na vida social ldquomantendo-se em movimento na composiccedilatildeo contiacutenua de novos
territoacuterios tendo a crise como principal agente de mudanccedilas e criaccedilotildeesrdquo (GUATTARI
ROLNIK 1996 apud MILHOMENS MARTIN 2014 876)
Na pesquisa de Costa (2007) com um integrante da luta antimanicomial e profissionais
da enfermaria de agudos feminina do IMAS Nise da Silveira e do EAT (Espaccedilo Aberto ao
Tempo) tambeacutem encontramos olhares e concepccedilotildees em torno da crise que se afastam da
perspectiva claacutessica medicalocecircntrica da crise enquanto iacutendice de desajuste do quadro
psicopatoloacutegico resultando em periculosidade e risco social como vemos na fala a seguir
Para mim a concepccedilatildeo que eu tenho de crise eacute a seguinte eacute quando seus pensamentos
estatildeo de tal ordem bagunccedilados que vocecirc natildeo consegue fazer coisas corriqueiras que
vocecirc geralmente costuma fazer Para mim isso eacute uma crise Natildeo significa que isso
seja uma coisa violenta que vocecirc tenha uma crise e fique violento Vocecirc pode ter uma
crise de depressatildeo pode ficar muito triste natildeo conseguir se relacionar com as pessoas
Entatildeo para mim crise eacute quando vocecirc estaacute em um estado tal de confusatildeo de
imobilidade que vocecirc natildeo consegue fazer suas coisas corriqueiras Isso para mim eacute
uma concepccedilatildeo (Integrante do Movimento da Luta Antimanicomial) (COSTA
2007 105)
Para esse usuaacuterio a crise aparece enquanto um estado de confusatildeo em que os
pensamentos estatildeo de tal modo desorganizados que fica difiacutecil dar conta ateacute mesmo das coisas
mais simples do cotidiano Haacute nessa concepccedilatildeo a ideia da crise relacionada a uma perda que eacute
a perda das referecircncias de mundo que se havia constituiacutedo ateacute entatildeo A crise vem e mexe com
o sistema de referecircncia do sujeito ldquobagunccedilardquo os pensamentos A agressividade eacute um dos modos
de se reagir agrave essa ruptura com o instituiacutedo mas natildeo o uacutenico Assim o que fica enquanto questatildeo
dessa fala eacute o que fazer para que essa perda de sentidos natildeo seja paralisante De que modo
podemos aproveitar o movimento da crise para reconstruir os sentidos perdidos e imprimir
novos movimentos de vida aos sujeitos
A fala desse profissional aponta alguns caminhos
[] Pelo menos como eu vejo o surto psicoacutetico eacute exatamente a colocaccedilatildeo em xeque
das referecircncias que sustentavam uma situaccedilatildeo sustentavam um estado de coisas que
de repente rui ou ameaccedila ruir ou comeccedila a ficar em questatildeo ()Muitas vezes o que
a gente vecirc na loucura eacute uma perda mesmo de sentido (Psiquiatra supervisor da equipe
da enfermaria de agudos feminina) (COSTA 2007 104 grifos nossos)
[] Entatildeo muitas vezes o que a gente acredita o que gente constroacutei a partir da nossa
praacutetica eacute que a possibilidade de algueacutem estar intervindo trabalhando junto na crise
pode muitas vezes em algumas situaccedilotildees facilitar a possibilidade de construccedilatildeo ou
reconstruccedilatildeo de referecircncias Quais vatildeo ser em princiacutepio a gente sugere que natildeo se
sabe Porque tem uma seacuterie de fatores sociais em volta proacuteximo do sujeito no
contexto da famiacutelia que tendem muitas vezes a querer recobrar ou retomar uma
62
situaccedilatildeo anterior [] eu acho que quando a gente estaacute intervindo junto na crise a
gente tem que ter o cuidado de natildeo querer construir novos sentidos ou tatildeo pouco
querer reconstruir os velhos porque a gente natildeo sabe Porque eacute possiacutevel que alguns
natildeo suportem retomar aquilo nem tenham a menor condiccedilatildeo a gente natildeo tem como
saber isso antes A gente tem que estar acompanhando junto com cuidado fazendo o
que for preciso Agora eacute claro que por isso mesmo a crise eacute um momento privilegiado
de possibilidades de emergirem novos sentidos muitas vezes essa produccedilatildeo de
sentido eacute do proacuteprio sujeito Pode ser um sentido delirante mas enfim eacute delirante no
sentido positivo E aiacute eacute claro que se espera que a intervenccedilatildeo natildeo seja para calar esse
sentido (Psiquiatra supervisor da equipe da enfermaria de agudos feminina) (ibidem103 grifos nossos)
Haacute uma preocupaccedilatildeo colocada em natildeo se adiantar em querer restituir o estado de coisas
anterior pois a gente natildeo sabe pode ser que o sujeito natildeo sustente mais retornar agrave vida que ele
levava antes Nessa perspectiva a crise eacute mais do que apenas um estado de desequiliacutebrio
momentacircneo ela eacute iacutendice de que algo precisa ser mudado Os velhos arranjos que o sujeito
tinha para lidar com o sofrimento natildeo satildeo mais suficientes e com isto surge a necessidade de
rever esses arranjos e pensar em novas formas de organizaccedilatildeo para o sujeito e seu cotidiano
Segundo um dos entrevistados
A crise pode ser uma grande chance de vocecirc produzir alguma coisa com aquele
indiviacuteduo alguma coisa diferente produzir a mudanccedila Ou pode ser a chance de vocecirc
fazer exatamente nada no sentido de que tirou da crise o cara volta para a vida
exatamente igual (Psiquiatra da enfermaria de agudos feminina) (ibidem 102)
Voltar exatamente igual seria justamente ignorar o que a crise produz em termos de
subjetividade no sujeito Se tomamos a crise como iacutendice de uma mudanccedila na subjetividade
isto eacute na forma como aquele sujeito se constitui para o mundo entatildeo eacute preciso pensar se os
recursos que ele tem estatildeo agrave altura da nova realidade psiacutequica em que ele se encontra Assim eacute
preciso tomar a crise enquanto um acontecimento que pode apontar para a necessidade de uma
mudanccedila na realidade concreta do sujeito no modo em que ele vive nas suas relaccedilotildees sociais
no modo como organiza seu cotidiano etc A crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um
evento analisador4 que ldquo propicia a criaccedilatildeo de recursos e estabelece uma urgecircncia de
realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (COSTA 2007
101)
Sobre esse aspecto uma profissional conta
Uma coisa que eu lembrei que vocecirc falou da crise me lembrei do CH Ele morava na
casa dos pais que morreram e que foi a casa onde ele cresceu Os pais eram muito
austeros e ele tem muitas recordaccedilotildees naquela casa Ele haacute muito tempo vinha pedindo
para sair daquela casa principalmente quando ele estava ldquoem criserdquo quando ele natildeo
estava ldquobemrdquo Quando algumas coisas aparecem a agressividade por exemplo eacute um
dos sinais de quando ele estaacute em crise aquela doccedilura dele toda natildeo aparece aparece
4 Ver Guattari F (2004) Psicanaacutelise e transversalidade ensaios de anaacutelise institucional Aparecida SP Ideacuteias
amp Letras (Original publicado em 1972)
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mais uma agressividade uma irritabilidade No caso dele parece que satildeo duas pessoas
parece que duas pessoas habitam o mesmo corpo E ele falava muito de querer sair e
quando ele melhorava acabava que O tempo passou eu natildeo sei muito bem montar
essa histoacuteria um trabalho que a Carla fez e a famiacutelia entendeu que era mais do que
quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil tambeacutem e aiacute se comeccedilou
a procurar a casa E aiacute teve um periacuteodo minus porque ao mesmo tempo em que ele queria
sair quando ele viu a saiacuteda isso mexeu minus em que ele natildeo ficou bem e pedia para ficar
no hospital porque para ele era insuportaacutevel ficar naquela casa mas a outra casa ainda
natildeo tinha saiacutedo e a gente ldquoNatildeo mas aqui no hospital natildeo vamos negociar vocecirc fica
um diardquo E aiacute acabou que ele conseguiu alugar a casa dele estaacute superfeliz Mas esse
periacuteodo da procura da casa foi um periacuteodo em que ele pode ateacute natildeo ter entrado numa
crise mas ele natildeo estava bem natildeo estava bem por todas essas mudanccedilas porque ele
natildeo queria tambeacutem eacute difiacutecil mudar Eu natildeo sei mas numa loacutegica psiquiaacutetrica
tradicional talvez nunca se mexesse na casa e talvez diriam ldquoViu soacute como natildeo foi
bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo (Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)
(ibidem 102)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado da histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social habitacional e
relacional Eacute a partir dela que a equipe entende que natildeo eacute mais possiacutevel sustentar a permanecircncia
do usuaacuterio naquela casa A profissional ao mesmo tempo ressalta o quanto eacute difiacutecil e delicado
esse trabalho que face agrave menor mudanccedila na sintomatologia do usuaacuterio corre o risco de ser
inteiramente questionado ldquo viu como natildeo foi bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo
Assim desconstruir o paradigma manicomial implica em uma aposta incansaacutevel no
sujeito em dar creacutedito ao que ele fala e aponta como direccedilotildees possiacuteveis para seu cuidado Ainda
assim eacute preciso reconhecer que o que quer que se construa com ele seraacute sempre uma construccedilatildeo
provisoacuteria posto que as pessoas estatildeo em constante movimento de territorizalizaccedilatildeo e
desterritorializaccedilatildeo de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo de si proacuteprio e do mundo ao seu redor
Estar aberto para essa construccedilatildeo exige que os profissionais possam rever as concepccedilotildees
de crise que embasam suas praacuteticas No lugar das certezas da Psiquiatria Claacutessica eacute preciso
abrir espaccedilo para uma ldquopraacutetica aberta agrave invenccedilatildeo agrave singularidade cuja tecnologia se vai
construindo permeaacutevel aos elementos de vidardquo (Costa 2007 105) A narrativa a seguir fala
um pouco desse aspecto do trabalho
Para mim eacute isso crise eacute isso Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o
sobrinho dele morreu assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver
com uma situaccedilatildeo que ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele
continuou trabalhando na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de
trabalho E eu me lembro que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele
tirar todos os documentos E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do
nascimento dele e ele me mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e
nasceu e contou histoacuteria A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com
ele porque ele explodiu[] E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos
de novo E a gente entendeu que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia
muito que a gente o ajudasse eacute como se ele pulverizasse e a gente entendia que ele
tinha um pedido de organizaccedilatildeo Tanto eacute que ele pediu para arrumar a cantina ele
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queria arrumar as coisas da cantina depois do expediente Os documentos eu acho
que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que ele acabou entre aspas
perdendo Acho que a coisa foi meio por aiacute mas isso foi a histoacuteria dele com J seria
outra coisa com N seria outra Eu acho que vai muito por aiacute Por isso que eu natildeo tenho
uma coisa pronta Mas nas vivecircncias a gente vai vendo como vai fazendo (Psicoacuteloga
do Espaccedilo Aberto ao Tempo) (ibidem 105)
A perspectiva dessa profissional se contrapotildee a uma visatildeo mais tradicionalista da crise
que ldquovai dizer que [a crise] eacute um sintoma que ela estaacute descolada da realidade e vocecirc tem que
fazer a remissatildeo do sintoma entatildeo quando ele [o paciente] melhora eacute porque ele paacutera de delirar
e funciona em um registro mais normal mesmo que seja dopado de medicaccedilatildeo mesmo que
vocecirc esteja matando eacute isso(Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)rdquo (Costa 2007 105)
Acompanhar o movimento do sujeito em seus percursos e trajetoacuterias em busca de sauacutede
(no Parque da Catacumba na arrumaccedilatildeo da cantina na retirada dos documentos) diz de uma
postura diante da crise fundada na sustentaccedilatildeo de um natildeo saber A sustentaccedilatildeo de natildeo ter uma
resposta agrave priori eacute o que vai permitir que se possa embarcar com o paciente em novos sentidos
para sua loucura Normalmente o senso comum tende a acreditar que uma pessoa em surto
psicoacutetico faz e fala coisas sem sentido e que por isso devemos ignoraacute-las A ideia aqui eacute agir no
sentido inverso tomar as accedilotildees e falas do sujeito em crise como um saber legiacutetimo sobre si
Trata-se de retomar um pouco a ideia de Freud do deliacuterio enquanto uma tentativa de cura e
apostar na capacidade inventiva do sujeito de criar saiacutedas para seu sofrimento
Enquanto uma visatildeo mais tradicionalista da crise retiraria o sujeito do seu contexto de
vida para isolaacute-lo em uma instituiccedilatildeo de tratamento sob a justificativa de monitorar avaliar e
examinar a evoluccedilatildeo do quadro psicopatoloacutegico uma visatildeo mais ampliada da crise vai situar
esse acontecimento dentro do contexto de vida da pessoa e buscar superaacute-la trabalhando com
os elementos que fazem parte de seu cotidiano como o territoacuterio as relaccedilotildees sociais a histoacuteria
de vida etc Trata-se portanto de buscar uma saiacuteda da crise a partir da histoacuteria de vida do
sujeito e de sua realidade acolhendo os caminhos que ele aponta Vista desse modo a crise eacute
um modo de subjetivaccedilatildeo que soacute se constitui no mundo concreto e coletivo o qual o sujeito faz
parte e soacute pode se transformar na medida em que esse mundo tambeacutem se transforma para ele
42 DESAFIOS E POTENCIALIDADES NO ACOLHIMENTO A CRISE
Segundo a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (2013)
Acolher eacute reconhecer o que o outro traz como legiacutetima e singular necessidade de
sauacutede O acolhimento deve comparecer e sustentar a relaccedilatildeo entre equipesserviccedilos e
usuaacuterios populaccedilotildees Como valor das praacuteticas de sauacutede o acolhimento eacute construiacutedo
de forma coletiva a partir da anaacutelise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
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construccedilatildeo de relaccedilotildees de confianccedila compromisso e viacutenculo entre as
equipesserviccedilos trabalhadorequipes e usuaacuterio com sua rede socioafetiva (spag)
Tal poliacutetica considera ainda que o acolhimento eacute uma postura eacutetica e tecnologia
relacional de escuta qualificada a ser oferecida de acordo com agraves necessidades dos usuaacuterios e a
partir de uma avaliaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade gravidade e riscordquo (BRASIL 2013)
Tendo essa concepccedilatildeo de acolhimento como direccedilatildeo visamos atraveacutes da anaacutelise dos
artigos estudados nessa pesquisa trazer algumas contribuiccedilotildees para pensar como tem se dado
o acolhimento agrave crise na RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e quais satildeo os principais
impasses estrateacutegias e ferramentas cliacutenicas que os profissionais encontram na prestaccedilatildeo desse
cuidado no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede
Desse modo a partir da revisatildeo da literatura podemos dizer que um dos primeiros
desafios que se coloca no acircmbito do acolhimento agrave crise eacute que este natildeo seja apenas um processo
de triagem Sobre esse aspecto a pesquisa de Paulon et al (2012) encontrou resultados
relevantes Os autores entrevistaram trabalhadores e gestores de emergecircncias de hospitais gerais
na cidade de Porto AlegreRS aleacutem de analisarem os protocolos utilizados por essas unidades
no processo de acolhimento
Nos protocolos analisados por Paulon et ali (2012) chama atenccedilatildeo o fato de que em
nenhum momento a palavra ldquoacolhimentordquo eacute utilizada Os autores destacam que em um desses
documentos a palavra ldquotriagemrdquo eacute utilizada em seu lugar como um criteacuterio que permite
ldquoclassificar e escolherrdquo
O texto de introduccedilatildeo deste documento segue descrevendo a origem militar desse
termo utilizado em campos de batalha para escolher ldquoquem valeria a pena salvarrdquo de
acordo com os recursos disponiacuteveis dentre aqueles feridos em combate ldquoo objetivo
geral da classificaccedilatildeo era retornar o maior nuacutemero possiacutevel de soldados ao campo de
batalhardquo (FERNANDES RAMOS FRUSTOCKL FRANCcedilA sd 1 apud PAULON
ET AL 2012 75)
Difiacutecil pensar em produzir relaccedilotildees de cuidado a partir de um texto que orienta os
profissionais a pensarem nos seus pacientes como ldquosoldados em um campo de batalhardquo Vemos
que essa concepccedilatildeo de acolhimento enquanto triagem natildeo se restringe apenas a burocracia de
um documento sem efeitos na praacutetica mas encontra-se presente e viva no discurso dos
profissionais desse hospital como observamos na fala a seguir ldquono acolhimento os pacientes
relatam o seu problema e a partir daiacute eacute triado de acordo com a classificaccedilatildeo de riscordquo (
PAULON ET AL 2012 76 grifo do autor)
Outra profissional entrevistada associa o acolhimento ao filme ldquoTempos Modernosrdquo
relembrando a cena em que o personagem de Carlitos de tanto apertar parafusos sai repetindo
66
os movimentos desconexos rua afora Em seguida acrescenta que ldquoa sua proacutexima escala de
acolhimento ocorreraacute dali a dois meses e sente-se aliviada por isso pois prefere ficar nas
maacutequinas de raios-X do que ficar ali na linha de frenterdquo (ibidem 76)
Talvez o comentaacuterio da enfermeira revele um querer colocar as coisas em seus
ldquodevidos lugaresrdquo uma vez que o trabalho com a maquinaria requer mais
apropriadamente o tipo de conduta que lhe parece ser exigida para atuar nos
acolhimentos da emergecircncia Aleacutem disso as maacutequinas de raio-X natildeo precisam ser
esvaziadas de subjetividade do conteuacutedo psicossocial que insiste em ser sugado das
ldquopessoas-parafusordquo da linha de montagem do acolhimentotriagem (ibidem 76)
O acolhimento-triagem transforma a linha de cuidado em ldquolinha de montagemrdquo
tomando o sujeito como um objeto que precisa ser ldquotriadordquo ldquoencaminhadordquo e ldquoclassificadordquo
de acordo com os criteacuterios de um protocolo Perde-se a dimensatildeo leve e relacional desse
cuidado Aspectos como a escuta a produccedilatildeo de viacutenculo e a valorizaccedilatildeo do encontro natildeo tecircm
espaccedilo para emergir em meio ao tempo altamente controlado e aos procedimentos mecanizados
desse cuidado
Com resultado produz-se uma burocratizaccedilatildeo dos dois lados os pacientes veem o
acolhimento como mais um empecilho para ldquoresolverrdquo suas necessidades de sauacutede ou mesmo
para ldquousufruir do consumo de sua dose procedimentalrdquo e os teacutecnicos como castigo obrigaccedilatildeo e
perda de tempo pois estatildeo se afastando do cuidado que seria ldquoo verdadeiro cuidadordquo o cuidado
dos procedimentos das maacutequinas da medicaccedilatildeo etc
O que prevalece assim eacute um cuidado predominantemente vertical de procedimentos
biomeacutedicos para com um usuaacuterio submisso e em estado de passividade uma perfeita
apresentaccedilatildeo do claacutessico ldquopacienterdquo (ibidem 78)
Ao referir-se sobre o acolhimento palavras como ldquoraacutepido efetivo e estabilizadordquo foram
uma constante no discurso dos profissionais Segundo um dos entrevistados
A nossa proposta de acolhimento eacute um acolhimento raacutepido ele tem que ser raacutepido e
efetivo Porque agraves vezes o paciente chega pra mim e eu tenho que conseguir classificar
ele raacutepido justamente pra ele ter um atendimento mais raacutepido (sic)rdquo (ibidem 78)
O risco e a possibilidade de morte muitas vezes colocada associada agrave percepccedilatildeo de um
corpo fiacutesico em colapso eacute o que demanda a accedilatildeo raacutepida O diaacutelogo torna-se empobrecido e
restrito ao que estaacute prescrito nos protocolos de atendimento e o contato reduz-se a execuccedilatildeo de
procedimentos biomeacutedicos que visam a estabilizaccedilatildeo (medicaccedilatildeo afericcedilatildeo dos sinais vitais
entre outros)
A funccedilatildeo da emergecircncia segundo os entrevistados seria devolver a estabilidade das
funccedilotildees orgacircnicas ao corpo que estaacute sendo assistido () E todos os procedimentos
precisam ser feitos rapidamente pois a depender da gravidade do dano instalado
naquele organismo esse desequiliacutebrio poderaacute levar agrave morte (ibidem 78)
67
Entende-se que eacute necessaacuterio que a pessoa em situaccedilatildeo de crise tenha acesso ao cuidado
de forma raacutepida No entanto o que se observa eacute que a rapidez mencionada pelos profissionais
natildeo se restringe somente ao tempo de espera do atendimento mas as etapas e fases do
acolhimento Assim no intuito de ldquoacelerarrdquo a linha de cuidado o paciente recebe um
atendimento fragmentado e burocratizado cujo objetivo eacute conseguir determinar no menor
tempo possiacutevel qual paciente pode esperar qual deve ser atendido imediatamente qual deve ser
encaminhado para outro serviccedilo e qual deveraacute ser internado Sobre esse aspecto um entrevistado
ressalta
O funcionamento da emergecircncia eacute uma coisa mais Mc Donaldrsquos natildeo tem entrada
primeiro prato segundo prato terceiro prato Eles querem ver quem eacute que tem risco
que tenha que internar senatildeo olham o que precisa e lsquodeursquo A emergecircncia eacute voltada
para o foco da doenccedila ela focaliza no tratamento que estanque aquele sofrimento
emergenterdquo (sic) (ibidem 79 grifos nossos)
Os autores pontuam que essas satildeo decisotildees complexas que natildeo podem ser tomadas ldquono
menor tempo possiacutevelrdquo sem que haja necessariamente um processo de simplificaccedilatildeo do
atendimento no qual ldquoo trabalhador tenta adequar a demanda trazida pelo usuaacuterio agravequilo de
que o serviccedilo dispotildee para poder lidar com ela e salvaguardar algum sucesso no resultado do
trabalhordquo (ibidem 79)
Assim tem-se o que Merhy (2002) descreve como ldquotrabalho mortordquo isto eacute um cuidado
que ldquonatildeo estaacute em movimento- em relaccedilatildeordquo (apud PAULON ET AL 2012 79) O sujeito eacute
visto como um ldquoproblemardquo que precisa ser ldquoresolvidordquo a partir do uso das tecnologias que o
serviccedilo dispotildee Natildeo haacute tempo para se descobrir o que haacute de singular na crise daquele sujeito ou
inventar outras articulaccedilotildees que possam dar conta desse sofrimento
Esvazia-se o processo isolam-se as anguacutestias e a complexidade do atendimento da
pessoa que demanda cuidados adequando-a ao que o hospital pode fornecer ldquoOlham
o que precisa e lsquodeursquordquo (sic) (PAULON ET AL 2012 79 grifo do autor)
O acolhimento-triagem eacute a expressatildeo de todo um modo de cuidado duro constituiacutedo por
certos ldquosaberes bem definidosrdquo orientados para que as respostas sejam as mais adequadas e
eficientes no menor tempo possiacutevel Em nome de ideais como a otimizaccedilatildeo do tempo e dos
recursos reduccedilatildeo dos custos e do foco na sintomatologia produz-se um cuidado
homogeneizado padratildeo ldquoMc Donaldsrdquo que jaacute tem em sua cesta de ferramentas todas as
respostas possiacuteveis Assim cabe perguntar
Se o foco da atenccedilatildeo estaacute direcionado aos sinais vitais e agrave sintomatologia fiacutesica
presente no quadro cliacutenico em nome de uma agilidade e eficiecircncia no atendimento
qual seraacute o espaccedilo reservado para tudo o que natildeo estiver inscrito nesse script O que
sobra do sujeito-usuaacuterio que chega com sofrimentos difusos numa emergecircncia Que
acontece quando o tipo de dor e sofrimento que ldquourgerdquo num usuaacuterio eacute de outra ordem
68
que natildeo aquela que costuma estar no foco desses serviccedilos (PAULON ET AL 2012
81)
Parece que haacute um despreparo para lidar com as situaccedilotildees subjetivas que fogem do olhar
cartesiano da Medicina Tradicional e que exigem dos trabalhadores uma disponibilidade outra
de entrar em contato com a pessoa em sofrimento emprestar seu tempo seu corpo seu afeto
As entrevistas apontam que ldquoos profissionais sentem medo de cuidar daquilo que
desconhecem do que natildeo foram capacitadosrdquo (sic)rdquo (ibidem 86) Um outro desafio que
podemos destacar relacionado a esse despreparo eacute a interferecircncia do preconceito e do
julgamento moral no atendimento agrave algumas situaccedilotildees de sauacutede mental Segundo os
pesquisadores
O julgamento moral estaacute presente desde a triagem a qual culmina em uma
classificaccedilatildeo de risco que mescla a objetividade de protocolos organicistas com um
olhar moralizante da situaccedilatildeo que se encontra o usuaacuterio que chega para atendimento
o que acaba relegando a sauacutede mental a um segundo plano e fazendo seleccedilotildees a partir
de determinados paracircmetros como [] a comunhatildeo de preconceitos e valores sociais
no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como ldquoessencialmente natildeo
urgentesrdquo (os alcooacutelatras drogados e pacientes psiquiaacutetricos) a presteza maior no
atendimento a usuaacuterios de classe social e niacutevel cultural mais abastados a importacircncia
da identificaccedilatildeo dos que fingem ou estatildeo dizendo a verdade sobre suas urgecircncias e no
consenso de que se a dor ou o problema eacute antigo quem esperou tanto para acessar o
serviccedilo pode esperar mais (Neves 2006 692 apud PAULON ET AL 2012 84)
No caso de crises relacionadas ao uso abusivo de aacutelcool e outras drogas a equipe das
emergecircncias tende a assumir uma postura acusatoacuteria relegando a responsabilidade da crise ao
usuaacuterio que teria escolhido seguir esse caminho Acredita-se que por estes nada se tem a fazer
e que o melhor eacute ldquocuidar de quem realmente quer ser cuidadordquo Na praacutetica o atendimento dessas
situaccedilotildees revela ldquodescaso incapacidade de escuta ou ateacute negligecircncia para com sujeitos em crise
de abstinecircncia ou torporrdquo (PAULON ET AL 2012 85) Os autores ressaltam que
Nesse sentido subjugar um cidadatildeo que chega agrave emergecircncia com algum tipo de
sofrimento psiacutequico limite reduzindo-o a um lugar de pecado de vergonha pelos seus
atos fora dos padrotildees aceitos socialmente emerge da junccedilatildeo das loacutegicas meacutedica e
judiciaacuteria efetuada pela ativaccedilatildeo de categorias elementares da moralidade de um
discurso essencialmente parental-infantil que eacute o discurso dos cuidadores quando se
imbuem do saber absoluto sobre ldquoo que eacute bom para o outrordquo(ibidem85 )
O atravessamento das expectativas dos profissionais sobre a vida do outro somado aos
valores morais e culturais em vigor na sociedade fomentam um processo de culpabilizaccedilatildeo da
pessoa que procura ajuda o que pode culminar em uma niacutetida desresponsabilizaccedilatildeo com o
cuidado desses pacientes como vemos nos trechos a seguir
Esses sim esses noacutes da equipe de enfermagem temos bastantes dificuldades de lidar
porque tu vecirc o viacutecio como algo que a pessoa vai e faz por que quer tem livre arbiacutetrio
ele escolheu o viacutecio Ateacute as primeiras idas ateacute antes da dependecircncia (sic) (ibidem
84 grifo do autor)
69
Chegaram a dizer que ele era uma pessoa egoiacutesta e que natildeo tinha condiccedilotildees de
convivecircncia que era pra eu e minha matildee sairmos de casa ou botar(mos) ele pra fora
(CONTE ET AL 2015 1745 grifo do autor)
Nesse contexto eacute comum por exemplo que a equipe entenda que o ldquoatendimentordquo
possiacutevel eacute a resoluccedilatildeo da demanda fiacutesica do alcoolista (reestabelecimento dos sinais vitais
hidrataccedilatildeo etc) sem que haja nenhum tipo de encaminhamento para um tratamento continuado
na rede ou mesmo uma abordagem sobre a situaccedilatildeo que a pessoa se encontra naquele momento
Esse olhar do cuidado orgacircnico e centrado nos procedimentos fiacutesicos tem se apresentado
como um outro importante desafio a se transpor no niacutevel das praacuteticas de cuidado Nas
emergecircncias gerais cenaacuterio da pesquisa isso fica especialmente evidente Os profissionais
tendem a atribuir mais valor agrave dor fiacutesica do que a psicoloacutegica Como se quem estivesse sofrendo
por um trauma um corte ou uma fratura precisasse mais do atendimento do que um paciente
esquizofrecircnico dependente quiacutemico ou com crise de ansiedade Desse modo as demandas
subjetivas satildeo vistas como aquelas que ldquopodem esperarrdquo e que tomam lugar das demandas
fiacutesicas compreendidas nesta loacutegica como aquelas ldquorealmente urgentesrdquo Sobre esse aspecto
Jardim e Dimenstein (2007 182) ressaltam
O foco do trabalho das urgecircncias psiquiaacutetricas estaacute primordialmente no procedimento
em sua dimensatildeo bioloacutegica no corpo pensado como objeto de intervenccedilatildeo da
anatomia patoloacutegica e qualquer fator que extrapole esse acircmbito eacute desconsiderado
Entatildeo ateacute mesmo enquanto doenccedila mental a loucura foge da loacutegica das urgecircncias
Natildeo se manifesta enquanto lesatildeo palpaacutevel ou visiacutevel [ela] evoca outros
questionamentos incomoda por diferir tanto das outras demandas natildeo se encaixa no
espaccedilo natildeo se submete agrave autoridade potildee em xeque os teacutecnicos e seus saacutebios
conhecimentos desvela as suas impotecircncias (apud PAULON ET AL 2012 87)
Mesmo nos casos em que claramente sabe-se que o motivo da falecircncia do corpo eacute o
sofrimento subjetivo o alvo do cuidado continua sendo limitado ao reparo do dano provocado
ao corpo fiacutesico
Quando uma crianccedila chega agrave emergecircncia por automutilaccedilatildeo ou mesmo quando um
adulto adentra a sala com os pulsos cortados os profissionais entendem que sua
funccedilatildeo nesse caso eacute de limpar e suturar os ferimentos O motivo da consulta eacute o
ferimento - novamente o fiacutesico - e os possiacuteveis procedimentos que nele possam ser
executados Jaacute os motivos do plano psiacutequico e social que possivelmente causaram tal
emergecircncia (e natildeo raras vezes causaratildeo novamente e justificaratildeo uma reinternaccedilatildeo ndash
uma das variaacuteveis determinantes da hiperlotaccedilatildeo das emergecircncias) natildeo satildeo alvo de
investimentos por parte das equipes (PAULON ET AL 2012 85)
Haacute um certo mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo pois ao contraacuterio da
patologia orgacircnica ele natildeo se submete as loacutegicas de um saber estruturado e natildeo ldquo se resolverdquo a
partir de um manejo ou intervenccedilatildeo O sofrimento subjetivo retorna e continua a colocar em
xeque os profissionais seus saberes e as instituiccedilotildees Em um serviccedilo como a emergecircncia o que
70
natildeo pode ser ldquoresolvidordquo eacute frequentemente esquecido o que natildeo deixa de ser paradoxalmente
uma forma de ldquoresoluccedilatildeordquo do problema
Nos serviccedilos especializados embora a demanda de sauacutede mental seja mais evidente
parece que a direccedilatildeo do cuidado eacute igualmente no sentido de invisibilizaacute-la Pesquisas como a
de Zeferino et al (2016) sobre a percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre a atenccedilatildeo agrave crise
sauacutede mental apontam que a intervenccedilatildeo muitas vezes eacute no sentido de ldquocalarrdquo o sintoma
revelando que embora o modelo de sauacutede tenha mudado as praacuteticas medicalizantes e
hospitalocecircntricas ainda prevalecem
Essa pesquisa foi feita com 156 alunos do curso ldquoCrise e Urgecircncia em Sauacutede Mentalrdquo
ldquotrabalhadores da RAPS com formaccedilatildeo em niacutevel universitaacuterio que atuam no cuidado em sauacutede
mental no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) oriundos das diversas Regiotildees do Brasil
selecionados pelo Ministeacuterio da Sauacutederdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag) Como forma de
cuidado na crise os participantes citaram majoritariamente medidas como ldquocontenccedilatildeo
medicamentosa contenccedilatildeo mecacircnica e internaccedilatildeo accedilotildees que se limitam agrave diminuiccedilatildeo de
sintomasrdquo (idem p) como descrito nas falas abaixo
Quando chegam ao serviccedilo dependendo de como estejam satildeo contidos no leito com
faixas de contenccedilatildeo pelos monitores e depois satildeo vistos pelos meacutedicos Psiquiatras que
determinam a contenccedilatildeo medicamentosa feita a administraccedilatildeo da medicaccedilatildeo ficam
em observaccedilatildeo (E1 A124 - CAPS II) (ibidem spag )
Nas urgecircncias a primeira conduta eacute a intervenccedilatildeo medicamentosa que ocorre pela
equipe de enfermagem tanto na unidade como em domiciacutelio em alguns casos com
apoio da Guarda Municipal para contenccedilatildeo fiacutesica Logo que possiacutevel o paciente eacute
avaliado pelo meacutedico que quase sempre orienta a internaccedilatildeo (E1 A64 - CAPS II)
(ibidem spag)
Quando temos um usuaacuterio em crise e a famiacuteliar liga para pedir ajuda da equipe do
CAPS orientamos que entre em contato com o SAMU para levaacute-lo ao hospital e
entatildeo o usuaacuterio ser medicado Se a Crise for muito forte este eacute encaminhado para a
capital onde seraacute internado[] (E1 A147 - CAPS II) (ibidem spag)
Nota-se que as primeiras intervenccedilotildees mencionadas pelos profissionais satildeo a contenccedilatildeo
fiacutesica eou medicamentosa seguida do encaminhamento para o hospital A avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo
de crise eacute vista como uma responsabilidade uacutenica e exclusiva do meacutedico da qual a equipe natildeo
participa Na terceira fala por exemplo observamos que o profissional sequer tenta entender a
situaccedilatildeo que levou o usuaacuterio a entrar em crise O CAPS tampouco parece ser visto como um
dispositivo a ser acionado nas situaccedilotildees de crise O encaminhamento imediato eacute ligar para o
SAMU para que o usuaacuterio seja levado ao hospital
Embora o CAPS seja o dispositivo por excelecircncia substitutivo ao hospital e por isso
privilegiado no atendimento agraves situaccedilotildees de crise a expectativa dos profissionais eacute de que
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outros serviccedilos se ocupem da crise e que o usuaacuterio retorne ao CAPS quando estiver
ldquoestabilizadordquo conforme vemos a seguir
A equipe tem se mostrado omissa quando presencia um momento de crise e ao inveacutes
de intervir busca encaminhar e se livrar do problema (E1 A141 - CAPS II) (ibidem
spag)
O usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao Hospital Geral para a
estabilizaccedilatildeo retornando ao CAPS assim que estiver compensado para a
continuidade do seu tratamento (E1 A92 - CAPS II) (ibidem spag)
A ideia da estabilizaccedilatildeo associada prioritariamente agrave intervenccedilatildeo farmacoloacutegica e a
hospitalizaccedilatildeo aleacutem de reforccedilar o modelo manicomial deposita a esperanccedila da melhora em uma
soluccedilatildeo externa e maacutegica retirando a possibilidade do sujeito se responsabilizar pelo seu
sintoma e talvez encontrar outra soluccedilatildeo para sua compensaccedilatildeo Segundo os autores ldquoVaacuterias
correntes teoacutericas tem apontado que o objetivo das praacuteticas de sauacutede mental precisa ser a
ampliaccedilatildeo da capacidade de cada um lidar consigo mesmo e com os outros e natildeo apenas a
remissatildeo de sintomasrdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag)
Assim embora alguns profissionais reconheccedilam a necessidade de uma mudanccedila em
relaccedilatildeo a essas praacuteticas parecem ter dificuldades de nortear suas accedilotildees sob a loacutegica do modelo
psicossocial como podemos ver nas falas a seguir
Vejo-me com tantas perguntas sobre crises como identificaacute-la como agir o que natildeo
fazer a resposta medicamentosa me parece faacutecil e raacutepida poreacutem me angustia tecirc-la
como resposta gostaria de descobrir outros caminhos (E1 A52 - CAPS II) (ibidem
spag)
A equipe tem se esforccedilado no cuidar natildeo tem sido faacutecil pois exige um
amadurecimento da mesma procurando natildeo limitar na terapia medicamentosa no
modelo meacutedico-centrado mas sim em acolher natildeo soacute o paciente mas os familiares
buscando interagir com os parceiros da RAPS Nas nossas reuniotildees de equipe sempre
discutimos casos novos (E1 A66 - CAPS I) (ibidem spag)
Destaca-se nesse contexto que a formaccedilatildeo hegemonicamente biomeacutedica e a
inadequaccedilatildeo dos curriacuteculos para aacuterea da sauacutede mental reforccedilam o apelo agrave resposta ldquoprontardquo da
medicaccedilatildeo e contribuem para a manutenccedilatildeo do modelo manicomial ldquoO diagnoacutestico apressado
a conduta extremamente teacutecnica e desumana a medicalizaccedilatildeo de todas as queixas e as
dificuldades no contatordquo (ibidem spag) satildeo expressotildees de um modelo de cuidado duro que
imbuiacutedo dos ideais de neutralidade da praacutetica meacutedica simplifica e compromete a integralidade
do cuidado Sobre esse aspecto um profissional comenta
Trabalhamos ainda focados na praacutetica meacutedica quase em todos os episoacutedios a
medicalizaccedilatildeo ocorre em primeiro lugar Principalmente com a falta de capacitaccedilatildeo
dos profissionais envolvidos Esta atuaccedilatildeo soacute fortalece a dependecircncia do hospital
psiquiaacutetrico (E1 A53 - CAPS II) (ibidem spag)
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Para agravar a situaccedilatildeo a rede tambeacutem natildeo consegue dar respostas pois tambeacutem natildeo
estaacute preparada para tais situaccedilotildees Ocorre que esse usuaacuterio percorre um caminho de
sofrimento e descaso (E1 A141 - CAPS II) (ibidem spag)
Na pesquisa de Almeida et al (2012) com 14 profissionais de quatro equipes do SAMU
no estado de Santa Catarina a falta de capacitaccedilatildeo teacutecnica para o atendimento agraves situaccedilotildees de
crise tambeacutem aparece enquanto um desafio As dificuldades relatadas pelos profissionais
perpassam o medo a falta de conhecimento sobre a crise e o despreparo no momento de abordar
o paciente
Acredito que a experiecircncia do dia a dia me faz ter certo preparo teacutecnico mas com
dificuldade na questatildeo psicoloacutegica Por ser o SAMU um serviccedilo de Urgecircncia e
Emergecircncia e natildeo de continuaccedilatildeo do cuidado realiza-se o necessaacuterio mas acho que
poderiacuteamos ter um preparo melhor Fico muito em alerta a tudo o que o paciente faz
a forma dele agir e de se expressar Eu abordo porque tem que abordar mas eu natildeo me
sinto preparado Pode-se dizer que estou preparado na medida do possiacutevel pois
consigo realizar teacutecnicas para contenccedilatildeo fiacutesica mas natildeo psicoloacutegica Em algumas
situaccedilotildees natildeo me sinto preparado e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia militar
No caso de agressividade natildeo me sinto preparado Acredito que precisariacuteamos de mais
orientaccedilatildeo pois eacute a uacutenica aacuterea que a gente natildeo tem capacitaccedilatildeo Quando consigo me
aproximar na abordagem a pessoa fica tranquumlila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmo
Com certeza precisa mais coisa para o atendimento orientaccedilatildeo Acredito que a falta
de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz com que o
atendimento siga uma forma natildeo correta
(P1P2P3P4P5P6P7P9P10P13P14)(ALMEIDA ET AL 2012 710)
A falta de preparo muitas vezes eacute o que justifica o uso da forccedila fiacutesica e da agressividade
conforme retratado nas falas ldquoquando consigo me aproximar na abordagem a pessoa fica
tranquila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmordquo ldquoem algumas situaccedilotildees natildeo me sinto preparado
e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia miliarrdquo ldquono caso de agressividade natildeo me sinto
preparadordquo Assim vemos a importacircncia do investimento em processos de educaccedilatildeo
permanente supervisatildeo cliacutenica e cursos de formaccedilatildeo para que os profissionais encontrem meios
de manejar as situaccedilotildees de crise sem necessidade do uso de violecircncia
A formaccedilatildeo precisa ser vista como um ldquoprocesso dinacircmico e contiacutenuo de construccedilatildeo do
conhecimento pautado no diaacutelogo em que todos os atores assumam papel ativo no processo de
aprendizagem atraveacutes de uma abordagem criacutetica e reflexiva da realidaderdquo (ibidem713)
Acreditamos que atraveacutes dela as concepccedilotildees de crise o imaginaacuterio social da loucura e os
conceitos de risco e periculosidade podem ser revisitados e problematizados fornecendo
subsiacutedios para uma praacutetica orientada para a escuta das necessidades do sujeito do viacutenculo e do
cuidado em liberdade
Assim podemos dizer que o cuidado dos profissionais ainda representa em grande parte
caracteriacutesticas do modelo asilar como intervenccedilotildees centradas na contenccedilotildees fiacutesica e
medicamentosa excesso de internaccedilotildees acolhimento burocratizado falta de preparo na
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abordagem ao paciente em crise resultando no uso da forccedila fiacutesica e da agressividade aleacutem de
praacuteticas de preconceito e discriminaccedilatildeo sendo estes alguns dos principais desafios apontados
pela literatura estudada no acolhimento agrave crise no acircmbito da Reforma Psiquiaacutetrica e do SUS
(Sistema Uacutenico de Sauacutede)
Quanto agraves potencialidades no acolhimento agrave crise podemos destacar algumas estrateacutegias
referidas pela literatura Na pesquisa de Lima et al (2012) da qual participaram profissionais
usuaacuterios gestores e familiares de 11 CAPS nas cidades da Bahia e Sergipe emergiram enquanto
elementos que favorecem o manejo da crise segundo a perspectiva dos participantes
a) acolhimento diurno e noturno b) observaccedilatildeo continuada e contiacutenua c) atenccedilatildeo
domiciliar (visitas domiciliares) d) responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso
e) presenccedila do psiquiatra na equipe para garantir o ecircxito da prescriccedilatildeo f) negociaccedilatildeo
e apoio concreto ao familiar para que o internamento seja o uacuteltimo recurso utilizado
g) elaboraccedilatildeo de cartilha com orientaccedilatildeo sobre como lidar com a crise de pessoas com
transtornos para profissionais natildeo especializados em sauacutede mental e para familiares
h) implantaccedilatildeo das ldquoOficinas de criserdquo 5nos CAPS i) estabelecimento de limites para
os usuaacuterios atraveacutes de regras de convivecircncia para evitar o uso de aacutelcool e outras drogas
no CAPS e como sugerem os parentes j) na perspectiva dos familiares natildeo podem
faltar carinho compreensatildeo e feacute (LIMA ET AL 2012 430 grifo nosso)
Recursos como o acolhimento diurno e noturno quando possiacutevel no caso de CAPS III
associado agrave observaccedilatildeo contiacutenua e agrave responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso indicam a
importacircncia de um cuidado mais intensivo nos momentos de crise Uma estrateacutegia possiacutevel
nesse sentido eacute aumentar a frequecircncia do paciente no serviccedilo para que a equipe possa
acompanhar o caso mais de perto e oferecer suporte antes que a situaccedilatildeo se agrave Isso implica
em uma revisatildeo do Projeto Singular Terapecircutico para construir outros espaccedilos onde o sujeito
possa produzir sauacutede A inclusatildeo de recursos do territoacuterio e espaccedilos no proacuteprio serviccedilo que
possam dar alguma continecircncia agrave desorganizaccedilatildeo e aos sentimentos disruptivos que emergem
na crise tambeacutem eacute uma accedilatildeo fundamental na direccedilatildeo de um cuidado territorial e em liberdade
Outras pesquisas como a de Peireira Saacute e Miranda (2017) indicam a utilizaccedilatildeo da
intensividade do cuidado de forma exitosa permitindo a saiacuteda do estado de crise
O irmatildeo de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora
resultado principalmente do aumento dos dias em que esta permanecia no serviccedilo
da disponibilizaccedilatildeo de um carro para transportaacute-la e da intensificaccedilatildeo dos contatos
dos profissionais com a famiacutelia (ibidem 3738 )
As visitas domiciliares tambeacutem se mostram estrateacutegias muito eficientes nos momentos
de crise em que natildeo eacute possiacutevel para o sujeito ir ateacute o serviccedilo Baseadas em uma tecnologia-leve
e relacional de cuidado tem como suas principais ferramentas a aposta no encontro no viacutenculo
5 Segundo os autores trata-se de um espaccedilo que ldquomanteacutem o usuaacuterio em crise sob acompanhamento intensivo
tendo como premissa soacute recorrer agrave internaccedilatildeo como uacuteltima alternativardquo (LIMA ET AL 2012 429)
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na escuta qualificada e no diaacutelogo Aleacutem disso indicam a importacircncia de dois elementos
fundamentais na loacutegica da atenccedilatildeo psicossocial a intervenccedilatildeo dentro do contexto de vida do
sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) e a disponibilidade de prestar o cuidado
no momento em que ele eacute necessaacuterio
Outro achado da pesquisa de Lima et al (2012) que reflete a potecircncia da tecnologia
vincular no acolhimento agrave crise eacute a percepccedilatildeo dos profissionais que os usuaacuterios mais antigos e
conhecidos pela equipe tecircm menos chances de serem internados em uma situaccedilatildeo de crise do
que os novos Sobre esse aspecto ressaltamos a fala de uma trabalhadora entrevistada
Uma coisa interessante tambeacutem eacute que os pacientes jaacute conhecidos jaacute usuaacuterios haacute algum
tempo os profissionais de referecircncia deles agraves vezes jaacute datildeo conta de alguma forma A
gente observa situaccedilotildees assim os pacientes novos em geral que satildeo encaminhados pra
emergecircncia tecircm um quadro de agitaccedilatildeo e precisam de medicaccedilatildeo Mas outros casos a
gente jaacute consegue controlar sem medicaccedilatildeo pelos viacutenculos mas os que jaacute satildeo da
casa Os que jaacute tecircm um tempo conosco Como a gente tem vivenciado uma coisa que
se prende ateacute a noacutes psiquiatras porque a gente lida muito com a medicaccedilatildeo aquele
paciente sair daquele quadro sem medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431 grifo nosso)
Assim o viacutenculo e a escuta quando bem utilizados possibilitam a estabilizaccedilatildeo do
quadro de crise sem que haja necessidade de se utilizar tecnologias duras como a internaccedilatildeo
ou (leves-duras) como a medicaccedilatildeo Entrar em contato com a crise entendendo o contexto em
que ela ocorre e permitindo que o sofrimento do sujeito se expresse eacute o ponto de partida para
que algum acolhimento possa se dar
Acolher a crise poder escutar que crise eacute essa crise psiquiaacutetrica crise do sujeito
poder escutar o sujeito e aproveitar a crise como sendo a forma que ele tem de se
manifestar ele conseguiu colocar no sintoma aquele sofrimento todo que ele tava
entatildeo aproveitar fazer uma escuta e acolher aquilo antes de vocecirc calar com a
medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431)
A pesquisa de Willrich et al (2013) com profissionais de um CAPS II em Alegrete (RS)
tambeacutem aponta a importacircncia do viacutenculo e da construccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de reciprocidade com
o usuaacuterio como estrateacutegias fundamentais no acolhimento ao momento de crise como indicam
as falas dos trabalhadores participantes desse estudo
Acho que a gente tem que ter esse cuidado quando a pessoa estaacute em crise ter sempre
algueacutem que possa estar intensivamente mais perto (A4) (ibidem659)
A gente vai para desarmar a gente natildeo vai se o cara estaacute irritado violento eu natildeo
vou laacute para provocar a violecircncia nele Pelo contraacuterio eu quero que ele se apoacuteie em
mim para ver se ele consegue desarmar a tal da violecircncia que estaacute na cabeccedila dele Eacute
assim que eu procedo nesses assuntos () aiacute ele vem e ndash Ah disco voador que natildeo
sei o quecirc Eu natildeo vou dizer que natildeo existe disco voador Eu entro na loucura faccedilo
um flerte com a loucura dele para tentar construir um pouco de sauacutede ir construindo
Num primeiro momento natildeo tem como ir contra () Tem coisas que tu natildeo vai
conseguir manejar tem que ter estar junto com outros Aiacute tem que segurar tem que
sentar tem que acalmar (A6) (ibidem 659 grifo do autor)
75
A possibilidade de sustentar estar junto com o usuaacuterio tomando suas anguacutestias como
reais ainda que resultem de uma experiecircncia alucinatoacuteria ou delirante possibilita a construccedilatildeo
de uma relaccedilatildeo de confianccedila entre o profissional e o usuaacuterio A partir desta relaccedilatildeo o serviccedilo
comeccedila a se constituir enquanto um espaccedilo de apoio como uma referecircncia concreta para o
usuaacuterio de onde buscar ajuda nos momentos de crise
A tomada de responsabilidade desse CAPS em relaccedilatildeo agrave crise se transmite tambeacutem na
clareza de que o suporte nesses momentos precisa ser imediato conforme vemos a seguir
A gente sempre procura eacute pedir para as colegas laacute da frente que quando elas atendem
o telefone eacute para perguntar se eacute urgecircncia ou natildeo Se eacute um caso que um paciente estaacute
agredindo o familiar ou coisa a gente tem que largar tudo que estaacute fazendo para ir
atender (A2)( WILLRICH ET AL 2013 659)
Enquanto na pesquisa de Zeferino et al (2016) mencionada anteriormente a primeira
conduta ao atender uma situaccedilatildeo de crise por telefone era orientar a famiacutelia a chamar o SAMU
vecirc-se que neste CAPS a equipe entende as situaccedilotildees de crise como uma missatildeo desse serviccedilo
e por isso como uma prioridade na agenda Essa postura de ldquolargar tudo o que se estaacute fazendo
para ir atenderrdquo indica um compromisso eacutetico muito forte com o cuidado no territoacuterio e com a
desinstitucionalizaccedilatildeo Isso natildeo significa que a equipe natildeo possa avaliar que eacute necessaacuterio
internar mas antes ela busca apropriar do caso e oferecer suporte
A direccedilatildeo da internaccedilatildeo como o uacuteltimo recurso a ser acionado no cuidado conversa
diretamente com a importacircncia de praacuteticas de prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise e de seu
agravamento Nessa linha de pensamento podemos destacar a fala do profissional a seguir
A estrateacutegia que eu sempre penso e que eu sempre falo para o grupo eacute a estrateacutegia da
prevenccedilatildeo Se eu sei que um usuaacuterio estaacute entrando em crise e eu sei porque ele estaacute
todo o dia aqui com a gente desde laacute da recepccedilatildeo ateacute aqui Se eu sei que um usuaacuterio
estaacute com um problema mais seacuterio eu tenho que antecipar isso () se ele comeccedila a ter
problemas a gente tem que intervir () Entatildeo a gente tem que estar sempre de olho
para prevenir o surto () A visatildeo que a gente procura ter e discutir nas reuniotildees de
equipe eacute assim vamos prevenir () Entatildeo eu acho que a prevenccedilatildeo se chegou mal
aqui atende logo Se precisar levar para o pronto-socorro leva porque a gente natildeo
tem psiquiatra 24 horas oito horas aqui Entatildeo tem certas coisas que a gente natildeo pode
nem querer fazer Vai estar chamando o psiquiatra entatildeo leva para o pronto-socorro
que estaacute ali o carro estaacute aqui Se natildeo estiver vem a ambulacircncia de laacute Se toma uma
atitude para evitar (A3) (WILLRICH ET AL 2013 660 grifo nosso)
Gostariacuteamos de acrescentar que embora seja importante prestar o cuidado de forma
imediata nos momentos de crise evitando que a situaccedilatildeo se agrave devemos estar atentos para
que a direccedilatildeo de prevenir natildeo se transforme em uma caccedila agraves bruxas aos sintomas O objetivo
final natildeo pode ser medicar conter e internar para ldquoprevenirrdquo A direccedilatildeo de cuidado precisa
continuar sendo a autonomia do sujeito e a produccedilatildeo de sua sauacutede
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Desse modo trabalhar na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise significa primeiramente
trabalhar em rede Natildeo se espera que um serviccedilo sozinho seja capaz de prevenir uma crise mas
o serviccedilo reconhecendo seus limites pode identificar e lanccedilar matildeo de outros recursos do
territoacuterio para compor uma rede de cuidados que verdadeiramente ampare o sujeito Logo saber
que o serviccedilo ldquonatildeo dispotildee de psiquiatra 24hrsrdquo e que natildeo funciona aos finais de semanas e no
periacuteodo noturno satildeo pontos que exigem dos profissionais a responsabilizaccedilatildeo do cuidado
atraveacutes da construccedilatildeo de uma articulaccedilatildeo em rede
O pronto-acolhimento indicado na fala ldquose chegou mal aqui atende logordquo a articulaccedilatildeo
em rede acompanhando o paciente em outros serviccedilos como o pronto-socorro se necessaacuterio a
revisatildeo do PTS (Projeto Terapecircutico Singular) a realizaccedilatildeo de visitas domiciliares e a
disponibilidade de cuidar da crise nos espaccedilos onde ela surge satildeo elementos que aparecem nos
artigos estudados como fundamentais no acolhimento integral agraves situaccedilotildees de crise
Outro ponto mencionado eacute o trabalho em equipe especialmente quando a situaccedilatildeo eacute
grave e pode ocasionar riscos para o profissional ou para terceiros A maioria dos profissionais
indicou ser importante natildeo estar sozinho na abordagem ao paciente em crise
Quando eacute muito assim arriscado eu natildeo vou sozinha Porque olha os casos assim
que eu natildeo estou conseguindo fazer grupo que estaacute muito nervoso que ele estaacute vendo
alguem em mim enfim eu procuro compartilhar isso com algum dos colegas Porque
dai se precisar manejar a gente maneja de dois e melhor que manejar de um [A6]
Eu acho que eacute soacute com cautela Nunca ir sozinha quando vecirc que haacute um risco de perigo
sempre levar mais algueacutem [A23]
Porque aqui a gente tem muita [] todos ajudam Entatildeo quando um estaacute um usuaacuterio
estaacute em surto geralmente todo mundo vem ajudar (WILLRICH J Q ET AL 201156-
57 grifos nossos)
Conforme ressaltam os autores ldquoessas accedilotildees contribuem para a construccedilatildeo de um olhar
que respeita a individualidade e valoriza a subjetividade rdquo (WILLRICH ET AL 2013 662)
Assim acolher eacute mais do que ldquoabrir as portas do serviccedilo para a permanecircnciardquo eacute construir uma
relaccedilatildeo de confianccedila com o usuaacuterio tecer uma rede que o ampare no territoacuterio trabalhar de
forma multidisciplinar e acolher o sofrimento do outro como vaacutelido entendendo-o como parte
da sua experiecircncia e do seu contexto de vida
43 ORGANIZACcedilAtildeO DA REDE DE CUIDADOS
A luta pela superaccedilatildeo do aparato manicomial disparada pela Reforma Psiquiaacutetrica
implica nos serviccedilos da Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial (RAPS) a transformaccedilatildeo efetiva da
assistecircncia agraves pessoas em situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico Acreditamos nesse sentido ser
fundamental a possibilidade de construccedilatildeo de uma rede coesa e bem articulada que possa
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efetivamente substituir o hospital psiquiaacutetrico dispensando a necessidade de centralizaccedilatildeo do
cuidado em um soacute serviccedilo evitando os efeitos negativos jaacute apontados na literatura que uma
instituiccedilatildeo total6 acarreta na vida dos indiviacuteduos agrave ela submetidos
Pensando na organizaccedilatildeo da rede algumas questotildees que pretendemos investigar nesse
capiacutetulo satildeo qual eacute o grau de acessibilidade dos serviccedilos aos sujeitos em crise Quais satildeo suas
maiores barreiras de acesso O que favorece e o que desfavorece a continuidade da linha de
cuidado Como os serviccedilos enxergam seu papel na rede Como se daacute a integraccedilatildeo entre os
serviccedilos no acolhimento aos casos de crise Como eacute a integraccedilatildeo dos serviccedilos com a rede
intersetorial e com os dispositivos do territoacuterio
Vista dessa forma a atenccedilatildeo agrave crise representa um ponto de amarraccedilatildeo de diversas
estrateacutegias propostas pela PNSM sendo um importante analisador das possibilidades de
conexotildees da rede suas articulaccedilotildees com os recursos assistenciais e com os recursos do
territoacuterio sua acessibilidade e seu grau de permeabilidade diante das reais necessidades de
sauacutede das pessoas Considerando que a Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo em construccedilatildeo
cabe discutir quais satildeo os desafios que os serviccedilos encontram para acolher a crise no territoacuterio
uma vez que cada vez mais o hospital tem se tornando um ponto de ldquoescoamentordquo dos fracassos
da rede
Pensando nos aspectos que podem figurar como barreiras de acesso aos usuaacuterios no
SUS uma primeira questatildeo que surge eacute a demora para conseguir iniciar um tratamento Com
base na literatura estudada vaacuterias pesquisas como as dos autores Bonfada et al (2013) Conte
et al (2015) e Pereira Saacute e Miranda L (2014) apontam para a existecircncia de grandes filas de
espera para iniciar o tratamento mesmo nos casos de crise
Conte et al (2015) comentam que as imensas filas de espera satildeo o resultado de um
enorme deacuteficit de profissionais Aleacutem do quantitativo dos profissionais ser insuficiente para
suprir a rede natildeo haacute contrataccedilatildeo temporaacuteria para os casos de licenccedila feacuterias ou afastamento por
motivo de doenccedila Uma das profissionais entrevistada nesse estudo retrata esse quadro
comentando o impacto disso no cuidado ldquovia de regra a gente telefona explica sensibiliza o
colega e ouve olha me desculpa soacute que eu estou com uma lista de espera imensa eu sou soacute
uma A colega entrou de feacuterias e a outra em licenccedila maternidaderdquo (CONTE ET AL 2015
1746)
6 Ver Goffman (2001)
78
Na praacutetica a demora no acesso aos serviccedilos faz com que os usuaacuterios soacute consigam ser
acolhidos quando a situaccedilatildeo jaacute eacute muito grave Bonfada el al (2013) expressam esse aspecto
atraveacutes da fala de um trabalhador do serviccedilo de emergecircncia do SAMU Segundo esse
entrevistado ldquo a populaccedilatildeo natildeo tem acesso aos serviccedilos de psiquiatria Entatildeo os doentes entram
em crise pra poder ter o acesso ao serviccedilo de psiquiatria (E1)rdquo (BONFADA ET AL 2013 230)
Mesmo nos casos de crise os serviccedilos ainda encontram dificuldades para oferecer um pronto-
atendimento Pereira Saacute e Miranda L (2014) pontuam que todos os usuaacuterios participantes de
sua pesquisa ldquoesperaram ao menos uma semana para serem consultados nos serviccedilos mesmo
nas situaccedilotildees de criserdquo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2140)
Conte et al (2015) discutem que a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se
estabelecer uma classificaccedilatildeo de risco na lista de espera contribui ainda mais para dificuldade
de acesso e para a sensaccedilatildeo de impotecircncia e sofrimento dos profissionais diante da demanda
natildeo atendida
Inadequaccedilotildees da estrutura fiacutesica dos serviccedilos tambeacutem satildeo apontadas como barreiras de
acesso Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014)
Natildeo haacute adaptaccedilatildeo do preacutedio para uso de pessoas com necessidades especiais e
tampouco disponibilidade de automoacutevel (ibidem 2150)
O fato de hoje existir uma fila de espera para os primeiros atendimentos tambeacutem eacute
atribuiacutedo a falta de espaccedilo fiacutesico Haacute apenas duas salas pequenas o que prejudica a
realizaccedilatildeo de atividades grupais (ibidem 2150)
Em pesquisa sobre a atuaccedilatildeo do SAMU na cidade de Natal Brito Bonfada e Guimaratildees
(2015) mencionam a falta de ambulacircncias como um dos principais fatores que resultam em
longas filas de espera para os chamados natildeo urgentes e demora mesmo nos chamados urgentes
Percebeu-se que o nuacutemero de ambulacircncias disponiacuteveis ao atendimento da populaccedilatildeo
municipal eacute insuficiente em vaacuterias situaccedilotildees Os chamados superam a capacidade
operacional de atendimento do Samu-Natal gerando longa fila de espera e demora no
atendimento dos chamados natildeo classificados em coacutedigo vermelho ou seja
prioritaacuterios(ibidem 1297)
A superlotaccedilatildeo dos serviccedilos a inadequaccedilatildeo e insuficiecircncia dos equipamentos os deacuteficits
de equipe e as inadequaccedilotildees estruturais tambeacutem satildeo apontados como aspectos que fragilizam
os serviccedilos impossibilitam as accedilotildees no territoacuterio e a integralidade do cuidado especialmente
nos casos mais sensiacuteveis que requerem mais recursos
Algumas dificuldades praacuteticas parecem contribuir para as deficiecircncias percebidas nos
serviccedilos de sauacutede mental entre elas o nuacutemero insuficiente de equipamentos que leva
os existentes a se sobrecarregarem com uma aacuterea de abrangecircncia superior agravequela com
a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido nuacutemero e a escassa
variedade de profissionais que limitam as possibilidades de articulaccedilatildeo de accedilotildees
muacuteltiplas e criativas Em decorrecircncia dessas deficiecircncias a que muitas vezes se soma
79
a total inadequaccedilatildeo da estrutura fiacutesica os serviccedilos ficam fragilizados e assim
impossibilitados de promover accedilotildees territoriais e integrais de cuidado como
acolhimento agrave crise envolvimento da famiacutelia no tratamento e estrateacutegias de
reabilitaccedilatildeo psicossocial (MACHADO SANTOS 2013 710)
No que se refere agrave capacidade dos serviccedilos favorecerem a continuidade do cuidado
prestado no estudo de Conte al (2015) com idosos que tentaram o suiciacutedio na rede de Porto
Alegre (RS) observamos que accedilotildees fragmentadas diagnoacutesticos apressados e ofertas de cuidado
riacutegidas e padronizadas produziram o abandono do tratamento em alguns casos e a fragilizaccedilatildeo
do viacutenculo com o serviccedilo em outros Importante dizer que todos os idosos procuraram ajuda e
tinham os serviccedilos territoriais como referecircncias para sua sauacutede
Em uma das histoacuterias a paciente com diagnoacutestico de depressatildeo foi encaminhada para
um grupo terapecircutico no ambulatoacuterio poreacutem o aumento do nuacutemero dos participantes no grupo
comeccedilou a lhe provocar desconforto ldquoNo iniacutecio era bom mas depois vinham muitos
[participantes] cada um levava muitos problemas Agraves vezes tu ia[s] laacute numa boa e saias ruimrdquo
(CONTE ET AL 20151743 grifo do autor)
Por conta disso e das frequentes trocas de profissionais de referecircncia essa senhora
abandonou o tratamento iniciando a partir daiacute um circuito de sucessivas internaccedilotildees e uma
tentativa de suiciacutedio No momento em que a paciente deixou de frequentar o grupo o
ambulatoacuterio natildeo se ocupou de fazer-lhe uma visita domiciliar ou tentar contato o que poderia
ter evitado o abandono do tratamento e a posterior tentativa de suiciacutedio Por conta proacutepria a
paciente buscou ajuda e se inseriu na associaccedilatildeo do bairro que promovia atividades de lazer
(churrascos bailes e jogos) conseguindo por meio desse recurso superar a falta de vontade de
viver
Embora essa histoacuteria tenha um desfecho positivo chama atenccedilatildeo a falta de
responsabilidade do serviccedilo sobre a linha de cuidado dessa paciente Diante do fato dessa
senhora natildeo se ldquoencaixarrdquo mais no grupo o ambulatoacuterio natildeo pode ofertar-lhe um outro espaccedilo
de suporte deixando-a desassistida Isso mostra a rigidez e padronizaccedilatildeo dos espaccedilos de
cuidado desse serviccedilo que colocou sobre uma paciente fragilizada a responsabilidade integral
do seu cuidado
Em outro caso o desfecho natildeo foi tatildeo positivo Um senhor com adiccedilatildeo em jogos aacutelcool
e cigarro apoacutes vaacuterias tentativas de tratamento em serviccedilos diferentes recebia ldquoaltardquo por natildeo
aceitar ficar abstinente Segundo o mesmo ldquoSe eu tiver que parar como trago eu natildeo vou me
tratar Antidepressivo e bebida natildeo combinamrdquo (CONTE et al 2015 1744)
80
Em outra ocasiatildeo surgiu a possibilidade de ingressar em um CAPSad para realizar
tratamento do alcoolismo () Poreacutem mais uma vez ele natildeo parou de beber o que
impediu sua adesatildeo ao tratamento Novamente teve alta do tratamento porque natildeo se
enquadrava nos criteacuterios exigidos pelo serviccedilo (CONTE et al 2015 1744)
Ainda que a poliacutetica atual no tratamento de casos de drogadiccedilatildeo seja a Poliacutetica de
Reduccedilatildeo de Danos os serviccedilos em questatildeo parecem desconhecer ou resistir agrave essa alternativa
A rigidez das ofertas de cuidado impostas agrave esse senhor terminaram por deixaacute-lo em completo
abandono impossibilitando qualquer modalidade de tratamento
A Reduccedilatildeo de Danos uma vez que natildeo impotildee a abstinecircncia como condiccedilatildeo do
tratamento poderia ser um caminho na direccedilatildeo de cuidar do abuso do uso do aacutelcool e da melhora
da qualidade de vida desse paciente No entanto a inflexibilidade dos serviccedilos em repensar suas
ofertas de cuidado de modo a considerar as escolhas desejos limites e possibilidades de quem
procura ajuda resultaram na perda do tratamento e na posterior internaccedilatildeo desse idoso pela
famiacutelia em um asilo
O terceiro idoso dessa pesquisa ao deparar-se com adoecimento da esposa que tinha
Alzheimer e com a falta de ajuda dos familiares para lidar com essa situaccedilatildeo tomou para si o
seu cuidado o que ao longo dos anos lhe trouxe um vasto desgaste emocional Segundo os
autores ldquoO cansaccedilo emocional agravado pela descoberta de um tumor na proacutestata o levou agrave
primeira tentativa de suiciacutediordquo (CONTE et al 2015 1744) Na ocasiatildeo esse senhor foi levado
a um pronto-socorro onde foi submetido a uma lavagem estomacal
O peso dos cuidados em relaccedilatildeo agrave esposa somados agrave falta de apoio familiar e a problemas
financeiros motivaram a segunda tentativa de suiciacutedio ldquoEu comprei uma corda Por causa da
desajuda e da pobrezardquo (ibidem 1746) Felizmente o filho chegou na casa agrave tempo e
conseguiu evitar o enforcamento
Apoacutes essa tentativa esse idoso foi internado em um hospital onde recebeu o diagnoacutestico
de Transtorno de Personalidade Nota-se entretanto que a ecircnfase atribuiacuteda ao diagnoacutestico e as
orientaccedilotildees dadas aos familiares em decorrecircncia dele parecem ter contribuiacutedo mais para o
afastamento da famiacutelia do que para o sucesso do manejo cliacutenico de sua condiccedilatildeo Segundo os
pesquisadores ldquoOs filhos passaram a vecirc-lo como manipulador e mal intencionado
interpretavam as tentativas de suiciacutedio como um ato de covardia pra mobilizar culpa na famiacutelia
tornando-se mais hostis em relaccedilatildeo ao pairdquo (CONTE et al 2015 1744)
Durante a entrevista com os pesquisadores esse senhor referiu ldquosentimento de solidatildeo
e sofrimento com a falta de afeto dos filhos Todos os dias eacute muito triste Eu vejo [nora neta
81
filhos] e natildeo falo com ningueacutemrdquo (CONTE et al 2015 1744) aleacutem de sentimentos de desvalia
ldquoEstou virado num resto num lixordquo (ibidem) No momento da pesquisa mantinha viacutenculo com
o serviccedilo apenas para renovar a receita da medicaccedilatildeo
Observamos nesse caso que as accedilotildees de cuidado se restringiram a intervenccedilotildees pontuais
e fragmentadas tendo o modelo biomeacutedico de ldquoqueixa-condutardquo como referecircncia Quando a
tentativa de suiciacutedio se deu por ingestatildeo de medicaccedilatildeo a accedilatildeo da equipe foi cuidar apenas do
corpo fiacutesico realizando uma lavagem estomacal As questotildees existenciais que motivaram a
tentativa de suiciacutedio natildeo foram abordadas e nenhum encaminhamento foi feito para a
continuidade do cuidado Apoacutes a segunda tentativa de suiciacutedio novamente o foco do tratamento
segue o modelo medicalocecircntrico priorizando o diagnoacutestico nosograacutefico e a medicalizaccedilatildeo dos
sintomas ldquoOs sintomas dos idosos foram considerados uma forma de ldquochamar atenccedilatildeordquo e com
isso obter ganhos secundaacuterios banalizando assim o pedido de ajuda contido nos atos
desesperadosrdquo (CONTE et al 2015 1745)
No caso desse senhor o diagnoacutestico serviu apenas para fragilizar ainda mais sua rede
de apoio uma vez que os familiares passaram a vecirc-lo como ldquomanipulador e mal intencionadordquo
A falta de um Projeto Terapecircutico Singular que considerasse seu contexto de vida seus afetos
sua rede familiar e social contribuiu para o agravamento do sentimento de abandono e solidatildeo
favorecendo o risco de uma nova tentativa de suiciacutedio O uacutenico tratamento ofertado pelo serviccedilo
foi o medicamentoso e ficou niacutetida sua insuficiecircncia visto que ao ser entrevistado esse idoso
referiu sentir-se sozinho ter um cotidiano triste e esvaziado
A dificuldade de se pensar espaccedilos de cuidado baseados em tecnologias leves como o
acolhimento e o viacutenculo as oficinas padronizadas e sem perenidade agrave subjetividade do outro
aleacutem de accedilotildees emergenciais e isoladas no momento de crise satildeo apontados pelos autores como
fatores que contribuem para o abandono do tratamento quebra ou fragilizaccedilatildeo da linha de
cuidado
Estudos anteriores (Rosa 2011 Merhy 2007) evidenciaram que ao se depararem
com essas dificuldades inerentes agrave condiccedilatildeo crocircnica os profissionais do serviccedilo
podem ldquodesistirrdquo ou se desobrigar do trato do paciente ldquodifiacutecilrdquo supostamente
refrataacuterio ou ldquonatildeo responsivordquo agrave terapecircutica Em alguns momentos parece haver um
esforccedilo no sentido de ajustar o paciente ao serviccedilo e natildeo o contraacuterio como seria
desejaacutevel (Rosa2011) (MACHADO SANTOS 2013704)
Vecirc-se com isso que crise ainda eacute ldquoa crise do pacienterdquo e raramente os serviccedilos
conseguem eles proacuteprios se colocarem em crise e repensar suas ofertas e modos de cuidado A
interrupccedilatildeo e o abandono do tratamento satildeo vistos como uma dificuldade de ldquoadesatildeordquo do
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usuaacuterio que nada tem a ver com a forma como os serviccedilos estatildeo pensando e organizando o seu
cuidado Pensando sobre a correspondecircncia entre as necessidades de sauacutede das pessoas e as
ofertas de cuidado os serviccedilos parecem natildeo perceberem o abandono ou interrupccedilatildeo do
tratamento como um analisador de suas praacuteticas Diante do natildeo enquadramento do usuaacuterio ao
modelo de intervenccedilatildeo oferecido os serviccedilos se comportam como se pouco tivessem a oferecer
O estudo de Machado e Santos (2013) aponta para resultados que confirmam esse
problema No CAPS estudado as oficinas e atividades satildeo vistas como parte de um certo
funcionamento burocraacutetico institucional as falas dos pacientes revelam a falta de sentido dessa
rotina onde as atividades parecem existir meramente para legitimar a instituiccedilatildeo preenchendo
um tempo
Vou todo dia mais tem pouca atividade Fico o dia inteiro fazendo nada deitada
Num gosto disso queria participaacute de mais atividade mais num tem vagardquo (E10)
(MACHADO SANTOS 2013 707)
Laacute no serviccedilo que eu trato eles num trabalham eles num ensinam trabalhaacute Eles potildee
laacute os paciente pra ficaacute comendo e bebendo dormindo e o dinheiro deles tudo mecircs
vem na conta O salaacuterio dos paciente vem na conta deles que eacute o benefiacutecio o dinheiro
dos funcionaacuterio vem na conta deles eacute igual aquele ditado que fala ldquoeles finge que
trabalha e eles fingem que satildeo tratadosrdquo Eacute eles tratam que nem robozinho eu pego
o cartatildeo o doutor prescreve a receita pego meu remeacutedio ndash meu tratamento eacute esse
(E8) (ibidem 707)
Outros autores tambeacutem falam de um funcionamento burocratizado do serviccedilo No
estudo de Pereira Saacute e Miranda (2014) vemos que os adolescentes do CAPSi questionam o
sentido de algumas atividades mas ainda assim essas questotildees parecem natildeo surtir efeitos sobre
o modo como a equipe pensa e organiza o cuidado
Importante notar o fato de os adolescentes terem de se adaptar aos grupos sem que
eles sejam pensados mediante a necessidade de cada um deles e das mudanccedilas vividas
ao longo do tempo Diante da insatisfaccedilatildeo dos adolescentes com as atividades os
profissionais natildeo satildeo levados a revecirc-las continuam enfatizando a necessidade de que
frequentem o serviccedilo ldquoa qualquer custordquo Todos relataram a frequente necessidade de
realizar um difiacutecil ldquotrabalhordquo de convencimento para que os adolescentes aceitem
estar no serviccedilo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2151)
Destacamos ainda a fala de uma profissional do serviccedilo que afirma que ldquoO CAPSi natildeo
tem muito mais a oferecer do que um atendimento individual em grupo um suporte agrave famiacutelia
e um suporte meacutedico medicamentosordquo (profissional do serviccedilo) (ibidem 2151) Fica evidente
nesse sentido a limitaccedilatildeo do serviccedilo em repensar suas ofertas de cuidado de modo que a
ldquoadesatildeordquo natildeo seja uma conquista agrave base de uma imposiccedilatildeo mas da produccedilatildeo de um espaccedilo que
faccedila sentido para o usuaacuterio e que lhe proporcione verdadeiramente a sensaccedilatildeo de acolhimento
83
Outro ponto importante no que diz respeito agrave quebra da continuidade do tratamento eacute a
fragmentaccedilatildeo da proacutepria equipe no processo de trabalho Sobre esse aspecto Pereira Saacute e
Miranda (2014) destacam
A equipe eacute ldquodividida por diasrdquo de maneira que cada profissional trabalha dois turnos
aleacutem da reuniatildeo de equipe Cada grupo de usuaacuterios comparece ao serviccedilo apenas num
dia especiacutefico quando encontra seu teacutecnico de referecircncia e sua miniequipe Isso leva
os profissionais a realizarem um trabalho dividido em blocos o que resulta em um
CAPSi de segunda feira e outro de terccedila feira impedindo o compartilhamento de
atuaccedilotildees entre miniequies conhecimento dos usuaacuterios dos serviccedilos aleacutem de restringir
as ofertas terapecircuticas(ibidem 2149)
Cada usuaacuterio tem um teacutecnico de referecircncia e comparece no serviccedilo no dia em que seu
teacutecnico estaacute contando tambeacutem com o suporte da mini-equipe do dia que na ausecircncia do
profissional de referecircncia satildeo os profissionais com mais apropriaccedilatildeo sobre o caso O cuidado
eacute organizado entatildeo de modo que todos os profissionais de referecircncia do usuaacuterio estatildeo
concentrados em um uacutenico dia da semana o dia em que o paciente vai ao serviccedilo Esse eacute um
funcionamento muito comum nos CAPS que entretanto dificulta profundamente o
compartilhamento dos casos
Quando pensamos em uma situaccedilatildeo de crise sabemos que os pacientes natildeo iratildeo respeitar
os dias e escalas dos profissionais de referecircncia para entrar em crise Entatildeo essa divisatildeo dos
usuaacuterios em dias preacute-determinados aleacutem de limitar o Projeto Terapecircutico agraves oficinas realizadas
naqueles dias tambeacutem restringe a capacidade do serviccedilo de se constituir efetivamente enquanto
um ponto de referecircncia na crise pois os profissionais que natildeo tecircm contato com o caso
dificilmente conseguiratildeo ofertar o suporte que esses pacientes necessitam no momento da crise
Aleacutem da fragmentaccedilatildeo do processo de trabalho no interior dos serviccedilos observamos
tambeacutem uma fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e a RAPS Constatamos a partir da
literatura que na maior parte das vezes o contato entre os serviccedilos eacute feito por telefone ou por
encaminhamento escrito entregue diretamente ao usuaacuterio Fica portanto agrave cargo do usuaacuterio a
chegada agrave um outro serviccedilo de modo que a passagem de caso fica prejudicada e o usuaacuterio fica
muitas vezes desassistido no periacuteodo de transiccedilatildeo entre um serviccedilo e outro isto quando natildeo
acaba por desistir do tratamento
Nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e os hospitais observamos que embora a gravidade
envolvida seja maior o compartilhamento do cuidado parece ainda mais difiacutecil Ao discutir a
internaccedilatildeo de uma paciente do CAPSi no hospital geral Pereira Saacute e Miranda (2014) ressaltam
que embora a paciente tenha ficado dez dias internada no hospital natildeo houve comunicaccedilatildeo
84
entre os dois serviccedilos e o CAPSi foi informado da internaccedilatildeo pela proacutepria famiacutelia da paciente
via telefone
Essa dificuldade de interlocuccedilatildeo entre CAPS e hospital eacute apontada tambeacutem no estudo
de Zeferino el al (2016) Segundo os profissionais entrevistados nessa pesquisa
o usuaacuterio e a famiacutelia em crise satildeo levado a um Hospital psiquiaacutetrico e fica afastado
do CAPS por longos periacuteodos() Em alguns casos a famiacutelia jaacute interna o usuaacuterio e soacute
comunica a equipe do CAPS posteriormente [] (ZEFERINO ET AL 2016spg)
Para aleacutem dos casos em que o hospital natildeo comunica a equipe de referecircncia sobre a
internaccedilatildeo de seus usuaacuterios observamos que tambeacutem os CAPS raramente costumam
acompanhar os usuaacuterios que encaminham para o hospital de modo que quem perde eacute o paciente
pois vive a quebra do viacutenculo terapecircutico com a equipe de referecircncia e continua passando pelas
crises sozinho no hospital Sobre esse aspecto Pereira Saacute e Miranda (2014) comentam
Fazendo um balanccedilo geral dos itineraacuterios construiacutedos pode-se perceber que o CAPSi
apresenta dificuldades no planejamento e construccedilatildeo de accedilotildees conjuntas em que
compartilhe outras instacircncias a responsabilidade pelo cuidado dos adolescentes em
crise Eacute bastante raro por exemplo que os profissionais do CAPSi de fato
acompanhem os adolescentes no Hospital Geral Como justificativa para esse cenaacuterio
todos sublinham dificuldades de contato advindas de problemas com os telefones ou
ausecircncia de um carro proacuteprio o que dificultaria o transporte no caso de uma situaccedilatildeo
de maior gravidade que pudesse acontecer no CAPSi (ibidem 2152)
Embora a falta de estrutura possa de fato dificultar a integraccedilatildeo entre os serviccedilos
percebemos que deixar o hospital se ocupar da crise tem sido praacutetica recorrente nos diversos
serviccedilos da rede Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014) nos sujeitos que participaram de sua
pesquisa o hospital geral teve papel central em todos os casos
A equipe do CAPSi entende que o Hospital Geral natildeo eacute o local ideal para as
internaccedilotildees em sauacutede mental Apesar disso atribuem ao suporte medicamentoso agrave
possiacutevel contenccedilatildeo fiacutesica e aos cuidados relativos agrave sauacutede geral a justificativa para
encaminharem ao Hospital Geral os pacientes (ibidem 2150)
O apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises leves podem
ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o hospital Essa eacute
uma direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima absolutamente o
papel do CAPS frente agrave crise
Sabemos que haacute alguns limites na capacidade dos CAPS visto que nem todos satildeo do
tipo III e que alguns serviccedilos sequer tecircm a equipe completa e o aparato estrutural miacutenimo para
funcionar Poreacutem chama atenccedilatildeo a naturalizaccedilatildeo da centralidade da rede em torno do hospital
Um exemplo claro disso aparece na fala de uma profissional desse estudo que orienta a famiacutelia
a levar a paciente ao hospital ldquofrente agrave qualquer intercorrecircnciardquo (PEREIRASAacuteMIRANDA
85
2014 2154) como se o CAPSi natildeo tivesse nenhuma responsabilidade sobre a crise de seus
pacientes
Encaminhamentos precipitados e irrefletidos ao hospital ainda constituem uma praacutetica
muito natural na rede o que coloca o CAPS na posiccedilatildeo de serviccedilo complementar e natildeo
substitutivo ao hospital Vemos que mesmo os profissionais do CAPS ainda contam com o
hospital como se a internaccedilatildeo pudesse proporcionar uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
No estudo de Zeferino el al (2016) um dos profissionais entrevistados ressalta ldquoO
usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao hospital geral para a estabilizaccedilatildeo retornando
ao CAPS assim que estiver compensado para a continuidade do seu tratamento (E1 A92 -
CAPS II)rdquo (spaacuteg)
A centralidade do fluxo das situaccedilotildees de crise para o hospital eacute praacutetica comum tambeacutem
no trabalho do SAMU Embora o SAMU tenha se constituiacutedo enquanto um recurso da rede de
assistecircncia agrave urgecircnciaemergecircncia apoacutes a Reforma Psiquiaacutetrica vemos que o modo de trabalhar
desse serviccedilo ainda eacute muito orientado pela loacutegica biomeacutedica Segundo Brito Bonfada e
Guimaratildees (2015) em pesquisa com a rede de SAMU da cidade de Natal
A partir das fichas de atendimento disponiacuteveis no sistema eletrocircnico de ocorrecircncias
do Samu-Natal observa-se que entre os meses de janeiro a marccedilo de 2010 ocorreram
314 chamadas para urgecircncias em sauacutede mental das quais 74 foram finalizadas
com o transporte para o Hospital Colocircnia Joatildeo Machado hospital psiquiaacutetrico do
municiacutepio de Natal-RN (ibidem 1301 grifo nosso )
Esse nuacutemero eacute confirmado tambeacutem pelas falas dos profissionais
Surto droga alcoolismo tudo leva para laacute a gente trabalha com o Joatildeo Machado
(Entrevistado 24) (ibidem 1302 grifo nosso)
Noacutes natildeo temos muito contato com o CAPS (Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial) A gente pega o
paciente ou na residecircncia ou em via puacuteblica e transfere para o Joatildeo Machado (Entrevistado 24)
(ibidem 1303)
Na realidade as nossas urgecircncias psiquiaacutetricas satildeo muito mais transporte Vocecirc vai
laacute conteacutem o doente e o transporta para hospital psiquiaacutetrico (Entrevistado 1) (ibidem
1302)
Percebemos que essa direcionalidade ao hospital sem levar em conta as possibilidades
assistenciais oferecidas pela rede tem relaccedilatildeo com a maneira como os serviccedilos entendem a
Reforma Psiquiaacutetrica e consequentemente como enxergam seu papel na rede Nesse ponto no
que compete ao SAMU fica clara a desorientaccedilatildeo desse serviccedilo no seu papel diante das crises
Na verdade eu sempre fui contra o Samu atender esse tipo de chamado Eu acho que
deveria existir um setor no hospital psiquiaacutetrico aqui de Natal responsaacutevel por isso
(Entrevistado 2) (BONFADA ET AL 2013 1307)
O Samu natildeo deveria fazer esse serviccedilo acho que deveria ser a poliacutecia militar
(Entrevistado13) (ibidem 1307)
86
Muitas vezes o doente psiquiaacutetrico corre muito mais risco porque a nossa rotina eacute
deixar em segundo plano a urgecircncia psiquiaacutetrica (Entrevistado 1) (ibidem 1308)
No que diz respeito agrave concepccedilatildeo que os profissionais possuem acerca da Reforma
Psiquiaacutetrica os entrevistados parecem acreditar que trata-se de uma Poliacutetica Puacuteblica restrita ao
campo juriacutedico e burocraacutetico poreacutem sem muitas implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos
A Poliacutetica Nacional de sauacutede mental eacute perfeita no papel na praacutetica natildeo estaacute
funcionando e para funcionar vai ser muito difiacutecil (E10)
Para ser muito franca ateacute agora na praacutetica natildeo vi essa reforma acontecer Natildeo acredito
natildeo nessa reforma (E7)
Na maioria das vezes isso natildeo funciona esse negoacutecio de CAPS e tudo mais porque
o proacuteprio paciente natildeo vai aiacute a famiacutelia tambeacutem natildeo tem como levaacute-lo a forccedila Entatildeo
isso aiacute natildeo taacute dando muito resultado natildeo Talvez fosse o caso de fazer o proacuteprio CAPS
mesmo como uns hospitais psiquiaacutetricos (E3)
Esse paciente quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial acaba
negligenciando o proacuteprio tratamento Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em
um hospital internado seria muito mais eficaz pois eacute um tratamento continuado
(E20) (inserir ref ndash as falas dos entrevistados aparecem assim todas juntas Se for
basta a ref ao final ndash autor ano paacutegina) ( BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2013230-231)
A falta de conhecimento sobre o papel dos serviccedilos substitutivos aleacutem das criacuteticas agrave
Reforma Psiquiaacutetrica e as sugestotildees de internaccedilatildeo dos pacientes satildeo fortes indiacutecios de que o
modelo hospitalocecircntrico concebido pela Psiquiatria Claacutessica ainda permanece vivo no ideaacuterio
desses profissionais como referecircncia de qualidade da assistecircncia em sauacutede mental A ideia de
que a RPB eacute perfeita no papel mas que na praacutetica natildeo funciona revela um entendimento
bastante ingecircnuo de que as poliacuteticas por si soacute teriam o efeito de mudar a assistecircncia quando os
profissionais continuam agindo orientados pela loacutegica manicomial
Uma ferramenta que tem sido apontada como capaz de construir e fortalecer a
integralidade da rede e a coordenaccedilatildeo do cuidado eacute o apoio matricial O apoio matricial pode
se dar via CAPS ou via NASF contribuindo para ampliar a resolutividade da Atenccedilatildeo Baacutesica
favorecendo a prevenccedilatildeo dos casos de crise e diluindo a centralidade do CAPS nos casos de
sauacutede mental
Considerando que um dos fortes obstaacuteculos dos CAPS eacute o centramento em si mesmos
fenocircmeno identificado na IV Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental e denominado
ldquoencapsulamentordquo
Ao articular rede o apoio matricial se inclina contra o ldquoencapsulamentordquo e esse tipo
de substituiccedilatildeo total produzindo um efeito reorganizador das demandas de sauacutede
mental na rede com melhor distribuiccedilatildeo e adequaccedilatildeo dos usuaacuterios dentro dos pontos
de assistecircncia em sintonia com suas demandas evitando que todas elas sejam
dirigidas ao CAPS superlotando-o Possibilitando melhor compreensatildeo e
diferenciaccedilatildeo das situaccedilotildees que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem
ser acolhidas eou acompanhadas pela ESF como refletem Bezerra e Dimenstein o
87
matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistecircncia em sauacutede mental
(LIMA DIMENSTEIN 2016 629)
Segundo Lima e Dimenstein (2016) a ESF tem meios de ldquo[] interferir em situaccedilotildees
que transcendem a especificidade do setor sauacutede e tecircm efeitos determinantes sobre as condiccedilotildees
de vida e sauacutede dos indiviacuteduos famiacutelias-comunidaderdquo (ibidem 65) Considerando sua
proximidade com o territoacuterio a ESF eacute um importante recurso na identificaccedilatildeo dos casos de crise
que natildeo chegam aos serviccedilos podendo oferecer atraveacutes do apoio matricial em sauacutede mental o
suporte e o encaminhamento para serviccedilos mais complexos quando necessaacuterio
Outra ferramenta importante na construccedilatildeo da integralidade das redes sobretudo das
redes que vatildeo para aleacutem dos serviccedilos de sauacutede eacute a praacutetica de Acompanhamento Terapecircutico
O AT tem a missatildeo de resgatar a cidadania e o direito de usufruir da vida em casos de pessoas
que foram sistematicamente excluiacutedas da sociedade devido ao seu processo de adoecimento
Sua atuaccedilatildeo visa promover a autonomia do sujeito ampliando sua circulaccedilatildeo pelo territoacuterio e
tecendo redes de cuidado que contam tambeacutem com dispositivos de cultura e lazer
Segundo Fiorati e Saeki (2008) o AT
por ser uma praacutetica cliacutenica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaccedilos
institucionais e tradicionais de tratamento e ser realizada sobretudo nos espaccedilos
puacuteblicos no ambiente domiciliar e social do paciente representaria um caminho
potencial de inserccedilatildeo em redes sociais e movimento de inclusatildeo social (ibidem 764)
Na pesquisa citada acima o AT atuou como um intercessor entre o espaccedilo de cuidado
proporcionado pelos serviccedilos e os dispositivos terapecircuticos do territoacuterio O cuidado se deu nos
serviccedilos mas tambeacutem na vida na rua atraveacutes de cursos de jardinagem desenho capacitaccedilatildeo
profissional parceria com associaccedilotildees culturais escolas e outros (FIORATI SAEKI 2008)
A produccedilatildeo de sauacutede atraveacutes dos dispositivos do territoacuterio tambeacutem aparece na pesquisa
de Conte et al (2015) no caso da senhora que buscou ajuda na associaccedilatildeo de seu bairro
Entretanto foram apontadas poucas iniciativas em nosso estudo que apostassem nos recursos
fora do setor sauacutede como possibilidade de estabilizaccedilatildeo de quadros graves Fica clara nesse
sentido a baixa integraccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e a rede intersetorial territorial sendo
este um dos principais desafios na construccedilatildeo da integralidade do cuidado
Em suma podemos observar que ainda haacute um longo caminho na construccedilatildeo de redes
que possam oferecer de fato algum amparo aos sujeitos em crise A falta de recursos certamente
figura como um dos fatores que impotildee barreiras de acesso ao cuidado motivando muitas vezes
que os profissionais usem seus proacuteprios recursos para garantir a efetividade do tratamento (usar
88
o carro proacuteprio para fazer VD deslocar-se entre um serviccedilo e outro usando recursos proacuteprios
etc)
Somando-se aos aspectos mencionados embora os serviccedilos de sauacutede mental se
proponham a realizar um cuidado extremamente complexo e diversificado funcionam em sua
maioria apenas nos horaacuterios comerciais (de segunda a sexta de 8 agraves 17h) Desse modo ldquodiante
dessa configuraccedilatildeo restrita torna-se pouco provaacutevel que de fato sejam esgotadas todas as
possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internaccedilatildeo
integral tal como prevecirc a Lei da Reforma Psiquiaacutetrica Lei nordm 10216 2001rdquo (Brasil 2004)
Vemos que as possibilidades de superaccedilatildeo desse cenaacuterio ainda partem muitas vezes de
um esforccedilo individual dos trabalhadores em produzir cuidado Diante da falta de CAPS III por
exemplo alguns CAPS II tem se organizado para funcionar em horaacuterio estendido realizando
uma escala no serviccedilo e evitando assim encaminhar o usuaacuterio para internaccedilatildeo Outra alternativa
apontada eacute o acolhimento diurno no CAPS II e o noturno no Hospital Geral eou Hospital
Psiquiaacutetrico evitando a permanecircncia integral na internaccedilatildeo (MARTINI CORACINE 2016)
Entretanto esse tipo de arranjo ainda eacute incipiente e depende em boa medida da ldquoboa vontaderdquo
dos trabalhadores visto que natildeo eacute uma poliacutetica institucionalizada de cuidado e natildeo haacute portanto
recursos previstos para esses deslocamentos
Tendo em vista essa conjuntura eacute possiacutevel perceber que a constituiccedilatildeo de uma rede de
serviccedilos integral e resolutiva nos casos de crise ainda eacute muito fraacutegil A fragmentaccedilatildeo na
comunicaccedilatildeo entre os serviccedilos a dificuldade do compartilhamento dos casos oficinas e grupos
riacutegidos e burocratizados compreensotildees deturpadas e reducionistas acerca do movimento da
Reforma Psiquiaacutetrica baixa articulaccedilatildeo intersetorial e territorial aleacutem de limitaccedilotildees estruturais
dos serviccedilos (ausecircncia de carro institucional baixo nuacutemero de CAPS III deacuteficits de equipe etc)
tem contribuiacutedo para que o hospital permaneccedila vivo e seja o ponto de escoamento de todas
essas dificuldades
Podemos citar como um exemplo dessa problemaacutetica os pacientes ldquorevolving doorrdquo7
nos hospitais psiquiaacutetricos Muitos deles fazem tratamento em algum dispositivo da rede
substitutiva no entanto continuam retornando ao hospital ainda que pontualmente com certa
frequecircncia o que remete as fragilidades da rede jaacute mencionadas anteriormente
7 O termo vem da expressatildeo inglesa ldquoporta-giratoacuteriardquo e eacute usado na sauacutede mental para se referir aos pacientes que
internam de forma recorrente poreacutem em internaccedilotildees curtas
89
Vale lembrar que o hospital se constituiu historicamente como uma soluccedilatildeo para o
problema da loucura na sociedade e mesmo havendo um esforccedilo em deslocar certas categorias
e conceitos no sentido de incluir a loucura no social a institucionalizaccedilatildeo ainda eacute
frequentemente a primeira resposta agraves situaccedilotildees de crise especialmente quando a rede natildeo
encontra meios para responder suas demandas no modelo substitutivo
90
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como foi dito na introduccedilatildeo nosso objetivo com esse estudo foi analisar as fragilidades
e potencialidades na organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto
do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica Consideramos que uma rede forte e bem articulada atua
como um fator de mudanccedila dos itineraacuterios dos usuaacuterios dos hospitais psiquiaacutetricos para os
serviccedilos territoriais No entanto o inverso tambeacutem acontece as fragilidades e insuficiecircncias
da rede tambeacutem contribuem para hospitalizaccedilotildees desnecessaacuterias
Sendo assim olhar para a forma como a crise tem sido acolhida na RAPS pode dar
indiacutecios importantes de como estamos nos posicionando no processo de construccedilatildeo da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira uma vez que costuma ser na falta de uma resposta efetiva da rede
substitutiva nos casos de crise que se recorre a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica
Atraveacutes de nosso referencial teoacuterico analisando o desenvolvimento da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira no plano assistencial percebemos avanccedilos importantes no que se
destaca a reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do
nuacutemero de CAPS e a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na
atenccedilatildeo comunitaacuteria e territorial Entretanto a insuficiecircncia de CAPS III e a permanecircncia de
grandes parques manicomiais no paiacutes indicam que ainda satildeo necessaacuterios grandes esforccedilos para
se superar o modelo manicomial
Pensando sob a luz das contribuiccedilotildees de Basaglia (1985) entendemos que a
permanecircncia dos manicocircmios natildeo se deve apenas a um descompasso entre o avanccedilo da rede
substitutiva e o fechamento dos hospitais psiquiaacutetricos mas tambeacutem a presenccedila ainda
expressiva da loacutegica manicomial nos discursos e praacuteticas em relaccedilatildeo agrave loucura
Sendo assim eacute preciso considerar que a Reforma Psiquiaacutetrica natildeo se restringe apenas as
mudanccedilas assistenciais nos serviccedilos de sauacutede mental mas a uma mudanccedila mais ampla no
processo de compreender e lidar com a loucura na sociedade
Ao longo da histoacuteria da sociedade a loucura jaacute teve diversos signos e significados
figurando desde um estado de sabedoria ligado ao profeacutetico a estados de possessatildeo demoniacuteaca
bruxaria e revolta social Entretanto eacute somente a partir do seacuteculo XVIII com o advento da
Psiquiatria que ela passa a ser compreendida enquanto doenccedila mental e a ser enclausurada e
excluiacuteda em instituiccedilotildees de tratamento
91
Com a emergecircncia da Reforma Psiquiaacutetrica inicia-se um movimento de transformaccedilatildeo
do lugar social da loucura atribuindo-lhe um estatuto que vai aleacutem da sintomatologia
psicopatoloacutegica e afirma a loucura enquanto um modo de ser no mundo Na conjuntura atual
eacute possiacutevel perceber que vivenciamos um momento de ruptura epistemoloacutegica em que os saberes
defendidos pela Reforma e o saber biomeacutedico natildeo se anulam mas convivem lado a lado se
alternando e disputando espaccedilo nos diversos pontos da RAPS
Eacute com base nessa dicotomia de saberes que proponho essa revisatildeo bibliograacutefica
Entendendo que os modos de compreender a crise e a loucura incidem na construccedilatildeo de nossas
ofertas de cuidado e no modelo de tratamento uma primeira questatildeo que se coloca eacute Quais satildeo
os sentidos de crise e de que maneira esses sentidos reverberam na produccedilatildeo de cuidado
A partir da revisatildeo da literatura estudada no primeiro capiacutetulo ldquoOs sentidos da criserdquo
identificamos trecircs eixos temaacuteticos que se desdobraram em categorias de anaacutelise satildeo eles
ldquoCrise como Ameaccedila Social Periculosidade e Riscordquo ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo
e ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
No primeiro eixo ldquoa crise como ameaccedila socialrdquo as vivecircncias da crise aparecem
marcadas por comportamentos hostis e intimidadores O risco envolvido se transmite para os
profissionais no campo das praacuteticas como uma necessidade constante de monitoramento
vigilacircncia e controle A agressividade dos sintomas eacute combatida com intervenccedilotildees igualmente
violentas sendo praacuteticas comuns a contenccedilatildeo fiacutesica medicamentosa e ateacute mesmo o uso da forccedila
policial como formas de reprimir o sujeito e estabelecer a ordem no serviccedilo
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade A agressividade eacute vista
como um sintoma isolado iacutendice de ameaccedila e risco Alguns profissionais acreditam que a
presenccedila da poliacutecia nas intervenccedilotildees eacute necessaacuteria para ldquoimpor respeitordquo como se as crises se
tratassem de manifestaccedilotildees voluntaacuterias Outros trabalhadores parecem perceber o paciente em
crise como um ldquocontraventorrdquo ldquoperturbador da ordem socialrdquo ldquomarginalrdquo e ateacute mesmo
enquanto um ldquoanimalrdquo mencionando palavras como ldquoprenderrdquo e ldquoamansarrdquo ao referir-se a
abordagem ao paciente
Muitas vezes a poliacutecia tambeacutem eacute acionada como forma de ldquodar proteccedilatildeordquo aos
profissionais que se sentem com medo e despreparados para acolher a crise Entretanto os
profissionais reconhecem que a poliacutecia tambeacutem natildeo sabe lidar com o paciente psiquiaacutetrico e
que eacute ainda mais despreparada
92
No segundo eixo a ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo a peculiaridade dos
sintomas que emergem na crise e o estigma social relacionado a eles satildeo compreendidos
enquanto iacutendice da emergecircncia de uma doenccedila ou de anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida como a vergonha o medo de ter novas crises o medo de circular
pelo territoacuterio e de fazer amizades Percebemos que esse significado apareceu especialmente
nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da primeira crise
mas tambeacutem se fez presente em estudos com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees e
que viveram com isso muitas perdas dos seus viacutenculos afetivos sociais e laborativos
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede
No terceiro eixo ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
encontramos experiecircncias relatos e situaccedilotildees que apontaram para outros modos de lidar com a
crise e com a loucura natildeo como marco de uma doenccedila limitante mas como uma experiecircncia
uacutenica e singular que traz em si uma necessidade imperiosa e urgente de reconstruccedilatildeo de
sentidos
Os usuaacuterios relataram caminhos estrateacutegias e ferramentas que permitiram a construccedilatildeo
de um outro modo de lidar com a crise e com seus sintomas Os profissionais retrataram
situaccedilotildees em que foi possiacutevel recolocar-se diante da crise e vecirc-la como um evento analisador
de suas praacuteticas bem como da vida daqueles sujeitos
Em um dos casos o usuaacuterio vinha pedindo haacute muito tempo para sair da casa onde
morava que era a casa onde vivia com os pais antes do falecimento dos mesmos e onde tinha
muitas recordaccedilotildees A partir do seu movimento de crise ldquoa famiacutelia entendeu que era mais do
que quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil E aiacute acabou que ele conseguiu
alugar a casa delerdquo (COSTA 2007 102 grifo do autor)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado na histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social relacional e
habitacional Ela eacute uma resposta a uma situaccedilatildeo que haacute muito tempo jaacute estava insustentaacutevel A
crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um evento analisador que ldquoestabelece uma urgecircncia
de realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (ibidem 103)
93
Em outra situaccedilatildeo a crise aparece enquanto um pedido de ajuda
Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o sobrinho dele morreu
assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver com uma situaccedilatildeo que
ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele continuou trabalhando
na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de trabalho E eu me lembro
que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele tirar todos os documentos
E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do nascimento dele e ele me
mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e nasceu e contou histoacuteria
A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com ele porque ele explodiu[]
E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos de novo E a gente entendeu
que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia muito que a gente o ajudasse
Os documentos eu acho que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que
ele acabou entre aspas perdendo (COSTA 2007 105)
Vemos entatildeo que os modos de produzir cuidado se tecem junto com o sujeito que vai
recontando sua histoacuteria atraveacutes dos elementos que fazem parte de seu cotidiano como o
territoacuterio suas relaccedilotildees sociais seu trabalho seu mundo Assim a produccedilatildeo de cuidado
acontece onde a vida do sujeito estaacute no parque da catacumba na cantina na retirada dos
documentos porque foi preciso destruir uma parte de sua histoacuteria para reconstruiacute-la depois
Trata-se de considerar a crise como um movimento vaacutelido que expressa o sofrimento do sujeito
e sua necessidade de construir e habitar outros territoacuterios existenciais para si
Nosso segundo objetivo especiacutefico diz respeito as praacuteticas de cuidado e se expressa nas
seguintes perguntas Quais satildeo as principais dificuldades do acolhimento agrave crise Quais satildeo as
nossas principais ferramentas cliacutenicas
Como desafios identificamos o acolhimento burocratizado e frio que se expressa
muitas vezes como uma mera triagem do paciente o cuidado orgacircnico centrado nos
procedimentos fiacutesicos e na figura do meacutedico o mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo
o despreparo para abordar e lidar com o paciente em crise que muitas vezes justifica o uso de
medidas violentas o preconceito e do julgamento moral especialmente em relaccedilatildeo aos casos
de usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas e por fim o diagnoacutestico apressado a conduta extremamente
teacutecnica e desumana
Como potencialidades identificamos a aposta no encontro no viacutenculo na escuta
qualificada e no diaacutelogo o pronto-atendimento (a disponibilidade de prestar o cuidado no
momento em que ele eacute necessaacuterio) as visitas domiciliares e a intervenccedilatildeo dentro do contexto
de vida do sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) a revisatildeo do PTS (Projeto
Terapecircutico Singular) o trabalho multidisciplinar e a abordagem conjunta especialmente nos
casos onde pode haver riscos aos profissionais
94
Nosso terceiro objetivo especiacutefico buscou refletir sobre a as formas de organizaccedilatildeo da
rede e se resumem em torno das seguintes perguntas Como os serviccedilos tecircm se organizado para
responder agraves demandas de crise Quais satildeo os desafios que o acolhimento agrave crise na rede
substitutiva nos coloca
Identificamos que o acolhimento agrave crise eacute um dos principais noacutes criacuteticos na organizaccedilatildeo
e na integralidade da rede de cuidados A articulaccedilatildeo entre os serviccedilos ainda se mostra bastante
fragmentada sendo a maior parte dos encaminhamentos feitos de modo apressado sem a devida
discussatildeo sobre o caso (encaminhamentos por escrito ou via telefone) O acompanhamento dos
serviccedilos de referecircncia aos casos mais graves durante a internaccedilatildeo eacute bastante raro havendo uma
certa expectativa de que o hospital se ocupe dos casos mais graves e da crise e que o usuaacuterio
retorne ao serviccedilo de referecircncia quando estabilizado
Diante das dificuldades colocadas na crise psicoacutetica os profissionais tendem a fazer
encaminhamentos irrefletidos ao hospital esperando uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
Nota-se que a justificativa para esse encaminhamento passa muitas vezes pelo fato do hospital
ter mais ldquorecursos materiaisrdquo aleacutem de mecanismos de ldquocontrolerdquo e ldquomonitoramentordquo dos casos
Ressaltamos que o apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises
leves podem ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o
hospital direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima
absolutamente o papel do CAPS frente agrave crise
Quanto ao entendimento da Reforma Psiquiaacutetrica na rede nossos resultados dialogam
com as reflexotildees levantadas em nosso marco teoacuterico natildeo haacute uma compreensatildeo uniforme sobre
esse processo e os profissionais mostram-se tanto identificados com a loacutegica manicomial
quanto com alguns pressupostos da RP e do novo modelo de cuidado Alguns profissionais
tambeacutem mostram entender a RP como uma mera mudanccedila administrativajuriacutedica sem muitas
implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos o que reafirma papeacuteis engessados e fluxos
burocratizados nos serviccedilos contribuindo para que o hospital continue sendo a porta de entrada
e o destino da maior parte dos casos de crise acolhidos na rede
Enquanto desafios nesse processo ressaltamos a demora para conseguir iniciar um
tratamento a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se estabelecer uma classificaccedilatildeo
de risco na lista de espera o deacuteficit de profissionais inadequaccedilotildees na estrutura fiacutesica que
prejudicam o acesso de pessoas com necessidades especiais e de atividades grupais
insuficiecircncias de equipamentos ofertas de cuidado riacutegidas e padronizadas fragmentaccedilatildeo da
95
equipe no processo de trabalho em dias e turnos especiacuteficos da semana fragmentaccedilatildeo nas
relaccedilotildees entre os serviccedilos fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre a RAPS e a rede intersetorial e
territorial
Destacamos que as iniciativas de superaccedilatildeo dessas fragilidades ainda se concentram
muito nos esforccedilos individuais dos trabalhadores havendo pouco investimento puacuteblico em
oferecer os recursos miacutenimos para se acolher a crise de acordo com os ideais da RP
Identificamos por outro lado como ferramentas importantes na tessitura e no fortalecimento
das redes de cuidado a praacutetica do AT e do apoio matricial que podem oferecer um espaccedilo de
cuidado mais proacuteximo ao territoacuterio e agrave rede intersetorial
Por fim frisamos como limitaccedilotildees desse estudo o fato de nossa revisatildeo bibliograacutefica se
ater somente a artigos cientiacuteficos de modo que algumas dissertaccedilotildees que poderiam agregar um
significado mais profundo a certos temas foram excluiacutedas na nossa seleccedilatildeo Tambeacutem foi um
recorte dessa pesquisa o cuidado agrave crise no contexto brasileiro permanecendo enquanto questatildeo
quais satildeo as possiacuteveis contribuiccedilotildees ao nosso tema no contexto internacional
Como potencialidades dessa pesquisa destacamos a produccedilatildeo de conhecimento teoacuterico
sobre o tema a ampliaccedilatildeo do debate aos profissionais da rede de sauacutede mental e a identificaccedilatildeo
e problematizaccedilatildeo dos pontos de fragilidade e potencialidades no processo de construccedilatildeo da
RPB
96
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Acesso em 05032018 Disponiacutevel em httpwwwriorjgovbrwebsmscaps
SOUZA P J C Serviccedilo de urgecircncia psiquiaacutetrica de Belo Horizonte Disponiacutevel
emhttpxayimgcomkqgroups223708961330363327nameservico_de_urgencia_psiquiatr
ica5b15dpdf Acesso em 15 de novembro de 2012
TENOacuteRIO F A reforma psiquiaacutetrica brasileira da deacutecada de 1980 aos dias atuais histoacuteria e
conceito Histoacuteria Ciecircncias Sauacutede Manguinhos Rio de Janeiro vol 9 n1 p25-59 jan-abr
2002
TRAPEacuteI T ONOCKO RC Modelo de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental do Brasil anaacutelise do
financiamento governanccedila e mecanismos de avaliaccedilatildeo
TURATO E Tratado da metodologia da pesquisa cliacutenico-qualitativa construccedilatildeo teoacuterico-
epistemoloacutegica discussatildeo comparada e aplicaccedilatildeo nas aacutereas da sauacutede e humanas Petroacutepolis
Vozes 2003
VAINER A Demanda e utilizaccedilatildeo do acolhimento noturno em Centro de Atenccedilatildeo
Psicossocial III na cidade do Rio de Janeiro2016
WILLRICH J Q ET AL Periculosidade versus cidadania os sentidos da atenccedilatildeo agrave crise nas
praacuteticas discursivas dos profissionais de um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Physis (Rio J)
21(1) 47-64 2011
WILLRICH J Q ET AL Os sentidos construiacutedos na atenccedilatildeo agrave crise no territoacuterio o Centro de
Atenccedilatildeo Psicossocial como protagonista Rev Esc Enferm USP 47(3) 657-663 jun 2013
YASUI S Rupturas e encontros desafios da reforma psiquiaacutetrica brasileira Rio de Janeiro
Fiocruz 2010
ZEFERINO M T ET AL Percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre o cuidado agraves crises na
Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial Esc Anna Nery Rev Enferm 2016
Rebecca Dorneles Roquette
A atenccedilatildeo agrave crise em sauacutede mental refletindo sobre as praacuteticas a organizaccedilatildeo do cuidado e os
sentidos da crise
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Sauacutede Puacuteblica da Escola
Nacional de Sauacutede Puacuteblica Seacutergio Arouca
Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz como requisito
parcial para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em
Sauacutede Puacuteblica na aacuterea de concentraccedilatildeo
Poliacuteticas Planejamento Gestatildeo e Praacuteticas em
Sauacutede
Aprovado em 03072019
Banca Examinadora
Prof Dr Maria Paula Cerqueira Gomes
Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Psiquiatria da UFRJ
Prof Dr Lilian Miranda
Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Sergio Arouca - ENSPFiocruz
Profordf Dra Tatiana Wargas de Faria Baptista (Orientadora)
Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica Sergio Arouca - ENSPFiocruz
Rio de Janeiro
2019
AGRADECIMENTOS
A conclusatildeo de um Mestrado natildeo eacute tarefa faacutecil Tendo esse trabalho se ocupado
fundamentalmente do tema do cuidado natildeo poderia deixar de agradecer agrave todos aqueles que
contribuiacuteram e tornaram possiacutevel a realizaccedilatildeo desse estudo Sendo assim eu agradeccedilo
Aos meus pais que sempre me apoiaram e me incentivaram na minha trajetoacuteria
profissional Agrave minha matildee por ter sonhado acreditado e vibrado com todas as minhas
conquistas Ao meu pai pelas conversas e pelo interesse em minhas questotildees
Agrave minha avoacute Helena por ter sido uma mulher agrave frente de seu tempo e por ter me
inspirado nas minhas escolhas ateacute aqui
Agrave Victor Gonccedilalves pelo suporte pelo carinho pelo amor inesgotaacutevel Por ter
compreendido e aceitado as mudanccedilas de planos e rotinas necessaacuterias para que eu concluiacutesse
esse processo pelas diversas vezes em que emprestou a casa para que eu me concentrasse
melhor
Agrave Nataacutelia Fortes pela longa amizade pela fraternidade pela confianccedila
Agrave David Llanos por ter rezado por mim acreditado nessa conquista e na tatildeo sonhada
comemoraccedilatildeo com todas as ldquochiquitissesrdquo
Aos meus amigos de faculdade em especial agrave Luacutecia Scarlati Karine Alane Karina
Lang e Aline Martins que sempre me acompanham com amoras e com amor
Agrave Fernanda Resende um presente que apareceu na minha vida Amiga forte e
companheira parceira na sauacutede mental e na vida
Agrave minha orientadora Tatiana Wargas pela disponibilidade pela paciecircncia com meus
atrasos pela leitura carinhosa pelos apontamentos e contribuiccedilotildees certeiras
Agrave professora Maria Paula Cerqueira a quem eu muito admiro pela forccedila e delicadeza
de suas contribuiccedilotildees nas aulas e EPacutes durante o periacuteodo de residecircncia e na minha banca de
conclusatildeo de curso Seguiu me inspirando durante a escrita desse trabalho e agora novamente
aceitou carinhosamente o convite para fazer parte desta banca
Agrave professora Lilian Miranda membro dessa banca que me deu aula e compartilha do
interesse pelo campo da sauacutede mental Esse trabalho conta com seus artigos e certamente com
muito de sua inspiraccedilatildeo
Agrave Martinho Silva e Gustavo Correa Matta agradeccedilo pela disponibilidade pela leitura e
pelo interesse em aceitar o convite para compor essa banca
Agrave Flaacutevia Fasciotti minha professora e eterna tutora da Residecircncia Sempre estaraacute
presente em todos os passos da minha formaccedilatildeo
Aos meus amigos de turma do Mestrado agradeccedilo imensamente pelo companheirismo
pela forccedila pelo carinho com que vivemos esse processo
Aos amigos da turma de Residecircncia em especial a Isabel Kraml Flavia Azevedo Thais
Beiral Andressa Ferreira Clara Andrade que estiveram sempre por perto e que compartilham
comigo o amor pela sauacutede mental
Agrave Guilherme Cacircndido Aline de Alvarenga Lais Macedo Juliane Lessa Jackson
Machado colegas e parceiros na sauacutede mental Aos pacientes que me encantaram
surpreenderam e me ensinaram tanto nesse caminho
Aos amigos Alexandre Rinaldi Thaiacutes Helena Veloso Mayara Ribeiro Jessica Aguillar
Tiago Nunes Iasmin Rocha e outros
A minha analista Tatiane Grova pelo acolhimento e pela leveza que permitiu com que
eu sustentasse esse processo
Agrave ENSP e a FIOCRUZ pela oportunidade de poder avanccedilar na minha formaccedilatildeo estudar
e contribuir para a produccedilatildeo de conhecimento no campo
A CAPES pelo financiamento agrave esta pesquisa e a possibilidade de tornaacute-la realidade
RESUMO
Essa dissertaccedilatildeo teve como objeto o cuidado agraves pessoas em situaccedilatildeo de crise na Rede de
Atenccedilatildeo Psicossocial Atraveacutes de um estudo de revisatildeo bibliograacutefica de 21 artigos cientiacuteficos
buscamos identificar como a crise tem sido acolhida nos serviccedilos de sauacutede No que se refere agraves
praacuteticas de cuidado interessa-nos saber quais satildeo as principais dificuldades e ferramentas
cliacutenicas que os profissionais encontram no manejo das situaccedilotildees de crise Entendendo que a
Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo que ainda estaacute em andamento e que depende
fundamentalmente de como os serviccedilos se organizam e se articulam de maneira a compor uma
rede de cuidados que possa substituir o Hospital Psiquiaacutetrico coloca-se tambeacutem a questatildeo de
quais satildeo as principais dificuldades que os serviccedilos encontram para sustentar o acolhimento da
crise no territoacuterio e quais os possiacuteveis caminhos para superaacute-las na direccedilatildeo de um cuidado em
liberdade
Palavras chaves crise sauacutede mental praacuteticas de cuidado RAPS serviccedilos de sauacutede
ABSTRACT
This dissertation had as object the care of people in situation of crisis in the Network of
Psychosocial Attention Through a bibliographical review study of 21 scientific articles we
sought to identify how the health services deals with pacient crisis Regarding to care practices
we are interested in the main difficulties and clinical tools that professionals find in the
management of crisis situations Understanding that the Psychiatric Reform is a process that is
still in progress and depends fundamentally on how services are organized and articulated in
order to create a network of care that can replace the Psychiatric Hospital arises the concern
of what are the main difficulties that the health services faces to provide the care of the crisis in
the territory and the possible ways to overcome them in the direction of care in freedom
Key words crisis mental health care practices Network of Psychosocial Attention
health services
LISTA DE GRAacuteFICOS
Graacutefico 1- Inversatildeo dos gastos (2002 a 2013) 30
Graacutefico 2- Seacuterie histoacuterica de Expansatildeo dos CAPS (2002 a 2014)31
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial por tipo UF e por indicador de CAPS100mil
habitantes (BRASILdez 2014)32
Quadro 2- Oferta de leitos de sauacutede mental em Hospitais Gerais (2014)34
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em CAPS III- Secretaria Municipal de Sauacutede do
Rio de Janeiro (setembro 2015)34
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB- Atenccedilatildeo Baacutesica
ACS- Agente Comunitaacuterio de Sauacutede
AP- Aacuterea Programaacutetica
AT- Acompanhamento Terapecircutico
CAPS- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial
CAPS II- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo II
CAPS III- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo III
CAPSad- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas
CAPSad III - Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas tipo III
CAPSi- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infantil
CF- Cliacutenica da Famiacutelia
ENSP- Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica
FIOCRUZ- Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz
IT- Itineraacuterio Terapecircutico
NASF- Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia
PNSM- Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental
RAPS- Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial
RPB- Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
SAMU- Serviccedilo Moacutevel de Urgecircncia
SRT- Residecircncia Terapecircutica
SUS- Sistema Uacutenico de Sauacutede
UBS- Unidade Baacutesica de sauacutede
VD- Visita Domiciliar
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
10 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA 16
11Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria 16
12A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira25
2 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL 34
21Reflexotildees sobre a Crise e o Cuidado em Sauacutede Mental34
22O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS39
3 METODOLOGIA 46
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA 49
41 Os Sentidos da Crise49
412 Crise como Ameaccedila Social Periculosidade e Risco50
413 Crise como Perda e Isolamento Social54
414 Crise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidos 58
42 Desafios e Potencialidades no Acolhimento agrave Crise64
43 Organizaccedilatildeo da Rede de Cuidados76
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS89
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS95
11
INTRODUCcedilAtildeO
Para o filoacutesofo Gilles Deleuze (1988) pensar natildeo eacute um exerciacutecio natural do ser humano
como costumamos acreditar no senso comum Tampouco se trata de um processo interior ou
subjetivo da ordem de uma reflexatildeo voluntaacuteria Pensamos a partir dos encontros mais insoacutelitos
quando algo nos irrompe agrave consciecircncia de maneira intempestiva e nos forccedila a pensar Pensar
nesse sentido eacute muito mais da ordem de um acontecimento do que da reflexatildeo
A abordagem tradicional da filosofia de Platatildeo agrave Kant tem na representaccedilatildeo o
fundamento do pensamento O conhecimento para esses autores se constroacutei a partir de um
julgamento criacutetico em busca da verdade Em seu livro Diferenccedila e Repeticcedilatildeo (1988) Deleuze
questiona essa tradiccedilatildeo filosoacutefica e sustenta a ideia de um pensamento que natildeo depende mais
de uma relaccedilatildeo com a verdade mas de uma relaccedilatildeo com a diferenccedila Conforme Sangiovanni a
partir da leitura de Deleuze ldquoeacute a partir do encontro com a diferenccedila que ocorre o pensamento
ou seja na relaccedilatildeo exterior natildeo hegemocircnica eacute que satildeo criadas as condiccedilotildees do pensarrdquo
(201386)
Para Deleuze haacute no encontro com a diferenccedila a forccedila de algo novo que necessariamente
nos tira do lugar e que impotildee a necessidade de pensar Nessa mesma linha de pensamento
Benetti destaca ldquoo que funda o pensamento eacute o encontro com algo violento Em outros termos
aquilo que mexe e que marca e portanto desencadeia a paixatildeo de pensarrdquo (DELEUZE 2010
95)
A crise em sauacutede mental tema desse trabalho surgiu para mim como objeto de reflexatildeo
exatamente no plano do concreto de algo que irrompe e se coloca de forma violenta a partir
da necessidade dos casos e do encontro real com o sofrimento do outro A crise fala de um
tempo in ato no aqui e agora que natildeo respeita nossas possibilidades de elaboraccedilotildees teoacutericas
preacutevias sobre o assunto e exige que estejamos inteiramente presentes e disponiacuteveis para o outro
no momento em que ele precisa
Eacute a partir dessa abertura inicial da possibilidade de ser pego de surpresa e mesmo assim
estar junto servindo de suporte para o sofrimento do outro se deixando afetar e marcar por essa
experiecircncia que algum caminho pode se dar Eacute um trabalho que soacute pode acontecer atraveacutes do
contato do encontro com o outro e da possibilidade de estar disponiacutevel para construir algo
juntos
12
A crise aponta para um momento em que as praacuteticas de cuidado e as antigas soluccedilotildees
que o sujeito podia engendrar para lidar com seu sofrimento psiacutequico de alguma forma natildeo
satildeo mais suficientes Segundo Knobloch (1998) a crise pode ser entendida como ldquoalgo
insuportaacutevel no sentido literal de natildeo haver suporte experiecircncia que nos habita como um
abismo de perda de sentido em que se perdem as principais ligaccedilotildeesrdquo (apud FERIGATO et al
2016 33) Algo se rompe algo se perde Natildeo eacute mais possiacutevel continuar a se viver da maneira
em que se estava anteriormente O que fazer
Essa ruptura com uma certa organizaccedilatildeo psiacutequica geralmente eacute entendida pelos
profissionais da sauacutede como algo negativo No entanto se tomamos a loucura e a crise que eacute a
radicalidade dessa ruptura como fenocircmenos de questionamento da ordem social e do status quo
da sociedade talvez possamos relanccedilar algumas perguntas e abrir outras possibilidades de
convivecircncia com a loucura
Apesar do sofrimento que estaacute ligado a vivecircncia da crise sua incidecircncia pode ser vista
como um evento analisador capaz de indicar a necessidade de uma mudanccedila nos modos do
sujeito se relacionar consigo mesmo com o seu tratamento e com o mundo agrave sua volta Assim
eacute precisamente nesse momento em que nada mais parece conseguir estabilizar um sujeito que
nos vemos obrigados a repensar nossas praacuteticas e ofertas de cuidado
Deslocar a perspectiva de compreensatildeo da loucura desse modo significa tomaacute-la em
sua dimensatildeo criativa no que ela traz de revolucionaacuterio e de produccedilatildeo de novos sentidos de
vida Isso implica em uma mudanccedila de atitude eacutetica e poliacutetica para com a loucura natildeo mais no
sentido de reprimi-la ou tentar a todo custo reestabelecer a normalidade perdida mas de aceitar
o movimento de crise como vaacutelido dentro da histoacuteria de vida daquelas pessoas e buscar o que
podemos construir a partir dele isto eacute o que ele pode nos sinalizar sobre as possibilidades de
vida daquele sujeito
Dessa forma algumas questotildees que pretendemos colocar com essa pesquisa satildeo Como
temos acolhido os sujeitos em crise na rede de atenccedilatildeo psicossocial Quais satildeo as principais
dificuldades nesse acolhimento Quais satildeo as nossas principais ferramentas cliacutenicas Quais satildeo
os desafios que o acolhimento agrave crise na rede substitutiva nos coloca Como pensar um
acolhimento agrave crise que natildeo seja apenas baseado na loacutegica de ldquoapagar incecircndiosrdquo Isto eacute que
outras formas de cuidado satildeo possiacuteveis para aleacutem da remissatildeo de sintomas Como trabalhar na
direccedilatildeo de um acolhimento que considere verdadeiramente o sofrimento do sujeito entendendo
a crise natildeo como um momento isolado de sua vida mas como parte de sua histoacuteria
13
Quanto aos aspectos macroestruturais que fundamentam esse trabalho haacute que se
ressaltar que a atenccedilatildeo agrave crise tem sido indicada na literatura como um dos principais desafios
para efetivaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica Embora tenha havido uma mudanccedila no modelo de
sauacutede orientada para um cuidado em liberdade alguns aspectos como a insuficiecircncia da
cobertura dos serviccedilos substitutivos no cenaacuterio local e nacional a baixa articulaccedilatildeo
intersetorial a fragmentaccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e os deacuteficits em relaccedilatildeo aos recursos
humanos e estruturais (BRASIL 2015) tecircm constituiacutedo grandes obstaacuteculos no que se refere a
capacidade dos serviccedilos de acolherem a crise no territoacuterio
No que tange ao cenaacuterio atual o SUS vem sofrendo um forte processo de desmonte
atraveacutes de poliacuteticas de Estado que ameaccedilam seu caraacuteter puacuteblico integral e universal Quanto ao
financiamento destaca-se a Emenda agrave Constituiccedilatildeo 952016 que estabelece um teto para as
despesas em sauacutede puacuteblica considerando o orccedilamento do ano anterior corrigido pela inflaccedilatildeo
sem o aumento real mesmo que haja crescimento econocircmico Isso significa que qualquer
aumento populacional mudanccedilas de perfil demograacutefico ou de quadro sanitaacuterio do paiacutes natildeo
seratildeo acompanhadas pelo incremento das ofertas em sauacutede devido ao congelamento dos gastos
ainda que as receitas tenham aumentado naquele ano Com isso ateacute mesmo a incorporaccedilatildeo de
avanccedilos tecnoloacutegicos fica comprometida contribuindo para ampliar a defasagem do sistema
puacuteblico de sauacutede em relaccedilatildeo aos atendimentos oferecidos pela iniciativa privada
Quanto aos aspectos legislativos e institucionais a recente Nota Teacutecnica 112019
institui uma seacuterie de mudanccedilas que implicam em graves retrocessos na rede assistencial Na
Poliacutetica de Aacutelcool e Outras Drogas o documento confirma o abandono da estrateacutegia de Reduccedilatildeo
de Danos uma abordagem que tem se mostrado eficaz e vem sendo utilizada em diversos
paiacuteses como Canadaacute Portugal Espanha Holanda e alguns estados dentro dos Estados Unidos
Aposta enquanto uacutenica modalidade de tratamento na abstinecircncia total a ser alcanccedilada por meio
internaccedilatildeo de longo prazo reconhecendo enquanto um dispositivo da Rede SUS as
Comunidades Terapecircuticas instituiccedilotildees majoritariamente religiosas focadas no isolamento e
nas praacuteticas religiosas
Quanto agrave organizaccedilatildeo dos serviccedilos os Hospitais Psiquiaacutetricos passam a ser
reconhecidos como parte da RAPS e os Hospitais Gerais ganham ldquoUnidades Psiquiaacutetricas
Especializadasrdquo com capacidade de ateacute 30 leitos para internaccedilotildees psiquiaacutetricas funcionando
como ldquominirdquo Hospitais Psiquiaacutetricos dentro dos Hospitais Gerais o que reproduz novamente a
loacutegica cronificante e alienadora do Hospital Outro ponto eacute a defesa da internaccedilatildeo de crianccedilas e
adolescentes contrariando ECA (Lei 8069 de 1990) Reforccedilamos que essas medidas aleacutem de
14
deslegitimarem o CAPS III como dispositivo privilegiado para o atendimento da crise
claramente contradizem a Poliacutetica de Desinstitucionalizaccedilatildeo e de descredenciamento e
fechamento de Hospitais Psiquiaacutetricos
Na Atenccedilatildeo Baacutesica no municiacutepio do Rio de Janeiro a poliacutetica de ldquoReestruturaccedilatildeo da
Atenccedilatildeo Baacutesicardquo e os cortes previstos na Lei Orccedilamentaacuteria de 2019 foram responsaacuteveis por um
processo de demissatildeo em massa que previa para o ano de 2019 um corte de 239 equipes no
municiacutepio - 184 de sauacutede da famiacutelia e 55 de sauacutede bucal gerando um total de 1400 demissotildees
Segundo levantamento do Nenhum Serviccedilo a Menos em 012019 jaacute haviam sido demitidos 479
servidores sendo a grande maioria deles Agentes Comunitaacuterios da Sauacutede Entre as
mobilizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores foram pautas tambeacutem os atrasos nos salaacuterios
a falta de insumos nas unidades e o descompromisso da Gestatildeo Municipal com o direito agrave
Sauacutede
Assim vecirc-se um avanccedilo preocupante de uma poliacutetica de Estado que visa sucatear a
sauacutede puacuteblica e vai de encontro aos ideais defendidos pela Reforma Sanitaacuteria e aos direitos
promulgados na Constituiccedilatildeo de 1988 que fazem referecircncia agrave sauacutede como direito social
universal garantido pelo Estado
Essas questotildees tornam-se especialmente importantes quando falamos da atenccedilatildeo agrave crise
pois a crise natildeo eacute apenas a crise do usuaacuterio (enquanto um sujeito isolado no mundo e no espaccedilo)
mas tambeacutem a crise do Estado das poliacuteticas puacuteblicas e especialmente das instituiccedilotildees
Desse modo torna-se imprescindiacutevel investir em pesquisas que apontem quais satildeo os
impasses que os profissionais de sauacutede encontram para atender as situaccedilotildees de crise nos serviccedilos
substitutivos e quais estrateacutegias satildeo necessaacuterias no plano micro e macropoliacutetico para mudar o
itineraacuterio dos usuaacuterios em crise do hospital para os serviccedilos substitutivos
Nesse sentido destacamos como objetivo geral deste estudo analisar as fragilidades e
potencialidades apontadas na bibliografia cientiacutefica para a organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da
assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica
Como objetivos especiacuteficos buscaremos
Problematizar as noccedilotildees de crise em sauacutede mental presentes na literatura
e suas repercussotildees para o cuidado
Identificar os desafios e potencialidades encontrados nas praacuteticas de
acolhimento agrave crise na RAPS
Refletir sobre a forma como os serviccedilos tecircm se organizado para responder
agraves demandas de crise
15
Com o intuito de alcanccedilar nossos objetivos realizamos uma pesquisa de revisatildeo
bibliograacutefica de artigos cientiacuteficos que tomaram com objeto os sentidos da crise as praacuteticas de
cuidado e a organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos na resposta agrave crise
Quanto agrave organizaccedilatildeo dessa dissertaccedilatildeo no primeiro capiacutetulo encontramos o referencial
teoacuterico que foi dividido em dois eixos principais No primeiro ldquoDo modelo asilar agraves Reformas
na Psiquiatriardquo retomamos a histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica no mundo explicitando como as
diversas concepccedilotildees de loucura e de crise presentes na sociedade foram responsaacuteveis pela
organizaccedilatildeo de diferentes modelos de cuidado No segundo ldquoA Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileirardquo vemos as repercussotildees da mudanccedila da loacutegica do cuidado no desenvolvimento da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e na reorganizaccedilatildeo da assistecircncia Para esse capiacutetulo usamos
os seguintes autores como referecircncia Foucault Amarante Tenoacuterio Caponi DellacuteAcqua e
Mezzina Birman e outros
No segundo capiacutetulo buscamos discutir mais agrave fundo o conceito de crise e suas relaccedilotildees
com as poliacuteticas de sauacutede no contexto do SUS Na primeira parte ldquoReflexotildees sobre a crise e
o cuidado em sauacutede mentalrdquo faremos uma retomada da origem etimoloacutegica do termo ldquocriserdquo
explicitando seus diversos significados A partir das reflexotildees de autores como DelacuteAcqua
Feriagato Bailarin Corbisier ressaltamos a crise em seu vieacutes criativo produtor de novas
possibilidades de vida Na segunda parte ldquoO Acolhimento agrave crise e a Organizaccedilatildeo do SUSrdquo
contextualizamos os desafios do atendimento agrave crise dentro da loacutegica do SUS A partir das
contribuiccedilotildees de Ceciacutelio (1997) expomos as contradiccedilotildees de um modelo idealizado de SUS
conforme preconizado pelas Poliacuteticas Puacuteblicas que na tentativa de regular todos os fluxos e
linhas de cuidado perde a proximidade com o sujeito e suas reais necessidades de sauacutede
O terceiro capiacutetulo se destina a apresentaccedilatildeo da metodologia utilizada seus aspectos
teoacutericos os caminhos percorridos na seleccedilatildeo dos artigos as bases utilizadas e os criteacuterios de
inclusatildeo de exclusatildeo dos artigos
O quarto capiacutetulo ldquoReflexatildeo e Discussatildeo da Literaturardquo concentra a revisatildeo dos artigos
No intuito de facilitar a anaacutelise dividimos esse capitulo em trecircs eixos conceituais ldquoos sentidos
da criserdquo ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo e a ldquoorganizaccedilatildeo da rede de
cuidadosrdquo
16
1 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA
11 Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria
Ateacute o seacuteculo XVIII na Europa a loucura natildeo era considerada uma doenccedila Ao longo da
histoacuteria a loucura jaacute teve diversos sentidos e explicaccedilotildees figurando desde algo ligado ao
sagrado e ao profeacutetico agrave possessatildeo demoniacuteaca Com a ascensatildeo da sociedade burguesa a
loucura jaacute tinha o estatuto de algo ldquoestranhordquo e junto com todos aqueles considerados
ldquoindesejaacuteveisrdquo agrave sociedade leprosos sifiliacuteticos aleijados mendigos etc comeccedila a ser
confinada nas entatildeo chamadas ldquocasas de internaccedilatildeordquo grandes instituiccedilotildees filantroacutepicas ou
religiosas que tinham como objetivo afastar a pobreza e a miseacuteria das ruas em uma grande
medida de higiene social Segundo Foucault
Estranha superfiacutecie a que comporta as medidas de internamento Doentes veneacutereos
devassos dissipadores homossexuais blasfemadores alquimistas libertinos toda
uma populaccedilatildeo matizada se vecirc repentinamente na segunda metade do seacuteculo XVII
rejeitada para aleacutem de uma linha de divisatildeo e reclusa em asilos que se tornaratildeo em
um ou dois seacuteculos os campos fechados da loucura (2002 116)
Esse periacuteodo histoacuterico eacute denominado pelo autor como a ldquoA Grande Internaccedilatildeordquo (2002)
fazendo alusatildeo ao fato de que a internaccedilatildeo natildeo era apenas para os loucos mas para toda a sorte
de indiviacuteduos que por algum motivo perturbavam a ordem social Esse periacuteodo se inscreve
desde o seacuteculo XVII ateacute o final seacuteculo XVIII e seu fim inaugura a emergecircncia da psiquiatria
enquanto ciecircncia (RIBEIRO PINTO 2011)
As ldquocasas de internaccedilatildeordquo natildeo tinham como objetivo a cura de enfermos ou a reabilitaccedilatildeo
dessas pessoas Eram verdadeiros depoacutesitos humanos lugares de exclusatildeo social da pobreza e
da miseacuteria produzidas pelos regimes absolutistas da eacutepoca Laacute permaneciam isolados e
esquecidos esperando a proacutepria morte
As primeiras casas surgiram nas regiotildees mais industrializadas do paiacutes como uma
alternativa para crise econocircmica atraveacutes da exploraccedilatildeo da matildeo de obra barata Segundo o
regulamento de uma das casas ldquoos internos devem trabalhar todos Determina-se o valor exato
de sua produccedilatildeo e daacute-se-lhes a quarta parte Pois o trabalho natildeo eacute apenas ocupaccedilatildeo deve ser
produtivordquo (FOUCAULT 2002 67)
Os loucos natildeo recebiam tratamento diferenciado em relaccedilatildeo aos outros pobres poreacutem
distinguiam-se pela ldquoincapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida
17
coletivardquo (FOUCAULT 2002 73) Assim comeccedila-se a se pensar a loucura como um caso agrave
parte uma vez que ela natildeo responde da mesma forma agraves demandas de produtividade
Com a expansatildeo industrial o pobre passa a ser necessaacuterio nas cidades logo natildeo podia
mais estar internado mas e o pobre e louco A quem caberia a responsabilidade de assistecircncia
dessas pessoas Aos poucos as casas de internaccedilatildeo foram mudando de figura
O poder exercido no interior dessas Instituiccedilotildees pertencia agrave Igreja e ao Estado mas
em funccedilatildeo das revoluccedilotildees francesa e industrial do surgimento de novos atores sociais
ndash a burguesia a classe meacutedia o proletariado - e do surgimento de uma nova
racionalidade na produccedilatildeo do conhecimento essas instituiccedilotildees vatildeo gradativamente se
transformando em instituiccedilotildees meacutedicas (BARRIacuteGIO 2010 18)
Em 1791 na Franccedila eacute decretada uma lei que responsabiliza as famiacutelias por vigiar seus
loucos evitando que eles fiquem ldquovagando na ruardquo ou cometam alguma ldquodesordemrdquo No
entanto para as famiacutelias mais pobres que natildeo tinham condiccedilotildees de assistir seus familiares
chegam vaacuterios pedidos de internaccedilatildeo ao Ministeacuterio do Interior Nesse cenaacuterio destacam-se
duas instituiccedilotildees que sob agrave eacutegide da Medicina comeccedilam a se configurar enquanto os primeiros
hospitais especializados no tratamento da loucura Bicecirctre para o puacuteblico masculino e
Salpetriegravere para o puacuteblico feminino (HENNA 2014)
Em 1792 o meacutedico Phillipe Pinel assumiu a direccedilatildeo do Hospital de Bicetrecirc em Paris
onde operou inuacutemeras transformaccedilotildees consideradas atualmente por alguns autores como a
primeira Reforma da Psiquiatria Pinel inspirado pelos ideais de igualdade fraternidade e
liberdade da Revoluccedilatildeo Francesa libertou os loucos das correntes aboliu teacutecnicas como ldquoa
imersatildeo em aacutegua gelada os golpes as sangrias e as torturasrdquo (CAPONI 2012 49) e combateu
o pensamento da eacutepoca que a loucura era um fenocircmeno de possessatildeo demoniacuteaca
A funccedilatildeo meacutedica eacute claramente introduzida em Bicecirctre trata-se agora de rever todos
os internamentos por demecircncia que foram decretados no passado E pela primeira vez
na histoacuteria do Hospital Geral eacute nomeado para as enfermarias de Bicecirctre um homem
que jaacute adquiriu certa reputaccedilatildeo no conhecimento das doenccedilas do espiacuterito a designaccedilatildeo
de Pinel prova por si soacute que a presenccedila de loucos em Bicecirctre jaacute eacute um problema meacutedico
(FOUCAULT 2002 464)
A Psiquiatria de Pinel teve como objetivo demarcar os precisos limites entre a
normalidade e a loucura Devem-se a ele os primeiros esforccedilos no sentido de separar e
classificar os diversos tipos de desvio ou alienaccedilatildeo mentalrdquo com o intuito de estudaacute-los e
trataacute-los Com Pinel a loucura comeccedila a ganhar o status de uma ldquodoenccedila mentalrdquo com
sintomatologia proacutepria que requer cura e tratamento
Em seu Traite Medico-Philosophique sur IAlienation Mentale Pinel (1801) afirma que
18
Os alienados longe de serem culpados a quem se deve punir satildeo doentes cujo
doloroso estado merece toda a consideraccedilatildeo devida a humanidade que sofre e para
quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razatildeo desviada (apud
PEREIRA 2004 114 grifo nosso)
Hegel inspirado pelos estudos de Pinel afirma que a loucura natildeo eacute uma perda total da
razatildeo mas a contradiccedilatildeo de uma razatildeo que ainda existe O alienado eacute portanto um ser em
contradiccedilatildeo consigo mesmo mas que preserva em algum lugar um ponto lucidez
O verdadeiro tratamento apega-se a concepccedilatildeo de que a alienaccedilatildeo natildeo eacute a perda
abstrata da razatildeo nem do lado da inteligecircncia nem do lado da vontade ou da sua
responsabilidade mas um simples desarranjo do espiacuterito uma contradiccedilatildeo na
razatildeo que ainda existe assim como a doenccedila fiacutesica natildeo eacute uma perda abstrata isto eacute
completa da sauacutede (isso seria a morte) mas eacute uma contradiccedilatildeo dentro dela Esse
tratamento humano isto eacute tatildeo benevolente quanto razoaacutevel da loucura pressupotildee que
o doente eacute razoaacutevel e aiacute encontra um soacutelido ponto para abordaacute-lo desse lado (HEGEL
apud FOUCAULT 1972 524 grifo nosso)
Sendo a alienaccedilatildeo um distuacuterbio das paixotildees no interior da proacutepria razatildeo e natildeo fora dela
o tratamento possiacutevel para a loucura era buscar reestabelecer a normalidade perdida Conforme
afirma Pinel (1801) ldquohaacute sempre um resto de razatildeo mesmo no mais alienado dos alienadosrdquo e
se haacute um resto de razatildeo para Pinel era possiacutevel resgataacute-la (apud CAPONI 2012 48)
Os meios propostos por Pinel para reestabelecer o equiliacutebrio do doente constituiacuteam no
que ele chamou de ldquotratamento moralrdquo O termo moral nesse sentido era usado para designar
aquilo que pertence ao espiacuterito em contraposiccedilatildeo ao que eacute fiacutesico Assim o tratamento moral
visava reeducar o ldquodoenterdquo no sentido de ldquocriar estrateacutegias para dominar as paixotildees e recuperar
a razatildeordquo (CAPONI 2012 53)
O chamado tratamento moral praticado pelos alienistas incluiacutea o afastamento dos
doentes do contato exterior com todas as influecircncias da vida social e de qualquer
contato que pudesse modificar o que era considerado o desenvolvimento natural da
doenccedila (PEREIRA 2004 114)
A estrateacutegia de isolamento praticada com o tratamento moral procurava manter distacircncia
das condiccedilotildees que Pinel acreditava terem contribuiacutedo para o desenvolvimento da doenccedila
Segundo seus estudos tratavam-se de elementos de ordem social e afetiva que ele relacionava
com certos tipos de alienaccedilatildeo mental
Existe uma marcada diferenccedila na frequecircncia de certas causas conforme as espeacutecies de
alienaccedilatildeo problemas domeacutesticos produzem mais frequentemente a mania uma
devoccedilatildeo muito exaltada determina a melancolia Um amor contrariado e infeliz parece
ser a fonte fecunda para duas espeacutecies de alienaccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo ao idiotismo os
estudos indicam que as causas fiacutesicas como um viacutecio de conformaccedilatildeo podem estar na
origem da maior parte dos casos (PINEL apud CAPONI 2012 48)
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Podemos ver que as ldquocausas moraisrdquo mais frequentes da alienaccedilatildeo satildeo experiecircncias
comuns a vida cotidiana ( amor contrariado problemas domeacutesticos devoccedilatildeo religiosa etc) que
poderiam ser revertidas com o tratamento atraveacutes da submissatildeo do doente a um ambiente de
controle onde seria possiacutevel dominar as paixotildees desenfreadas e os comportamentos
inadequados atraveacutes da ldquovoz da razatildeordquo representada pela figura do psiquiatra
Conforme Pinel
A terapecircutica da loucura eacute a arte de subjulgar e dominar por assim dizer o alienado
pondo-o em extrema dependecircncia de um homem que por suas qualidades fiacutesicas e
morais estaacute apto para exercer sobre ele um domiacutenio irresistiacutevel algueacutem capaz de
mudar a cadeia viciosa de suas ideacuteias (FOUCAULT 2003 apud CAPONI 2012 41)
Assim dois elementos mostram-se fundamentais para o sucesso do tratamento moral
isolamento e poder Por um lado a ideia de privar o doente do contato com as condiccedilotildees que
ocasionaram a sua doenccedila resulta no seu isolamento por outro a submissatildeo a um ambiente
riacutegido de regras firmes e incontestaacuteveis seria o fator imprescindiacutevel para exercer o controle das
paixotildees
A proacutepria organizaccedilatildeo do espaccedilo e das rotinas do ambiente asilar eram pensadas de
modo que a disciplina do ambiente pudesse se refletir tambeacutem nos pacientes operando assim
uma espeacutecie de ldquocontenccedilatildeordquo pelo ambiente (CAPONI 2012) As regras condutas horaacuterios e
regimentos do hospital tinham como objetivo reeducar a mente do ldquoalienadordquo afastar os deliacuterios
e ldquochamar agrave consciecircncia agrave realidaderdquo (AMARANTE 200733) Assim o hospital passa a ser
natildeo somente o lugar onde acontece o tratamento mas ele proacuteprio um instrumento ldquoterapecircuticordquo
Este tratamento exige uma reorganizaccedilatildeo interna do espaccedilo asilar uma distribuiccedilatildeo
minuciosa das diferentes espeacutecies de doente ficando os melancoacutelicos mais proacuteximos
do paacutetio e situando-se o restando dos pacientes mais longe de acordo com a sua
periculosidade Assim como existe uma minuciosa descriccedilatildeo e organizaccedilatildeo do
espaccedilo algo semelhante ocorreraacute com o controle do tempo As atividades exercidas
no asilo tem tempos estabelecidas assim como os tratamentos para cada tipo de
doenccedila As regras seratildeo previamente estabelecidas e fixadas sendo que cada
estrateacutegia disciplinar pretende contrapor a loucura agrave racionalidade e agrave mesura
representadas pelo saber meacutedico Define-se assim o modelo que deve ser interiorizado
por esse tipo de ortopedia moral que rege nos asilos (CAPONI2012 50)
Vecirc-se entatildeo que o surgimento dos hospitais psiquiaacutetricos nasce estreitamente ligado agrave
concepccedilatildeo de loucura enquanto doenccedila mental e a ideia de um tratamento que usa como
recursos terapecircuticos o isolamento a disciplina e a autoridade Com o alienismo o hospital
deixa de ser um espaccedilo de assistecircncia e filantropia para se tornar de fato uma instituiccedilatildeo
meacutedica Comeccedila-se a se estabelecer uma diferenccedila entre o louco o criminoso o pobre e o
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doente dos oacutergatildeos de modo que se torna necessaacuterio isolar o louco dos demais internos em um
ambiente separado afim de observaacute-lo e estudar a natureza de sua doenccedila Embora os loucos jaacute
fossem institucionalizados antes do alienismo haacute nesse momento uma marcada diferenccedila a
clausura em questatildeo natildeo se daacute mais por caridade ou repressatildeo mas ldquopor um imperativo
terapecircuticordquo (AMARANTE 2007 33)
Assim as condiccedilotildees de possibilidade para o surgimento do manicocircmio enquanto uma
instituiccedilatildeo de isolamento da loucura contemplam tanto os alienistas e seu entendimento sobre
a loucura quanto agraves necessidades da sociedade como um todo Por um lado a concepccedilatildeo que
se tinha em relaccedilatildeo agrave loucura exigia o reestabelecimento da razatildeo atraveacutes de uma reeducaccedilatildeo
moral cujos alicerces eram o isolamento e as riacutegidas disciplinas institucionais por outro
haviam os anseios da populaccedilatildeo por isolamento e exclusatildeo daqueles que desviam da norma
social e que por isso lhe parecem estranhos e perigosos
Foi assim que segundo Amarante (2007 33) ldquoo alienismo pineliano ganhou o mundordquo
e embora tenha havido algumas criacuteticas a esse modelo ele soacute seraacute efetivamente questionado no
seacuteculo XX no contexto do poacutes-guerra na Europa
As duas grandes Guerras Mundiais voltaram a sociedade para uma reflexatildeo sobre a
natureza humana a crueldade e solidariedade com o proacuteximo No poacutes-Segunda Guerra com a
queda do nazismo especificamente percebeu-se que as condiccedilotildees de vida oferecidas nos
hospitais psiquiaacutetricos pouco se distanciavam daquelas oferecidas aos judeus nos campos de
concentraccedilatildeo nazistas (AMARANTE 2007)
Paralelamente a Europa sofreu um forte abalo econocircmico Segundo Heidrich (2007
38) ldquoos autores destacam que soacute na Franccedila 40 mil doentes mentais morreram nos asilos devido
agraves maacutes condiccedilotildees e a falta de alimentaccedilatildeordquo Houve uma perda consideraacutevel da matildeo-de-obra
disponiacutevel que fora lanccedilada ao campo de batalha e jaacute natildeo havia mais quem pudesse reconstruir
a economia e reparar os danos do poacutes-guerra
Nessa atual conjuntura natildeo era mais possiacutevel assistir-se passivamente ao
deterioramento do espetaacuteculo asilar natildeo era mais possiacutevel aceitar uma situaccedilatildeo em
que um conjunto de homens passiacuteveis de atividade pudessem estar espantosamente
estragados no hospiacutecio Passou-se a enxergar como um grande absurdo esse montante
de desperdiacutecio da forccedila de trabalho (BIRMAN COSTA 1994 46-7)
Segundo Birman e Costa (1994) lidos por Heidrich (2007) haviam duas preocupaccedilotildees
centrais que demandavam a reforma do modelo asilar
Por um lado a preocupaccedilatildeo dos proacuteprios psiquiatras com relaccedilatildeo agrave sua impotecircncia
terapecircutica por outro as preocupaccedilotildees governamentais geradas pelos altos iacutendices
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de cronicidade das doenccedilas mentais com sua consequente incapacidade social Dessa
forma a psiquiatria social aparece transferindo o campo de atuaccedilatildeo da psiquiatria da
doenccedila mental para a sauacutede mental ( BIRMAN COSTA 1994 apud HEIDRICH
2007 36-7)
O Hospital Psiquiaacutetrico comeccedila a aparecer entatildeo como o principal responsaacutevel pela
degradaccedilatildeo dos pacientes e pela manutenccedilatildeo e pela cronicidade de sua doenccedila Assim surgem
vaacuterias experiecircncias com o objetivo de transformar o ambiente asilar e reabilitar os pacientes
para a vida social e para o trabalho
Segundo Amarante (2007) esses movimentos reformistas foram divididos em ldquodois
grupos mais umrdquo
O primeiro grupo composto pela Comunidade Terapecircutica e pela Psicoterapia
Institucional destaca duas experiecircncias que investiram no princiacutepio de que o fracasso
estava na forma de gestatildeo do proacuteprio hospital e que a soluccedilatildeo portanto seria
introduzir mudanccedilas na instituiccedilatildeo O segundo grupo eacute formado pela Psicoterapia de
Setor e Psiquiatria Preventiva experiecircncias que acreditavam que o modelo hospitalar
estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ldquopelas beiradasrdquo como se diz
na linguagem popular isto eacute deveria ser tornado obsoleto a partir da construccedilatildeo de
serviccedilos assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapecircutico (hospitais dia
oficinas terapecircuticas centros de sauacutede mental etc) ao mesmo tempo que iriam
diminuindo a importacircncia e a necessidade do hospital psiquiaacutetrico No lsquooutrorsquo grupo
em que estatildeo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica o termo reforma parece
inadequado Ambas consideram que a questatildeo mesma estaria no modelo cientiacutefico
psiquiaacutetrico que eacute todo ele colocado em xeque assim como suas instituiccedilotildees
assistenciais (AMARANTE 2007 41)
O primeiro grupo formado pela Comunidade Terapecircutica (Inglaterra e EUA) e pela a
Psicoterapia Institucional (Franccedila) acreditava em uma reforma do ambiente hospitalar de modo
a humanizaacute-lo e tornaacute-lo efetivamente terapecircutico Assim empreenderam propostas de
democratizar o hospital dissolver a rigidez da hierarquia e da disciplina do ambiente hospitalar
de modo a horizontalizar as relaccedilotildees de poder Todos deviam fazer parte de uma mesma
comunidade terapecircutica e lutar contra a violecircncia institucional O sistema eacute pensado de modo a
apostar no potencial terapecircutico do coletivo e a incluir o sujeito que experiecircncia o sofrimento
como co-participante de seu tratamento Jaacute vemos aiacute uma inversatildeo em relaccedilatildeo a psiquiatria
pineliana e ao modo tradicional de se entender a loucura poreacutem natildeo haacute um questionamento em
relaccedilatildeo a necessidade de institucionalizaccedilatildeo do louco
O segundo grupo composto pela Psiquiatria de Setor (Franccedila) e pela Psiquiatria
Preventiva (EUA) jaacute apontava para a necessidade de um trabalho externo ao manicocircmio A
Psiquiatria de Setor se destacou por criar serviccedilos externos agrave internaccedilatildeo os CSM (Centros de
Sauacutede Mental) distribuiacutedos pelo territoacuterio de acordo com o contingente populacional nos
diferentes setores administrativos das regiotildees francesas O hospital por sua vez era tambeacutem
dividido em vaacuterios setores de modo que pacientes de uma mesma regiatildeo administrativa fossem
22
sempre internados no mesmo setor do hospital e quando recebessem alta eram enviados ao CMS
correspondente (AMARANTE 2007)
Organizar o cuidado desse modo permitia que o sujeito pudesse ser acompanhado pela
mesma equipe multiprofissional desde a internaccedilatildeo hospitalar ateacute a alta e encaminhamento para
o CMS do setor contando com o viacutenculo como um recurso terapecircutico Comeccedila-se a se
construir a ideia de uma equipe multidisciplinar de modo que o cuidado natildeo ficasse mais apenas
centralizado na figura do meacutedico
A Psiquiatria Preventiva tambeacutem conhecida como Psiquiatria Comunitaacuteria buscou
aplicar o meacutetodo da Medicina Preventiva agrave Psiquiatria visando reduzir a incidecircncia das doenccedilas
mentais na populaccedilatildeo Caplan fundador dessa corrente acreditava que ldquotodas as doenccedilas
mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocementerdquo (apud AMARANTE
2007 48)
Para a Psiquiatria Preventiva o conceito de crise passa a ser norteador A crise era
entendida a partir do vieacutes socioloacutegico de ldquoadaptaccedilatildeo e desadaptaccedilatildeo socialrdquo Segundo Joel
Birman e Jurandir Freire Costa atraveacutes da leitura de Amarante as crises eram classificadas em
dois grandes grupos
1) Evolutivas-quando relacionadas a processos normais do desenvolvimento fiacutesico
emocional ou social Em tais processos na passagem de uma fase agrave outra da vida a
conduta natildeo estaria caracterizada por um padratildeo estabelecido Tratar-se-ia de um
periacuteodo transitoacuterio quando o indiviacuteduo perderia sua caracterizaccedilatildeo anterior sem no
entanto adquirir uma nova organizaccedilatildeo Na hipoacutetese de os conflitos gerados natildeo
serem bem absorvidos poderiam levar agrave desadaptaccedilatildeo que natildeo sendo elaborados pela
pessoa poderiam conduzir agrave doenccedila mental
2) Acidentais- quando precipitadas por alguma perda ou risco (desemprego separaccedilatildeo
conjugal falecimento de uma pessoa querida etc) A perturbaccedilatildeo emocional
ocasionada pela crise provocaria eventualmente o surgimento de alguma enfermidade
mental assim torna-se um momento estrateacutegico de intervenccedilatildeo preventiva na medida
em que em contrapartida a crise pode ser encarada como uma possibilidade de
crescimento para o indiviacuteduo (Birman e Costa 1998 apud AMARANTE 2007 49-
50)
Entendendo que algumas situaccedilotildees sejam elas relativas ao desenvolvimento natural do
ser humano ou a condiccedilotildees externas diversas apontam para momentos mais delicados da vida
a Psiquiatria Preventiva propocircs estrateacutegias de trabalho de base comunitaacuteria investindo em
equipes de sauacutede mental que pudessem acompanhar os usuaacuterios preventivamente identificando
e intervindo na crise em seu vieacutes individual familiar e social
Tambeacutem foram implantados vaacuterios serviccedilos comunitaacuterios de cuidado com o objetivo de
acompanhar os usuaacuterios preventivamente diminuindo a incidecircncia das doenccedilas mentais e a
23
necessidade de internaccedilotildees psiquiaacutetricas de modo que aos poucos o hospital se tornasse um
recurso obsoleto e desnecessaacuterio (AMARANTE 2007)
No entanto aconteceu paradoxalmente um aumento importante da demanda psiquiaacutetrica
nos EUA tanto nos serviccedilos extra hospitalares quanto nos hospitais psiquiaacutetricos ldquoos proacuteprios
serviccedilos comunitaacuterios se transformaram em grandes captadores e encaminhadores de novas
clientelas para os hospitais psiquiaacutetricosrdquo (AMARANTE 2007 51)
Assim vemos que embora tenha havido uma mudanccedila na estruturaccedilatildeo dos serviccedilos ela
natildeo eacute suficiente sem uma mudanccedila de mentalidade em relaccedilatildeo agrave loucura e aos modos de trataacute-
la Ainda que os novos dispositivos tenham sido pensados para evitar as internaccedilotildees
psiquiaacutetricas isso natildeo ocorreraacute se os profissionais continuam a pensar do mesmo modo e se natildeo
haacute um trabalho com a sociedade no sentido de questionar a exclusatildeo da loucura e inventar novas
possibilidades de convivecircncia
Nesse ponto a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica Italiana se destacam das
demais propostas de reformas da psiquiatria Para a Antipsiquiatria as pessoas tidas como
loucas eram reprimidas e violentadas natildeo soacute nos hospitais mas na sociedade como um todo
Logo ldquoa experiecircncia dita patoloacutegica ocorria natildeo no indiviacuteduo na condiccedilatildeo de corpo ou mente
doente mas nas relaccedilotildees estabelecidas entre ele e a sociedaderdquo (AMARANTE 2007 35)
Assim natildeo era apenas a instituiccedilatildeo que precisava mudar tampouco o sujeito dito louco mas a
proacutepria relaccedilatildeo entre loucura e sociedade
O princiacutepio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiecircncia esta seria
por si soacute terapecircutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de
reorganizaccedilatildeo interior Ao lsquoterapeutarsquo competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a
superar esse processo acompanhando-a protegendo-a inclusive da violecircncia da
proacutepria psiquiatria (AMARANTE 2007 54)
Quanto agrave experiecircncia italiana Franco Basaglia (1968) precursor do movimento
entendia que era preciso superar natildeo apenas o manicocircmio mas todo o aparato manicomial isto
eacute natildeo soacute a estrutura fiacutesica do hospital mas o conjunto de seus saberes e praacuteticas cientiacuteficas
sociais juriacutedicas e legislativas
Essa inflexatildeo destaca que a luta natildeo eacute contra o manicocircmio em si mas contra toda e
qualquer praacutetica manicomial Com isso Basaglia (1968) chama atenccedilatildeo para o fato de que
mesmo nos dispositivos ditos ldquonovosrdquo eacute possiacutevel haver uma reproduccedilatildeo de praacuteticas autoritaacuterias
e opressoras em relaccedilatildeo agrave loucura Vale dizer que foi esse movimento que serviu de inspiraccedilatildeo
e base para a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira tema do nosso proacuteximo capiacutetulo
24
Inspirado na Psiquiatria Comunitaacuteria Basaglia tambeacutem criou centros regionalizados
para atender as demandas de sauacutede mental No entanto diferente desse primeiro movimento
natildeo eram dispositivos que davam continuidade ao tratamento apoacutes a alta e que reinternavam os
pacientes nos manicocircmios nos momentos de crise mas serviccedilos que constituiacuteam por excelecircncia
o modelo de tratamento em sauacutede mental rejeitando definitivamente o hospital como lugar de
tratamento
Quanto ao entendimento da loucura haacute tambeacutem nesse ponto uma ruptura
epistemoloacutegica importante com o paradigma anterior Basaglia (1968) considera que o mal
obscuro da psiquiatria foi ter colocado o sujeito entre parecircnteses e ter elegido como seu objeto
de estudo ldquoa doenccedilardquo (apud AMARANTE 2007) Assim a proposta da Psiquiatria
Democraacutetica Italiana consiste em operar uma inversatildeo colocar a doenccedila entre parecircnteses e
tomar o sujeito como o objeto da psiquiatria Importante destacar que isto natildeo significa negar a
doenccedila enquanto um estado de produccedilatildeo de dor e sofrimento mas compreender que a totalidade
do sujeito natildeo se reduz agrave ela
Com isto o objeto da Psiquiatria se desloca da ldquodoenccedila mentalrdquo para a ldquosauacutede mentalrdquo
e o mandato dessa ciecircncia deixa de ser centrado na cura do paciente para se tornar uma
preocupaccedilatildeo com a sua sauacutede e com seu bem-estar social
Assim vemos que os significados da loucura na sociedade e os modelos assistenciais
desenhados para dar conta dessa questatildeo nunca foram objetos ldquodadosrdquo historicamente mas
construccedilotildees sociais Diferentes noccedilotildees de crise e de loucura permitiram a emergecircncia de
diferentes modelos de assistecircncia Com isto podemos observar que os modos de compreensatildeo
da crise e da loucura influem nas nossas ofertas de cuidado assim como nossas ofertas de
cuidado tambeacutem dizem algo do modo como estamos pensando e compreendendo a loucura e as
intervenccedilotildees possiacuteveis em uma situaccedilatildeo de crise
12 A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
O movimento de Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira encontra suas origens no final da
deacutecada de 1970 no bojo dos movimentos sociais ligados agrave luta contra a ditadura e dentro de um
movimento mais amplo de reformas no setor da sauacutede Dentre esses movimentos emergentes
em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores da Sauacutede Mental (MTSM) que assumiu um
papel importante na criacutetica e na oposiccedilatildeo ao regime militar em especial no que concernia agraves
situaccedilotildees de violaccedilatildeo dos direitos humanos dentro dos hospitais psiquiaacutetricos Esse movimento
25
permitiu colocar em evidecircncia a violecircncia e a miseacuteria agraves quais eram submetidas as pessoas com
transtorno mental internadas nos hospitais da rede puacuteblica aleacutem de reivindicar melhorias nas
condiccedilotildees de trabalho dos profissionais de sauacutede (AMARANTE 1998)
Segundo Amarante (1998) um ponto crucial para o surgimento desse movimento foi o
que se denominou a ldquocrise da Divisatildeo Nacional de Sauacutede Mentalrdquo1 movimento de denuacutencia e
criacutetica agraves peacutessimas condiccedilotildees em que se encontravam os quatro hospitais da Divisatildeo Nacional
de Sauacutede Mental do Ministeacuterio da Sauacutede no Rio de Janeiro (Centro Psiquiaacutetrico Pedro II ndash
CPPII Hospital Pinel Colocircnia Juliano Moreira ndash CJM e Manicocircmio Judiciaacuterio Heitor
Carrilho) Essa situaccedilatildeo culminou na greve de meacutedicos e funcionaacuterios no primeiro trimestre de
1978 seguida da demissatildeo de 260 estagiaacuterios e profissionais
Na eacutepoca devido ao destaque do Rio de Janeiro como ex-capital federal e como capital
cultural do Brasil somado a gravidade dessas denuacutencias terem ocorrido dentro de um oacutergatildeo
federal constatou-se um verdadeiro escacircndalo no modo como o Estado tratava os pacientes
com transtorno mental e seus funcionaacuterios Isso permitiu com que a situaccedilatildeo atingisse
repercussatildeo nacional tanto atraveacutes da divulgaccedilatildeo na miacutedia quanto pelo debate em setores
expressivos da sociedade brasileira o que impulsionou o movimento de Reforma por todo o
paiacutes (AMARANTE 1998)
Em 1987 surge o Movimento de Luta Antimanicomial a partir do Encontro dos
Trabalhadores da Sauacutede Mental que reuniu mais de 350 trabalhadores na cidade de Bauru no
estado de Satildeo Paulo O movimento assumiu um papel importante no processo de construccedilatildeo da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira contribuindo no fortalecimento e na organizaccedilatildeo dos
trabalhadores usuaacuterios e familiares em torno das pautas e reivindicaccedilotildees da aacuterea
(VASCONCELOS 2008)
Na deacutecada de 1980 haacute um fortalecimento dos movimentos reformistas Segundo
Tenoacuterio (2002) houve um amadurecimento da criacutetica ao modelo asilarsegregador e uma
contestaccedilatildeo mais forte em relaccedilatildeo agraves internaccedilotildees conveniadas
a deacutecada de 1980 assistiu ainda a trecircs processos tambeacutem importantes para a
consolidaccedilatildeo das caracteriacutesticas atuais do movimento da reforma a ampliaccedilatildeo dos
atores sociais envolvidos no processo a iniciativa de reformulaccedilatildeo legislativa e o
surgimento de experiecircncias institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo
tipo de cuidado em sauacutede mental (TENOacuteRIO 2002 27)
1 Oacutergatildeo do Ministeacuterio da Sauacutede responsaacutevel pela formulaccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede do subsetor sauacutede mental
26
Em 1989 o deputado Paulo Delgado propotildee o projeto de lei no 365789 estabelecendo
os direitos das pessoas com transtorno mental e prevendo a extinccedilatildeo dos manicocircmios poreacutem
devido aos fortes lobbies dos proprietaacuterios de hospitais psiquiaacutetricos o projeto natildeo eacute aprovado
mas produz a ampliaccedilatildeo do debate em torno da reestruturaccedilatildeo da assistecircncia por todo o paiacutes
A intensificaccedilatildeo do debate e a popularizaccedilatildeo da causa da reforma desencadeadas pela
iniciativa de revisatildeo legislativa certamente impulsionaram os avanccedilos que a luta
alcanccedilou nos anos seguintes Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiaacutetrica
proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou a situaccedilatildeo curiosa de ser
uma lei que produziu seus efeitos antes de ser aprovada (TENOacuteRIO 2002 28
grifo nosso)
Embora a lei natildeo tenha sido aprovada nesse primeiro momento ela teve efeitos
importantes na organizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos serviccedilos em prol da Reforma Psiquiaacutetrica A
partir de 1992 os movimentos sociais conseguem aprovar em vaacuterios estados do Brasil as
primeiras leis que determinam a substituiccedilatildeo progressiva dos leitos psiquiaacutetricos por uma rede
integrada de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental (BRASIL 2005 8) Nesse contexto atraveacutes
PortariaSNAS nordm 2241992 surgem os Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e os Nuacutecleos
de Atenccedilatildeo Psicossocial (NAPS) dois importantes dispositivos com a proposta de atuarem de
formas substitutiva ao modelo asilar
Ainda nesse ano destaca-se um outro marco na histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileira a II Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental Esta conferecircncia contou com a ampla
participaccedilatildeo dos usuaacuterios e familiares de sauacutede mental cabe ressaltar que aproximadamente
20 dos delegados da conferecircncia eram usuaacuterios dos serviccedilos de sauacutede mental ou familiares de
usuaacuterios
Segundo Tenoacuterio (2002) a conferecircncia estabelece dois marcos conceituais importantes
a atenccedilatildeo integral e a cidadania
Segundo essa referecircncia satildeo desenvolvidos o tema dos direitos e da legislaccedilatildeo e a
questatildeo do modelo e da rede de atenccedilatildeo na perspectiva da municipalizaccedilatildeo As
recomendaccedilotildees gerais sobre o modelo de atenccedilatildeo propunham a adoccedilatildeo dos conceitos
de territoacuterio e responsabilidade como forma de ruptura com o modelo
hospitalocecircntrico e de garantir o direito dos usuaacuterios agrave assistecircncia e agrave recusa ao
tratamento bem como a obrigaccedilatildeo do serviccedilo em natildeo abandonaacute-los agrave proacutepria sorte
(Ministeacuterio da Sauacutede Brasil 1994 22 apud TENOacuteRIO 2002)
Ao longo da deacutecada de 1990 a proposta da construccedilatildeo de uma rede de serviccedilos que
possibilitasse a extinccedilatildeo dos manicocircmios ganhou forccedila e houve uma expansatildeo significativa dos
serviccedilos de atenccedilatildeo diaacuteria substitutivos aos hospitalares Nesse periacuteodo entre os muitos pontos
importantes destacam-se
a penetraccedilatildeo crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiaacutetrico (natildeo obstante
o triunfalismo da psiquiatria bioloacutegica) a permanecircncia continuada de diretrizes
27
reformistas no campo das poliacuteticas puacuteblicas com os postos de coordenaccedilatildeo e gerecircncia
ocupados por partidaacuterios da reforma (no caso do Rio de Janeiro nos trecircs niacuteveis
gestores federal estadual e municipal) a existecircncia de experiecircncias renovadoras com
resultados iniciais positivos em todas as regiotildees do paiacutes a capacidade das experiecircncias
mais antigas de manter sua vitalidade os reiterados indiacutecios de um novo olhar sobre
a loucura vicejando no espaccedilo social um olhar natildeo mais tatildeo fortemente marcado pelos
estigmas do preconceito e do medo (TENOacuteRIO 200241)
Depois de 12 anos tramitando no congresso eacute aprovado em 2001 um projeto substitutivo
da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado a lei 10216 que sofreu muitas modificaccedilotildees no
texto original A referida lei ldquodispotildee sobre a proteccedilatildeo das pessoas com transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sauacutede mentalrdquo (BRASIL 2001) No artigo 2ordm paraacutegrafo
uacutenico estabelece que satildeo direitos da pessoa com transtorno mental
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de sauacutede consentacircneo agraves suas
necessidades II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua sauacutede visando alcanccedilar sua recuperaccedilatildeo pela inserccedilatildeo na famiacutelia no
trabalho e na comunidade III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e
exploraccedilatildeo IV ndash ter garantia de sigilo nas informaccedilotildees prestadas V ndash ter direito agrave
presenccedila meacutedica em qualquer tempo para esclarecer a necessidade ou natildeo de sua
hospitalizaccedilatildeo involuntaacuteria VI ndash ter livre acesso aos meios de comunicaccedilatildeo
disponiacuteveis VII ndash receber o maior nuacutemero de informaccedilotildees a respeito de sua doenccedila e
de seu tratamento VIII ndash ser tratada em ambiente terapecircutico pelos meios menos
invasivos possiacuteveis IX ndash ser tratada preferencialmente em serviccedilos comunitaacuterios de
sauacutede mental (BRASIL 2001)
A lei 10216 tambeacutem regulamenta as internaccedilotildees psquiaacutetricas e redireciona o modelo
assistencial em sauacutede
Aleacutem dos CAPS previu-se a implantaccedilatildeo de ambulatoacuterios de sauacutede mental NAPS
residecircncias terapecircuticas hospitais-dia unidades de psiquiatria em hospitais gerais
lares protegidos e centros de convivecircncia e cultura (BRASIL 2001 apud BARROSO
SILVA 2011 73)
Previram-se tambeacutem a criaccedilatildeo de oficinas de trabalho protegido unidades de
preparaccedilatildeo para a reinserccedilatildeo social dos pacientes e serviccedilos para o atendimento agraves
famiacutelias (BARROSO SILVA 201173 )
Apoacutes a aprovaccedilatildeo da lei 10216 surgiram mais duas portarias que instituiacuteam os serviccedilos
residenciais terapecircuticos (106 e 1220 ambas de 2000)
outras oito leis estaduais e diversas portarias e programas foram criados para
regulamentaccedilatildeo do atendimento psiquiaacutetrico comunitaacuterio Merecem destaque o
programa ldquoDe volta para casardquo (BRASIL 2003) e a portaria 336GM que atribui aos
CAPS o papel central na psiquiatria comunitaacuteria brasileira (DELGADO et al 2007)
(BARROSO SILVA 2011 74)
Quanto agraves mudanccedilas na assistecircncia e na superaccedilatildeo do modelo manicomial desde a
aprovaccedilatildeo da lei cabe levantar alguns dados para fins de anaacutelise Destaca-se como um avanccedilo
significativo na RPB a inversatildeo da curva do financiamento do SUS para a sauacutede mental a
partir de 2006 O valor anteriormente destinado aos hospitais psiquiaacutetricos passa a ser investido
em igual proporccedilatildeo nos serviccedilos de natureza aberta e comunitaacuteria (Graacutefico 1) o que mostra um
28
fortalecimento da rede substitutiva e um empenho na efetiva transformaccedilatildeo do modelo de
assistecircncia de acordo com as novas diretrizes da RPB (BRASIL 2015)
Cabe mencionar que os gastos em Atenccedilatildeo Comunitaacuteria Territorial incluem natildeo
somente os CAPS mas todos os serviccedilos da rede substitutiva tais como Serviccedilos Residenciais
Terapecircuticos (SRT) Centros de Convivecircncia Oficinas de geraccedilatildeo de renda aleacutem de programas
de incentivo financeiro como o Programa Volta para Casa
Quanto agrave expansatildeo dos CAPS desde a aprovaccedilatildeo da Lei 10216 dados do Ministeacuterio da
Sauacutede (2015) apontam uma expansatildeo meacutedia significativa e contiacutenua em todo o territoacuterio
nacional Desde 2002 ateacute 2014 houve um aumento de aproximadamente 150 CAPS por ano
chegando ao total de 2209 serviccedilos em 2014 nas diferentes modalidades como pode ser visto
no Graacutefico 2 (BRASIL 2015)
29
Graacutefico 2 - Seacuterie histoacuterica de expansatildeo de CAPS (2002 a 2014)
Fonte Sauacutede Mental em Dados BRASIL 2015 Elaboraccedilatildeo proacutepria
Vale ressaltar entretanto que a modalidade de CAPS tipo III (com funcionamento 24hrs
e leitos de acolhimento noturno) natildeo acompanhou esse crescimento Como podemos observar
no Quadro 1 no ano de 2014 dos 2209 CAPS existentes no paiacutes apenas 154 eram do tipo III
Considerando que 65 satildeo CAPS ad III destinados aos usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas temos
somente 85 CAPS do tipo III especificamente com capacidade de oferecer acolhimento noturno
agrave crise psicoacutetica e outros transtornos mentais graves percentual correspondente a apenas 38
do total de CAPS no paiacutes (BRASIL 2015)
Quanto a distribuiccedilatildeo dos CAPS III em 2014 verifica-se uma concentraccedilatildeo da oferta
desses serviccedilos em Satildeo Paulo e Minas Gerais que contavam com 35 e 12 unidades
respectivamente Os estados que figuraram em seguida com o maior nuacutemero de CAPS III foram
Paraiacuteba e Pernambuco com quatro serviccedilos cada um Paraacute Bahia Cearaacute Maranhatildeo Sergipe
Paranaacute e Rio de Janeiro contavam com trecircs CAPS III cada um Natildeo possuiacuteam CAPS III os
estados de Acre Amapaacute Rondocircnia Tocantins Alagoas Espiacuterito Santo Mato Grosso e o
Distrito Federal (Quadro 1)
30
31
A baixa participaccedilatildeo dos CAPS III no total de CAPS bem como a ausecircncia deste serviccedilo
em diversos estados mostra que sua proposta natildeo foi assumida pela gestatildeo municipal na escala
observada para os outros tipos de serviccedilos (COSTA et al 2011) Vale ressaltar que a
implantaccedilatildeo dos CAPS III ficou aqueacutem do esperado pelo proacuteprio MS (BRASIL 2011) o que
impacta diretamente na capacidade da RAPS acolher agrave crise em uma proposta de cuidado
substitutiva ao Hospital Psiquiaacutetrico
Em relaccedilatildeo a quantidade de leitos disponiacuteveis para a atenccedilatildeo agrave crise verificamos que haacute
uma marcada preponderacircncia dos leitos em hospitais psiquiaacutetricos em detrimento dos leitos de
sauacutede mental em hospitais gerais e em CAPS III Chama atenccedilatildeo especialmente o fato de que
a quantidade de leitos disponiacuteveis em CAPS III quando comparada ao total de leitos no cenaacuterio
nacional e local eacute praticamente nula alcanccedilando uma meacutedia de 238 e 1 2 em 2014
respectivamente
No cenaacuterio nacional segundo o Ministeacuterio da Sauacutede haviam 25988 leitos em hospitais
psiquiaacutetricos em 2014 (BRASIL 2015) Nos hospitais gerais considerando que o MS faz
distinccedilatildeo entre ldquoleitos de sauacutede mentalrdquo e de ldquopsiquiatriardquo de acordo com o CNES em 2014
haviam 4620 leitos de psiquiatria em HG pediaacutetricos e maternidades destinados ao SUS
(BRASIL 2015) No mesmo ano constam 888 leitos de sauacutede mental em hospitais gerais
conforme podemos ver no Quadro 2 resultando em uma soma de 5508 leitos disponiacuteveis para
a sauacutede mental em hospitais gerais no Brasil
Considerando que de acordo com Portaria 336 que rege o funcionamento dos CAPS
cada CAPS III deve ter no maacuteximo 5 leitos (BRASIL 2002) e que em 2014 de acordo com o
Quadro 1 constavam 154 CAPS III espalhados pelo territoacuterio nacional tomando para fins de
estimativa a capacidade maacutexima de leitos por CAPS teriacuteamos aproximadamente 770 leitos nos
CAPS III destinados a retaguarda noturna nos casos de crise Esse percentual correspondente
a apenas 2 38 do total de leitos o que significa que aproximadamente 8055 dos leitos estatildeo
nos hospitais psiquiaacutetricos
No municiacutepio do Rio de Janeiro de acordo com o Quadro 3 dos 1572 leitos
psiquiaacutetricos existentes 1504 se localizam em hospitais psiquiaacutetricos representando 975
do total de leitos Apenas 31 (49 leitos) se localizam em hospitais gerais e 1 2 (19) nos
CAPS III (BRASIL 2015)
32
Fonte Sauacutede Mental em Dados Brasil (2015)
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo
IIIndashSecretaria Municipal de Sauacutede do Rio de Janeirondashsetembro de 2015
FonteCNESMinisteacuterio da Sauacutede setembro de 2015
Localizaccedilatildeo
dos Leitos
Quantidade Porcentagem
Hospital
Psiquiaacutetrico
1504 957
Hospitais
Gerais
49 31
CAPS III 19 12
Total 1572 100
33
Desse modo embora tenhamos conquistado alguns avanccedilos significativos no processo
de reestruturaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede mental ao longo dos uacuteltimos 30 anos destaca-se a
reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do nuacutemero de
CAPS a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na atenccedilatildeo
comunitaacuteria e territorial etc na praacutetica os hospitais psiquiaacutetricos continuam ocupando um
lugar central na assistecircncia agrave crise constituindo-se muitas vezes na porta de entrada do usuaacuterio
ao sistema de sauacutede
Assim o cenaacuterio atual eacute marcado pela expansatildeo dos serviccedilos substitutivos mas tambeacutem
pela permanecircncia do hospitais psiquiaacutetricos e dispositivos tradicionais determinando a
coexistecircncia de dois modelos de cuidado opostos e mutuamente excludentes o tradicional
modelo asilar e o modelo substitutivo de modo que a RAPS no momento se caracteriza muito
mais por ser complementar do que substitutiva ao modelo asilar como era de se esperar
Logo os manicocircmios natildeo apenas resistem como insistem e se queremos
desinstitucionalizar e acolher a crise no territoacuterio eacute imprescindiacutevel perguntar ao que a
institucionalizaccedilatildeo de um paciente estaacute respondendo Qual eacute o problema que ela coloca Como
desmontar a soluccedilatildeo institucional (a internaccedilatildeo) e reconstruir o problema sobre outras bases
Importante dizer que construir novos arranjos para lidar com a crise natildeo se trata apenas
de aumentar a capacidade de resolutividade dos serviccedilos Eacute preciso ampliar o cuidado para
atender a crise de forma integral Isso significa fazer articulaccedilotildees com o que haacute de produccedilatildeo de
vida tambeacutem fora do espaccedilo dos serviccedilos isto eacute na vida na comunidade na cidade Persiste
desse modo o desafio de romper natildeo soacute com o manicocircmio mas com toda loacutegica e praacutetica de
segregaccedilatildeo da loucura
34
20 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL
21 Reflexotildees sobre a crise e o cuidado
Segundo Moebus e Fernandes (sd) a palavra crise em sua origem grega (krisis ou
Kriacutenein) significa um estado no qual uma decisatildeo tem que ser tomada Esse termo era usado
pelos meacutedicos da antiguidade grega no intuito de se referir a um ponto na evoluccedilatildeo da doenccedila
do paciente no qual ele tanto poderia apresentar uma melhora em direccedilatildeo agrave cura ou piora em
direccedilatildeo agrave morte A ideia de crise portanto aproximava-se nesse contexto agrave noccedilatildeo de um
momento criacutetico decisivo cujo desfecho poderia ser tanto positivo quanto negativo
Jaacute a origem sacircnscrita da palavra eacute kri ou kir que significa ldquodesembaraccedilarrdquo ou purificar
Compartilhando desse mesmo sentido podemos destacar a palavra ldquocrisolrdquo que significa
ldquoelemento quiacutemico que purifica o ouro das gangas limpando-o dos elementos que se fixaram
no metal pelo seu processo vital ou histoacuterico e ao longo do tempo tomaram conta de seu cerne
a ponto de comprometerem sua substacircncia em sirdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN
200732) Crise nessa acepccedilatildeo carrega um teor de transformaccedilatildeo e purificaccedilatildeo em que a
substacircncia pode alcanccedilar sua verdadeira essecircncia
Destaca-se nessas significaccedilotildees originaacuterias da palavra elementos que trazem a ideia de
crise associada agrave um desequiliacutebrio transitoacuterio a um processo de mudanccedila transformaccedilatildeo com
possibilidade de evoluir de maneira positiva Eacute um momento de descontinuidade e perturbaccedilatildeo
da normalidade da vida em algo que eacute deixado para traacutes poreacutem ao mesmo tempo por isso
mesmo abre-se uma nova possibilidade de ser e estar no mundo
Outros autores de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica relacionam o conceito de crise ao conceito de
trauma que para Freud diz respeito ldquoa uma vivecircncia que traz um grande aumento da excitaccedilatildeo
da vida psiacutequica em um curto espaccedilo de tempo tendo por caracteriacutestica o fracasso de sua
liquidaccedilatildeo por meios habituaisrdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Nesse mesmo sentido segundo Laplanche e Pontalis (1986 768) ldquoo trauma consiste
em um acontecimento da crise que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se
acha o indiviacuteduo de lhe responder de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos
patogecircnicos que provoca na organizaccedilatildeo psiacutequicardquo
Haacute nessas definiccedilotildees algo da ordem de um excesso que rompe com o estado de
equiliacutebrio que o indiviacuteduo se encontra e transborda lanccedilando-o em direccedilatildeo a algo estranho e
desconhecido Essa ruptura eacute vivenciada pelo sujeito como algo assustador ao qual ele natildeo
35
encontra recursos psiacutequicos para responder ou mesmo para atribuir qualquer tipo de
significaccedilatildeo As soluccedilotildees que o sujeito costumeiramente encontrava para lidar com seu
sofrimento de alguma forma natildeo satildeo mais suficientes daiacute resultando entatildeo seu estado de
anguacutestia
Knobloch (1998) estudiosa de Ferenczi designa a crise como uma ldquoexperiecircncia limite
natildeo por ser uma experiecircncia que desafia o limite mas por extravasar o delimitado ldquoEacute uma
experiecircncia que traz um excesso excesso do que eacute insuportaacutevel e intoleraacutevel Ruptura em que
se redistribuem de uma maneira brutal as condiccedilotildees da realidade rdquo (apud FERIGATO
CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Para Birman (1983) a pessoa em crise encontra-se em um estado mental no qual ldquoa
anguacutestia provocada pelo que nos escapa eacute tatildeo importante que ficamos com o sentimento de que
a nossa proacutepria vida estaacute escapando uma experiecircncia de perda de seus sistemas de referecircncia
isto eacute a ameaccedila de perda da proacutepria identidaderdquo (apud FERIGATO CAMPOS BALLARIN
2007 35)
Se por um lado haacute a forccedila de um questionamento das convicccedilotildees mais fundamentais de
um indiviacuteduo por outro haacute tambeacutem uma abertura um espaccedilo para a criaccedilatildeo de algo novo de
outros arranjos e possibilidades de organizaccedilatildeo psiacutequica Embora essa vivecircncia seja marcada
por uma extrema sensaccedilatildeo de anguacutestia invasatildeo e sofrimento podemos apontar tambeacutem sua
potecircncia em produzir um desvio em caracterizar a saiacuteda de um lugar historicamente dado para
outro a ser construiacutedo exigindo outras ligaccedilotildees ateacute entatildeo inexistentes (FERIGATO CAMPOS
BALLARIN 2007)
Podemos ver a crise como um acontecimento extremo poreacutem muitas vezes necessaacuterio
na vida de um sujeito Eacute um momento que marca uma diferenccedila a partir da qual natildeo eacute mais
possiacutevel se viver do modo em que se estava vivendo anteriormente Eacute preciso reelaborar a
experiecircncia para habitar outro territoacuterio existencial
No entanto na histoacuteria da Psiquiatria especialmente na Psiquiatria claacutessica-asilar e
hospitalocecircntrica o sentido de crise perdeu sua dimensatildeo de renovaccedilatildeo O que rompe com a
organizaccedilatildeo e com o equiliacutebrio de um indiviacuteduo foi automaticamente entendido como algo
destrutivo que coloca o sujeito em um lugar de exclusatildeo social
A crise e toda a complexidade ligada ao sofrimento de um sujeito foi reduzida agrave
ldquoagudizaccedilatildeo da sintomatologia psiquiaacutetricardquo isto eacute a gama de sinais e sintomas (deliacuterios
alucinaccedilotildees agitaccedilatildeo psicomotora etc) caracteriacutesticos de uma determinada doenccedila Nesse
36
sentido o objetivo da intervenccedilatildeo dos psiquiatras era garantir a remissatildeo completa dos
sintomas em curto periacuteodo de tempo para que o sujeito pudesse voltar a seu estado de
ldquonormalidaderdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007) desconsiderando desse modo as
vivecircncias e situaccedilotildees que possivelmente contribuiacuteram para a eclosatildeo da situaccedilatildeo de crise em
que o sujeito se encontra
Nessa perspectiva a crise eacute entendida como um momento isolado da vida do sujeito
que nada tem a ver com sua histoacuteria com suas relaccedilotildees ou seu contexto soacutecio-afetivo Por isso
o cuidado possiacutevel tem como direccedilatildeo a estabilizaccedilatildeo dos sintomas isto eacute o silenciamento
daquilo que aparece como socialmente inapropriado ou inadequado na conduta do sujeito
Assim a medicaccedilatildeo a contenccedilatildeo fiacutesica e a internaccedilatildeo aparecem como os principais recursos
terapecircuticos aplacando a intensidade do momento fazendo um corte na experiecircncia de
sofrimento do sujeito para que apoacutes algum tempo ele volte naturalmente ao seu estado de
ldquonormalidaderdquo
Tecnologias de cuidado com base na classificaccedilatildeo de distuacuterbios e homogeneizaccedilatildeo de
grupos de problemas tambeacutem satildeo utilizadas com o intuito de preacute-estabelecer condutas e
respostas padratildeo para toda e qualquer situaccedilatildeo de crise que possa vir a emergir Segundo
Dell`Acqua e Mezzina (1991) o serviccedilo passa a responder agrave crise atraveacutes do seu proacuteprio
sintoma Assim toda a complexidade da existecircncia de sofrimento de um sujeito reduz-se a um
mero sinal caracteriacutestico da crise
Ao longo da histoacuteria da Psiquiatria a crise sempre foi vista como uma crise do paciente
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Pinel apostava em uma proposta terapecircutica de
confinamento da loucura em um ambiente controlado para que os alienistas pudessem
recuperar e ldquocorrigirrdquo os erros de pensamento que incidiam sobre as pessoas em situaccedilatildeo de
crise O tratamento natildeo visava agir diretamente nas questotildees sociais e afetivas que tinham
relaccedilatildeo com a experiecircncia de sofrimento vivenciada pelo sujeito mas pretendia isolar o sujeito
para entatildeo ldquoconsertaacute-lordquo em uma clara perspectiva de que o problema estava no sujeito
Com o advento da Psicanaacutelise vemos uma inversatildeo dessa loacutegica Para Freud o deliacuterio
eacute uma tentativa de cura que visa dar sentido a uma experiecircncia psiacutequica de sofrimento Sendo
assim ldquonatildeo haacute o que ser corrigido haacute o que ser escutado Haacute o que ser recuperado Haacute o que
ser construiacutedordquo (CORBISIER 1991 10)
Com Pinel aqueles que se encontravam desviados de sua verdadeira razatildeo deviam ser
conduzidos novamente agrave realidade atraveacutes da correccedilatildeo dos sentimentos comportamentos e
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pensamentos equivocados Com Freud o deliacuterio eacute entendido como uma forma do sujeito
construir um sentido para uma experiecircncia perturbadora (como por exemplo ouvir vozes ver
coisas que natildeo existem etc) que lhe causa sofrimento Assim o problema natildeo estaacute no sujeito
nem no deliacuterio nem nos sintomas mas no modo como ele consegue ou natildeo atribuir sentido ao
que vivencia
Atribuindo um sentido (ainda que delirante) a vivecircncias que satildeo perturbadoras o sujeito
pode ressignificar sua relaccedilatildeo com o mundo e encontrar modos menos angustiantes de estar na
vida Natildeo eacute necessaacuterio portanto ldquoadequarrdquo o pensamento de um sujeito agrave realidade O deliacuterio
pode ele mesmo ser um ponto de estabilizaccedilatildeo na medida que oferece alguma possibilidade de
inserir novamente o sujeito no campo do simboacutelico isto eacute de refazer as conexotildees perdidas na
situaccedilatildeo de crise Se a crise eacute marcada por uma ruptura a possibilidade de construccedilatildeo de um
deliacuterio pode ser justamente aquilo que reconecta o sujeito ao mundo que lhe cerca
Assim eacute preciso escutar as diferenccedilas e tratar do sofrimento que ela pode vir a ocasionar
sem no entanto aboli-las A Psicanaacutelise traz em sua aposta na escuta a possibilidade de
recuperar as diferenccedilas Atraveacutes da fala o sujeito vai contando sua histoacuteria e resgatando aquilo
que lhe pertence que lhe eacute peculiar e o que o constitui Essa experiecircncia permite estabelecer
um corte com as tentativas homogeneizantes da Psiquiatria Claacutessica de lidar com a loucura A
aposta na fala permite ao sujeito construir novos sentidos para o seu sofrimento e perceber que
a presenccedila de um outro que o escute pode produzir algum aliacutevio para sua dor
Embora possamos agrupar sinais e sintomas comuns a psicose (deliacuterio alucinaccedilatildeo
dificuldade em construir laccedilo social etc) cada sujeito vai imprimir em seu sintoma a sua marca
Assim cada loucura eacute singular pois cada um delira de um jeito cada um faz laccedilo social de um
jeito etc Na sintomatologia de um sujeito vamos encontrar elementos que pertencem a sua
cultura agrave sua histoacuteria pessoal e aos seus prazeres e desprazeres em torno da vida Logo as
intervenccedilotildees vatildeo ser diferentes a depender daquilo que o sujeito traz
Nesse ponto vale fazer uma distinccedilatildeo entre emergecircncia psiquiaacutetrica e urgecircncia
subjetiva A emergecircncia psiquiaacutetrica se refere a emergecircncia do sintoma Logo o alvo de sua
intervenccedilatildeo eacute o corpo bioloacutegico O caos de sentimentos e de pensamentos supostamente sem
sentido que emergem na crise psicoacutetica devem ser suprimidos atraveacutes da medicaccedilatildeo restituindo
o corpo ao estado que se encontrava anteriormente (BARRETO 2004)
No afatilde de se estabilizar o sujeito suprimindo seu sintoma natildeo haacute tempo para pensar o
que se coloca em questatildeo em uma crise psicoacutetica Natildeo haacute espaccedilo para direcionar um olhar para
38
o sujeito que estaacute inserido naquela situaccedilatildeo emergencial e ver o que nela haacute de singular pois
ldquohaacute coisas para fazer O clinico seleciona coisas para fazer e simplifica a situaccedilatildeordquo (BARRETO
2004 2) a fim de devolver o sujeito ao seu estado de normalidade
A partir da referecircncia da Psicanaacutelise a urgecircncia subjetiva eacute entendida como a urgecircncia
do sujeito que estaacute em crise logo abrange o sintoma mas natildeo se reduz a ele Barreto (2004)
aponta que na crise psicoacutetica acontece uma ruptura com a cadeia de significantes de modo que
a manifestaccedilatildeo dos sintomas que se seguem ao momento de crise expressa uma
ldquoimpossibilidade de significar minimamente pela fala um gozo que natildeo encontra o significante
necessaacuterio para transformaacute-lordquo (BARRETO 2004 1)
A urgecircncia subjetiva se refere portanto ao que haacute de singular em cada crise no
sofrimento do sujeito que se constitui enquanto demanda para um outro Nesse sentido ela
aponta para a necessidade de uma intervenccedilatildeo que natildeo pode ser adiada dada a gravidade em
que se encontra o sujeito poreacutem eacute o avesso da contenccedilatildeo do sintoma pois se utiliza da urgecircncia
que o sujeito coloca para construir a partir dela alguma outra resposta possiacutevel a ser fabricada
no caso a caso
Assim reintroduzir a dimensatildeo subjetiva no sujeito eacute a proposta da Psicanaacutelise
(SELDES 2004)
A psiquiatria apresenta uma resposta para o sujeito atraveacutes de uma nomenclatura
diagnoacutestica oriunda dos manuais de classificaccedilatildeo no vieacutes de uma certeza do Outro o
grande outro da ciecircncia A psicanaacutelise aponta sua resposta ao sujeito quando diz um
sim a sua descoberta sim a sua soluccedilatildeo delirante sim a qualquer possibilidade em
que o sujeito possa se agarrar e retomar minimante seu discurso e o seu laccedilo social O
psicanalista natildeo deteacutem o saber o saber eacute do sujeito (SILVA J 2011 44)
Acolher a crise nessa perspectiva natildeo eacute abordar o paciente que chega aos serviccedilos de
emergecircncia em sauacutede mental procurando encontrar onde estaacute a integridade do sujeito dentro da
crise isto eacute natildeo se trata de fazer uma separaccedilatildeo entre o sujeito e sua loucura para entatildeo extrair-
lhe lsquoa peacuterola que seria a razatildeordquo2 mas sim ouvir o que ali dentro da loucura se coloca enquanto
sujeito
Nesse sentido quando acolhemos um usuaacuterio em crise o que a experiecircncia de crise de
um sujeito pode colocar de questatildeo sobre sua histoacuteria sua vida seu cotidiano Nossa
2 Referecircncia ao livro O Alienista de Machado de Assis especificamente ao seguinte trecho ldquosuponho o espiacuterito
humano uma vasta concha o meu fim Sr Soares eacute ver se posso extrair a peacuterola que eacute a razatildeo por outros
termos demarquemos definitivamente os limites da razatildeo e da loucura A razatildeo eacute o perfeito equiliacutebrio de todas
as faculdades fora daiacute insacircnia insacircnia e soacute insacircniardquo (ASSIS 1882 261)
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intervenccedilatildeo tem contribuiacutedo para oferecer novas possibilidades de vida a esses sujeitos ou
estamos somente silenciando sintomas
Entendemos que o modo como os profissionais compreendem a crise influencia
significativamente a produccedilatildeo de cuidado Concepccedilotildees de crise centradas nos aspectos
puramente sintomaacuteticos desencadearatildeo intervenccedilotildees no sentido de suprimir o mais
rapidamente possiacutevel os sintomas Ao passo que concepccedilotildees de crise mais abrangentes tem mais
possibilidade de remeter ao sujeito o que essa crise coloca como questatildeo na sua vida e quais
satildeo as possibilidades outras de manejo para esses conflitos Logo uma concepccedilatildeo ampla de
crise (que considere os aspectos sociais afetivos e subjetivos) pode oferecer ao sujeito a
possibilidade de se recolocar em relaccedilatildeo ao seu sintoma e encontrar outros caminhos para lidar
com seu sofrimento
22 O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS
No capiacutetulo anterior vimos como diferentes formas de compreender a loucura ao longo
da histoacuteria produziram impactos nos modos de intervir e lidar com a crise Intervenccedilotildees
baseadas na autoridade no poder na disciplina e no confinamento remetem agrave loucura enquanto
iacutendice de uma anormalidade e falam de uma concepccedilatildeo de ldquocuidadordquo que visa ldquoconsertarrdquo os
sujeitos atraveacutes da correccedilatildeo de seus comportamentos e sentimentos supostamente inadequados
Por outro lado intervenccedilotildees com base no acolhimento na construccedilatildeo de sentidos e na
contextualizaccedilatildeo dos conflitos do sujeito falam de uma concepccedilatildeo de crise que valoriza o
sujeito e sua histoacuteria e o entende como parte de um mundo que o afeta e o transforma
Assim se olhar para as praacuteticas de cuidado pode lanccedilar luz sobre as concepccedilotildees de
loucura presentes na sauacutede mental quando olhamos para o modo como a rede se organiza e se
estrutura para acolher a crise sobre que concepccedilotildees de crise ela nos fala Que sentidos de crise
estatildeo presentes no modo como o SUS foi idealizado e preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas de
sauacutede E que sentidos de crise emergem quando observamos o modo como os usuaacuterios e
trabalhadores efetivamente usam e vivenciam o SUS em cotidiano Como as poliacuteticas de sauacutede
pensam a crise E que questotildees a crise traz agraves poliacuteticas de sauacutede Quais satildeo seus
distanciamentos e aproximaccedilotildees
Tradicionalmente muitos autores tecircm se utilizado da imagem de uma piracircmide para
ldquorepresentar o modelo tecno-assistencial que gostariacuteamos de construir com a implantaccedilatildeo plena
do SUSrdquo (CECIacuteLIO 1997470) Na ampla base da piracircmide estariam dispostos os serviccedilos de
baixa complexidade como as cliacutenicas da famiacutelia que oferecem atendimento para populaccedilatildeo de
40
sua aacuterea de abrangecircncia dentro das atribuiccedilotildees estabelecidas para o niacutevel de atenccedilatildeo primaacuteria
constituindo-se na porta de entrada privilegiada para os niacuteveis de maior complexidade do
sistema de sauacutede Na parte intermediaacuteria estariam localizados os serviccedilos da atenccedilatildeo
secundaacuteria que satildeo ldquobasicamente os serviccedilos ambulatoriais com suas especialidades cliacutenicas e
ciruacutergicas o conjunto de serviccedilos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico alguns serviccedilos de
atendimento a urgecircncia e emergecircncia e os hospitais gerais normalmente pensados como sendo
hospitais distritaisrdquo (CECIacuteLIO 1997 470) No topo da piracircmide encontramos por fim os
serviccedilos mais complexos como os grandes hospitais de caraacuteter regional estadual ou ateacute mesmo
nacional
O objetivo deste modelo eacute estabelecer um fluxo ordenado de pacientes atraveacutes de
mecanismos de referecircncia e contra referecircncia que regulam o acesso entre os niacuteveis de atenccedilatildeo
em sauacutede tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima na piracircmide Dessa forma para
cada necessidade de sauacutede a pessoa eacute encaminhada para o niacutevel de complexidade adequado
evitando sobrecarregar os hospitais e ambulatoacuterios com demandas de baixa complexidade e ao
mesmo tempo trabalhando na atenccedilatildeo baacutesica com estrateacutegias de prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da
sauacutede evitando o agravo de doenccedilas que se natildeo tratadas podem demandar intervenccedilotildees
meacutedicas mais complexas
No entanto no dia a dia do SUS a realidade tem se mostrado bem distante desse modelo
idealizado Como aponta Ceciacutelio (1997 471) ldquoa piracircmide a despeito da justeza dos princiacutepios
que representa tem sido muito mais um desejo dos teacutecnicos e gerentes do sistema do que uma
realidade com a qual a populaccedilatildeo usuaacuteria possa contarrdquo
Na praacutetica a populaccedilatildeo burla o tempo inteiro os fluxos da regulaccedilatildeo formal Buscam
ajuda onde acreditam que vatildeo encontraacute-la tentando acessar o sistema por onde eacute mais faacutecil ou
muitas vezes por onde eacute mais possiacutevel Na tentativa de resolver seus problemas percorrem
vaacuterias unidades de sauacutede diferentes ateacute conseguirem o que desejam um remeacutedio uma consulta
um encaminhamento uma indicaccedilatildeo de internaccedilatildeo Natildeo raro falsificam o comprovante de
residecircncia ou usam o de outra pessoa visando conseguir atendimento em uma unidade mais
proacutexima ou mais bem equipada Do mesmo modo questionam o tratamento chegando a ter em
alguns casos dois meacutedicos e dois tratamentos diferentes para uma mesma questatildeo de sauacutede sem
que um meacutedico saiba da existecircncia do outro
41
Haacute quem pense que todo o problema satildeo os usuaacuterios que ldquobagunccedilamrdquo o sistema natildeo
seguem os fluxos estabelecidos pois natildeo conhecem o funcionamento do sistema e buscam
atendimento em locais inapropriados por ignoracircncia ou maacute-feacute
Ceciacutelio (1997) expotildee esse problema ao trazer a tensatildeo existente entre o que denomina o
ldquousuaacuterio-fabricadordquo e o ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo Segundo o autor o usuaacuterio-fabricado seria o
ldquousuaacuterio idealrdquo normatizado pelas estrateacutegias da Medicina Preventiva que atraveacutes de uma
perspectiva individualista de ldquohaacutebitos saudaacuteveisrdquo pretende ldquofabricarrdquo sujeitos esclarecidos e
por isso menos dependentes do sistema de sauacutede Trata-se entatildeo de produzir um usuaacuterio
disciplinado educado que segue as orientaccedilotildees meacutedicas e leva uma vida saudaacutevel e regrada
O ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo por sua vez eacute aquele que natildeo necessariamente segue as
indicaccedilotildees meacutedicas mas batalha por sua conta e risco para conseguir o acesso agrave tecnologia de
cuidado que supotildee que precisa no dispositivo de sauacutede que julga ser o mais adequado tendo
como perspectiva sua experiecircncia com a doenccedila suas crenccedilas e desejos pessoais Assim o
tempo todo ele transgride agraves regras quebra os fluxos testa e contesta o sistema produzindo agrave
sua maneira seu caminho dentro do SUS Como destaca Ceciacutelio (1997) ldquoo usuaacuterio-fabricador
com sua accedilatildeo concreta e protagonismo com suas buscas e com seus ousados experimentos de
tentativas e erros vai produzindo circuitos opccedilotildees caminhos que soacute em parte correspondem agrave
normalizaccedilatildeo oficial do sistemardquo (ibidem 288)
Contra a perspectiva de um sistema de sauacutede ideal e racionalizado o usuaacuterio-fabricador
eacute aquele que usa o SUS real e por isso encontra suas falhas e furos propondo soluccedilotildees agrave sua
maneira atraveacutes de sua experiecircncia no sistema ldquoDaiacute a ser uma prepotecircncia tecnocraacutetica dizer
que o povatildeo eacute deseducado que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de
sauacutede As pessoas acessam o sistema por onde eacute mais faacutecil ou possiacutevelrdquo (CECILIO1997 472)
E porque natildeo incluir esse saber leigo do usuaacuterio nas estrateacutegias de planejamento e
organizaccedilatildeo do cuidado em sauacutede Por que natildeo ouvir o que esses usuaacuterios tecircm a nos dizer e
incorporaacute-los como parceiros na construccedilatildeo de um SUS possiacutevel natildeo aquele idealizado mas
um que faccedila mais sentido na perspectiva de quem de fato o utiliza
Precisamos considerar que o SUS eacute feito de pessoais reais usuaacuterios trabalhadores
meacutedicos enfermeiros psicoacutelogos que ao se moverem de acordo com suas eacuteticas profissionais
seus saberes experiecircncias esperanccedilas e desejos imprimem novos significados agrave um sistema
que estaacute em permanente construccedilatildeo Esses atores ldquoproduzem inventam resistem e configuram
um cuidado que afinal nunca eacute como noacutes (gestores sanitaristas pensadores formuladores)
42
teimamos em querer normalizar formatar produzir agrave nossa imagem e semelhanccedilardquo (CECIacuteLIO
2012287)
Assim como os usuaacuterios os trabalhadores de sauacutede no encontro com as necessidades
reais de seus pacientes e com as barreiras de acesso do sistema tambeacutem burlam a regulaccedilatildeo
formal muitas vezes se utilizando de seus contatos pessoais relaccedilotildees de conhecimento e
confianccedila para produzir fluxos que possam garantir a continuidade do cuidado oferecido
especialmente nos casos difiacuteceis em que a complexidade dos pacientes natildeo se encaixa na
caixinha de cuidados formalmente oferecida pelo SUS
Quando falamos de um usuaacuterio em crise precisamos pensar que a caixinha de cuidados
padratildeo frequentemente natildeo vai dar conta da complexidade colocada em uma crise psicoacutetica
Muitas vezes a razatildeo pela qual um usuaacuterio vai parar na emergecircncia ou no hospital psiquiaacutetrico
eacute justamente porque os recursos que ele dispotildee para lidar com seu sofrimento natildeo foram mais
capazes de sustentar uma estabilizaccedilatildeo Daiacute a necessidade de podermos pensar outros recursos
outras regulaccedilotildees outros dispositivos
Um usuaacuterio em crise eacute por excelecircncia um usuaacuterio-fabricador As soluccedilotildees que ele vai
engendrar para seu sofrimento vatildeo exceder em muito os limites de um sistema de sauacutede
organizado sob a figura de uma piracircmide em niacuteveis crescentes de complexidade Quando esse
usuaacuterio consegue pedir ajuda ele o faraacute sob a sua loacutegica a partir da suas expectativas e
singularidades Ele pode ir na cliacutenica da famiacutelia no hospital na emergecircncia na poliacutecia na casa
da vizinha na Igreja na escola onde achar possiacutevel obter a ajuda que precisa ainda que suas
escolhas sejam um tanto inusitadas Do mesmo modo quando um usuaacuterio entra em crise isso
tambeacutem pode acontecer em qualquer ponto do sistema e noacutes enquanto profissionais precisamos
ser capazes de oferecer algum suporte a esse sujeito onde ele estiver e na hora em que precisa
da ajuda
A crise natildeo espera o nosso tempo o tempo do encaminhamento do acolhimento-
triagem da discussatildeo de caso do contato com o profissional de referecircncia ela acontece quando
se menos espera e por isso eacute importante que natildeo soacute o dispositivo de referecircncia esteja preparado
para acolhecirc-la mas que todas as portas de entrada do sistema estejam qualificadas enquanto
espaccedilos privilegiados para o acolhimento e reconhecimento das necessidades dos usuaacuterios
Eacute nesse sentido que Ceciacutelio (1997) propotildee uma mudanccedila na imagem de representaccedilatildeo
do modelo de sauacutede da piracircmide ao ciacuterculo Pensar o sistema de sauacutede enquanto ciacuterculo natildeo
significa abandonar os ideais da Reforma Sanitaacuteria no que diz respeito a um comprometimento
43
com a equidade o atendimento universal integral e de boa qualidade mas ao contraacuterio tomar
esses princiacutepios na sua radicalidade e pensaacute-los sob a luz das necessidades reais das pessoas e
do uso que fazem do sistema O formato do ciacuterculo reforccedila um valor essencial do SUS a
integralidade Apostar na imagem do ciacuterculo significa pensar o sistema de sauacutede menos
enquanto um fluxo hierarquizado de pessoas e mais enquanto uma rede em que todos os pontos
satildeo uma porta de acesso qualificada e possiacutevel para o usuaacuterio
Segundo Ceciacutelio (1997 475) ldquo O ciacuterculo se associa com a ideacuteia de movimento de
muacuteltiplas alternativas de entrada e saiacuteda Ele natildeo hierarquiza Abre possibilidadesrdquo Trata-se
de relativizar a hierarquizaccedilatildeo dos serviccedilos abrindo espaccedilo para que o acolhimento possa se
dar onde o paciente solicita ajuda Natildeo estamos negando com isso a especificidade e a missatildeo
diferenciada de cada serviccedilo mas tentando produzir uma rede menos fragmentada e mais
proacutexima da realidade dos usuaacuterios
A loacutegica horizontal dos vaacuterios serviccedilos de sauacutede colocados na superfiacutecie plana do
ciacuterculo eacute mais coerente com a ideacuteia de que todo e qualquer serviccedilo de sauacutede eacute espaccedilo
de alta densidade tecnoloacutegica que deve ser colocada a serviccedilo da vida dos cidadatildeos
Por esta concepccedilatildeo o que importa mais eacute a garantia de acesso ao serviccedilo adequado agrave
tecnologia adequada no momento apropriado e como responsabilidade intransferiacutevel
do sistema de sauacutede Trabalhando assim o centro das nossas preocupaccedilotildees eacute o usuaacuterio
e natildeo a construccedilatildeo de modelos assistenciais aprioriacutesticos aparentemente capazes de
introduzir uma racionalidade que se supotildee ser a melhor para as pessoas
(CECIacuteLIO1997 477)
Eacute importante ressaltar que defender o sistema de sauacutede enquanto um ciacuterculo natildeo se
limita agrave uma mera inflexatildeo teoacuterica mas a possibilidade de garantir que a integralidade seja uma
missatildeo colocada para todos os serviccedilos de sauacutede e natildeo para cada paciente individualmente em
sua peregrinaccedilatildeo pelos dispositivos de sauacutede Nesse sentido trata-se de apostar na continuidade
da linha de cuidado trabalhando para que o paciente tenha acesso agrave assistecircncia por onde ele
chega do modo como chega
Isso significa deslocar um pouco a ideia de referecircncia Ainda que o CAPS seja o serviccedilo
com maior possibilidade e capacidade de atender uma crise psicoacutetica todos os serviccedilos devem
ser capazes de oferecer algum acolhimento agrave crise Se em uma crise psicoacutetica o que estaacute
colocado eacute a fragmentaccedilatildeo do sujeito natildeo eacute possiacutevel que ele consiga se reestruturar em um
sistema igualmente fragmentado
No encontro do usuaacuterio com a equipe o que deve nortear a produccedilatildeo do cuidado eacute a
escuta das necessidades de sauacutede da pessoa que busca o serviccedilo Ainda que o serviccedilo em questatildeo
seja apenas um serviccedilo de passagem na linha de cuidado do usuaacuterio ter o compromisso e a
preocupaccedilatildeo de se fazer sempre a melhor escuta e a melhor devolutiva possiacutevel pode fazer toda
44
a diferenccedila no acolhimento de um sujeito e na continuidade de sua linha de cuidado O essencial
nesse contexto eacute que o encaminhamento natildeo seja meramente uma transferecircncia de
responsabilidade sem que nada tenha sido construiacutedo no caminho
Escutar nesse sentido natildeo se iguala a atender todas as possiacuteveis demandas que traz o
usuaacuterio A demanda eacute o pedido expliacutecito mas as necessidades podem ser bem outras A
demanda pode ser por internaccedilatildeo pela troca de medicamento pela troca do profissional de
referecircncia etc Pode ir dos pedidos mais pragmaacuteticos aos mais delirantes mas nem sempre o
que o usuaacuterio formula enquanto demanda eacute o que ele quer nos pedir
Eacute preciso estar atento tambeacutem para o que pode estar incluiacutedo no seu pedido elementos
como o viacutenculo com a equipe suas relaccedilotildees pessoais o modo como lida com seus sentimentos
sua condiccedilatildeo de vida suas expectativas e sonhos etc Cabe a equipe conhecer o usuaacuterio e ter a
sensibilidade de buscar compreender o que estaacute para aleacutem do pedido expliacutecito ajudando-o a
construir uma saiacuteda possiacutevel para seu sofrimento
Assim a integralidade da atenccedilatildeo no espaccedilo singular de cada serviccedilo de sauacutede
poderia ser definida como o esforccedilo da equipe de sauacutede de traduzir e atender da
melhor forma possiacutevel tais necessidades sempre complexas mas principalmente
tendo que ser captadas em sua expressatildeo individual () Cada atendimento de cada
profissional deve estar compromissado com a maior integralidade possiacutevel sempre
mas tambeacutem ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida soacute seraacute
alcanccedilada como fruto do trabalho solidaacuterio da equipe de sauacutede com seus muacuteltiplos
saberes e praacuteticas Maior integralidade possiacutevel na abordagem de cada profissional
maior integralidade possiacutevel como fruto de um trabalho multiprofissional (CECIacuteLIO
2009 120 121)
A integralidade nesse sentido eacute mais do que cada serviccedilo fazendo sua parte eacute mais do
que o modelo da piracircmide pode oferecer A imagem da piracircmide faz pensar os serviccedilos mais
complexos como lugares de ldquofinalizaccedilatildeo do cuidadordquo da ldquouacuteltima palavrardquo na cliacutenica do sujeito
de ldquoatendimento de demandas pontuais superespecializadas especiacuteficas e por isso mesmo
descompromissados com a integralidaderdquo (CECIacuteLIO 2009 122) Assim escuta qualificada
natildeo eacute missatildeo colocada somente para os ambulatoacuterios e nem o acolhimento agrave crise eacute uma
responsabilidade somente do CAPS Conforme Ceciacutelio (2009 123) ldquo a integralidade natildeo se
realiza nunca em um serviccedilo integralidade eacute objetivo de rederdquo Desse modo todos os serviccedilos
precisam se articular no sentido de dar seguimento ao cuidado de um sujeito em crise e natildeo
apenas o serviccedilo de referecircncia ou a atenccedilatildeo baacutesica que tem sido apontada como o lugar
privilegiado na coordenaccedilatildeo do cuidado
Haacute que se destacar que uma rede soacute seraacute efetivamente integral se for conectada com os
outros dispositivos do territoacuterio onde a vida acontece espaccedilos de cultura e lazer instituiccedilotildees
45
fora do setor sauacutede (ligadas a educaccedilatildeo justiccedila assistecircncia social e outras) associaccedilotildees de
bairros e movimentos organizados instituiccedilotildees religiosas etc Cada territoacuterio carrega em si
uma histoacuteria de ocupaccedilatildeo dos espaccedilos seus usos e costumes sua influecircncia econocircmica e
poliacutetica seu papel social etc Assim pensar a organizaccedilatildeo de um CAPS em uma cidade do
interior eacute diferente de pensar a organizaccedilatildeo desse mesmo serviccedilo em uma metroacutepole ou em uma
periferia A divisatildeo entre bairros pobres e ricos as regiotildees de comeacutercio de meretriacutecio
comunidades regiotildees atravessadas pelo poder do traacutefico e das miliacutecias influem diretamente
nos modos de vida das pessoas
Sendo assim ldquoorganizar um serviccedilo substitutivo que opere segundo a loacutegica do territoacuterio
eacute olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugarrdquo (YASUI LIMA 2010597) Eacute considerar o
contexto de vida das pessoas e suas necessidades de sauacutede Eacute entender que a organizaccedilatildeo da
rede seu acesso e suas ofertas de cuidado precisam fazer sentido na vida daquele que
experiencia o SUS e que enfrenta no seu cotidiano suas barreiras limites e insuficiecircncias
46
3 METODOLOGIA
Segundo Turato (2003) meacutetodo eacute um ldquoconjunto de regras que elegemos num
determinado contexto para se obter dados que nos auxiliem nas explicaccedilotildees ou compreensotildees
dos aspectos ou fenocircmenos constituintes do mundordquo (ibidem 153) Na investigaccedilatildeo cientiacutefica
identificamos comumente dois tipos de metodologia de pesquisa a do tipo quantitativo e do
tipo qualitativo sendo tambeacutem possiacutevel uma mistura desses dois tipos denominada pesquisa
quali-quanti
Estudos quantitativos satildeo mais indicados para pesquisas interessadas em trabalhar com
dados e variaacuteveis de forma objetiva isto eacute quantificaacutevel Jaacute a pesquisa qualitativa permite uma
reflexatildeo mais profunda de fenocircmenos natildeo quantificaacuteveis sendo por isso mais indicada para
tratar de questotildees de ordem subjetiva cultural ou social
Segundo Minayo a pesquisa qualitativa eacute aquela que ldquotrabalha com o universo de
significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo
mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave
operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveisrdquo (2014 22) sendo portanto mais adequada para estudar
fenocircmenos da existecircncia humana que natildeo podem ser quantificados como eacute o caso do objeto
dessa pesquisa
Visando atingir o objetivo desse estudo ndash discutir e analisar os avanccedilos e desafios na
organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo de cuidados aos pacientes em situaccedilatildeo de crise em sauacutede mental-
realizaremos um estudo de revisatildeo bibliograacutefica integrativa de artigos cientiacuteficos da literatura
nacional
Dentre os meacutetodos de revisatildeo a revisatildeo integrativa torna-se especialmente interessante
para essa pesquisa pois permite combinar estudos de literatura teoacuterica e empiacuterica de modo que
tenhamos uma visatildeo mais ampla e concreta dos impasses que se colocam no atendimento agrave
crise no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede mental
Assim foi feita uma busca preliminar na Biblioteca Virtual em Sauacutede (BVS) e no Scielo
no mecircs de Janeiro de 2019 a partir dos seguintes descritores e combinaccedilotildees
1) ldquosauacutede mental and crise and cuidadordquo
2) ldquosauacutede mental and crise and serviccedilos de sauacutederdquo
47
Optou-se por trabalhar com textos em formato de artigos cientiacuteficos Foram
considerados os seguintes criteacuterios de exclusatildeo artigos duplicados texto completo
indisponiacutevel natildeo se aplicam a aacuterea do estudo entendimento de crise relacionado ao
acontecimento de eventos criacuteticos como cataacutestrofes ambientais incecircndios trageacutedias em massa
(queda de aviatildeo desabamentos) etc sofrimento psiacutequico em decorrecircncia de doenccedila orgacircnica
de maior gravidade (exemplo cacircncer HIV etc) toda a sorte de assuntos relacionados aos
familiares de pessoas com transtorno mental estudos que natildeo abordam o contexto brasileiro ou
que natildeo localizam a reflexatildeo das praacuteticas de cuidado no acircmbito do SUS e da Reforma
Psiquiaacutetrica questotildees especiacuteficas do cuidado de uma categoria profissional em particular
(enfermeiros meacutedicos etc) estudos de vieacutes histoacuterico epidemioloacutegico normativo ou educativo
(guias cartilhas documentos oficiais etc)
Na BVS na primeira busca encontramos 89 resultados Foi aplicado o filtro de idioma
portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 85 referecircncias disponiacuteveis Em seguida foram excluiacutedas
21 referecircncias duplicadas 2 em formato de dissertaccedilatildeo e outras 43 com a aplicaccedilatildeo dos criteacuterios
de exclusatildeo Apoacutes a leitura dos resumos foram excluiacutedas mais 9 referecircncias segundo os
criteacuterios de exclusatildeo restando um total de 10 artigos
Na segunda busca ainda na BVS encontramos 2253 resultados Foram aplicados os
seguintes filtros idioma portuguecircs e texto completo disponiacutevel gerando uma reduccedilatildeo para 123
referecircncias Apoacutes o cruzamento com a primeira pesquisa excluiacutemos mais 15 referecircncias
Eliminamos as referecircncias duplicadas e aplicamos os criteacuterios de exclusatildeo restando um total
de 28 referecircncias Excluiacutemos mais 3 referecircncias que natildeo se encaixavam no formato de texto
escolhido para anaacutelise restando um total de 25 artigos Apoacutes a leitura dos resumos foram
excluiacutedas mais 14 referecircncias segundo os criteacuterios de exclusatildeo sobrando um total de 11 artigos
Nas buscas do Scielo natildeo foi possiacutevel encontrar nenhum resultado que pudesse ser
aproveitado para a nossa pesquisa Na primeira busca encontramos 48 referecircncias Foi aplicado
filtro de idioma portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 44 referecircncias Apoacutes o entrecruzamento
dos resultados com o levantamento na BVS excluiacutemos 14 referecircncias Em seguida excluiacutemos
mais 14 resultados repetidos Os 16 artigos restantes tambeacutem foram eliminados por natildeo se
aplicarem a aacuterea do nosso estudo ou natildeo respeitarem os criteacuterios para inclusatildeo
Na segunda busca encontramos 28 resultados Apoacutes a aplicaccedilatildeo do filtro de idioma
portuguecircs restaram 26 referecircncias das quais 9 estavam duplicadas e 12 foram eliminadas por
cruzamento As 5 referecircncias restantes tambeacutem foram eliminadas por natildeo se aplicarem a nossa
48
aacuterea de estudo ou natildeo se encaixarem nos criteacuterios para inclusatildeo Trabalharemos desse modo
somente com os resultados encontrados na busca da BVS que somaram um total de 21 artigos
A anaacutelise das questotildees suscitadas a partir desta revisatildeo teraacute abordagem qualitativa e se
organizaraacute em torno de trecircs eixos temaacuteticos a saber sentidos da crise desafios e
potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidados
Segundo Minayo
Fazer uma anaacutelise temaacutetica consiste em descobrir os nuacutecleos de sentido que compotildeem
uma comunicaccedilatildeo cuja presenccedila ou frequecircncia signifiquem alguma coisa para o
objeto analiacutetico visado Para uma anaacutelise de significados a presenccedila de determinados
temas denota estruturas de relevacircnciavalores de referecircncia e modelos de
comportamento presentes ou subjacentes no discursordquo (MINAYO 2014 316)
Assim esperamos que essa anaacutelise possa lanccedilar luz sobre as questotildees mais relevantes
levantadas na literatura em torno do acolhimento agrave crise apontando os principais desafios que
ela impotildee na construccedilatildeo e sustentaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica no cotidiano das praacuteticas e dos
serviccedilos de sauacutede Os eixos temaacuteticos seratildeo correlacionados com o referencial teoacuterico dessa
pesquisa visando alcanccedilar uma anaacutelise mais profunda e feacutertil dos temas em questatildeo
49
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA
Conforme foi explicitado no capiacutetulo de metodologia a discussatildeo e reflexatildeo dos artigos
alvos dessa revisatildeo se organizaraacute a partir de trecircs categorias temaacuteticas sentidos de crise desafios
e potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidado
Nosso caminho para a formulaccedilatildeo dessas categorias comeccedilou a partir dos descritores
usados nas buscas das plataformas Da leitura dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise
and cuidado and sauacutede mentalrdquo emergiram a maior parte das questotildees relacionadas aos modos
de compreender e significar a crise em sauacutede mental suas repercussotildees sobre as praacuteticas de
cuidado bem como os desafios e estrateacutegias encontrados pelos profissionais no manejo da crise
em seu cotidiano de trabalho Assim desdobramos esse eixo em duas outras categorias
ldquosentidos de criserdquo e ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo
Dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise and sauacutede mental and serviccedilos de
sauacutederdquo emergiram predominantemente as questotildees relacionadas agrave forma como os serviccedilos tecircm
se organizado para receber e acolher as situaccedilotildees de crise Desse eixo fazem parte natildeo soacute as
questotildees relacionadas ao papel de cada serviccedilo e sua organizaccedilatildeo interna para lidar com as
situaccedilotildees de crise como tambeacutem sua possibilidade de articulaccedilatildeo com os outros serviccedilos da
RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e dispositivos do territoacuterio na construccedilatildeo de uma
resposta integral e complexa agraves demandas da crise Esses resultados estatildeo concentrados no eixo
ldquoorganizaccedilatildeo da rede de cuidadosrdquo
41 OS SENTIDOS DA CRISE
Dos muitos sentidos e significados em torno da crise destacamos trecircs que pela forccedila e
intensidade com que aparecem nos artigos atraveacutes das falas dos profissionais das narrativas
dos usuaacuterios e familiares e das situaccedilotildees que emergiram no campo de pesquisa desdobraram-
se em subcategorias na nossa anaacutelise a crise enquanto ameaccedila social a crise enquanto perda e
isolamento e a crise enquanto apropriaccedilatildeo da experiecircncia da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidos
O sentido negativo da crise enquanto ldquoameaccedila socialrdquo aparece sobretudo na fala dos
profissionais e familiares remetendo a figura do louco como ser fora de si agressivo sem
controle apresentado risco para si e para os outros agrave sua volta Os estudos de Pereira Saacute e
Miranda (2017) Milhomens e Martin (2014) Lima (2012) Garcia e Costa (2014) Brito
Bonfada e Guimaratildees (2015) abordam essa realidade Nessas narrativas observamos que a
complexidade do fenocircmeno da loucura eacute reduzida a manifestaccedilatildeo dos sintomas agressivos e
50
violentos operando um recorte muito simploacuterio da vivecircncia da crise e do contexto em que ela
ocorre Vemos como a representaccedilatildeo desse imaginaacuterio fortalece e justifica mecanismos de
controle e vigilacircncia que remontam agrave Psiquiatria Tradicional mesmo nos serviccedilos substitutivos
A crise enquanto ldquoexperiecircncia de perda e isolamentordquo foi um sentido que apareceu
especialmente nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da
primeira crise como nas pesquisas de Pereira Saacute Miranda (2017) e Milhomens Martin (2014)
A peculiaridade dos sintomas que emergem e o estigma social relacionado a eles parecem
reforccedilar nesse primeiro momento um sentido da crise enquanto perda da normalidade e
consequentemente enquanto iacutendice de uma doenccedila ou anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida Por outro lado encontramos esse sentido tambeacutem em estudos
com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees resultando em uma perda dos viacutenculos
afetivos sociais e laborativos A pesquisa de Fiorati e Saeki (2008) com homens de 30 a 50
anos em uma unidade de internaccedilatildeo em Satildeo Paulo aponta para esse resultado
A crise enquanto ldquoapropriaccedilatildeo da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidosrdquo expressa a
construccedilatildeo de um outro sentido de crise que se opotildee aos dois uacuteltimos e abre possibilidades de
vecirc-la em seu vieacutes positivo Nessa categoria destacamos os momentos em que foi possiacutevel
deslocar-se da compreensatildeo da crise como um evento limitante ou signo de anormalidade e
entendecirc-la como um evento analisador que diz do sujeito e de sua histoacuteria Vale ressaltar que o
diaacutelogo com as pesquisas de Milhomens e Martin (2014) e Costa (2007) apontaram elementos
e reflexotildees importantes na construccedilatildeo desse sentido
411 CRISE COMO AMEACcedilA SOCIAL PERICULOSIDADE E RISCO
A loucura entendida como uma ameaccedila social remonta aos primoacuterdios da Psiquiatria
Tradicional e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo e disciplinarizaccedilatildeo do seacuteculo XVIII e XIX quando
se inicia o processo de transformaccedilatildeo da loucura em patologia mental
Segundo Jardim (2007178) ldquoo conceito do risco se coloca aqui a partir do momento
que a crise eacute o prenuacutencio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doenccedila mental
(instalada ou futura)rdquo marcada por comportamentos hostis e intimidadores como mudanccedilas
bruscas de humor pensamentos persecutoacuterios e agressividade dirigida agrave si mesmo ou agrave outros
Na revisatildeo da literatura as falas dos familiares profissionais e dos pacientes reforccedilaram
esse sentido caracterizando a vivecircncia da crise enquanto momento de desorganizaccedilatildeo em que
emergem comportamentos associados agrave violecircncia ameaccedila e medo
51
Luciana ldquogritava dentro de casa quebrava tudo jogou o computador novo no chatildeo
que era o xodoacute delardquo Na terceira crise a adolescente natildeo se reconheceria como matildee
da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho ficando com o
corpo debilitado (PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Minha matildee vinha falar comigo e eu agredia ela Ela falava lsquoEu sou sua matildeersquo E eu
falava que natildeo era PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Eu agredia meus pais quase todo o dia era discussatildeo em casa era um inferno aqui
quase todo dia era discussatildeo porque eu natildeo trabalhava eu natildeo fazia curso eu natildeo saia
de casa [] O preacutedio chegou a denunciar ateacute porque era briga constante (R homem
20 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1111)
Para os nossos entrevistados as pessoas que entram em crise em alguns
momentossituaccedilotildeestornam-se ldquoperigosas violentas agressivas brabas despertam
medo incomodam os outros quebram e destroem as coisas gritamrdquo termos utilizados
pelos entrevistados (LIMA ET AL 2012 428)
Em um estudo com profissionais em um CAPS II de Aracaju (SE) para aleacutem do sentido
da crise associado ao da violecircncia coloca-se tambeacutem o fato de essas pessoas estarem em intenso
sofrimento psiacutequico
satildeo consideradas como pessoas em alto niacutevel de sofrimento porque estatildeo angustiadas
ouvem vozes de comando necessitam de vigilacircncia contiacutenua estatildeo confusas
colocam-se em risco de morte desestruturam as famiacutelias (LIMA ET AL 2012 428)
O risco envolvido na crise se transmite para os profissionais no campo das praacuteticas de
cuidado como uma necessidade constante de monitoramento vigilacircncia e controle da pessoa
em crise como reafirma um dos profissionais desse estudo a seguir
Crise a partir de uma necessidade de vigilacircncia sendo muito exigente enquanto forma
de cuidado gerando um impacto sobre a vida de todos preocupaccedilotildees e uma dedicaccedilatildeo
quase exclusiva agrave pessoa doente (Profissional de um CAPS II Aracaju SE) (LIMA
ET AL 2012 429)
Esse aspecto aparece tambeacutem no estudo de Garcia e Costa (2014) que trazem como
analisador o manejo da crise de uma usuaacuteria em estado de agressividade em um CAPS I em
Porto Real RJ
Gritos cadeiras ao alto mesas jogadas telefone quebrado agressividade Eis um
momento de surto de uma paciente no Caps A equipe pega de surpresa precisa agir
prontamente algo tem que ser feito (GARCIA COSTA 2014 400)
Nessa situaccedilatildeo na tentativa de restaurar a paz e a ordem no serviccedilo alguns profissionais
comeccedilam a demandar o poder policial e a presenccedila de um guarda municipal de plantatildeo no
CAPS como observamos nos trechos a seguir
discutiu-se o caso em reuniatildeo de equipe retomou-se sua histoacuteria foram feitas
propostas ndash produccedilatildeo de saber atravessadas por relaccedilotildees de poder que reivindicavam
lsquoordemrsquo e lsquorespeitorsquo a serem garantidos por um poder policialesco materializado nos
agentes da guarda municipal (GARCIA COSTA 2014 201)
Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito evitando que as crises
aconteccedilam como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta Com
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a accedilatildeo da guarda seja ela ativa ou passiva de coibir esses eventos intempestivos os
pacientes evitariam ter crises por estarem sendo vigiados (ibidem 405)
Os autores destacam que a aposta na vigilacircncia como forma de controle e prevenccedilatildeo das
crises diz respeito agrave uma visatildeo de crise em que o deacuteficit estaacute no sujeito que natildeo consegue
responder de forma adequada agraves exigecircncias da vida A intervenccedilatildeo vem no sentido de favorecer
o instituiacutedo e reintroduzir a ldquonormardquo Eacute como se algo faltasse agravequele sujeito e ldquona situaccedilatildeo
apresentada precisaria ser tamponada preenchida quer pela guarda municipal por medicaccedilatildeo
ou terapiasrdquo (Garcia Costa 2014 405)
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade De tudo que se apresenta
em uma crise psicoacutetica a agressividade eacute o que fica o que marca e exige atenccedilatildeo urgente Eacute
vista como um sintoma isolado e de suma importacircncia que necessita ser suprimido o quanto
antes Assim recorre-se a praacuteticas como a contenccedilatildeo mecacircnica ou medicamentosa visando
extrair cirurgicamente o sintoma sem precisar lidar com a loucura e com o sofrimento que se
coloca em uma crise psicoacutetica
A reduccedilatildeo da complexidade de uma crise psicoacutetica aos seus sintomas agressivos reforccedila
o medo e o estigma em relaccedilatildeo agrave loucura legitimando condutas que a tratam como mera
contravenccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo da ordem social favorecendo o uso de recursos coercitivos como
o poder policial a guarda municipal e outras instacircncias que visam tratar da criminalidade e natildeo
da sauacutede de uma pessoa
Essa realidade eacute encontrada em uma pesquisa realizada com 24 profissionais de diversas
categorias da equipe de SAMU do municiacutepio de Natal- RN Observou-se que a equipe guarda
uma percepccedilatildeo do paciente em crise como um marginal ou ateacute mesmo como um animal sendo
frequente o uso da forccedila policial nas intervenccedilotildees dessa equipe como se percebe na fala a
seguir
A poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente doente mental () e quando a poliacutecia
chega eles amansam na mesma hora A maioria dos policiais jaacute vem pensando em
descer o bastatildeo entatildeo por isso que os pacientes tecircm medo (Entrevistado 13) (BRITO
BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1300 grifos nossos)
A gente precisa do apoio da poliacutecia pra prender pra interceptar (Entrevistado 2)
(idem 1298 grifos nossos)
O uso dos termos ldquoprenderrdquo e ldquointerceptarrdquo apontam para um entendimento da crise
como fenocircmeno do campo do julgamento moral e da criminalidade As contenccedilotildees satildeo
realizadas pela equipe da poliacutecia que usa de violecircncia deflagrada como ldquodescer o bastatildeordquo
mostrando total despreparo para atuar nessas situaccedilotildees Nota-se que embora os profissionais
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reconheccedilam que a poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente psiquiaacutetrico recorre-se agrave ela na
tentativa de ldquodominarrdquo o paciente pelo medo subjugando-o como a um animal ldquoamansam na
mesma horardquo ldquopor isso eles tem medordquo Conforme lembra Caponi (2009) ldquonas entrelinhas
dessas accedilotildees estatildeo as relaccedilotildees de poder que caracterizam a Psiquiatria Claacutessica e sua autoridade
de tomar o corpo como objeto de suas praacuteticasrdquo (apud BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2015 1298 )
Assim embora o discurso em relaccedilatildeo agrave loucura tenha mudado e incorporado os
princiacutepios da Reforma Psiquiaacutetrica vemos que quando a crise emerge e com ela a dificuldade
de sustentar com o usuaacuterio um modo protegido de estar com ele a primeira resposta dos serviccedilos
ainda segue a loacutegica do enclausuramento da violecircncia e da imposiccedilatildeo pela autoridade
A associaccedilatildeo entre crise e risco se desdobra em sentimentos de ameaccedila e medo que
justificam praacuteticas de repressatildeo como prevenccedilatildeo da possiacutevel periculosidade da pessoa em crise
como vemos a seguir
A gente notando que ele ainda estaacute agitado inquieto e que agraves vezes ele pode dar o
surto de novo a poliacutecia vai na ambulacircncia sentado com a gente (Entrevistado 7)
(BRITO BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1298)
Acredito que a falta de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz
com que o atendimento siga uma forma natildeo correta (ibidem 1298)
Segundo DelacuteAcqua e Mezzina (2005) o risco implicado na crise eacute compreendido na
Psiquiatria Claacutessica enquanto iacutendice de desadaptaccedilatildeo e desequiliacutebrio proacuteprio da doenccedila mental
Assim o fator periculosidade natildeo sendo algo passiacutevel de desconstruccedilatildeomanejo e a resposta do
medo agrave ele associada fala-nos de uma cadeia estabelecida doenccedila mental- periculosidade-
internaccedilatildeo que estaacute ldquoprofundamente enraizada nos teacutecnicos como cultura forma de agir e
pensar a loucurardquo (SILVA DIMENSTEIN 2014 42)
Cabe aqui ressaltar que natildeo se trata de negar que em uma situaccedilatildeo de crise possa haver
riscos envolvidos para integridade fiacutesica da pessoa em crise e dos demais e que isso causa medo
mas eacute preciso trabalhar em uma outra direccedilatildeo para lidar com o medo que natildeo seja atemorizar
e moralizar aqueles que precisam de cuidados especialmente quando isso eacute feito em parceria
com a poliacutecia
Isso natildeo significa que natildeo se possa utilizar de recursos como a medicaccedilatildeo ou a
contenccedilatildeo mecacircnica em situaccedilotildees extremas mas faz diferenccedila quando trabalhamos em uma
loacutegica em que esses satildeo os uacuteltimos recursos disponiacuteveis e natildeo nossa primeira resposta frente agrave
crise Praacuteticas como essas ainda satildeo tomadas no campo de ldquosoluccedilotildees maacutegicasrdquo para a remissatildeo
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dos sintomas agressivos quando deveriam ser vistas no maacuteximo como um arranjo incocircmodo
imposto por conjunturas que em niacutevel macro e micro natildeo tem conseguido sustentar a crise no
modelo substitutivo
Desse modo Brito Bonfada e Guimaratildees assinalam que urge avanccedilar na compreensatildeo
da crise enquanto evento que demanda ldquoacolhimento diaacutelogo aproximaccedilatildeo entre sujeitos
envolvidos e respeito agraves necessidades subjetivas e particularidades de cada usuaacuterio dos serviccedilos
de sauacutederdquo (2015 1301) Para tanto faz-se necessaacuterio investir em praacuteticas de educaccedilatildeo
permanente que possam trabalhar com as equipes na direccedilatildeo da construccedilatildeo de um suporte
teacutecnico-conceitual de apoio agrave crise que tenha como base os pressupostos da Reforma
Psiquiaacutetrica Essa capacitaccedilatildeo deve envolver a discussatildeo da crise enquanto um fenocircmeno
complexo que natildeo se restringe aos sintomas apresentados mas diz do modo do sujeito se
posicionar no mundo e das conjunturas conflitivas que o afligem
412 CRISE COMO PERDA E ISOLAMENTO SOCIAL
A primeira crise aparece como um ponto de ruptura a partir do qual algo muda
radicalmente e a vida natildeo pode mais se dar como antes A crise eacute vista como a descoberta de
uma ldquodoenccedilardquo e sentida como um ponto de corte a partir do qual todos os aspectos da vida
precisam ser reavaliados Os pacientes e familiares natildeo sabem mais se podem continuar com
sua rotina de antes e estabelecem uma seacuterie de limitaccedilotildees com o objetivo de ldquoevitar novas
crisesrdquo
A possibilidade de seguir na vida os sonhos os planos e objetivos ficam todos em
suspenso como se qualquer conduta repentina pudesse disparar uma nova crise Vive-se agrave
espreita em estado de alerta atento aos sintomas temendo colocar em risco a estabilidade
conquistada com o tratamento Natildeo se pode retomar a vida como antes e tambeacutem natildeo se sabe o
que eacute possiacutevel sustentar dali em diante iniciando-se entatildeo um processo de paralizaccedilatildeo e
mortificaccedilatildeo da vida
No estudo de Pereira Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise em um CAPSi
do Rio de Janeiro nota-se que a experiecircncia da crise se desdobrou em medo inseguranccedila e
perda do interesse nas atividades do cotidiano o que pode ser destacado nas falas a seguir
Thiago deixou de jogar futebol com os amigos de ir agrave escola ldquoporque eacute melhor natildeordquo
(sic) () Leticia tambeacutem deixou de frequentar a escola apoacutes a uacuteltima crise e perdeu
o interesse pelas atividades diaacuterias que antes realizava Sua matildee ao mesmo tempo
natildeo ldquoconfiavardquo mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha
temendo que esta pudesse ldquose perderrdquo (ibidem 3739)
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Haacute um certo recuo diante da vida um fechamento em si mesmo como forma de defesa
contra a loucura e o estigma social associado agrave ela Com isso tem-se a perda das antigas
amizades e a dificuldade de se estabelecer novos laccedilos sociais em um processo crescente de
empobrecimento da vida
Ela soacute gosta de dormir vocecirc falou Leticia Soacute quer saber de dormir Antes ela gostava
de fazer as coisas agora natildeo gosta natildeo Natildeo ajuda em casa natildeo faz nenhum trabalho
soacute dorme [hellip] Antes dela ter essa crise uacuteltima ela vinha no centro pra mim fazia as
coisas Mas agora ela anda tatildeo desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as
coisas [hellip] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro pegar o
ocircnibus errado natildeo sei (ibidem3739)
No estudo de Milhomes e Martin (2014) com um grupo de jovens que fazem
acompanhamento em um CAPS II na cidade de Satildeo Paulo quando questionados sobre saiacutedas
os jovens mencionavam idas agrave igreja mercados e festas de familiares A grande maioria referia
ficar em casa com a famiacutelia auxiliando nas tarefas da casa e da vida domeacutestica de modo que
pouco se falava sobre festas ou encontro com os amigos Majoritariamente o grupo de amigos
que esses usuaacuterios tinham contato era o do CAPS havendo apenas um dos seis jovens
entrevistados que participava de um grupo de funk fora do CAPS ldquoNota-se que apoacutes a primeira
crise psiacutequica esses jovens se veem afastados das antigas amizades apresentando importante
isolamento social e perda destes pontos de partilhardquo (ibidem 1113)
Quanto agraves possibilidades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho esse mesmo estudo aponta
que apoacutes o iniacutecio do tratamento a inserccedilatildeo possiacutevel desses jovens no mercado de trabalho se
deu predominantemente pela via do trabalho informal atraveacutes de ldquobicosrdquo e negoacutecios familiares
que permitiam uma maior flexibilidade de horaacuterios e conciliaccedilatildeo com a frequecircncia no
tratamento
Nenhum dos jovens no periacuteodo das entrevistas possuiacutea emprego formal Cinco deles
haviam trabalhado com carteira assinada antes da primeira crise e somente um
retomou este tipo de emprego apoacutes a crise enquanto os outros apesar das tentativas
natildeo conseguiram exercendo uma atividade laborativa sob outros moldes
(MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Embora natildeo se possa deixar de considerar que a primazia do trabalho informal estaacute
relacionada agrave um contexto mais amplo da economia nacional nos uacuteltimos tempos a
precariedade e falta de espaccedilo para a inserccedilatildeo de pessoas com transtorno mental no mundo do
trabalho impacta diretamente na sauacutede mental dessas pessoas trazendo prejuiacutezos ao seu
processo de construccedilatildeo de autonomia reinserccedilatildeo social e independecircncia financeira
Outros estudos como a pesquisa de Fiorati e Saeki com homens com idades entre 30 e
50 anos em uma unidade de internaccedilatildeo na cidade de Satildeo Paulo apontam resultados parecidos
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ldquoos usuaacuterios atendidos por noacutes interromperam seus processos de escolaridade ou atividade
profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade
produtivardquo (2008 767) Essa ruptura estendeu-se ainda no campo dos viacutenculos afetivos e
sociais dos participantes ldquoseus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados
casamentos interrompidos ou nunca iniciados Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de
redes de relacionamento social natildeo namoravam natildeo tinham amizades ou qualquer ligaccedilatildeo
interpessoal espontacircneardquo (ibidem 768)
O estudo de Milhomens e Martin (2014) se propocircs a pensar as causas desse isolamento
social percebido apoacutes o episoacutedio de crise Em entrevista com os jovens participantes um dos
motivos apontados por eles era ldquoa vergonha e a dificuldade de lidar com esses encontros e
exposiccedilotildees perante olhares e perguntas que causam incocircmodordquo (ibidem 1114)
A vergonha figurava como motivo de restriccedilatildeo da circulaccedilatildeo pelo territoacuterio pois assim
evitava-se o possiacutevel desconforto de encontrar amigos ou vizinhos ter que cumprimentaacute-los e
dar-lhes explicaccedilotildees sobre a vivecircncia da crise A experiecircncia da vergonha pode ser tatildeo
assustadora a ponto como em um dos casos do entrevistado sequer sentir-se confortaacutevel para
retornar a sua antiga residecircncia
Aiacute depois eu natildeo voltei mais pra casa fiquei meio traumatizado com vergonha
tambeacutem na eacutepoca Tudo essas coisas da crise de iniacutecio vocecirc natildeo sabe neacute entatildeo fica
ndash Olha o cara eacute doido [] (vergonha) das coisas que eu fiz neacute [] mesmo se eu
pudesse eu natildeo voltaria a morar laacute sei laacute por vergonha essas coisas (M homem
28 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Segundo esse mesmo estudo outro aspecto do isolamento se daacute como uma defesa e uma
resposta pelos usuaacuterios terem se sentido abandonados pelos amigos nos momentos em que
mais precisavam deles isto eacute nos periacuteodos de crise
Ah mudei assim que agora eu tomo remeacutedio agraves vezes assim pra amizade eu fico
mais na minha As pessoas estatildeo conversando e eu natildeo tenho parece assim que eu
natildeo tenho assunto com as pessoas sabe [] Era aquela flor amiga pra laacute amiga pra
caacute Aiacute quando quando que eu caiacute numa cama todo mundo desapareceu[] (D
mulher 20 anos) (ibidem1113)
O fato de precisar fazer um tratamento e tomar medicaccedilatildeo psiquiaacutetrica tambeacutem aparece
como um elemento que imprime uma marca e estabelece uma diferenccedila separando
categoricamente loucura de normalidade em um caminho sem volta como se a partir daquele
ponto eles nunca mais pudessem ser como os outros
Letiacutecia lamenta ainda por ter ficado ldquodiferente das outras pessoasrdquo pois devido agrave crise
ldquoprecisava de tratamentordquo Relatava tambeacutem uma dificuldade em escrever e ldquocopiarrdquo
a mateacuteria porque a medicaccedilatildeo fazia sua matildeo tremer (PEREIRA SAacute MIRANDA
2017 3739)
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Essa diferenccedila tambeacutem aparece na perspectiva dos profissionais No estudo de Pereira
Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise na perspectiva dos profissionais a crise traz
uma perda natildeo apenas da vida que se tinha mas da vida que o adolescente ainda poderia ter
[hellip] natildeo vai ser igual nunca Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que
surtam voltarem a ser como eram antes[hellip]Porque eu acho que a psicose eacute isso ne
Vocecirc perde algo do que vocecirc tinha e tambeacutem perde a habilidade de adquirir novas
aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivos neacute (Profissional do serviccedilo)
(PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3740)
Nesse sentido a crise na infacircncia aparece para os profissionais como ainda mais grave
do que na vida adulta visto que desde aquele momento a perda jaacute estaria colocada limitando
as possibilidades do adolescente para toda a vida como vemos nas falas a seguir
Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertoacuterio tatildeo comeccedilando a
vida ainda tatildeo no meio do ciclo acadecircmico [hellip] parece que a cada surto se perde um
pouquinho Vai se perdendo algo Eacute muito cedo neacute O prognoacutestico eu considero mais
negativo na adolescecircncia do que na fase adulta (Profissional do serviccedilo) (PEREIRA
SAacute MIRANDA 2017 3740)
Talvez eu ache que o surto do adolescente eacute muito mais florido Impactante eacute a
palavra Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto Eacute mais
impactante sim Porque pega os pais numa situaccedilatildeo de Poxa o cara tava na escola
tava andando as coisas tatildeo indo E esse adolescente eacute ainda um pouco dependente e
aiacute eu acho que a inserccedilatildeo da famiacutelia eacute diferente da famiacutelia do adulto Porque o adulto
jaacute eacute dono de si jaacute tem um caminho andado natildeo sei acho que eacute por aiacute (Profissional
do serviccedilo) (ibidem3740)
Porque quando eacute uma crianccedila pequena esses pais jaacute vatildeo percebendo que lsquoPoxa vida
tem alguma coisa diferente com elersquo E mesmo que seja assim lsquoEle foi normalzinho
ateacute dois anos eacute diferente dele ser normalzinho ateacute dezesseis anos ateacute quinze anos O
que aconteceu com essa criatura que numa semana taacute bem e na outra semana natildeo
Que tira roupa na rua ou bate ou que agride o pairsquo [hellip] (Profissional do serviccedilo)
(ibidem3740)
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede As perdas que os usuaacuterios
vivenciam a perda da autonomia das relaccedilotildees sociais da capacidade laborativa etc satildeo apenas
um reflexo maior dos efeitos dessa diferenccedila na nossa sociedade
Retomando a fala de uma profissional ldquonatildeo vai ser igual nuncardquo natildeo se trata de negar
essa diferenccedila Poreacutem eacute preciso entender que a perda em questatildeo natildeo eacute a perda da ldquohabilidade
de adquirir novas aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivosrdquo mas a perda do
sentido isto eacute da construccedilatildeo de mundo que havia antes da vivecircncia da crise (PEREIRA SAacute
MIRANDA 2017 3740)
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Como qualquer outra experiecircncia singular e impactante que vivemos em nossas vidas
a crise tem o poder de questionar o modo de vida de uma pessoa recriando o mundo e
redistribuindo os sentidos ao redor dela Nem sempre os sentidos construiacutedos seratildeo
compartilhados ou compreensiacuteveis mas eacute possiacutevel sustentar estar junto com algueacutem mesmo
assim mesmo sem entender do mesmo modo que sustentamos estar junto com pessoas que
compartilham de visotildees de mundo muito diferentes das nossas A loucura nesse ponto eacute soacute mais
um modo de se relacionar com o mundo como tantos outros diferentes dos nossos Os sentidos
construiacutedos a partir de uma crise natildeo seratildeo os mesmos de antes mas tambeacutem podem ser potentes
e criadores de vida
413 CRISE COMO APROPRIACcedilAtildeO DA EXPERIEcircNCIA E RECONSTRUCcedilAtildeO DE
SENTIDOS
Na pesquisa de Milhomens e Martin (2014) com jovens em um CAPS adulto em Satildeo
Paulo observou-se que alguns entrevistados especialmente os que jaacute estavam haacute mais de dois
anos em acompanhamento
com a experiecircncia das crises vatildeo adquirindo estrateacutegias e ampliando as formas de
lidar e de se perceber em relaccedilatildeo ao proacuteximo Um dos entrevistados diz que pede para
que seus pais o avisem quando ele natildeo estiver bem Outra integrante diz que quando
percebe olhares estranhos para ela cogita a possibilidade ser somente uma impressatildeo
errada ldquocoisa da minha cabeccedila3rdquo (D mulher 20 anos) (ibidem1114)
Quando questionados sobre a compreensatildeo que tinham sobre o termo ldquoloucurardquo
percebe-se que em alguns casos natildeo se tinha a concepccedilatildeo por doenccedila ateacute a chegada ao CAPS
Aiacute foi aonde que eu fiquei ruim neacute num tava conhecendo ningueacutem tava vendo coisa
e eu jaacute tinha esse negoacutecio de escutar vozes mas pra mim era um negoacutecio normal
(F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Eacute importante ressaltar que reconhecer o fato de ouvir vozes como algo ldquonormalrdquo natildeo
significa que natildeo haja sofrimento implicado nessa vivecircncia visto que ldquoescutar vozesrdquo e ldquover
coisasrdquo falam de uma certa experiecircncia de invasatildeo da consciecircncia Do mesmo modo podemos
imaginar que natildeo reconhecer as pessoas com quem habitualmente se convive deve ser algo um
tanto assustador No entanto o que gostariacuteamos de destacar com esse trecho eacute o fato dessa
experiecircncia natildeo ter sido considerada pelo entrevistado como signo de uma ldquodoenccedilardquo Embora
3 Alterado pela pesquisadora a partir do texto original ldquocoisa da minha cabe drdquo (D mulher 20 anos)
(MILHOMENS A E MARTIN D 2014 1114) pelo fato da mesma entender que houve erro de digitaccedilatildeo na
palavra ldquocabeccedilardquo
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os diagnoacutesticos possam ser importantes para a praacutetica cliacutenica os efeitos desse diagnoacutestico para
os pacientes se mostram muito mais limitantes do que propulsores de vida
Vemos que mesmo nas situaccedilotildees em que haacute um julgamento social em torno da doenccedila
quando o usuaacuterio consegue se apropriar da sua experiecircncia em relaccedilatildeo agrave loucura com
tranquilidade e maturidade ele encontra forccedilas para lidar com situaccedilotildees que antes eram motivo
de vergonha ou isolamento como vemos na fala a seguir
Os outros me chamavam de Elias Maluco Hoje em dia os outros chama ainda eu levo
na brincadeira eu natildeo me sinto ofendido Quando eu tava ruim eu me sentia ofendido
entendeu Eu levo numa boa entendeu (F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Retomando a categoria anterior ldquoa crise como perda e isolamento socialrdquo Milhomens
e Martin (2014) assinalam que apoacutes o episoacutedio de crise alguns participantes de sua pesquisa
deixaram de sair e de circular pelo territoacuterio para natildeo ter que lidar com os questionamentos dos
vizinhos amigos e conhecidos em torno da sua doenccedila Nesse sentido a fala do usuaacuterio acima
fomenta outras formas de lidar com os possiacuteveis obstaacuteculos que a sociedade impotildee agrave loucura
Sua apropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da loucura faz com que ele natildeo se abale ao ser
chamado de ldquomalucordquo Haacute aiacute a invenccedilatildeo de uma forccedila e de uma potecircncia de vida que sustenta
novas possibilidades de estar na comunidade apesar das adversidades
Outro aspecto que nos chamou atenccedilatildeo nesse estudo foi a relaccedilatildeo que alguns usuaacuterios
conseguiram estabelecer com a sua medicaccedilatildeo Embora a maioria natildeo soubesse informar os
nomes e quantidades bem como a finalidade teacutecnica das mesmas muitos conseguiam mostrar
propriedade na avaliaccedilatildeo dos ldquoganhos e perdasrdquo que a medicaccedilatildeo causava em suas vidas
MILHOMENS MARTIN 2014)
Um dos impasses vivenciados por eles nesse sentido era o conflito entre beber eou
usar drogas e ter que tomar a medicaccedilatildeo Sabe-se que a interrupccedilatildeo do tratamento
medicamentoso pode causar efeitos colaterais importantes e ateacute mesmo agravar os sintomas do
quadro que se pretendia tratar Posto isso esses jovens se viam no dilema de ter que optar entre
um e outro avaliando seus riscos e benefiacutecios como vemos na fala a seguir
Aiacute os moleques tava indo fumando uma maconha laacute aiacute eu ia ficava olhando ndash Seraacute
que eu posso Seraacute que natildeo posso ndash aiacute parei de tomar o remeacutedio pra natildeo prejudicar
tipo pensei assim ndash Se eu para de tomar o remeacutedio acho que eu vou poder beber e
vou poder usar droga [] Sem (a medicaccedilatildeo) fico agitado fico agitado ando de um
lado pro outro arrumo a casa arrumo tudo [risos] e tipo jaacute o coraccedilatildeo sei laacute meio que
acelera Eu sei lidar com isso entendeu Pra ficar mais tranquumlilo fumo um cigarro
fumo ateacute mais cigarro quando acelera o coraccedilatildeo mas isso tipo se eu ficar uns por
exemplo ficar hoje hoje eacute quinta se eu ficar ateacute quarta sem tomar eu fico tranquumlilo
mas como a meacutedica falou a medicaccedilatildeo fica no organismo tem uns dias e tal mas se
eu passar de uma semana sem tomar vixi sei laacute eu natildeo sei se eacute isso ou eacute psicoloacutegico
60
pode daacute uma inseguranccedila vocecirc jaacute fica meio com receio aiacute jaacute fica pilhado deve ser
isso tambeacutem (J homem 24 anos)- (MILHOMENS MARTIN 2014 1116)
Observa-se por outro lado que embora a capacidade de autonomia e de participaccedilatildeo do
usuaacuterio no seu tratamento seja valorizada no modelo substitutivo o questionamento em relaccedilatildeo
aos proacutes e contras do uso da medicaccedilatildeo natildeo foi acolhido pelo serviccedilo e como consequecircncia os
usuaacuterios acabavam por fazer uma gestatildeo solitaacuteria da sua medicaccedilatildeo sem poder contar com o
serviccedilo enquanto um parceiro nessa decisatildeo
Quando um desses jovens fazia uma escolha em relaccedilatildeo ao seu tratamento como
interromper o uso da medicaccedilatildeo para fazer uso de drogas ou para conseguir levantar
cedo para estudar tal atitude era vista pelo serviccedilo como contraacuteria ao tratamento
Como se o exerciacutecio da autonomia soacute coubesse quando exercida em concordacircncia com
a disciplina oferecida pelo serviccedilo Optar por natildeo mais fazer uso da medicaccedilatildeo eacute
tratado como irresponsabilidade ou ldquopiora do quadrordquo (ibidem 1117)
Assim vemos que a relaccedilatildeo dos usuaacuterios com o serviccedilo sofre algumas tensotildees e muitas
vezes satildeo os proacuteprios usuaacuterios que vatildeo encontrar meios de ressignificar e modificar essas
relaccedilotildees como podemos ver na fala desse entrevistado a respeito dos grupos oferecidos no
CAPS
Os grupos eacute pra iniacutecio da crise quando tudo eacute novidade entatildeo todo grupo eacute
interessante por mais babacatildeo assim Quando a gente vai melhorando assim parece
ser meio babaca mas natildeo eacute Porque a gente natildeo taacute acostumado mas assim pintar
essas coisas que parece que eacute pra crianccedila neacute mas nossa mente taacute como de crianccedila
entatildeo parecia uma coisa meia agraves vezes quando passava em mim eu falava ndash O que
eu tocirc fazendo aqui ndash mas esses grupos me fizeram enxergar que tinha mais gente
igual eu que tinha gente numa fase pior que a minha outras melhores me ajudou
bastante (M homem 28 anos) (ibidem 1117)
Segundo os pesquisadores ldquopintar desenhos infantis e promover brincadeiras de
crianccedilas eram atividades rotineiras neste serviccedilo utilizadas com o intuito de entreter as pessoas
que ali estavamrdquo (MILHOMENS MARTIN 2014 paacutegina) Tais atividades promovidas de
forma burocraacutetica e sem aproximaccedilatildeo real com o cotidiano dos usuaacuterios contribuem para a
interrupccedilatildeo ou desistecircncia do tratamento Mesmo assim o entrevistado surpreende e lanccedila um
outro olhar para o serviccedilo reconhecendo o que na sua perspectiva ele traz de efetivamente
importante para o seu tratamento a possibilidade de se reconhecer na experiecircncia do outro e de
se conectar com pessoas que vivem os mesmos problemas e questotildees Esse eacute um elemento
proacuteprio do dispositivo grupal que por si soacute jaacute imprime um novo significado ao tratamento
oferecendo um lugar diferente do de incapacitado e infantilizado
Os usuaacuterios vatildeo encontrando cada um agrave sua maneira meios de lidar com as crises com
o estigma social e com a necessidade de sustentar seu tratamento Os recursos apontados por
eles aparecem como algo da ordem da construccedilatildeo de um saber leigo advindo da experiecircncia
subjetiva da crise e da relaccedilatildeo que eles mantem com o seu contexto soacutecio-cultural
61
Notamos que nesse processo os usuaacuterios foram capazes de criar estrateacutegias para o
enfrentamento da sua condiccedilatildeo ressignificando a relaccedilatildeo com o tratamento e encontrando
meios de estar na vida social ldquomantendo-se em movimento na composiccedilatildeo contiacutenua de novos
territoacuterios tendo a crise como principal agente de mudanccedilas e criaccedilotildeesrdquo (GUATTARI
ROLNIK 1996 apud MILHOMENS MARTIN 2014 876)
Na pesquisa de Costa (2007) com um integrante da luta antimanicomial e profissionais
da enfermaria de agudos feminina do IMAS Nise da Silveira e do EAT (Espaccedilo Aberto ao
Tempo) tambeacutem encontramos olhares e concepccedilotildees em torno da crise que se afastam da
perspectiva claacutessica medicalocecircntrica da crise enquanto iacutendice de desajuste do quadro
psicopatoloacutegico resultando em periculosidade e risco social como vemos na fala a seguir
Para mim a concepccedilatildeo que eu tenho de crise eacute a seguinte eacute quando seus pensamentos
estatildeo de tal ordem bagunccedilados que vocecirc natildeo consegue fazer coisas corriqueiras que
vocecirc geralmente costuma fazer Para mim isso eacute uma crise Natildeo significa que isso
seja uma coisa violenta que vocecirc tenha uma crise e fique violento Vocecirc pode ter uma
crise de depressatildeo pode ficar muito triste natildeo conseguir se relacionar com as pessoas
Entatildeo para mim crise eacute quando vocecirc estaacute em um estado tal de confusatildeo de
imobilidade que vocecirc natildeo consegue fazer suas coisas corriqueiras Isso para mim eacute
uma concepccedilatildeo (Integrante do Movimento da Luta Antimanicomial) (COSTA
2007 105)
Para esse usuaacuterio a crise aparece enquanto um estado de confusatildeo em que os
pensamentos estatildeo de tal modo desorganizados que fica difiacutecil dar conta ateacute mesmo das coisas
mais simples do cotidiano Haacute nessa concepccedilatildeo a ideia da crise relacionada a uma perda que eacute
a perda das referecircncias de mundo que se havia constituiacutedo ateacute entatildeo A crise vem e mexe com
o sistema de referecircncia do sujeito ldquobagunccedilardquo os pensamentos A agressividade eacute um dos modos
de se reagir agrave essa ruptura com o instituiacutedo mas natildeo o uacutenico Assim o que fica enquanto questatildeo
dessa fala eacute o que fazer para que essa perda de sentidos natildeo seja paralisante De que modo
podemos aproveitar o movimento da crise para reconstruir os sentidos perdidos e imprimir
novos movimentos de vida aos sujeitos
A fala desse profissional aponta alguns caminhos
[] Pelo menos como eu vejo o surto psicoacutetico eacute exatamente a colocaccedilatildeo em xeque
das referecircncias que sustentavam uma situaccedilatildeo sustentavam um estado de coisas que
de repente rui ou ameaccedila ruir ou comeccedila a ficar em questatildeo ()Muitas vezes o que
a gente vecirc na loucura eacute uma perda mesmo de sentido (Psiquiatra supervisor da equipe
da enfermaria de agudos feminina) (COSTA 2007 104 grifos nossos)
[] Entatildeo muitas vezes o que a gente acredita o que gente constroacutei a partir da nossa
praacutetica eacute que a possibilidade de algueacutem estar intervindo trabalhando junto na crise
pode muitas vezes em algumas situaccedilotildees facilitar a possibilidade de construccedilatildeo ou
reconstruccedilatildeo de referecircncias Quais vatildeo ser em princiacutepio a gente sugere que natildeo se
sabe Porque tem uma seacuterie de fatores sociais em volta proacuteximo do sujeito no
contexto da famiacutelia que tendem muitas vezes a querer recobrar ou retomar uma
62
situaccedilatildeo anterior [] eu acho que quando a gente estaacute intervindo junto na crise a
gente tem que ter o cuidado de natildeo querer construir novos sentidos ou tatildeo pouco
querer reconstruir os velhos porque a gente natildeo sabe Porque eacute possiacutevel que alguns
natildeo suportem retomar aquilo nem tenham a menor condiccedilatildeo a gente natildeo tem como
saber isso antes A gente tem que estar acompanhando junto com cuidado fazendo o
que for preciso Agora eacute claro que por isso mesmo a crise eacute um momento privilegiado
de possibilidades de emergirem novos sentidos muitas vezes essa produccedilatildeo de
sentido eacute do proacuteprio sujeito Pode ser um sentido delirante mas enfim eacute delirante no
sentido positivo E aiacute eacute claro que se espera que a intervenccedilatildeo natildeo seja para calar esse
sentido (Psiquiatra supervisor da equipe da enfermaria de agudos feminina) (ibidem103 grifos nossos)
Haacute uma preocupaccedilatildeo colocada em natildeo se adiantar em querer restituir o estado de coisas
anterior pois a gente natildeo sabe pode ser que o sujeito natildeo sustente mais retornar agrave vida que ele
levava antes Nessa perspectiva a crise eacute mais do que apenas um estado de desequiliacutebrio
momentacircneo ela eacute iacutendice de que algo precisa ser mudado Os velhos arranjos que o sujeito
tinha para lidar com o sofrimento natildeo satildeo mais suficientes e com isto surge a necessidade de
rever esses arranjos e pensar em novas formas de organizaccedilatildeo para o sujeito e seu cotidiano
Segundo um dos entrevistados
A crise pode ser uma grande chance de vocecirc produzir alguma coisa com aquele
indiviacuteduo alguma coisa diferente produzir a mudanccedila Ou pode ser a chance de vocecirc
fazer exatamente nada no sentido de que tirou da crise o cara volta para a vida
exatamente igual (Psiquiatra da enfermaria de agudos feminina) (ibidem 102)
Voltar exatamente igual seria justamente ignorar o que a crise produz em termos de
subjetividade no sujeito Se tomamos a crise como iacutendice de uma mudanccedila na subjetividade
isto eacute na forma como aquele sujeito se constitui para o mundo entatildeo eacute preciso pensar se os
recursos que ele tem estatildeo agrave altura da nova realidade psiacutequica em que ele se encontra Assim eacute
preciso tomar a crise enquanto um acontecimento que pode apontar para a necessidade de uma
mudanccedila na realidade concreta do sujeito no modo em que ele vive nas suas relaccedilotildees sociais
no modo como organiza seu cotidiano etc A crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um
evento analisador4 que ldquo propicia a criaccedilatildeo de recursos e estabelece uma urgecircncia de
realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (COSTA 2007
101)
Sobre esse aspecto uma profissional conta
Uma coisa que eu lembrei que vocecirc falou da crise me lembrei do CH Ele morava na
casa dos pais que morreram e que foi a casa onde ele cresceu Os pais eram muito
austeros e ele tem muitas recordaccedilotildees naquela casa Ele haacute muito tempo vinha pedindo
para sair daquela casa principalmente quando ele estava ldquoem criserdquo quando ele natildeo
estava ldquobemrdquo Quando algumas coisas aparecem a agressividade por exemplo eacute um
dos sinais de quando ele estaacute em crise aquela doccedilura dele toda natildeo aparece aparece
4 Ver Guattari F (2004) Psicanaacutelise e transversalidade ensaios de anaacutelise institucional Aparecida SP Ideacuteias
amp Letras (Original publicado em 1972)
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mais uma agressividade uma irritabilidade No caso dele parece que satildeo duas pessoas
parece que duas pessoas habitam o mesmo corpo E ele falava muito de querer sair e
quando ele melhorava acabava que O tempo passou eu natildeo sei muito bem montar
essa histoacuteria um trabalho que a Carla fez e a famiacutelia entendeu que era mais do que
quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil tambeacutem e aiacute se comeccedilou
a procurar a casa E aiacute teve um periacuteodo minus porque ao mesmo tempo em que ele queria
sair quando ele viu a saiacuteda isso mexeu minus em que ele natildeo ficou bem e pedia para ficar
no hospital porque para ele era insuportaacutevel ficar naquela casa mas a outra casa ainda
natildeo tinha saiacutedo e a gente ldquoNatildeo mas aqui no hospital natildeo vamos negociar vocecirc fica
um diardquo E aiacute acabou que ele conseguiu alugar a casa dele estaacute superfeliz Mas esse
periacuteodo da procura da casa foi um periacuteodo em que ele pode ateacute natildeo ter entrado numa
crise mas ele natildeo estava bem natildeo estava bem por todas essas mudanccedilas porque ele
natildeo queria tambeacutem eacute difiacutecil mudar Eu natildeo sei mas numa loacutegica psiquiaacutetrica
tradicional talvez nunca se mexesse na casa e talvez diriam ldquoViu soacute como natildeo foi
bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo (Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)
(ibidem 102)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado da histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social habitacional e
relacional Eacute a partir dela que a equipe entende que natildeo eacute mais possiacutevel sustentar a permanecircncia
do usuaacuterio naquela casa A profissional ao mesmo tempo ressalta o quanto eacute difiacutecil e delicado
esse trabalho que face agrave menor mudanccedila na sintomatologia do usuaacuterio corre o risco de ser
inteiramente questionado ldquo viu como natildeo foi bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo
Assim desconstruir o paradigma manicomial implica em uma aposta incansaacutevel no
sujeito em dar creacutedito ao que ele fala e aponta como direccedilotildees possiacuteveis para seu cuidado Ainda
assim eacute preciso reconhecer que o que quer que se construa com ele seraacute sempre uma construccedilatildeo
provisoacuteria posto que as pessoas estatildeo em constante movimento de territorizalizaccedilatildeo e
desterritorializaccedilatildeo de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo de si proacuteprio e do mundo ao seu redor
Estar aberto para essa construccedilatildeo exige que os profissionais possam rever as concepccedilotildees
de crise que embasam suas praacuteticas No lugar das certezas da Psiquiatria Claacutessica eacute preciso
abrir espaccedilo para uma ldquopraacutetica aberta agrave invenccedilatildeo agrave singularidade cuja tecnologia se vai
construindo permeaacutevel aos elementos de vidardquo (Costa 2007 105) A narrativa a seguir fala
um pouco desse aspecto do trabalho
Para mim eacute isso crise eacute isso Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o
sobrinho dele morreu assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver
com uma situaccedilatildeo que ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele
continuou trabalhando na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de
trabalho E eu me lembro que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele
tirar todos os documentos E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do
nascimento dele e ele me mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e
nasceu e contou histoacuteria A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com
ele porque ele explodiu[] E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos
de novo E a gente entendeu que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia
muito que a gente o ajudasse eacute como se ele pulverizasse e a gente entendia que ele
tinha um pedido de organizaccedilatildeo Tanto eacute que ele pediu para arrumar a cantina ele
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queria arrumar as coisas da cantina depois do expediente Os documentos eu acho
que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que ele acabou entre aspas
perdendo Acho que a coisa foi meio por aiacute mas isso foi a histoacuteria dele com J seria
outra coisa com N seria outra Eu acho que vai muito por aiacute Por isso que eu natildeo tenho
uma coisa pronta Mas nas vivecircncias a gente vai vendo como vai fazendo (Psicoacuteloga
do Espaccedilo Aberto ao Tempo) (ibidem 105)
A perspectiva dessa profissional se contrapotildee a uma visatildeo mais tradicionalista da crise
que ldquovai dizer que [a crise] eacute um sintoma que ela estaacute descolada da realidade e vocecirc tem que
fazer a remissatildeo do sintoma entatildeo quando ele [o paciente] melhora eacute porque ele paacutera de delirar
e funciona em um registro mais normal mesmo que seja dopado de medicaccedilatildeo mesmo que
vocecirc esteja matando eacute isso(Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)rdquo (Costa 2007 105)
Acompanhar o movimento do sujeito em seus percursos e trajetoacuterias em busca de sauacutede
(no Parque da Catacumba na arrumaccedilatildeo da cantina na retirada dos documentos) diz de uma
postura diante da crise fundada na sustentaccedilatildeo de um natildeo saber A sustentaccedilatildeo de natildeo ter uma
resposta agrave priori eacute o que vai permitir que se possa embarcar com o paciente em novos sentidos
para sua loucura Normalmente o senso comum tende a acreditar que uma pessoa em surto
psicoacutetico faz e fala coisas sem sentido e que por isso devemos ignoraacute-las A ideia aqui eacute agir no
sentido inverso tomar as accedilotildees e falas do sujeito em crise como um saber legiacutetimo sobre si
Trata-se de retomar um pouco a ideia de Freud do deliacuterio enquanto uma tentativa de cura e
apostar na capacidade inventiva do sujeito de criar saiacutedas para seu sofrimento
Enquanto uma visatildeo mais tradicionalista da crise retiraria o sujeito do seu contexto de
vida para isolaacute-lo em uma instituiccedilatildeo de tratamento sob a justificativa de monitorar avaliar e
examinar a evoluccedilatildeo do quadro psicopatoloacutegico uma visatildeo mais ampliada da crise vai situar
esse acontecimento dentro do contexto de vida da pessoa e buscar superaacute-la trabalhando com
os elementos que fazem parte de seu cotidiano como o territoacuterio as relaccedilotildees sociais a histoacuteria
de vida etc Trata-se portanto de buscar uma saiacuteda da crise a partir da histoacuteria de vida do
sujeito e de sua realidade acolhendo os caminhos que ele aponta Vista desse modo a crise eacute
um modo de subjetivaccedilatildeo que soacute se constitui no mundo concreto e coletivo o qual o sujeito faz
parte e soacute pode se transformar na medida em que esse mundo tambeacutem se transforma para ele
42 DESAFIOS E POTENCIALIDADES NO ACOLHIMENTO A CRISE
Segundo a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (2013)
Acolher eacute reconhecer o que o outro traz como legiacutetima e singular necessidade de
sauacutede O acolhimento deve comparecer e sustentar a relaccedilatildeo entre equipesserviccedilos e
usuaacuterios populaccedilotildees Como valor das praacuteticas de sauacutede o acolhimento eacute construiacutedo
de forma coletiva a partir da anaacutelise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
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construccedilatildeo de relaccedilotildees de confianccedila compromisso e viacutenculo entre as
equipesserviccedilos trabalhadorequipes e usuaacuterio com sua rede socioafetiva (spag)
Tal poliacutetica considera ainda que o acolhimento eacute uma postura eacutetica e tecnologia
relacional de escuta qualificada a ser oferecida de acordo com agraves necessidades dos usuaacuterios e a
partir de uma avaliaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade gravidade e riscordquo (BRASIL 2013)
Tendo essa concepccedilatildeo de acolhimento como direccedilatildeo visamos atraveacutes da anaacutelise dos
artigos estudados nessa pesquisa trazer algumas contribuiccedilotildees para pensar como tem se dado
o acolhimento agrave crise na RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e quais satildeo os principais
impasses estrateacutegias e ferramentas cliacutenicas que os profissionais encontram na prestaccedilatildeo desse
cuidado no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede
Desse modo a partir da revisatildeo da literatura podemos dizer que um dos primeiros
desafios que se coloca no acircmbito do acolhimento agrave crise eacute que este natildeo seja apenas um processo
de triagem Sobre esse aspecto a pesquisa de Paulon et al (2012) encontrou resultados
relevantes Os autores entrevistaram trabalhadores e gestores de emergecircncias de hospitais gerais
na cidade de Porto AlegreRS aleacutem de analisarem os protocolos utilizados por essas unidades
no processo de acolhimento
Nos protocolos analisados por Paulon et ali (2012) chama atenccedilatildeo o fato de que em
nenhum momento a palavra ldquoacolhimentordquo eacute utilizada Os autores destacam que em um desses
documentos a palavra ldquotriagemrdquo eacute utilizada em seu lugar como um criteacuterio que permite
ldquoclassificar e escolherrdquo
O texto de introduccedilatildeo deste documento segue descrevendo a origem militar desse
termo utilizado em campos de batalha para escolher ldquoquem valeria a pena salvarrdquo de
acordo com os recursos disponiacuteveis dentre aqueles feridos em combate ldquoo objetivo
geral da classificaccedilatildeo era retornar o maior nuacutemero possiacutevel de soldados ao campo de
batalhardquo (FERNANDES RAMOS FRUSTOCKL FRANCcedilA sd 1 apud PAULON
ET AL 2012 75)
Difiacutecil pensar em produzir relaccedilotildees de cuidado a partir de um texto que orienta os
profissionais a pensarem nos seus pacientes como ldquosoldados em um campo de batalhardquo Vemos
que essa concepccedilatildeo de acolhimento enquanto triagem natildeo se restringe apenas a burocracia de
um documento sem efeitos na praacutetica mas encontra-se presente e viva no discurso dos
profissionais desse hospital como observamos na fala a seguir ldquono acolhimento os pacientes
relatam o seu problema e a partir daiacute eacute triado de acordo com a classificaccedilatildeo de riscordquo (
PAULON ET AL 2012 76 grifo do autor)
Outra profissional entrevistada associa o acolhimento ao filme ldquoTempos Modernosrdquo
relembrando a cena em que o personagem de Carlitos de tanto apertar parafusos sai repetindo
66
os movimentos desconexos rua afora Em seguida acrescenta que ldquoa sua proacutexima escala de
acolhimento ocorreraacute dali a dois meses e sente-se aliviada por isso pois prefere ficar nas
maacutequinas de raios-X do que ficar ali na linha de frenterdquo (ibidem 76)
Talvez o comentaacuterio da enfermeira revele um querer colocar as coisas em seus
ldquodevidos lugaresrdquo uma vez que o trabalho com a maquinaria requer mais
apropriadamente o tipo de conduta que lhe parece ser exigida para atuar nos
acolhimentos da emergecircncia Aleacutem disso as maacutequinas de raio-X natildeo precisam ser
esvaziadas de subjetividade do conteuacutedo psicossocial que insiste em ser sugado das
ldquopessoas-parafusordquo da linha de montagem do acolhimentotriagem (ibidem 76)
O acolhimento-triagem transforma a linha de cuidado em ldquolinha de montagemrdquo
tomando o sujeito como um objeto que precisa ser ldquotriadordquo ldquoencaminhadordquo e ldquoclassificadordquo
de acordo com os criteacuterios de um protocolo Perde-se a dimensatildeo leve e relacional desse
cuidado Aspectos como a escuta a produccedilatildeo de viacutenculo e a valorizaccedilatildeo do encontro natildeo tecircm
espaccedilo para emergir em meio ao tempo altamente controlado e aos procedimentos mecanizados
desse cuidado
Com resultado produz-se uma burocratizaccedilatildeo dos dois lados os pacientes veem o
acolhimento como mais um empecilho para ldquoresolverrdquo suas necessidades de sauacutede ou mesmo
para ldquousufruir do consumo de sua dose procedimentalrdquo e os teacutecnicos como castigo obrigaccedilatildeo e
perda de tempo pois estatildeo se afastando do cuidado que seria ldquoo verdadeiro cuidadordquo o cuidado
dos procedimentos das maacutequinas da medicaccedilatildeo etc
O que prevalece assim eacute um cuidado predominantemente vertical de procedimentos
biomeacutedicos para com um usuaacuterio submisso e em estado de passividade uma perfeita
apresentaccedilatildeo do claacutessico ldquopacienterdquo (ibidem 78)
Ao referir-se sobre o acolhimento palavras como ldquoraacutepido efetivo e estabilizadordquo foram
uma constante no discurso dos profissionais Segundo um dos entrevistados
A nossa proposta de acolhimento eacute um acolhimento raacutepido ele tem que ser raacutepido e
efetivo Porque agraves vezes o paciente chega pra mim e eu tenho que conseguir classificar
ele raacutepido justamente pra ele ter um atendimento mais raacutepido (sic)rdquo (ibidem 78)
O risco e a possibilidade de morte muitas vezes colocada associada agrave percepccedilatildeo de um
corpo fiacutesico em colapso eacute o que demanda a accedilatildeo raacutepida O diaacutelogo torna-se empobrecido e
restrito ao que estaacute prescrito nos protocolos de atendimento e o contato reduz-se a execuccedilatildeo de
procedimentos biomeacutedicos que visam a estabilizaccedilatildeo (medicaccedilatildeo afericcedilatildeo dos sinais vitais
entre outros)
A funccedilatildeo da emergecircncia segundo os entrevistados seria devolver a estabilidade das
funccedilotildees orgacircnicas ao corpo que estaacute sendo assistido () E todos os procedimentos
precisam ser feitos rapidamente pois a depender da gravidade do dano instalado
naquele organismo esse desequiliacutebrio poderaacute levar agrave morte (ibidem 78)
67
Entende-se que eacute necessaacuterio que a pessoa em situaccedilatildeo de crise tenha acesso ao cuidado
de forma raacutepida No entanto o que se observa eacute que a rapidez mencionada pelos profissionais
natildeo se restringe somente ao tempo de espera do atendimento mas as etapas e fases do
acolhimento Assim no intuito de ldquoacelerarrdquo a linha de cuidado o paciente recebe um
atendimento fragmentado e burocratizado cujo objetivo eacute conseguir determinar no menor
tempo possiacutevel qual paciente pode esperar qual deve ser atendido imediatamente qual deve ser
encaminhado para outro serviccedilo e qual deveraacute ser internado Sobre esse aspecto um entrevistado
ressalta
O funcionamento da emergecircncia eacute uma coisa mais Mc Donaldrsquos natildeo tem entrada
primeiro prato segundo prato terceiro prato Eles querem ver quem eacute que tem risco
que tenha que internar senatildeo olham o que precisa e lsquodeursquo A emergecircncia eacute voltada
para o foco da doenccedila ela focaliza no tratamento que estanque aquele sofrimento
emergenterdquo (sic) (ibidem 79 grifos nossos)
Os autores pontuam que essas satildeo decisotildees complexas que natildeo podem ser tomadas ldquono
menor tempo possiacutevelrdquo sem que haja necessariamente um processo de simplificaccedilatildeo do
atendimento no qual ldquoo trabalhador tenta adequar a demanda trazida pelo usuaacuterio agravequilo de
que o serviccedilo dispotildee para poder lidar com ela e salvaguardar algum sucesso no resultado do
trabalhordquo (ibidem 79)
Assim tem-se o que Merhy (2002) descreve como ldquotrabalho mortordquo isto eacute um cuidado
que ldquonatildeo estaacute em movimento- em relaccedilatildeordquo (apud PAULON ET AL 2012 79) O sujeito eacute
visto como um ldquoproblemardquo que precisa ser ldquoresolvidordquo a partir do uso das tecnologias que o
serviccedilo dispotildee Natildeo haacute tempo para se descobrir o que haacute de singular na crise daquele sujeito ou
inventar outras articulaccedilotildees que possam dar conta desse sofrimento
Esvazia-se o processo isolam-se as anguacutestias e a complexidade do atendimento da
pessoa que demanda cuidados adequando-a ao que o hospital pode fornecer ldquoOlham
o que precisa e lsquodeursquordquo (sic) (PAULON ET AL 2012 79 grifo do autor)
O acolhimento-triagem eacute a expressatildeo de todo um modo de cuidado duro constituiacutedo por
certos ldquosaberes bem definidosrdquo orientados para que as respostas sejam as mais adequadas e
eficientes no menor tempo possiacutevel Em nome de ideais como a otimizaccedilatildeo do tempo e dos
recursos reduccedilatildeo dos custos e do foco na sintomatologia produz-se um cuidado
homogeneizado padratildeo ldquoMc Donaldsrdquo que jaacute tem em sua cesta de ferramentas todas as
respostas possiacuteveis Assim cabe perguntar
Se o foco da atenccedilatildeo estaacute direcionado aos sinais vitais e agrave sintomatologia fiacutesica
presente no quadro cliacutenico em nome de uma agilidade e eficiecircncia no atendimento
qual seraacute o espaccedilo reservado para tudo o que natildeo estiver inscrito nesse script O que
sobra do sujeito-usuaacuterio que chega com sofrimentos difusos numa emergecircncia Que
acontece quando o tipo de dor e sofrimento que ldquourgerdquo num usuaacuterio eacute de outra ordem
68
que natildeo aquela que costuma estar no foco desses serviccedilos (PAULON ET AL 2012
81)
Parece que haacute um despreparo para lidar com as situaccedilotildees subjetivas que fogem do olhar
cartesiano da Medicina Tradicional e que exigem dos trabalhadores uma disponibilidade outra
de entrar em contato com a pessoa em sofrimento emprestar seu tempo seu corpo seu afeto
As entrevistas apontam que ldquoos profissionais sentem medo de cuidar daquilo que
desconhecem do que natildeo foram capacitadosrdquo (sic)rdquo (ibidem 86) Um outro desafio que
podemos destacar relacionado a esse despreparo eacute a interferecircncia do preconceito e do
julgamento moral no atendimento agrave algumas situaccedilotildees de sauacutede mental Segundo os
pesquisadores
O julgamento moral estaacute presente desde a triagem a qual culmina em uma
classificaccedilatildeo de risco que mescla a objetividade de protocolos organicistas com um
olhar moralizante da situaccedilatildeo que se encontra o usuaacuterio que chega para atendimento
o que acaba relegando a sauacutede mental a um segundo plano e fazendo seleccedilotildees a partir
de determinados paracircmetros como [] a comunhatildeo de preconceitos e valores sociais
no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como ldquoessencialmente natildeo
urgentesrdquo (os alcooacutelatras drogados e pacientes psiquiaacutetricos) a presteza maior no
atendimento a usuaacuterios de classe social e niacutevel cultural mais abastados a importacircncia
da identificaccedilatildeo dos que fingem ou estatildeo dizendo a verdade sobre suas urgecircncias e no
consenso de que se a dor ou o problema eacute antigo quem esperou tanto para acessar o
serviccedilo pode esperar mais (Neves 2006 692 apud PAULON ET AL 2012 84)
No caso de crises relacionadas ao uso abusivo de aacutelcool e outras drogas a equipe das
emergecircncias tende a assumir uma postura acusatoacuteria relegando a responsabilidade da crise ao
usuaacuterio que teria escolhido seguir esse caminho Acredita-se que por estes nada se tem a fazer
e que o melhor eacute ldquocuidar de quem realmente quer ser cuidadordquo Na praacutetica o atendimento dessas
situaccedilotildees revela ldquodescaso incapacidade de escuta ou ateacute negligecircncia para com sujeitos em crise
de abstinecircncia ou torporrdquo (PAULON ET AL 2012 85) Os autores ressaltam que
Nesse sentido subjugar um cidadatildeo que chega agrave emergecircncia com algum tipo de
sofrimento psiacutequico limite reduzindo-o a um lugar de pecado de vergonha pelos seus
atos fora dos padrotildees aceitos socialmente emerge da junccedilatildeo das loacutegicas meacutedica e
judiciaacuteria efetuada pela ativaccedilatildeo de categorias elementares da moralidade de um
discurso essencialmente parental-infantil que eacute o discurso dos cuidadores quando se
imbuem do saber absoluto sobre ldquoo que eacute bom para o outrordquo(ibidem85 )
O atravessamento das expectativas dos profissionais sobre a vida do outro somado aos
valores morais e culturais em vigor na sociedade fomentam um processo de culpabilizaccedilatildeo da
pessoa que procura ajuda o que pode culminar em uma niacutetida desresponsabilizaccedilatildeo com o
cuidado desses pacientes como vemos nos trechos a seguir
Esses sim esses noacutes da equipe de enfermagem temos bastantes dificuldades de lidar
porque tu vecirc o viacutecio como algo que a pessoa vai e faz por que quer tem livre arbiacutetrio
ele escolheu o viacutecio Ateacute as primeiras idas ateacute antes da dependecircncia (sic) (ibidem
84 grifo do autor)
69
Chegaram a dizer que ele era uma pessoa egoiacutesta e que natildeo tinha condiccedilotildees de
convivecircncia que era pra eu e minha matildee sairmos de casa ou botar(mos) ele pra fora
(CONTE ET AL 2015 1745 grifo do autor)
Nesse contexto eacute comum por exemplo que a equipe entenda que o ldquoatendimentordquo
possiacutevel eacute a resoluccedilatildeo da demanda fiacutesica do alcoolista (reestabelecimento dos sinais vitais
hidrataccedilatildeo etc) sem que haja nenhum tipo de encaminhamento para um tratamento continuado
na rede ou mesmo uma abordagem sobre a situaccedilatildeo que a pessoa se encontra naquele momento
Esse olhar do cuidado orgacircnico e centrado nos procedimentos fiacutesicos tem se apresentado
como um outro importante desafio a se transpor no niacutevel das praacuteticas de cuidado Nas
emergecircncias gerais cenaacuterio da pesquisa isso fica especialmente evidente Os profissionais
tendem a atribuir mais valor agrave dor fiacutesica do que a psicoloacutegica Como se quem estivesse sofrendo
por um trauma um corte ou uma fratura precisasse mais do atendimento do que um paciente
esquizofrecircnico dependente quiacutemico ou com crise de ansiedade Desse modo as demandas
subjetivas satildeo vistas como aquelas que ldquopodem esperarrdquo e que tomam lugar das demandas
fiacutesicas compreendidas nesta loacutegica como aquelas ldquorealmente urgentesrdquo Sobre esse aspecto
Jardim e Dimenstein (2007 182) ressaltam
O foco do trabalho das urgecircncias psiquiaacutetricas estaacute primordialmente no procedimento
em sua dimensatildeo bioloacutegica no corpo pensado como objeto de intervenccedilatildeo da
anatomia patoloacutegica e qualquer fator que extrapole esse acircmbito eacute desconsiderado
Entatildeo ateacute mesmo enquanto doenccedila mental a loucura foge da loacutegica das urgecircncias
Natildeo se manifesta enquanto lesatildeo palpaacutevel ou visiacutevel [ela] evoca outros
questionamentos incomoda por diferir tanto das outras demandas natildeo se encaixa no
espaccedilo natildeo se submete agrave autoridade potildee em xeque os teacutecnicos e seus saacutebios
conhecimentos desvela as suas impotecircncias (apud PAULON ET AL 2012 87)
Mesmo nos casos em que claramente sabe-se que o motivo da falecircncia do corpo eacute o
sofrimento subjetivo o alvo do cuidado continua sendo limitado ao reparo do dano provocado
ao corpo fiacutesico
Quando uma crianccedila chega agrave emergecircncia por automutilaccedilatildeo ou mesmo quando um
adulto adentra a sala com os pulsos cortados os profissionais entendem que sua
funccedilatildeo nesse caso eacute de limpar e suturar os ferimentos O motivo da consulta eacute o
ferimento - novamente o fiacutesico - e os possiacuteveis procedimentos que nele possam ser
executados Jaacute os motivos do plano psiacutequico e social que possivelmente causaram tal
emergecircncia (e natildeo raras vezes causaratildeo novamente e justificaratildeo uma reinternaccedilatildeo ndash
uma das variaacuteveis determinantes da hiperlotaccedilatildeo das emergecircncias) natildeo satildeo alvo de
investimentos por parte das equipes (PAULON ET AL 2012 85)
Haacute um certo mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo pois ao contraacuterio da
patologia orgacircnica ele natildeo se submete as loacutegicas de um saber estruturado e natildeo ldquo se resolverdquo a
partir de um manejo ou intervenccedilatildeo O sofrimento subjetivo retorna e continua a colocar em
xeque os profissionais seus saberes e as instituiccedilotildees Em um serviccedilo como a emergecircncia o que
70
natildeo pode ser ldquoresolvidordquo eacute frequentemente esquecido o que natildeo deixa de ser paradoxalmente
uma forma de ldquoresoluccedilatildeordquo do problema
Nos serviccedilos especializados embora a demanda de sauacutede mental seja mais evidente
parece que a direccedilatildeo do cuidado eacute igualmente no sentido de invisibilizaacute-la Pesquisas como a
de Zeferino et al (2016) sobre a percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre a atenccedilatildeo agrave crise
sauacutede mental apontam que a intervenccedilatildeo muitas vezes eacute no sentido de ldquocalarrdquo o sintoma
revelando que embora o modelo de sauacutede tenha mudado as praacuteticas medicalizantes e
hospitalocecircntricas ainda prevalecem
Essa pesquisa foi feita com 156 alunos do curso ldquoCrise e Urgecircncia em Sauacutede Mentalrdquo
ldquotrabalhadores da RAPS com formaccedilatildeo em niacutevel universitaacuterio que atuam no cuidado em sauacutede
mental no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) oriundos das diversas Regiotildees do Brasil
selecionados pelo Ministeacuterio da Sauacutederdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag) Como forma de
cuidado na crise os participantes citaram majoritariamente medidas como ldquocontenccedilatildeo
medicamentosa contenccedilatildeo mecacircnica e internaccedilatildeo accedilotildees que se limitam agrave diminuiccedilatildeo de
sintomasrdquo (idem p) como descrito nas falas abaixo
Quando chegam ao serviccedilo dependendo de como estejam satildeo contidos no leito com
faixas de contenccedilatildeo pelos monitores e depois satildeo vistos pelos meacutedicos Psiquiatras que
determinam a contenccedilatildeo medicamentosa feita a administraccedilatildeo da medicaccedilatildeo ficam
em observaccedilatildeo (E1 A124 - CAPS II) (ibidem spag )
Nas urgecircncias a primeira conduta eacute a intervenccedilatildeo medicamentosa que ocorre pela
equipe de enfermagem tanto na unidade como em domiciacutelio em alguns casos com
apoio da Guarda Municipal para contenccedilatildeo fiacutesica Logo que possiacutevel o paciente eacute
avaliado pelo meacutedico que quase sempre orienta a internaccedilatildeo (E1 A64 - CAPS II)
(ibidem spag)
Quando temos um usuaacuterio em crise e a famiacuteliar liga para pedir ajuda da equipe do
CAPS orientamos que entre em contato com o SAMU para levaacute-lo ao hospital e
entatildeo o usuaacuterio ser medicado Se a Crise for muito forte este eacute encaminhado para a
capital onde seraacute internado[] (E1 A147 - CAPS II) (ibidem spag)
Nota-se que as primeiras intervenccedilotildees mencionadas pelos profissionais satildeo a contenccedilatildeo
fiacutesica eou medicamentosa seguida do encaminhamento para o hospital A avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo
de crise eacute vista como uma responsabilidade uacutenica e exclusiva do meacutedico da qual a equipe natildeo
participa Na terceira fala por exemplo observamos que o profissional sequer tenta entender a
situaccedilatildeo que levou o usuaacuterio a entrar em crise O CAPS tampouco parece ser visto como um
dispositivo a ser acionado nas situaccedilotildees de crise O encaminhamento imediato eacute ligar para o
SAMU para que o usuaacuterio seja levado ao hospital
Embora o CAPS seja o dispositivo por excelecircncia substitutivo ao hospital e por isso
privilegiado no atendimento agraves situaccedilotildees de crise a expectativa dos profissionais eacute de que
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outros serviccedilos se ocupem da crise e que o usuaacuterio retorne ao CAPS quando estiver
ldquoestabilizadordquo conforme vemos a seguir
A equipe tem se mostrado omissa quando presencia um momento de crise e ao inveacutes
de intervir busca encaminhar e se livrar do problema (E1 A141 - CAPS II) (ibidem
spag)
O usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao Hospital Geral para a
estabilizaccedilatildeo retornando ao CAPS assim que estiver compensado para a
continuidade do seu tratamento (E1 A92 - CAPS II) (ibidem spag)
A ideia da estabilizaccedilatildeo associada prioritariamente agrave intervenccedilatildeo farmacoloacutegica e a
hospitalizaccedilatildeo aleacutem de reforccedilar o modelo manicomial deposita a esperanccedila da melhora em uma
soluccedilatildeo externa e maacutegica retirando a possibilidade do sujeito se responsabilizar pelo seu
sintoma e talvez encontrar outra soluccedilatildeo para sua compensaccedilatildeo Segundo os autores ldquoVaacuterias
correntes teoacutericas tem apontado que o objetivo das praacuteticas de sauacutede mental precisa ser a
ampliaccedilatildeo da capacidade de cada um lidar consigo mesmo e com os outros e natildeo apenas a
remissatildeo de sintomasrdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag)
Assim embora alguns profissionais reconheccedilam a necessidade de uma mudanccedila em
relaccedilatildeo a essas praacuteticas parecem ter dificuldades de nortear suas accedilotildees sob a loacutegica do modelo
psicossocial como podemos ver nas falas a seguir
Vejo-me com tantas perguntas sobre crises como identificaacute-la como agir o que natildeo
fazer a resposta medicamentosa me parece faacutecil e raacutepida poreacutem me angustia tecirc-la
como resposta gostaria de descobrir outros caminhos (E1 A52 - CAPS II) (ibidem
spag)
A equipe tem se esforccedilado no cuidar natildeo tem sido faacutecil pois exige um
amadurecimento da mesma procurando natildeo limitar na terapia medicamentosa no
modelo meacutedico-centrado mas sim em acolher natildeo soacute o paciente mas os familiares
buscando interagir com os parceiros da RAPS Nas nossas reuniotildees de equipe sempre
discutimos casos novos (E1 A66 - CAPS I) (ibidem spag)
Destaca-se nesse contexto que a formaccedilatildeo hegemonicamente biomeacutedica e a
inadequaccedilatildeo dos curriacuteculos para aacuterea da sauacutede mental reforccedilam o apelo agrave resposta ldquoprontardquo da
medicaccedilatildeo e contribuem para a manutenccedilatildeo do modelo manicomial ldquoO diagnoacutestico apressado
a conduta extremamente teacutecnica e desumana a medicalizaccedilatildeo de todas as queixas e as
dificuldades no contatordquo (ibidem spag) satildeo expressotildees de um modelo de cuidado duro que
imbuiacutedo dos ideais de neutralidade da praacutetica meacutedica simplifica e compromete a integralidade
do cuidado Sobre esse aspecto um profissional comenta
Trabalhamos ainda focados na praacutetica meacutedica quase em todos os episoacutedios a
medicalizaccedilatildeo ocorre em primeiro lugar Principalmente com a falta de capacitaccedilatildeo
dos profissionais envolvidos Esta atuaccedilatildeo soacute fortalece a dependecircncia do hospital
psiquiaacutetrico (E1 A53 - CAPS II) (ibidem spag)
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Para agravar a situaccedilatildeo a rede tambeacutem natildeo consegue dar respostas pois tambeacutem natildeo
estaacute preparada para tais situaccedilotildees Ocorre que esse usuaacuterio percorre um caminho de
sofrimento e descaso (E1 A141 - CAPS II) (ibidem spag)
Na pesquisa de Almeida et al (2012) com 14 profissionais de quatro equipes do SAMU
no estado de Santa Catarina a falta de capacitaccedilatildeo teacutecnica para o atendimento agraves situaccedilotildees de
crise tambeacutem aparece enquanto um desafio As dificuldades relatadas pelos profissionais
perpassam o medo a falta de conhecimento sobre a crise e o despreparo no momento de abordar
o paciente
Acredito que a experiecircncia do dia a dia me faz ter certo preparo teacutecnico mas com
dificuldade na questatildeo psicoloacutegica Por ser o SAMU um serviccedilo de Urgecircncia e
Emergecircncia e natildeo de continuaccedilatildeo do cuidado realiza-se o necessaacuterio mas acho que
poderiacuteamos ter um preparo melhor Fico muito em alerta a tudo o que o paciente faz
a forma dele agir e de se expressar Eu abordo porque tem que abordar mas eu natildeo me
sinto preparado Pode-se dizer que estou preparado na medida do possiacutevel pois
consigo realizar teacutecnicas para contenccedilatildeo fiacutesica mas natildeo psicoloacutegica Em algumas
situaccedilotildees natildeo me sinto preparado e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia militar
No caso de agressividade natildeo me sinto preparado Acredito que precisariacuteamos de mais
orientaccedilatildeo pois eacute a uacutenica aacuterea que a gente natildeo tem capacitaccedilatildeo Quando consigo me
aproximar na abordagem a pessoa fica tranquumlila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmo
Com certeza precisa mais coisa para o atendimento orientaccedilatildeo Acredito que a falta
de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz com que o
atendimento siga uma forma natildeo correta
(P1P2P3P4P5P6P7P9P10P13P14)(ALMEIDA ET AL 2012 710)
A falta de preparo muitas vezes eacute o que justifica o uso da forccedila fiacutesica e da agressividade
conforme retratado nas falas ldquoquando consigo me aproximar na abordagem a pessoa fica
tranquila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmordquo ldquoem algumas situaccedilotildees natildeo me sinto preparado
e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia miliarrdquo ldquono caso de agressividade natildeo me sinto
preparadordquo Assim vemos a importacircncia do investimento em processos de educaccedilatildeo
permanente supervisatildeo cliacutenica e cursos de formaccedilatildeo para que os profissionais encontrem meios
de manejar as situaccedilotildees de crise sem necessidade do uso de violecircncia
A formaccedilatildeo precisa ser vista como um ldquoprocesso dinacircmico e contiacutenuo de construccedilatildeo do
conhecimento pautado no diaacutelogo em que todos os atores assumam papel ativo no processo de
aprendizagem atraveacutes de uma abordagem criacutetica e reflexiva da realidaderdquo (ibidem713)
Acreditamos que atraveacutes dela as concepccedilotildees de crise o imaginaacuterio social da loucura e os
conceitos de risco e periculosidade podem ser revisitados e problematizados fornecendo
subsiacutedios para uma praacutetica orientada para a escuta das necessidades do sujeito do viacutenculo e do
cuidado em liberdade
Assim podemos dizer que o cuidado dos profissionais ainda representa em grande parte
caracteriacutesticas do modelo asilar como intervenccedilotildees centradas na contenccedilotildees fiacutesica e
medicamentosa excesso de internaccedilotildees acolhimento burocratizado falta de preparo na
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abordagem ao paciente em crise resultando no uso da forccedila fiacutesica e da agressividade aleacutem de
praacuteticas de preconceito e discriminaccedilatildeo sendo estes alguns dos principais desafios apontados
pela literatura estudada no acolhimento agrave crise no acircmbito da Reforma Psiquiaacutetrica e do SUS
(Sistema Uacutenico de Sauacutede)
Quanto agraves potencialidades no acolhimento agrave crise podemos destacar algumas estrateacutegias
referidas pela literatura Na pesquisa de Lima et al (2012) da qual participaram profissionais
usuaacuterios gestores e familiares de 11 CAPS nas cidades da Bahia e Sergipe emergiram enquanto
elementos que favorecem o manejo da crise segundo a perspectiva dos participantes
a) acolhimento diurno e noturno b) observaccedilatildeo continuada e contiacutenua c) atenccedilatildeo
domiciliar (visitas domiciliares) d) responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso
e) presenccedila do psiquiatra na equipe para garantir o ecircxito da prescriccedilatildeo f) negociaccedilatildeo
e apoio concreto ao familiar para que o internamento seja o uacuteltimo recurso utilizado
g) elaboraccedilatildeo de cartilha com orientaccedilatildeo sobre como lidar com a crise de pessoas com
transtornos para profissionais natildeo especializados em sauacutede mental e para familiares
h) implantaccedilatildeo das ldquoOficinas de criserdquo 5nos CAPS i) estabelecimento de limites para
os usuaacuterios atraveacutes de regras de convivecircncia para evitar o uso de aacutelcool e outras drogas
no CAPS e como sugerem os parentes j) na perspectiva dos familiares natildeo podem
faltar carinho compreensatildeo e feacute (LIMA ET AL 2012 430 grifo nosso)
Recursos como o acolhimento diurno e noturno quando possiacutevel no caso de CAPS III
associado agrave observaccedilatildeo contiacutenua e agrave responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso indicam a
importacircncia de um cuidado mais intensivo nos momentos de crise Uma estrateacutegia possiacutevel
nesse sentido eacute aumentar a frequecircncia do paciente no serviccedilo para que a equipe possa
acompanhar o caso mais de perto e oferecer suporte antes que a situaccedilatildeo se agrave Isso implica
em uma revisatildeo do Projeto Singular Terapecircutico para construir outros espaccedilos onde o sujeito
possa produzir sauacutede A inclusatildeo de recursos do territoacuterio e espaccedilos no proacuteprio serviccedilo que
possam dar alguma continecircncia agrave desorganizaccedilatildeo e aos sentimentos disruptivos que emergem
na crise tambeacutem eacute uma accedilatildeo fundamental na direccedilatildeo de um cuidado territorial e em liberdade
Outras pesquisas como a de Peireira Saacute e Miranda (2017) indicam a utilizaccedilatildeo da
intensividade do cuidado de forma exitosa permitindo a saiacuteda do estado de crise
O irmatildeo de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora
resultado principalmente do aumento dos dias em que esta permanecia no serviccedilo
da disponibilizaccedilatildeo de um carro para transportaacute-la e da intensificaccedilatildeo dos contatos
dos profissionais com a famiacutelia (ibidem 3738 )
As visitas domiciliares tambeacutem se mostram estrateacutegias muito eficientes nos momentos
de crise em que natildeo eacute possiacutevel para o sujeito ir ateacute o serviccedilo Baseadas em uma tecnologia-leve
e relacional de cuidado tem como suas principais ferramentas a aposta no encontro no viacutenculo
5 Segundo os autores trata-se de um espaccedilo que ldquomanteacutem o usuaacuterio em crise sob acompanhamento intensivo
tendo como premissa soacute recorrer agrave internaccedilatildeo como uacuteltima alternativardquo (LIMA ET AL 2012 429)
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na escuta qualificada e no diaacutelogo Aleacutem disso indicam a importacircncia de dois elementos
fundamentais na loacutegica da atenccedilatildeo psicossocial a intervenccedilatildeo dentro do contexto de vida do
sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) e a disponibilidade de prestar o cuidado
no momento em que ele eacute necessaacuterio
Outro achado da pesquisa de Lima et al (2012) que reflete a potecircncia da tecnologia
vincular no acolhimento agrave crise eacute a percepccedilatildeo dos profissionais que os usuaacuterios mais antigos e
conhecidos pela equipe tecircm menos chances de serem internados em uma situaccedilatildeo de crise do
que os novos Sobre esse aspecto ressaltamos a fala de uma trabalhadora entrevistada
Uma coisa interessante tambeacutem eacute que os pacientes jaacute conhecidos jaacute usuaacuterios haacute algum
tempo os profissionais de referecircncia deles agraves vezes jaacute datildeo conta de alguma forma A
gente observa situaccedilotildees assim os pacientes novos em geral que satildeo encaminhados pra
emergecircncia tecircm um quadro de agitaccedilatildeo e precisam de medicaccedilatildeo Mas outros casos a
gente jaacute consegue controlar sem medicaccedilatildeo pelos viacutenculos mas os que jaacute satildeo da
casa Os que jaacute tecircm um tempo conosco Como a gente tem vivenciado uma coisa que
se prende ateacute a noacutes psiquiatras porque a gente lida muito com a medicaccedilatildeo aquele
paciente sair daquele quadro sem medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431 grifo nosso)
Assim o viacutenculo e a escuta quando bem utilizados possibilitam a estabilizaccedilatildeo do
quadro de crise sem que haja necessidade de se utilizar tecnologias duras como a internaccedilatildeo
ou (leves-duras) como a medicaccedilatildeo Entrar em contato com a crise entendendo o contexto em
que ela ocorre e permitindo que o sofrimento do sujeito se expresse eacute o ponto de partida para
que algum acolhimento possa se dar
Acolher a crise poder escutar que crise eacute essa crise psiquiaacutetrica crise do sujeito
poder escutar o sujeito e aproveitar a crise como sendo a forma que ele tem de se
manifestar ele conseguiu colocar no sintoma aquele sofrimento todo que ele tava
entatildeo aproveitar fazer uma escuta e acolher aquilo antes de vocecirc calar com a
medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431)
A pesquisa de Willrich et al (2013) com profissionais de um CAPS II em Alegrete (RS)
tambeacutem aponta a importacircncia do viacutenculo e da construccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de reciprocidade com
o usuaacuterio como estrateacutegias fundamentais no acolhimento ao momento de crise como indicam
as falas dos trabalhadores participantes desse estudo
Acho que a gente tem que ter esse cuidado quando a pessoa estaacute em crise ter sempre
algueacutem que possa estar intensivamente mais perto (A4) (ibidem659)
A gente vai para desarmar a gente natildeo vai se o cara estaacute irritado violento eu natildeo
vou laacute para provocar a violecircncia nele Pelo contraacuterio eu quero que ele se apoacuteie em
mim para ver se ele consegue desarmar a tal da violecircncia que estaacute na cabeccedila dele Eacute
assim que eu procedo nesses assuntos () aiacute ele vem e ndash Ah disco voador que natildeo
sei o quecirc Eu natildeo vou dizer que natildeo existe disco voador Eu entro na loucura faccedilo
um flerte com a loucura dele para tentar construir um pouco de sauacutede ir construindo
Num primeiro momento natildeo tem como ir contra () Tem coisas que tu natildeo vai
conseguir manejar tem que ter estar junto com outros Aiacute tem que segurar tem que
sentar tem que acalmar (A6) (ibidem 659 grifo do autor)
75
A possibilidade de sustentar estar junto com o usuaacuterio tomando suas anguacutestias como
reais ainda que resultem de uma experiecircncia alucinatoacuteria ou delirante possibilita a construccedilatildeo
de uma relaccedilatildeo de confianccedila entre o profissional e o usuaacuterio A partir desta relaccedilatildeo o serviccedilo
comeccedila a se constituir enquanto um espaccedilo de apoio como uma referecircncia concreta para o
usuaacuterio de onde buscar ajuda nos momentos de crise
A tomada de responsabilidade desse CAPS em relaccedilatildeo agrave crise se transmite tambeacutem na
clareza de que o suporte nesses momentos precisa ser imediato conforme vemos a seguir
A gente sempre procura eacute pedir para as colegas laacute da frente que quando elas atendem
o telefone eacute para perguntar se eacute urgecircncia ou natildeo Se eacute um caso que um paciente estaacute
agredindo o familiar ou coisa a gente tem que largar tudo que estaacute fazendo para ir
atender (A2)( WILLRICH ET AL 2013 659)
Enquanto na pesquisa de Zeferino et al (2016) mencionada anteriormente a primeira
conduta ao atender uma situaccedilatildeo de crise por telefone era orientar a famiacutelia a chamar o SAMU
vecirc-se que neste CAPS a equipe entende as situaccedilotildees de crise como uma missatildeo desse serviccedilo
e por isso como uma prioridade na agenda Essa postura de ldquolargar tudo o que se estaacute fazendo
para ir atenderrdquo indica um compromisso eacutetico muito forte com o cuidado no territoacuterio e com a
desinstitucionalizaccedilatildeo Isso natildeo significa que a equipe natildeo possa avaliar que eacute necessaacuterio
internar mas antes ela busca apropriar do caso e oferecer suporte
A direccedilatildeo da internaccedilatildeo como o uacuteltimo recurso a ser acionado no cuidado conversa
diretamente com a importacircncia de praacuteticas de prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise e de seu
agravamento Nessa linha de pensamento podemos destacar a fala do profissional a seguir
A estrateacutegia que eu sempre penso e que eu sempre falo para o grupo eacute a estrateacutegia da
prevenccedilatildeo Se eu sei que um usuaacuterio estaacute entrando em crise e eu sei porque ele estaacute
todo o dia aqui com a gente desde laacute da recepccedilatildeo ateacute aqui Se eu sei que um usuaacuterio
estaacute com um problema mais seacuterio eu tenho que antecipar isso () se ele comeccedila a ter
problemas a gente tem que intervir () Entatildeo a gente tem que estar sempre de olho
para prevenir o surto () A visatildeo que a gente procura ter e discutir nas reuniotildees de
equipe eacute assim vamos prevenir () Entatildeo eu acho que a prevenccedilatildeo se chegou mal
aqui atende logo Se precisar levar para o pronto-socorro leva porque a gente natildeo
tem psiquiatra 24 horas oito horas aqui Entatildeo tem certas coisas que a gente natildeo pode
nem querer fazer Vai estar chamando o psiquiatra entatildeo leva para o pronto-socorro
que estaacute ali o carro estaacute aqui Se natildeo estiver vem a ambulacircncia de laacute Se toma uma
atitude para evitar (A3) (WILLRICH ET AL 2013 660 grifo nosso)
Gostariacuteamos de acrescentar que embora seja importante prestar o cuidado de forma
imediata nos momentos de crise evitando que a situaccedilatildeo se agrave devemos estar atentos para
que a direccedilatildeo de prevenir natildeo se transforme em uma caccedila agraves bruxas aos sintomas O objetivo
final natildeo pode ser medicar conter e internar para ldquoprevenirrdquo A direccedilatildeo de cuidado precisa
continuar sendo a autonomia do sujeito e a produccedilatildeo de sua sauacutede
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Desse modo trabalhar na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise significa primeiramente
trabalhar em rede Natildeo se espera que um serviccedilo sozinho seja capaz de prevenir uma crise mas
o serviccedilo reconhecendo seus limites pode identificar e lanccedilar matildeo de outros recursos do
territoacuterio para compor uma rede de cuidados que verdadeiramente ampare o sujeito Logo saber
que o serviccedilo ldquonatildeo dispotildee de psiquiatra 24hrsrdquo e que natildeo funciona aos finais de semanas e no
periacuteodo noturno satildeo pontos que exigem dos profissionais a responsabilizaccedilatildeo do cuidado
atraveacutes da construccedilatildeo de uma articulaccedilatildeo em rede
O pronto-acolhimento indicado na fala ldquose chegou mal aqui atende logordquo a articulaccedilatildeo
em rede acompanhando o paciente em outros serviccedilos como o pronto-socorro se necessaacuterio a
revisatildeo do PTS (Projeto Terapecircutico Singular) a realizaccedilatildeo de visitas domiciliares e a
disponibilidade de cuidar da crise nos espaccedilos onde ela surge satildeo elementos que aparecem nos
artigos estudados como fundamentais no acolhimento integral agraves situaccedilotildees de crise
Outro ponto mencionado eacute o trabalho em equipe especialmente quando a situaccedilatildeo eacute
grave e pode ocasionar riscos para o profissional ou para terceiros A maioria dos profissionais
indicou ser importante natildeo estar sozinho na abordagem ao paciente em crise
Quando eacute muito assim arriscado eu natildeo vou sozinha Porque olha os casos assim
que eu natildeo estou conseguindo fazer grupo que estaacute muito nervoso que ele estaacute vendo
alguem em mim enfim eu procuro compartilhar isso com algum dos colegas Porque
dai se precisar manejar a gente maneja de dois e melhor que manejar de um [A6]
Eu acho que eacute soacute com cautela Nunca ir sozinha quando vecirc que haacute um risco de perigo
sempre levar mais algueacutem [A23]
Porque aqui a gente tem muita [] todos ajudam Entatildeo quando um estaacute um usuaacuterio
estaacute em surto geralmente todo mundo vem ajudar (WILLRICH J Q ET AL 201156-
57 grifos nossos)
Conforme ressaltam os autores ldquoessas accedilotildees contribuem para a construccedilatildeo de um olhar
que respeita a individualidade e valoriza a subjetividade rdquo (WILLRICH ET AL 2013 662)
Assim acolher eacute mais do que ldquoabrir as portas do serviccedilo para a permanecircnciardquo eacute construir uma
relaccedilatildeo de confianccedila com o usuaacuterio tecer uma rede que o ampare no territoacuterio trabalhar de
forma multidisciplinar e acolher o sofrimento do outro como vaacutelido entendendo-o como parte
da sua experiecircncia e do seu contexto de vida
43 ORGANIZACcedilAtildeO DA REDE DE CUIDADOS
A luta pela superaccedilatildeo do aparato manicomial disparada pela Reforma Psiquiaacutetrica
implica nos serviccedilos da Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial (RAPS) a transformaccedilatildeo efetiva da
assistecircncia agraves pessoas em situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico Acreditamos nesse sentido ser
fundamental a possibilidade de construccedilatildeo de uma rede coesa e bem articulada que possa
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efetivamente substituir o hospital psiquiaacutetrico dispensando a necessidade de centralizaccedilatildeo do
cuidado em um soacute serviccedilo evitando os efeitos negativos jaacute apontados na literatura que uma
instituiccedilatildeo total6 acarreta na vida dos indiviacuteduos agrave ela submetidos
Pensando na organizaccedilatildeo da rede algumas questotildees que pretendemos investigar nesse
capiacutetulo satildeo qual eacute o grau de acessibilidade dos serviccedilos aos sujeitos em crise Quais satildeo suas
maiores barreiras de acesso O que favorece e o que desfavorece a continuidade da linha de
cuidado Como os serviccedilos enxergam seu papel na rede Como se daacute a integraccedilatildeo entre os
serviccedilos no acolhimento aos casos de crise Como eacute a integraccedilatildeo dos serviccedilos com a rede
intersetorial e com os dispositivos do territoacuterio
Vista dessa forma a atenccedilatildeo agrave crise representa um ponto de amarraccedilatildeo de diversas
estrateacutegias propostas pela PNSM sendo um importante analisador das possibilidades de
conexotildees da rede suas articulaccedilotildees com os recursos assistenciais e com os recursos do
territoacuterio sua acessibilidade e seu grau de permeabilidade diante das reais necessidades de
sauacutede das pessoas Considerando que a Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo em construccedilatildeo
cabe discutir quais satildeo os desafios que os serviccedilos encontram para acolher a crise no territoacuterio
uma vez que cada vez mais o hospital tem se tornando um ponto de ldquoescoamentordquo dos fracassos
da rede
Pensando nos aspectos que podem figurar como barreiras de acesso aos usuaacuterios no
SUS uma primeira questatildeo que surge eacute a demora para conseguir iniciar um tratamento Com
base na literatura estudada vaacuterias pesquisas como as dos autores Bonfada et al (2013) Conte
et al (2015) e Pereira Saacute e Miranda L (2014) apontam para a existecircncia de grandes filas de
espera para iniciar o tratamento mesmo nos casos de crise
Conte et al (2015) comentam que as imensas filas de espera satildeo o resultado de um
enorme deacuteficit de profissionais Aleacutem do quantitativo dos profissionais ser insuficiente para
suprir a rede natildeo haacute contrataccedilatildeo temporaacuteria para os casos de licenccedila feacuterias ou afastamento por
motivo de doenccedila Uma das profissionais entrevistada nesse estudo retrata esse quadro
comentando o impacto disso no cuidado ldquovia de regra a gente telefona explica sensibiliza o
colega e ouve olha me desculpa soacute que eu estou com uma lista de espera imensa eu sou soacute
uma A colega entrou de feacuterias e a outra em licenccedila maternidaderdquo (CONTE ET AL 2015
1746)
6 Ver Goffman (2001)
78
Na praacutetica a demora no acesso aos serviccedilos faz com que os usuaacuterios soacute consigam ser
acolhidos quando a situaccedilatildeo jaacute eacute muito grave Bonfada el al (2013) expressam esse aspecto
atraveacutes da fala de um trabalhador do serviccedilo de emergecircncia do SAMU Segundo esse
entrevistado ldquo a populaccedilatildeo natildeo tem acesso aos serviccedilos de psiquiatria Entatildeo os doentes entram
em crise pra poder ter o acesso ao serviccedilo de psiquiatria (E1)rdquo (BONFADA ET AL 2013 230)
Mesmo nos casos de crise os serviccedilos ainda encontram dificuldades para oferecer um pronto-
atendimento Pereira Saacute e Miranda L (2014) pontuam que todos os usuaacuterios participantes de
sua pesquisa ldquoesperaram ao menos uma semana para serem consultados nos serviccedilos mesmo
nas situaccedilotildees de criserdquo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2140)
Conte et al (2015) discutem que a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se
estabelecer uma classificaccedilatildeo de risco na lista de espera contribui ainda mais para dificuldade
de acesso e para a sensaccedilatildeo de impotecircncia e sofrimento dos profissionais diante da demanda
natildeo atendida
Inadequaccedilotildees da estrutura fiacutesica dos serviccedilos tambeacutem satildeo apontadas como barreiras de
acesso Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014)
Natildeo haacute adaptaccedilatildeo do preacutedio para uso de pessoas com necessidades especiais e
tampouco disponibilidade de automoacutevel (ibidem 2150)
O fato de hoje existir uma fila de espera para os primeiros atendimentos tambeacutem eacute
atribuiacutedo a falta de espaccedilo fiacutesico Haacute apenas duas salas pequenas o que prejudica a
realizaccedilatildeo de atividades grupais (ibidem 2150)
Em pesquisa sobre a atuaccedilatildeo do SAMU na cidade de Natal Brito Bonfada e Guimaratildees
(2015) mencionam a falta de ambulacircncias como um dos principais fatores que resultam em
longas filas de espera para os chamados natildeo urgentes e demora mesmo nos chamados urgentes
Percebeu-se que o nuacutemero de ambulacircncias disponiacuteveis ao atendimento da populaccedilatildeo
municipal eacute insuficiente em vaacuterias situaccedilotildees Os chamados superam a capacidade
operacional de atendimento do Samu-Natal gerando longa fila de espera e demora no
atendimento dos chamados natildeo classificados em coacutedigo vermelho ou seja
prioritaacuterios(ibidem 1297)
A superlotaccedilatildeo dos serviccedilos a inadequaccedilatildeo e insuficiecircncia dos equipamentos os deacuteficits
de equipe e as inadequaccedilotildees estruturais tambeacutem satildeo apontados como aspectos que fragilizam
os serviccedilos impossibilitam as accedilotildees no territoacuterio e a integralidade do cuidado especialmente
nos casos mais sensiacuteveis que requerem mais recursos
Algumas dificuldades praacuteticas parecem contribuir para as deficiecircncias percebidas nos
serviccedilos de sauacutede mental entre elas o nuacutemero insuficiente de equipamentos que leva
os existentes a se sobrecarregarem com uma aacuterea de abrangecircncia superior agravequela com
a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido nuacutemero e a escassa
variedade de profissionais que limitam as possibilidades de articulaccedilatildeo de accedilotildees
muacuteltiplas e criativas Em decorrecircncia dessas deficiecircncias a que muitas vezes se soma
79
a total inadequaccedilatildeo da estrutura fiacutesica os serviccedilos ficam fragilizados e assim
impossibilitados de promover accedilotildees territoriais e integrais de cuidado como
acolhimento agrave crise envolvimento da famiacutelia no tratamento e estrateacutegias de
reabilitaccedilatildeo psicossocial (MACHADO SANTOS 2013 710)
No que se refere agrave capacidade dos serviccedilos favorecerem a continuidade do cuidado
prestado no estudo de Conte al (2015) com idosos que tentaram o suiciacutedio na rede de Porto
Alegre (RS) observamos que accedilotildees fragmentadas diagnoacutesticos apressados e ofertas de cuidado
riacutegidas e padronizadas produziram o abandono do tratamento em alguns casos e a fragilizaccedilatildeo
do viacutenculo com o serviccedilo em outros Importante dizer que todos os idosos procuraram ajuda e
tinham os serviccedilos territoriais como referecircncias para sua sauacutede
Em uma das histoacuterias a paciente com diagnoacutestico de depressatildeo foi encaminhada para
um grupo terapecircutico no ambulatoacuterio poreacutem o aumento do nuacutemero dos participantes no grupo
comeccedilou a lhe provocar desconforto ldquoNo iniacutecio era bom mas depois vinham muitos
[participantes] cada um levava muitos problemas Agraves vezes tu ia[s] laacute numa boa e saias ruimrdquo
(CONTE ET AL 20151743 grifo do autor)
Por conta disso e das frequentes trocas de profissionais de referecircncia essa senhora
abandonou o tratamento iniciando a partir daiacute um circuito de sucessivas internaccedilotildees e uma
tentativa de suiciacutedio No momento em que a paciente deixou de frequentar o grupo o
ambulatoacuterio natildeo se ocupou de fazer-lhe uma visita domiciliar ou tentar contato o que poderia
ter evitado o abandono do tratamento e a posterior tentativa de suiciacutedio Por conta proacutepria a
paciente buscou ajuda e se inseriu na associaccedilatildeo do bairro que promovia atividades de lazer
(churrascos bailes e jogos) conseguindo por meio desse recurso superar a falta de vontade de
viver
Embora essa histoacuteria tenha um desfecho positivo chama atenccedilatildeo a falta de
responsabilidade do serviccedilo sobre a linha de cuidado dessa paciente Diante do fato dessa
senhora natildeo se ldquoencaixarrdquo mais no grupo o ambulatoacuterio natildeo pode ofertar-lhe um outro espaccedilo
de suporte deixando-a desassistida Isso mostra a rigidez e padronizaccedilatildeo dos espaccedilos de
cuidado desse serviccedilo que colocou sobre uma paciente fragilizada a responsabilidade integral
do seu cuidado
Em outro caso o desfecho natildeo foi tatildeo positivo Um senhor com adiccedilatildeo em jogos aacutelcool
e cigarro apoacutes vaacuterias tentativas de tratamento em serviccedilos diferentes recebia ldquoaltardquo por natildeo
aceitar ficar abstinente Segundo o mesmo ldquoSe eu tiver que parar como trago eu natildeo vou me
tratar Antidepressivo e bebida natildeo combinamrdquo (CONTE et al 2015 1744)
80
Em outra ocasiatildeo surgiu a possibilidade de ingressar em um CAPSad para realizar
tratamento do alcoolismo () Poreacutem mais uma vez ele natildeo parou de beber o que
impediu sua adesatildeo ao tratamento Novamente teve alta do tratamento porque natildeo se
enquadrava nos criteacuterios exigidos pelo serviccedilo (CONTE et al 2015 1744)
Ainda que a poliacutetica atual no tratamento de casos de drogadiccedilatildeo seja a Poliacutetica de
Reduccedilatildeo de Danos os serviccedilos em questatildeo parecem desconhecer ou resistir agrave essa alternativa
A rigidez das ofertas de cuidado impostas agrave esse senhor terminaram por deixaacute-lo em completo
abandono impossibilitando qualquer modalidade de tratamento
A Reduccedilatildeo de Danos uma vez que natildeo impotildee a abstinecircncia como condiccedilatildeo do
tratamento poderia ser um caminho na direccedilatildeo de cuidar do abuso do uso do aacutelcool e da melhora
da qualidade de vida desse paciente No entanto a inflexibilidade dos serviccedilos em repensar suas
ofertas de cuidado de modo a considerar as escolhas desejos limites e possibilidades de quem
procura ajuda resultaram na perda do tratamento e na posterior internaccedilatildeo desse idoso pela
famiacutelia em um asilo
O terceiro idoso dessa pesquisa ao deparar-se com adoecimento da esposa que tinha
Alzheimer e com a falta de ajuda dos familiares para lidar com essa situaccedilatildeo tomou para si o
seu cuidado o que ao longo dos anos lhe trouxe um vasto desgaste emocional Segundo os
autores ldquoO cansaccedilo emocional agravado pela descoberta de um tumor na proacutestata o levou agrave
primeira tentativa de suiciacutediordquo (CONTE et al 2015 1744) Na ocasiatildeo esse senhor foi levado
a um pronto-socorro onde foi submetido a uma lavagem estomacal
O peso dos cuidados em relaccedilatildeo agrave esposa somados agrave falta de apoio familiar e a problemas
financeiros motivaram a segunda tentativa de suiciacutedio ldquoEu comprei uma corda Por causa da
desajuda e da pobrezardquo (ibidem 1746) Felizmente o filho chegou na casa agrave tempo e
conseguiu evitar o enforcamento
Apoacutes essa tentativa esse idoso foi internado em um hospital onde recebeu o diagnoacutestico
de Transtorno de Personalidade Nota-se entretanto que a ecircnfase atribuiacuteda ao diagnoacutestico e as
orientaccedilotildees dadas aos familiares em decorrecircncia dele parecem ter contribuiacutedo mais para o
afastamento da famiacutelia do que para o sucesso do manejo cliacutenico de sua condiccedilatildeo Segundo os
pesquisadores ldquoOs filhos passaram a vecirc-lo como manipulador e mal intencionado
interpretavam as tentativas de suiciacutedio como um ato de covardia pra mobilizar culpa na famiacutelia
tornando-se mais hostis em relaccedilatildeo ao pairdquo (CONTE et al 2015 1744)
Durante a entrevista com os pesquisadores esse senhor referiu ldquosentimento de solidatildeo
e sofrimento com a falta de afeto dos filhos Todos os dias eacute muito triste Eu vejo [nora neta
81
filhos] e natildeo falo com ningueacutemrdquo (CONTE et al 2015 1744) aleacutem de sentimentos de desvalia
ldquoEstou virado num resto num lixordquo (ibidem) No momento da pesquisa mantinha viacutenculo com
o serviccedilo apenas para renovar a receita da medicaccedilatildeo
Observamos nesse caso que as accedilotildees de cuidado se restringiram a intervenccedilotildees pontuais
e fragmentadas tendo o modelo biomeacutedico de ldquoqueixa-condutardquo como referecircncia Quando a
tentativa de suiciacutedio se deu por ingestatildeo de medicaccedilatildeo a accedilatildeo da equipe foi cuidar apenas do
corpo fiacutesico realizando uma lavagem estomacal As questotildees existenciais que motivaram a
tentativa de suiciacutedio natildeo foram abordadas e nenhum encaminhamento foi feito para a
continuidade do cuidado Apoacutes a segunda tentativa de suiciacutedio novamente o foco do tratamento
segue o modelo medicalocecircntrico priorizando o diagnoacutestico nosograacutefico e a medicalizaccedilatildeo dos
sintomas ldquoOs sintomas dos idosos foram considerados uma forma de ldquochamar atenccedilatildeordquo e com
isso obter ganhos secundaacuterios banalizando assim o pedido de ajuda contido nos atos
desesperadosrdquo (CONTE et al 2015 1745)
No caso desse senhor o diagnoacutestico serviu apenas para fragilizar ainda mais sua rede
de apoio uma vez que os familiares passaram a vecirc-lo como ldquomanipulador e mal intencionadordquo
A falta de um Projeto Terapecircutico Singular que considerasse seu contexto de vida seus afetos
sua rede familiar e social contribuiu para o agravamento do sentimento de abandono e solidatildeo
favorecendo o risco de uma nova tentativa de suiciacutedio O uacutenico tratamento ofertado pelo serviccedilo
foi o medicamentoso e ficou niacutetida sua insuficiecircncia visto que ao ser entrevistado esse idoso
referiu sentir-se sozinho ter um cotidiano triste e esvaziado
A dificuldade de se pensar espaccedilos de cuidado baseados em tecnologias leves como o
acolhimento e o viacutenculo as oficinas padronizadas e sem perenidade agrave subjetividade do outro
aleacutem de accedilotildees emergenciais e isoladas no momento de crise satildeo apontados pelos autores como
fatores que contribuem para o abandono do tratamento quebra ou fragilizaccedilatildeo da linha de
cuidado
Estudos anteriores (Rosa 2011 Merhy 2007) evidenciaram que ao se depararem
com essas dificuldades inerentes agrave condiccedilatildeo crocircnica os profissionais do serviccedilo
podem ldquodesistirrdquo ou se desobrigar do trato do paciente ldquodifiacutecilrdquo supostamente
refrataacuterio ou ldquonatildeo responsivordquo agrave terapecircutica Em alguns momentos parece haver um
esforccedilo no sentido de ajustar o paciente ao serviccedilo e natildeo o contraacuterio como seria
desejaacutevel (Rosa2011) (MACHADO SANTOS 2013704)
Vecirc-se com isso que crise ainda eacute ldquoa crise do pacienterdquo e raramente os serviccedilos
conseguem eles proacuteprios se colocarem em crise e repensar suas ofertas e modos de cuidado A
interrupccedilatildeo e o abandono do tratamento satildeo vistos como uma dificuldade de ldquoadesatildeordquo do
82
usuaacuterio que nada tem a ver com a forma como os serviccedilos estatildeo pensando e organizando o seu
cuidado Pensando sobre a correspondecircncia entre as necessidades de sauacutede das pessoas e as
ofertas de cuidado os serviccedilos parecem natildeo perceberem o abandono ou interrupccedilatildeo do
tratamento como um analisador de suas praacuteticas Diante do natildeo enquadramento do usuaacuterio ao
modelo de intervenccedilatildeo oferecido os serviccedilos se comportam como se pouco tivessem a oferecer
O estudo de Machado e Santos (2013) aponta para resultados que confirmam esse
problema No CAPS estudado as oficinas e atividades satildeo vistas como parte de um certo
funcionamento burocraacutetico institucional as falas dos pacientes revelam a falta de sentido dessa
rotina onde as atividades parecem existir meramente para legitimar a instituiccedilatildeo preenchendo
um tempo
Vou todo dia mais tem pouca atividade Fico o dia inteiro fazendo nada deitada
Num gosto disso queria participaacute de mais atividade mais num tem vagardquo (E10)
(MACHADO SANTOS 2013 707)
Laacute no serviccedilo que eu trato eles num trabalham eles num ensinam trabalhaacute Eles potildee
laacute os paciente pra ficaacute comendo e bebendo dormindo e o dinheiro deles tudo mecircs
vem na conta O salaacuterio dos paciente vem na conta deles que eacute o benefiacutecio o dinheiro
dos funcionaacuterio vem na conta deles eacute igual aquele ditado que fala ldquoeles finge que
trabalha e eles fingem que satildeo tratadosrdquo Eacute eles tratam que nem robozinho eu pego
o cartatildeo o doutor prescreve a receita pego meu remeacutedio ndash meu tratamento eacute esse
(E8) (ibidem 707)
Outros autores tambeacutem falam de um funcionamento burocratizado do serviccedilo No
estudo de Pereira Saacute e Miranda (2014) vemos que os adolescentes do CAPSi questionam o
sentido de algumas atividades mas ainda assim essas questotildees parecem natildeo surtir efeitos sobre
o modo como a equipe pensa e organiza o cuidado
Importante notar o fato de os adolescentes terem de se adaptar aos grupos sem que
eles sejam pensados mediante a necessidade de cada um deles e das mudanccedilas vividas
ao longo do tempo Diante da insatisfaccedilatildeo dos adolescentes com as atividades os
profissionais natildeo satildeo levados a revecirc-las continuam enfatizando a necessidade de que
frequentem o serviccedilo ldquoa qualquer custordquo Todos relataram a frequente necessidade de
realizar um difiacutecil ldquotrabalhordquo de convencimento para que os adolescentes aceitem
estar no serviccedilo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2151)
Destacamos ainda a fala de uma profissional do serviccedilo que afirma que ldquoO CAPSi natildeo
tem muito mais a oferecer do que um atendimento individual em grupo um suporte agrave famiacutelia
e um suporte meacutedico medicamentosordquo (profissional do serviccedilo) (ibidem 2151) Fica evidente
nesse sentido a limitaccedilatildeo do serviccedilo em repensar suas ofertas de cuidado de modo que a
ldquoadesatildeordquo natildeo seja uma conquista agrave base de uma imposiccedilatildeo mas da produccedilatildeo de um espaccedilo que
faccedila sentido para o usuaacuterio e que lhe proporcione verdadeiramente a sensaccedilatildeo de acolhimento
83
Outro ponto importante no que diz respeito agrave quebra da continuidade do tratamento eacute a
fragmentaccedilatildeo da proacutepria equipe no processo de trabalho Sobre esse aspecto Pereira Saacute e
Miranda (2014) destacam
A equipe eacute ldquodividida por diasrdquo de maneira que cada profissional trabalha dois turnos
aleacutem da reuniatildeo de equipe Cada grupo de usuaacuterios comparece ao serviccedilo apenas num
dia especiacutefico quando encontra seu teacutecnico de referecircncia e sua miniequipe Isso leva
os profissionais a realizarem um trabalho dividido em blocos o que resulta em um
CAPSi de segunda feira e outro de terccedila feira impedindo o compartilhamento de
atuaccedilotildees entre miniequies conhecimento dos usuaacuterios dos serviccedilos aleacutem de restringir
as ofertas terapecircuticas(ibidem 2149)
Cada usuaacuterio tem um teacutecnico de referecircncia e comparece no serviccedilo no dia em que seu
teacutecnico estaacute contando tambeacutem com o suporte da mini-equipe do dia que na ausecircncia do
profissional de referecircncia satildeo os profissionais com mais apropriaccedilatildeo sobre o caso O cuidado
eacute organizado entatildeo de modo que todos os profissionais de referecircncia do usuaacuterio estatildeo
concentrados em um uacutenico dia da semana o dia em que o paciente vai ao serviccedilo Esse eacute um
funcionamento muito comum nos CAPS que entretanto dificulta profundamente o
compartilhamento dos casos
Quando pensamos em uma situaccedilatildeo de crise sabemos que os pacientes natildeo iratildeo respeitar
os dias e escalas dos profissionais de referecircncia para entrar em crise Entatildeo essa divisatildeo dos
usuaacuterios em dias preacute-determinados aleacutem de limitar o Projeto Terapecircutico agraves oficinas realizadas
naqueles dias tambeacutem restringe a capacidade do serviccedilo de se constituir efetivamente enquanto
um ponto de referecircncia na crise pois os profissionais que natildeo tecircm contato com o caso
dificilmente conseguiratildeo ofertar o suporte que esses pacientes necessitam no momento da crise
Aleacutem da fragmentaccedilatildeo do processo de trabalho no interior dos serviccedilos observamos
tambeacutem uma fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e a RAPS Constatamos a partir da
literatura que na maior parte das vezes o contato entre os serviccedilos eacute feito por telefone ou por
encaminhamento escrito entregue diretamente ao usuaacuterio Fica portanto agrave cargo do usuaacuterio a
chegada agrave um outro serviccedilo de modo que a passagem de caso fica prejudicada e o usuaacuterio fica
muitas vezes desassistido no periacuteodo de transiccedilatildeo entre um serviccedilo e outro isto quando natildeo
acaba por desistir do tratamento
Nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e os hospitais observamos que embora a gravidade
envolvida seja maior o compartilhamento do cuidado parece ainda mais difiacutecil Ao discutir a
internaccedilatildeo de uma paciente do CAPSi no hospital geral Pereira Saacute e Miranda (2014) ressaltam
que embora a paciente tenha ficado dez dias internada no hospital natildeo houve comunicaccedilatildeo
84
entre os dois serviccedilos e o CAPSi foi informado da internaccedilatildeo pela proacutepria famiacutelia da paciente
via telefone
Essa dificuldade de interlocuccedilatildeo entre CAPS e hospital eacute apontada tambeacutem no estudo
de Zeferino el al (2016) Segundo os profissionais entrevistados nessa pesquisa
o usuaacuterio e a famiacutelia em crise satildeo levado a um Hospital psiquiaacutetrico e fica afastado
do CAPS por longos periacuteodos() Em alguns casos a famiacutelia jaacute interna o usuaacuterio e soacute
comunica a equipe do CAPS posteriormente [] (ZEFERINO ET AL 2016spg)
Para aleacutem dos casos em que o hospital natildeo comunica a equipe de referecircncia sobre a
internaccedilatildeo de seus usuaacuterios observamos que tambeacutem os CAPS raramente costumam
acompanhar os usuaacuterios que encaminham para o hospital de modo que quem perde eacute o paciente
pois vive a quebra do viacutenculo terapecircutico com a equipe de referecircncia e continua passando pelas
crises sozinho no hospital Sobre esse aspecto Pereira Saacute e Miranda (2014) comentam
Fazendo um balanccedilo geral dos itineraacuterios construiacutedos pode-se perceber que o CAPSi
apresenta dificuldades no planejamento e construccedilatildeo de accedilotildees conjuntas em que
compartilhe outras instacircncias a responsabilidade pelo cuidado dos adolescentes em
crise Eacute bastante raro por exemplo que os profissionais do CAPSi de fato
acompanhem os adolescentes no Hospital Geral Como justificativa para esse cenaacuterio
todos sublinham dificuldades de contato advindas de problemas com os telefones ou
ausecircncia de um carro proacuteprio o que dificultaria o transporte no caso de uma situaccedilatildeo
de maior gravidade que pudesse acontecer no CAPSi (ibidem 2152)
Embora a falta de estrutura possa de fato dificultar a integraccedilatildeo entre os serviccedilos
percebemos que deixar o hospital se ocupar da crise tem sido praacutetica recorrente nos diversos
serviccedilos da rede Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014) nos sujeitos que participaram de sua
pesquisa o hospital geral teve papel central em todos os casos
A equipe do CAPSi entende que o Hospital Geral natildeo eacute o local ideal para as
internaccedilotildees em sauacutede mental Apesar disso atribuem ao suporte medicamentoso agrave
possiacutevel contenccedilatildeo fiacutesica e aos cuidados relativos agrave sauacutede geral a justificativa para
encaminharem ao Hospital Geral os pacientes (ibidem 2150)
O apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises leves podem
ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o hospital Essa eacute
uma direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima absolutamente o
papel do CAPS frente agrave crise
Sabemos que haacute alguns limites na capacidade dos CAPS visto que nem todos satildeo do
tipo III e que alguns serviccedilos sequer tecircm a equipe completa e o aparato estrutural miacutenimo para
funcionar Poreacutem chama atenccedilatildeo a naturalizaccedilatildeo da centralidade da rede em torno do hospital
Um exemplo claro disso aparece na fala de uma profissional desse estudo que orienta a famiacutelia
a levar a paciente ao hospital ldquofrente agrave qualquer intercorrecircnciardquo (PEREIRASAacuteMIRANDA
85
2014 2154) como se o CAPSi natildeo tivesse nenhuma responsabilidade sobre a crise de seus
pacientes
Encaminhamentos precipitados e irrefletidos ao hospital ainda constituem uma praacutetica
muito natural na rede o que coloca o CAPS na posiccedilatildeo de serviccedilo complementar e natildeo
substitutivo ao hospital Vemos que mesmo os profissionais do CAPS ainda contam com o
hospital como se a internaccedilatildeo pudesse proporcionar uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
No estudo de Zeferino el al (2016) um dos profissionais entrevistados ressalta ldquoO
usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao hospital geral para a estabilizaccedilatildeo retornando
ao CAPS assim que estiver compensado para a continuidade do seu tratamento (E1 A92 -
CAPS II)rdquo (spaacuteg)
A centralidade do fluxo das situaccedilotildees de crise para o hospital eacute praacutetica comum tambeacutem
no trabalho do SAMU Embora o SAMU tenha se constituiacutedo enquanto um recurso da rede de
assistecircncia agrave urgecircnciaemergecircncia apoacutes a Reforma Psiquiaacutetrica vemos que o modo de trabalhar
desse serviccedilo ainda eacute muito orientado pela loacutegica biomeacutedica Segundo Brito Bonfada e
Guimaratildees (2015) em pesquisa com a rede de SAMU da cidade de Natal
A partir das fichas de atendimento disponiacuteveis no sistema eletrocircnico de ocorrecircncias
do Samu-Natal observa-se que entre os meses de janeiro a marccedilo de 2010 ocorreram
314 chamadas para urgecircncias em sauacutede mental das quais 74 foram finalizadas
com o transporte para o Hospital Colocircnia Joatildeo Machado hospital psiquiaacutetrico do
municiacutepio de Natal-RN (ibidem 1301 grifo nosso )
Esse nuacutemero eacute confirmado tambeacutem pelas falas dos profissionais
Surto droga alcoolismo tudo leva para laacute a gente trabalha com o Joatildeo Machado
(Entrevistado 24) (ibidem 1302 grifo nosso)
Noacutes natildeo temos muito contato com o CAPS (Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial) A gente pega o
paciente ou na residecircncia ou em via puacuteblica e transfere para o Joatildeo Machado (Entrevistado 24)
(ibidem 1303)
Na realidade as nossas urgecircncias psiquiaacutetricas satildeo muito mais transporte Vocecirc vai
laacute conteacutem o doente e o transporta para hospital psiquiaacutetrico (Entrevistado 1) (ibidem
1302)
Percebemos que essa direcionalidade ao hospital sem levar em conta as possibilidades
assistenciais oferecidas pela rede tem relaccedilatildeo com a maneira como os serviccedilos entendem a
Reforma Psiquiaacutetrica e consequentemente como enxergam seu papel na rede Nesse ponto no
que compete ao SAMU fica clara a desorientaccedilatildeo desse serviccedilo no seu papel diante das crises
Na verdade eu sempre fui contra o Samu atender esse tipo de chamado Eu acho que
deveria existir um setor no hospital psiquiaacutetrico aqui de Natal responsaacutevel por isso
(Entrevistado 2) (BONFADA ET AL 2013 1307)
O Samu natildeo deveria fazer esse serviccedilo acho que deveria ser a poliacutecia militar
(Entrevistado13) (ibidem 1307)
86
Muitas vezes o doente psiquiaacutetrico corre muito mais risco porque a nossa rotina eacute
deixar em segundo plano a urgecircncia psiquiaacutetrica (Entrevistado 1) (ibidem 1308)
No que diz respeito agrave concepccedilatildeo que os profissionais possuem acerca da Reforma
Psiquiaacutetrica os entrevistados parecem acreditar que trata-se de uma Poliacutetica Puacuteblica restrita ao
campo juriacutedico e burocraacutetico poreacutem sem muitas implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos
A Poliacutetica Nacional de sauacutede mental eacute perfeita no papel na praacutetica natildeo estaacute
funcionando e para funcionar vai ser muito difiacutecil (E10)
Para ser muito franca ateacute agora na praacutetica natildeo vi essa reforma acontecer Natildeo acredito
natildeo nessa reforma (E7)
Na maioria das vezes isso natildeo funciona esse negoacutecio de CAPS e tudo mais porque
o proacuteprio paciente natildeo vai aiacute a famiacutelia tambeacutem natildeo tem como levaacute-lo a forccedila Entatildeo
isso aiacute natildeo taacute dando muito resultado natildeo Talvez fosse o caso de fazer o proacuteprio CAPS
mesmo como uns hospitais psiquiaacutetricos (E3)
Esse paciente quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial acaba
negligenciando o proacuteprio tratamento Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em
um hospital internado seria muito mais eficaz pois eacute um tratamento continuado
(E20) (inserir ref ndash as falas dos entrevistados aparecem assim todas juntas Se for
basta a ref ao final ndash autor ano paacutegina) ( BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2013230-231)
A falta de conhecimento sobre o papel dos serviccedilos substitutivos aleacutem das criacuteticas agrave
Reforma Psiquiaacutetrica e as sugestotildees de internaccedilatildeo dos pacientes satildeo fortes indiacutecios de que o
modelo hospitalocecircntrico concebido pela Psiquiatria Claacutessica ainda permanece vivo no ideaacuterio
desses profissionais como referecircncia de qualidade da assistecircncia em sauacutede mental A ideia de
que a RPB eacute perfeita no papel mas que na praacutetica natildeo funciona revela um entendimento
bastante ingecircnuo de que as poliacuteticas por si soacute teriam o efeito de mudar a assistecircncia quando os
profissionais continuam agindo orientados pela loacutegica manicomial
Uma ferramenta que tem sido apontada como capaz de construir e fortalecer a
integralidade da rede e a coordenaccedilatildeo do cuidado eacute o apoio matricial O apoio matricial pode
se dar via CAPS ou via NASF contribuindo para ampliar a resolutividade da Atenccedilatildeo Baacutesica
favorecendo a prevenccedilatildeo dos casos de crise e diluindo a centralidade do CAPS nos casos de
sauacutede mental
Considerando que um dos fortes obstaacuteculos dos CAPS eacute o centramento em si mesmos
fenocircmeno identificado na IV Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental e denominado
ldquoencapsulamentordquo
Ao articular rede o apoio matricial se inclina contra o ldquoencapsulamentordquo e esse tipo
de substituiccedilatildeo total produzindo um efeito reorganizador das demandas de sauacutede
mental na rede com melhor distribuiccedilatildeo e adequaccedilatildeo dos usuaacuterios dentro dos pontos
de assistecircncia em sintonia com suas demandas evitando que todas elas sejam
dirigidas ao CAPS superlotando-o Possibilitando melhor compreensatildeo e
diferenciaccedilatildeo das situaccedilotildees que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem
ser acolhidas eou acompanhadas pela ESF como refletem Bezerra e Dimenstein o
87
matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistecircncia em sauacutede mental
(LIMA DIMENSTEIN 2016 629)
Segundo Lima e Dimenstein (2016) a ESF tem meios de ldquo[] interferir em situaccedilotildees
que transcendem a especificidade do setor sauacutede e tecircm efeitos determinantes sobre as condiccedilotildees
de vida e sauacutede dos indiviacuteduos famiacutelias-comunidaderdquo (ibidem 65) Considerando sua
proximidade com o territoacuterio a ESF eacute um importante recurso na identificaccedilatildeo dos casos de crise
que natildeo chegam aos serviccedilos podendo oferecer atraveacutes do apoio matricial em sauacutede mental o
suporte e o encaminhamento para serviccedilos mais complexos quando necessaacuterio
Outra ferramenta importante na construccedilatildeo da integralidade das redes sobretudo das
redes que vatildeo para aleacutem dos serviccedilos de sauacutede eacute a praacutetica de Acompanhamento Terapecircutico
O AT tem a missatildeo de resgatar a cidadania e o direito de usufruir da vida em casos de pessoas
que foram sistematicamente excluiacutedas da sociedade devido ao seu processo de adoecimento
Sua atuaccedilatildeo visa promover a autonomia do sujeito ampliando sua circulaccedilatildeo pelo territoacuterio e
tecendo redes de cuidado que contam tambeacutem com dispositivos de cultura e lazer
Segundo Fiorati e Saeki (2008) o AT
por ser uma praacutetica cliacutenica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaccedilos
institucionais e tradicionais de tratamento e ser realizada sobretudo nos espaccedilos
puacuteblicos no ambiente domiciliar e social do paciente representaria um caminho
potencial de inserccedilatildeo em redes sociais e movimento de inclusatildeo social (ibidem 764)
Na pesquisa citada acima o AT atuou como um intercessor entre o espaccedilo de cuidado
proporcionado pelos serviccedilos e os dispositivos terapecircuticos do territoacuterio O cuidado se deu nos
serviccedilos mas tambeacutem na vida na rua atraveacutes de cursos de jardinagem desenho capacitaccedilatildeo
profissional parceria com associaccedilotildees culturais escolas e outros (FIORATI SAEKI 2008)
A produccedilatildeo de sauacutede atraveacutes dos dispositivos do territoacuterio tambeacutem aparece na pesquisa
de Conte et al (2015) no caso da senhora que buscou ajuda na associaccedilatildeo de seu bairro
Entretanto foram apontadas poucas iniciativas em nosso estudo que apostassem nos recursos
fora do setor sauacutede como possibilidade de estabilizaccedilatildeo de quadros graves Fica clara nesse
sentido a baixa integraccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e a rede intersetorial territorial sendo
este um dos principais desafios na construccedilatildeo da integralidade do cuidado
Em suma podemos observar que ainda haacute um longo caminho na construccedilatildeo de redes
que possam oferecer de fato algum amparo aos sujeitos em crise A falta de recursos certamente
figura como um dos fatores que impotildee barreiras de acesso ao cuidado motivando muitas vezes
que os profissionais usem seus proacuteprios recursos para garantir a efetividade do tratamento (usar
88
o carro proacuteprio para fazer VD deslocar-se entre um serviccedilo e outro usando recursos proacuteprios
etc)
Somando-se aos aspectos mencionados embora os serviccedilos de sauacutede mental se
proponham a realizar um cuidado extremamente complexo e diversificado funcionam em sua
maioria apenas nos horaacuterios comerciais (de segunda a sexta de 8 agraves 17h) Desse modo ldquodiante
dessa configuraccedilatildeo restrita torna-se pouco provaacutevel que de fato sejam esgotadas todas as
possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internaccedilatildeo
integral tal como prevecirc a Lei da Reforma Psiquiaacutetrica Lei nordm 10216 2001rdquo (Brasil 2004)
Vemos que as possibilidades de superaccedilatildeo desse cenaacuterio ainda partem muitas vezes de
um esforccedilo individual dos trabalhadores em produzir cuidado Diante da falta de CAPS III por
exemplo alguns CAPS II tem se organizado para funcionar em horaacuterio estendido realizando
uma escala no serviccedilo e evitando assim encaminhar o usuaacuterio para internaccedilatildeo Outra alternativa
apontada eacute o acolhimento diurno no CAPS II e o noturno no Hospital Geral eou Hospital
Psiquiaacutetrico evitando a permanecircncia integral na internaccedilatildeo (MARTINI CORACINE 2016)
Entretanto esse tipo de arranjo ainda eacute incipiente e depende em boa medida da ldquoboa vontaderdquo
dos trabalhadores visto que natildeo eacute uma poliacutetica institucionalizada de cuidado e natildeo haacute portanto
recursos previstos para esses deslocamentos
Tendo em vista essa conjuntura eacute possiacutevel perceber que a constituiccedilatildeo de uma rede de
serviccedilos integral e resolutiva nos casos de crise ainda eacute muito fraacutegil A fragmentaccedilatildeo na
comunicaccedilatildeo entre os serviccedilos a dificuldade do compartilhamento dos casos oficinas e grupos
riacutegidos e burocratizados compreensotildees deturpadas e reducionistas acerca do movimento da
Reforma Psiquiaacutetrica baixa articulaccedilatildeo intersetorial e territorial aleacutem de limitaccedilotildees estruturais
dos serviccedilos (ausecircncia de carro institucional baixo nuacutemero de CAPS III deacuteficits de equipe etc)
tem contribuiacutedo para que o hospital permaneccedila vivo e seja o ponto de escoamento de todas
essas dificuldades
Podemos citar como um exemplo dessa problemaacutetica os pacientes ldquorevolving doorrdquo7
nos hospitais psiquiaacutetricos Muitos deles fazem tratamento em algum dispositivo da rede
substitutiva no entanto continuam retornando ao hospital ainda que pontualmente com certa
frequecircncia o que remete as fragilidades da rede jaacute mencionadas anteriormente
7 O termo vem da expressatildeo inglesa ldquoporta-giratoacuteriardquo e eacute usado na sauacutede mental para se referir aos pacientes que
internam de forma recorrente poreacutem em internaccedilotildees curtas
89
Vale lembrar que o hospital se constituiu historicamente como uma soluccedilatildeo para o
problema da loucura na sociedade e mesmo havendo um esforccedilo em deslocar certas categorias
e conceitos no sentido de incluir a loucura no social a institucionalizaccedilatildeo ainda eacute
frequentemente a primeira resposta agraves situaccedilotildees de crise especialmente quando a rede natildeo
encontra meios para responder suas demandas no modelo substitutivo
90
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como foi dito na introduccedilatildeo nosso objetivo com esse estudo foi analisar as fragilidades
e potencialidades na organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto
do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica Consideramos que uma rede forte e bem articulada atua
como um fator de mudanccedila dos itineraacuterios dos usuaacuterios dos hospitais psiquiaacutetricos para os
serviccedilos territoriais No entanto o inverso tambeacutem acontece as fragilidades e insuficiecircncias
da rede tambeacutem contribuem para hospitalizaccedilotildees desnecessaacuterias
Sendo assim olhar para a forma como a crise tem sido acolhida na RAPS pode dar
indiacutecios importantes de como estamos nos posicionando no processo de construccedilatildeo da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira uma vez que costuma ser na falta de uma resposta efetiva da rede
substitutiva nos casos de crise que se recorre a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica
Atraveacutes de nosso referencial teoacuterico analisando o desenvolvimento da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira no plano assistencial percebemos avanccedilos importantes no que se
destaca a reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do
nuacutemero de CAPS e a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na
atenccedilatildeo comunitaacuteria e territorial Entretanto a insuficiecircncia de CAPS III e a permanecircncia de
grandes parques manicomiais no paiacutes indicam que ainda satildeo necessaacuterios grandes esforccedilos para
se superar o modelo manicomial
Pensando sob a luz das contribuiccedilotildees de Basaglia (1985) entendemos que a
permanecircncia dos manicocircmios natildeo se deve apenas a um descompasso entre o avanccedilo da rede
substitutiva e o fechamento dos hospitais psiquiaacutetricos mas tambeacutem a presenccedila ainda
expressiva da loacutegica manicomial nos discursos e praacuteticas em relaccedilatildeo agrave loucura
Sendo assim eacute preciso considerar que a Reforma Psiquiaacutetrica natildeo se restringe apenas as
mudanccedilas assistenciais nos serviccedilos de sauacutede mental mas a uma mudanccedila mais ampla no
processo de compreender e lidar com a loucura na sociedade
Ao longo da histoacuteria da sociedade a loucura jaacute teve diversos signos e significados
figurando desde um estado de sabedoria ligado ao profeacutetico a estados de possessatildeo demoniacuteaca
bruxaria e revolta social Entretanto eacute somente a partir do seacuteculo XVIII com o advento da
Psiquiatria que ela passa a ser compreendida enquanto doenccedila mental e a ser enclausurada e
excluiacuteda em instituiccedilotildees de tratamento
91
Com a emergecircncia da Reforma Psiquiaacutetrica inicia-se um movimento de transformaccedilatildeo
do lugar social da loucura atribuindo-lhe um estatuto que vai aleacutem da sintomatologia
psicopatoloacutegica e afirma a loucura enquanto um modo de ser no mundo Na conjuntura atual
eacute possiacutevel perceber que vivenciamos um momento de ruptura epistemoloacutegica em que os saberes
defendidos pela Reforma e o saber biomeacutedico natildeo se anulam mas convivem lado a lado se
alternando e disputando espaccedilo nos diversos pontos da RAPS
Eacute com base nessa dicotomia de saberes que proponho essa revisatildeo bibliograacutefica
Entendendo que os modos de compreender a crise e a loucura incidem na construccedilatildeo de nossas
ofertas de cuidado e no modelo de tratamento uma primeira questatildeo que se coloca eacute Quais satildeo
os sentidos de crise e de que maneira esses sentidos reverberam na produccedilatildeo de cuidado
A partir da revisatildeo da literatura estudada no primeiro capiacutetulo ldquoOs sentidos da criserdquo
identificamos trecircs eixos temaacuteticos que se desdobraram em categorias de anaacutelise satildeo eles
ldquoCrise como Ameaccedila Social Periculosidade e Riscordquo ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo
e ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
No primeiro eixo ldquoa crise como ameaccedila socialrdquo as vivecircncias da crise aparecem
marcadas por comportamentos hostis e intimidadores O risco envolvido se transmite para os
profissionais no campo das praacuteticas como uma necessidade constante de monitoramento
vigilacircncia e controle A agressividade dos sintomas eacute combatida com intervenccedilotildees igualmente
violentas sendo praacuteticas comuns a contenccedilatildeo fiacutesica medicamentosa e ateacute mesmo o uso da forccedila
policial como formas de reprimir o sujeito e estabelecer a ordem no serviccedilo
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade A agressividade eacute vista
como um sintoma isolado iacutendice de ameaccedila e risco Alguns profissionais acreditam que a
presenccedila da poliacutecia nas intervenccedilotildees eacute necessaacuteria para ldquoimpor respeitordquo como se as crises se
tratassem de manifestaccedilotildees voluntaacuterias Outros trabalhadores parecem perceber o paciente em
crise como um ldquocontraventorrdquo ldquoperturbador da ordem socialrdquo ldquomarginalrdquo e ateacute mesmo
enquanto um ldquoanimalrdquo mencionando palavras como ldquoprenderrdquo e ldquoamansarrdquo ao referir-se a
abordagem ao paciente
Muitas vezes a poliacutecia tambeacutem eacute acionada como forma de ldquodar proteccedilatildeordquo aos
profissionais que se sentem com medo e despreparados para acolher a crise Entretanto os
profissionais reconhecem que a poliacutecia tambeacutem natildeo sabe lidar com o paciente psiquiaacutetrico e
que eacute ainda mais despreparada
92
No segundo eixo a ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo a peculiaridade dos
sintomas que emergem na crise e o estigma social relacionado a eles satildeo compreendidos
enquanto iacutendice da emergecircncia de uma doenccedila ou de anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida como a vergonha o medo de ter novas crises o medo de circular
pelo territoacuterio e de fazer amizades Percebemos que esse significado apareceu especialmente
nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da primeira crise
mas tambeacutem se fez presente em estudos com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees e
que viveram com isso muitas perdas dos seus viacutenculos afetivos sociais e laborativos
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede
No terceiro eixo ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
encontramos experiecircncias relatos e situaccedilotildees que apontaram para outros modos de lidar com a
crise e com a loucura natildeo como marco de uma doenccedila limitante mas como uma experiecircncia
uacutenica e singular que traz em si uma necessidade imperiosa e urgente de reconstruccedilatildeo de
sentidos
Os usuaacuterios relataram caminhos estrateacutegias e ferramentas que permitiram a construccedilatildeo
de um outro modo de lidar com a crise e com seus sintomas Os profissionais retrataram
situaccedilotildees em que foi possiacutevel recolocar-se diante da crise e vecirc-la como um evento analisador
de suas praacuteticas bem como da vida daqueles sujeitos
Em um dos casos o usuaacuterio vinha pedindo haacute muito tempo para sair da casa onde
morava que era a casa onde vivia com os pais antes do falecimento dos mesmos e onde tinha
muitas recordaccedilotildees A partir do seu movimento de crise ldquoa famiacutelia entendeu que era mais do
que quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil E aiacute acabou que ele conseguiu
alugar a casa delerdquo (COSTA 2007 102 grifo do autor)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado na histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social relacional e
habitacional Ela eacute uma resposta a uma situaccedilatildeo que haacute muito tempo jaacute estava insustentaacutevel A
crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um evento analisador que ldquoestabelece uma urgecircncia
de realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (ibidem 103)
93
Em outra situaccedilatildeo a crise aparece enquanto um pedido de ajuda
Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o sobrinho dele morreu
assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver com uma situaccedilatildeo que
ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele continuou trabalhando
na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de trabalho E eu me lembro
que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele tirar todos os documentos
E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do nascimento dele e ele me
mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e nasceu e contou histoacuteria
A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com ele porque ele explodiu[]
E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos de novo E a gente entendeu
que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia muito que a gente o ajudasse
Os documentos eu acho que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que
ele acabou entre aspas perdendo (COSTA 2007 105)
Vemos entatildeo que os modos de produzir cuidado se tecem junto com o sujeito que vai
recontando sua histoacuteria atraveacutes dos elementos que fazem parte de seu cotidiano como o
territoacuterio suas relaccedilotildees sociais seu trabalho seu mundo Assim a produccedilatildeo de cuidado
acontece onde a vida do sujeito estaacute no parque da catacumba na cantina na retirada dos
documentos porque foi preciso destruir uma parte de sua histoacuteria para reconstruiacute-la depois
Trata-se de considerar a crise como um movimento vaacutelido que expressa o sofrimento do sujeito
e sua necessidade de construir e habitar outros territoacuterios existenciais para si
Nosso segundo objetivo especiacutefico diz respeito as praacuteticas de cuidado e se expressa nas
seguintes perguntas Quais satildeo as principais dificuldades do acolhimento agrave crise Quais satildeo as
nossas principais ferramentas cliacutenicas
Como desafios identificamos o acolhimento burocratizado e frio que se expressa
muitas vezes como uma mera triagem do paciente o cuidado orgacircnico centrado nos
procedimentos fiacutesicos e na figura do meacutedico o mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo
o despreparo para abordar e lidar com o paciente em crise que muitas vezes justifica o uso de
medidas violentas o preconceito e do julgamento moral especialmente em relaccedilatildeo aos casos
de usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas e por fim o diagnoacutestico apressado a conduta extremamente
teacutecnica e desumana
Como potencialidades identificamos a aposta no encontro no viacutenculo na escuta
qualificada e no diaacutelogo o pronto-atendimento (a disponibilidade de prestar o cuidado no
momento em que ele eacute necessaacuterio) as visitas domiciliares e a intervenccedilatildeo dentro do contexto
de vida do sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) a revisatildeo do PTS (Projeto
Terapecircutico Singular) o trabalho multidisciplinar e a abordagem conjunta especialmente nos
casos onde pode haver riscos aos profissionais
94
Nosso terceiro objetivo especiacutefico buscou refletir sobre a as formas de organizaccedilatildeo da
rede e se resumem em torno das seguintes perguntas Como os serviccedilos tecircm se organizado para
responder agraves demandas de crise Quais satildeo os desafios que o acolhimento agrave crise na rede
substitutiva nos coloca
Identificamos que o acolhimento agrave crise eacute um dos principais noacutes criacuteticos na organizaccedilatildeo
e na integralidade da rede de cuidados A articulaccedilatildeo entre os serviccedilos ainda se mostra bastante
fragmentada sendo a maior parte dos encaminhamentos feitos de modo apressado sem a devida
discussatildeo sobre o caso (encaminhamentos por escrito ou via telefone) O acompanhamento dos
serviccedilos de referecircncia aos casos mais graves durante a internaccedilatildeo eacute bastante raro havendo uma
certa expectativa de que o hospital se ocupe dos casos mais graves e da crise e que o usuaacuterio
retorne ao serviccedilo de referecircncia quando estabilizado
Diante das dificuldades colocadas na crise psicoacutetica os profissionais tendem a fazer
encaminhamentos irrefletidos ao hospital esperando uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
Nota-se que a justificativa para esse encaminhamento passa muitas vezes pelo fato do hospital
ter mais ldquorecursos materiaisrdquo aleacutem de mecanismos de ldquocontrolerdquo e ldquomonitoramentordquo dos casos
Ressaltamos que o apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises
leves podem ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o
hospital direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima
absolutamente o papel do CAPS frente agrave crise
Quanto ao entendimento da Reforma Psiquiaacutetrica na rede nossos resultados dialogam
com as reflexotildees levantadas em nosso marco teoacuterico natildeo haacute uma compreensatildeo uniforme sobre
esse processo e os profissionais mostram-se tanto identificados com a loacutegica manicomial
quanto com alguns pressupostos da RP e do novo modelo de cuidado Alguns profissionais
tambeacutem mostram entender a RP como uma mera mudanccedila administrativajuriacutedica sem muitas
implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos o que reafirma papeacuteis engessados e fluxos
burocratizados nos serviccedilos contribuindo para que o hospital continue sendo a porta de entrada
e o destino da maior parte dos casos de crise acolhidos na rede
Enquanto desafios nesse processo ressaltamos a demora para conseguir iniciar um
tratamento a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se estabelecer uma classificaccedilatildeo
de risco na lista de espera o deacuteficit de profissionais inadequaccedilotildees na estrutura fiacutesica que
prejudicam o acesso de pessoas com necessidades especiais e de atividades grupais
insuficiecircncias de equipamentos ofertas de cuidado riacutegidas e padronizadas fragmentaccedilatildeo da
95
equipe no processo de trabalho em dias e turnos especiacuteficos da semana fragmentaccedilatildeo nas
relaccedilotildees entre os serviccedilos fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre a RAPS e a rede intersetorial e
territorial
Destacamos que as iniciativas de superaccedilatildeo dessas fragilidades ainda se concentram
muito nos esforccedilos individuais dos trabalhadores havendo pouco investimento puacuteblico em
oferecer os recursos miacutenimos para se acolher a crise de acordo com os ideais da RP
Identificamos por outro lado como ferramentas importantes na tessitura e no fortalecimento
das redes de cuidado a praacutetica do AT e do apoio matricial que podem oferecer um espaccedilo de
cuidado mais proacuteximo ao territoacuterio e agrave rede intersetorial
Por fim frisamos como limitaccedilotildees desse estudo o fato de nossa revisatildeo bibliograacutefica se
ater somente a artigos cientiacuteficos de modo que algumas dissertaccedilotildees que poderiam agregar um
significado mais profundo a certos temas foram excluiacutedas na nossa seleccedilatildeo Tambeacutem foi um
recorte dessa pesquisa o cuidado agrave crise no contexto brasileiro permanecendo enquanto questatildeo
quais satildeo as possiacuteveis contribuiccedilotildees ao nosso tema no contexto internacional
Como potencialidades dessa pesquisa destacamos a produccedilatildeo de conhecimento teoacuterico
sobre o tema a ampliaccedilatildeo do debate aos profissionais da rede de sauacutede mental e a identificaccedilatildeo
e problematizaccedilatildeo dos pontos de fragilidade e potencialidades no processo de construccedilatildeo da
RPB
96
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Acesso em 05032018 Disponiacutevel em httpwwwriorjgovbrwebsmscaps
SOUZA P J C Serviccedilo de urgecircncia psiquiaacutetrica de Belo Horizonte Disponiacutevel
emhttpxayimgcomkqgroups223708961330363327nameservico_de_urgencia_psiquiatr
ica5b15dpdf Acesso em 15 de novembro de 2012
TENOacuteRIO F A reforma psiquiaacutetrica brasileira da deacutecada de 1980 aos dias atuais histoacuteria e
conceito Histoacuteria Ciecircncias Sauacutede Manguinhos Rio de Janeiro vol 9 n1 p25-59 jan-abr
2002
TRAPEacuteI T ONOCKO RC Modelo de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental do Brasil anaacutelise do
financiamento governanccedila e mecanismos de avaliaccedilatildeo
TURATO E Tratado da metodologia da pesquisa cliacutenico-qualitativa construccedilatildeo teoacuterico-
epistemoloacutegica discussatildeo comparada e aplicaccedilatildeo nas aacutereas da sauacutede e humanas Petroacutepolis
Vozes 2003
VAINER A Demanda e utilizaccedilatildeo do acolhimento noturno em Centro de Atenccedilatildeo
Psicossocial III na cidade do Rio de Janeiro2016
WILLRICH J Q ET AL Periculosidade versus cidadania os sentidos da atenccedilatildeo agrave crise nas
praacuteticas discursivas dos profissionais de um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Physis (Rio J)
21(1) 47-64 2011
WILLRICH J Q ET AL Os sentidos construiacutedos na atenccedilatildeo agrave crise no territoacuterio o Centro de
Atenccedilatildeo Psicossocial como protagonista Rev Esc Enferm USP 47(3) 657-663 jun 2013
YASUI S Rupturas e encontros desafios da reforma psiquiaacutetrica brasileira Rio de Janeiro
Fiocruz 2010
ZEFERINO M T ET AL Percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre o cuidado agraves crises na
Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial Esc Anna Nery Rev Enferm 2016
AGRADECIMENTOS
A conclusatildeo de um Mestrado natildeo eacute tarefa faacutecil Tendo esse trabalho se ocupado
fundamentalmente do tema do cuidado natildeo poderia deixar de agradecer agrave todos aqueles que
contribuiacuteram e tornaram possiacutevel a realizaccedilatildeo desse estudo Sendo assim eu agradeccedilo
Aos meus pais que sempre me apoiaram e me incentivaram na minha trajetoacuteria
profissional Agrave minha matildee por ter sonhado acreditado e vibrado com todas as minhas
conquistas Ao meu pai pelas conversas e pelo interesse em minhas questotildees
Agrave minha avoacute Helena por ter sido uma mulher agrave frente de seu tempo e por ter me
inspirado nas minhas escolhas ateacute aqui
Agrave Victor Gonccedilalves pelo suporte pelo carinho pelo amor inesgotaacutevel Por ter
compreendido e aceitado as mudanccedilas de planos e rotinas necessaacuterias para que eu concluiacutesse
esse processo pelas diversas vezes em que emprestou a casa para que eu me concentrasse
melhor
Agrave Nataacutelia Fortes pela longa amizade pela fraternidade pela confianccedila
Agrave David Llanos por ter rezado por mim acreditado nessa conquista e na tatildeo sonhada
comemoraccedilatildeo com todas as ldquochiquitissesrdquo
Aos meus amigos de faculdade em especial agrave Luacutecia Scarlati Karine Alane Karina
Lang e Aline Martins que sempre me acompanham com amoras e com amor
Agrave Fernanda Resende um presente que apareceu na minha vida Amiga forte e
companheira parceira na sauacutede mental e na vida
Agrave minha orientadora Tatiana Wargas pela disponibilidade pela paciecircncia com meus
atrasos pela leitura carinhosa pelos apontamentos e contribuiccedilotildees certeiras
Agrave professora Maria Paula Cerqueira a quem eu muito admiro pela forccedila e delicadeza
de suas contribuiccedilotildees nas aulas e EPacutes durante o periacuteodo de residecircncia e na minha banca de
conclusatildeo de curso Seguiu me inspirando durante a escrita desse trabalho e agora novamente
aceitou carinhosamente o convite para fazer parte desta banca
Agrave professora Lilian Miranda membro dessa banca que me deu aula e compartilha do
interesse pelo campo da sauacutede mental Esse trabalho conta com seus artigos e certamente com
muito de sua inspiraccedilatildeo
Agrave Martinho Silva e Gustavo Correa Matta agradeccedilo pela disponibilidade pela leitura e
pelo interesse em aceitar o convite para compor essa banca
Agrave Flaacutevia Fasciotti minha professora e eterna tutora da Residecircncia Sempre estaraacute
presente em todos os passos da minha formaccedilatildeo
Aos meus amigos de turma do Mestrado agradeccedilo imensamente pelo companheirismo
pela forccedila pelo carinho com que vivemos esse processo
Aos amigos da turma de Residecircncia em especial a Isabel Kraml Flavia Azevedo Thais
Beiral Andressa Ferreira Clara Andrade que estiveram sempre por perto e que compartilham
comigo o amor pela sauacutede mental
Agrave Guilherme Cacircndido Aline de Alvarenga Lais Macedo Juliane Lessa Jackson
Machado colegas e parceiros na sauacutede mental Aos pacientes que me encantaram
surpreenderam e me ensinaram tanto nesse caminho
Aos amigos Alexandre Rinaldi Thaiacutes Helena Veloso Mayara Ribeiro Jessica Aguillar
Tiago Nunes Iasmin Rocha e outros
A minha analista Tatiane Grova pelo acolhimento e pela leveza que permitiu com que
eu sustentasse esse processo
Agrave ENSP e a FIOCRUZ pela oportunidade de poder avanccedilar na minha formaccedilatildeo estudar
e contribuir para a produccedilatildeo de conhecimento no campo
A CAPES pelo financiamento agrave esta pesquisa e a possibilidade de tornaacute-la realidade
RESUMO
Essa dissertaccedilatildeo teve como objeto o cuidado agraves pessoas em situaccedilatildeo de crise na Rede de
Atenccedilatildeo Psicossocial Atraveacutes de um estudo de revisatildeo bibliograacutefica de 21 artigos cientiacuteficos
buscamos identificar como a crise tem sido acolhida nos serviccedilos de sauacutede No que se refere agraves
praacuteticas de cuidado interessa-nos saber quais satildeo as principais dificuldades e ferramentas
cliacutenicas que os profissionais encontram no manejo das situaccedilotildees de crise Entendendo que a
Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo que ainda estaacute em andamento e que depende
fundamentalmente de como os serviccedilos se organizam e se articulam de maneira a compor uma
rede de cuidados que possa substituir o Hospital Psiquiaacutetrico coloca-se tambeacutem a questatildeo de
quais satildeo as principais dificuldades que os serviccedilos encontram para sustentar o acolhimento da
crise no territoacuterio e quais os possiacuteveis caminhos para superaacute-las na direccedilatildeo de um cuidado em
liberdade
Palavras chaves crise sauacutede mental praacuteticas de cuidado RAPS serviccedilos de sauacutede
ABSTRACT
This dissertation had as object the care of people in situation of crisis in the Network of
Psychosocial Attention Through a bibliographical review study of 21 scientific articles we
sought to identify how the health services deals with pacient crisis Regarding to care practices
we are interested in the main difficulties and clinical tools that professionals find in the
management of crisis situations Understanding that the Psychiatric Reform is a process that is
still in progress and depends fundamentally on how services are organized and articulated in
order to create a network of care that can replace the Psychiatric Hospital arises the concern
of what are the main difficulties that the health services faces to provide the care of the crisis in
the territory and the possible ways to overcome them in the direction of care in freedom
Key words crisis mental health care practices Network of Psychosocial Attention
health services
LISTA DE GRAacuteFICOS
Graacutefico 1- Inversatildeo dos gastos (2002 a 2013) 30
Graacutefico 2- Seacuterie histoacuterica de Expansatildeo dos CAPS (2002 a 2014)31
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial por tipo UF e por indicador de CAPS100mil
habitantes (BRASILdez 2014)32
Quadro 2- Oferta de leitos de sauacutede mental em Hospitais Gerais (2014)34
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em CAPS III- Secretaria Municipal de Sauacutede do
Rio de Janeiro (setembro 2015)34
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB- Atenccedilatildeo Baacutesica
ACS- Agente Comunitaacuterio de Sauacutede
AP- Aacuterea Programaacutetica
AT- Acompanhamento Terapecircutico
CAPS- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial
CAPS II- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo II
CAPS III- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo III
CAPSad- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas
CAPSad III - Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas tipo III
CAPSi- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infantil
CF- Cliacutenica da Famiacutelia
ENSP- Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica
FIOCRUZ- Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz
IT- Itineraacuterio Terapecircutico
NASF- Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia
PNSM- Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental
RAPS- Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial
RPB- Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
SAMU- Serviccedilo Moacutevel de Urgecircncia
SRT- Residecircncia Terapecircutica
SUS- Sistema Uacutenico de Sauacutede
UBS- Unidade Baacutesica de sauacutede
VD- Visita Domiciliar
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
10 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA 16
11Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria 16
12A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira25
2 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL 34
21Reflexotildees sobre a Crise e o Cuidado em Sauacutede Mental34
22O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS39
3 METODOLOGIA 46
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA 49
41 Os Sentidos da Crise49
412 Crise como Ameaccedila Social Periculosidade e Risco50
413 Crise como Perda e Isolamento Social54
414 Crise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidos 58
42 Desafios e Potencialidades no Acolhimento agrave Crise64
43 Organizaccedilatildeo da Rede de Cuidados76
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS89
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS95
11
INTRODUCcedilAtildeO
Para o filoacutesofo Gilles Deleuze (1988) pensar natildeo eacute um exerciacutecio natural do ser humano
como costumamos acreditar no senso comum Tampouco se trata de um processo interior ou
subjetivo da ordem de uma reflexatildeo voluntaacuteria Pensamos a partir dos encontros mais insoacutelitos
quando algo nos irrompe agrave consciecircncia de maneira intempestiva e nos forccedila a pensar Pensar
nesse sentido eacute muito mais da ordem de um acontecimento do que da reflexatildeo
A abordagem tradicional da filosofia de Platatildeo agrave Kant tem na representaccedilatildeo o
fundamento do pensamento O conhecimento para esses autores se constroacutei a partir de um
julgamento criacutetico em busca da verdade Em seu livro Diferenccedila e Repeticcedilatildeo (1988) Deleuze
questiona essa tradiccedilatildeo filosoacutefica e sustenta a ideia de um pensamento que natildeo depende mais
de uma relaccedilatildeo com a verdade mas de uma relaccedilatildeo com a diferenccedila Conforme Sangiovanni a
partir da leitura de Deleuze ldquoeacute a partir do encontro com a diferenccedila que ocorre o pensamento
ou seja na relaccedilatildeo exterior natildeo hegemocircnica eacute que satildeo criadas as condiccedilotildees do pensarrdquo
(201386)
Para Deleuze haacute no encontro com a diferenccedila a forccedila de algo novo que necessariamente
nos tira do lugar e que impotildee a necessidade de pensar Nessa mesma linha de pensamento
Benetti destaca ldquoo que funda o pensamento eacute o encontro com algo violento Em outros termos
aquilo que mexe e que marca e portanto desencadeia a paixatildeo de pensarrdquo (DELEUZE 2010
95)
A crise em sauacutede mental tema desse trabalho surgiu para mim como objeto de reflexatildeo
exatamente no plano do concreto de algo que irrompe e se coloca de forma violenta a partir
da necessidade dos casos e do encontro real com o sofrimento do outro A crise fala de um
tempo in ato no aqui e agora que natildeo respeita nossas possibilidades de elaboraccedilotildees teoacutericas
preacutevias sobre o assunto e exige que estejamos inteiramente presentes e disponiacuteveis para o outro
no momento em que ele precisa
Eacute a partir dessa abertura inicial da possibilidade de ser pego de surpresa e mesmo assim
estar junto servindo de suporte para o sofrimento do outro se deixando afetar e marcar por essa
experiecircncia que algum caminho pode se dar Eacute um trabalho que soacute pode acontecer atraveacutes do
contato do encontro com o outro e da possibilidade de estar disponiacutevel para construir algo
juntos
12
A crise aponta para um momento em que as praacuteticas de cuidado e as antigas soluccedilotildees
que o sujeito podia engendrar para lidar com seu sofrimento psiacutequico de alguma forma natildeo
satildeo mais suficientes Segundo Knobloch (1998) a crise pode ser entendida como ldquoalgo
insuportaacutevel no sentido literal de natildeo haver suporte experiecircncia que nos habita como um
abismo de perda de sentido em que se perdem as principais ligaccedilotildeesrdquo (apud FERIGATO et al
2016 33) Algo se rompe algo se perde Natildeo eacute mais possiacutevel continuar a se viver da maneira
em que se estava anteriormente O que fazer
Essa ruptura com uma certa organizaccedilatildeo psiacutequica geralmente eacute entendida pelos
profissionais da sauacutede como algo negativo No entanto se tomamos a loucura e a crise que eacute a
radicalidade dessa ruptura como fenocircmenos de questionamento da ordem social e do status quo
da sociedade talvez possamos relanccedilar algumas perguntas e abrir outras possibilidades de
convivecircncia com a loucura
Apesar do sofrimento que estaacute ligado a vivecircncia da crise sua incidecircncia pode ser vista
como um evento analisador capaz de indicar a necessidade de uma mudanccedila nos modos do
sujeito se relacionar consigo mesmo com o seu tratamento e com o mundo agrave sua volta Assim
eacute precisamente nesse momento em que nada mais parece conseguir estabilizar um sujeito que
nos vemos obrigados a repensar nossas praacuteticas e ofertas de cuidado
Deslocar a perspectiva de compreensatildeo da loucura desse modo significa tomaacute-la em
sua dimensatildeo criativa no que ela traz de revolucionaacuterio e de produccedilatildeo de novos sentidos de
vida Isso implica em uma mudanccedila de atitude eacutetica e poliacutetica para com a loucura natildeo mais no
sentido de reprimi-la ou tentar a todo custo reestabelecer a normalidade perdida mas de aceitar
o movimento de crise como vaacutelido dentro da histoacuteria de vida daquelas pessoas e buscar o que
podemos construir a partir dele isto eacute o que ele pode nos sinalizar sobre as possibilidades de
vida daquele sujeito
Dessa forma algumas questotildees que pretendemos colocar com essa pesquisa satildeo Como
temos acolhido os sujeitos em crise na rede de atenccedilatildeo psicossocial Quais satildeo as principais
dificuldades nesse acolhimento Quais satildeo as nossas principais ferramentas cliacutenicas Quais satildeo
os desafios que o acolhimento agrave crise na rede substitutiva nos coloca Como pensar um
acolhimento agrave crise que natildeo seja apenas baseado na loacutegica de ldquoapagar incecircndiosrdquo Isto eacute que
outras formas de cuidado satildeo possiacuteveis para aleacutem da remissatildeo de sintomas Como trabalhar na
direccedilatildeo de um acolhimento que considere verdadeiramente o sofrimento do sujeito entendendo
a crise natildeo como um momento isolado de sua vida mas como parte de sua histoacuteria
13
Quanto aos aspectos macroestruturais que fundamentam esse trabalho haacute que se
ressaltar que a atenccedilatildeo agrave crise tem sido indicada na literatura como um dos principais desafios
para efetivaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica Embora tenha havido uma mudanccedila no modelo de
sauacutede orientada para um cuidado em liberdade alguns aspectos como a insuficiecircncia da
cobertura dos serviccedilos substitutivos no cenaacuterio local e nacional a baixa articulaccedilatildeo
intersetorial a fragmentaccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e os deacuteficits em relaccedilatildeo aos recursos
humanos e estruturais (BRASIL 2015) tecircm constituiacutedo grandes obstaacuteculos no que se refere a
capacidade dos serviccedilos de acolherem a crise no territoacuterio
No que tange ao cenaacuterio atual o SUS vem sofrendo um forte processo de desmonte
atraveacutes de poliacuteticas de Estado que ameaccedilam seu caraacuteter puacuteblico integral e universal Quanto ao
financiamento destaca-se a Emenda agrave Constituiccedilatildeo 952016 que estabelece um teto para as
despesas em sauacutede puacuteblica considerando o orccedilamento do ano anterior corrigido pela inflaccedilatildeo
sem o aumento real mesmo que haja crescimento econocircmico Isso significa que qualquer
aumento populacional mudanccedilas de perfil demograacutefico ou de quadro sanitaacuterio do paiacutes natildeo
seratildeo acompanhadas pelo incremento das ofertas em sauacutede devido ao congelamento dos gastos
ainda que as receitas tenham aumentado naquele ano Com isso ateacute mesmo a incorporaccedilatildeo de
avanccedilos tecnoloacutegicos fica comprometida contribuindo para ampliar a defasagem do sistema
puacuteblico de sauacutede em relaccedilatildeo aos atendimentos oferecidos pela iniciativa privada
Quanto aos aspectos legislativos e institucionais a recente Nota Teacutecnica 112019
institui uma seacuterie de mudanccedilas que implicam em graves retrocessos na rede assistencial Na
Poliacutetica de Aacutelcool e Outras Drogas o documento confirma o abandono da estrateacutegia de Reduccedilatildeo
de Danos uma abordagem que tem se mostrado eficaz e vem sendo utilizada em diversos
paiacuteses como Canadaacute Portugal Espanha Holanda e alguns estados dentro dos Estados Unidos
Aposta enquanto uacutenica modalidade de tratamento na abstinecircncia total a ser alcanccedilada por meio
internaccedilatildeo de longo prazo reconhecendo enquanto um dispositivo da Rede SUS as
Comunidades Terapecircuticas instituiccedilotildees majoritariamente religiosas focadas no isolamento e
nas praacuteticas religiosas
Quanto agrave organizaccedilatildeo dos serviccedilos os Hospitais Psiquiaacutetricos passam a ser
reconhecidos como parte da RAPS e os Hospitais Gerais ganham ldquoUnidades Psiquiaacutetricas
Especializadasrdquo com capacidade de ateacute 30 leitos para internaccedilotildees psiquiaacutetricas funcionando
como ldquominirdquo Hospitais Psiquiaacutetricos dentro dos Hospitais Gerais o que reproduz novamente a
loacutegica cronificante e alienadora do Hospital Outro ponto eacute a defesa da internaccedilatildeo de crianccedilas e
adolescentes contrariando ECA (Lei 8069 de 1990) Reforccedilamos que essas medidas aleacutem de
14
deslegitimarem o CAPS III como dispositivo privilegiado para o atendimento da crise
claramente contradizem a Poliacutetica de Desinstitucionalizaccedilatildeo e de descredenciamento e
fechamento de Hospitais Psiquiaacutetricos
Na Atenccedilatildeo Baacutesica no municiacutepio do Rio de Janeiro a poliacutetica de ldquoReestruturaccedilatildeo da
Atenccedilatildeo Baacutesicardquo e os cortes previstos na Lei Orccedilamentaacuteria de 2019 foram responsaacuteveis por um
processo de demissatildeo em massa que previa para o ano de 2019 um corte de 239 equipes no
municiacutepio - 184 de sauacutede da famiacutelia e 55 de sauacutede bucal gerando um total de 1400 demissotildees
Segundo levantamento do Nenhum Serviccedilo a Menos em 012019 jaacute haviam sido demitidos 479
servidores sendo a grande maioria deles Agentes Comunitaacuterios da Sauacutede Entre as
mobilizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores foram pautas tambeacutem os atrasos nos salaacuterios
a falta de insumos nas unidades e o descompromisso da Gestatildeo Municipal com o direito agrave
Sauacutede
Assim vecirc-se um avanccedilo preocupante de uma poliacutetica de Estado que visa sucatear a
sauacutede puacuteblica e vai de encontro aos ideais defendidos pela Reforma Sanitaacuteria e aos direitos
promulgados na Constituiccedilatildeo de 1988 que fazem referecircncia agrave sauacutede como direito social
universal garantido pelo Estado
Essas questotildees tornam-se especialmente importantes quando falamos da atenccedilatildeo agrave crise
pois a crise natildeo eacute apenas a crise do usuaacuterio (enquanto um sujeito isolado no mundo e no espaccedilo)
mas tambeacutem a crise do Estado das poliacuteticas puacuteblicas e especialmente das instituiccedilotildees
Desse modo torna-se imprescindiacutevel investir em pesquisas que apontem quais satildeo os
impasses que os profissionais de sauacutede encontram para atender as situaccedilotildees de crise nos serviccedilos
substitutivos e quais estrateacutegias satildeo necessaacuterias no plano micro e macropoliacutetico para mudar o
itineraacuterio dos usuaacuterios em crise do hospital para os serviccedilos substitutivos
Nesse sentido destacamos como objetivo geral deste estudo analisar as fragilidades e
potencialidades apontadas na bibliografia cientiacutefica para a organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da
assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica
Como objetivos especiacuteficos buscaremos
Problematizar as noccedilotildees de crise em sauacutede mental presentes na literatura
e suas repercussotildees para o cuidado
Identificar os desafios e potencialidades encontrados nas praacuteticas de
acolhimento agrave crise na RAPS
Refletir sobre a forma como os serviccedilos tecircm se organizado para responder
agraves demandas de crise
15
Com o intuito de alcanccedilar nossos objetivos realizamos uma pesquisa de revisatildeo
bibliograacutefica de artigos cientiacuteficos que tomaram com objeto os sentidos da crise as praacuteticas de
cuidado e a organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos na resposta agrave crise
Quanto agrave organizaccedilatildeo dessa dissertaccedilatildeo no primeiro capiacutetulo encontramos o referencial
teoacuterico que foi dividido em dois eixos principais No primeiro ldquoDo modelo asilar agraves Reformas
na Psiquiatriardquo retomamos a histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica no mundo explicitando como as
diversas concepccedilotildees de loucura e de crise presentes na sociedade foram responsaacuteveis pela
organizaccedilatildeo de diferentes modelos de cuidado No segundo ldquoA Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileirardquo vemos as repercussotildees da mudanccedila da loacutegica do cuidado no desenvolvimento da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e na reorganizaccedilatildeo da assistecircncia Para esse capiacutetulo usamos
os seguintes autores como referecircncia Foucault Amarante Tenoacuterio Caponi DellacuteAcqua e
Mezzina Birman e outros
No segundo capiacutetulo buscamos discutir mais agrave fundo o conceito de crise e suas relaccedilotildees
com as poliacuteticas de sauacutede no contexto do SUS Na primeira parte ldquoReflexotildees sobre a crise e
o cuidado em sauacutede mentalrdquo faremos uma retomada da origem etimoloacutegica do termo ldquocriserdquo
explicitando seus diversos significados A partir das reflexotildees de autores como DelacuteAcqua
Feriagato Bailarin Corbisier ressaltamos a crise em seu vieacutes criativo produtor de novas
possibilidades de vida Na segunda parte ldquoO Acolhimento agrave crise e a Organizaccedilatildeo do SUSrdquo
contextualizamos os desafios do atendimento agrave crise dentro da loacutegica do SUS A partir das
contribuiccedilotildees de Ceciacutelio (1997) expomos as contradiccedilotildees de um modelo idealizado de SUS
conforme preconizado pelas Poliacuteticas Puacuteblicas que na tentativa de regular todos os fluxos e
linhas de cuidado perde a proximidade com o sujeito e suas reais necessidades de sauacutede
O terceiro capiacutetulo se destina a apresentaccedilatildeo da metodologia utilizada seus aspectos
teoacutericos os caminhos percorridos na seleccedilatildeo dos artigos as bases utilizadas e os criteacuterios de
inclusatildeo de exclusatildeo dos artigos
O quarto capiacutetulo ldquoReflexatildeo e Discussatildeo da Literaturardquo concentra a revisatildeo dos artigos
No intuito de facilitar a anaacutelise dividimos esse capitulo em trecircs eixos conceituais ldquoos sentidos
da criserdquo ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo e a ldquoorganizaccedilatildeo da rede de
cuidadosrdquo
16
1 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA
11 Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria
Ateacute o seacuteculo XVIII na Europa a loucura natildeo era considerada uma doenccedila Ao longo da
histoacuteria a loucura jaacute teve diversos sentidos e explicaccedilotildees figurando desde algo ligado ao
sagrado e ao profeacutetico agrave possessatildeo demoniacuteaca Com a ascensatildeo da sociedade burguesa a
loucura jaacute tinha o estatuto de algo ldquoestranhordquo e junto com todos aqueles considerados
ldquoindesejaacuteveisrdquo agrave sociedade leprosos sifiliacuteticos aleijados mendigos etc comeccedila a ser
confinada nas entatildeo chamadas ldquocasas de internaccedilatildeordquo grandes instituiccedilotildees filantroacutepicas ou
religiosas que tinham como objetivo afastar a pobreza e a miseacuteria das ruas em uma grande
medida de higiene social Segundo Foucault
Estranha superfiacutecie a que comporta as medidas de internamento Doentes veneacutereos
devassos dissipadores homossexuais blasfemadores alquimistas libertinos toda
uma populaccedilatildeo matizada se vecirc repentinamente na segunda metade do seacuteculo XVII
rejeitada para aleacutem de uma linha de divisatildeo e reclusa em asilos que se tornaratildeo em
um ou dois seacuteculos os campos fechados da loucura (2002 116)
Esse periacuteodo histoacuterico eacute denominado pelo autor como a ldquoA Grande Internaccedilatildeordquo (2002)
fazendo alusatildeo ao fato de que a internaccedilatildeo natildeo era apenas para os loucos mas para toda a sorte
de indiviacuteduos que por algum motivo perturbavam a ordem social Esse periacuteodo se inscreve
desde o seacuteculo XVII ateacute o final seacuteculo XVIII e seu fim inaugura a emergecircncia da psiquiatria
enquanto ciecircncia (RIBEIRO PINTO 2011)
As ldquocasas de internaccedilatildeordquo natildeo tinham como objetivo a cura de enfermos ou a reabilitaccedilatildeo
dessas pessoas Eram verdadeiros depoacutesitos humanos lugares de exclusatildeo social da pobreza e
da miseacuteria produzidas pelos regimes absolutistas da eacutepoca Laacute permaneciam isolados e
esquecidos esperando a proacutepria morte
As primeiras casas surgiram nas regiotildees mais industrializadas do paiacutes como uma
alternativa para crise econocircmica atraveacutes da exploraccedilatildeo da matildeo de obra barata Segundo o
regulamento de uma das casas ldquoos internos devem trabalhar todos Determina-se o valor exato
de sua produccedilatildeo e daacute-se-lhes a quarta parte Pois o trabalho natildeo eacute apenas ocupaccedilatildeo deve ser
produtivordquo (FOUCAULT 2002 67)
Os loucos natildeo recebiam tratamento diferenciado em relaccedilatildeo aos outros pobres poreacutem
distinguiam-se pela ldquoincapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida
17
coletivardquo (FOUCAULT 2002 73) Assim comeccedila-se a se pensar a loucura como um caso agrave
parte uma vez que ela natildeo responde da mesma forma agraves demandas de produtividade
Com a expansatildeo industrial o pobre passa a ser necessaacuterio nas cidades logo natildeo podia
mais estar internado mas e o pobre e louco A quem caberia a responsabilidade de assistecircncia
dessas pessoas Aos poucos as casas de internaccedilatildeo foram mudando de figura
O poder exercido no interior dessas Instituiccedilotildees pertencia agrave Igreja e ao Estado mas
em funccedilatildeo das revoluccedilotildees francesa e industrial do surgimento de novos atores sociais
ndash a burguesia a classe meacutedia o proletariado - e do surgimento de uma nova
racionalidade na produccedilatildeo do conhecimento essas instituiccedilotildees vatildeo gradativamente se
transformando em instituiccedilotildees meacutedicas (BARRIacuteGIO 2010 18)
Em 1791 na Franccedila eacute decretada uma lei que responsabiliza as famiacutelias por vigiar seus
loucos evitando que eles fiquem ldquovagando na ruardquo ou cometam alguma ldquodesordemrdquo No
entanto para as famiacutelias mais pobres que natildeo tinham condiccedilotildees de assistir seus familiares
chegam vaacuterios pedidos de internaccedilatildeo ao Ministeacuterio do Interior Nesse cenaacuterio destacam-se
duas instituiccedilotildees que sob agrave eacutegide da Medicina comeccedilam a se configurar enquanto os primeiros
hospitais especializados no tratamento da loucura Bicecirctre para o puacuteblico masculino e
Salpetriegravere para o puacuteblico feminino (HENNA 2014)
Em 1792 o meacutedico Phillipe Pinel assumiu a direccedilatildeo do Hospital de Bicetrecirc em Paris
onde operou inuacutemeras transformaccedilotildees consideradas atualmente por alguns autores como a
primeira Reforma da Psiquiatria Pinel inspirado pelos ideais de igualdade fraternidade e
liberdade da Revoluccedilatildeo Francesa libertou os loucos das correntes aboliu teacutecnicas como ldquoa
imersatildeo em aacutegua gelada os golpes as sangrias e as torturasrdquo (CAPONI 2012 49) e combateu
o pensamento da eacutepoca que a loucura era um fenocircmeno de possessatildeo demoniacuteaca
A funccedilatildeo meacutedica eacute claramente introduzida em Bicecirctre trata-se agora de rever todos
os internamentos por demecircncia que foram decretados no passado E pela primeira vez
na histoacuteria do Hospital Geral eacute nomeado para as enfermarias de Bicecirctre um homem
que jaacute adquiriu certa reputaccedilatildeo no conhecimento das doenccedilas do espiacuterito a designaccedilatildeo
de Pinel prova por si soacute que a presenccedila de loucos em Bicecirctre jaacute eacute um problema meacutedico
(FOUCAULT 2002 464)
A Psiquiatria de Pinel teve como objetivo demarcar os precisos limites entre a
normalidade e a loucura Devem-se a ele os primeiros esforccedilos no sentido de separar e
classificar os diversos tipos de desvio ou alienaccedilatildeo mentalrdquo com o intuito de estudaacute-los e
trataacute-los Com Pinel a loucura comeccedila a ganhar o status de uma ldquodoenccedila mentalrdquo com
sintomatologia proacutepria que requer cura e tratamento
Em seu Traite Medico-Philosophique sur IAlienation Mentale Pinel (1801) afirma que
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Os alienados longe de serem culpados a quem se deve punir satildeo doentes cujo
doloroso estado merece toda a consideraccedilatildeo devida a humanidade que sofre e para
quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razatildeo desviada (apud
PEREIRA 2004 114 grifo nosso)
Hegel inspirado pelos estudos de Pinel afirma que a loucura natildeo eacute uma perda total da
razatildeo mas a contradiccedilatildeo de uma razatildeo que ainda existe O alienado eacute portanto um ser em
contradiccedilatildeo consigo mesmo mas que preserva em algum lugar um ponto lucidez
O verdadeiro tratamento apega-se a concepccedilatildeo de que a alienaccedilatildeo natildeo eacute a perda
abstrata da razatildeo nem do lado da inteligecircncia nem do lado da vontade ou da sua
responsabilidade mas um simples desarranjo do espiacuterito uma contradiccedilatildeo na
razatildeo que ainda existe assim como a doenccedila fiacutesica natildeo eacute uma perda abstrata isto eacute
completa da sauacutede (isso seria a morte) mas eacute uma contradiccedilatildeo dentro dela Esse
tratamento humano isto eacute tatildeo benevolente quanto razoaacutevel da loucura pressupotildee que
o doente eacute razoaacutevel e aiacute encontra um soacutelido ponto para abordaacute-lo desse lado (HEGEL
apud FOUCAULT 1972 524 grifo nosso)
Sendo a alienaccedilatildeo um distuacuterbio das paixotildees no interior da proacutepria razatildeo e natildeo fora dela
o tratamento possiacutevel para a loucura era buscar reestabelecer a normalidade perdida Conforme
afirma Pinel (1801) ldquohaacute sempre um resto de razatildeo mesmo no mais alienado dos alienadosrdquo e
se haacute um resto de razatildeo para Pinel era possiacutevel resgataacute-la (apud CAPONI 2012 48)
Os meios propostos por Pinel para reestabelecer o equiliacutebrio do doente constituiacuteam no
que ele chamou de ldquotratamento moralrdquo O termo moral nesse sentido era usado para designar
aquilo que pertence ao espiacuterito em contraposiccedilatildeo ao que eacute fiacutesico Assim o tratamento moral
visava reeducar o ldquodoenterdquo no sentido de ldquocriar estrateacutegias para dominar as paixotildees e recuperar
a razatildeordquo (CAPONI 2012 53)
O chamado tratamento moral praticado pelos alienistas incluiacutea o afastamento dos
doentes do contato exterior com todas as influecircncias da vida social e de qualquer
contato que pudesse modificar o que era considerado o desenvolvimento natural da
doenccedila (PEREIRA 2004 114)
A estrateacutegia de isolamento praticada com o tratamento moral procurava manter distacircncia
das condiccedilotildees que Pinel acreditava terem contribuiacutedo para o desenvolvimento da doenccedila
Segundo seus estudos tratavam-se de elementos de ordem social e afetiva que ele relacionava
com certos tipos de alienaccedilatildeo mental
Existe uma marcada diferenccedila na frequecircncia de certas causas conforme as espeacutecies de
alienaccedilatildeo problemas domeacutesticos produzem mais frequentemente a mania uma
devoccedilatildeo muito exaltada determina a melancolia Um amor contrariado e infeliz parece
ser a fonte fecunda para duas espeacutecies de alienaccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo ao idiotismo os
estudos indicam que as causas fiacutesicas como um viacutecio de conformaccedilatildeo podem estar na
origem da maior parte dos casos (PINEL apud CAPONI 2012 48)
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Podemos ver que as ldquocausas moraisrdquo mais frequentes da alienaccedilatildeo satildeo experiecircncias
comuns a vida cotidiana ( amor contrariado problemas domeacutesticos devoccedilatildeo religiosa etc) que
poderiam ser revertidas com o tratamento atraveacutes da submissatildeo do doente a um ambiente de
controle onde seria possiacutevel dominar as paixotildees desenfreadas e os comportamentos
inadequados atraveacutes da ldquovoz da razatildeordquo representada pela figura do psiquiatra
Conforme Pinel
A terapecircutica da loucura eacute a arte de subjulgar e dominar por assim dizer o alienado
pondo-o em extrema dependecircncia de um homem que por suas qualidades fiacutesicas e
morais estaacute apto para exercer sobre ele um domiacutenio irresistiacutevel algueacutem capaz de
mudar a cadeia viciosa de suas ideacuteias (FOUCAULT 2003 apud CAPONI 2012 41)
Assim dois elementos mostram-se fundamentais para o sucesso do tratamento moral
isolamento e poder Por um lado a ideia de privar o doente do contato com as condiccedilotildees que
ocasionaram a sua doenccedila resulta no seu isolamento por outro a submissatildeo a um ambiente
riacutegido de regras firmes e incontestaacuteveis seria o fator imprescindiacutevel para exercer o controle das
paixotildees
A proacutepria organizaccedilatildeo do espaccedilo e das rotinas do ambiente asilar eram pensadas de
modo que a disciplina do ambiente pudesse se refletir tambeacutem nos pacientes operando assim
uma espeacutecie de ldquocontenccedilatildeordquo pelo ambiente (CAPONI 2012) As regras condutas horaacuterios e
regimentos do hospital tinham como objetivo reeducar a mente do ldquoalienadordquo afastar os deliacuterios
e ldquochamar agrave consciecircncia agrave realidaderdquo (AMARANTE 200733) Assim o hospital passa a ser
natildeo somente o lugar onde acontece o tratamento mas ele proacuteprio um instrumento ldquoterapecircuticordquo
Este tratamento exige uma reorganizaccedilatildeo interna do espaccedilo asilar uma distribuiccedilatildeo
minuciosa das diferentes espeacutecies de doente ficando os melancoacutelicos mais proacuteximos
do paacutetio e situando-se o restando dos pacientes mais longe de acordo com a sua
periculosidade Assim como existe uma minuciosa descriccedilatildeo e organizaccedilatildeo do
espaccedilo algo semelhante ocorreraacute com o controle do tempo As atividades exercidas
no asilo tem tempos estabelecidas assim como os tratamentos para cada tipo de
doenccedila As regras seratildeo previamente estabelecidas e fixadas sendo que cada
estrateacutegia disciplinar pretende contrapor a loucura agrave racionalidade e agrave mesura
representadas pelo saber meacutedico Define-se assim o modelo que deve ser interiorizado
por esse tipo de ortopedia moral que rege nos asilos (CAPONI2012 50)
Vecirc-se entatildeo que o surgimento dos hospitais psiquiaacutetricos nasce estreitamente ligado agrave
concepccedilatildeo de loucura enquanto doenccedila mental e a ideia de um tratamento que usa como
recursos terapecircuticos o isolamento a disciplina e a autoridade Com o alienismo o hospital
deixa de ser um espaccedilo de assistecircncia e filantropia para se tornar de fato uma instituiccedilatildeo
meacutedica Comeccedila-se a se estabelecer uma diferenccedila entre o louco o criminoso o pobre e o
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doente dos oacutergatildeos de modo que se torna necessaacuterio isolar o louco dos demais internos em um
ambiente separado afim de observaacute-lo e estudar a natureza de sua doenccedila Embora os loucos jaacute
fossem institucionalizados antes do alienismo haacute nesse momento uma marcada diferenccedila a
clausura em questatildeo natildeo se daacute mais por caridade ou repressatildeo mas ldquopor um imperativo
terapecircuticordquo (AMARANTE 2007 33)
Assim as condiccedilotildees de possibilidade para o surgimento do manicocircmio enquanto uma
instituiccedilatildeo de isolamento da loucura contemplam tanto os alienistas e seu entendimento sobre
a loucura quanto agraves necessidades da sociedade como um todo Por um lado a concepccedilatildeo que
se tinha em relaccedilatildeo agrave loucura exigia o reestabelecimento da razatildeo atraveacutes de uma reeducaccedilatildeo
moral cujos alicerces eram o isolamento e as riacutegidas disciplinas institucionais por outro
haviam os anseios da populaccedilatildeo por isolamento e exclusatildeo daqueles que desviam da norma
social e que por isso lhe parecem estranhos e perigosos
Foi assim que segundo Amarante (2007 33) ldquoo alienismo pineliano ganhou o mundordquo
e embora tenha havido algumas criacuteticas a esse modelo ele soacute seraacute efetivamente questionado no
seacuteculo XX no contexto do poacutes-guerra na Europa
As duas grandes Guerras Mundiais voltaram a sociedade para uma reflexatildeo sobre a
natureza humana a crueldade e solidariedade com o proacuteximo No poacutes-Segunda Guerra com a
queda do nazismo especificamente percebeu-se que as condiccedilotildees de vida oferecidas nos
hospitais psiquiaacutetricos pouco se distanciavam daquelas oferecidas aos judeus nos campos de
concentraccedilatildeo nazistas (AMARANTE 2007)
Paralelamente a Europa sofreu um forte abalo econocircmico Segundo Heidrich (2007
38) ldquoos autores destacam que soacute na Franccedila 40 mil doentes mentais morreram nos asilos devido
agraves maacutes condiccedilotildees e a falta de alimentaccedilatildeordquo Houve uma perda consideraacutevel da matildeo-de-obra
disponiacutevel que fora lanccedilada ao campo de batalha e jaacute natildeo havia mais quem pudesse reconstruir
a economia e reparar os danos do poacutes-guerra
Nessa atual conjuntura natildeo era mais possiacutevel assistir-se passivamente ao
deterioramento do espetaacuteculo asilar natildeo era mais possiacutevel aceitar uma situaccedilatildeo em
que um conjunto de homens passiacuteveis de atividade pudessem estar espantosamente
estragados no hospiacutecio Passou-se a enxergar como um grande absurdo esse montante
de desperdiacutecio da forccedila de trabalho (BIRMAN COSTA 1994 46-7)
Segundo Birman e Costa (1994) lidos por Heidrich (2007) haviam duas preocupaccedilotildees
centrais que demandavam a reforma do modelo asilar
Por um lado a preocupaccedilatildeo dos proacuteprios psiquiatras com relaccedilatildeo agrave sua impotecircncia
terapecircutica por outro as preocupaccedilotildees governamentais geradas pelos altos iacutendices
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de cronicidade das doenccedilas mentais com sua consequente incapacidade social Dessa
forma a psiquiatria social aparece transferindo o campo de atuaccedilatildeo da psiquiatria da
doenccedila mental para a sauacutede mental ( BIRMAN COSTA 1994 apud HEIDRICH
2007 36-7)
O Hospital Psiquiaacutetrico comeccedila a aparecer entatildeo como o principal responsaacutevel pela
degradaccedilatildeo dos pacientes e pela manutenccedilatildeo e pela cronicidade de sua doenccedila Assim surgem
vaacuterias experiecircncias com o objetivo de transformar o ambiente asilar e reabilitar os pacientes
para a vida social e para o trabalho
Segundo Amarante (2007) esses movimentos reformistas foram divididos em ldquodois
grupos mais umrdquo
O primeiro grupo composto pela Comunidade Terapecircutica e pela Psicoterapia
Institucional destaca duas experiecircncias que investiram no princiacutepio de que o fracasso
estava na forma de gestatildeo do proacuteprio hospital e que a soluccedilatildeo portanto seria
introduzir mudanccedilas na instituiccedilatildeo O segundo grupo eacute formado pela Psicoterapia de
Setor e Psiquiatria Preventiva experiecircncias que acreditavam que o modelo hospitalar
estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ldquopelas beiradasrdquo como se diz
na linguagem popular isto eacute deveria ser tornado obsoleto a partir da construccedilatildeo de
serviccedilos assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapecircutico (hospitais dia
oficinas terapecircuticas centros de sauacutede mental etc) ao mesmo tempo que iriam
diminuindo a importacircncia e a necessidade do hospital psiquiaacutetrico No lsquooutrorsquo grupo
em que estatildeo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica o termo reforma parece
inadequado Ambas consideram que a questatildeo mesma estaria no modelo cientiacutefico
psiquiaacutetrico que eacute todo ele colocado em xeque assim como suas instituiccedilotildees
assistenciais (AMARANTE 2007 41)
O primeiro grupo formado pela Comunidade Terapecircutica (Inglaterra e EUA) e pela a
Psicoterapia Institucional (Franccedila) acreditava em uma reforma do ambiente hospitalar de modo
a humanizaacute-lo e tornaacute-lo efetivamente terapecircutico Assim empreenderam propostas de
democratizar o hospital dissolver a rigidez da hierarquia e da disciplina do ambiente hospitalar
de modo a horizontalizar as relaccedilotildees de poder Todos deviam fazer parte de uma mesma
comunidade terapecircutica e lutar contra a violecircncia institucional O sistema eacute pensado de modo a
apostar no potencial terapecircutico do coletivo e a incluir o sujeito que experiecircncia o sofrimento
como co-participante de seu tratamento Jaacute vemos aiacute uma inversatildeo em relaccedilatildeo a psiquiatria
pineliana e ao modo tradicional de se entender a loucura poreacutem natildeo haacute um questionamento em
relaccedilatildeo a necessidade de institucionalizaccedilatildeo do louco
O segundo grupo composto pela Psiquiatria de Setor (Franccedila) e pela Psiquiatria
Preventiva (EUA) jaacute apontava para a necessidade de um trabalho externo ao manicocircmio A
Psiquiatria de Setor se destacou por criar serviccedilos externos agrave internaccedilatildeo os CSM (Centros de
Sauacutede Mental) distribuiacutedos pelo territoacuterio de acordo com o contingente populacional nos
diferentes setores administrativos das regiotildees francesas O hospital por sua vez era tambeacutem
dividido em vaacuterios setores de modo que pacientes de uma mesma regiatildeo administrativa fossem
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sempre internados no mesmo setor do hospital e quando recebessem alta eram enviados ao CMS
correspondente (AMARANTE 2007)
Organizar o cuidado desse modo permitia que o sujeito pudesse ser acompanhado pela
mesma equipe multiprofissional desde a internaccedilatildeo hospitalar ateacute a alta e encaminhamento para
o CMS do setor contando com o viacutenculo como um recurso terapecircutico Comeccedila-se a se
construir a ideia de uma equipe multidisciplinar de modo que o cuidado natildeo ficasse mais apenas
centralizado na figura do meacutedico
A Psiquiatria Preventiva tambeacutem conhecida como Psiquiatria Comunitaacuteria buscou
aplicar o meacutetodo da Medicina Preventiva agrave Psiquiatria visando reduzir a incidecircncia das doenccedilas
mentais na populaccedilatildeo Caplan fundador dessa corrente acreditava que ldquotodas as doenccedilas
mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocementerdquo (apud AMARANTE
2007 48)
Para a Psiquiatria Preventiva o conceito de crise passa a ser norteador A crise era
entendida a partir do vieacutes socioloacutegico de ldquoadaptaccedilatildeo e desadaptaccedilatildeo socialrdquo Segundo Joel
Birman e Jurandir Freire Costa atraveacutes da leitura de Amarante as crises eram classificadas em
dois grandes grupos
1) Evolutivas-quando relacionadas a processos normais do desenvolvimento fiacutesico
emocional ou social Em tais processos na passagem de uma fase agrave outra da vida a
conduta natildeo estaria caracterizada por um padratildeo estabelecido Tratar-se-ia de um
periacuteodo transitoacuterio quando o indiviacuteduo perderia sua caracterizaccedilatildeo anterior sem no
entanto adquirir uma nova organizaccedilatildeo Na hipoacutetese de os conflitos gerados natildeo
serem bem absorvidos poderiam levar agrave desadaptaccedilatildeo que natildeo sendo elaborados pela
pessoa poderiam conduzir agrave doenccedila mental
2) Acidentais- quando precipitadas por alguma perda ou risco (desemprego separaccedilatildeo
conjugal falecimento de uma pessoa querida etc) A perturbaccedilatildeo emocional
ocasionada pela crise provocaria eventualmente o surgimento de alguma enfermidade
mental assim torna-se um momento estrateacutegico de intervenccedilatildeo preventiva na medida
em que em contrapartida a crise pode ser encarada como uma possibilidade de
crescimento para o indiviacuteduo (Birman e Costa 1998 apud AMARANTE 2007 49-
50)
Entendendo que algumas situaccedilotildees sejam elas relativas ao desenvolvimento natural do
ser humano ou a condiccedilotildees externas diversas apontam para momentos mais delicados da vida
a Psiquiatria Preventiva propocircs estrateacutegias de trabalho de base comunitaacuteria investindo em
equipes de sauacutede mental que pudessem acompanhar os usuaacuterios preventivamente identificando
e intervindo na crise em seu vieacutes individual familiar e social
Tambeacutem foram implantados vaacuterios serviccedilos comunitaacuterios de cuidado com o objetivo de
acompanhar os usuaacuterios preventivamente diminuindo a incidecircncia das doenccedilas mentais e a
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necessidade de internaccedilotildees psiquiaacutetricas de modo que aos poucos o hospital se tornasse um
recurso obsoleto e desnecessaacuterio (AMARANTE 2007)
No entanto aconteceu paradoxalmente um aumento importante da demanda psiquiaacutetrica
nos EUA tanto nos serviccedilos extra hospitalares quanto nos hospitais psiquiaacutetricos ldquoos proacuteprios
serviccedilos comunitaacuterios se transformaram em grandes captadores e encaminhadores de novas
clientelas para os hospitais psiquiaacutetricosrdquo (AMARANTE 2007 51)
Assim vemos que embora tenha havido uma mudanccedila na estruturaccedilatildeo dos serviccedilos ela
natildeo eacute suficiente sem uma mudanccedila de mentalidade em relaccedilatildeo agrave loucura e aos modos de trataacute-
la Ainda que os novos dispositivos tenham sido pensados para evitar as internaccedilotildees
psiquiaacutetricas isso natildeo ocorreraacute se os profissionais continuam a pensar do mesmo modo e se natildeo
haacute um trabalho com a sociedade no sentido de questionar a exclusatildeo da loucura e inventar novas
possibilidades de convivecircncia
Nesse ponto a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica Italiana se destacam das
demais propostas de reformas da psiquiatria Para a Antipsiquiatria as pessoas tidas como
loucas eram reprimidas e violentadas natildeo soacute nos hospitais mas na sociedade como um todo
Logo ldquoa experiecircncia dita patoloacutegica ocorria natildeo no indiviacuteduo na condiccedilatildeo de corpo ou mente
doente mas nas relaccedilotildees estabelecidas entre ele e a sociedaderdquo (AMARANTE 2007 35)
Assim natildeo era apenas a instituiccedilatildeo que precisava mudar tampouco o sujeito dito louco mas a
proacutepria relaccedilatildeo entre loucura e sociedade
O princiacutepio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiecircncia esta seria
por si soacute terapecircutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de
reorganizaccedilatildeo interior Ao lsquoterapeutarsquo competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a
superar esse processo acompanhando-a protegendo-a inclusive da violecircncia da
proacutepria psiquiatria (AMARANTE 2007 54)
Quanto agrave experiecircncia italiana Franco Basaglia (1968) precursor do movimento
entendia que era preciso superar natildeo apenas o manicocircmio mas todo o aparato manicomial isto
eacute natildeo soacute a estrutura fiacutesica do hospital mas o conjunto de seus saberes e praacuteticas cientiacuteficas
sociais juriacutedicas e legislativas
Essa inflexatildeo destaca que a luta natildeo eacute contra o manicocircmio em si mas contra toda e
qualquer praacutetica manicomial Com isso Basaglia (1968) chama atenccedilatildeo para o fato de que
mesmo nos dispositivos ditos ldquonovosrdquo eacute possiacutevel haver uma reproduccedilatildeo de praacuteticas autoritaacuterias
e opressoras em relaccedilatildeo agrave loucura Vale dizer que foi esse movimento que serviu de inspiraccedilatildeo
e base para a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira tema do nosso proacuteximo capiacutetulo
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Inspirado na Psiquiatria Comunitaacuteria Basaglia tambeacutem criou centros regionalizados
para atender as demandas de sauacutede mental No entanto diferente desse primeiro movimento
natildeo eram dispositivos que davam continuidade ao tratamento apoacutes a alta e que reinternavam os
pacientes nos manicocircmios nos momentos de crise mas serviccedilos que constituiacuteam por excelecircncia
o modelo de tratamento em sauacutede mental rejeitando definitivamente o hospital como lugar de
tratamento
Quanto ao entendimento da loucura haacute tambeacutem nesse ponto uma ruptura
epistemoloacutegica importante com o paradigma anterior Basaglia (1968) considera que o mal
obscuro da psiquiatria foi ter colocado o sujeito entre parecircnteses e ter elegido como seu objeto
de estudo ldquoa doenccedilardquo (apud AMARANTE 2007) Assim a proposta da Psiquiatria
Democraacutetica Italiana consiste em operar uma inversatildeo colocar a doenccedila entre parecircnteses e
tomar o sujeito como o objeto da psiquiatria Importante destacar que isto natildeo significa negar a
doenccedila enquanto um estado de produccedilatildeo de dor e sofrimento mas compreender que a totalidade
do sujeito natildeo se reduz agrave ela
Com isto o objeto da Psiquiatria se desloca da ldquodoenccedila mentalrdquo para a ldquosauacutede mentalrdquo
e o mandato dessa ciecircncia deixa de ser centrado na cura do paciente para se tornar uma
preocupaccedilatildeo com a sua sauacutede e com seu bem-estar social
Assim vemos que os significados da loucura na sociedade e os modelos assistenciais
desenhados para dar conta dessa questatildeo nunca foram objetos ldquodadosrdquo historicamente mas
construccedilotildees sociais Diferentes noccedilotildees de crise e de loucura permitiram a emergecircncia de
diferentes modelos de assistecircncia Com isto podemos observar que os modos de compreensatildeo
da crise e da loucura influem nas nossas ofertas de cuidado assim como nossas ofertas de
cuidado tambeacutem dizem algo do modo como estamos pensando e compreendendo a loucura e as
intervenccedilotildees possiacuteveis em uma situaccedilatildeo de crise
12 A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
O movimento de Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira encontra suas origens no final da
deacutecada de 1970 no bojo dos movimentos sociais ligados agrave luta contra a ditadura e dentro de um
movimento mais amplo de reformas no setor da sauacutede Dentre esses movimentos emergentes
em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores da Sauacutede Mental (MTSM) que assumiu um
papel importante na criacutetica e na oposiccedilatildeo ao regime militar em especial no que concernia agraves
situaccedilotildees de violaccedilatildeo dos direitos humanos dentro dos hospitais psiquiaacutetricos Esse movimento
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permitiu colocar em evidecircncia a violecircncia e a miseacuteria agraves quais eram submetidas as pessoas com
transtorno mental internadas nos hospitais da rede puacuteblica aleacutem de reivindicar melhorias nas
condiccedilotildees de trabalho dos profissionais de sauacutede (AMARANTE 1998)
Segundo Amarante (1998) um ponto crucial para o surgimento desse movimento foi o
que se denominou a ldquocrise da Divisatildeo Nacional de Sauacutede Mentalrdquo1 movimento de denuacutencia e
criacutetica agraves peacutessimas condiccedilotildees em que se encontravam os quatro hospitais da Divisatildeo Nacional
de Sauacutede Mental do Ministeacuterio da Sauacutede no Rio de Janeiro (Centro Psiquiaacutetrico Pedro II ndash
CPPII Hospital Pinel Colocircnia Juliano Moreira ndash CJM e Manicocircmio Judiciaacuterio Heitor
Carrilho) Essa situaccedilatildeo culminou na greve de meacutedicos e funcionaacuterios no primeiro trimestre de
1978 seguida da demissatildeo de 260 estagiaacuterios e profissionais
Na eacutepoca devido ao destaque do Rio de Janeiro como ex-capital federal e como capital
cultural do Brasil somado a gravidade dessas denuacutencias terem ocorrido dentro de um oacutergatildeo
federal constatou-se um verdadeiro escacircndalo no modo como o Estado tratava os pacientes
com transtorno mental e seus funcionaacuterios Isso permitiu com que a situaccedilatildeo atingisse
repercussatildeo nacional tanto atraveacutes da divulgaccedilatildeo na miacutedia quanto pelo debate em setores
expressivos da sociedade brasileira o que impulsionou o movimento de Reforma por todo o
paiacutes (AMARANTE 1998)
Em 1987 surge o Movimento de Luta Antimanicomial a partir do Encontro dos
Trabalhadores da Sauacutede Mental que reuniu mais de 350 trabalhadores na cidade de Bauru no
estado de Satildeo Paulo O movimento assumiu um papel importante no processo de construccedilatildeo da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira contribuindo no fortalecimento e na organizaccedilatildeo dos
trabalhadores usuaacuterios e familiares em torno das pautas e reivindicaccedilotildees da aacuterea
(VASCONCELOS 2008)
Na deacutecada de 1980 haacute um fortalecimento dos movimentos reformistas Segundo
Tenoacuterio (2002) houve um amadurecimento da criacutetica ao modelo asilarsegregador e uma
contestaccedilatildeo mais forte em relaccedilatildeo agraves internaccedilotildees conveniadas
a deacutecada de 1980 assistiu ainda a trecircs processos tambeacutem importantes para a
consolidaccedilatildeo das caracteriacutesticas atuais do movimento da reforma a ampliaccedilatildeo dos
atores sociais envolvidos no processo a iniciativa de reformulaccedilatildeo legislativa e o
surgimento de experiecircncias institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo
tipo de cuidado em sauacutede mental (TENOacuteRIO 2002 27)
1 Oacutergatildeo do Ministeacuterio da Sauacutede responsaacutevel pela formulaccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede do subsetor sauacutede mental
26
Em 1989 o deputado Paulo Delgado propotildee o projeto de lei no 365789 estabelecendo
os direitos das pessoas com transtorno mental e prevendo a extinccedilatildeo dos manicocircmios poreacutem
devido aos fortes lobbies dos proprietaacuterios de hospitais psiquiaacutetricos o projeto natildeo eacute aprovado
mas produz a ampliaccedilatildeo do debate em torno da reestruturaccedilatildeo da assistecircncia por todo o paiacutes
A intensificaccedilatildeo do debate e a popularizaccedilatildeo da causa da reforma desencadeadas pela
iniciativa de revisatildeo legislativa certamente impulsionaram os avanccedilos que a luta
alcanccedilou nos anos seguintes Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiaacutetrica
proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou a situaccedilatildeo curiosa de ser
uma lei que produziu seus efeitos antes de ser aprovada (TENOacuteRIO 2002 28
grifo nosso)
Embora a lei natildeo tenha sido aprovada nesse primeiro momento ela teve efeitos
importantes na organizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos serviccedilos em prol da Reforma Psiquiaacutetrica A
partir de 1992 os movimentos sociais conseguem aprovar em vaacuterios estados do Brasil as
primeiras leis que determinam a substituiccedilatildeo progressiva dos leitos psiquiaacutetricos por uma rede
integrada de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental (BRASIL 2005 8) Nesse contexto atraveacutes
PortariaSNAS nordm 2241992 surgem os Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e os Nuacutecleos
de Atenccedilatildeo Psicossocial (NAPS) dois importantes dispositivos com a proposta de atuarem de
formas substitutiva ao modelo asilar
Ainda nesse ano destaca-se um outro marco na histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileira a II Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental Esta conferecircncia contou com a ampla
participaccedilatildeo dos usuaacuterios e familiares de sauacutede mental cabe ressaltar que aproximadamente
20 dos delegados da conferecircncia eram usuaacuterios dos serviccedilos de sauacutede mental ou familiares de
usuaacuterios
Segundo Tenoacuterio (2002) a conferecircncia estabelece dois marcos conceituais importantes
a atenccedilatildeo integral e a cidadania
Segundo essa referecircncia satildeo desenvolvidos o tema dos direitos e da legislaccedilatildeo e a
questatildeo do modelo e da rede de atenccedilatildeo na perspectiva da municipalizaccedilatildeo As
recomendaccedilotildees gerais sobre o modelo de atenccedilatildeo propunham a adoccedilatildeo dos conceitos
de territoacuterio e responsabilidade como forma de ruptura com o modelo
hospitalocecircntrico e de garantir o direito dos usuaacuterios agrave assistecircncia e agrave recusa ao
tratamento bem como a obrigaccedilatildeo do serviccedilo em natildeo abandonaacute-los agrave proacutepria sorte
(Ministeacuterio da Sauacutede Brasil 1994 22 apud TENOacuteRIO 2002)
Ao longo da deacutecada de 1990 a proposta da construccedilatildeo de uma rede de serviccedilos que
possibilitasse a extinccedilatildeo dos manicocircmios ganhou forccedila e houve uma expansatildeo significativa dos
serviccedilos de atenccedilatildeo diaacuteria substitutivos aos hospitalares Nesse periacuteodo entre os muitos pontos
importantes destacam-se
a penetraccedilatildeo crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiaacutetrico (natildeo obstante
o triunfalismo da psiquiatria bioloacutegica) a permanecircncia continuada de diretrizes
27
reformistas no campo das poliacuteticas puacuteblicas com os postos de coordenaccedilatildeo e gerecircncia
ocupados por partidaacuterios da reforma (no caso do Rio de Janeiro nos trecircs niacuteveis
gestores federal estadual e municipal) a existecircncia de experiecircncias renovadoras com
resultados iniciais positivos em todas as regiotildees do paiacutes a capacidade das experiecircncias
mais antigas de manter sua vitalidade os reiterados indiacutecios de um novo olhar sobre
a loucura vicejando no espaccedilo social um olhar natildeo mais tatildeo fortemente marcado pelos
estigmas do preconceito e do medo (TENOacuteRIO 200241)
Depois de 12 anos tramitando no congresso eacute aprovado em 2001 um projeto substitutivo
da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado a lei 10216 que sofreu muitas modificaccedilotildees no
texto original A referida lei ldquodispotildee sobre a proteccedilatildeo das pessoas com transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sauacutede mentalrdquo (BRASIL 2001) No artigo 2ordm paraacutegrafo
uacutenico estabelece que satildeo direitos da pessoa com transtorno mental
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de sauacutede consentacircneo agraves suas
necessidades II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua sauacutede visando alcanccedilar sua recuperaccedilatildeo pela inserccedilatildeo na famiacutelia no
trabalho e na comunidade III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e
exploraccedilatildeo IV ndash ter garantia de sigilo nas informaccedilotildees prestadas V ndash ter direito agrave
presenccedila meacutedica em qualquer tempo para esclarecer a necessidade ou natildeo de sua
hospitalizaccedilatildeo involuntaacuteria VI ndash ter livre acesso aos meios de comunicaccedilatildeo
disponiacuteveis VII ndash receber o maior nuacutemero de informaccedilotildees a respeito de sua doenccedila e
de seu tratamento VIII ndash ser tratada em ambiente terapecircutico pelos meios menos
invasivos possiacuteveis IX ndash ser tratada preferencialmente em serviccedilos comunitaacuterios de
sauacutede mental (BRASIL 2001)
A lei 10216 tambeacutem regulamenta as internaccedilotildees psquiaacutetricas e redireciona o modelo
assistencial em sauacutede
Aleacutem dos CAPS previu-se a implantaccedilatildeo de ambulatoacuterios de sauacutede mental NAPS
residecircncias terapecircuticas hospitais-dia unidades de psiquiatria em hospitais gerais
lares protegidos e centros de convivecircncia e cultura (BRASIL 2001 apud BARROSO
SILVA 2011 73)
Previram-se tambeacutem a criaccedilatildeo de oficinas de trabalho protegido unidades de
preparaccedilatildeo para a reinserccedilatildeo social dos pacientes e serviccedilos para o atendimento agraves
famiacutelias (BARROSO SILVA 201173 )
Apoacutes a aprovaccedilatildeo da lei 10216 surgiram mais duas portarias que instituiacuteam os serviccedilos
residenciais terapecircuticos (106 e 1220 ambas de 2000)
outras oito leis estaduais e diversas portarias e programas foram criados para
regulamentaccedilatildeo do atendimento psiquiaacutetrico comunitaacuterio Merecem destaque o
programa ldquoDe volta para casardquo (BRASIL 2003) e a portaria 336GM que atribui aos
CAPS o papel central na psiquiatria comunitaacuteria brasileira (DELGADO et al 2007)
(BARROSO SILVA 2011 74)
Quanto agraves mudanccedilas na assistecircncia e na superaccedilatildeo do modelo manicomial desde a
aprovaccedilatildeo da lei cabe levantar alguns dados para fins de anaacutelise Destaca-se como um avanccedilo
significativo na RPB a inversatildeo da curva do financiamento do SUS para a sauacutede mental a
partir de 2006 O valor anteriormente destinado aos hospitais psiquiaacutetricos passa a ser investido
em igual proporccedilatildeo nos serviccedilos de natureza aberta e comunitaacuteria (Graacutefico 1) o que mostra um
28
fortalecimento da rede substitutiva e um empenho na efetiva transformaccedilatildeo do modelo de
assistecircncia de acordo com as novas diretrizes da RPB (BRASIL 2015)
Cabe mencionar que os gastos em Atenccedilatildeo Comunitaacuteria Territorial incluem natildeo
somente os CAPS mas todos os serviccedilos da rede substitutiva tais como Serviccedilos Residenciais
Terapecircuticos (SRT) Centros de Convivecircncia Oficinas de geraccedilatildeo de renda aleacutem de programas
de incentivo financeiro como o Programa Volta para Casa
Quanto agrave expansatildeo dos CAPS desde a aprovaccedilatildeo da Lei 10216 dados do Ministeacuterio da
Sauacutede (2015) apontam uma expansatildeo meacutedia significativa e contiacutenua em todo o territoacuterio
nacional Desde 2002 ateacute 2014 houve um aumento de aproximadamente 150 CAPS por ano
chegando ao total de 2209 serviccedilos em 2014 nas diferentes modalidades como pode ser visto
no Graacutefico 2 (BRASIL 2015)
29
Graacutefico 2 - Seacuterie histoacuterica de expansatildeo de CAPS (2002 a 2014)
Fonte Sauacutede Mental em Dados BRASIL 2015 Elaboraccedilatildeo proacutepria
Vale ressaltar entretanto que a modalidade de CAPS tipo III (com funcionamento 24hrs
e leitos de acolhimento noturno) natildeo acompanhou esse crescimento Como podemos observar
no Quadro 1 no ano de 2014 dos 2209 CAPS existentes no paiacutes apenas 154 eram do tipo III
Considerando que 65 satildeo CAPS ad III destinados aos usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas temos
somente 85 CAPS do tipo III especificamente com capacidade de oferecer acolhimento noturno
agrave crise psicoacutetica e outros transtornos mentais graves percentual correspondente a apenas 38
do total de CAPS no paiacutes (BRASIL 2015)
Quanto a distribuiccedilatildeo dos CAPS III em 2014 verifica-se uma concentraccedilatildeo da oferta
desses serviccedilos em Satildeo Paulo e Minas Gerais que contavam com 35 e 12 unidades
respectivamente Os estados que figuraram em seguida com o maior nuacutemero de CAPS III foram
Paraiacuteba e Pernambuco com quatro serviccedilos cada um Paraacute Bahia Cearaacute Maranhatildeo Sergipe
Paranaacute e Rio de Janeiro contavam com trecircs CAPS III cada um Natildeo possuiacuteam CAPS III os
estados de Acre Amapaacute Rondocircnia Tocantins Alagoas Espiacuterito Santo Mato Grosso e o
Distrito Federal (Quadro 1)
30
31
A baixa participaccedilatildeo dos CAPS III no total de CAPS bem como a ausecircncia deste serviccedilo
em diversos estados mostra que sua proposta natildeo foi assumida pela gestatildeo municipal na escala
observada para os outros tipos de serviccedilos (COSTA et al 2011) Vale ressaltar que a
implantaccedilatildeo dos CAPS III ficou aqueacutem do esperado pelo proacuteprio MS (BRASIL 2011) o que
impacta diretamente na capacidade da RAPS acolher agrave crise em uma proposta de cuidado
substitutiva ao Hospital Psiquiaacutetrico
Em relaccedilatildeo a quantidade de leitos disponiacuteveis para a atenccedilatildeo agrave crise verificamos que haacute
uma marcada preponderacircncia dos leitos em hospitais psiquiaacutetricos em detrimento dos leitos de
sauacutede mental em hospitais gerais e em CAPS III Chama atenccedilatildeo especialmente o fato de que
a quantidade de leitos disponiacuteveis em CAPS III quando comparada ao total de leitos no cenaacuterio
nacional e local eacute praticamente nula alcanccedilando uma meacutedia de 238 e 1 2 em 2014
respectivamente
No cenaacuterio nacional segundo o Ministeacuterio da Sauacutede haviam 25988 leitos em hospitais
psiquiaacutetricos em 2014 (BRASIL 2015) Nos hospitais gerais considerando que o MS faz
distinccedilatildeo entre ldquoleitos de sauacutede mentalrdquo e de ldquopsiquiatriardquo de acordo com o CNES em 2014
haviam 4620 leitos de psiquiatria em HG pediaacutetricos e maternidades destinados ao SUS
(BRASIL 2015) No mesmo ano constam 888 leitos de sauacutede mental em hospitais gerais
conforme podemos ver no Quadro 2 resultando em uma soma de 5508 leitos disponiacuteveis para
a sauacutede mental em hospitais gerais no Brasil
Considerando que de acordo com Portaria 336 que rege o funcionamento dos CAPS
cada CAPS III deve ter no maacuteximo 5 leitos (BRASIL 2002) e que em 2014 de acordo com o
Quadro 1 constavam 154 CAPS III espalhados pelo territoacuterio nacional tomando para fins de
estimativa a capacidade maacutexima de leitos por CAPS teriacuteamos aproximadamente 770 leitos nos
CAPS III destinados a retaguarda noturna nos casos de crise Esse percentual correspondente
a apenas 2 38 do total de leitos o que significa que aproximadamente 8055 dos leitos estatildeo
nos hospitais psiquiaacutetricos
No municiacutepio do Rio de Janeiro de acordo com o Quadro 3 dos 1572 leitos
psiquiaacutetricos existentes 1504 se localizam em hospitais psiquiaacutetricos representando 975
do total de leitos Apenas 31 (49 leitos) se localizam em hospitais gerais e 1 2 (19) nos
CAPS III (BRASIL 2015)
32
Fonte Sauacutede Mental em Dados Brasil (2015)
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo
IIIndashSecretaria Municipal de Sauacutede do Rio de Janeirondashsetembro de 2015
FonteCNESMinisteacuterio da Sauacutede setembro de 2015
Localizaccedilatildeo
dos Leitos
Quantidade Porcentagem
Hospital
Psiquiaacutetrico
1504 957
Hospitais
Gerais
49 31
CAPS III 19 12
Total 1572 100
33
Desse modo embora tenhamos conquistado alguns avanccedilos significativos no processo
de reestruturaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede mental ao longo dos uacuteltimos 30 anos destaca-se a
reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do nuacutemero de
CAPS a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na atenccedilatildeo
comunitaacuteria e territorial etc na praacutetica os hospitais psiquiaacutetricos continuam ocupando um
lugar central na assistecircncia agrave crise constituindo-se muitas vezes na porta de entrada do usuaacuterio
ao sistema de sauacutede
Assim o cenaacuterio atual eacute marcado pela expansatildeo dos serviccedilos substitutivos mas tambeacutem
pela permanecircncia do hospitais psiquiaacutetricos e dispositivos tradicionais determinando a
coexistecircncia de dois modelos de cuidado opostos e mutuamente excludentes o tradicional
modelo asilar e o modelo substitutivo de modo que a RAPS no momento se caracteriza muito
mais por ser complementar do que substitutiva ao modelo asilar como era de se esperar
Logo os manicocircmios natildeo apenas resistem como insistem e se queremos
desinstitucionalizar e acolher a crise no territoacuterio eacute imprescindiacutevel perguntar ao que a
institucionalizaccedilatildeo de um paciente estaacute respondendo Qual eacute o problema que ela coloca Como
desmontar a soluccedilatildeo institucional (a internaccedilatildeo) e reconstruir o problema sobre outras bases
Importante dizer que construir novos arranjos para lidar com a crise natildeo se trata apenas
de aumentar a capacidade de resolutividade dos serviccedilos Eacute preciso ampliar o cuidado para
atender a crise de forma integral Isso significa fazer articulaccedilotildees com o que haacute de produccedilatildeo de
vida tambeacutem fora do espaccedilo dos serviccedilos isto eacute na vida na comunidade na cidade Persiste
desse modo o desafio de romper natildeo soacute com o manicocircmio mas com toda loacutegica e praacutetica de
segregaccedilatildeo da loucura
34
20 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL
21 Reflexotildees sobre a crise e o cuidado
Segundo Moebus e Fernandes (sd) a palavra crise em sua origem grega (krisis ou
Kriacutenein) significa um estado no qual uma decisatildeo tem que ser tomada Esse termo era usado
pelos meacutedicos da antiguidade grega no intuito de se referir a um ponto na evoluccedilatildeo da doenccedila
do paciente no qual ele tanto poderia apresentar uma melhora em direccedilatildeo agrave cura ou piora em
direccedilatildeo agrave morte A ideia de crise portanto aproximava-se nesse contexto agrave noccedilatildeo de um
momento criacutetico decisivo cujo desfecho poderia ser tanto positivo quanto negativo
Jaacute a origem sacircnscrita da palavra eacute kri ou kir que significa ldquodesembaraccedilarrdquo ou purificar
Compartilhando desse mesmo sentido podemos destacar a palavra ldquocrisolrdquo que significa
ldquoelemento quiacutemico que purifica o ouro das gangas limpando-o dos elementos que se fixaram
no metal pelo seu processo vital ou histoacuterico e ao longo do tempo tomaram conta de seu cerne
a ponto de comprometerem sua substacircncia em sirdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN
200732) Crise nessa acepccedilatildeo carrega um teor de transformaccedilatildeo e purificaccedilatildeo em que a
substacircncia pode alcanccedilar sua verdadeira essecircncia
Destaca-se nessas significaccedilotildees originaacuterias da palavra elementos que trazem a ideia de
crise associada agrave um desequiliacutebrio transitoacuterio a um processo de mudanccedila transformaccedilatildeo com
possibilidade de evoluir de maneira positiva Eacute um momento de descontinuidade e perturbaccedilatildeo
da normalidade da vida em algo que eacute deixado para traacutes poreacutem ao mesmo tempo por isso
mesmo abre-se uma nova possibilidade de ser e estar no mundo
Outros autores de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica relacionam o conceito de crise ao conceito de
trauma que para Freud diz respeito ldquoa uma vivecircncia que traz um grande aumento da excitaccedilatildeo
da vida psiacutequica em um curto espaccedilo de tempo tendo por caracteriacutestica o fracasso de sua
liquidaccedilatildeo por meios habituaisrdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Nesse mesmo sentido segundo Laplanche e Pontalis (1986 768) ldquoo trauma consiste
em um acontecimento da crise que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se
acha o indiviacuteduo de lhe responder de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos
patogecircnicos que provoca na organizaccedilatildeo psiacutequicardquo
Haacute nessas definiccedilotildees algo da ordem de um excesso que rompe com o estado de
equiliacutebrio que o indiviacuteduo se encontra e transborda lanccedilando-o em direccedilatildeo a algo estranho e
desconhecido Essa ruptura eacute vivenciada pelo sujeito como algo assustador ao qual ele natildeo
35
encontra recursos psiacutequicos para responder ou mesmo para atribuir qualquer tipo de
significaccedilatildeo As soluccedilotildees que o sujeito costumeiramente encontrava para lidar com seu
sofrimento de alguma forma natildeo satildeo mais suficientes daiacute resultando entatildeo seu estado de
anguacutestia
Knobloch (1998) estudiosa de Ferenczi designa a crise como uma ldquoexperiecircncia limite
natildeo por ser uma experiecircncia que desafia o limite mas por extravasar o delimitado ldquoEacute uma
experiecircncia que traz um excesso excesso do que eacute insuportaacutevel e intoleraacutevel Ruptura em que
se redistribuem de uma maneira brutal as condiccedilotildees da realidade rdquo (apud FERIGATO
CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Para Birman (1983) a pessoa em crise encontra-se em um estado mental no qual ldquoa
anguacutestia provocada pelo que nos escapa eacute tatildeo importante que ficamos com o sentimento de que
a nossa proacutepria vida estaacute escapando uma experiecircncia de perda de seus sistemas de referecircncia
isto eacute a ameaccedila de perda da proacutepria identidaderdquo (apud FERIGATO CAMPOS BALLARIN
2007 35)
Se por um lado haacute a forccedila de um questionamento das convicccedilotildees mais fundamentais de
um indiviacuteduo por outro haacute tambeacutem uma abertura um espaccedilo para a criaccedilatildeo de algo novo de
outros arranjos e possibilidades de organizaccedilatildeo psiacutequica Embora essa vivecircncia seja marcada
por uma extrema sensaccedilatildeo de anguacutestia invasatildeo e sofrimento podemos apontar tambeacutem sua
potecircncia em produzir um desvio em caracterizar a saiacuteda de um lugar historicamente dado para
outro a ser construiacutedo exigindo outras ligaccedilotildees ateacute entatildeo inexistentes (FERIGATO CAMPOS
BALLARIN 2007)
Podemos ver a crise como um acontecimento extremo poreacutem muitas vezes necessaacuterio
na vida de um sujeito Eacute um momento que marca uma diferenccedila a partir da qual natildeo eacute mais
possiacutevel se viver do modo em que se estava vivendo anteriormente Eacute preciso reelaborar a
experiecircncia para habitar outro territoacuterio existencial
No entanto na histoacuteria da Psiquiatria especialmente na Psiquiatria claacutessica-asilar e
hospitalocecircntrica o sentido de crise perdeu sua dimensatildeo de renovaccedilatildeo O que rompe com a
organizaccedilatildeo e com o equiliacutebrio de um indiviacuteduo foi automaticamente entendido como algo
destrutivo que coloca o sujeito em um lugar de exclusatildeo social
A crise e toda a complexidade ligada ao sofrimento de um sujeito foi reduzida agrave
ldquoagudizaccedilatildeo da sintomatologia psiquiaacutetricardquo isto eacute a gama de sinais e sintomas (deliacuterios
alucinaccedilotildees agitaccedilatildeo psicomotora etc) caracteriacutesticos de uma determinada doenccedila Nesse
36
sentido o objetivo da intervenccedilatildeo dos psiquiatras era garantir a remissatildeo completa dos
sintomas em curto periacuteodo de tempo para que o sujeito pudesse voltar a seu estado de
ldquonormalidaderdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007) desconsiderando desse modo as
vivecircncias e situaccedilotildees que possivelmente contribuiacuteram para a eclosatildeo da situaccedilatildeo de crise em
que o sujeito se encontra
Nessa perspectiva a crise eacute entendida como um momento isolado da vida do sujeito
que nada tem a ver com sua histoacuteria com suas relaccedilotildees ou seu contexto soacutecio-afetivo Por isso
o cuidado possiacutevel tem como direccedilatildeo a estabilizaccedilatildeo dos sintomas isto eacute o silenciamento
daquilo que aparece como socialmente inapropriado ou inadequado na conduta do sujeito
Assim a medicaccedilatildeo a contenccedilatildeo fiacutesica e a internaccedilatildeo aparecem como os principais recursos
terapecircuticos aplacando a intensidade do momento fazendo um corte na experiecircncia de
sofrimento do sujeito para que apoacutes algum tempo ele volte naturalmente ao seu estado de
ldquonormalidaderdquo
Tecnologias de cuidado com base na classificaccedilatildeo de distuacuterbios e homogeneizaccedilatildeo de
grupos de problemas tambeacutem satildeo utilizadas com o intuito de preacute-estabelecer condutas e
respostas padratildeo para toda e qualquer situaccedilatildeo de crise que possa vir a emergir Segundo
Dell`Acqua e Mezzina (1991) o serviccedilo passa a responder agrave crise atraveacutes do seu proacuteprio
sintoma Assim toda a complexidade da existecircncia de sofrimento de um sujeito reduz-se a um
mero sinal caracteriacutestico da crise
Ao longo da histoacuteria da Psiquiatria a crise sempre foi vista como uma crise do paciente
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Pinel apostava em uma proposta terapecircutica de
confinamento da loucura em um ambiente controlado para que os alienistas pudessem
recuperar e ldquocorrigirrdquo os erros de pensamento que incidiam sobre as pessoas em situaccedilatildeo de
crise O tratamento natildeo visava agir diretamente nas questotildees sociais e afetivas que tinham
relaccedilatildeo com a experiecircncia de sofrimento vivenciada pelo sujeito mas pretendia isolar o sujeito
para entatildeo ldquoconsertaacute-lordquo em uma clara perspectiva de que o problema estava no sujeito
Com o advento da Psicanaacutelise vemos uma inversatildeo dessa loacutegica Para Freud o deliacuterio
eacute uma tentativa de cura que visa dar sentido a uma experiecircncia psiacutequica de sofrimento Sendo
assim ldquonatildeo haacute o que ser corrigido haacute o que ser escutado Haacute o que ser recuperado Haacute o que
ser construiacutedordquo (CORBISIER 1991 10)
Com Pinel aqueles que se encontravam desviados de sua verdadeira razatildeo deviam ser
conduzidos novamente agrave realidade atraveacutes da correccedilatildeo dos sentimentos comportamentos e
37
pensamentos equivocados Com Freud o deliacuterio eacute entendido como uma forma do sujeito
construir um sentido para uma experiecircncia perturbadora (como por exemplo ouvir vozes ver
coisas que natildeo existem etc) que lhe causa sofrimento Assim o problema natildeo estaacute no sujeito
nem no deliacuterio nem nos sintomas mas no modo como ele consegue ou natildeo atribuir sentido ao
que vivencia
Atribuindo um sentido (ainda que delirante) a vivecircncias que satildeo perturbadoras o sujeito
pode ressignificar sua relaccedilatildeo com o mundo e encontrar modos menos angustiantes de estar na
vida Natildeo eacute necessaacuterio portanto ldquoadequarrdquo o pensamento de um sujeito agrave realidade O deliacuterio
pode ele mesmo ser um ponto de estabilizaccedilatildeo na medida que oferece alguma possibilidade de
inserir novamente o sujeito no campo do simboacutelico isto eacute de refazer as conexotildees perdidas na
situaccedilatildeo de crise Se a crise eacute marcada por uma ruptura a possibilidade de construccedilatildeo de um
deliacuterio pode ser justamente aquilo que reconecta o sujeito ao mundo que lhe cerca
Assim eacute preciso escutar as diferenccedilas e tratar do sofrimento que ela pode vir a ocasionar
sem no entanto aboli-las A Psicanaacutelise traz em sua aposta na escuta a possibilidade de
recuperar as diferenccedilas Atraveacutes da fala o sujeito vai contando sua histoacuteria e resgatando aquilo
que lhe pertence que lhe eacute peculiar e o que o constitui Essa experiecircncia permite estabelecer
um corte com as tentativas homogeneizantes da Psiquiatria Claacutessica de lidar com a loucura A
aposta na fala permite ao sujeito construir novos sentidos para o seu sofrimento e perceber que
a presenccedila de um outro que o escute pode produzir algum aliacutevio para sua dor
Embora possamos agrupar sinais e sintomas comuns a psicose (deliacuterio alucinaccedilatildeo
dificuldade em construir laccedilo social etc) cada sujeito vai imprimir em seu sintoma a sua marca
Assim cada loucura eacute singular pois cada um delira de um jeito cada um faz laccedilo social de um
jeito etc Na sintomatologia de um sujeito vamos encontrar elementos que pertencem a sua
cultura agrave sua histoacuteria pessoal e aos seus prazeres e desprazeres em torno da vida Logo as
intervenccedilotildees vatildeo ser diferentes a depender daquilo que o sujeito traz
Nesse ponto vale fazer uma distinccedilatildeo entre emergecircncia psiquiaacutetrica e urgecircncia
subjetiva A emergecircncia psiquiaacutetrica se refere a emergecircncia do sintoma Logo o alvo de sua
intervenccedilatildeo eacute o corpo bioloacutegico O caos de sentimentos e de pensamentos supostamente sem
sentido que emergem na crise psicoacutetica devem ser suprimidos atraveacutes da medicaccedilatildeo restituindo
o corpo ao estado que se encontrava anteriormente (BARRETO 2004)
No afatilde de se estabilizar o sujeito suprimindo seu sintoma natildeo haacute tempo para pensar o
que se coloca em questatildeo em uma crise psicoacutetica Natildeo haacute espaccedilo para direcionar um olhar para
38
o sujeito que estaacute inserido naquela situaccedilatildeo emergencial e ver o que nela haacute de singular pois
ldquohaacute coisas para fazer O clinico seleciona coisas para fazer e simplifica a situaccedilatildeordquo (BARRETO
2004 2) a fim de devolver o sujeito ao seu estado de normalidade
A partir da referecircncia da Psicanaacutelise a urgecircncia subjetiva eacute entendida como a urgecircncia
do sujeito que estaacute em crise logo abrange o sintoma mas natildeo se reduz a ele Barreto (2004)
aponta que na crise psicoacutetica acontece uma ruptura com a cadeia de significantes de modo que
a manifestaccedilatildeo dos sintomas que se seguem ao momento de crise expressa uma
ldquoimpossibilidade de significar minimamente pela fala um gozo que natildeo encontra o significante
necessaacuterio para transformaacute-lordquo (BARRETO 2004 1)
A urgecircncia subjetiva se refere portanto ao que haacute de singular em cada crise no
sofrimento do sujeito que se constitui enquanto demanda para um outro Nesse sentido ela
aponta para a necessidade de uma intervenccedilatildeo que natildeo pode ser adiada dada a gravidade em
que se encontra o sujeito poreacutem eacute o avesso da contenccedilatildeo do sintoma pois se utiliza da urgecircncia
que o sujeito coloca para construir a partir dela alguma outra resposta possiacutevel a ser fabricada
no caso a caso
Assim reintroduzir a dimensatildeo subjetiva no sujeito eacute a proposta da Psicanaacutelise
(SELDES 2004)
A psiquiatria apresenta uma resposta para o sujeito atraveacutes de uma nomenclatura
diagnoacutestica oriunda dos manuais de classificaccedilatildeo no vieacutes de uma certeza do Outro o
grande outro da ciecircncia A psicanaacutelise aponta sua resposta ao sujeito quando diz um
sim a sua descoberta sim a sua soluccedilatildeo delirante sim a qualquer possibilidade em
que o sujeito possa se agarrar e retomar minimante seu discurso e o seu laccedilo social O
psicanalista natildeo deteacutem o saber o saber eacute do sujeito (SILVA J 2011 44)
Acolher a crise nessa perspectiva natildeo eacute abordar o paciente que chega aos serviccedilos de
emergecircncia em sauacutede mental procurando encontrar onde estaacute a integridade do sujeito dentro da
crise isto eacute natildeo se trata de fazer uma separaccedilatildeo entre o sujeito e sua loucura para entatildeo extrair-
lhe lsquoa peacuterola que seria a razatildeordquo2 mas sim ouvir o que ali dentro da loucura se coloca enquanto
sujeito
Nesse sentido quando acolhemos um usuaacuterio em crise o que a experiecircncia de crise de
um sujeito pode colocar de questatildeo sobre sua histoacuteria sua vida seu cotidiano Nossa
2 Referecircncia ao livro O Alienista de Machado de Assis especificamente ao seguinte trecho ldquosuponho o espiacuterito
humano uma vasta concha o meu fim Sr Soares eacute ver se posso extrair a peacuterola que eacute a razatildeo por outros
termos demarquemos definitivamente os limites da razatildeo e da loucura A razatildeo eacute o perfeito equiliacutebrio de todas
as faculdades fora daiacute insacircnia insacircnia e soacute insacircniardquo (ASSIS 1882 261)
39
intervenccedilatildeo tem contribuiacutedo para oferecer novas possibilidades de vida a esses sujeitos ou
estamos somente silenciando sintomas
Entendemos que o modo como os profissionais compreendem a crise influencia
significativamente a produccedilatildeo de cuidado Concepccedilotildees de crise centradas nos aspectos
puramente sintomaacuteticos desencadearatildeo intervenccedilotildees no sentido de suprimir o mais
rapidamente possiacutevel os sintomas Ao passo que concepccedilotildees de crise mais abrangentes tem mais
possibilidade de remeter ao sujeito o que essa crise coloca como questatildeo na sua vida e quais
satildeo as possibilidades outras de manejo para esses conflitos Logo uma concepccedilatildeo ampla de
crise (que considere os aspectos sociais afetivos e subjetivos) pode oferecer ao sujeito a
possibilidade de se recolocar em relaccedilatildeo ao seu sintoma e encontrar outros caminhos para lidar
com seu sofrimento
22 O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS
No capiacutetulo anterior vimos como diferentes formas de compreender a loucura ao longo
da histoacuteria produziram impactos nos modos de intervir e lidar com a crise Intervenccedilotildees
baseadas na autoridade no poder na disciplina e no confinamento remetem agrave loucura enquanto
iacutendice de uma anormalidade e falam de uma concepccedilatildeo de ldquocuidadordquo que visa ldquoconsertarrdquo os
sujeitos atraveacutes da correccedilatildeo de seus comportamentos e sentimentos supostamente inadequados
Por outro lado intervenccedilotildees com base no acolhimento na construccedilatildeo de sentidos e na
contextualizaccedilatildeo dos conflitos do sujeito falam de uma concepccedilatildeo de crise que valoriza o
sujeito e sua histoacuteria e o entende como parte de um mundo que o afeta e o transforma
Assim se olhar para as praacuteticas de cuidado pode lanccedilar luz sobre as concepccedilotildees de
loucura presentes na sauacutede mental quando olhamos para o modo como a rede se organiza e se
estrutura para acolher a crise sobre que concepccedilotildees de crise ela nos fala Que sentidos de crise
estatildeo presentes no modo como o SUS foi idealizado e preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas de
sauacutede E que sentidos de crise emergem quando observamos o modo como os usuaacuterios e
trabalhadores efetivamente usam e vivenciam o SUS em cotidiano Como as poliacuteticas de sauacutede
pensam a crise E que questotildees a crise traz agraves poliacuteticas de sauacutede Quais satildeo seus
distanciamentos e aproximaccedilotildees
Tradicionalmente muitos autores tecircm se utilizado da imagem de uma piracircmide para
ldquorepresentar o modelo tecno-assistencial que gostariacuteamos de construir com a implantaccedilatildeo plena
do SUSrdquo (CECIacuteLIO 1997470) Na ampla base da piracircmide estariam dispostos os serviccedilos de
baixa complexidade como as cliacutenicas da famiacutelia que oferecem atendimento para populaccedilatildeo de
40
sua aacuterea de abrangecircncia dentro das atribuiccedilotildees estabelecidas para o niacutevel de atenccedilatildeo primaacuteria
constituindo-se na porta de entrada privilegiada para os niacuteveis de maior complexidade do
sistema de sauacutede Na parte intermediaacuteria estariam localizados os serviccedilos da atenccedilatildeo
secundaacuteria que satildeo ldquobasicamente os serviccedilos ambulatoriais com suas especialidades cliacutenicas e
ciruacutergicas o conjunto de serviccedilos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico alguns serviccedilos de
atendimento a urgecircncia e emergecircncia e os hospitais gerais normalmente pensados como sendo
hospitais distritaisrdquo (CECIacuteLIO 1997 470) No topo da piracircmide encontramos por fim os
serviccedilos mais complexos como os grandes hospitais de caraacuteter regional estadual ou ateacute mesmo
nacional
O objetivo deste modelo eacute estabelecer um fluxo ordenado de pacientes atraveacutes de
mecanismos de referecircncia e contra referecircncia que regulam o acesso entre os niacuteveis de atenccedilatildeo
em sauacutede tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima na piracircmide Dessa forma para
cada necessidade de sauacutede a pessoa eacute encaminhada para o niacutevel de complexidade adequado
evitando sobrecarregar os hospitais e ambulatoacuterios com demandas de baixa complexidade e ao
mesmo tempo trabalhando na atenccedilatildeo baacutesica com estrateacutegias de prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da
sauacutede evitando o agravo de doenccedilas que se natildeo tratadas podem demandar intervenccedilotildees
meacutedicas mais complexas
No entanto no dia a dia do SUS a realidade tem se mostrado bem distante desse modelo
idealizado Como aponta Ceciacutelio (1997 471) ldquoa piracircmide a despeito da justeza dos princiacutepios
que representa tem sido muito mais um desejo dos teacutecnicos e gerentes do sistema do que uma
realidade com a qual a populaccedilatildeo usuaacuteria possa contarrdquo
Na praacutetica a populaccedilatildeo burla o tempo inteiro os fluxos da regulaccedilatildeo formal Buscam
ajuda onde acreditam que vatildeo encontraacute-la tentando acessar o sistema por onde eacute mais faacutecil ou
muitas vezes por onde eacute mais possiacutevel Na tentativa de resolver seus problemas percorrem
vaacuterias unidades de sauacutede diferentes ateacute conseguirem o que desejam um remeacutedio uma consulta
um encaminhamento uma indicaccedilatildeo de internaccedilatildeo Natildeo raro falsificam o comprovante de
residecircncia ou usam o de outra pessoa visando conseguir atendimento em uma unidade mais
proacutexima ou mais bem equipada Do mesmo modo questionam o tratamento chegando a ter em
alguns casos dois meacutedicos e dois tratamentos diferentes para uma mesma questatildeo de sauacutede sem
que um meacutedico saiba da existecircncia do outro
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Haacute quem pense que todo o problema satildeo os usuaacuterios que ldquobagunccedilamrdquo o sistema natildeo
seguem os fluxos estabelecidos pois natildeo conhecem o funcionamento do sistema e buscam
atendimento em locais inapropriados por ignoracircncia ou maacute-feacute
Ceciacutelio (1997) expotildee esse problema ao trazer a tensatildeo existente entre o que denomina o
ldquousuaacuterio-fabricadordquo e o ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo Segundo o autor o usuaacuterio-fabricado seria o
ldquousuaacuterio idealrdquo normatizado pelas estrateacutegias da Medicina Preventiva que atraveacutes de uma
perspectiva individualista de ldquohaacutebitos saudaacuteveisrdquo pretende ldquofabricarrdquo sujeitos esclarecidos e
por isso menos dependentes do sistema de sauacutede Trata-se entatildeo de produzir um usuaacuterio
disciplinado educado que segue as orientaccedilotildees meacutedicas e leva uma vida saudaacutevel e regrada
O ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo por sua vez eacute aquele que natildeo necessariamente segue as
indicaccedilotildees meacutedicas mas batalha por sua conta e risco para conseguir o acesso agrave tecnologia de
cuidado que supotildee que precisa no dispositivo de sauacutede que julga ser o mais adequado tendo
como perspectiva sua experiecircncia com a doenccedila suas crenccedilas e desejos pessoais Assim o
tempo todo ele transgride agraves regras quebra os fluxos testa e contesta o sistema produzindo agrave
sua maneira seu caminho dentro do SUS Como destaca Ceciacutelio (1997) ldquoo usuaacuterio-fabricador
com sua accedilatildeo concreta e protagonismo com suas buscas e com seus ousados experimentos de
tentativas e erros vai produzindo circuitos opccedilotildees caminhos que soacute em parte correspondem agrave
normalizaccedilatildeo oficial do sistemardquo (ibidem 288)
Contra a perspectiva de um sistema de sauacutede ideal e racionalizado o usuaacuterio-fabricador
eacute aquele que usa o SUS real e por isso encontra suas falhas e furos propondo soluccedilotildees agrave sua
maneira atraveacutes de sua experiecircncia no sistema ldquoDaiacute a ser uma prepotecircncia tecnocraacutetica dizer
que o povatildeo eacute deseducado que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de
sauacutede As pessoas acessam o sistema por onde eacute mais faacutecil ou possiacutevelrdquo (CECILIO1997 472)
E porque natildeo incluir esse saber leigo do usuaacuterio nas estrateacutegias de planejamento e
organizaccedilatildeo do cuidado em sauacutede Por que natildeo ouvir o que esses usuaacuterios tecircm a nos dizer e
incorporaacute-los como parceiros na construccedilatildeo de um SUS possiacutevel natildeo aquele idealizado mas
um que faccedila mais sentido na perspectiva de quem de fato o utiliza
Precisamos considerar que o SUS eacute feito de pessoais reais usuaacuterios trabalhadores
meacutedicos enfermeiros psicoacutelogos que ao se moverem de acordo com suas eacuteticas profissionais
seus saberes experiecircncias esperanccedilas e desejos imprimem novos significados agrave um sistema
que estaacute em permanente construccedilatildeo Esses atores ldquoproduzem inventam resistem e configuram
um cuidado que afinal nunca eacute como noacutes (gestores sanitaristas pensadores formuladores)
42
teimamos em querer normalizar formatar produzir agrave nossa imagem e semelhanccedilardquo (CECIacuteLIO
2012287)
Assim como os usuaacuterios os trabalhadores de sauacutede no encontro com as necessidades
reais de seus pacientes e com as barreiras de acesso do sistema tambeacutem burlam a regulaccedilatildeo
formal muitas vezes se utilizando de seus contatos pessoais relaccedilotildees de conhecimento e
confianccedila para produzir fluxos que possam garantir a continuidade do cuidado oferecido
especialmente nos casos difiacuteceis em que a complexidade dos pacientes natildeo se encaixa na
caixinha de cuidados formalmente oferecida pelo SUS
Quando falamos de um usuaacuterio em crise precisamos pensar que a caixinha de cuidados
padratildeo frequentemente natildeo vai dar conta da complexidade colocada em uma crise psicoacutetica
Muitas vezes a razatildeo pela qual um usuaacuterio vai parar na emergecircncia ou no hospital psiquiaacutetrico
eacute justamente porque os recursos que ele dispotildee para lidar com seu sofrimento natildeo foram mais
capazes de sustentar uma estabilizaccedilatildeo Daiacute a necessidade de podermos pensar outros recursos
outras regulaccedilotildees outros dispositivos
Um usuaacuterio em crise eacute por excelecircncia um usuaacuterio-fabricador As soluccedilotildees que ele vai
engendrar para seu sofrimento vatildeo exceder em muito os limites de um sistema de sauacutede
organizado sob a figura de uma piracircmide em niacuteveis crescentes de complexidade Quando esse
usuaacuterio consegue pedir ajuda ele o faraacute sob a sua loacutegica a partir da suas expectativas e
singularidades Ele pode ir na cliacutenica da famiacutelia no hospital na emergecircncia na poliacutecia na casa
da vizinha na Igreja na escola onde achar possiacutevel obter a ajuda que precisa ainda que suas
escolhas sejam um tanto inusitadas Do mesmo modo quando um usuaacuterio entra em crise isso
tambeacutem pode acontecer em qualquer ponto do sistema e noacutes enquanto profissionais precisamos
ser capazes de oferecer algum suporte a esse sujeito onde ele estiver e na hora em que precisa
da ajuda
A crise natildeo espera o nosso tempo o tempo do encaminhamento do acolhimento-
triagem da discussatildeo de caso do contato com o profissional de referecircncia ela acontece quando
se menos espera e por isso eacute importante que natildeo soacute o dispositivo de referecircncia esteja preparado
para acolhecirc-la mas que todas as portas de entrada do sistema estejam qualificadas enquanto
espaccedilos privilegiados para o acolhimento e reconhecimento das necessidades dos usuaacuterios
Eacute nesse sentido que Ceciacutelio (1997) propotildee uma mudanccedila na imagem de representaccedilatildeo
do modelo de sauacutede da piracircmide ao ciacuterculo Pensar o sistema de sauacutede enquanto ciacuterculo natildeo
significa abandonar os ideais da Reforma Sanitaacuteria no que diz respeito a um comprometimento
43
com a equidade o atendimento universal integral e de boa qualidade mas ao contraacuterio tomar
esses princiacutepios na sua radicalidade e pensaacute-los sob a luz das necessidades reais das pessoas e
do uso que fazem do sistema O formato do ciacuterculo reforccedila um valor essencial do SUS a
integralidade Apostar na imagem do ciacuterculo significa pensar o sistema de sauacutede menos
enquanto um fluxo hierarquizado de pessoas e mais enquanto uma rede em que todos os pontos
satildeo uma porta de acesso qualificada e possiacutevel para o usuaacuterio
Segundo Ceciacutelio (1997 475) ldquo O ciacuterculo se associa com a ideacuteia de movimento de
muacuteltiplas alternativas de entrada e saiacuteda Ele natildeo hierarquiza Abre possibilidadesrdquo Trata-se
de relativizar a hierarquizaccedilatildeo dos serviccedilos abrindo espaccedilo para que o acolhimento possa se
dar onde o paciente solicita ajuda Natildeo estamos negando com isso a especificidade e a missatildeo
diferenciada de cada serviccedilo mas tentando produzir uma rede menos fragmentada e mais
proacutexima da realidade dos usuaacuterios
A loacutegica horizontal dos vaacuterios serviccedilos de sauacutede colocados na superfiacutecie plana do
ciacuterculo eacute mais coerente com a ideacuteia de que todo e qualquer serviccedilo de sauacutede eacute espaccedilo
de alta densidade tecnoloacutegica que deve ser colocada a serviccedilo da vida dos cidadatildeos
Por esta concepccedilatildeo o que importa mais eacute a garantia de acesso ao serviccedilo adequado agrave
tecnologia adequada no momento apropriado e como responsabilidade intransferiacutevel
do sistema de sauacutede Trabalhando assim o centro das nossas preocupaccedilotildees eacute o usuaacuterio
e natildeo a construccedilatildeo de modelos assistenciais aprioriacutesticos aparentemente capazes de
introduzir uma racionalidade que se supotildee ser a melhor para as pessoas
(CECIacuteLIO1997 477)
Eacute importante ressaltar que defender o sistema de sauacutede enquanto um ciacuterculo natildeo se
limita agrave uma mera inflexatildeo teoacuterica mas a possibilidade de garantir que a integralidade seja uma
missatildeo colocada para todos os serviccedilos de sauacutede e natildeo para cada paciente individualmente em
sua peregrinaccedilatildeo pelos dispositivos de sauacutede Nesse sentido trata-se de apostar na continuidade
da linha de cuidado trabalhando para que o paciente tenha acesso agrave assistecircncia por onde ele
chega do modo como chega
Isso significa deslocar um pouco a ideia de referecircncia Ainda que o CAPS seja o serviccedilo
com maior possibilidade e capacidade de atender uma crise psicoacutetica todos os serviccedilos devem
ser capazes de oferecer algum acolhimento agrave crise Se em uma crise psicoacutetica o que estaacute
colocado eacute a fragmentaccedilatildeo do sujeito natildeo eacute possiacutevel que ele consiga se reestruturar em um
sistema igualmente fragmentado
No encontro do usuaacuterio com a equipe o que deve nortear a produccedilatildeo do cuidado eacute a
escuta das necessidades de sauacutede da pessoa que busca o serviccedilo Ainda que o serviccedilo em questatildeo
seja apenas um serviccedilo de passagem na linha de cuidado do usuaacuterio ter o compromisso e a
preocupaccedilatildeo de se fazer sempre a melhor escuta e a melhor devolutiva possiacutevel pode fazer toda
44
a diferenccedila no acolhimento de um sujeito e na continuidade de sua linha de cuidado O essencial
nesse contexto eacute que o encaminhamento natildeo seja meramente uma transferecircncia de
responsabilidade sem que nada tenha sido construiacutedo no caminho
Escutar nesse sentido natildeo se iguala a atender todas as possiacuteveis demandas que traz o
usuaacuterio A demanda eacute o pedido expliacutecito mas as necessidades podem ser bem outras A
demanda pode ser por internaccedilatildeo pela troca de medicamento pela troca do profissional de
referecircncia etc Pode ir dos pedidos mais pragmaacuteticos aos mais delirantes mas nem sempre o
que o usuaacuterio formula enquanto demanda eacute o que ele quer nos pedir
Eacute preciso estar atento tambeacutem para o que pode estar incluiacutedo no seu pedido elementos
como o viacutenculo com a equipe suas relaccedilotildees pessoais o modo como lida com seus sentimentos
sua condiccedilatildeo de vida suas expectativas e sonhos etc Cabe a equipe conhecer o usuaacuterio e ter a
sensibilidade de buscar compreender o que estaacute para aleacutem do pedido expliacutecito ajudando-o a
construir uma saiacuteda possiacutevel para seu sofrimento
Assim a integralidade da atenccedilatildeo no espaccedilo singular de cada serviccedilo de sauacutede
poderia ser definida como o esforccedilo da equipe de sauacutede de traduzir e atender da
melhor forma possiacutevel tais necessidades sempre complexas mas principalmente
tendo que ser captadas em sua expressatildeo individual () Cada atendimento de cada
profissional deve estar compromissado com a maior integralidade possiacutevel sempre
mas tambeacutem ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida soacute seraacute
alcanccedilada como fruto do trabalho solidaacuterio da equipe de sauacutede com seus muacuteltiplos
saberes e praacuteticas Maior integralidade possiacutevel na abordagem de cada profissional
maior integralidade possiacutevel como fruto de um trabalho multiprofissional (CECIacuteLIO
2009 120 121)
A integralidade nesse sentido eacute mais do que cada serviccedilo fazendo sua parte eacute mais do
que o modelo da piracircmide pode oferecer A imagem da piracircmide faz pensar os serviccedilos mais
complexos como lugares de ldquofinalizaccedilatildeo do cuidadordquo da ldquouacuteltima palavrardquo na cliacutenica do sujeito
de ldquoatendimento de demandas pontuais superespecializadas especiacuteficas e por isso mesmo
descompromissados com a integralidaderdquo (CECIacuteLIO 2009 122) Assim escuta qualificada
natildeo eacute missatildeo colocada somente para os ambulatoacuterios e nem o acolhimento agrave crise eacute uma
responsabilidade somente do CAPS Conforme Ceciacutelio (2009 123) ldquo a integralidade natildeo se
realiza nunca em um serviccedilo integralidade eacute objetivo de rederdquo Desse modo todos os serviccedilos
precisam se articular no sentido de dar seguimento ao cuidado de um sujeito em crise e natildeo
apenas o serviccedilo de referecircncia ou a atenccedilatildeo baacutesica que tem sido apontada como o lugar
privilegiado na coordenaccedilatildeo do cuidado
Haacute que se destacar que uma rede soacute seraacute efetivamente integral se for conectada com os
outros dispositivos do territoacuterio onde a vida acontece espaccedilos de cultura e lazer instituiccedilotildees
45
fora do setor sauacutede (ligadas a educaccedilatildeo justiccedila assistecircncia social e outras) associaccedilotildees de
bairros e movimentos organizados instituiccedilotildees religiosas etc Cada territoacuterio carrega em si
uma histoacuteria de ocupaccedilatildeo dos espaccedilos seus usos e costumes sua influecircncia econocircmica e
poliacutetica seu papel social etc Assim pensar a organizaccedilatildeo de um CAPS em uma cidade do
interior eacute diferente de pensar a organizaccedilatildeo desse mesmo serviccedilo em uma metroacutepole ou em uma
periferia A divisatildeo entre bairros pobres e ricos as regiotildees de comeacutercio de meretriacutecio
comunidades regiotildees atravessadas pelo poder do traacutefico e das miliacutecias influem diretamente
nos modos de vida das pessoas
Sendo assim ldquoorganizar um serviccedilo substitutivo que opere segundo a loacutegica do territoacuterio
eacute olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugarrdquo (YASUI LIMA 2010597) Eacute considerar o
contexto de vida das pessoas e suas necessidades de sauacutede Eacute entender que a organizaccedilatildeo da
rede seu acesso e suas ofertas de cuidado precisam fazer sentido na vida daquele que
experiencia o SUS e que enfrenta no seu cotidiano suas barreiras limites e insuficiecircncias
46
3 METODOLOGIA
Segundo Turato (2003) meacutetodo eacute um ldquoconjunto de regras que elegemos num
determinado contexto para se obter dados que nos auxiliem nas explicaccedilotildees ou compreensotildees
dos aspectos ou fenocircmenos constituintes do mundordquo (ibidem 153) Na investigaccedilatildeo cientiacutefica
identificamos comumente dois tipos de metodologia de pesquisa a do tipo quantitativo e do
tipo qualitativo sendo tambeacutem possiacutevel uma mistura desses dois tipos denominada pesquisa
quali-quanti
Estudos quantitativos satildeo mais indicados para pesquisas interessadas em trabalhar com
dados e variaacuteveis de forma objetiva isto eacute quantificaacutevel Jaacute a pesquisa qualitativa permite uma
reflexatildeo mais profunda de fenocircmenos natildeo quantificaacuteveis sendo por isso mais indicada para
tratar de questotildees de ordem subjetiva cultural ou social
Segundo Minayo a pesquisa qualitativa eacute aquela que ldquotrabalha com o universo de
significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo
mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave
operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveisrdquo (2014 22) sendo portanto mais adequada para estudar
fenocircmenos da existecircncia humana que natildeo podem ser quantificados como eacute o caso do objeto
dessa pesquisa
Visando atingir o objetivo desse estudo ndash discutir e analisar os avanccedilos e desafios na
organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo de cuidados aos pacientes em situaccedilatildeo de crise em sauacutede mental-
realizaremos um estudo de revisatildeo bibliograacutefica integrativa de artigos cientiacuteficos da literatura
nacional
Dentre os meacutetodos de revisatildeo a revisatildeo integrativa torna-se especialmente interessante
para essa pesquisa pois permite combinar estudos de literatura teoacuterica e empiacuterica de modo que
tenhamos uma visatildeo mais ampla e concreta dos impasses que se colocam no atendimento agrave
crise no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede mental
Assim foi feita uma busca preliminar na Biblioteca Virtual em Sauacutede (BVS) e no Scielo
no mecircs de Janeiro de 2019 a partir dos seguintes descritores e combinaccedilotildees
1) ldquosauacutede mental and crise and cuidadordquo
2) ldquosauacutede mental and crise and serviccedilos de sauacutederdquo
47
Optou-se por trabalhar com textos em formato de artigos cientiacuteficos Foram
considerados os seguintes criteacuterios de exclusatildeo artigos duplicados texto completo
indisponiacutevel natildeo se aplicam a aacuterea do estudo entendimento de crise relacionado ao
acontecimento de eventos criacuteticos como cataacutestrofes ambientais incecircndios trageacutedias em massa
(queda de aviatildeo desabamentos) etc sofrimento psiacutequico em decorrecircncia de doenccedila orgacircnica
de maior gravidade (exemplo cacircncer HIV etc) toda a sorte de assuntos relacionados aos
familiares de pessoas com transtorno mental estudos que natildeo abordam o contexto brasileiro ou
que natildeo localizam a reflexatildeo das praacuteticas de cuidado no acircmbito do SUS e da Reforma
Psiquiaacutetrica questotildees especiacuteficas do cuidado de uma categoria profissional em particular
(enfermeiros meacutedicos etc) estudos de vieacutes histoacuterico epidemioloacutegico normativo ou educativo
(guias cartilhas documentos oficiais etc)
Na BVS na primeira busca encontramos 89 resultados Foi aplicado o filtro de idioma
portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 85 referecircncias disponiacuteveis Em seguida foram excluiacutedas
21 referecircncias duplicadas 2 em formato de dissertaccedilatildeo e outras 43 com a aplicaccedilatildeo dos criteacuterios
de exclusatildeo Apoacutes a leitura dos resumos foram excluiacutedas mais 9 referecircncias segundo os
criteacuterios de exclusatildeo restando um total de 10 artigos
Na segunda busca ainda na BVS encontramos 2253 resultados Foram aplicados os
seguintes filtros idioma portuguecircs e texto completo disponiacutevel gerando uma reduccedilatildeo para 123
referecircncias Apoacutes o cruzamento com a primeira pesquisa excluiacutemos mais 15 referecircncias
Eliminamos as referecircncias duplicadas e aplicamos os criteacuterios de exclusatildeo restando um total
de 28 referecircncias Excluiacutemos mais 3 referecircncias que natildeo se encaixavam no formato de texto
escolhido para anaacutelise restando um total de 25 artigos Apoacutes a leitura dos resumos foram
excluiacutedas mais 14 referecircncias segundo os criteacuterios de exclusatildeo sobrando um total de 11 artigos
Nas buscas do Scielo natildeo foi possiacutevel encontrar nenhum resultado que pudesse ser
aproveitado para a nossa pesquisa Na primeira busca encontramos 48 referecircncias Foi aplicado
filtro de idioma portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 44 referecircncias Apoacutes o entrecruzamento
dos resultados com o levantamento na BVS excluiacutemos 14 referecircncias Em seguida excluiacutemos
mais 14 resultados repetidos Os 16 artigos restantes tambeacutem foram eliminados por natildeo se
aplicarem a aacuterea do nosso estudo ou natildeo respeitarem os criteacuterios para inclusatildeo
Na segunda busca encontramos 28 resultados Apoacutes a aplicaccedilatildeo do filtro de idioma
portuguecircs restaram 26 referecircncias das quais 9 estavam duplicadas e 12 foram eliminadas por
cruzamento As 5 referecircncias restantes tambeacutem foram eliminadas por natildeo se aplicarem a nossa
48
aacuterea de estudo ou natildeo se encaixarem nos criteacuterios para inclusatildeo Trabalharemos desse modo
somente com os resultados encontrados na busca da BVS que somaram um total de 21 artigos
A anaacutelise das questotildees suscitadas a partir desta revisatildeo teraacute abordagem qualitativa e se
organizaraacute em torno de trecircs eixos temaacuteticos a saber sentidos da crise desafios e
potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidados
Segundo Minayo
Fazer uma anaacutelise temaacutetica consiste em descobrir os nuacutecleos de sentido que compotildeem
uma comunicaccedilatildeo cuja presenccedila ou frequecircncia signifiquem alguma coisa para o
objeto analiacutetico visado Para uma anaacutelise de significados a presenccedila de determinados
temas denota estruturas de relevacircnciavalores de referecircncia e modelos de
comportamento presentes ou subjacentes no discursordquo (MINAYO 2014 316)
Assim esperamos que essa anaacutelise possa lanccedilar luz sobre as questotildees mais relevantes
levantadas na literatura em torno do acolhimento agrave crise apontando os principais desafios que
ela impotildee na construccedilatildeo e sustentaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica no cotidiano das praacuteticas e dos
serviccedilos de sauacutede Os eixos temaacuteticos seratildeo correlacionados com o referencial teoacuterico dessa
pesquisa visando alcanccedilar uma anaacutelise mais profunda e feacutertil dos temas em questatildeo
49
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA
Conforme foi explicitado no capiacutetulo de metodologia a discussatildeo e reflexatildeo dos artigos
alvos dessa revisatildeo se organizaraacute a partir de trecircs categorias temaacuteticas sentidos de crise desafios
e potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidado
Nosso caminho para a formulaccedilatildeo dessas categorias comeccedilou a partir dos descritores
usados nas buscas das plataformas Da leitura dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise
and cuidado and sauacutede mentalrdquo emergiram a maior parte das questotildees relacionadas aos modos
de compreender e significar a crise em sauacutede mental suas repercussotildees sobre as praacuteticas de
cuidado bem como os desafios e estrateacutegias encontrados pelos profissionais no manejo da crise
em seu cotidiano de trabalho Assim desdobramos esse eixo em duas outras categorias
ldquosentidos de criserdquo e ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo
Dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise and sauacutede mental and serviccedilos de
sauacutederdquo emergiram predominantemente as questotildees relacionadas agrave forma como os serviccedilos tecircm
se organizado para receber e acolher as situaccedilotildees de crise Desse eixo fazem parte natildeo soacute as
questotildees relacionadas ao papel de cada serviccedilo e sua organizaccedilatildeo interna para lidar com as
situaccedilotildees de crise como tambeacutem sua possibilidade de articulaccedilatildeo com os outros serviccedilos da
RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e dispositivos do territoacuterio na construccedilatildeo de uma
resposta integral e complexa agraves demandas da crise Esses resultados estatildeo concentrados no eixo
ldquoorganizaccedilatildeo da rede de cuidadosrdquo
41 OS SENTIDOS DA CRISE
Dos muitos sentidos e significados em torno da crise destacamos trecircs que pela forccedila e
intensidade com que aparecem nos artigos atraveacutes das falas dos profissionais das narrativas
dos usuaacuterios e familiares e das situaccedilotildees que emergiram no campo de pesquisa desdobraram-
se em subcategorias na nossa anaacutelise a crise enquanto ameaccedila social a crise enquanto perda e
isolamento e a crise enquanto apropriaccedilatildeo da experiecircncia da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidos
O sentido negativo da crise enquanto ldquoameaccedila socialrdquo aparece sobretudo na fala dos
profissionais e familiares remetendo a figura do louco como ser fora de si agressivo sem
controle apresentado risco para si e para os outros agrave sua volta Os estudos de Pereira Saacute e
Miranda (2017) Milhomens e Martin (2014) Lima (2012) Garcia e Costa (2014) Brito
Bonfada e Guimaratildees (2015) abordam essa realidade Nessas narrativas observamos que a
complexidade do fenocircmeno da loucura eacute reduzida a manifestaccedilatildeo dos sintomas agressivos e
50
violentos operando um recorte muito simploacuterio da vivecircncia da crise e do contexto em que ela
ocorre Vemos como a representaccedilatildeo desse imaginaacuterio fortalece e justifica mecanismos de
controle e vigilacircncia que remontam agrave Psiquiatria Tradicional mesmo nos serviccedilos substitutivos
A crise enquanto ldquoexperiecircncia de perda e isolamentordquo foi um sentido que apareceu
especialmente nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da
primeira crise como nas pesquisas de Pereira Saacute Miranda (2017) e Milhomens Martin (2014)
A peculiaridade dos sintomas que emergem e o estigma social relacionado a eles parecem
reforccedilar nesse primeiro momento um sentido da crise enquanto perda da normalidade e
consequentemente enquanto iacutendice de uma doenccedila ou anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida Por outro lado encontramos esse sentido tambeacutem em estudos
com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees resultando em uma perda dos viacutenculos
afetivos sociais e laborativos A pesquisa de Fiorati e Saeki (2008) com homens de 30 a 50
anos em uma unidade de internaccedilatildeo em Satildeo Paulo aponta para esse resultado
A crise enquanto ldquoapropriaccedilatildeo da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidosrdquo expressa a
construccedilatildeo de um outro sentido de crise que se opotildee aos dois uacuteltimos e abre possibilidades de
vecirc-la em seu vieacutes positivo Nessa categoria destacamos os momentos em que foi possiacutevel
deslocar-se da compreensatildeo da crise como um evento limitante ou signo de anormalidade e
entendecirc-la como um evento analisador que diz do sujeito e de sua histoacuteria Vale ressaltar que o
diaacutelogo com as pesquisas de Milhomens e Martin (2014) e Costa (2007) apontaram elementos
e reflexotildees importantes na construccedilatildeo desse sentido
411 CRISE COMO AMEACcedilA SOCIAL PERICULOSIDADE E RISCO
A loucura entendida como uma ameaccedila social remonta aos primoacuterdios da Psiquiatria
Tradicional e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo e disciplinarizaccedilatildeo do seacuteculo XVIII e XIX quando
se inicia o processo de transformaccedilatildeo da loucura em patologia mental
Segundo Jardim (2007178) ldquoo conceito do risco se coloca aqui a partir do momento
que a crise eacute o prenuacutencio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doenccedila mental
(instalada ou futura)rdquo marcada por comportamentos hostis e intimidadores como mudanccedilas
bruscas de humor pensamentos persecutoacuterios e agressividade dirigida agrave si mesmo ou agrave outros
Na revisatildeo da literatura as falas dos familiares profissionais e dos pacientes reforccedilaram
esse sentido caracterizando a vivecircncia da crise enquanto momento de desorganizaccedilatildeo em que
emergem comportamentos associados agrave violecircncia ameaccedila e medo
51
Luciana ldquogritava dentro de casa quebrava tudo jogou o computador novo no chatildeo
que era o xodoacute delardquo Na terceira crise a adolescente natildeo se reconheceria como matildee
da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho ficando com o
corpo debilitado (PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Minha matildee vinha falar comigo e eu agredia ela Ela falava lsquoEu sou sua matildeersquo E eu
falava que natildeo era PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Eu agredia meus pais quase todo o dia era discussatildeo em casa era um inferno aqui
quase todo dia era discussatildeo porque eu natildeo trabalhava eu natildeo fazia curso eu natildeo saia
de casa [] O preacutedio chegou a denunciar ateacute porque era briga constante (R homem
20 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1111)
Para os nossos entrevistados as pessoas que entram em crise em alguns
momentossituaccedilotildeestornam-se ldquoperigosas violentas agressivas brabas despertam
medo incomodam os outros quebram e destroem as coisas gritamrdquo termos utilizados
pelos entrevistados (LIMA ET AL 2012 428)
Em um estudo com profissionais em um CAPS II de Aracaju (SE) para aleacutem do sentido
da crise associado ao da violecircncia coloca-se tambeacutem o fato de essas pessoas estarem em intenso
sofrimento psiacutequico
satildeo consideradas como pessoas em alto niacutevel de sofrimento porque estatildeo angustiadas
ouvem vozes de comando necessitam de vigilacircncia contiacutenua estatildeo confusas
colocam-se em risco de morte desestruturam as famiacutelias (LIMA ET AL 2012 428)
O risco envolvido na crise se transmite para os profissionais no campo das praacuteticas de
cuidado como uma necessidade constante de monitoramento vigilacircncia e controle da pessoa
em crise como reafirma um dos profissionais desse estudo a seguir
Crise a partir de uma necessidade de vigilacircncia sendo muito exigente enquanto forma
de cuidado gerando um impacto sobre a vida de todos preocupaccedilotildees e uma dedicaccedilatildeo
quase exclusiva agrave pessoa doente (Profissional de um CAPS II Aracaju SE) (LIMA
ET AL 2012 429)
Esse aspecto aparece tambeacutem no estudo de Garcia e Costa (2014) que trazem como
analisador o manejo da crise de uma usuaacuteria em estado de agressividade em um CAPS I em
Porto Real RJ
Gritos cadeiras ao alto mesas jogadas telefone quebrado agressividade Eis um
momento de surto de uma paciente no Caps A equipe pega de surpresa precisa agir
prontamente algo tem que ser feito (GARCIA COSTA 2014 400)
Nessa situaccedilatildeo na tentativa de restaurar a paz e a ordem no serviccedilo alguns profissionais
comeccedilam a demandar o poder policial e a presenccedila de um guarda municipal de plantatildeo no
CAPS como observamos nos trechos a seguir
discutiu-se o caso em reuniatildeo de equipe retomou-se sua histoacuteria foram feitas
propostas ndash produccedilatildeo de saber atravessadas por relaccedilotildees de poder que reivindicavam
lsquoordemrsquo e lsquorespeitorsquo a serem garantidos por um poder policialesco materializado nos
agentes da guarda municipal (GARCIA COSTA 2014 201)
Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito evitando que as crises
aconteccedilam como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta Com
52
a accedilatildeo da guarda seja ela ativa ou passiva de coibir esses eventos intempestivos os
pacientes evitariam ter crises por estarem sendo vigiados (ibidem 405)
Os autores destacam que a aposta na vigilacircncia como forma de controle e prevenccedilatildeo das
crises diz respeito agrave uma visatildeo de crise em que o deacuteficit estaacute no sujeito que natildeo consegue
responder de forma adequada agraves exigecircncias da vida A intervenccedilatildeo vem no sentido de favorecer
o instituiacutedo e reintroduzir a ldquonormardquo Eacute como se algo faltasse agravequele sujeito e ldquona situaccedilatildeo
apresentada precisaria ser tamponada preenchida quer pela guarda municipal por medicaccedilatildeo
ou terapiasrdquo (Garcia Costa 2014 405)
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade De tudo que se apresenta
em uma crise psicoacutetica a agressividade eacute o que fica o que marca e exige atenccedilatildeo urgente Eacute
vista como um sintoma isolado e de suma importacircncia que necessita ser suprimido o quanto
antes Assim recorre-se a praacuteticas como a contenccedilatildeo mecacircnica ou medicamentosa visando
extrair cirurgicamente o sintoma sem precisar lidar com a loucura e com o sofrimento que se
coloca em uma crise psicoacutetica
A reduccedilatildeo da complexidade de uma crise psicoacutetica aos seus sintomas agressivos reforccedila
o medo e o estigma em relaccedilatildeo agrave loucura legitimando condutas que a tratam como mera
contravenccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo da ordem social favorecendo o uso de recursos coercitivos como
o poder policial a guarda municipal e outras instacircncias que visam tratar da criminalidade e natildeo
da sauacutede de uma pessoa
Essa realidade eacute encontrada em uma pesquisa realizada com 24 profissionais de diversas
categorias da equipe de SAMU do municiacutepio de Natal- RN Observou-se que a equipe guarda
uma percepccedilatildeo do paciente em crise como um marginal ou ateacute mesmo como um animal sendo
frequente o uso da forccedila policial nas intervenccedilotildees dessa equipe como se percebe na fala a
seguir
A poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente doente mental () e quando a poliacutecia
chega eles amansam na mesma hora A maioria dos policiais jaacute vem pensando em
descer o bastatildeo entatildeo por isso que os pacientes tecircm medo (Entrevistado 13) (BRITO
BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1300 grifos nossos)
A gente precisa do apoio da poliacutecia pra prender pra interceptar (Entrevistado 2)
(idem 1298 grifos nossos)
O uso dos termos ldquoprenderrdquo e ldquointerceptarrdquo apontam para um entendimento da crise
como fenocircmeno do campo do julgamento moral e da criminalidade As contenccedilotildees satildeo
realizadas pela equipe da poliacutecia que usa de violecircncia deflagrada como ldquodescer o bastatildeordquo
mostrando total despreparo para atuar nessas situaccedilotildees Nota-se que embora os profissionais
53
reconheccedilam que a poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente psiquiaacutetrico recorre-se agrave ela na
tentativa de ldquodominarrdquo o paciente pelo medo subjugando-o como a um animal ldquoamansam na
mesma horardquo ldquopor isso eles tem medordquo Conforme lembra Caponi (2009) ldquonas entrelinhas
dessas accedilotildees estatildeo as relaccedilotildees de poder que caracterizam a Psiquiatria Claacutessica e sua autoridade
de tomar o corpo como objeto de suas praacuteticasrdquo (apud BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2015 1298 )
Assim embora o discurso em relaccedilatildeo agrave loucura tenha mudado e incorporado os
princiacutepios da Reforma Psiquiaacutetrica vemos que quando a crise emerge e com ela a dificuldade
de sustentar com o usuaacuterio um modo protegido de estar com ele a primeira resposta dos serviccedilos
ainda segue a loacutegica do enclausuramento da violecircncia e da imposiccedilatildeo pela autoridade
A associaccedilatildeo entre crise e risco se desdobra em sentimentos de ameaccedila e medo que
justificam praacuteticas de repressatildeo como prevenccedilatildeo da possiacutevel periculosidade da pessoa em crise
como vemos a seguir
A gente notando que ele ainda estaacute agitado inquieto e que agraves vezes ele pode dar o
surto de novo a poliacutecia vai na ambulacircncia sentado com a gente (Entrevistado 7)
(BRITO BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1298)
Acredito que a falta de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz
com que o atendimento siga uma forma natildeo correta (ibidem 1298)
Segundo DelacuteAcqua e Mezzina (2005) o risco implicado na crise eacute compreendido na
Psiquiatria Claacutessica enquanto iacutendice de desadaptaccedilatildeo e desequiliacutebrio proacuteprio da doenccedila mental
Assim o fator periculosidade natildeo sendo algo passiacutevel de desconstruccedilatildeomanejo e a resposta do
medo agrave ele associada fala-nos de uma cadeia estabelecida doenccedila mental- periculosidade-
internaccedilatildeo que estaacute ldquoprofundamente enraizada nos teacutecnicos como cultura forma de agir e
pensar a loucurardquo (SILVA DIMENSTEIN 2014 42)
Cabe aqui ressaltar que natildeo se trata de negar que em uma situaccedilatildeo de crise possa haver
riscos envolvidos para integridade fiacutesica da pessoa em crise e dos demais e que isso causa medo
mas eacute preciso trabalhar em uma outra direccedilatildeo para lidar com o medo que natildeo seja atemorizar
e moralizar aqueles que precisam de cuidados especialmente quando isso eacute feito em parceria
com a poliacutecia
Isso natildeo significa que natildeo se possa utilizar de recursos como a medicaccedilatildeo ou a
contenccedilatildeo mecacircnica em situaccedilotildees extremas mas faz diferenccedila quando trabalhamos em uma
loacutegica em que esses satildeo os uacuteltimos recursos disponiacuteveis e natildeo nossa primeira resposta frente agrave
crise Praacuteticas como essas ainda satildeo tomadas no campo de ldquosoluccedilotildees maacutegicasrdquo para a remissatildeo
54
dos sintomas agressivos quando deveriam ser vistas no maacuteximo como um arranjo incocircmodo
imposto por conjunturas que em niacutevel macro e micro natildeo tem conseguido sustentar a crise no
modelo substitutivo
Desse modo Brito Bonfada e Guimaratildees assinalam que urge avanccedilar na compreensatildeo
da crise enquanto evento que demanda ldquoacolhimento diaacutelogo aproximaccedilatildeo entre sujeitos
envolvidos e respeito agraves necessidades subjetivas e particularidades de cada usuaacuterio dos serviccedilos
de sauacutederdquo (2015 1301) Para tanto faz-se necessaacuterio investir em praacuteticas de educaccedilatildeo
permanente que possam trabalhar com as equipes na direccedilatildeo da construccedilatildeo de um suporte
teacutecnico-conceitual de apoio agrave crise que tenha como base os pressupostos da Reforma
Psiquiaacutetrica Essa capacitaccedilatildeo deve envolver a discussatildeo da crise enquanto um fenocircmeno
complexo que natildeo se restringe aos sintomas apresentados mas diz do modo do sujeito se
posicionar no mundo e das conjunturas conflitivas que o afligem
412 CRISE COMO PERDA E ISOLAMENTO SOCIAL
A primeira crise aparece como um ponto de ruptura a partir do qual algo muda
radicalmente e a vida natildeo pode mais se dar como antes A crise eacute vista como a descoberta de
uma ldquodoenccedilardquo e sentida como um ponto de corte a partir do qual todos os aspectos da vida
precisam ser reavaliados Os pacientes e familiares natildeo sabem mais se podem continuar com
sua rotina de antes e estabelecem uma seacuterie de limitaccedilotildees com o objetivo de ldquoevitar novas
crisesrdquo
A possibilidade de seguir na vida os sonhos os planos e objetivos ficam todos em
suspenso como se qualquer conduta repentina pudesse disparar uma nova crise Vive-se agrave
espreita em estado de alerta atento aos sintomas temendo colocar em risco a estabilidade
conquistada com o tratamento Natildeo se pode retomar a vida como antes e tambeacutem natildeo se sabe o
que eacute possiacutevel sustentar dali em diante iniciando-se entatildeo um processo de paralizaccedilatildeo e
mortificaccedilatildeo da vida
No estudo de Pereira Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise em um CAPSi
do Rio de Janeiro nota-se que a experiecircncia da crise se desdobrou em medo inseguranccedila e
perda do interesse nas atividades do cotidiano o que pode ser destacado nas falas a seguir
Thiago deixou de jogar futebol com os amigos de ir agrave escola ldquoporque eacute melhor natildeordquo
(sic) () Leticia tambeacutem deixou de frequentar a escola apoacutes a uacuteltima crise e perdeu
o interesse pelas atividades diaacuterias que antes realizava Sua matildee ao mesmo tempo
natildeo ldquoconfiavardquo mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha
temendo que esta pudesse ldquose perderrdquo (ibidem 3739)
55
Haacute um certo recuo diante da vida um fechamento em si mesmo como forma de defesa
contra a loucura e o estigma social associado agrave ela Com isso tem-se a perda das antigas
amizades e a dificuldade de se estabelecer novos laccedilos sociais em um processo crescente de
empobrecimento da vida
Ela soacute gosta de dormir vocecirc falou Leticia Soacute quer saber de dormir Antes ela gostava
de fazer as coisas agora natildeo gosta natildeo Natildeo ajuda em casa natildeo faz nenhum trabalho
soacute dorme [hellip] Antes dela ter essa crise uacuteltima ela vinha no centro pra mim fazia as
coisas Mas agora ela anda tatildeo desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as
coisas [hellip] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro pegar o
ocircnibus errado natildeo sei (ibidem3739)
No estudo de Milhomes e Martin (2014) com um grupo de jovens que fazem
acompanhamento em um CAPS II na cidade de Satildeo Paulo quando questionados sobre saiacutedas
os jovens mencionavam idas agrave igreja mercados e festas de familiares A grande maioria referia
ficar em casa com a famiacutelia auxiliando nas tarefas da casa e da vida domeacutestica de modo que
pouco se falava sobre festas ou encontro com os amigos Majoritariamente o grupo de amigos
que esses usuaacuterios tinham contato era o do CAPS havendo apenas um dos seis jovens
entrevistados que participava de um grupo de funk fora do CAPS ldquoNota-se que apoacutes a primeira
crise psiacutequica esses jovens se veem afastados das antigas amizades apresentando importante
isolamento social e perda destes pontos de partilhardquo (ibidem 1113)
Quanto agraves possibilidades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho esse mesmo estudo aponta
que apoacutes o iniacutecio do tratamento a inserccedilatildeo possiacutevel desses jovens no mercado de trabalho se
deu predominantemente pela via do trabalho informal atraveacutes de ldquobicosrdquo e negoacutecios familiares
que permitiam uma maior flexibilidade de horaacuterios e conciliaccedilatildeo com a frequecircncia no
tratamento
Nenhum dos jovens no periacuteodo das entrevistas possuiacutea emprego formal Cinco deles
haviam trabalhado com carteira assinada antes da primeira crise e somente um
retomou este tipo de emprego apoacutes a crise enquanto os outros apesar das tentativas
natildeo conseguiram exercendo uma atividade laborativa sob outros moldes
(MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Embora natildeo se possa deixar de considerar que a primazia do trabalho informal estaacute
relacionada agrave um contexto mais amplo da economia nacional nos uacuteltimos tempos a
precariedade e falta de espaccedilo para a inserccedilatildeo de pessoas com transtorno mental no mundo do
trabalho impacta diretamente na sauacutede mental dessas pessoas trazendo prejuiacutezos ao seu
processo de construccedilatildeo de autonomia reinserccedilatildeo social e independecircncia financeira
Outros estudos como a pesquisa de Fiorati e Saeki com homens com idades entre 30 e
50 anos em uma unidade de internaccedilatildeo na cidade de Satildeo Paulo apontam resultados parecidos
56
ldquoos usuaacuterios atendidos por noacutes interromperam seus processos de escolaridade ou atividade
profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade
produtivardquo (2008 767) Essa ruptura estendeu-se ainda no campo dos viacutenculos afetivos e
sociais dos participantes ldquoseus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados
casamentos interrompidos ou nunca iniciados Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de
redes de relacionamento social natildeo namoravam natildeo tinham amizades ou qualquer ligaccedilatildeo
interpessoal espontacircneardquo (ibidem 768)
O estudo de Milhomens e Martin (2014) se propocircs a pensar as causas desse isolamento
social percebido apoacutes o episoacutedio de crise Em entrevista com os jovens participantes um dos
motivos apontados por eles era ldquoa vergonha e a dificuldade de lidar com esses encontros e
exposiccedilotildees perante olhares e perguntas que causam incocircmodordquo (ibidem 1114)
A vergonha figurava como motivo de restriccedilatildeo da circulaccedilatildeo pelo territoacuterio pois assim
evitava-se o possiacutevel desconforto de encontrar amigos ou vizinhos ter que cumprimentaacute-los e
dar-lhes explicaccedilotildees sobre a vivecircncia da crise A experiecircncia da vergonha pode ser tatildeo
assustadora a ponto como em um dos casos do entrevistado sequer sentir-se confortaacutevel para
retornar a sua antiga residecircncia
Aiacute depois eu natildeo voltei mais pra casa fiquei meio traumatizado com vergonha
tambeacutem na eacutepoca Tudo essas coisas da crise de iniacutecio vocecirc natildeo sabe neacute entatildeo fica
ndash Olha o cara eacute doido [] (vergonha) das coisas que eu fiz neacute [] mesmo se eu
pudesse eu natildeo voltaria a morar laacute sei laacute por vergonha essas coisas (M homem
28 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Segundo esse mesmo estudo outro aspecto do isolamento se daacute como uma defesa e uma
resposta pelos usuaacuterios terem se sentido abandonados pelos amigos nos momentos em que
mais precisavam deles isto eacute nos periacuteodos de crise
Ah mudei assim que agora eu tomo remeacutedio agraves vezes assim pra amizade eu fico
mais na minha As pessoas estatildeo conversando e eu natildeo tenho parece assim que eu
natildeo tenho assunto com as pessoas sabe [] Era aquela flor amiga pra laacute amiga pra
caacute Aiacute quando quando que eu caiacute numa cama todo mundo desapareceu[] (D
mulher 20 anos) (ibidem1113)
O fato de precisar fazer um tratamento e tomar medicaccedilatildeo psiquiaacutetrica tambeacutem aparece
como um elemento que imprime uma marca e estabelece uma diferenccedila separando
categoricamente loucura de normalidade em um caminho sem volta como se a partir daquele
ponto eles nunca mais pudessem ser como os outros
Letiacutecia lamenta ainda por ter ficado ldquodiferente das outras pessoasrdquo pois devido agrave crise
ldquoprecisava de tratamentordquo Relatava tambeacutem uma dificuldade em escrever e ldquocopiarrdquo
a mateacuteria porque a medicaccedilatildeo fazia sua matildeo tremer (PEREIRA SAacute MIRANDA
2017 3739)
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Essa diferenccedila tambeacutem aparece na perspectiva dos profissionais No estudo de Pereira
Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise na perspectiva dos profissionais a crise traz
uma perda natildeo apenas da vida que se tinha mas da vida que o adolescente ainda poderia ter
[hellip] natildeo vai ser igual nunca Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que
surtam voltarem a ser como eram antes[hellip]Porque eu acho que a psicose eacute isso ne
Vocecirc perde algo do que vocecirc tinha e tambeacutem perde a habilidade de adquirir novas
aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivos neacute (Profissional do serviccedilo)
(PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3740)
Nesse sentido a crise na infacircncia aparece para os profissionais como ainda mais grave
do que na vida adulta visto que desde aquele momento a perda jaacute estaria colocada limitando
as possibilidades do adolescente para toda a vida como vemos nas falas a seguir
Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertoacuterio tatildeo comeccedilando a
vida ainda tatildeo no meio do ciclo acadecircmico [hellip] parece que a cada surto se perde um
pouquinho Vai se perdendo algo Eacute muito cedo neacute O prognoacutestico eu considero mais
negativo na adolescecircncia do que na fase adulta (Profissional do serviccedilo) (PEREIRA
SAacute MIRANDA 2017 3740)
Talvez eu ache que o surto do adolescente eacute muito mais florido Impactante eacute a
palavra Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto Eacute mais
impactante sim Porque pega os pais numa situaccedilatildeo de Poxa o cara tava na escola
tava andando as coisas tatildeo indo E esse adolescente eacute ainda um pouco dependente e
aiacute eu acho que a inserccedilatildeo da famiacutelia eacute diferente da famiacutelia do adulto Porque o adulto
jaacute eacute dono de si jaacute tem um caminho andado natildeo sei acho que eacute por aiacute (Profissional
do serviccedilo) (ibidem3740)
Porque quando eacute uma crianccedila pequena esses pais jaacute vatildeo percebendo que lsquoPoxa vida
tem alguma coisa diferente com elersquo E mesmo que seja assim lsquoEle foi normalzinho
ateacute dois anos eacute diferente dele ser normalzinho ateacute dezesseis anos ateacute quinze anos O
que aconteceu com essa criatura que numa semana taacute bem e na outra semana natildeo
Que tira roupa na rua ou bate ou que agride o pairsquo [hellip] (Profissional do serviccedilo)
(ibidem3740)
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede As perdas que os usuaacuterios
vivenciam a perda da autonomia das relaccedilotildees sociais da capacidade laborativa etc satildeo apenas
um reflexo maior dos efeitos dessa diferenccedila na nossa sociedade
Retomando a fala de uma profissional ldquonatildeo vai ser igual nuncardquo natildeo se trata de negar
essa diferenccedila Poreacutem eacute preciso entender que a perda em questatildeo natildeo eacute a perda da ldquohabilidade
de adquirir novas aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivosrdquo mas a perda do
sentido isto eacute da construccedilatildeo de mundo que havia antes da vivecircncia da crise (PEREIRA SAacute
MIRANDA 2017 3740)
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Como qualquer outra experiecircncia singular e impactante que vivemos em nossas vidas
a crise tem o poder de questionar o modo de vida de uma pessoa recriando o mundo e
redistribuindo os sentidos ao redor dela Nem sempre os sentidos construiacutedos seratildeo
compartilhados ou compreensiacuteveis mas eacute possiacutevel sustentar estar junto com algueacutem mesmo
assim mesmo sem entender do mesmo modo que sustentamos estar junto com pessoas que
compartilham de visotildees de mundo muito diferentes das nossas A loucura nesse ponto eacute soacute mais
um modo de se relacionar com o mundo como tantos outros diferentes dos nossos Os sentidos
construiacutedos a partir de uma crise natildeo seratildeo os mesmos de antes mas tambeacutem podem ser potentes
e criadores de vida
413 CRISE COMO APROPRIACcedilAtildeO DA EXPERIEcircNCIA E RECONSTRUCcedilAtildeO DE
SENTIDOS
Na pesquisa de Milhomens e Martin (2014) com jovens em um CAPS adulto em Satildeo
Paulo observou-se que alguns entrevistados especialmente os que jaacute estavam haacute mais de dois
anos em acompanhamento
com a experiecircncia das crises vatildeo adquirindo estrateacutegias e ampliando as formas de
lidar e de se perceber em relaccedilatildeo ao proacuteximo Um dos entrevistados diz que pede para
que seus pais o avisem quando ele natildeo estiver bem Outra integrante diz que quando
percebe olhares estranhos para ela cogita a possibilidade ser somente uma impressatildeo
errada ldquocoisa da minha cabeccedila3rdquo (D mulher 20 anos) (ibidem1114)
Quando questionados sobre a compreensatildeo que tinham sobre o termo ldquoloucurardquo
percebe-se que em alguns casos natildeo se tinha a concepccedilatildeo por doenccedila ateacute a chegada ao CAPS
Aiacute foi aonde que eu fiquei ruim neacute num tava conhecendo ningueacutem tava vendo coisa
e eu jaacute tinha esse negoacutecio de escutar vozes mas pra mim era um negoacutecio normal
(F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Eacute importante ressaltar que reconhecer o fato de ouvir vozes como algo ldquonormalrdquo natildeo
significa que natildeo haja sofrimento implicado nessa vivecircncia visto que ldquoescutar vozesrdquo e ldquover
coisasrdquo falam de uma certa experiecircncia de invasatildeo da consciecircncia Do mesmo modo podemos
imaginar que natildeo reconhecer as pessoas com quem habitualmente se convive deve ser algo um
tanto assustador No entanto o que gostariacuteamos de destacar com esse trecho eacute o fato dessa
experiecircncia natildeo ter sido considerada pelo entrevistado como signo de uma ldquodoenccedilardquo Embora
3 Alterado pela pesquisadora a partir do texto original ldquocoisa da minha cabe drdquo (D mulher 20 anos)
(MILHOMENS A E MARTIN D 2014 1114) pelo fato da mesma entender que houve erro de digitaccedilatildeo na
palavra ldquocabeccedilardquo
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os diagnoacutesticos possam ser importantes para a praacutetica cliacutenica os efeitos desse diagnoacutestico para
os pacientes se mostram muito mais limitantes do que propulsores de vida
Vemos que mesmo nas situaccedilotildees em que haacute um julgamento social em torno da doenccedila
quando o usuaacuterio consegue se apropriar da sua experiecircncia em relaccedilatildeo agrave loucura com
tranquilidade e maturidade ele encontra forccedilas para lidar com situaccedilotildees que antes eram motivo
de vergonha ou isolamento como vemos na fala a seguir
Os outros me chamavam de Elias Maluco Hoje em dia os outros chama ainda eu levo
na brincadeira eu natildeo me sinto ofendido Quando eu tava ruim eu me sentia ofendido
entendeu Eu levo numa boa entendeu (F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Retomando a categoria anterior ldquoa crise como perda e isolamento socialrdquo Milhomens
e Martin (2014) assinalam que apoacutes o episoacutedio de crise alguns participantes de sua pesquisa
deixaram de sair e de circular pelo territoacuterio para natildeo ter que lidar com os questionamentos dos
vizinhos amigos e conhecidos em torno da sua doenccedila Nesse sentido a fala do usuaacuterio acima
fomenta outras formas de lidar com os possiacuteveis obstaacuteculos que a sociedade impotildee agrave loucura
Sua apropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da loucura faz com que ele natildeo se abale ao ser
chamado de ldquomalucordquo Haacute aiacute a invenccedilatildeo de uma forccedila e de uma potecircncia de vida que sustenta
novas possibilidades de estar na comunidade apesar das adversidades
Outro aspecto que nos chamou atenccedilatildeo nesse estudo foi a relaccedilatildeo que alguns usuaacuterios
conseguiram estabelecer com a sua medicaccedilatildeo Embora a maioria natildeo soubesse informar os
nomes e quantidades bem como a finalidade teacutecnica das mesmas muitos conseguiam mostrar
propriedade na avaliaccedilatildeo dos ldquoganhos e perdasrdquo que a medicaccedilatildeo causava em suas vidas
MILHOMENS MARTIN 2014)
Um dos impasses vivenciados por eles nesse sentido era o conflito entre beber eou
usar drogas e ter que tomar a medicaccedilatildeo Sabe-se que a interrupccedilatildeo do tratamento
medicamentoso pode causar efeitos colaterais importantes e ateacute mesmo agravar os sintomas do
quadro que se pretendia tratar Posto isso esses jovens se viam no dilema de ter que optar entre
um e outro avaliando seus riscos e benefiacutecios como vemos na fala a seguir
Aiacute os moleques tava indo fumando uma maconha laacute aiacute eu ia ficava olhando ndash Seraacute
que eu posso Seraacute que natildeo posso ndash aiacute parei de tomar o remeacutedio pra natildeo prejudicar
tipo pensei assim ndash Se eu para de tomar o remeacutedio acho que eu vou poder beber e
vou poder usar droga [] Sem (a medicaccedilatildeo) fico agitado fico agitado ando de um
lado pro outro arrumo a casa arrumo tudo [risos] e tipo jaacute o coraccedilatildeo sei laacute meio que
acelera Eu sei lidar com isso entendeu Pra ficar mais tranquumlilo fumo um cigarro
fumo ateacute mais cigarro quando acelera o coraccedilatildeo mas isso tipo se eu ficar uns por
exemplo ficar hoje hoje eacute quinta se eu ficar ateacute quarta sem tomar eu fico tranquumlilo
mas como a meacutedica falou a medicaccedilatildeo fica no organismo tem uns dias e tal mas se
eu passar de uma semana sem tomar vixi sei laacute eu natildeo sei se eacute isso ou eacute psicoloacutegico
60
pode daacute uma inseguranccedila vocecirc jaacute fica meio com receio aiacute jaacute fica pilhado deve ser
isso tambeacutem (J homem 24 anos)- (MILHOMENS MARTIN 2014 1116)
Observa-se por outro lado que embora a capacidade de autonomia e de participaccedilatildeo do
usuaacuterio no seu tratamento seja valorizada no modelo substitutivo o questionamento em relaccedilatildeo
aos proacutes e contras do uso da medicaccedilatildeo natildeo foi acolhido pelo serviccedilo e como consequecircncia os
usuaacuterios acabavam por fazer uma gestatildeo solitaacuteria da sua medicaccedilatildeo sem poder contar com o
serviccedilo enquanto um parceiro nessa decisatildeo
Quando um desses jovens fazia uma escolha em relaccedilatildeo ao seu tratamento como
interromper o uso da medicaccedilatildeo para fazer uso de drogas ou para conseguir levantar
cedo para estudar tal atitude era vista pelo serviccedilo como contraacuteria ao tratamento
Como se o exerciacutecio da autonomia soacute coubesse quando exercida em concordacircncia com
a disciplina oferecida pelo serviccedilo Optar por natildeo mais fazer uso da medicaccedilatildeo eacute
tratado como irresponsabilidade ou ldquopiora do quadrordquo (ibidem 1117)
Assim vemos que a relaccedilatildeo dos usuaacuterios com o serviccedilo sofre algumas tensotildees e muitas
vezes satildeo os proacuteprios usuaacuterios que vatildeo encontrar meios de ressignificar e modificar essas
relaccedilotildees como podemos ver na fala desse entrevistado a respeito dos grupos oferecidos no
CAPS
Os grupos eacute pra iniacutecio da crise quando tudo eacute novidade entatildeo todo grupo eacute
interessante por mais babacatildeo assim Quando a gente vai melhorando assim parece
ser meio babaca mas natildeo eacute Porque a gente natildeo taacute acostumado mas assim pintar
essas coisas que parece que eacute pra crianccedila neacute mas nossa mente taacute como de crianccedila
entatildeo parecia uma coisa meia agraves vezes quando passava em mim eu falava ndash O que
eu tocirc fazendo aqui ndash mas esses grupos me fizeram enxergar que tinha mais gente
igual eu que tinha gente numa fase pior que a minha outras melhores me ajudou
bastante (M homem 28 anos) (ibidem 1117)
Segundo os pesquisadores ldquopintar desenhos infantis e promover brincadeiras de
crianccedilas eram atividades rotineiras neste serviccedilo utilizadas com o intuito de entreter as pessoas
que ali estavamrdquo (MILHOMENS MARTIN 2014 paacutegina) Tais atividades promovidas de
forma burocraacutetica e sem aproximaccedilatildeo real com o cotidiano dos usuaacuterios contribuem para a
interrupccedilatildeo ou desistecircncia do tratamento Mesmo assim o entrevistado surpreende e lanccedila um
outro olhar para o serviccedilo reconhecendo o que na sua perspectiva ele traz de efetivamente
importante para o seu tratamento a possibilidade de se reconhecer na experiecircncia do outro e de
se conectar com pessoas que vivem os mesmos problemas e questotildees Esse eacute um elemento
proacuteprio do dispositivo grupal que por si soacute jaacute imprime um novo significado ao tratamento
oferecendo um lugar diferente do de incapacitado e infantilizado
Os usuaacuterios vatildeo encontrando cada um agrave sua maneira meios de lidar com as crises com
o estigma social e com a necessidade de sustentar seu tratamento Os recursos apontados por
eles aparecem como algo da ordem da construccedilatildeo de um saber leigo advindo da experiecircncia
subjetiva da crise e da relaccedilatildeo que eles mantem com o seu contexto soacutecio-cultural
61
Notamos que nesse processo os usuaacuterios foram capazes de criar estrateacutegias para o
enfrentamento da sua condiccedilatildeo ressignificando a relaccedilatildeo com o tratamento e encontrando
meios de estar na vida social ldquomantendo-se em movimento na composiccedilatildeo contiacutenua de novos
territoacuterios tendo a crise como principal agente de mudanccedilas e criaccedilotildeesrdquo (GUATTARI
ROLNIK 1996 apud MILHOMENS MARTIN 2014 876)
Na pesquisa de Costa (2007) com um integrante da luta antimanicomial e profissionais
da enfermaria de agudos feminina do IMAS Nise da Silveira e do EAT (Espaccedilo Aberto ao
Tempo) tambeacutem encontramos olhares e concepccedilotildees em torno da crise que se afastam da
perspectiva claacutessica medicalocecircntrica da crise enquanto iacutendice de desajuste do quadro
psicopatoloacutegico resultando em periculosidade e risco social como vemos na fala a seguir
Para mim a concepccedilatildeo que eu tenho de crise eacute a seguinte eacute quando seus pensamentos
estatildeo de tal ordem bagunccedilados que vocecirc natildeo consegue fazer coisas corriqueiras que
vocecirc geralmente costuma fazer Para mim isso eacute uma crise Natildeo significa que isso
seja uma coisa violenta que vocecirc tenha uma crise e fique violento Vocecirc pode ter uma
crise de depressatildeo pode ficar muito triste natildeo conseguir se relacionar com as pessoas
Entatildeo para mim crise eacute quando vocecirc estaacute em um estado tal de confusatildeo de
imobilidade que vocecirc natildeo consegue fazer suas coisas corriqueiras Isso para mim eacute
uma concepccedilatildeo (Integrante do Movimento da Luta Antimanicomial) (COSTA
2007 105)
Para esse usuaacuterio a crise aparece enquanto um estado de confusatildeo em que os
pensamentos estatildeo de tal modo desorganizados que fica difiacutecil dar conta ateacute mesmo das coisas
mais simples do cotidiano Haacute nessa concepccedilatildeo a ideia da crise relacionada a uma perda que eacute
a perda das referecircncias de mundo que se havia constituiacutedo ateacute entatildeo A crise vem e mexe com
o sistema de referecircncia do sujeito ldquobagunccedilardquo os pensamentos A agressividade eacute um dos modos
de se reagir agrave essa ruptura com o instituiacutedo mas natildeo o uacutenico Assim o que fica enquanto questatildeo
dessa fala eacute o que fazer para que essa perda de sentidos natildeo seja paralisante De que modo
podemos aproveitar o movimento da crise para reconstruir os sentidos perdidos e imprimir
novos movimentos de vida aos sujeitos
A fala desse profissional aponta alguns caminhos
[] Pelo menos como eu vejo o surto psicoacutetico eacute exatamente a colocaccedilatildeo em xeque
das referecircncias que sustentavam uma situaccedilatildeo sustentavam um estado de coisas que
de repente rui ou ameaccedila ruir ou comeccedila a ficar em questatildeo ()Muitas vezes o que
a gente vecirc na loucura eacute uma perda mesmo de sentido (Psiquiatra supervisor da equipe
da enfermaria de agudos feminina) (COSTA 2007 104 grifos nossos)
[] Entatildeo muitas vezes o que a gente acredita o que gente constroacutei a partir da nossa
praacutetica eacute que a possibilidade de algueacutem estar intervindo trabalhando junto na crise
pode muitas vezes em algumas situaccedilotildees facilitar a possibilidade de construccedilatildeo ou
reconstruccedilatildeo de referecircncias Quais vatildeo ser em princiacutepio a gente sugere que natildeo se
sabe Porque tem uma seacuterie de fatores sociais em volta proacuteximo do sujeito no
contexto da famiacutelia que tendem muitas vezes a querer recobrar ou retomar uma
62
situaccedilatildeo anterior [] eu acho que quando a gente estaacute intervindo junto na crise a
gente tem que ter o cuidado de natildeo querer construir novos sentidos ou tatildeo pouco
querer reconstruir os velhos porque a gente natildeo sabe Porque eacute possiacutevel que alguns
natildeo suportem retomar aquilo nem tenham a menor condiccedilatildeo a gente natildeo tem como
saber isso antes A gente tem que estar acompanhando junto com cuidado fazendo o
que for preciso Agora eacute claro que por isso mesmo a crise eacute um momento privilegiado
de possibilidades de emergirem novos sentidos muitas vezes essa produccedilatildeo de
sentido eacute do proacuteprio sujeito Pode ser um sentido delirante mas enfim eacute delirante no
sentido positivo E aiacute eacute claro que se espera que a intervenccedilatildeo natildeo seja para calar esse
sentido (Psiquiatra supervisor da equipe da enfermaria de agudos feminina) (ibidem103 grifos nossos)
Haacute uma preocupaccedilatildeo colocada em natildeo se adiantar em querer restituir o estado de coisas
anterior pois a gente natildeo sabe pode ser que o sujeito natildeo sustente mais retornar agrave vida que ele
levava antes Nessa perspectiva a crise eacute mais do que apenas um estado de desequiliacutebrio
momentacircneo ela eacute iacutendice de que algo precisa ser mudado Os velhos arranjos que o sujeito
tinha para lidar com o sofrimento natildeo satildeo mais suficientes e com isto surge a necessidade de
rever esses arranjos e pensar em novas formas de organizaccedilatildeo para o sujeito e seu cotidiano
Segundo um dos entrevistados
A crise pode ser uma grande chance de vocecirc produzir alguma coisa com aquele
indiviacuteduo alguma coisa diferente produzir a mudanccedila Ou pode ser a chance de vocecirc
fazer exatamente nada no sentido de que tirou da crise o cara volta para a vida
exatamente igual (Psiquiatra da enfermaria de agudos feminina) (ibidem 102)
Voltar exatamente igual seria justamente ignorar o que a crise produz em termos de
subjetividade no sujeito Se tomamos a crise como iacutendice de uma mudanccedila na subjetividade
isto eacute na forma como aquele sujeito se constitui para o mundo entatildeo eacute preciso pensar se os
recursos que ele tem estatildeo agrave altura da nova realidade psiacutequica em que ele se encontra Assim eacute
preciso tomar a crise enquanto um acontecimento que pode apontar para a necessidade de uma
mudanccedila na realidade concreta do sujeito no modo em que ele vive nas suas relaccedilotildees sociais
no modo como organiza seu cotidiano etc A crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um
evento analisador4 que ldquo propicia a criaccedilatildeo de recursos e estabelece uma urgecircncia de
realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (COSTA 2007
101)
Sobre esse aspecto uma profissional conta
Uma coisa que eu lembrei que vocecirc falou da crise me lembrei do CH Ele morava na
casa dos pais que morreram e que foi a casa onde ele cresceu Os pais eram muito
austeros e ele tem muitas recordaccedilotildees naquela casa Ele haacute muito tempo vinha pedindo
para sair daquela casa principalmente quando ele estava ldquoem criserdquo quando ele natildeo
estava ldquobemrdquo Quando algumas coisas aparecem a agressividade por exemplo eacute um
dos sinais de quando ele estaacute em crise aquela doccedilura dele toda natildeo aparece aparece
4 Ver Guattari F (2004) Psicanaacutelise e transversalidade ensaios de anaacutelise institucional Aparecida SP Ideacuteias
amp Letras (Original publicado em 1972)
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mais uma agressividade uma irritabilidade No caso dele parece que satildeo duas pessoas
parece que duas pessoas habitam o mesmo corpo E ele falava muito de querer sair e
quando ele melhorava acabava que O tempo passou eu natildeo sei muito bem montar
essa histoacuteria um trabalho que a Carla fez e a famiacutelia entendeu que era mais do que
quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil tambeacutem e aiacute se comeccedilou
a procurar a casa E aiacute teve um periacuteodo minus porque ao mesmo tempo em que ele queria
sair quando ele viu a saiacuteda isso mexeu minus em que ele natildeo ficou bem e pedia para ficar
no hospital porque para ele era insuportaacutevel ficar naquela casa mas a outra casa ainda
natildeo tinha saiacutedo e a gente ldquoNatildeo mas aqui no hospital natildeo vamos negociar vocecirc fica
um diardquo E aiacute acabou que ele conseguiu alugar a casa dele estaacute superfeliz Mas esse
periacuteodo da procura da casa foi um periacuteodo em que ele pode ateacute natildeo ter entrado numa
crise mas ele natildeo estava bem natildeo estava bem por todas essas mudanccedilas porque ele
natildeo queria tambeacutem eacute difiacutecil mudar Eu natildeo sei mas numa loacutegica psiquiaacutetrica
tradicional talvez nunca se mexesse na casa e talvez diriam ldquoViu soacute como natildeo foi
bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo (Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)
(ibidem 102)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado da histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social habitacional e
relacional Eacute a partir dela que a equipe entende que natildeo eacute mais possiacutevel sustentar a permanecircncia
do usuaacuterio naquela casa A profissional ao mesmo tempo ressalta o quanto eacute difiacutecil e delicado
esse trabalho que face agrave menor mudanccedila na sintomatologia do usuaacuterio corre o risco de ser
inteiramente questionado ldquo viu como natildeo foi bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo
Assim desconstruir o paradigma manicomial implica em uma aposta incansaacutevel no
sujeito em dar creacutedito ao que ele fala e aponta como direccedilotildees possiacuteveis para seu cuidado Ainda
assim eacute preciso reconhecer que o que quer que se construa com ele seraacute sempre uma construccedilatildeo
provisoacuteria posto que as pessoas estatildeo em constante movimento de territorizalizaccedilatildeo e
desterritorializaccedilatildeo de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo de si proacuteprio e do mundo ao seu redor
Estar aberto para essa construccedilatildeo exige que os profissionais possam rever as concepccedilotildees
de crise que embasam suas praacuteticas No lugar das certezas da Psiquiatria Claacutessica eacute preciso
abrir espaccedilo para uma ldquopraacutetica aberta agrave invenccedilatildeo agrave singularidade cuja tecnologia se vai
construindo permeaacutevel aos elementos de vidardquo (Costa 2007 105) A narrativa a seguir fala
um pouco desse aspecto do trabalho
Para mim eacute isso crise eacute isso Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o
sobrinho dele morreu assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver
com uma situaccedilatildeo que ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele
continuou trabalhando na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de
trabalho E eu me lembro que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele
tirar todos os documentos E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do
nascimento dele e ele me mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e
nasceu e contou histoacuteria A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com
ele porque ele explodiu[] E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos
de novo E a gente entendeu que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia
muito que a gente o ajudasse eacute como se ele pulverizasse e a gente entendia que ele
tinha um pedido de organizaccedilatildeo Tanto eacute que ele pediu para arrumar a cantina ele
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queria arrumar as coisas da cantina depois do expediente Os documentos eu acho
que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que ele acabou entre aspas
perdendo Acho que a coisa foi meio por aiacute mas isso foi a histoacuteria dele com J seria
outra coisa com N seria outra Eu acho que vai muito por aiacute Por isso que eu natildeo tenho
uma coisa pronta Mas nas vivecircncias a gente vai vendo como vai fazendo (Psicoacuteloga
do Espaccedilo Aberto ao Tempo) (ibidem 105)
A perspectiva dessa profissional se contrapotildee a uma visatildeo mais tradicionalista da crise
que ldquovai dizer que [a crise] eacute um sintoma que ela estaacute descolada da realidade e vocecirc tem que
fazer a remissatildeo do sintoma entatildeo quando ele [o paciente] melhora eacute porque ele paacutera de delirar
e funciona em um registro mais normal mesmo que seja dopado de medicaccedilatildeo mesmo que
vocecirc esteja matando eacute isso(Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)rdquo (Costa 2007 105)
Acompanhar o movimento do sujeito em seus percursos e trajetoacuterias em busca de sauacutede
(no Parque da Catacumba na arrumaccedilatildeo da cantina na retirada dos documentos) diz de uma
postura diante da crise fundada na sustentaccedilatildeo de um natildeo saber A sustentaccedilatildeo de natildeo ter uma
resposta agrave priori eacute o que vai permitir que se possa embarcar com o paciente em novos sentidos
para sua loucura Normalmente o senso comum tende a acreditar que uma pessoa em surto
psicoacutetico faz e fala coisas sem sentido e que por isso devemos ignoraacute-las A ideia aqui eacute agir no
sentido inverso tomar as accedilotildees e falas do sujeito em crise como um saber legiacutetimo sobre si
Trata-se de retomar um pouco a ideia de Freud do deliacuterio enquanto uma tentativa de cura e
apostar na capacidade inventiva do sujeito de criar saiacutedas para seu sofrimento
Enquanto uma visatildeo mais tradicionalista da crise retiraria o sujeito do seu contexto de
vida para isolaacute-lo em uma instituiccedilatildeo de tratamento sob a justificativa de monitorar avaliar e
examinar a evoluccedilatildeo do quadro psicopatoloacutegico uma visatildeo mais ampliada da crise vai situar
esse acontecimento dentro do contexto de vida da pessoa e buscar superaacute-la trabalhando com
os elementos que fazem parte de seu cotidiano como o territoacuterio as relaccedilotildees sociais a histoacuteria
de vida etc Trata-se portanto de buscar uma saiacuteda da crise a partir da histoacuteria de vida do
sujeito e de sua realidade acolhendo os caminhos que ele aponta Vista desse modo a crise eacute
um modo de subjetivaccedilatildeo que soacute se constitui no mundo concreto e coletivo o qual o sujeito faz
parte e soacute pode se transformar na medida em que esse mundo tambeacutem se transforma para ele
42 DESAFIOS E POTENCIALIDADES NO ACOLHIMENTO A CRISE
Segundo a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (2013)
Acolher eacute reconhecer o que o outro traz como legiacutetima e singular necessidade de
sauacutede O acolhimento deve comparecer e sustentar a relaccedilatildeo entre equipesserviccedilos e
usuaacuterios populaccedilotildees Como valor das praacuteticas de sauacutede o acolhimento eacute construiacutedo
de forma coletiva a partir da anaacutelise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
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construccedilatildeo de relaccedilotildees de confianccedila compromisso e viacutenculo entre as
equipesserviccedilos trabalhadorequipes e usuaacuterio com sua rede socioafetiva (spag)
Tal poliacutetica considera ainda que o acolhimento eacute uma postura eacutetica e tecnologia
relacional de escuta qualificada a ser oferecida de acordo com agraves necessidades dos usuaacuterios e a
partir de uma avaliaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade gravidade e riscordquo (BRASIL 2013)
Tendo essa concepccedilatildeo de acolhimento como direccedilatildeo visamos atraveacutes da anaacutelise dos
artigos estudados nessa pesquisa trazer algumas contribuiccedilotildees para pensar como tem se dado
o acolhimento agrave crise na RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e quais satildeo os principais
impasses estrateacutegias e ferramentas cliacutenicas que os profissionais encontram na prestaccedilatildeo desse
cuidado no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede
Desse modo a partir da revisatildeo da literatura podemos dizer que um dos primeiros
desafios que se coloca no acircmbito do acolhimento agrave crise eacute que este natildeo seja apenas um processo
de triagem Sobre esse aspecto a pesquisa de Paulon et al (2012) encontrou resultados
relevantes Os autores entrevistaram trabalhadores e gestores de emergecircncias de hospitais gerais
na cidade de Porto AlegreRS aleacutem de analisarem os protocolos utilizados por essas unidades
no processo de acolhimento
Nos protocolos analisados por Paulon et ali (2012) chama atenccedilatildeo o fato de que em
nenhum momento a palavra ldquoacolhimentordquo eacute utilizada Os autores destacam que em um desses
documentos a palavra ldquotriagemrdquo eacute utilizada em seu lugar como um criteacuterio que permite
ldquoclassificar e escolherrdquo
O texto de introduccedilatildeo deste documento segue descrevendo a origem militar desse
termo utilizado em campos de batalha para escolher ldquoquem valeria a pena salvarrdquo de
acordo com os recursos disponiacuteveis dentre aqueles feridos em combate ldquoo objetivo
geral da classificaccedilatildeo era retornar o maior nuacutemero possiacutevel de soldados ao campo de
batalhardquo (FERNANDES RAMOS FRUSTOCKL FRANCcedilA sd 1 apud PAULON
ET AL 2012 75)
Difiacutecil pensar em produzir relaccedilotildees de cuidado a partir de um texto que orienta os
profissionais a pensarem nos seus pacientes como ldquosoldados em um campo de batalhardquo Vemos
que essa concepccedilatildeo de acolhimento enquanto triagem natildeo se restringe apenas a burocracia de
um documento sem efeitos na praacutetica mas encontra-se presente e viva no discurso dos
profissionais desse hospital como observamos na fala a seguir ldquono acolhimento os pacientes
relatam o seu problema e a partir daiacute eacute triado de acordo com a classificaccedilatildeo de riscordquo (
PAULON ET AL 2012 76 grifo do autor)
Outra profissional entrevistada associa o acolhimento ao filme ldquoTempos Modernosrdquo
relembrando a cena em que o personagem de Carlitos de tanto apertar parafusos sai repetindo
66
os movimentos desconexos rua afora Em seguida acrescenta que ldquoa sua proacutexima escala de
acolhimento ocorreraacute dali a dois meses e sente-se aliviada por isso pois prefere ficar nas
maacutequinas de raios-X do que ficar ali na linha de frenterdquo (ibidem 76)
Talvez o comentaacuterio da enfermeira revele um querer colocar as coisas em seus
ldquodevidos lugaresrdquo uma vez que o trabalho com a maquinaria requer mais
apropriadamente o tipo de conduta que lhe parece ser exigida para atuar nos
acolhimentos da emergecircncia Aleacutem disso as maacutequinas de raio-X natildeo precisam ser
esvaziadas de subjetividade do conteuacutedo psicossocial que insiste em ser sugado das
ldquopessoas-parafusordquo da linha de montagem do acolhimentotriagem (ibidem 76)
O acolhimento-triagem transforma a linha de cuidado em ldquolinha de montagemrdquo
tomando o sujeito como um objeto que precisa ser ldquotriadordquo ldquoencaminhadordquo e ldquoclassificadordquo
de acordo com os criteacuterios de um protocolo Perde-se a dimensatildeo leve e relacional desse
cuidado Aspectos como a escuta a produccedilatildeo de viacutenculo e a valorizaccedilatildeo do encontro natildeo tecircm
espaccedilo para emergir em meio ao tempo altamente controlado e aos procedimentos mecanizados
desse cuidado
Com resultado produz-se uma burocratizaccedilatildeo dos dois lados os pacientes veem o
acolhimento como mais um empecilho para ldquoresolverrdquo suas necessidades de sauacutede ou mesmo
para ldquousufruir do consumo de sua dose procedimentalrdquo e os teacutecnicos como castigo obrigaccedilatildeo e
perda de tempo pois estatildeo se afastando do cuidado que seria ldquoo verdadeiro cuidadordquo o cuidado
dos procedimentos das maacutequinas da medicaccedilatildeo etc
O que prevalece assim eacute um cuidado predominantemente vertical de procedimentos
biomeacutedicos para com um usuaacuterio submisso e em estado de passividade uma perfeita
apresentaccedilatildeo do claacutessico ldquopacienterdquo (ibidem 78)
Ao referir-se sobre o acolhimento palavras como ldquoraacutepido efetivo e estabilizadordquo foram
uma constante no discurso dos profissionais Segundo um dos entrevistados
A nossa proposta de acolhimento eacute um acolhimento raacutepido ele tem que ser raacutepido e
efetivo Porque agraves vezes o paciente chega pra mim e eu tenho que conseguir classificar
ele raacutepido justamente pra ele ter um atendimento mais raacutepido (sic)rdquo (ibidem 78)
O risco e a possibilidade de morte muitas vezes colocada associada agrave percepccedilatildeo de um
corpo fiacutesico em colapso eacute o que demanda a accedilatildeo raacutepida O diaacutelogo torna-se empobrecido e
restrito ao que estaacute prescrito nos protocolos de atendimento e o contato reduz-se a execuccedilatildeo de
procedimentos biomeacutedicos que visam a estabilizaccedilatildeo (medicaccedilatildeo afericcedilatildeo dos sinais vitais
entre outros)
A funccedilatildeo da emergecircncia segundo os entrevistados seria devolver a estabilidade das
funccedilotildees orgacircnicas ao corpo que estaacute sendo assistido () E todos os procedimentos
precisam ser feitos rapidamente pois a depender da gravidade do dano instalado
naquele organismo esse desequiliacutebrio poderaacute levar agrave morte (ibidem 78)
67
Entende-se que eacute necessaacuterio que a pessoa em situaccedilatildeo de crise tenha acesso ao cuidado
de forma raacutepida No entanto o que se observa eacute que a rapidez mencionada pelos profissionais
natildeo se restringe somente ao tempo de espera do atendimento mas as etapas e fases do
acolhimento Assim no intuito de ldquoacelerarrdquo a linha de cuidado o paciente recebe um
atendimento fragmentado e burocratizado cujo objetivo eacute conseguir determinar no menor
tempo possiacutevel qual paciente pode esperar qual deve ser atendido imediatamente qual deve ser
encaminhado para outro serviccedilo e qual deveraacute ser internado Sobre esse aspecto um entrevistado
ressalta
O funcionamento da emergecircncia eacute uma coisa mais Mc Donaldrsquos natildeo tem entrada
primeiro prato segundo prato terceiro prato Eles querem ver quem eacute que tem risco
que tenha que internar senatildeo olham o que precisa e lsquodeursquo A emergecircncia eacute voltada
para o foco da doenccedila ela focaliza no tratamento que estanque aquele sofrimento
emergenterdquo (sic) (ibidem 79 grifos nossos)
Os autores pontuam que essas satildeo decisotildees complexas que natildeo podem ser tomadas ldquono
menor tempo possiacutevelrdquo sem que haja necessariamente um processo de simplificaccedilatildeo do
atendimento no qual ldquoo trabalhador tenta adequar a demanda trazida pelo usuaacuterio agravequilo de
que o serviccedilo dispotildee para poder lidar com ela e salvaguardar algum sucesso no resultado do
trabalhordquo (ibidem 79)
Assim tem-se o que Merhy (2002) descreve como ldquotrabalho mortordquo isto eacute um cuidado
que ldquonatildeo estaacute em movimento- em relaccedilatildeordquo (apud PAULON ET AL 2012 79) O sujeito eacute
visto como um ldquoproblemardquo que precisa ser ldquoresolvidordquo a partir do uso das tecnologias que o
serviccedilo dispotildee Natildeo haacute tempo para se descobrir o que haacute de singular na crise daquele sujeito ou
inventar outras articulaccedilotildees que possam dar conta desse sofrimento
Esvazia-se o processo isolam-se as anguacutestias e a complexidade do atendimento da
pessoa que demanda cuidados adequando-a ao que o hospital pode fornecer ldquoOlham
o que precisa e lsquodeursquordquo (sic) (PAULON ET AL 2012 79 grifo do autor)
O acolhimento-triagem eacute a expressatildeo de todo um modo de cuidado duro constituiacutedo por
certos ldquosaberes bem definidosrdquo orientados para que as respostas sejam as mais adequadas e
eficientes no menor tempo possiacutevel Em nome de ideais como a otimizaccedilatildeo do tempo e dos
recursos reduccedilatildeo dos custos e do foco na sintomatologia produz-se um cuidado
homogeneizado padratildeo ldquoMc Donaldsrdquo que jaacute tem em sua cesta de ferramentas todas as
respostas possiacuteveis Assim cabe perguntar
Se o foco da atenccedilatildeo estaacute direcionado aos sinais vitais e agrave sintomatologia fiacutesica
presente no quadro cliacutenico em nome de uma agilidade e eficiecircncia no atendimento
qual seraacute o espaccedilo reservado para tudo o que natildeo estiver inscrito nesse script O que
sobra do sujeito-usuaacuterio que chega com sofrimentos difusos numa emergecircncia Que
acontece quando o tipo de dor e sofrimento que ldquourgerdquo num usuaacuterio eacute de outra ordem
68
que natildeo aquela que costuma estar no foco desses serviccedilos (PAULON ET AL 2012
81)
Parece que haacute um despreparo para lidar com as situaccedilotildees subjetivas que fogem do olhar
cartesiano da Medicina Tradicional e que exigem dos trabalhadores uma disponibilidade outra
de entrar em contato com a pessoa em sofrimento emprestar seu tempo seu corpo seu afeto
As entrevistas apontam que ldquoos profissionais sentem medo de cuidar daquilo que
desconhecem do que natildeo foram capacitadosrdquo (sic)rdquo (ibidem 86) Um outro desafio que
podemos destacar relacionado a esse despreparo eacute a interferecircncia do preconceito e do
julgamento moral no atendimento agrave algumas situaccedilotildees de sauacutede mental Segundo os
pesquisadores
O julgamento moral estaacute presente desde a triagem a qual culmina em uma
classificaccedilatildeo de risco que mescla a objetividade de protocolos organicistas com um
olhar moralizante da situaccedilatildeo que se encontra o usuaacuterio que chega para atendimento
o que acaba relegando a sauacutede mental a um segundo plano e fazendo seleccedilotildees a partir
de determinados paracircmetros como [] a comunhatildeo de preconceitos e valores sociais
no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como ldquoessencialmente natildeo
urgentesrdquo (os alcooacutelatras drogados e pacientes psiquiaacutetricos) a presteza maior no
atendimento a usuaacuterios de classe social e niacutevel cultural mais abastados a importacircncia
da identificaccedilatildeo dos que fingem ou estatildeo dizendo a verdade sobre suas urgecircncias e no
consenso de que se a dor ou o problema eacute antigo quem esperou tanto para acessar o
serviccedilo pode esperar mais (Neves 2006 692 apud PAULON ET AL 2012 84)
No caso de crises relacionadas ao uso abusivo de aacutelcool e outras drogas a equipe das
emergecircncias tende a assumir uma postura acusatoacuteria relegando a responsabilidade da crise ao
usuaacuterio que teria escolhido seguir esse caminho Acredita-se que por estes nada se tem a fazer
e que o melhor eacute ldquocuidar de quem realmente quer ser cuidadordquo Na praacutetica o atendimento dessas
situaccedilotildees revela ldquodescaso incapacidade de escuta ou ateacute negligecircncia para com sujeitos em crise
de abstinecircncia ou torporrdquo (PAULON ET AL 2012 85) Os autores ressaltam que
Nesse sentido subjugar um cidadatildeo que chega agrave emergecircncia com algum tipo de
sofrimento psiacutequico limite reduzindo-o a um lugar de pecado de vergonha pelos seus
atos fora dos padrotildees aceitos socialmente emerge da junccedilatildeo das loacutegicas meacutedica e
judiciaacuteria efetuada pela ativaccedilatildeo de categorias elementares da moralidade de um
discurso essencialmente parental-infantil que eacute o discurso dos cuidadores quando se
imbuem do saber absoluto sobre ldquoo que eacute bom para o outrordquo(ibidem85 )
O atravessamento das expectativas dos profissionais sobre a vida do outro somado aos
valores morais e culturais em vigor na sociedade fomentam um processo de culpabilizaccedilatildeo da
pessoa que procura ajuda o que pode culminar em uma niacutetida desresponsabilizaccedilatildeo com o
cuidado desses pacientes como vemos nos trechos a seguir
Esses sim esses noacutes da equipe de enfermagem temos bastantes dificuldades de lidar
porque tu vecirc o viacutecio como algo que a pessoa vai e faz por que quer tem livre arbiacutetrio
ele escolheu o viacutecio Ateacute as primeiras idas ateacute antes da dependecircncia (sic) (ibidem
84 grifo do autor)
69
Chegaram a dizer que ele era uma pessoa egoiacutesta e que natildeo tinha condiccedilotildees de
convivecircncia que era pra eu e minha matildee sairmos de casa ou botar(mos) ele pra fora
(CONTE ET AL 2015 1745 grifo do autor)
Nesse contexto eacute comum por exemplo que a equipe entenda que o ldquoatendimentordquo
possiacutevel eacute a resoluccedilatildeo da demanda fiacutesica do alcoolista (reestabelecimento dos sinais vitais
hidrataccedilatildeo etc) sem que haja nenhum tipo de encaminhamento para um tratamento continuado
na rede ou mesmo uma abordagem sobre a situaccedilatildeo que a pessoa se encontra naquele momento
Esse olhar do cuidado orgacircnico e centrado nos procedimentos fiacutesicos tem se apresentado
como um outro importante desafio a se transpor no niacutevel das praacuteticas de cuidado Nas
emergecircncias gerais cenaacuterio da pesquisa isso fica especialmente evidente Os profissionais
tendem a atribuir mais valor agrave dor fiacutesica do que a psicoloacutegica Como se quem estivesse sofrendo
por um trauma um corte ou uma fratura precisasse mais do atendimento do que um paciente
esquizofrecircnico dependente quiacutemico ou com crise de ansiedade Desse modo as demandas
subjetivas satildeo vistas como aquelas que ldquopodem esperarrdquo e que tomam lugar das demandas
fiacutesicas compreendidas nesta loacutegica como aquelas ldquorealmente urgentesrdquo Sobre esse aspecto
Jardim e Dimenstein (2007 182) ressaltam
O foco do trabalho das urgecircncias psiquiaacutetricas estaacute primordialmente no procedimento
em sua dimensatildeo bioloacutegica no corpo pensado como objeto de intervenccedilatildeo da
anatomia patoloacutegica e qualquer fator que extrapole esse acircmbito eacute desconsiderado
Entatildeo ateacute mesmo enquanto doenccedila mental a loucura foge da loacutegica das urgecircncias
Natildeo se manifesta enquanto lesatildeo palpaacutevel ou visiacutevel [ela] evoca outros
questionamentos incomoda por diferir tanto das outras demandas natildeo se encaixa no
espaccedilo natildeo se submete agrave autoridade potildee em xeque os teacutecnicos e seus saacutebios
conhecimentos desvela as suas impotecircncias (apud PAULON ET AL 2012 87)
Mesmo nos casos em que claramente sabe-se que o motivo da falecircncia do corpo eacute o
sofrimento subjetivo o alvo do cuidado continua sendo limitado ao reparo do dano provocado
ao corpo fiacutesico
Quando uma crianccedila chega agrave emergecircncia por automutilaccedilatildeo ou mesmo quando um
adulto adentra a sala com os pulsos cortados os profissionais entendem que sua
funccedilatildeo nesse caso eacute de limpar e suturar os ferimentos O motivo da consulta eacute o
ferimento - novamente o fiacutesico - e os possiacuteveis procedimentos que nele possam ser
executados Jaacute os motivos do plano psiacutequico e social que possivelmente causaram tal
emergecircncia (e natildeo raras vezes causaratildeo novamente e justificaratildeo uma reinternaccedilatildeo ndash
uma das variaacuteveis determinantes da hiperlotaccedilatildeo das emergecircncias) natildeo satildeo alvo de
investimentos por parte das equipes (PAULON ET AL 2012 85)
Haacute um certo mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo pois ao contraacuterio da
patologia orgacircnica ele natildeo se submete as loacutegicas de um saber estruturado e natildeo ldquo se resolverdquo a
partir de um manejo ou intervenccedilatildeo O sofrimento subjetivo retorna e continua a colocar em
xeque os profissionais seus saberes e as instituiccedilotildees Em um serviccedilo como a emergecircncia o que
70
natildeo pode ser ldquoresolvidordquo eacute frequentemente esquecido o que natildeo deixa de ser paradoxalmente
uma forma de ldquoresoluccedilatildeordquo do problema
Nos serviccedilos especializados embora a demanda de sauacutede mental seja mais evidente
parece que a direccedilatildeo do cuidado eacute igualmente no sentido de invisibilizaacute-la Pesquisas como a
de Zeferino et al (2016) sobre a percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre a atenccedilatildeo agrave crise
sauacutede mental apontam que a intervenccedilatildeo muitas vezes eacute no sentido de ldquocalarrdquo o sintoma
revelando que embora o modelo de sauacutede tenha mudado as praacuteticas medicalizantes e
hospitalocecircntricas ainda prevalecem
Essa pesquisa foi feita com 156 alunos do curso ldquoCrise e Urgecircncia em Sauacutede Mentalrdquo
ldquotrabalhadores da RAPS com formaccedilatildeo em niacutevel universitaacuterio que atuam no cuidado em sauacutede
mental no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) oriundos das diversas Regiotildees do Brasil
selecionados pelo Ministeacuterio da Sauacutederdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag) Como forma de
cuidado na crise os participantes citaram majoritariamente medidas como ldquocontenccedilatildeo
medicamentosa contenccedilatildeo mecacircnica e internaccedilatildeo accedilotildees que se limitam agrave diminuiccedilatildeo de
sintomasrdquo (idem p) como descrito nas falas abaixo
Quando chegam ao serviccedilo dependendo de como estejam satildeo contidos no leito com
faixas de contenccedilatildeo pelos monitores e depois satildeo vistos pelos meacutedicos Psiquiatras que
determinam a contenccedilatildeo medicamentosa feita a administraccedilatildeo da medicaccedilatildeo ficam
em observaccedilatildeo (E1 A124 - CAPS II) (ibidem spag )
Nas urgecircncias a primeira conduta eacute a intervenccedilatildeo medicamentosa que ocorre pela
equipe de enfermagem tanto na unidade como em domiciacutelio em alguns casos com
apoio da Guarda Municipal para contenccedilatildeo fiacutesica Logo que possiacutevel o paciente eacute
avaliado pelo meacutedico que quase sempre orienta a internaccedilatildeo (E1 A64 - CAPS II)
(ibidem spag)
Quando temos um usuaacuterio em crise e a famiacuteliar liga para pedir ajuda da equipe do
CAPS orientamos que entre em contato com o SAMU para levaacute-lo ao hospital e
entatildeo o usuaacuterio ser medicado Se a Crise for muito forte este eacute encaminhado para a
capital onde seraacute internado[] (E1 A147 - CAPS II) (ibidem spag)
Nota-se que as primeiras intervenccedilotildees mencionadas pelos profissionais satildeo a contenccedilatildeo
fiacutesica eou medicamentosa seguida do encaminhamento para o hospital A avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo
de crise eacute vista como uma responsabilidade uacutenica e exclusiva do meacutedico da qual a equipe natildeo
participa Na terceira fala por exemplo observamos que o profissional sequer tenta entender a
situaccedilatildeo que levou o usuaacuterio a entrar em crise O CAPS tampouco parece ser visto como um
dispositivo a ser acionado nas situaccedilotildees de crise O encaminhamento imediato eacute ligar para o
SAMU para que o usuaacuterio seja levado ao hospital
Embora o CAPS seja o dispositivo por excelecircncia substitutivo ao hospital e por isso
privilegiado no atendimento agraves situaccedilotildees de crise a expectativa dos profissionais eacute de que
71
outros serviccedilos se ocupem da crise e que o usuaacuterio retorne ao CAPS quando estiver
ldquoestabilizadordquo conforme vemos a seguir
A equipe tem se mostrado omissa quando presencia um momento de crise e ao inveacutes
de intervir busca encaminhar e se livrar do problema (E1 A141 - CAPS II) (ibidem
spag)
O usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao Hospital Geral para a
estabilizaccedilatildeo retornando ao CAPS assim que estiver compensado para a
continuidade do seu tratamento (E1 A92 - CAPS II) (ibidem spag)
A ideia da estabilizaccedilatildeo associada prioritariamente agrave intervenccedilatildeo farmacoloacutegica e a
hospitalizaccedilatildeo aleacutem de reforccedilar o modelo manicomial deposita a esperanccedila da melhora em uma
soluccedilatildeo externa e maacutegica retirando a possibilidade do sujeito se responsabilizar pelo seu
sintoma e talvez encontrar outra soluccedilatildeo para sua compensaccedilatildeo Segundo os autores ldquoVaacuterias
correntes teoacutericas tem apontado que o objetivo das praacuteticas de sauacutede mental precisa ser a
ampliaccedilatildeo da capacidade de cada um lidar consigo mesmo e com os outros e natildeo apenas a
remissatildeo de sintomasrdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag)
Assim embora alguns profissionais reconheccedilam a necessidade de uma mudanccedila em
relaccedilatildeo a essas praacuteticas parecem ter dificuldades de nortear suas accedilotildees sob a loacutegica do modelo
psicossocial como podemos ver nas falas a seguir
Vejo-me com tantas perguntas sobre crises como identificaacute-la como agir o que natildeo
fazer a resposta medicamentosa me parece faacutecil e raacutepida poreacutem me angustia tecirc-la
como resposta gostaria de descobrir outros caminhos (E1 A52 - CAPS II) (ibidem
spag)
A equipe tem se esforccedilado no cuidar natildeo tem sido faacutecil pois exige um
amadurecimento da mesma procurando natildeo limitar na terapia medicamentosa no
modelo meacutedico-centrado mas sim em acolher natildeo soacute o paciente mas os familiares
buscando interagir com os parceiros da RAPS Nas nossas reuniotildees de equipe sempre
discutimos casos novos (E1 A66 - CAPS I) (ibidem spag)
Destaca-se nesse contexto que a formaccedilatildeo hegemonicamente biomeacutedica e a
inadequaccedilatildeo dos curriacuteculos para aacuterea da sauacutede mental reforccedilam o apelo agrave resposta ldquoprontardquo da
medicaccedilatildeo e contribuem para a manutenccedilatildeo do modelo manicomial ldquoO diagnoacutestico apressado
a conduta extremamente teacutecnica e desumana a medicalizaccedilatildeo de todas as queixas e as
dificuldades no contatordquo (ibidem spag) satildeo expressotildees de um modelo de cuidado duro que
imbuiacutedo dos ideais de neutralidade da praacutetica meacutedica simplifica e compromete a integralidade
do cuidado Sobre esse aspecto um profissional comenta
Trabalhamos ainda focados na praacutetica meacutedica quase em todos os episoacutedios a
medicalizaccedilatildeo ocorre em primeiro lugar Principalmente com a falta de capacitaccedilatildeo
dos profissionais envolvidos Esta atuaccedilatildeo soacute fortalece a dependecircncia do hospital
psiquiaacutetrico (E1 A53 - CAPS II) (ibidem spag)
72
Para agravar a situaccedilatildeo a rede tambeacutem natildeo consegue dar respostas pois tambeacutem natildeo
estaacute preparada para tais situaccedilotildees Ocorre que esse usuaacuterio percorre um caminho de
sofrimento e descaso (E1 A141 - CAPS II) (ibidem spag)
Na pesquisa de Almeida et al (2012) com 14 profissionais de quatro equipes do SAMU
no estado de Santa Catarina a falta de capacitaccedilatildeo teacutecnica para o atendimento agraves situaccedilotildees de
crise tambeacutem aparece enquanto um desafio As dificuldades relatadas pelos profissionais
perpassam o medo a falta de conhecimento sobre a crise e o despreparo no momento de abordar
o paciente
Acredito que a experiecircncia do dia a dia me faz ter certo preparo teacutecnico mas com
dificuldade na questatildeo psicoloacutegica Por ser o SAMU um serviccedilo de Urgecircncia e
Emergecircncia e natildeo de continuaccedilatildeo do cuidado realiza-se o necessaacuterio mas acho que
poderiacuteamos ter um preparo melhor Fico muito em alerta a tudo o que o paciente faz
a forma dele agir e de se expressar Eu abordo porque tem que abordar mas eu natildeo me
sinto preparado Pode-se dizer que estou preparado na medida do possiacutevel pois
consigo realizar teacutecnicas para contenccedilatildeo fiacutesica mas natildeo psicoloacutegica Em algumas
situaccedilotildees natildeo me sinto preparado e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia militar
No caso de agressividade natildeo me sinto preparado Acredito que precisariacuteamos de mais
orientaccedilatildeo pois eacute a uacutenica aacuterea que a gente natildeo tem capacitaccedilatildeo Quando consigo me
aproximar na abordagem a pessoa fica tranquumlila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmo
Com certeza precisa mais coisa para o atendimento orientaccedilatildeo Acredito que a falta
de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz com que o
atendimento siga uma forma natildeo correta
(P1P2P3P4P5P6P7P9P10P13P14)(ALMEIDA ET AL 2012 710)
A falta de preparo muitas vezes eacute o que justifica o uso da forccedila fiacutesica e da agressividade
conforme retratado nas falas ldquoquando consigo me aproximar na abordagem a pessoa fica
tranquila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmordquo ldquoem algumas situaccedilotildees natildeo me sinto preparado
e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia miliarrdquo ldquono caso de agressividade natildeo me sinto
preparadordquo Assim vemos a importacircncia do investimento em processos de educaccedilatildeo
permanente supervisatildeo cliacutenica e cursos de formaccedilatildeo para que os profissionais encontrem meios
de manejar as situaccedilotildees de crise sem necessidade do uso de violecircncia
A formaccedilatildeo precisa ser vista como um ldquoprocesso dinacircmico e contiacutenuo de construccedilatildeo do
conhecimento pautado no diaacutelogo em que todos os atores assumam papel ativo no processo de
aprendizagem atraveacutes de uma abordagem criacutetica e reflexiva da realidaderdquo (ibidem713)
Acreditamos que atraveacutes dela as concepccedilotildees de crise o imaginaacuterio social da loucura e os
conceitos de risco e periculosidade podem ser revisitados e problematizados fornecendo
subsiacutedios para uma praacutetica orientada para a escuta das necessidades do sujeito do viacutenculo e do
cuidado em liberdade
Assim podemos dizer que o cuidado dos profissionais ainda representa em grande parte
caracteriacutesticas do modelo asilar como intervenccedilotildees centradas na contenccedilotildees fiacutesica e
medicamentosa excesso de internaccedilotildees acolhimento burocratizado falta de preparo na
73
abordagem ao paciente em crise resultando no uso da forccedila fiacutesica e da agressividade aleacutem de
praacuteticas de preconceito e discriminaccedilatildeo sendo estes alguns dos principais desafios apontados
pela literatura estudada no acolhimento agrave crise no acircmbito da Reforma Psiquiaacutetrica e do SUS
(Sistema Uacutenico de Sauacutede)
Quanto agraves potencialidades no acolhimento agrave crise podemos destacar algumas estrateacutegias
referidas pela literatura Na pesquisa de Lima et al (2012) da qual participaram profissionais
usuaacuterios gestores e familiares de 11 CAPS nas cidades da Bahia e Sergipe emergiram enquanto
elementos que favorecem o manejo da crise segundo a perspectiva dos participantes
a) acolhimento diurno e noturno b) observaccedilatildeo continuada e contiacutenua c) atenccedilatildeo
domiciliar (visitas domiciliares) d) responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso
e) presenccedila do psiquiatra na equipe para garantir o ecircxito da prescriccedilatildeo f) negociaccedilatildeo
e apoio concreto ao familiar para que o internamento seja o uacuteltimo recurso utilizado
g) elaboraccedilatildeo de cartilha com orientaccedilatildeo sobre como lidar com a crise de pessoas com
transtornos para profissionais natildeo especializados em sauacutede mental e para familiares
h) implantaccedilatildeo das ldquoOficinas de criserdquo 5nos CAPS i) estabelecimento de limites para
os usuaacuterios atraveacutes de regras de convivecircncia para evitar o uso de aacutelcool e outras drogas
no CAPS e como sugerem os parentes j) na perspectiva dos familiares natildeo podem
faltar carinho compreensatildeo e feacute (LIMA ET AL 2012 430 grifo nosso)
Recursos como o acolhimento diurno e noturno quando possiacutevel no caso de CAPS III
associado agrave observaccedilatildeo contiacutenua e agrave responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso indicam a
importacircncia de um cuidado mais intensivo nos momentos de crise Uma estrateacutegia possiacutevel
nesse sentido eacute aumentar a frequecircncia do paciente no serviccedilo para que a equipe possa
acompanhar o caso mais de perto e oferecer suporte antes que a situaccedilatildeo se agrave Isso implica
em uma revisatildeo do Projeto Singular Terapecircutico para construir outros espaccedilos onde o sujeito
possa produzir sauacutede A inclusatildeo de recursos do territoacuterio e espaccedilos no proacuteprio serviccedilo que
possam dar alguma continecircncia agrave desorganizaccedilatildeo e aos sentimentos disruptivos que emergem
na crise tambeacutem eacute uma accedilatildeo fundamental na direccedilatildeo de um cuidado territorial e em liberdade
Outras pesquisas como a de Peireira Saacute e Miranda (2017) indicam a utilizaccedilatildeo da
intensividade do cuidado de forma exitosa permitindo a saiacuteda do estado de crise
O irmatildeo de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora
resultado principalmente do aumento dos dias em que esta permanecia no serviccedilo
da disponibilizaccedilatildeo de um carro para transportaacute-la e da intensificaccedilatildeo dos contatos
dos profissionais com a famiacutelia (ibidem 3738 )
As visitas domiciliares tambeacutem se mostram estrateacutegias muito eficientes nos momentos
de crise em que natildeo eacute possiacutevel para o sujeito ir ateacute o serviccedilo Baseadas em uma tecnologia-leve
e relacional de cuidado tem como suas principais ferramentas a aposta no encontro no viacutenculo
5 Segundo os autores trata-se de um espaccedilo que ldquomanteacutem o usuaacuterio em crise sob acompanhamento intensivo
tendo como premissa soacute recorrer agrave internaccedilatildeo como uacuteltima alternativardquo (LIMA ET AL 2012 429)
74
na escuta qualificada e no diaacutelogo Aleacutem disso indicam a importacircncia de dois elementos
fundamentais na loacutegica da atenccedilatildeo psicossocial a intervenccedilatildeo dentro do contexto de vida do
sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) e a disponibilidade de prestar o cuidado
no momento em que ele eacute necessaacuterio
Outro achado da pesquisa de Lima et al (2012) que reflete a potecircncia da tecnologia
vincular no acolhimento agrave crise eacute a percepccedilatildeo dos profissionais que os usuaacuterios mais antigos e
conhecidos pela equipe tecircm menos chances de serem internados em uma situaccedilatildeo de crise do
que os novos Sobre esse aspecto ressaltamos a fala de uma trabalhadora entrevistada
Uma coisa interessante tambeacutem eacute que os pacientes jaacute conhecidos jaacute usuaacuterios haacute algum
tempo os profissionais de referecircncia deles agraves vezes jaacute datildeo conta de alguma forma A
gente observa situaccedilotildees assim os pacientes novos em geral que satildeo encaminhados pra
emergecircncia tecircm um quadro de agitaccedilatildeo e precisam de medicaccedilatildeo Mas outros casos a
gente jaacute consegue controlar sem medicaccedilatildeo pelos viacutenculos mas os que jaacute satildeo da
casa Os que jaacute tecircm um tempo conosco Como a gente tem vivenciado uma coisa que
se prende ateacute a noacutes psiquiatras porque a gente lida muito com a medicaccedilatildeo aquele
paciente sair daquele quadro sem medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431 grifo nosso)
Assim o viacutenculo e a escuta quando bem utilizados possibilitam a estabilizaccedilatildeo do
quadro de crise sem que haja necessidade de se utilizar tecnologias duras como a internaccedilatildeo
ou (leves-duras) como a medicaccedilatildeo Entrar em contato com a crise entendendo o contexto em
que ela ocorre e permitindo que o sofrimento do sujeito se expresse eacute o ponto de partida para
que algum acolhimento possa se dar
Acolher a crise poder escutar que crise eacute essa crise psiquiaacutetrica crise do sujeito
poder escutar o sujeito e aproveitar a crise como sendo a forma que ele tem de se
manifestar ele conseguiu colocar no sintoma aquele sofrimento todo que ele tava
entatildeo aproveitar fazer uma escuta e acolher aquilo antes de vocecirc calar com a
medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431)
A pesquisa de Willrich et al (2013) com profissionais de um CAPS II em Alegrete (RS)
tambeacutem aponta a importacircncia do viacutenculo e da construccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de reciprocidade com
o usuaacuterio como estrateacutegias fundamentais no acolhimento ao momento de crise como indicam
as falas dos trabalhadores participantes desse estudo
Acho que a gente tem que ter esse cuidado quando a pessoa estaacute em crise ter sempre
algueacutem que possa estar intensivamente mais perto (A4) (ibidem659)
A gente vai para desarmar a gente natildeo vai se o cara estaacute irritado violento eu natildeo
vou laacute para provocar a violecircncia nele Pelo contraacuterio eu quero que ele se apoacuteie em
mim para ver se ele consegue desarmar a tal da violecircncia que estaacute na cabeccedila dele Eacute
assim que eu procedo nesses assuntos () aiacute ele vem e ndash Ah disco voador que natildeo
sei o quecirc Eu natildeo vou dizer que natildeo existe disco voador Eu entro na loucura faccedilo
um flerte com a loucura dele para tentar construir um pouco de sauacutede ir construindo
Num primeiro momento natildeo tem como ir contra () Tem coisas que tu natildeo vai
conseguir manejar tem que ter estar junto com outros Aiacute tem que segurar tem que
sentar tem que acalmar (A6) (ibidem 659 grifo do autor)
75
A possibilidade de sustentar estar junto com o usuaacuterio tomando suas anguacutestias como
reais ainda que resultem de uma experiecircncia alucinatoacuteria ou delirante possibilita a construccedilatildeo
de uma relaccedilatildeo de confianccedila entre o profissional e o usuaacuterio A partir desta relaccedilatildeo o serviccedilo
comeccedila a se constituir enquanto um espaccedilo de apoio como uma referecircncia concreta para o
usuaacuterio de onde buscar ajuda nos momentos de crise
A tomada de responsabilidade desse CAPS em relaccedilatildeo agrave crise se transmite tambeacutem na
clareza de que o suporte nesses momentos precisa ser imediato conforme vemos a seguir
A gente sempre procura eacute pedir para as colegas laacute da frente que quando elas atendem
o telefone eacute para perguntar se eacute urgecircncia ou natildeo Se eacute um caso que um paciente estaacute
agredindo o familiar ou coisa a gente tem que largar tudo que estaacute fazendo para ir
atender (A2)( WILLRICH ET AL 2013 659)
Enquanto na pesquisa de Zeferino et al (2016) mencionada anteriormente a primeira
conduta ao atender uma situaccedilatildeo de crise por telefone era orientar a famiacutelia a chamar o SAMU
vecirc-se que neste CAPS a equipe entende as situaccedilotildees de crise como uma missatildeo desse serviccedilo
e por isso como uma prioridade na agenda Essa postura de ldquolargar tudo o que se estaacute fazendo
para ir atenderrdquo indica um compromisso eacutetico muito forte com o cuidado no territoacuterio e com a
desinstitucionalizaccedilatildeo Isso natildeo significa que a equipe natildeo possa avaliar que eacute necessaacuterio
internar mas antes ela busca apropriar do caso e oferecer suporte
A direccedilatildeo da internaccedilatildeo como o uacuteltimo recurso a ser acionado no cuidado conversa
diretamente com a importacircncia de praacuteticas de prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise e de seu
agravamento Nessa linha de pensamento podemos destacar a fala do profissional a seguir
A estrateacutegia que eu sempre penso e que eu sempre falo para o grupo eacute a estrateacutegia da
prevenccedilatildeo Se eu sei que um usuaacuterio estaacute entrando em crise e eu sei porque ele estaacute
todo o dia aqui com a gente desde laacute da recepccedilatildeo ateacute aqui Se eu sei que um usuaacuterio
estaacute com um problema mais seacuterio eu tenho que antecipar isso () se ele comeccedila a ter
problemas a gente tem que intervir () Entatildeo a gente tem que estar sempre de olho
para prevenir o surto () A visatildeo que a gente procura ter e discutir nas reuniotildees de
equipe eacute assim vamos prevenir () Entatildeo eu acho que a prevenccedilatildeo se chegou mal
aqui atende logo Se precisar levar para o pronto-socorro leva porque a gente natildeo
tem psiquiatra 24 horas oito horas aqui Entatildeo tem certas coisas que a gente natildeo pode
nem querer fazer Vai estar chamando o psiquiatra entatildeo leva para o pronto-socorro
que estaacute ali o carro estaacute aqui Se natildeo estiver vem a ambulacircncia de laacute Se toma uma
atitude para evitar (A3) (WILLRICH ET AL 2013 660 grifo nosso)
Gostariacuteamos de acrescentar que embora seja importante prestar o cuidado de forma
imediata nos momentos de crise evitando que a situaccedilatildeo se agrave devemos estar atentos para
que a direccedilatildeo de prevenir natildeo se transforme em uma caccedila agraves bruxas aos sintomas O objetivo
final natildeo pode ser medicar conter e internar para ldquoprevenirrdquo A direccedilatildeo de cuidado precisa
continuar sendo a autonomia do sujeito e a produccedilatildeo de sua sauacutede
76
Desse modo trabalhar na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise significa primeiramente
trabalhar em rede Natildeo se espera que um serviccedilo sozinho seja capaz de prevenir uma crise mas
o serviccedilo reconhecendo seus limites pode identificar e lanccedilar matildeo de outros recursos do
territoacuterio para compor uma rede de cuidados que verdadeiramente ampare o sujeito Logo saber
que o serviccedilo ldquonatildeo dispotildee de psiquiatra 24hrsrdquo e que natildeo funciona aos finais de semanas e no
periacuteodo noturno satildeo pontos que exigem dos profissionais a responsabilizaccedilatildeo do cuidado
atraveacutes da construccedilatildeo de uma articulaccedilatildeo em rede
O pronto-acolhimento indicado na fala ldquose chegou mal aqui atende logordquo a articulaccedilatildeo
em rede acompanhando o paciente em outros serviccedilos como o pronto-socorro se necessaacuterio a
revisatildeo do PTS (Projeto Terapecircutico Singular) a realizaccedilatildeo de visitas domiciliares e a
disponibilidade de cuidar da crise nos espaccedilos onde ela surge satildeo elementos que aparecem nos
artigos estudados como fundamentais no acolhimento integral agraves situaccedilotildees de crise
Outro ponto mencionado eacute o trabalho em equipe especialmente quando a situaccedilatildeo eacute
grave e pode ocasionar riscos para o profissional ou para terceiros A maioria dos profissionais
indicou ser importante natildeo estar sozinho na abordagem ao paciente em crise
Quando eacute muito assim arriscado eu natildeo vou sozinha Porque olha os casos assim
que eu natildeo estou conseguindo fazer grupo que estaacute muito nervoso que ele estaacute vendo
alguem em mim enfim eu procuro compartilhar isso com algum dos colegas Porque
dai se precisar manejar a gente maneja de dois e melhor que manejar de um [A6]
Eu acho que eacute soacute com cautela Nunca ir sozinha quando vecirc que haacute um risco de perigo
sempre levar mais algueacutem [A23]
Porque aqui a gente tem muita [] todos ajudam Entatildeo quando um estaacute um usuaacuterio
estaacute em surto geralmente todo mundo vem ajudar (WILLRICH J Q ET AL 201156-
57 grifos nossos)
Conforme ressaltam os autores ldquoessas accedilotildees contribuem para a construccedilatildeo de um olhar
que respeita a individualidade e valoriza a subjetividade rdquo (WILLRICH ET AL 2013 662)
Assim acolher eacute mais do que ldquoabrir as portas do serviccedilo para a permanecircnciardquo eacute construir uma
relaccedilatildeo de confianccedila com o usuaacuterio tecer uma rede que o ampare no territoacuterio trabalhar de
forma multidisciplinar e acolher o sofrimento do outro como vaacutelido entendendo-o como parte
da sua experiecircncia e do seu contexto de vida
43 ORGANIZACcedilAtildeO DA REDE DE CUIDADOS
A luta pela superaccedilatildeo do aparato manicomial disparada pela Reforma Psiquiaacutetrica
implica nos serviccedilos da Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial (RAPS) a transformaccedilatildeo efetiva da
assistecircncia agraves pessoas em situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico Acreditamos nesse sentido ser
fundamental a possibilidade de construccedilatildeo de uma rede coesa e bem articulada que possa
77
efetivamente substituir o hospital psiquiaacutetrico dispensando a necessidade de centralizaccedilatildeo do
cuidado em um soacute serviccedilo evitando os efeitos negativos jaacute apontados na literatura que uma
instituiccedilatildeo total6 acarreta na vida dos indiviacuteduos agrave ela submetidos
Pensando na organizaccedilatildeo da rede algumas questotildees que pretendemos investigar nesse
capiacutetulo satildeo qual eacute o grau de acessibilidade dos serviccedilos aos sujeitos em crise Quais satildeo suas
maiores barreiras de acesso O que favorece e o que desfavorece a continuidade da linha de
cuidado Como os serviccedilos enxergam seu papel na rede Como se daacute a integraccedilatildeo entre os
serviccedilos no acolhimento aos casos de crise Como eacute a integraccedilatildeo dos serviccedilos com a rede
intersetorial e com os dispositivos do territoacuterio
Vista dessa forma a atenccedilatildeo agrave crise representa um ponto de amarraccedilatildeo de diversas
estrateacutegias propostas pela PNSM sendo um importante analisador das possibilidades de
conexotildees da rede suas articulaccedilotildees com os recursos assistenciais e com os recursos do
territoacuterio sua acessibilidade e seu grau de permeabilidade diante das reais necessidades de
sauacutede das pessoas Considerando que a Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo em construccedilatildeo
cabe discutir quais satildeo os desafios que os serviccedilos encontram para acolher a crise no territoacuterio
uma vez que cada vez mais o hospital tem se tornando um ponto de ldquoescoamentordquo dos fracassos
da rede
Pensando nos aspectos que podem figurar como barreiras de acesso aos usuaacuterios no
SUS uma primeira questatildeo que surge eacute a demora para conseguir iniciar um tratamento Com
base na literatura estudada vaacuterias pesquisas como as dos autores Bonfada et al (2013) Conte
et al (2015) e Pereira Saacute e Miranda L (2014) apontam para a existecircncia de grandes filas de
espera para iniciar o tratamento mesmo nos casos de crise
Conte et al (2015) comentam que as imensas filas de espera satildeo o resultado de um
enorme deacuteficit de profissionais Aleacutem do quantitativo dos profissionais ser insuficiente para
suprir a rede natildeo haacute contrataccedilatildeo temporaacuteria para os casos de licenccedila feacuterias ou afastamento por
motivo de doenccedila Uma das profissionais entrevistada nesse estudo retrata esse quadro
comentando o impacto disso no cuidado ldquovia de regra a gente telefona explica sensibiliza o
colega e ouve olha me desculpa soacute que eu estou com uma lista de espera imensa eu sou soacute
uma A colega entrou de feacuterias e a outra em licenccedila maternidaderdquo (CONTE ET AL 2015
1746)
6 Ver Goffman (2001)
78
Na praacutetica a demora no acesso aos serviccedilos faz com que os usuaacuterios soacute consigam ser
acolhidos quando a situaccedilatildeo jaacute eacute muito grave Bonfada el al (2013) expressam esse aspecto
atraveacutes da fala de um trabalhador do serviccedilo de emergecircncia do SAMU Segundo esse
entrevistado ldquo a populaccedilatildeo natildeo tem acesso aos serviccedilos de psiquiatria Entatildeo os doentes entram
em crise pra poder ter o acesso ao serviccedilo de psiquiatria (E1)rdquo (BONFADA ET AL 2013 230)
Mesmo nos casos de crise os serviccedilos ainda encontram dificuldades para oferecer um pronto-
atendimento Pereira Saacute e Miranda L (2014) pontuam que todos os usuaacuterios participantes de
sua pesquisa ldquoesperaram ao menos uma semana para serem consultados nos serviccedilos mesmo
nas situaccedilotildees de criserdquo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2140)
Conte et al (2015) discutem que a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se
estabelecer uma classificaccedilatildeo de risco na lista de espera contribui ainda mais para dificuldade
de acesso e para a sensaccedilatildeo de impotecircncia e sofrimento dos profissionais diante da demanda
natildeo atendida
Inadequaccedilotildees da estrutura fiacutesica dos serviccedilos tambeacutem satildeo apontadas como barreiras de
acesso Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014)
Natildeo haacute adaptaccedilatildeo do preacutedio para uso de pessoas com necessidades especiais e
tampouco disponibilidade de automoacutevel (ibidem 2150)
O fato de hoje existir uma fila de espera para os primeiros atendimentos tambeacutem eacute
atribuiacutedo a falta de espaccedilo fiacutesico Haacute apenas duas salas pequenas o que prejudica a
realizaccedilatildeo de atividades grupais (ibidem 2150)
Em pesquisa sobre a atuaccedilatildeo do SAMU na cidade de Natal Brito Bonfada e Guimaratildees
(2015) mencionam a falta de ambulacircncias como um dos principais fatores que resultam em
longas filas de espera para os chamados natildeo urgentes e demora mesmo nos chamados urgentes
Percebeu-se que o nuacutemero de ambulacircncias disponiacuteveis ao atendimento da populaccedilatildeo
municipal eacute insuficiente em vaacuterias situaccedilotildees Os chamados superam a capacidade
operacional de atendimento do Samu-Natal gerando longa fila de espera e demora no
atendimento dos chamados natildeo classificados em coacutedigo vermelho ou seja
prioritaacuterios(ibidem 1297)
A superlotaccedilatildeo dos serviccedilos a inadequaccedilatildeo e insuficiecircncia dos equipamentos os deacuteficits
de equipe e as inadequaccedilotildees estruturais tambeacutem satildeo apontados como aspectos que fragilizam
os serviccedilos impossibilitam as accedilotildees no territoacuterio e a integralidade do cuidado especialmente
nos casos mais sensiacuteveis que requerem mais recursos
Algumas dificuldades praacuteticas parecem contribuir para as deficiecircncias percebidas nos
serviccedilos de sauacutede mental entre elas o nuacutemero insuficiente de equipamentos que leva
os existentes a se sobrecarregarem com uma aacuterea de abrangecircncia superior agravequela com
a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido nuacutemero e a escassa
variedade de profissionais que limitam as possibilidades de articulaccedilatildeo de accedilotildees
muacuteltiplas e criativas Em decorrecircncia dessas deficiecircncias a que muitas vezes se soma
79
a total inadequaccedilatildeo da estrutura fiacutesica os serviccedilos ficam fragilizados e assim
impossibilitados de promover accedilotildees territoriais e integrais de cuidado como
acolhimento agrave crise envolvimento da famiacutelia no tratamento e estrateacutegias de
reabilitaccedilatildeo psicossocial (MACHADO SANTOS 2013 710)
No que se refere agrave capacidade dos serviccedilos favorecerem a continuidade do cuidado
prestado no estudo de Conte al (2015) com idosos que tentaram o suiciacutedio na rede de Porto
Alegre (RS) observamos que accedilotildees fragmentadas diagnoacutesticos apressados e ofertas de cuidado
riacutegidas e padronizadas produziram o abandono do tratamento em alguns casos e a fragilizaccedilatildeo
do viacutenculo com o serviccedilo em outros Importante dizer que todos os idosos procuraram ajuda e
tinham os serviccedilos territoriais como referecircncias para sua sauacutede
Em uma das histoacuterias a paciente com diagnoacutestico de depressatildeo foi encaminhada para
um grupo terapecircutico no ambulatoacuterio poreacutem o aumento do nuacutemero dos participantes no grupo
comeccedilou a lhe provocar desconforto ldquoNo iniacutecio era bom mas depois vinham muitos
[participantes] cada um levava muitos problemas Agraves vezes tu ia[s] laacute numa boa e saias ruimrdquo
(CONTE ET AL 20151743 grifo do autor)
Por conta disso e das frequentes trocas de profissionais de referecircncia essa senhora
abandonou o tratamento iniciando a partir daiacute um circuito de sucessivas internaccedilotildees e uma
tentativa de suiciacutedio No momento em que a paciente deixou de frequentar o grupo o
ambulatoacuterio natildeo se ocupou de fazer-lhe uma visita domiciliar ou tentar contato o que poderia
ter evitado o abandono do tratamento e a posterior tentativa de suiciacutedio Por conta proacutepria a
paciente buscou ajuda e se inseriu na associaccedilatildeo do bairro que promovia atividades de lazer
(churrascos bailes e jogos) conseguindo por meio desse recurso superar a falta de vontade de
viver
Embora essa histoacuteria tenha um desfecho positivo chama atenccedilatildeo a falta de
responsabilidade do serviccedilo sobre a linha de cuidado dessa paciente Diante do fato dessa
senhora natildeo se ldquoencaixarrdquo mais no grupo o ambulatoacuterio natildeo pode ofertar-lhe um outro espaccedilo
de suporte deixando-a desassistida Isso mostra a rigidez e padronizaccedilatildeo dos espaccedilos de
cuidado desse serviccedilo que colocou sobre uma paciente fragilizada a responsabilidade integral
do seu cuidado
Em outro caso o desfecho natildeo foi tatildeo positivo Um senhor com adiccedilatildeo em jogos aacutelcool
e cigarro apoacutes vaacuterias tentativas de tratamento em serviccedilos diferentes recebia ldquoaltardquo por natildeo
aceitar ficar abstinente Segundo o mesmo ldquoSe eu tiver que parar como trago eu natildeo vou me
tratar Antidepressivo e bebida natildeo combinamrdquo (CONTE et al 2015 1744)
80
Em outra ocasiatildeo surgiu a possibilidade de ingressar em um CAPSad para realizar
tratamento do alcoolismo () Poreacutem mais uma vez ele natildeo parou de beber o que
impediu sua adesatildeo ao tratamento Novamente teve alta do tratamento porque natildeo se
enquadrava nos criteacuterios exigidos pelo serviccedilo (CONTE et al 2015 1744)
Ainda que a poliacutetica atual no tratamento de casos de drogadiccedilatildeo seja a Poliacutetica de
Reduccedilatildeo de Danos os serviccedilos em questatildeo parecem desconhecer ou resistir agrave essa alternativa
A rigidez das ofertas de cuidado impostas agrave esse senhor terminaram por deixaacute-lo em completo
abandono impossibilitando qualquer modalidade de tratamento
A Reduccedilatildeo de Danos uma vez que natildeo impotildee a abstinecircncia como condiccedilatildeo do
tratamento poderia ser um caminho na direccedilatildeo de cuidar do abuso do uso do aacutelcool e da melhora
da qualidade de vida desse paciente No entanto a inflexibilidade dos serviccedilos em repensar suas
ofertas de cuidado de modo a considerar as escolhas desejos limites e possibilidades de quem
procura ajuda resultaram na perda do tratamento e na posterior internaccedilatildeo desse idoso pela
famiacutelia em um asilo
O terceiro idoso dessa pesquisa ao deparar-se com adoecimento da esposa que tinha
Alzheimer e com a falta de ajuda dos familiares para lidar com essa situaccedilatildeo tomou para si o
seu cuidado o que ao longo dos anos lhe trouxe um vasto desgaste emocional Segundo os
autores ldquoO cansaccedilo emocional agravado pela descoberta de um tumor na proacutestata o levou agrave
primeira tentativa de suiciacutediordquo (CONTE et al 2015 1744) Na ocasiatildeo esse senhor foi levado
a um pronto-socorro onde foi submetido a uma lavagem estomacal
O peso dos cuidados em relaccedilatildeo agrave esposa somados agrave falta de apoio familiar e a problemas
financeiros motivaram a segunda tentativa de suiciacutedio ldquoEu comprei uma corda Por causa da
desajuda e da pobrezardquo (ibidem 1746) Felizmente o filho chegou na casa agrave tempo e
conseguiu evitar o enforcamento
Apoacutes essa tentativa esse idoso foi internado em um hospital onde recebeu o diagnoacutestico
de Transtorno de Personalidade Nota-se entretanto que a ecircnfase atribuiacuteda ao diagnoacutestico e as
orientaccedilotildees dadas aos familiares em decorrecircncia dele parecem ter contribuiacutedo mais para o
afastamento da famiacutelia do que para o sucesso do manejo cliacutenico de sua condiccedilatildeo Segundo os
pesquisadores ldquoOs filhos passaram a vecirc-lo como manipulador e mal intencionado
interpretavam as tentativas de suiciacutedio como um ato de covardia pra mobilizar culpa na famiacutelia
tornando-se mais hostis em relaccedilatildeo ao pairdquo (CONTE et al 2015 1744)
Durante a entrevista com os pesquisadores esse senhor referiu ldquosentimento de solidatildeo
e sofrimento com a falta de afeto dos filhos Todos os dias eacute muito triste Eu vejo [nora neta
81
filhos] e natildeo falo com ningueacutemrdquo (CONTE et al 2015 1744) aleacutem de sentimentos de desvalia
ldquoEstou virado num resto num lixordquo (ibidem) No momento da pesquisa mantinha viacutenculo com
o serviccedilo apenas para renovar a receita da medicaccedilatildeo
Observamos nesse caso que as accedilotildees de cuidado se restringiram a intervenccedilotildees pontuais
e fragmentadas tendo o modelo biomeacutedico de ldquoqueixa-condutardquo como referecircncia Quando a
tentativa de suiciacutedio se deu por ingestatildeo de medicaccedilatildeo a accedilatildeo da equipe foi cuidar apenas do
corpo fiacutesico realizando uma lavagem estomacal As questotildees existenciais que motivaram a
tentativa de suiciacutedio natildeo foram abordadas e nenhum encaminhamento foi feito para a
continuidade do cuidado Apoacutes a segunda tentativa de suiciacutedio novamente o foco do tratamento
segue o modelo medicalocecircntrico priorizando o diagnoacutestico nosograacutefico e a medicalizaccedilatildeo dos
sintomas ldquoOs sintomas dos idosos foram considerados uma forma de ldquochamar atenccedilatildeordquo e com
isso obter ganhos secundaacuterios banalizando assim o pedido de ajuda contido nos atos
desesperadosrdquo (CONTE et al 2015 1745)
No caso desse senhor o diagnoacutestico serviu apenas para fragilizar ainda mais sua rede
de apoio uma vez que os familiares passaram a vecirc-lo como ldquomanipulador e mal intencionadordquo
A falta de um Projeto Terapecircutico Singular que considerasse seu contexto de vida seus afetos
sua rede familiar e social contribuiu para o agravamento do sentimento de abandono e solidatildeo
favorecendo o risco de uma nova tentativa de suiciacutedio O uacutenico tratamento ofertado pelo serviccedilo
foi o medicamentoso e ficou niacutetida sua insuficiecircncia visto que ao ser entrevistado esse idoso
referiu sentir-se sozinho ter um cotidiano triste e esvaziado
A dificuldade de se pensar espaccedilos de cuidado baseados em tecnologias leves como o
acolhimento e o viacutenculo as oficinas padronizadas e sem perenidade agrave subjetividade do outro
aleacutem de accedilotildees emergenciais e isoladas no momento de crise satildeo apontados pelos autores como
fatores que contribuem para o abandono do tratamento quebra ou fragilizaccedilatildeo da linha de
cuidado
Estudos anteriores (Rosa 2011 Merhy 2007) evidenciaram que ao se depararem
com essas dificuldades inerentes agrave condiccedilatildeo crocircnica os profissionais do serviccedilo
podem ldquodesistirrdquo ou se desobrigar do trato do paciente ldquodifiacutecilrdquo supostamente
refrataacuterio ou ldquonatildeo responsivordquo agrave terapecircutica Em alguns momentos parece haver um
esforccedilo no sentido de ajustar o paciente ao serviccedilo e natildeo o contraacuterio como seria
desejaacutevel (Rosa2011) (MACHADO SANTOS 2013704)
Vecirc-se com isso que crise ainda eacute ldquoa crise do pacienterdquo e raramente os serviccedilos
conseguem eles proacuteprios se colocarem em crise e repensar suas ofertas e modos de cuidado A
interrupccedilatildeo e o abandono do tratamento satildeo vistos como uma dificuldade de ldquoadesatildeordquo do
82
usuaacuterio que nada tem a ver com a forma como os serviccedilos estatildeo pensando e organizando o seu
cuidado Pensando sobre a correspondecircncia entre as necessidades de sauacutede das pessoas e as
ofertas de cuidado os serviccedilos parecem natildeo perceberem o abandono ou interrupccedilatildeo do
tratamento como um analisador de suas praacuteticas Diante do natildeo enquadramento do usuaacuterio ao
modelo de intervenccedilatildeo oferecido os serviccedilos se comportam como se pouco tivessem a oferecer
O estudo de Machado e Santos (2013) aponta para resultados que confirmam esse
problema No CAPS estudado as oficinas e atividades satildeo vistas como parte de um certo
funcionamento burocraacutetico institucional as falas dos pacientes revelam a falta de sentido dessa
rotina onde as atividades parecem existir meramente para legitimar a instituiccedilatildeo preenchendo
um tempo
Vou todo dia mais tem pouca atividade Fico o dia inteiro fazendo nada deitada
Num gosto disso queria participaacute de mais atividade mais num tem vagardquo (E10)
(MACHADO SANTOS 2013 707)
Laacute no serviccedilo que eu trato eles num trabalham eles num ensinam trabalhaacute Eles potildee
laacute os paciente pra ficaacute comendo e bebendo dormindo e o dinheiro deles tudo mecircs
vem na conta O salaacuterio dos paciente vem na conta deles que eacute o benefiacutecio o dinheiro
dos funcionaacuterio vem na conta deles eacute igual aquele ditado que fala ldquoeles finge que
trabalha e eles fingem que satildeo tratadosrdquo Eacute eles tratam que nem robozinho eu pego
o cartatildeo o doutor prescreve a receita pego meu remeacutedio ndash meu tratamento eacute esse
(E8) (ibidem 707)
Outros autores tambeacutem falam de um funcionamento burocratizado do serviccedilo No
estudo de Pereira Saacute e Miranda (2014) vemos que os adolescentes do CAPSi questionam o
sentido de algumas atividades mas ainda assim essas questotildees parecem natildeo surtir efeitos sobre
o modo como a equipe pensa e organiza o cuidado
Importante notar o fato de os adolescentes terem de se adaptar aos grupos sem que
eles sejam pensados mediante a necessidade de cada um deles e das mudanccedilas vividas
ao longo do tempo Diante da insatisfaccedilatildeo dos adolescentes com as atividades os
profissionais natildeo satildeo levados a revecirc-las continuam enfatizando a necessidade de que
frequentem o serviccedilo ldquoa qualquer custordquo Todos relataram a frequente necessidade de
realizar um difiacutecil ldquotrabalhordquo de convencimento para que os adolescentes aceitem
estar no serviccedilo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2151)
Destacamos ainda a fala de uma profissional do serviccedilo que afirma que ldquoO CAPSi natildeo
tem muito mais a oferecer do que um atendimento individual em grupo um suporte agrave famiacutelia
e um suporte meacutedico medicamentosordquo (profissional do serviccedilo) (ibidem 2151) Fica evidente
nesse sentido a limitaccedilatildeo do serviccedilo em repensar suas ofertas de cuidado de modo que a
ldquoadesatildeordquo natildeo seja uma conquista agrave base de uma imposiccedilatildeo mas da produccedilatildeo de um espaccedilo que
faccedila sentido para o usuaacuterio e que lhe proporcione verdadeiramente a sensaccedilatildeo de acolhimento
83
Outro ponto importante no que diz respeito agrave quebra da continuidade do tratamento eacute a
fragmentaccedilatildeo da proacutepria equipe no processo de trabalho Sobre esse aspecto Pereira Saacute e
Miranda (2014) destacam
A equipe eacute ldquodividida por diasrdquo de maneira que cada profissional trabalha dois turnos
aleacutem da reuniatildeo de equipe Cada grupo de usuaacuterios comparece ao serviccedilo apenas num
dia especiacutefico quando encontra seu teacutecnico de referecircncia e sua miniequipe Isso leva
os profissionais a realizarem um trabalho dividido em blocos o que resulta em um
CAPSi de segunda feira e outro de terccedila feira impedindo o compartilhamento de
atuaccedilotildees entre miniequies conhecimento dos usuaacuterios dos serviccedilos aleacutem de restringir
as ofertas terapecircuticas(ibidem 2149)
Cada usuaacuterio tem um teacutecnico de referecircncia e comparece no serviccedilo no dia em que seu
teacutecnico estaacute contando tambeacutem com o suporte da mini-equipe do dia que na ausecircncia do
profissional de referecircncia satildeo os profissionais com mais apropriaccedilatildeo sobre o caso O cuidado
eacute organizado entatildeo de modo que todos os profissionais de referecircncia do usuaacuterio estatildeo
concentrados em um uacutenico dia da semana o dia em que o paciente vai ao serviccedilo Esse eacute um
funcionamento muito comum nos CAPS que entretanto dificulta profundamente o
compartilhamento dos casos
Quando pensamos em uma situaccedilatildeo de crise sabemos que os pacientes natildeo iratildeo respeitar
os dias e escalas dos profissionais de referecircncia para entrar em crise Entatildeo essa divisatildeo dos
usuaacuterios em dias preacute-determinados aleacutem de limitar o Projeto Terapecircutico agraves oficinas realizadas
naqueles dias tambeacutem restringe a capacidade do serviccedilo de se constituir efetivamente enquanto
um ponto de referecircncia na crise pois os profissionais que natildeo tecircm contato com o caso
dificilmente conseguiratildeo ofertar o suporte que esses pacientes necessitam no momento da crise
Aleacutem da fragmentaccedilatildeo do processo de trabalho no interior dos serviccedilos observamos
tambeacutem uma fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e a RAPS Constatamos a partir da
literatura que na maior parte das vezes o contato entre os serviccedilos eacute feito por telefone ou por
encaminhamento escrito entregue diretamente ao usuaacuterio Fica portanto agrave cargo do usuaacuterio a
chegada agrave um outro serviccedilo de modo que a passagem de caso fica prejudicada e o usuaacuterio fica
muitas vezes desassistido no periacuteodo de transiccedilatildeo entre um serviccedilo e outro isto quando natildeo
acaba por desistir do tratamento
Nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e os hospitais observamos que embora a gravidade
envolvida seja maior o compartilhamento do cuidado parece ainda mais difiacutecil Ao discutir a
internaccedilatildeo de uma paciente do CAPSi no hospital geral Pereira Saacute e Miranda (2014) ressaltam
que embora a paciente tenha ficado dez dias internada no hospital natildeo houve comunicaccedilatildeo
84
entre os dois serviccedilos e o CAPSi foi informado da internaccedilatildeo pela proacutepria famiacutelia da paciente
via telefone
Essa dificuldade de interlocuccedilatildeo entre CAPS e hospital eacute apontada tambeacutem no estudo
de Zeferino el al (2016) Segundo os profissionais entrevistados nessa pesquisa
o usuaacuterio e a famiacutelia em crise satildeo levado a um Hospital psiquiaacutetrico e fica afastado
do CAPS por longos periacuteodos() Em alguns casos a famiacutelia jaacute interna o usuaacuterio e soacute
comunica a equipe do CAPS posteriormente [] (ZEFERINO ET AL 2016spg)
Para aleacutem dos casos em que o hospital natildeo comunica a equipe de referecircncia sobre a
internaccedilatildeo de seus usuaacuterios observamos que tambeacutem os CAPS raramente costumam
acompanhar os usuaacuterios que encaminham para o hospital de modo que quem perde eacute o paciente
pois vive a quebra do viacutenculo terapecircutico com a equipe de referecircncia e continua passando pelas
crises sozinho no hospital Sobre esse aspecto Pereira Saacute e Miranda (2014) comentam
Fazendo um balanccedilo geral dos itineraacuterios construiacutedos pode-se perceber que o CAPSi
apresenta dificuldades no planejamento e construccedilatildeo de accedilotildees conjuntas em que
compartilhe outras instacircncias a responsabilidade pelo cuidado dos adolescentes em
crise Eacute bastante raro por exemplo que os profissionais do CAPSi de fato
acompanhem os adolescentes no Hospital Geral Como justificativa para esse cenaacuterio
todos sublinham dificuldades de contato advindas de problemas com os telefones ou
ausecircncia de um carro proacuteprio o que dificultaria o transporte no caso de uma situaccedilatildeo
de maior gravidade que pudesse acontecer no CAPSi (ibidem 2152)
Embora a falta de estrutura possa de fato dificultar a integraccedilatildeo entre os serviccedilos
percebemos que deixar o hospital se ocupar da crise tem sido praacutetica recorrente nos diversos
serviccedilos da rede Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014) nos sujeitos que participaram de sua
pesquisa o hospital geral teve papel central em todos os casos
A equipe do CAPSi entende que o Hospital Geral natildeo eacute o local ideal para as
internaccedilotildees em sauacutede mental Apesar disso atribuem ao suporte medicamentoso agrave
possiacutevel contenccedilatildeo fiacutesica e aos cuidados relativos agrave sauacutede geral a justificativa para
encaminharem ao Hospital Geral os pacientes (ibidem 2150)
O apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises leves podem
ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o hospital Essa eacute
uma direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima absolutamente o
papel do CAPS frente agrave crise
Sabemos que haacute alguns limites na capacidade dos CAPS visto que nem todos satildeo do
tipo III e que alguns serviccedilos sequer tecircm a equipe completa e o aparato estrutural miacutenimo para
funcionar Poreacutem chama atenccedilatildeo a naturalizaccedilatildeo da centralidade da rede em torno do hospital
Um exemplo claro disso aparece na fala de uma profissional desse estudo que orienta a famiacutelia
a levar a paciente ao hospital ldquofrente agrave qualquer intercorrecircnciardquo (PEREIRASAacuteMIRANDA
85
2014 2154) como se o CAPSi natildeo tivesse nenhuma responsabilidade sobre a crise de seus
pacientes
Encaminhamentos precipitados e irrefletidos ao hospital ainda constituem uma praacutetica
muito natural na rede o que coloca o CAPS na posiccedilatildeo de serviccedilo complementar e natildeo
substitutivo ao hospital Vemos que mesmo os profissionais do CAPS ainda contam com o
hospital como se a internaccedilatildeo pudesse proporcionar uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
No estudo de Zeferino el al (2016) um dos profissionais entrevistados ressalta ldquoO
usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao hospital geral para a estabilizaccedilatildeo retornando
ao CAPS assim que estiver compensado para a continuidade do seu tratamento (E1 A92 -
CAPS II)rdquo (spaacuteg)
A centralidade do fluxo das situaccedilotildees de crise para o hospital eacute praacutetica comum tambeacutem
no trabalho do SAMU Embora o SAMU tenha se constituiacutedo enquanto um recurso da rede de
assistecircncia agrave urgecircnciaemergecircncia apoacutes a Reforma Psiquiaacutetrica vemos que o modo de trabalhar
desse serviccedilo ainda eacute muito orientado pela loacutegica biomeacutedica Segundo Brito Bonfada e
Guimaratildees (2015) em pesquisa com a rede de SAMU da cidade de Natal
A partir das fichas de atendimento disponiacuteveis no sistema eletrocircnico de ocorrecircncias
do Samu-Natal observa-se que entre os meses de janeiro a marccedilo de 2010 ocorreram
314 chamadas para urgecircncias em sauacutede mental das quais 74 foram finalizadas
com o transporte para o Hospital Colocircnia Joatildeo Machado hospital psiquiaacutetrico do
municiacutepio de Natal-RN (ibidem 1301 grifo nosso )
Esse nuacutemero eacute confirmado tambeacutem pelas falas dos profissionais
Surto droga alcoolismo tudo leva para laacute a gente trabalha com o Joatildeo Machado
(Entrevistado 24) (ibidem 1302 grifo nosso)
Noacutes natildeo temos muito contato com o CAPS (Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial) A gente pega o
paciente ou na residecircncia ou em via puacuteblica e transfere para o Joatildeo Machado (Entrevistado 24)
(ibidem 1303)
Na realidade as nossas urgecircncias psiquiaacutetricas satildeo muito mais transporte Vocecirc vai
laacute conteacutem o doente e o transporta para hospital psiquiaacutetrico (Entrevistado 1) (ibidem
1302)
Percebemos que essa direcionalidade ao hospital sem levar em conta as possibilidades
assistenciais oferecidas pela rede tem relaccedilatildeo com a maneira como os serviccedilos entendem a
Reforma Psiquiaacutetrica e consequentemente como enxergam seu papel na rede Nesse ponto no
que compete ao SAMU fica clara a desorientaccedilatildeo desse serviccedilo no seu papel diante das crises
Na verdade eu sempre fui contra o Samu atender esse tipo de chamado Eu acho que
deveria existir um setor no hospital psiquiaacutetrico aqui de Natal responsaacutevel por isso
(Entrevistado 2) (BONFADA ET AL 2013 1307)
O Samu natildeo deveria fazer esse serviccedilo acho que deveria ser a poliacutecia militar
(Entrevistado13) (ibidem 1307)
86
Muitas vezes o doente psiquiaacutetrico corre muito mais risco porque a nossa rotina eacute
deixar em segundo plano a urgecircncia psiquiaacutetrica (Entrevistado 1) (ibidem 1308)
No que diz respeito agrave concepccedilatildeo que os profissionais possuem acerca da Reforma
Psiquiaacutetrica os entrevistados parecem acreditar que trata-se de uma Poliacutetica Puacuteblica restrita ao
campo juriacutedico e burocraacutetico poreacutem sem muitas implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos
A Poliacutetica Nacional de sauacutede mental eacute perfeita no papel na praacutetica natildeo estaacute
funcionando e para funcionar vai ser muito difiacutecil (E10)
Para ser muito franca ateacute agora na praacutetica natildeo vi essa reforma acontecer Natildeo acredito
natildeo nessa reforma (E7)
Na maioria das vezes isso natildeo funciona esse negoacutecio de CAPS e tudo mais porque
o proacuteprio paciente natildeo vai aiacute a famiacutelia tambeacutem natildeo tem como levaacute-lo a forccedila Entatildeo
isso aiacute natildeo taacute dando muito resultado natildeo Talvez fosse o caso de fazer o proacuteprio CAPS
mesmo como uns hospitais psiquiaacutetricos (E3)
Esse paciente quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial acaba
negligenciando o proacuteprio tratamento Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em
um hospital internado seria muito mais eficaz pois eacute um tratamento continuado
(E20) (inserir ref ndash as falas dos entrevistados aparecem assim todas juntas Se for
basta a ref ao final ndash autor ano paacutegina) ( BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2013230-231)
A falta de conhecimento sobre o papel dos serviccedilos substitutivos aleacutem das criacuteticas agrave
Reforma Psiquiaacutetrica e as sugestotildees de internaccedilatildeo dos pacientes satildeo fortes indiacutecios de que o
modelo hospitalocecircntrico concebido pela Psiquiatria Claacutessica ainda permanece vivo no ideaacuterio
desses profissionais como referecircncia de qualidade da assistecircncia em sauacutede mental A ideia de
que a RPB eacute perfeita no papel mas que na praacutetica natildeo funciona revela um entendimento
bastante ingecircnuo de que as poliacuteticas por si soacute teriam o efeito de mudar a assistecircncia quando os
profissionais continuam agindo orientados pela loacutegica manicomial
Uma ferramenta que tem sido apontada como capaz de construir e fortalecer a
integralidade da rede e a coordenaccedilatildeo do cuidado eacute o apoio matricial O apoio matricial pode
se dar via CAPS ou via NASF contribuindo para ampliar a resolutividade da Atenccedilatildeo Baacutesica
favorecendo a prevenccedilatildeo dos casos de crise e diluindo a centralidade do CAPS nos casos de
sauacutede mental
Considerando que um dos fortes obstaacuteculos dos CAPS eacute o centramento em si mesmos
fenocircmeno identificado na IV Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental e denominado
ldquoencapsulamentordquo
Ao articular rede o apoio matricial se inclina contra o ldquoencapsulamentordquo e esse tipo
de substituiccedilatildeo total produzindo um efeito reorganizador das demandas de sauacutede
mental na rede com melhor distribuiccedilatildeo e adequaccedilatildeo dos usuaacuterios dentro dos pontos
de assistecircncia em sintonia com suas demandas evitando que todas elas sejam
dirigidas ao CAPS superlotando-o Possibilitando melhor compreensatildeo e
diferenciaccedilatildeo das situaccedilotildees que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem
ser acolhidas eou acompanhadas pela ESF como refletem Bezerra e Dimenstein o
87
matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistecircncia em sauacutede mental
(LIMA DIMENSTEIN 2016 629)
Segundo Lima e Dimenstein (2016) a ESF tem meios de ldquo[] interferir em situaccedilotildees
que transcendem a especificidade do setor sauacutede e tecircm efeitos determinantes sobre as condiccedilotildees
de vida e sauacutede dos indiviacuteduos famiacutelias-comunidaderdquo (ibidem 65) Considerando sua
proximidade com o territoacuterio a ESF eacute um importante recurso na identificaccedilatildeo dos casos de crise
que natildeo chegam aos serviccedilos podendo oferecer atraveacutes do apoio matricial em sauacutede mental o
suporte e o encaminhamento para serviccedilos mais complexos quando necessaacuterio
Outra ferramenta importante na construccedilatildeo da integralidade das redes sobretudo das
redes que vatildeo para aleacutem dos serviccedilos de sauacutede eacute a praacutetica de Acompanhamento Terapecircutico
O AT tem a missatildeo de resgatar a cidadania e o direito de usufruir da vida em casos de pessoas
que foram sistematicamente excluiacutedas da sociedade devido ao seu processo de adoecimento
Sua atuaccedilatildeo visa promover a autonomia do sujeito ampliando sua circulaccedilatildeo pelo territoacuterio e
tecendo redes de cuidado que contam tambeacutem com dispositivos de cultura e lazer
Segundo Fiorati e Saeki (2008) o AT
por ser uma praacutetica cliacutenica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaccedilos
institucionais e tradicionais de tratamento e ser realizada sobretudo nos espaccedilos
puacuteblicos no ambiente domiciliar e social do paciente representaria um caminho
potencial de inserccedilatildeo em redes sociais e movimento de inclusatildeo social (ibidem 764)
Na pesquisa citada acima o AT atuou como um intercessor entre o espaccedilo de cuidado
proporcionado pelos serviccedilos e os dispositivos terapecircuticos do territoacuterio O cuidado se deu nos
serviccedilos mas tambeacutem na vida na rua atraveacutes de cursos de jardinagem desenho capacitaccedilatildeo
profissional parceria com associaccedilotildees culturais escolas e outros (FIORATI SAEKI 2008)
A produccedilatildeo de sauacutede atraveacutes dos dispositivos do territoacuterio tambeacutem aparece na pesquisa
de Conte et al (2015) no caso da senhora que buscou ajuda na associaccedilatildeo de seu bairro
Entretanto foram apontadas poucas iniciativas em nosso estudo que apostassem nos recursos
fora do setor sauacutede como possibilidade de estabilizaccedilatildeo de quadros graves Fica clara nesse
sentido a baixa integraccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e a rede intersetorial territorial sendo
este um dos principais desafios na construccedilatildeo da integralidade do cuidado
Em suma podemos observar que ainda haacute um longo caminho na construccedilatildeo de redes
que possam oferecer de fato algum amparo aos sujeitos em crise A falta de recursos certamente
figura como um dos fatores que impotildee barreiras de acesso ao cuidado motivando muitas vezes
que os profissionais usem seus proacuteprios recursos para garantir a efetividade do tratamento (usar
88
o carro proacuteprio para fazer VD deslocar-se entre um serviccedilo e outro usando recursos proacuteprios
etc)
Somando-se aos aspectos mencionados embora os serviccedilos de sauacutede mental se
proponham a realizar um cuidado extremamente complexo e diversificado funcionam em sua
maioria apenas nos horaacuterios comerciais (de segunda a sexta de 8 agraves 17h) Desse modo ldquodiante
dessa configuraccedilatildeo restrita torna-se pouco provaacutevel que de fato sejam esgotadas todas as
possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internaccedilatildeo
integral tal como prevecirc a Lei da Reforma Psiquiaacutetrica Lei nordm 10216 2001rdquo (Brasil 2004)
Vemos que as possibilidades de superaccedilatildeo desse cenaacuterio ainda partem muitas vezes de
um esforccedilo individual dos trabalhadores em produzir cuidado Diante da falta de CAPS III por
exemplo alguns CAPS II tem se organizado para funcionar em horaacuterio estendido realizando
uma escala no serviccedilo e evitando assim encaminhar o usuaacuterio para internaccedilatildeo Outra alternativa
apontada eacute o acolhimento diurno no CAPS II e o noturno no Hospital Geral eou Hospital
Psiquiaacutetrico evitando a permanecircncia integral na internaccedilatildeo (MARTINI CORACINE 2016)
Entretanto esse tipo de arranjo ainda eacute incipiente e depende em boa medida da ldquoboa vontaderdquo
dos trabalhadores visto que natildeo eacute uma poliacutetica institucionalizada de cuidado e natildeo haacute portanto
recursos previstos para esses deslocamentos
Tendo em vista essa conjuntura eacute possiacutevel perceber que a constituiccedilatildeo de uma rede de
serviccedilos integral e resolutiva nos casos de crise ainda eacute muito fraacutegil A fragmentaccedilatildeo na
comunicaccedilatildeo entre os serviccedilos a dificuldade do compartilhamento dos casos oficinas e grupos
riacutegidos e burocratizados compreensotildees deturpadas e reducionistas acerca do movimento da
Reforma Psiquiaacutetrica baixa articulaccedilatildeo intersetorial e territorial aleacutem de limitaccedilotildees estruturais
dos serviccedilos (ausecircncia de carro institucional baixo nuacutemero de CAPS III deacuteficits de equipe etc)
tem contribuiacutedo para que o hospital permaneccedila vivo e seja o ponto de escoamento de todas
essas dificuldades
Podemos citar como um exemplo dessa problemaacutetica os pacientes ldquorevolving doorrdquo7
nos hospitais psiquiaacutetricos Muitos deles fazem tratamento em algum dispositivo da rede
substitutiva no entanto continuam retornando ao hospital ainda que pontualmente com certa
frequecircncia o que remete as fragilidades da rede jaacute mencionadas anteriormente
7 O termo vem da expressatildeo inglesa ldquoporta-giratoacuteriardquo e eacute usado na sauacutede mental para se referir aos pacientes que
internam de forma recorrente poreacutem em internaccedilotildees curtas
89
Vale lembrar que o hospital se constituiu historicamente como uma soluccedilatildeo para o
problema da loucura na sociedade e mesmo havendo um esforccedilo em deslocar certas categorias
e conceitos no sentido de incluir a loucura no social a institucionalizaccedilatildeo ainda eacute
frequentemente a primeira resposta agraves situaccedilotildees de crise especialmente quando a rede natildeo
encontra meios para responder suas demandas no modelo substitutivo
90
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como foi dito na introduccedilatildeo nosso objetivo com esse estudo foi analisar as fragilidades
e potencialidades na organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto
do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica Consideramos que uma rede forte e bem articulada atua
como um fator de mudanccedila dos itineraacuterios dos usuaacuterios dos hospitais psiquiaacutetricos para os
serviccedilos territoriais No entanto o inverso tambeacutem acontece as fragilidades e insuficiecircncias
da rede tambeacutem contribuem para hospitalizaccedilotildees desnecessaacuterias
Sendo assim olhar para a forma como a crise tem sido acolhida na RAPS pode dar
indiacutecios importantes de como estamos nos posicionando no processo de construccedilatildeo da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira uma vez que costuma ser na falta de uma resposta efetiva da rede
substitutiva nos casos de crise que se recorre a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica
Atraveacutes de nosso referencial teoacuterico analisando o desenvolvimento da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira no plano assistencial percebemos avanccedilos importantes no que se
destaca a reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do
nuacutemero de CAPS e a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na
atenccedilatildeo comunitaacuteria e territorial Entretanto a insuficiecircncia de CAPS III e a permanecircncia de
grandes parques manicomiais no paiacutes indicam que ainda satildeo necessaacuterios grandes esforccedilos para
se superar o modelo manicomial
Pensando sob a luz das contribuiccedilotildees de Basaglia (1985) entendemos que a
permanecircncia dos manicocircmios natildeo se deve apenas a um descompasso entre o avanccedilo da rede
substitutiva e o fechamento dos hospitais psiquiaacutetricos mas tambeacutem a presenccedila ainda
expressiva da loacutegica manicomial nos discursos e praacuteticas em relaccedilatildeo agrave loucura
Sendo assim eacute preciso considerar que a Reforma Psiquiaacutetrica natildeo se restringe apenas as
mudanccedilas assistenciais nos serviccedilos de sauacutede mental mas a uma mudanccedila mais ampla no
processo de compreender e lidar com a loucura na sociedade
Ao longo da histoacuteria da sociedade a loucura jaacute teve diversos signos e significados
figurando desde um estado de sabedoria ligado ao profeacutetico a estados de possessatildeo demoniacuteaca
bruxaria e revolta social Entretanto eacute somente a partir do seacuteculo XVIII com o advento da
Psiquiatria que ela passa a ser compreendida enquanto doenccedila mental e a ser enclausurada e
excluiacuteda em instituiccedilotildees de tratamento
91
Com a emergecircncia da Reforma Psiquiaacutetrica inicia-se um movimento de transformaccedilatildeo
do lugar social da loucura atribuindo-lhe um estatuto que vai aleacutem da sintomatologia
psicopatoloacutegica e afirma a loucura enquanto um modo de ser no mundo Na conjuntura atual
eacute possiacutevel perceber que vivenciamos um momento de ruptura epistemoloacutegica em que os saberes
defendidos pela Reforma e o saber biomeacutedico natildeo se anulam mas convivem lado a lado se
alternando e disputando espaccedilo nos diversos pontos da RAPS
Eacute com base nessa dicotomia de saberes que proponho essa revisatildeo bibliograacutefica
Entendendo que os modos de compreender a crise e a loucura incidem na construccedilatildeo de nossas
ofertas de cuidado e no modelo de tratamento uma primeira questatildeo que se coloca eacute Quais satildeo
os sentidos de crise e de que maneira esses sentidos reverberam na produccedilatildeo de cuidado
A partir da revisatildeo da literatura estudada no primeiro capiacutetulo ldquoOs sentidos da criserdquo
identificamos trecircs eixos temaacuteticos que se desdobraram em categorias de anaacutelise satildeo eles
ldquoCrise como Ameaccedila Social Periculosidade e Riscordquo ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo
e ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
No primeiro eixo ldquoa crise como ameaccedila socialrdquo as vivecircncias da crise aparecem
marcadas por comportamentos hostis e intimidadores O risco envolvido se transmite para os
profissionais no campo das praacuteticas como uma necessidade constante de monitoramento
vigilacircncia e controle A agressividade dos sintomas eacute combatida com intervenccedilotildees igualmente
violentas sendo praacuteticas comuns a contenccedilatildeo fiacutesica medicamentosa e ateacute mesmo o uso da forccedila
policial como formas de reprimir o sujeito e estabelecer a ordem no serviccedilo
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade A agressividade eacute vista
como um sintoma isolado iacutendice de ameaccedila e risco Alguns profissionais acreditam que a
presenccedila da poliacutecia nas intervenccedilotildees eacute necessaacuteria para ldquoimpor respeitordquo como se as crises se
tratassem de manifestaccedilotildees voluntaacuterias Outros trabalhadores parecem perceber o paciente em
crise como um ldquocontraventorrdquo ldquoperturbador da ordem socialrdquo ldquomarginalrdquo e ateacute mesmo
enquanto um ldquoanimalrdquo mencionando palavras como ldquoprenderrdquo e ldquoamansarrdquo ao referir-se a
abordagem ao paciente
Muitas vezes a poliacutecia tambeacutem eacute acionada como forma de ldquodar proteccedilatildeordquo aos
profissionais que se sentem com medo e despreparados para acolher a crise Entretanto os
profissionais reconhecem que a poliacutecia tambeacutem natildeo sabe lidar com o paciente psiquiaacutetrico e
que eacute ainda mais despreparada
92
No segundo eixo a ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo a peculiaridade dos
sintomas que emergem na crise e o estigma social relacionado a eles satildeo compreendidos
enquanto iacutendice da emergecircncia de uma doenccedila ou de anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida como a vergonha o medo de ter novas crises o medo de circular
pelo territoacuterio e de fazer amizades Percebemos que esse significado apareceu especialmente
nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da primeira crise
mas tambeacutem se fez presente em estudos com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees e
que viveram com isso muitas perdas dos seus viacutenculos afetivos sociais e laborativos
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede
No terceiro eixo ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
encontramos experiecircncias relatos e situaccedilotildees que apontaram para outros modos de lidar com a
crise e com a loucura natildeo como marco de uma doenccedila limitante mas como uma experiecircncia
uacutenica e singular que traz em si uma necessidade imperiosa e urgente de reconstruccedilatildeo de
sentidos
Os usuaacuterios relataram caminhos estrateacutegias e ferramentas que permitiram a construccedilatildeo
de um outro modo de lidar com a crise e com seus sintomas Os profissionais retrataram
situaccedilotildees em que foi possiacutevel recolocar-se diante da crise e vecirc-la como um evento analisador
de suas praacuteticas bem como da vida daqueles sujeitos
Em um dos casos o usuaacuterio vinha pedindo haacute muito tempo para sair da casa onde
morava que era a casa onde vivia com os pais antes do falecimento dos mesmos e onde tinha
muitas recordaccedilotildees A partir do seu movimento de crise ldquoa famiacutelia entendeu que era mais do
que quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil E aiacute acabou que ele conseguiu
alugar a casa delerdquo (COSTA 2007 102 grifo do autor)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado na histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social relacional e
habitacional Ela eacute uma resposta a uma situaccedilatildeo que haacute muito tempo jaacute estava insustentaacutevel A
crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um evento analisador que ldquoestabelece uma urgecircncia
de realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (ibidem 103)
93
Em outra situaccedilatildeo a crise aparece enquanto um pedido de ajuda
Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o sobrinho dele morreu
assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver com uma situaccedilatildeo que
ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele continuou trabalhando
na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de trabalho E eu me lembro
que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele tirar todos os documentos
E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do nascimento dele e ele me
mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e nasceu e contou histoacuteria
A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com ele porque ele explodiu[]
E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos de novo E a gente entendeu
que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia muito que a gente o ajudasse
Os documentos eu acho que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que
ele acabou entre aspas perdendo (COSTA 2007 105)
Vemos entatildeo que os modos de produzir cuidado se tecem junto com o sujeito que vai
recontando sua histoacuteria atraveacutes dos elementos que fazem parte de seu cotidiano como o
territoacuterio suas relaccedilotildees sociais seu trabalho seu mundo Assim a produccedilatildeo de cuidado
acontece onde a vida do sujeito estaacute no parque da catacumba na cantina na retirada dos
documentos porque foi preciso destruir uma parte de sua histoacuteria para reconstruiacute-la depois
Trata-se de considerar a crise como um movimento vaacutelido que expressa o sofrimento do sujeito
e sua necessidade de construir e habitar outros territoacuterios existenciais para si
Nosso segundo objetivo especiacutefico diz respeito as praacuteticas de cuidado e se expressa nas
seguintes perguntas Quais satildeo as principais dificuldades do acolhimento agrave crise Quais satildeo as
nossas principais ferramentas cliacutenicas
Como desafios identificamos o acolhimento burocratizado e frio que se expressa
muitas vezes como uma mera triagem do paciente o cuidado orgacircnico centrado nos
procedimentos fiacutesicos e na figura do meacutedico o mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo
o despreparo para abordar e lidar com o paciente em crise que muitas vezes justifica o uso de
medidas violentas o preconceito e do julgamento moral especialmente em relaccedilatildeo aos casos
de usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas e por fim o diagnoacutestico apressado a conduta extremamente
teacutecnica e desumana
Como potencialidades identificamos a aposta no encontro no viacutenculo na escuta
qualificada e no diaacutelogo o pronto-atendimento (a disponibilidade de prestar o cuidado no
momento em que ele eacute necessaacuterio) as visitas domiciliares e a intervenccedilatildeo dentro do contexto
de vida do sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) a revisatildeo do PTS (Projeto
Terapecircutico Singular) o trabalho multidisciplinar e a abordagem conjunta especialmente nos
casos onde pode haver riscos aos profissionais
94
Nosso terceiro objetivo especiacutefico buscou refletir sobre a as formas de organizaccedilatildeo da
rede e se resumem em torno das seguintes perguntas Como os serviccedilos tecircm se organizado para
responder agraves demandas de crise Quais satildeo os desafios que o acolhimento agrave crise na rede
substitutiva nos coloca
Identificamos que o acolhimento agrave crise eacute um dos principais noacutes criacuteticos na organizaccedilatildeo
e na integralidade da rede de cuidados A articulaccedilatildeo entre os serviccedilos ainda se mostra bastante
fragmentada sendo a maior parte dos encaminhamentos feitos de modo apressado sem a devida
discussatildeo sobre o caso (encaminhamentos por escrito ou via telefone) O acompanhamento dos
serviccedilos de referecircncia aos casos mais graves durante a internaccedilatildeo eacute bastante raro havendo uma
certa expectativa de que o hospital se ocupe dos casos mais graves e da crise e que o usuaacuterio
retorne ao serviccedilo de referecircncia quando estabilizado
Diante das dificuldades colocadas na crise psicoacutetica os profissionais tendem a fazer
encaminhamentos irrefletidos ao hospital esperando uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
Nota-se que a justificativa para esse encaminhamento passa muitas vezes pelo fato do hospital
ter mais ldquorecursos materiaisrdquo aleacutem de mecanismos de ldquocontrolerdquo e ldquomonitoramentordquo dos casos
Ressaltamos que o apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises
leves podem ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o
hospital direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima
absolutamente o papel do CAPS frente agrave crise
Quanto ao entendimento da Reforma Psiquiaacutetrica na rede nossos resultados dialogam
com as reflexotildees levantadas em nosso marco teoacuterico natildeo haacute uma compreensatildeo uniforme sobre
esse processo e os profissionais mostram-se tanto identificados com a loacutegica manicomial
quanto com alguns pressupostos da RP e do novo modelo de cuidado Alguns profissionais
tambeacutem mostram entender a RP como uma mera mudanccedila administrativajuriacutedica sem muitas
implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos o que reafirma papeacuteis engessados e fluxos
burocratizados nos serviccedilos contribuindo para que o hospital continue sendo a porta de entrada
e o destino da maior parte dos casos de crise acolhidos na rede
Enquanto desafios nesse processo ressaltamos a demora para conseguir iniciar um
tratamento a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se estabelecer uma classificaccedilatildeo
de risco na lista de espera o deacuteficit de profissionais inadequaccedilotildees na estrutura fiacutesica que
prejudicam o acesso de pessoas com necessidades especiais e de atividades grupais
insuficiecircncias de equipamentos ofertas de cuidado riacutegidas e padronizadas fragmentaccedilatildeo da
95
equipe no processo de trabalho em dias e turnos especiacuteficos da semana fragmentaccedilatildeo nas
relaccedilotildees entre os serviccedilos fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre a RAPS e a rede intersetorial e
territorial
Destacamos que as iniciativas de superaccedilatildeo dessas fragilidades ainda se concentram
muito nos esforccedilos individuais dos trabalhadores havendo pouco investimento puacuteblico em
oferecer os recursos miacutenimos para se acolher a crise de acordo com os ideais da RP
Identificamos por outro lado como ferramentas importantes na tessitura e no fortalecimento
das redes de cuidado a praacutetica do AT e do apoio matricial que podem oferecer um espaccedilo de
cuidado mais proacuteximo ao territoacuterio e agrave rede intersetorial
Por fim frisamos como limitaccedilotildees desse estudo o fato de nossa revisatildeo bibliograacutefica se
ater somente a artigos cientiacuteficos de modo que algumas dissertaccedilotildees que poderiam agregar um
significado mais profundo a certos temas foram excluiacutedas na nossa seleccedilatildeo Tambeacutem foi um
recorte dessa pesquisa o cuidado agrave crise no contexto brasileiro permanecendo enquanto questatildeo
quais satildeo as possiacuteveis contribuiccedilotildees ao nosso tema no contexto internacional
Como potencialidades dessa pesquisa destacamos a produccedilatildeo de conhecimento teoacuterico
sobre o tema a ampliaccedilatildeo do debate aos profissionais da rede de sauacutede mental e a identificaccedilatildeo
e problematizaccedilatildeo dos pontos de fragilidade e potencialidades no processo de construccedilatildeo da
RPB
96
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financiamento governanccedila e mecanismos de avaliaccedilatildeo
TURATO E Tratado da metodologia da pesquisa cliacutenico-qualitativa construccedilatildeo teoacuterico-
epistemoloacutegica discussatildeo comparada e aplicaccedilatildeo nas aacutereas da sauacutede e humanas Petroacutepolis
Vozes 2003
VAINER A Demanda e utilizaccedilatildeo do acolhimento noturno em Centro de Atenccedilatildeo
Psicossocial III na cidade do Rio de Janeiro2016
WILLRICH J Q ET AL Periculosidade versus cidadania os sentidos da atenccedilatildeo agrave crise nas
praacuteticas discursivas dos profissionais de um Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Physis (Rio J)
21(1) 47-64 2011
WILLRICH J Q ET AL Os sentidos construiacutedos na atenccedilatildeo agrave crise no territoacuterio o Centro de
Atenccedilatildeo Psicossocial como protagonista Rev Esc Enferm USP 47(3) 657-663 jun 2013
YASUI S Rupturas e encontros desafios da reforma psiquiaacutetrica brasileira Rio de Janeiro
Fiocruz 2010
ZEFERINO M T ET AL Percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre o cuidado agraves crises na
Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial Esc Anna Nery Rev Enferm 2016
Agrave Martinho Silva e Gustavo Correa Matta agradeccedilo pela disponibilidade pela leitura e
pelo interesse em aceitar o convite para compor essa banca
Agrave Flaacutevia Fasciotti minha professora e eterna tutora da Residecircncia Sempre estaraacute
presente em todos os passos da minha formaccedilatildeo
Aos meus amigos de turma do Mestrado agradeccedilo imensamente pelo companheirismo
pela forccedila pelo carinho com que vivemos esse processo
Aos amigos da turma de Residecircncia em especial a Isabel Kraml Flavia Azevedo Thais
Beiral Andressa Ferreira Clara Andrade que estiveram sempre por perto e que compartilham
comigo o amor pela sauacutede mental
Agrave Guilherme Cacircndido Aline de Alvarenga Lais Macedo Juliane Lessa Jackson
Machado colegas e parceiros na sauacutede mental Aos pacientes que me encantaram
surpreenderam e me ensinaram tanto nesse caminho
Aos amigos Alexandre Rinaldi Thaiacutes Helena Veloso Mayara Ribeiro Jessica Aguillar
Tiago Nunes Iasmin Rocha e outros
A minha analista Tatiane Grova pelo acolhimento e pela leveza que permitiu com que
eu sustentasse esse processo
Agrave ENSP e a FIOCRUZ pela oportunidade de poder avanccedilar na minha formaccedilatildeo estudar
e contribuir para a produccedilatildeo de conhecimento no campo
A CAPES pelo financiamento agrave esta pesquisa e a possibilidade de tornaacute-la realidade
RESUMO
Essa dissertaccedilatildeo teve como objeto o cuidado agraves pessoas em situaccedilatildeo de crise na Rede de
Atenccedilatildeo Psicossocial Atraveacutes de um estudo de revisatildeo bibliograacutefica de 21 artigos cientiacuteficos
buscamos identificar como a crise tem sido acolhida nos serviccedilos de sauacutede No que se refere agraves
praacuteticas de cuidado interessa-nos saber quais satildeo as principais dificuldades e ferramentas
cliacutenicas que os profissionais encontram no manejo das situaccedilotildees de crise Entendendo que a
Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo que ainda estaacute em andamento e que depende
fundamentalmente de como os serviccedilos se organizam e se articulam de maneira a compor uma
rede de cuidados que possa substituir o Hospital Psiquiaacutetrico coloca-se tambeacutem a questatildeo de
quais satildeo as principais dificuldades que os serviccedilos encontram para sustentar o acolhimento da
crise no territoacuterio e quais os possiacuteveis caminhos para superaacute-las na direccedilatildeo de um cuidado em
liberdade
Palavras chaves crise sauacutede mental praacuteticas de cuidado RAPS serviccedilos de sauacutede
ABSTRACT
This dissertation had as object the care of people in situation of crisis in the Network of
Psychosocial Attention Through a bibliographical review study of 21 scientific articles we
sought to identify how the health services deals with pacient crisis Regarding to care practices
we are interested in the main difficulties and clinical tools that professionals find in the
management of crisis situations Understanding that the Psychiatric Reform is a process that is
still in progress and depends fundamentally on how services are organized and articulated in
order to create a network of care that can replace the Psychiatric Hospital arises the concern
of what are the main difficulties that the health services faces to provide the care of the crisis in
the territory and the possible ways to overcome them in the direction of care in freedom
Key words crisis mental health care practices Network of Psychosocial Attention
health services
LISTA DE GRAacuteFICOS
Graacutefico 1- Inversatildeo dos gastos (2002 a 2013) 30
Graacutefico 2- Seacuterie histoacuterica de Expansatildeo dos CAPS (2002 a 2014)31
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial por tipo UF e por indicador de CAPS100mil
habitantes (BRASILdez 2014)32
Quadro 2- Oferta de leitos de sauacutede mental em Hospitais Gerais (2014)34
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em CAPS III- Secretaria Municipal de Sauacutede do
Rio de Janeiro (setembro 2015)34
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB- Atenccedilatildeo Baacutesica
ACS- Agente Comunitaacuterio de Sauacutede
AP- Aacuterea Programaacutetica
AT- Acompanhamento Terapecircutico
CAPS- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial
CAPS II- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo II
CAPS III- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo III
CAPSad- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas
CAPSad III - Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas tipo III
CAPSi- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infantil
CF- Cliacutenica da Famiacutelia
ENSP- Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica
FIOCRUZ- Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz
IT- Itineraacuterio Terapecircutico
NASF- Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia
PNSM- Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental
RAPS- Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial
RPB- Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
SAMU- Serviccedilo Moacutevel de Urgecircncia
SRT- Residecircncia Terapecircutica
SUS- Sistema Uacutenico de Sauacutede
UBS- Unidade Baacutesica de sauacutede
VD- Visita Domiciliar
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
10 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA 16
11Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria 16
12A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira25
2 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL 34
21Reflexotildees sobre a Crise e o Cuidado em Sauacutede Mental34
22O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS39
3 METODOLOGIA 46
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA 49
41 Os Sentidos da Crise49
412 Crise como Ameaccedila Social Periculosidade e Risco50
413 Crise como Perda e Isolamento Social54
414 Crise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidos 58
42 Desafios e Potencialidades no Acolhimento agrave Crise64
43 Organizaccedilatildeo da Rede de Cuidados76
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS89
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS95
11
INTRODUCcedilAtildeO
Para o filoacutesofo Gilles Deleuze (1988) pensar natildeo eacute um exerciacutecio natural do ser humano
como costumamos acreditar no senso comum Tampouco se trata de um processo interior ou
subjetivo da ordem de uma reflexatildeo voluntaacuteria Pensamos a partir dos encontros mais insoacutelitos
quando algo nos irrompe agrave consciecircncia de maneira intempestiva e nos forccedila a pensar Pensar
nesse sentido eacute muito mais da ordem de um acontecimento do que da reflexatildeo
A abordagem tradicional da filosofia de Platatildeo agrave Kant tem na representaccedilatildeo o
fundamento do pensamento O conhecimento para esses autores se constroacutei a partir de um
julgamento criacutetico em busca da verdade Em seu livro Diferenccedila e Repeticcedilatildeo (1988) Deleuze
questiona essa tradiccedilatildeo filosoacutefica e sustenta a ideia de um pensamento que natildeo depende mais
de uma relaccedilatildeo com a verdade mas de uma relaccedilatildeo com a diferenccedila Conforme Sangiovanni a
partir da leitura de Deleuze ldquoeacute a partir do encontro com a diferenccedila que ocorre o pensamento
ou seja na relaccedilatildeo exterior natildeo hegemocircnica eacute que satildeo criadas as condiccedilotildees do pensarrdquo
(201386)
Para Deleuze haacute no encontro com a diferenccedila a forccedila de algo novo que necessariamente
nos tira do lugar e que impotildee a necessidade de pensar Nessa mesma linha de pensamento
Benetti destaca ldquoo que funda o pensamento eacute o encontro com algo violento Em outros termos
aquilo que mexe e que marca e portanto desencadeia a paixatildeo de pensarrdquo (DELEUZE 2010
95)
A crise em sauacutede mental tema desse trabalho surgiu para mim como objeto de reflexatildeo
exatamente no plano do concreto de algo que irrompe e se coloca de forma violenta a partir
da necessidade dos casos e do encontro real com o sofrimento do outro A crise fala de um
tempo in ato no aqui e agora que natildeo respeita nossas possibilidades de elaboraccedilotildees teoacutericas
preacutevias sobre o assunto e exige que estejamos inteiramente presentes e disponiacuteveis para o outro
no momento em que ele precisa
Eacute a partir dessa abertura inicial da possibilidade de ser pego de surpresa e mesmo assim
estar junto servindo de suporte para o sofrimento do outro se deixando afetar e marcar por essa
experiecircncia que algum caminho pode se dar Eacute um trabalho que soacute pode acontecer atraveacutes do
contato do encontro com o outro e da possibilidade de estar disponiacutevel para construir algo
juntos
12
A crise aponta para um momento em que as praacuteticas de cuidado e as antigas soluccedilotildees
que o sujeito podia engendrar para lidar com seu sofrimento psiacutequico de alguma forma natildeo
satildeo mais suficientes Segundo Knobloch (1998) a crise pode ser entendida como ldquoalgo
insuportaacutevel no sentido literal de natildeo haver suporte experiecircncia que nos habita como um
abismo de perda de sentido em que se perdem as principais ligaccedilotildeesrdquo (apud FERIGATO et al
2016 33) Algo se rompe algo se perde Natildeo eacute mais possiacutevel continuar a se viver da maneira
em que se estava anteriormente O que fazer
Essa ruptura com uma certa organizaccedilatildeo psiacutequica geralmente eacute entendida pelos
profissionais da sauacutede como algo negativo No entanto se tomamos a loucura e a crise que eacute a
radicalidade dessa ruptura como fenocircmenos de questionamento da ordem social e do status quo
da sociedade talvez possamos relanccedilar algumas perguntas e abrir outras possibilidades de
convivecircncia com a loucura
Apesar do sofrimento que estaacute ligado a vivecircncia da crise sua incidecircncia pode ser vista
como um evento analisador capaz de indicar a necessidade de uma mudanccedila nos modos do
sujeito se relacionar consigo mesmo com o seu tratamento e com o mundo agrave sua volta Assim
eacute precisamente nesse momento em que nada mais parece conseguir estabilizar um sujeito que
nos vemos obrigados a repensar nossas praacuteticas e ofertas de cuidado
Deslocar a perspectiva de compreensatildeo da loucura desse modo significa tomaacute-la em
sua dimensatildeo criativa no que ela traz de revolucionaacuterio e de produccedilatildeo de novos sentidos de
vida Isso implica em uma mudanccedila de atitude eacutetica e poliacutetica para com a loucura natildeo mais no
sentido de reprimi-la ou tentar a todo custo reestabelecer a normalidade perdida mas de aceitar
o movimento de crise como vaacutelido dentro da histoacuteria de vida daquelas pessoas e buscar o que
podemos construir a partir dele isto eacute o que ele pode nos sinalizar sobre as possibilidades de
vida daquele sujeito
Dessa forma algumas questotildees que pretendemos colocar com essa pesquisa satildeo Como
temos acolhido os sujeitos em crise na rede de atenccedilatildeo psicossocial Quais satildeo as principais
dificuldades nesse acolhimento Quais satildeo as nossas principais ferramentas cliacutenicas Quais satildeo
os desafios que o acolhimento agrave crise na rede substitutiva nos coloca Como pensar um
acolhimento agrave crise que natildeo seja apenas baseado na loacutegica de ldquoapagar incecircndiosrdquo Isto eacute que
outras formas de cuidado satildeo possiacuteveis para aleacutem da remissatildeo de sintomas Como trabalhar na
direccedilatildeo de um acolhimento que considere verdadeiramente o sofrimento do sujeito entendendo
a crise natildeo como um momento isolado de sua vida mas como parte de sua histoacuteria
13
Quanto aos aspectos macroestruturais que fundamentam esse trabalho haacute que se
ressaltar que a atenccedilatildeo agrave crise tem sido indicada na literatura como um dos principais desafios
para efetivaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica Embora tenha havido uma mudanccedila no modelo de
sauacutede orientada para um cuidado em liberdade alguns aspectos como a insuficiecircncia da
cobertura dos serviccedilos substitutivos no cenaacuterio local e nacional a baixa articulaccedilatildeo
intersetorial a fragmentaccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e os deacuteficits em relaccedilatildeo aos recursos
humanos e estruturais (BRASIL 2015) tecircm constituiacutedo grandes obstaacuteculos no que se refere a
capacidade dos serviccedilos de acolherem a crise no territoacuterio
No que tange ao cenaacuterio atual o SUS vem sofrendo um forte processo de desmonte
atraveacutes de poliacuteticas de Estado que ameaccedilam seu caraacuteter puacuteblico integral e universal Quanto ao
financiamento destaca-se a Emenda agrave Constituiccedilatildeo 952016 que estabelece um teto para as
despesas em sauacutede puacuteblica considerando o orccedilamento do ano anterior corrigido pela inflaccedilatildeo
sem o aumento real mesmo que haja crescimento econocircmico Isso significa que qualquer
aumento populacional mudanccedilas de perfil demograacutefico ou de quadro sanitaacuterio do paiacutes natildeo
seratildeo acompanhadas pelo incremento das ofertas em sauacutede devido ao congelamento dos gastos
ainda que as receitas tenham aumentado naquele ano Com isso ateacute mesmo a incorporaccedilatildeo de
avanccedilos tecnoloacutegicos fica comprometida contribuindo para ampliar a defasagem do sistema
puacuteblico de sauacutede em relaccedilatildeo aos atendimentos oferecidos pela iniciativa privada
Quanto aos aspectos legislativos e institucionais a recente Nota Teacutecnica 112019
institui uma seacuterie de mudanccedilas que implicam em graves retrocessos na rede assistencial Na
Poliacutetica de Aacutelcool e Outras Drogas o documento confirma o abandono da estrateacutegia de Reduccedilatildeo
de Danos uma abordagem que tem se mostrado eficaz e vem sendo utilizada em diversos
paiacuteses como Canadaacute Portugal Espanha Holanda e alguns estados dentro dos Estados Unidos
Aposta enquanto uacutenica modalidade de tratamento na abstinecircncia total a ser alcanccedilada por meio
internaccedilatildeo de longo prazo reconhecendo enquanto um dispositivo da Rede SUS as
Comunidades Terapecircuticas instituiccedilotildees majoritariamente religiosas focadas no isolamento e
nas praacuteticas religiosas
Quanto agrave organizaccedilatildeo dos serviccedilos os Hospitais Psiquiaacutetricos passam a ser
reconhecidos como parte da RAPS e os Hospitais Gerais ganham ldquoUnidades Psiquiaacutetricas
Especializadasrdquo com capacidade de ateacute 30 leitos para internaccedilotildees psiquiaacutetricas funcionando
como ldquominirdquo Hospitais Psiquiaacutetricos dentro dos Hospitais Gerais o que reproduz novamente a
loacutegica cronificante e alienadora do Hospital Outro ponto eacute a defesa da internaccedilatildeo de crianccedilas e
adolescentes contrariando ECA (Lei 8069 de 1990) Reforccedilamos que essas medidas aleacutem de
14
deslegitimarem o CAPS III como dispositivo privilegiado para o atendimento da crise
claramente contradizem a Poliacutetica de Desinstitucionalizaccedilatildeo e de descredenciamento e
fechamento de Hospitais Psiquiaacutetricos
Na Atenccedilatildeo Baacutesica no municiacutepio do Rio de Janeiro a poliacutetica de ldquoReestruturaccedilatildeo da
Atenccedilatildeo Baacutesicardquo e os cortes previstos na Lei Orccedilamentaacuteria de 2019 foram responsaacuteveis por um
processo de demissatildeo em massa que previa para o ano de 2019 um corte de 239 equipes no
municiacutepio - 184 de sauacutede da famiacutelia e 55 de sauacutede bucal gerando um total de 1400 demissotildees
Segundo levantamento do Nenhum Serviccedilo a Menos em 012019 jaacute haviam sido demitidos 479
servidores sendo a grande maioria deles Agentes Comunitaacuterios da Sauacutede Entre as
mobilizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores foram pautas tambeacutem os atrasos nos salaacuterios
a falta de insumos nas unidades e o descompromisso da Gestatildeo Municipal com o direito agrave
Sauacutede
Assim vecirc-se um avanccedilo preocupante de uma poliacutetica de Estado que visa sucatear a
sauacutede puacuteblica e vai de encontro aos ideais defendidos pela Reforma Sanitaacuteria e aos direitos
promulgados na Constituiccedilatildeo de 1988 que fazem referecircncia agrave sauacutede como direito social
universal garantido pelo Estado
Essas questotildees tornam-se especialmente importantes quando falamos da atenccedilatildeo agrave crise
pois a crise natildeo eacute apenas a crise do usuaacuterio (enquanto um sujeito isolado no mundo e no espaccedilo)
mas tambeacutem a crise do Estado das poliacuteticas puacuteblicas e especialmente das instituiccedilotildees
Desse modo torna-se imprescindiacutevel investir em pesquisas que apontem quais satildeo os
impasses que os profissionais de sauacutede encontram para atender as situaccedilotildees de crise nos serviccedilos
substitutivos e quais estrateacutegias satildeo necessaacuterias no plano micro e macropoliacutetico para mudar o
itineraacuterio dos usuaacuterios em crise do hospital para os serviccedilos substitutivos
Nesse sentido destacamos como objetivo geral deste estudo analisar as fragilidades e
potencialidades apontadas na bibliografia cientiacutefica para a organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da
assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica
Como objetivos especiacuteficos buscaremos
Problematizar as noccedilotildees de crise em sauacutede mental presentes na literatura
e suas repercussotildees para o cuidado
Identificar os desafios e potencialidades encontrados nas praacuteticas de
acolhimento agrave crise na RAPS
Refletir sobre a forma como os serviccedilos tecircm se organizado para responder
agraves demandas de crise
15
Com o intuito de alcanccedilar nossos objetivos realizamos uma pesquisa de revisatildeo
bibliograacutefica de artigos cientiacuteficos que tomaram com objeto os sentidos da crise as praacuteticas de
cuidado e a organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos na resposta agrave crise
Quanto agrave organizaccedilatildeo dessa dissertaccedilatildeo no primeiro capiacutetulo encontramos o referencial
teoacuterico que foi dividido em dois eixos principais No primeiro ldquoDo modelo asilar agraves Reformas
na Psiquiatriardquo retomamos a histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica no mundo explicitando como as
diversas concepccedilotildees de loucura e de crise presentes na sociedade foram responsaacuteveis pela
organizaccedilatildeo de diferentes modelos de cuidado No segundo ldquoA Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileirardquo vemos as repercussotildees da mudanccedila da loacutegica do cuidado no desenvolvimento da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e na reorganizaccedilatildeo da assistecircncia Para esse capiacutetulo usamos
os seguintes autores como referecircncia Foucault Amarante Tenoacuterio Caponi DellacuteAcqua e
Mezzina Birman e outros
No segundo capiacutetulo buscamos discutir mais agrave fundo o conceito de crise e suas relaccedilotildees
com as poliacuteticas de sauacutede no contexto do SUS Na primeira parte ldquoReflexotildees sobre a crise e
o cuidado em sauacutede mentalrdquo faremos uma retomada da origem etimoloacutegica do termo ldquocriserdquo
explicitando seus diversos significados A partir das reflexotildees de autores como DelacuteAcqua
Feriagato Bailarin Corbisier ressaltamos a crise em seu vieacutes criativo produtor de novas
possibilidades de vida Na segunda parte ldquoO Acolhimento agrave crise e a Organizaccedilatildeo do SUSrdquo
contextualizamos os desafios do atendimento agrave crise dentro da loacutegica do SUS A partir das
contribuiccedilotildees de Ceciacutelio (1997) expomos as contradiccedilotildees de um modelo idealizado de SUS
conforme preconizado pelas Poliacuteticas Puacuteblicas que na tentativa de regular todos os fluxos e
linhas de cuidado perde a proximidade com o sujeito e suas reais necessidades de sauacutede
O terceiro capiacutetulo se destina a apresentaccedilatildeo da metodologia utilizada seus aspectos
teoacutericos os caminhos percorridos na seleccedilatildeo dos artigos as bases utilizadas e os criteacuterios de
inclusatildeo de exclusatildeo dos artigos
O quarto capiacutetulo ldquoReflexatildeo e Discussatildeo da Literaturardquo concentra a revisatildeo dos artigos
No intuito de facilitar a anaacutelise dividimos esse capitulo em trecircs eixos conceituais ldquoos sentidos
da criserdquo ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo e a ldquoorganizaccedilatildeo da rede de
cuidadosrdquo
16
1 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA
11 Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria
Ateacute o seacuteculo XVIII na Europa a loucura natildeo era considerada uma doenccedila Ao longo da
histoacuteria a loucura jaacute teve diversos sentidos e explicaccedilotildees figurando desde algo ligado ao
sagrado e ao profeacutetico agrave possessatildeo demoniacuteaca Com a ascensatildeo da sociedade burguesa a
loucura jaacute tinha o estatuto de algo ldquoestranhordquo e junto com todos aqueles considerados
ldquoindesejaacuteveisrdquo agrave sociedade leprosos sifiliacuteticos aleijados mendigos etc comeccedila a ser
confinada nas entatildeo chamadas ldquocasas de internaccedilatildeordquo grandes instituiccedilotildees filantroacutepicas ou
religiosas que tinham como objetivo afastar a pobreza e a miseacuteria das ruas em uma grande
medida de higiene social Segundo Foucault
Estranha superfiacutecie a que comporta as medidas de internamento Doentes veneacutereos
devassos dissipadores homossexuais blasfemadores alquimistas libertinos toda
uma populaccedilatildeo matizada se vecirc repentinamente na segunda metade do seacuteculo XVII
rejeitada para aleacutem de uma linha de divisatildeo e reclusa em asilos que se tornaratildeo em
um ou dois seacuteculos os campos fechados da loucura (2002 116)
Esse periacuteodo histoacuterico eacute denominado pelo autor como a ldquoA Grande Internaccedilatildeordquo (2002)
fazendo alusatildeo ao fato de que a internaccedilatildeo natildeo era apenas para os loucos mas para toda a sorte
de indiviacuteduos que por algum motivo perturbavam a ordem social Esse periacuteodo se inscreve
desde o seacuteculo XVII ateacute o final seacuteculo XVIII e seu fim inaugura a emergecircncia da psiquiatria
enquanto ciecircncia (RIBEIRO PINTO 2011)
As ldquocasas de internaccedilatildeordquo natildeo tinham como objetivo a cura de enfermos ou a reabilitaccedilatildeo
dessas pessoas Eram verdadeiros depoacutesitos humanos lugares de exclusatildeo social da pobreza e
da miseacuteria produzidas pelos regimes absolutistas da eacutepoca Laacute permaneciam isolados e
esquecidos esperando a proacutepria morte
As primeiras casas surgiram nas regiotildees mais industrializadas do paiacutes como uma
alternativa para crise econocircmica atraveacutes da exploraccedilatildeo da matildeo de obra barata Segundo o
regulamento de uma das casas ldquoos internos devem trabalhar todos Determina-se o valor exato
de sua produccedilatildeo e daacute-se-lhes a quarta parte Pois o trabalho natildeo eacute apenas ocupaccedilatildeo deve ser
produtivordquo (FOUCAULT 2002 67)
Os loucos natildeo recebiam tratamento diferenciado em relaccedilatildeo aos outros pobres poreacutem
distinguiam-se pela ldquoincapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida
17
coletivardquo (FOUCAULT 2002 73) Assim comeccedila-se a se pensar a loucura como um caso agrave
parte uma vez que ela natildeo responde da mesma forma agraves demandas de produtividade
Com a expansatildeo industrial o pobre passa a ser necessaacuterio nas cidades logo natildeo podia
mais estar internado mas e o pobre e louco A quem caberia a responsabilidade de assistecircncia
dessas pessoas Aos poucos as casas de internaccedilatildeo foram mudando de figura
O poder exercido no interior dessas Instituiccedilotildees pertencia agrave Igreja e ao Estado mas
em funccedilatildeo das revoluccedilotildees francesa e industrial do surgimento de novos atores sociais
ndash a burguesia a classe meacutedia o proletariado - e do surgimento de uma nova
racionalidade na produccedilatildeo do conhecimento essas instituiccedilotildees vatildeo gradativamente se
transformando em instituiccedilotildees meacutedicas (BARRIacuteGIO 2010 18)
Em 1791 na Franccedila eacute decretada uma lei que responsabiliza as famiacutelias por vigiar seus
loucos evitando que eles fiquem ldquovagando na ruardquo ou cometam alguma ldquodesordemrdquo No
entanto para as famiacutelias mais pobres que natildeo tinham condiccedilotildees de assistir seus familiares
chegam vaacuterios pedidos de internaccedilatildeo ao Ministeacuterio do Interior Nesse cenaacuterio destacam-se
duas instituiccedilotildees que sob agrave eacutegide da Medicina comeccedilam a se configurar enquanto os primeiros
hospitais especializados no tratamento da loucura Bicecirctre para o puacuteblico masculino e
Salpetriegravere para o puacuteblico feminino (HENNA 2014)
Em 1792 o meacutedico Phillipe Pinel assumiu a direccedilatildeo do Hospital de Bicetrecirc em Paris
onde operou inuacutemeras transformaccedilotildees consideradas atualmente por alguns autores como a
primeira Reforma da Psiquiatria Pinel inspirado pelos ideais de igualdade fraternidade e
liberdade da Revoluccedilatildeo Francesa libertou os loucos das correntes aboliu teacutecnicas como ldquoa
imersatildeo em aacutegua gelada os golpes as sangrias e as torturasrdquo (CAPONI 2012 49) e combateu
o pensamento da eacutepoca que a loucura era um fenocircmeno de possessatildeo demoniacuteaca
A funccedilatildeo meacutedica eacute claramente introduzida em Bicecirctre trata-se agora de rever todos
os internamentos por demecircncia que foram decretados no passado E pela primeira vez
na histoacuteria do Hospital Geral eacute nomeado para as enfermarias de Bicecirctre um homem
que jaacute adquiriu certa reputaccedilatildeo no conhecimento das doenccedilas do espiacuterito a designaccedilatildeo
de Pinel prova por si soacute que a presenccedila de loucos em Bicecirctre jaacute eacute um problema meacutedico
(FOUCAULT 2002 464)
A Psiquiatria de Pinel teve como objetivo demarcar os precisos limites entre a
normalidade e a loucura Devem-se a ele os primeiros esforccedilos no sentido de separar e
classificar os diversos tipos de desvio ou alienaccedilatildeo mentalrdquo com o intuito de estudaacute-los e
trataacute-los Com Pinel a loucura comeccedila a ganhar o status de uma ldquodoenccedila mentalrdquo com
sintomatologia proacutepria que requer cura e tratamento
Em seu Traite Medico-Philosophique sur IAlienation Mentale Pinel (1801) afirma que
18
Os alienados longe de serem culpados a quem se deve punir satildeo doentes cujo
doloroso estado merece toda a consideraccedilatildeo devida a humanidade que sofre e para
quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razatildeo desviada (apud
PEREIRA 2004 114 grifo nosso)
Hegel inspirado pelos estudos de Pinel afirma que a loucura natildeo eacute uma perda total da
razatildeo mas a contradiccedilatildeo de uma razatildeo que ainda existe O alienado eacute portanto um ser em
contradiccedilatildeo consigo mesmo mas que preserva em algum lugar um ponto lucidez
O verdadeiro tratamento apega-se a concepccedilatildeo de que a alienaccedilatildeo natildeo eacute a perda
abstrata da razatildeo nem do lado da inteligecircncia nem do lado da vontade ou da sua
responsabilidade mas um simples desarranjo do espiacuterito uma contradiccedilatildeo na
razatildeo que ainda existe assim como a doenccedila fiacutesica natildeo eacute uma perda abstrata isto eacute
completa da sauacutede (isso seria a morte) mas eacute uma contradiccedilatildeo dentro dela Esse
tratamento humano isto eacute tatildeo benevolente quanto razoaacutevel da loucura pressupotildee que
o doente eacute razoaacutevel e aiacute encontra um soacutelido ponto para abordaacute-lo desse lado (HEGEL
apud FOUCAULT 1972 524 grifo nosso)
Sendo a alienaccedilatildeo um distuacuterbio das paixotildees no interior da proacutepria razatildeo e natildeo fora dela
o tratamento possiacutevel para a loucura era buscar reestabelecer a normalidade perdida Conforme
afirma Pinel (1801) ldquohaacute sempre um resto de razatildeo mesmo no mais alienado dos alienadosrdquo e
se haacute um resto de razatildeo para Pinel era possiacutevel resgataacute-la (apud CAPONI 2012 48)
Os meios propostos por Pinel para reestabelecer o equiliacutebrio do doente constituiacuteam no
que ele chamou de ldquotratamento moralrdquo O termo moral nesse sentido era usado para designar
aquilo que pertence ao espiacuterito em contraposiccedilatildeo ao que eacute fiacutesico Assim o tratamento moral
visava reeducar o ldquodoenterdquo no sentido de ldquocriar estrateacutegias para dominar as paixotildees e recuperar
a razatildeordquo (CAPONI 2012 53)
O chamado tratamento moral praticado pelos alienistas incluiacutea o afastamento dos
doentes do contato exterior com todas as influecircncias da vida social e de qualquer
contato que pudesse modificar o que era considerado o desenvolvimento natural da
doenccedila (PEREIRA 2004 114)
A estrateacutegia de isolamento praticada com o tratamento moral procurava manter distacircncia
das condiccedilotildees que Pinel acreditava terem contribuiacutedo para o desenvolvimento da doenccedila
Segundo seus estudos tratavam-se de elementos de ordem social e afetiva que ele relacionava
com certos tipos de alienaccedilatildeo mental
Existe uma marcada diferenccedila na frequecircncia de certas causas conforme as espeacutecies de
alienaccedilatildeo problemas domeacutesticos produzem mais frequentemente a mania uma
devoccedilatildeo muito exaltada determina a melancolia Um amor contrariado e infeliz parece
ser a fonte fecunda para duas espeacutecies de alienaccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo ao idiotismo os
estudos indicam que as causas fiacutesicas como um viacutecio de conformaccedilatildeo podem estar na
origem da maior parte dos casos (PINEL apud CAPONI 2012 48)
19
Podemos ver que as ldquocausas moraisrdquo mais frequentes da alienaccedilatildeo satildeo experiecircncias
comuns a vida cotidiana ( amor contrariado problemas domeacutesticos devoccedilatildeo religiosa etc) que
poderiam ser revertidas com o tratamento atraveacutes da submissatildeo do doente a um ambiente de
controle onde seria possiacutevel dominar as paixotildees desenfreadas e os comportamentos
inadequados atraveacutes da ldquovoz da razatildeordquo representada pela figura do psiquiatra
Conforme Pinel
A terapecircutica da loucura eacute a arte de subjulgar e dominar por assim dizer o alienado
pondo-o em extrema dependecircncia de um homem que por suas qualidades fiacutesicas e
morais estaacute apto para exercer sobre ele um domiacutenio irresistiacutevel algueacutem capaz de
mudar a cadeia viciosa de suas ideacuteias (FOUCAULT 2003 apud CAPONI 2012 41)
Assim dois elementos mostram-se fundamentais para o sucesso do tratamento moral
isolamento e poder Por um lado a ideia de privar o doente do contato com as condiccedilotildees que
ocasionaram a sua doenccedila resulta no seu isolamento por outro a submissatildeo a um ambiente
riacutegido de regras firmes e incontestaacuteveis seria o fator imprescindiacutevel para exercer o controle das
paixotildees
A proacutepria organizaccedilatildeo do espaccedilo e das rotinas do ambiente asilar eram pensadas de
modo que a disciplina do ambiente pudesse se refletir tambeacutem nos pacientes operando assim
uma espeacutecie de ldquocontenccedilatildeordquo pelo ambiente (CAPONI 2012) As regras condutas horaacuterios e
regimentos do hospital tinham como objetivo reeducar a mente do ldquoalienadordquo afastar os deliacuterios
e ldquochamar agrave consciecircncia agrave realidaderdquo (AMARANTE 200733) Assim o hospital passa a ser
natildeo somente o lugar onde acontece o tratamento mas ele proacuteprio um instrumento ldquoterapecircuticordquo
Este tratamento exige uma reorganizaccedilatildeo interna do espaccedilo asilar uma distribuiccedilatildeo
minuciosa das diferentes espeacutecies de doente ficando os melancoacutelicos mais proacuteximos
do paacutetio e situando-se o restando dos pacientes mais longe de acordo com a sua
periculosidade Assim como existe uma minuciosa descriccedilatildeo e organizaccedilatildeo do
espaccedilo algo semelhante ocorreraacute com o controle do tempo As atividades exercidas
no asilo tem tempos estabelecidas assim como os tratamentos para cada tipo de
doenccedila As regras seratildeo previamente estabelecidas e fixadas sendo que cada
estrateacutegia disciplinar pretende contrapor a loucura agrave racionalidade e agrave mesura
representadas pelo saber meacutedico Define-se assim o modelo que deve ser interiorizado
por esse tipo de ortopedia moral que rege nos asilos (CAPONI2012 50)
Vecirc-se entatildeo que o surgimento dos hospitais psiquiaacutetricos nasce estreitamente ligado agrave
concepccedilatildeo de loucura enquanto doenccedila mental e a ideia de um tratamento que usa como
recursos terapecircuticos o isolamento a disciplina e a autoridade Com o alienismo o hospital
deixa de ser um espaccedilo de assistecircncia e filantropia para se tornar de fato uma instituiccedilatildeo
meacutedica Comeccedila-se a se estabelecer uma diferenccedila entre o louco o criminoso o pobre e o
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doente dos oacutergatildeos de modo que se torna necessaacuterio isolar o louco dos demais internos em um
ambiente separado afim de observaacute-lo e estudar a natureza de sua doenccedila Embora os loucos jaacute
fossem institucionalizados antes do alienismo haacute nesse momento uma marcada diferenccedila a
clausura em questatildeo natildeo se daacute mais por caridade ou repressatildeo mas ldquopor um imperativo
terapecircuticordquo (AMARANTE 2007 33)
Assim as condiccedilotildees de possibilidade para o surgimento do manicocircmio enquanto uma
instituiccedilatildeo de isolamento da loucura contemplam tanto os alienistas e seu entendimento sobre
a loucura quanto agraves necessidades da sociedade como um todo Por um lado a concepccedilatildeo que
se tinha em relaccedilatildeo agrave loucura exigia o reestabelecimento da razatildeo atraveacutes de uma reeducaccedilatildeo
moral cujos alicerces eram o isolamento e as riacutegidas disciplinas institucionais por outro
haviam os anseios da populaccedilatildeo por isolamento e exclusatildeo daqueles que desviam da norma
social e que por isso lhe parecem estranhos e perigosos
Foi assim que segundo Amarante (2007 33) ldquoo alienismo pineliano ganhou o mundordquo
e embora tenha havido algumas criacuteticas a esse modelo ele soacute seraacute efetivamente questionado no
seacuteculo XX no contexto do poacutes-guerra na Europa
As duas grandes Guerras Mundiais voltaram a sociedade para uma reflexatildeo sobre a
natureza humana a crueldade e solidariedade com o proacuteximo No poacutes-Segunda Guerra com a
queda do nazismo especificamente percebeu-se que as condiccedilotildees de vida oferecidas nos
hospitais psiquiaacutetricos pouco se distanciavam daquelas oferecidas aos judeus nos campos de
concentraccedilatildeo nazistas (AMARANTE 2007)
Paralelamente a Europa sofreu um forte abalo econocircmico Segundo Heidrich (2007
38) ldquoos autores destacam que soacute na Franccedila 40 mil doentes mentais morreram nos asilos devido
agraves maacutes condiccedilotildees e a falta de alimentaccedilatildeordquo Houve uma perda consideraacutevel da matildeo-de-obra
disponiacutevel que fora lanccedilada ao campo de batalha e jaacute natildeo havia mais quem pudesse reconstruir
a economia e reparar os danos do poacutes-guerra
Nessa atual conjuntura natildeo era mais possiacutevel assistir-se passivamente ao
deterioramento do espetaacuteculo asilar natildeo era mais possiacutevel aceitar uma situaccedilatildeo em
que um conjunto de homens passiacuteveis de atividade pudessem estar espantosamente
estragados no hospiacutecio Passou-se a enxergar como um grande absurdo esse montante
de desperdiacutecio da forccedila de trabalho (BIRMAN COSTA 1994 46-7)
Segundo Birman e Costa (1994) lidos por Heidrich (2007) haviam duas preocupaccedilotildees
centrais que demandavam a reforma do modelo asilar
Por um lado a preocupaccedilatildeo dos proacuteprios psiquiatras com relaccedilatildeo agrave sua impotecircncia
terapecircutica por outro as preocupaccedilotildees governamentais geradas pelos altos iacutendices
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de cronicidade das doenccedilas mentais com sua consequente incapacidade social Dessa
forma a psiquiatria social aparece transferindo o campo de atuaccedilatildeo da psiquiatria da
doenccedila mental para a sauacutede mental ( BIRMAN COSTA 1994 apud HEIDRICH
2007 36-7)
O Hospital Psiquiaacutetrico comeccedila a aparecer entatildeo como o principal responsaacutevel pela
degradaccedilatildeo dos pacientes e pela manutenccedilatildeo e pela cronicidade de sua doenccedila Assim surgem
vaacuterias experiecircncias com o objetivo de transformar o ambiente asilar e reabilitar os pacientes
para a vida social e para o trabalho
Segundo Amarante (2007) esses movimentos reformistas foram divididos em ldquodois
grupos mais umrdquo
O primeiro grupo composto pela Comunidade Terapecircutica e pela Psicoterapia
Institucional destaca duas experiecircncias que investiram no princiacutepio de que o fracasso
estava na forma de gestatildeo do proacuteprio hospital e que a soluccedilatildeo portanto seria
introduzir mudanccedilas na instituiccedilatildeo O segundo grupo eacute formado pela Psicoterapia de
Setor e Psiquiatria Preventiva experiecircncias que acreditavam que o modelo hospitalar
estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ldquopelas beiradasrdquo como se diz
na linguagem popular isto eacute deveria ser tornado obsoleto a partir da construccedilatildeo de
serviccedilos assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapecircutico (hospitais dia
oficinas terapecircuticas centros de sauacutede mental etc) ao mesmo tempo que iriam
diminuindo a importacircncia e a necessidade do hospital psiquiaacutetrico No lsquooutrorsquo grupo
em que estatildeo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica o termo reforma parece
inadequado Ambas consideram que a questatildeo mesma estaria no modelo cientiacutefico
psiquiaacutetrico que eacute todo ele colocado em xeque assim como suas instituiccedilotildees
assistenciais (AMARANTE 2007 41)
O primeiro grupo formado pela Comunidade Terapecircutica (Inglaterra e EUA) e pela a
Psicoterapia Institucional (Franccedila) acreditava em uma reforma do ambiente hospitalar de modo
a humanizaacute-lo e tornaacute-lo efetivamente terapecircutico Assim empreenderam propostas de
democratizar o hospital dissolver a rigidez da hierarquia e da disciplina do ambiente hospitalar
de modo a horizontalizar as relaccedilotildees de poder Todos deviam fazer parte de uma mesma
comunidade terapecircutica e lutar contra a violecircncia institucional O sistema eacute pensado de modo a
apostar no potencial terapecircutico do coletivo e a incluir o sujeito que experiecircncia o sofrimento
como co-participante de seu tratamento Jaacute vemos aiacute uma inversatildeo em relaccedilatildeo a psiquiatria
pineliana e ao modo tradicional de se entender a loucura poreacutem natildeo haacute um questionamento em
relaccedilatildeo a necessidade de institucionalizaccedilatildeo do louco
O segundo grupo composto pela Psiquiatria de Setor (Franccedila) e pela Psiquiatria
Preventiva (EUA) jaacute apontava para a necessidade de um trabalho externo ao manicocircmio A
Psiquiatria de Setor se destacou por criar serviccedilos externos agrave internaccedilatildeo os CSM (Centros de
Sauacutede Mental) distribuiacutedos pelo territoacuterio de acordo com o contingente populacional nos
diferentes setores administrativos das regiotildees francesas O hospital por sua vez era tambeacutem
dividido em vaacuterios setores de modo que pacientes de uma mesma regiatildeo administrativa fossem
22
sempre internados no mesmo setor do hospital e quando recebessem alta eram enviados ao CMS
correspondente (AMARANTE 2007)
Organizar o cuidado desse modo permitia que o sujeito pudesse ser acompanhado pela
mesma equipe multiprofissional desde a internaccedilatildeo hospitalar ateacute a alta e encaminhamento para
o CMS do setor contando com o viacutenculo como um recurso terapecircutico Comeccedila-se a se
construir a ideia de uma equipe multidisciplinar de modo que o cuidado natildeo ficasse mais apenas
centralizado na figura do meacutedico
A Psiquiatria Preventiva tambeacutem conhecida como Psiquiatria Comunitaacuteria buscou
aplicar o meacutetodo da Medicina Preventiva agrave Psiquiatria visando reduzir a incidecircncia das doenccedilas
mentais na populaccedilatildeo Caplan fundador dessa corrente acreditava que ldquotodas as doenccedilas
mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocementerdquo (apud AMARANTE
2007 48)
Para a Psiquiatria Preventiva o conceito de crise passa a ser norteador A crise era
entendida a partir do vieacutes socioloacutegico de ldquoadaptaccedilatildeo e desadaptaccedilatildeo socialrdquo Segundo Joel
Birman e Jurandir Freire Costa atraveacutes da leitura de Amarante as crises eram classificadas em
dois grandes grupos
1) Evolutivas-quando relacionadas a processos normais do desenvolvimento fiacutesico
emocional ou social Em tais processos na passagem de uma fase agrave outra da vida a
conduta natildeo estaria caracterizada por um padratildeo estabelecido Tratar-se-ia de um
periacuteodo transitoacuterio quando o indiviacuteduo perderia sua caracterizaccedilatildeo anterior sem no
entanto adquirir uma nova organizaccedilatildeo Na hipoacutetese de os conflitos gerados natildeo
serem bem absorvidos poderiam levar agrave desadaptaccedilatildeo que natildeo sendo elaborados pela
pessoa poderiam conduzir agrave doenccedila mental
2) Acidentais- quando precipitadas por alguma perda ou risco (desemprego separaccedilatildeo
conjugal falecimento de uma pessoa querida etc) A perturbaccedilatildeo emocional
ocasionada pela crise provocaria eventualmente o surgimento de alguma enfermidade
mental assim torna-se um momento estrateacutegico de intervenccedilatildeo preventiva na medida
em que em contrapartida a crise pode ser encarada como uma possibilidade de
crescimento para o indiviacuteduo (Birman e Costa 1998 apud AMARANTE 2007 49-
50)
Entendendo que algumas situaccedilotildees sejam elas relativas ao desenvolvimento natural do
ser humano ou a condiccedilotildees externas diversas apontam para momentos mais delicados da vida
a Psiquiatria Preventiva propocircs estrateacutegias de trabalho de base comunitaacuteria investindo em
equipes de sauacutede mental que pudessem acompanhar os usuaacuterios preventivamente identificando
e intervindo na crise em seu vieacutes individual familiar e social
Tambeacutem foram implantados vaacuterios serviccedilos comunitaacuterios de cuidado com o objetivo de
acompanhar os usuaacuterios preventivamente diminuindo a incidecircncia das doenccedilas mentais e a
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necessidade de internaccedilotildees psiquiaacutetricas de modo que aos poucos o hospital se tornasse um
recurso obsoleto e desnecessaacuterio (AMARANTE 2007)
No entanto aconteceu paradoxalmente um aumento importante da demanda psiquiaacutetrica
nos EUA tanto nos serviccedilos extra hospitalares quanto nos hospitais psiquiaacutetricos ldquoos proacuteprios
serviccedilos comunitaacuterios se transformaram em grandes captadores e encaminhadores de novas
clientelas para os hospitais psiquiaacutetricosrdquo (AMARANTE 2007 51)
Assim vemos que embora tenha havido uma mudanccedila na estruturaccedilatildeo dos serviccedilos ela
natildeo eacute suficiente sem uma mudanccedila de mentalidade em relaccedilatildeo agrave loucura e aos modos de trataacute-
la Ainda que os novos dispositivos tenham sido pensados para evitar as internaccedilotildees
psiquiaacutetricas isso natildeo ocorreraacute se os profissionais continuam a pensar do mesmo modo e se natildeo
haacute um trabalho com a sociedade no sentido de questionar a exclusatildeo da loucura e inventar novas
possibilidades de convivecircncia
Nesse ponto a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica Italiana se destacam das
demais propostas de reformas da psiquiatria Para a Antipsiquiatria as pessoas tidas como
loucas eram reprimidas e violentadas natildeo soacute nos hospitais mas na sociedade como um todo
Logo ldquoa experiecircncia dita patoloacutegica ocorria natildeo no indiviacuteduo na condiccedilatildeo de corpo ou mente
doente mas nas relaccedilotildees estabelecidas entre ele e a sociedaderdquo (AMARANTE 2007 35)
Assim natildeo era apenas a instituiccedilatildeo que precisava mudar tampouco o sujeito dito louco mas a
proacutepria relaccedilatildeo entre loucura e sociedade
O princiacutepio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiecircncia esta seria
por si soacute terapecircutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de
reorganizaccedilatildeo interior Ao lsquoterapeutarsquo competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a
superar esse processo acompanhando-a protegendo-a inclusive da violecircncia da
proacutepria psiquiatria (AMARANTE 2007 54)
Quanto agrave experiecircncia italiana Franco Basaglia (1968) precursor do movimento
entendia que era preciso superar natildeo apenas o manicocircmio mas todo o aparato manicomial isto
eacute natildeo soacute a estrutura fiacutesica do hospital mas o conjunto de seus saberes e praacuteticas cientiacuteficas
sociais juriacutedicas e legislativas
Essa inflexatildeo destaca que a luta natildeo eacute contra o manicocircmio em si mas contra toda e
qualquer praacutetica manicomial Com isso Basaglia (1968) chama atenccedilatildeo para o fato de que
mesmo nos dispositivos ditos ldquonovosrdquo eacute possiacutevel haver uma reproduccedilatildeo de praacuteticas autoritaacuterias
e opressoras em relaccedilatildeo agrave loucura Vale dizer que foi esse movimento que serviu de inspiraccedilatildeo
e base para a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira tema do nosso proacuteximo capiacutetulo
24
Inspirado na Psiquiatria Comunitaacuteria Basaglia tambeacutem criou centros regionalizados
para atender as demandas de sauacutede mental No entanto diferente desse primeiro movimento
natildeo eram dispositivos que davam continuidade ao tratamento apoacutes a alta e que reinternavam os
pacientes nos manicocircmios nos momentos de crise mas serviccedilos que constituiacuteam por excelecircncia
o modelo de tratamento em sauacutede mental rejeitando definitivamente o hospital como lugar de
tratamento
Quanto ao entendimento da loucura haacute tambeacutem nesse ponto uma ruptura
epistemoloacutegica importante com o paradigma anterior Basaglia (1968) considera que o mal
obscuro da psiquiatria foi ter colocado o sujeito entre parecircnteses e ter elegido como seu objeto
de estudo ldquoa doenccedilardquo (apud AMARANTE 2007) Assim a proposta da Psiquiatria
Democraacutetica Italiana consiste em operar uma inversatildeo colocar a doenccedila entre parecircnteses e
tomar o sujeito como o objeto da psiquiatria Importante destacar que isto natildeo significa negar a
doenccedila enquanto um estado de produccedilatildeo de dor e sofrimento mas compreender que a totalidade
do sujeito natildeo se reduz agrave ela
Com isto o objeto da Psiquiatria se desloca da ldquodoenccedila mentalrdquo para a ldquosauacutede mentalrdquo
e o mandato dessa ciecircncia deixa de ser centrado na cura do paciente para se tornar uma
preocupaccedilatildeo com a sua sauacutede e com seu bem-estar social
Assim vemos que os significados da loucura na sociedade e os modelos assistenciais
desenhados para dar conta dessa questatildeo nunca foram objetos ldquodadosrdquo historicamente mas
construccedilotildees sociais Diferentes noccedilotildees de crise e de loucura permitiram a emergecircncia de
diferentes modelos de assistecircncia Com isto podemos observar que os modos de compreensatildeo
da crise e da loucura influem nas nossas ofertas de cuidado assim como nossas ofertas de
cuidado tambeacutem dizem algo do modo como estamos pensando e compreendendo a loucura e as
intervenccedilotildees possiacuteveis em uma situaccedilatildeo de crise
12 A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
O movimento de Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira encontra suas origens no final da
deacutecada de 1970 no bojo dos movimentos sociais ligados agrave luta contra a ditadura e dentro de um
movimento mais amplo de reformas no setor da sauacutede Dentre esses movimentos emergentes
em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores da Sauacutede Mental (MTSM) que assumiu um
papel importante na criacutetica e na oposiccedilatildeo ao regime militar em especial no que concernia agraves
situaccedilotildees de violaccedilatildeo dos direitos humanos dentro dos hospitais psiquiaacutetricos Esse movimento
25
permitiu colocar em evidecircncia a violecircncia e a miseacuteria agraves quais eram submetidas as pessoas com
transtorno mental internadas nos hospitais da rede puacuteblica aleacutem de reivindicar melhorias nas
condiccedilotildees de trabalho dos profissionais de sauacutede (AMARANTE 1998)
Segundo Amarante (1998) um ponto crucial para o surgimento desse movimento foi o
que se denominou a ldquocrise da Divisatildeo Nacional de Sauacutede Mentalrdquo1 movimento de denuacutencia e
criacutetica agraves peacutessimas condiccedilotildees em que se encontravam os quatro hospitais da Divisatildeo Nacional
de Sauacutede Mental do Ministeacuterio da Sauacutede no Rio de Janeiro (Centro Psiquiaacutetrico Pedro II ndash
CPPII Hospital Pinel Colocircnia Juliano Moreira ndash CJM e Manicocircmio Judiciaacuterio Heitor
Carrilho) Essa situaccedilatildeo culminou na greve de meacutedicos e funcionaacuterios no primeiro trimestre de
1978 seguida da demissatildeo de 260 estagiaacuterios e profissionais
Na eacutepoca devido ao destaque do Rio de Janeiro como ex-capital federal e como capital
cultural do Brasil somado a gravidade dessas denuacutencias terem ocorrido dentro de um oacutergatildeo
federal constatou-se um verdadeiro escacircndalo no modo como o Estado tratava os pacientes
com transtorno mental e seus funcionaacuterios Isso permitiu com que a situaccedilatildeo atingisse
repercussatildeo nacional tanto atraveacutes da divulgaccedilatildeo na miacutedia quanto pelo debate em setores
expressivos da sociedade brasileira o que impulsionou o movimento de Reforma por todo o
paiacutes (AMARANTE 1998)
Em 1987 surge o Movimento de Luta Antimanicomial a partir do Encontro dos
Trabalhadores da Sauacutede Mental que reuniu mais de 350 trabalhadores na cidade de Bauru no
estado de Satildeo Paulo O movimento assumiu um papel importante no processo de construccedilatildeo da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira contribuindo no fortalecimento e na organizaccedilatildeo dos
trabalhadores usuaacuterios e familiares em torno das pautas e reivindicaccedilotildees da aacuterea
(VASCONCELOS 2008)
Na deacutecada de 1980 haacute um fortalecimento dos movimentos reformistas Segundo
Tenoacuterio (2002) houve um amadurecimento da criacutetica ao modelo asilarsegregador e uma
contestaccedilatildeo mais forte em relaccedilatildeo agraves internaccedilotildees conveniadas
a deacutecada de 1980 assistiu ainda a trecircs processos tambeacutem importantes para a
consolidaccedilatildeo das caracteriacutesticas atuais do movimento da reforma a ampliaccedilatildeo dos
atores sociais envolvidos no processo a iniciativa de reformulaccedilatildeo legislativa e o
surgimento de experiecircncias institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo
tipo de cuidado em sauacutede mental (TENOacuteRIO 2002 27)
1 Oacutergatildeo do Ministeacuterio da Sauacutede responsaacutevel pela formulaccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede do subsetor sauacutede mental
26
Em 1989 o deputado Paulo Delgado propotildee o projeto de lei no 365789 estabelecendo
os direitos das pessoas com transtorno mental e prevendo a extinccedilatildeo dos manicocircmios poreacutem
devido aos fortes lobbies dos proprietaacuterios de hospitais psiquiaacutetricos o projeto natildeo eacute aprovado
mas produz a ampliaccedilatildeo do debate em torno da reestruturaccedilatildeo da assistecircncia por todo o paiacutes
A intensificaccedilatildeo do debate e a popularizaccedilatildeo da causa da reforma desencadeadas pela
iniciativa de revisatildeo legislativa certamente impulsionaram os avanccedilos que a luta
alcanccedilou nos anos seguintes Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiaacutetrica
proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou a situaccedilatildeo curiosa de ser
uma lei que produziu seus efeitos antes de ser aprovada (TENOacuteRIO 2002 28
grifo nosso)
Embora a lei natildeo tenha sido aprovada nesse primeiro momento ela teve efeitos
importantes na organizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos serviccedilos em prol da Reforma Psiquiaacutetrica A
partir de 1992 os movimentos sociais conseguem aprovar em vaacuterios estados do Brasil as
primeiras leis que determinam a substituiccedilatildeo progressiva dos leitos psiquiaacutetricos por uma rede
integrada de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental (BRASIL 2005 8) Nesse contexto atraveacutes
PortariaSNAS nordm 2241992 surgem os Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e os Nuacutecleos
de Atenccedilatildeo Psicossocial (NAPS) dois importantes dispositivos com a proposta de atuarem de
formas substitutiva ao modelo asilar
Ainda nesse ano destaca-se um outro marco na histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileira a II Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental Esta conferecircncia contou com a ampla
participaccedilatildeo dos usuaacuterios e familiares de sauacutede mental cabe ressaltar que aproximadamente
20 dos delegados da conferecircncia eram usuaacuterios dos serviccedilos de sauacutede mental ou familiares de
usuaacuterios
Segundo Tenoacuterio (2002) a conferecircncia estabelece dois marcos conceituais importantes
a atenccedilatildeo integral e a cidadania
Segundo essa referecircncia satildeo desenvolvidos o tema dos direitos e da legislaccedilatildeo e a
questatildeo do modelo e da rede de atenccedilatildeo na perspectiva da municipalizaccedilatildeo As
recomendaccedilotildees gerais sobre o modelo de atenccedilatildeo propunham a adoccedilatildeo dos conceitos
de territoacuterio e responsabilidade como forma de ruptura com o modelo
hospitalocecircntrico e de garantir o direito dos usuaacuterios agrave assistecircncia e agrave recusa ao
tratamento bem como a obrigaccedilatildeo do serviccedilo em natildeo abandonaacute-los agrave proacutepria sorte
(Ministeacuterio da Sauacutede Brasil 1994 22 apud TENOacuteRIO 2002)
Ao longo da deacutecada de 1990 a proposta da construccedilatildeo de uma rede de serviccedilos que
possibilitasse a extinccedilatildeo dos manicocircmios ganhou forccedila e houve uma expansatildeo significativa dos
serviccedilos de atenccedilatildeo diaacuteria substitutivos aos hospitalares Nesse periacuteodo entre os muitos pontos
importantes destacam-se
a penetraccedilatildeo crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiaacutetrico (natildeo obstante
o triunfalismo da psiquiatria bioloacutegica) a permanecircncia continuada de diretrizes
27
reformistas no campo das poliacuteticas puacuteblicas com os postos de coordenaccedilatildeo e gerecircncia
ocupados por partidaacuterios da reforma (no caso do Rio de Janeiro nos trecircs niacuteveis
gestores federal estadual e municipal) a existecircncia de experiecircncias renovadoras com
resultados iniciais positivos em todas as regiotildees do paiacutes a capacidade das experiecircncias
mais antigas de manter sua vitalidade os reiterados indiacutecios de um novo olhar sobre
a loucura vicejando no espaccedilo social um olhar natildeo mais tatildeo fortemente marcado pelos
estigmas do preconceito e do medo (TENOacuteRIO 200241)
Depois de 12 anos tramitando no congresso eacute aprovado em 2001 um projeto substitutivo
da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado a lei 10216 que sofreu muitas modificaccedilotildees no
texto original A referida lei ldquodispotildee sobre a proteccedilatildeo das pessoas com transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sauacutede mentalrdquo (BRASIL 2001) No artigo 2ordm paraacutegrafo
uacutenico estabelece que satildeo direitos da pessoa com transtorno mental
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de sauacutede consentacircneo agraves suas
necessidades II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua sauacutede visando alcanccedilar sua recuperaccedilatildeo pela inserccedilatildeo na famiacutelia no
trabalho e na comunidade III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e
exploraccedilatildeo IV ndash ter garantia de sigilo nas informaccedilotildees prestadas V ndash ter direito agrave
presenccedila meacutedica em qualquer tempo para esclarecer a necessidade ou natildeo de sua
hospitalizaccedilatildeo involuntaacuteria VI ndash ter livre acesso aos meios de comunicaccedilatildeo
disponiacuteveis VII ndash receber o maior nuacutemero de informaccedilotildees a respeito de sua doenccedila e
de seu tratamento VIII ndash ser tratada em ambiente terapecircutico pelos meios menos
invasivos possiacuteveis IX ndash ser tratada preferencialmente em serviccedilos comunitaacuterios de
sauacutede mental (BRASIL 2001)
A lei 10216 tambeacutem regulamenta as internaccedilotildees psquiaacutetricas e redireciona o modelo
assistencial em sauacutede
Aleacutem dos CAPS previu-se a implantaccedilatildeo de ambulatoacuterios de sauacutede mental NAPS
residecircncias terapecircuticas hospitais-dia unidades de psiquiatria em hospitais gerais
lares protegidos e centros de convivecircncia e cultura (BRASIL 2001 apud BARROSO
SILVA 2011 73)
Previram-se tambeacutem a criaccedilatildeo de oficinas de trabalho protegido unidades de
preparaccedilatildeo para a reinserccedilatildeo social dos pacientes e serviccedilos para o atendimento agraves
famiacutelias (BARROSO SILVA 201173 )
Apoacutes a aprovaccedilatildeo da lei 10216 surgiram mais duas portarias que instituiacuteam os serviccedilos
residenciais terapecircuticos (106 e 1220 ambas de 2000)
outras oito leis estaduais e diversas portarias e programas foram criados para
regulamentaccedilatildeo do atendimento psiquiaacutetrico comunitaacuterio Merecem destaque o
programa ldquoDe volta para casardquo (BRASIL 2003) e a portaria 336GM que atribui aos
CAPS o papel central na psiquiatria comunitaacuteria brasileira (DELGADO et al 2007)
(BARROSO SILVA 2011 74)
Quanto agraves mudanccedilas na assistecircncia e na superaccedilatildeo do modelo manicomial desde a
aprovaccedilatildeo da lei cabe levantar alguns dados para fins de anaacutelise Destaca-se como um avanccedilo
significativo na RPB a inversatildeo da curva do financiamento do SUS para a sauacutede mental a
partir de 2006 O valor anteriormente destinado aos hospitais psiquiaacutetricos passa a ser investido
em igual proporccedilatildeo nos serviccedilos de natureza aberta e comunitaacuteria (Graacutefico 1) o que mostra um
28
fortalecimento da rede substitutiva e um empenho na efetiva transformaccedilatildeo do modelo de
assistecircncia de acordo com as novas diretrizes da RPB (BRASIL 2015)
Cabe mencionar que os gastos em Atenccedilatildeo Comunitaacuteria Territorial incluem natildeo
somente os CAPS mas todos os serviccedilos da rede substitutiva tais como Serviccedilos Residenciais
Terapecircuticos (SRT) Centros de Convivecircncia Oficinas de geraccedilatildeo de renda aleacutem de programas
de incentivo financeiro como o Programa Volta para Casa
Quanto agrave expansatildeo dos CAPS desde a aprovaccedilatildeo da Lei 10216 dados do Ministeacuterio da
Sauacutede (2015) apontam uma expansatildeo meacutedia significativa e contiacutenua em todo o territoacuterio
nacional Desde 2002 ateacute 2014 houve um aumento de aproximadamente 150 CAPS por ano
chegando ao total de 2209 serviccedilos em 2014 nas diferentes modalidades como pode ser visto
no Graacutefico 2 (BRASIL 2015)
29
Graacutefico 2 - Seacuterie histoacuterica de expansatildeo de CAPS (2002 a 2014)
Fonte Sauacutede Mental em Dados BRASIL 2015 Elaboraccedilatildeo proacutepria
Vale ressaltar entretanto que a modalidade de CAPS tipo III (com funcionamento 24hrs
e leitos de acolhimento noturno) natildeo acompanhou esse crescimento Como podemos observar
no Quadro 1 no ano de 2014 dos 2209 CAPS existentes no paiacutes apenas 154 eram do tipo III
Considerando que 65 satildeo CAPS ad III destinados aos usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas temos
somente 85 CAPS do tipo III especificamente com capacidade de oferecer acolhimento noturno
agrave crise psicoacutetica e outros transtornos mentais graves percentual correspondente a apenas 38
do total de CAPS no paiacutes (BRASIL 2015)
Quanto a distribuiccedilatildeo dos CAPS III em 2014 verifica-se uma concentraccedilatildeo da oferta
desses serviccedilos em Satildeo Paulo e Minas Gerais que contavam com 35 e 12 unidades
respectivamente Os estados que figuraram em seguida com o maior nuacutemero de CAPS III foram
Paraiacuteba e Pernambuco com quatro serviccedilos cada um Paraacute Bahia Cearaacute Maranhatildeo Sergipe
Paranaacute e Rio de Janeiro contavam com trecircs CAPS III cada um Natildeo possuiacuteam CAPS III os
estados de Acre Amapaacute Rondocircnia Tocantins Alagoas Espiacuterito Santo Mato Grosso e o
Distrito Federal (Quadro 1)
30
31
A baixa participaccedilatildeo dos CAPS III no total de CAPS bem como a ausecircncia deste serviccedilo
em diversos estados mostra que sua proposta natildeo foi assumida pela gestatildeo municipal na escala
observada para os outros tipos de serviccedilos (COSTA et al 2011) Vale ressaltar que a
implantaccedilatildeo dos CAPS III ficou aqueacutem do esperado pelo proacuteprio MS (BRASIL 2011) o que
impacta diretamente na capacidade da RAPS acolher agrave crise em uma proposta de cuidado
substitutiva ao Hospital Psiquiaacutetrico
Em relaccedilatildeo a quantidade de leitos disponiacuteveis para a atenccedilatildeo agrave crise verificamos que haacute
uma marcada preponderacircncia dos leitos em hospitais psiquiaacutetricos em detrimento dos leitos de
sauacutede mental em hospitais gerais e em CAPS III Chama atenccedilatildeo especialmente o fato de que
a quantidade de leitos disponiacuteveis em CAPS III quando comparada ao total de leitos no cenaacuterio
nacional e local eacute praticamente nula alcanccedilando uma meacutedia de 238 e 1 2 em 2014
respectivamente
No cenaacuterio nacional segundo o Ministeacuterio da Sauacutede haviam 25988 leitos em hospitais
psiquiaacutetricos em 2014 (BRASIL 2015) Nos hospitais gerais considerando que o MS faz
distinccedilatildeo entre ldquoleitos de sauacutede mentalrdquo e de ldquopsiquiatriardquo de acordo com o CNES em 2014
haviam 4620 leitos de psiquiatria em HG pediaacutetricos e maternidades destinados ao SUS
(BRASIL 2015) No mesmo ano constam 888 leitos de sauacutede mental em hospitais gerais
conforme podemos ver no Quadro 2 resultando em uma soma de 5508 leitos disponiacuteveis para
a sauacutede mental em hospitais gerais no Brasil
Considerando que de acordo com Portaria 336 que rege o funcionamento dos CAPS
cada CAPS III deve ter no maacuteximo 5 leitos (BRASIL 2002) e que em 2014 de acordo com o
Quadro 1 constavam 154 CAPS III espalhados pelo territoacuterio nacional tomando para fins de
estimativa a capacidade maacutexima de leitos por CAPS teriacuteamos aproximadamente 770 leitos nos
CAPS III destinados a retaguarda noturna nos casos de crise Esse percentual correspondente
a apenas 2 38 do total de leitos o que significa que aproximadamente 8055 dos leitos estatildeo
nos hospitais psiquiaacutetricos
No municiacutepio do Rio de Janeiro de acordo com o Quadro 3 dos 1572 leitos
psiquiaacutetricos existentes 1504 se localizam em hospitais psiquiaacutetricos representando 975
do total de leitos Apenas 31 (49 leitos) se localizam em hospitais gerais e 1 2 (19) nos
CAPS III (BRASIL 2015)
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Fonte Sauacutede Mental em Dados Brasil (2015)
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo
IIIndashSecretaria Municipal de Sauacutede do Rio de Janeirondashsetembro de 2015
FonteCNESMinisteacuterio da Sauacutede setembro de 2015
Localizaccedilatildeo
dos Leitos
Quantidade Porcentagem
Hospital
Psiquiaacutetrico
1504 957
Hospitais
Gerais
49 31
CAPS III 19 12
Total 1572 100
33
Desse modo embora tenhamos conquistado alguns avanccedilos significativos no processo
de reestruturaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede mental ao longo dos uacuteltimos 30 anos destaca-se a
reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do nuacutemero de
CAPS a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na atenccedilatildeo
comunitaacuteria e territorial etc na praacutetica os hospitais psiquiaacutetricos continuam ocupando um
lugar central na assistecircncia agrave crise constituindo-se muitas vezes na porta de entrada do usuaacuterio
ao sistema de sauacutede
Assim o cenaacuterio atual eacute marcado pela expansatildeo dos serviccedilos substitutivos mas tambeacutem
pela permanecircncia do hospitais psiquiaacutetricos e dispositivos tradicionais determinando a
coexistecircncia de dois modelos de cuidado opostos e mutuamente excludentes o tradicional
modelo asilar e o modelo substitutivo de modo que a RAPS no momento se caracteriza muito
mais por ser complementar do que substitutiva ao modelo asilar como era de se esperar
Logo os manicocircmios natildeo apenas resistem como insistem e se queremos
desinstitucionalizar e acolher a crise no territoacuterio eacute imprescindiacutevel perguntar ao que a
institucionalizaccedilatildeo de um paciente estaacute respondendo Qual eacute o problema que ela coloca Como
desmontar a soluccedilatildeo institucional (a internaccedilatildeo) e reconstruir o problema sobre outras bases
Importante dizer que construir novos arranjos para lidar com a crise natildeo se trata apenas
de aumentar a capacidade de resolutividade dos serviccedilos Eacute preciso ampliar o cuidado para
atender a crise de forma integral Isso significa fazer articulaccedilotildees com o que haacute de produccedilatildeo de
vida tambeacutem fora do espaccedilo dos serviccedilos isto eacute na vida na comunidade na cidade Persiste
desse modo o desafio de romper natildeo soacute com o manicocircmio mas com toda loacutegica e praacutetica de
segregaccedilatildeo da loucura
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20 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL
21 Reflexotildees sobre a crise e o cuidado
Segundo Moebus e Fernandes (sd) a palavra crise em sua origem grega (krisis ou
Kriacutenein) significa um estado no qual uma decisatildeo tem que ser tomada Esse termo era usado
pelos meacutedicos da antiguidade grega no intuito de se referir a um ponto na evoluccedilatildeo da doenccedila
do paciente no qual ele tanto poderia apresentar uma melhora em direccedilatildeo agrave cura ou piora em
direccedilatildeo agrave morte A ideia de crise portanto aproximava-se nesse contexto agrave noccedilatildeo de um
momento criacutetico decisivo cujo desfecho poderia ser tanto positivo quanto negativo
Jaacute a origem sacircnscrita da palavra eacute kri ou kir que significa ldquodesembaraccedilarrdquo ou purificar
Compartilhando desse mesmo sentido podemos destacar a palavra ldquocrisolrdquo que significa
ldquoelemento quiacutemico que purifica o ouro das gangas limpando-o dos elementos que se fixaram
no metal pelo seu processo vital ou histoacuterico e ao longo do tempo tomaram conta de seu cerne
a ponto de comprometerem sua substacircncia em sirdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN
200732) Crise nessa acepccedilatildeo carrega um teor de transformaccedilatildeo e purificaccedilatildeo em que a
substacircncia pode alcanccedilar sua verdadeira essecircncia
Destaca-se nessas significaccedilotildees originaacuterias da palavra elementos que trazem a ideia de
crise associada agrave um desequiliacutebrio transitoacuterio a um processo de mudanccedila transformaccedilatildeo com
possibilidade de evoluir de maneira positiva Eacute um momento de descontinuidade e perturbaccedilatildeo
da normalidade da vida em algo que eacute deixado para traacutes poreacutem ao mesmo tempo por isso
mesmo abre-se uma nova possibilidade de ser e estar no mundo
Outros autores de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica relacionam o conceito de crise ao conceito de
trauma que para Freud diz respeito ldquoa uma vivecircncia que traz um grande aumento da excitaccedilatildeo
da vida psiacutequica em um curto espaccedilo de tempo tendo por caracteriacutestica o fracasso de sua
liquidaccedilatildeo por meios habituaisrdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Nesse mesmo sentido segundo Laplanche e Pontalis (1986 768) ldquoo trauma consiste
em um acontecimento da crise que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se
acha o indiviacuteduo de lhe responder de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos
patogecircnicos que provoca na organizaccedilatildeo psiacutequicardquo
Haacute nessas definiccedilotildees algo da ordem de um excesso que rompe com o estado de
equiliacutebrio que o indiviacuteduo se encontra e transborda lanccedilando-o em direccedilatildeo a algo estranho e
desconhecido Essa ruptura eacute vivenciada pelo sujeito como algo assustador ao qual ele natildeo
35
encontra recursos psiacutequicos para responder ou mesmo para atribuir qualquer tipo de
significaccedilatildeo As soluccedilotildees que o sujeito costumeiramente encontrava para lidar com seu
sofrimento de alguma forma natildeo satildeo mais suficientes daiacute resultando entatildeo seu estado de
anguacutestia
Knobloch (1998) estudiosa de Ferenczi designa a crise como uma ldquoexperiecircncia limite
natildeo por ser uma experiecircncia que desafia o limite mas por extravasar o delimitado ldquoEacute uma
experiecircncia que traz um excesso excesso do que eacute insuportaacutevel e intoleraacutevel Ruptura em que
se redistribuem de uma maneira brutal as condiccedilotildees da realidade rdquo (apud FERIGATO
CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Para Birman (1983) a pessoa em crise encontra-se em um estado mental no qual ldquoa
anguacutestia provocada pelo que nos escapa eacute tatildeo importante que ficamos com o sentimento de que
a nossa proacutepria vida estaacute escapando uma experiecircncia de perda de seus sistemas de referecircncia
isto eacute a ameaccedila de perda da proacutepria identidaderdquo (apud FERIGATO CAMPOS BALLARIN
2007 35)
Se por um lado haacute a forccedila de um questionamento das convicccedilotildees mais fundamentais de
um indiviacuteduo por outro haacute tambeacutem uma abertura um espaccedilo para a criaccedilatildeo de algo novo de
outros arranjos e possibilidades de organizaccedilatildeo psiacutequica Embora essa vivecircncia seja marcada
por uma extrema sensaccedilatildeo de anguacutestia invasatildeo e sofrimento podemos apontar tambeacutem sua
potecircncia em produzir um desvio em caracterizar a saiacuteda de um lugar historicamente dado para
outro a ser construiacutedo exigindo outras ligaccedilotildees ateacute entatildeo inexistentes (FERIGATO CAMPOS
BALLARIN 2007)
Podemos ver a crise como um acontecimento extremo poreacutem muitas vezes necessaacuterio
na vida de um sujeito Eacute um momento que marca uma diferenccedila a partir da qual natildeo eacute mais
possiacutevel se viver do modo em que se estava vivendo anteriormente Eacute preciso reelaborar a
experiecircncia para habitar outro territoacuterio existencial
No entanto na histoacuteria da Psiquiatria especialmente na Psiquiatria claacutessica-asilar e
hospitalocecircntrica o sentido de crise perdeu sua dimensatildeo de renovaccedilatildeo O que rompe com a
organizaccedilatildeo e com o equiliacutebrio de um indiviacuteduo foi automaticamente entendido como algo
destrutivo que coloca o sujeito em um lugar de exclusatildeo social
A crise e toda a complexidade ligada ao sofrimento de um sujeito foi reduzida agrave
ldquoagudizaccedilatildeo da sintomatologia psiquiaacutetricardquo isto eacute a gama de sinais e sintomas (deliacuterios
alucinaccedilotildees agitaccedilatildeo psicomotora etc) caracteriacutesticos de uma determinada doenccedila Nesse
36
sentido o objetivo da intervenccedilatildeo dos psiquiatras era garantir a remissatildeo completa dos
sintomas em curto periacuteodo de tempo para que o sujeito pudesse voltar a seu estado de
ldquonormalidaderdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007) desconsiderando desse modo as
vivecircncias e situaccedilotildees que possivelmente contribuiacuteram para a eclosatildeo da situaccedilatildeo de crise em
que o sujeito se encontra
Nessa perspectiva a crise eacute entendida como um momento isolado da vida do sujeito
que nada tem a ver com sua histoacuteria com suas relaccedilotildees ou seu contexto soacutecio-afetivo Por isso
o cuidado possiacutevel tem como direccedilatildeo a estabilizaccedilatildeo dos sintomas isto eacute o silenciamento
daquilo que aparece como socialmente inapropriado ou inadequado na conduta do sujeito
Assim a medicaccedilatildeo a contenccedilatildeo fiacutesica e a internaccedilatildeo aparecem como os principais recursos
terapecircuticos aplacando a intensidade do momento fazendo um corte na experiecircncia de
sofrimento do sujeito para que apoacutes algum tempo ele volte naturalmente ao seu estado de
ldquonormalidaderdquo
Tecnologias de cuidado com base na classificaccedilatildeo de distuacuterbios e homogeneizaccedilatildeo de
grupos de problemas tambeacutem satildeo utilizadas com o intuito de preacute-estabelecer condutas e
respostas padratildeo para toda e qualquer situaccedilatildeo de crise que possa vir a emergir Segundo
Dell`Acqua e Mezzina (1991) o serviccedilo passa a responder agrave crise atraveacutes do seu proacuteprio
sintoma Assim toda a complexidade da existecircncia de sofrimento de um sujeito reduz-se a um
mero sinal caracteriacutestico da crise
Ao longo da histoacuteria da Psiquiatria a crise sempre foi vista como uma crise do paciente
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Pinel apostava em uma proposta terapecircutica de
confinamento da loucura em um ambiente controlado para que os alienistas pudessem
recuperar e ldquocorrigirrdquo os erros de pensamento que incidiam sobre as pessoas em situaccedilatildeo de
crise O tratamento natildeo visava agir diretamente nas questotildees sociais e afetivas que tinham
relaccedilatildeo com a experiecircncia de sofrimento vivenciada pelo sujeito mas pretendia isolar o sujeito
para entatildeo ldquoconsertaacute-lordquo em uma clara perspectiva de que o problema estava no sujeito
Com o advento da Psicanaacutelise vemos uma inversatildeo dessa loacutegica Para Freud o deliacuterio
eacute uma tentativa de cura que visa dar sentido a uma experiecircncia psiacutequica de sofrimento Sendo
assim ldquonatildeo haacute o que ser corrigido haacute o que ser escutado Haacute o que ser recuperado Haacute o que
ser construiacutedordquo (CORBISIER 1991 10)
Com Pinel aqueles que se encontravam desviados de sua verdadeira razatildeo deviam ser
conduzidos novamente agrave realidade atraveacutes da correccedilatildeo dos sentimentos comportamentos e
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pensamentos equivocados Com Freud o deliacuterio eacute entendido como uma forma do sujeito
construir um sentido para uma experiecircncia perturbadora (como por exemplo ouvir vozes ver
coisas que natildeo existem etc) que lhe causa sofrimento Assim o problema natildeo estaacute no sujeito
nem no deliacuterio nem nos sintomas mas no modo como ele consegue ou natildeo atribuir sentido ao
que vivencia
Atribuindo um sentido (ainda que delirante) a vivecircncias que satildeo perturbadoras o sujeito
pode ressignificar sua relaccedilatildeo com o mundo e encontrar modos menos angustiantes de estar na
vida Natildeo eacute necessaacuterio portanto ldquoadequarrdquo o pensamento de um sujeito agrave realidade O deliacuterio
pode ele mesmo ser um ponto de estabilizaccedilatildeo na medida que oferece alguma possibilidade de
inserir novamente o sujeito no campo do simboacutelico isto eacute de refazer as conexotildees perdidas na
situaccedilatildeo de crise Se a crise eacute marcada por uma ruptura a possibilidade de construccedilatildeo de um
deliacuterio pode ser justamente aquilo que reconecta o sujeito ao mundo que lhe cerca
Assim eacute preciso escutar as diferenccedilas e tratar do sofrimento que ela pode vir a ocasionar
sem no entanto aboli-las A Psicanaacutelise traz em sua aposta na escuta a possibilidade de
recuperar as diferenccedilas Atraveacutes da fala o sujeito vai contando sua histoacuteria e resgatando aquilo
que lhe pertence que lhe eacute peculiar e o que o constitui Essa experiecircncia permite estabelecer
um corte com as tentativas homogeneizantes da Psiquiatria Claacutessica de lidar com a loucura A
aposta na fala permite ao sujeito construir novos sentidos para o seu sofrimento e perceber que
a presenccedila de um outro que o escute pode produzir algum aliacutevio para sua dor
Embora possamos agrupar sinais e sintomas comuns a psicose (deliacuterio alucinaccedilatildeo
dificuldade em construir laccedilo social etc) cada sujeito vai imprimir em seu sintoma a sua marca
Assim cada loucura eacute singular pois cada um delira de um jeito cada um faz laccedilo social de um
jeito etc Na sintomatologia de um sujeito vamos encontrar elementos que pertencem a sua
cultura agrave sua histoacuteria pessoal e aos seus prazeres e desprazeres em torno da vida Logo as
intervenccedilotildees vatildeo ser diferentes a depender daquilo que o sujeito traz
Nesse ponto vale fazer uma distinccedilatildeo entre emergecircncia psiquiaacutetrica e urgecircncia
subjetiva A emergecircncia psiquiaacutetrica se refere a emergecircncia do sintoma Logo o alvo de sua
intervenccedilatildeo eacute o corpo bioloacutegico O caos de sentimentos e de pensamentos supostamente sem
sentido que emergem na crise psicoacutetica devem ser suprimidos atraveacutes da medicaccedilatildeo restituindo
o corpo ao estado que se encontrava anteriormente (BARRETO 2004)
No afatilde de se estabilizar o sujeito suprimindo seu sintoma natildeo haacute tempo para pensar o
que se coloca em questatildeo em uma crise psicoacutetica Natildeo haacute espaccedilo para direcionar um olhar para
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o sujeito que estaacute inserido naquela situaccedilatildeo emergencial e ver o que nela haacute de singular pois
ldquohaacute coisas para fazer O clinico seleciona coisas para fazer e simplifica a situaccedilatildeordquo (BARRETO
2004 2) a fim de devolver o sujeito ao seu estado de normalidade
A partir da referecircncia da Psicanaacutelise a urgecircncia subjetiva eacute entendida como a urgecircncia
do sujeito que estaacute em crise logo abrange o sintoma mas natildeo se reduz a ele Barreto (2004)
aponta que na crise psicoacutetica acontece uma ruptura com a cadeia de significantes de modo que
a manifestaccedilatildeo dos sintomas que se seguem ao momento de crise expressa uma
ldquoimpossibilidade de significar minimamente pela fala um gozo que natildeo encontra o significante
necessaacuterio para transformaacute-lordquo (BARRETO 2004 1)
A urgecircncia subjetiva se refere portanto ao que haacute de singular em cada crise no
sofrimento do sujeito que se constitui enquanto demanda para um outro Nesse sentido ela
aponta para a necessidade de uma intervenccedilatildeo que natildeo pode ser adiada dada a gravidade em
que se encontra o sujeito poreacutem eacute o avesso da contenccedilatildeo do sintoma pois se utiliza da urgecircncia
que o sujeito coloca para construir a partir dela alguma outra resposta possiacutevel a ser fabricada
no caso a caso
Assim reintroduzir a dimensatildeo subjetiva no sujeito eacute a proposta da Psicanaacutelise
(SELDES 2004)
A psiquiatria apresenta uma resposta para o sujeito atraveacutes de uma nomenclatura
diagnoacutestica oriunda dos manuais de classificaccedilatildeo no vieacutes de uma certeza do Outro o
grande outro da ciecircncia A psicanaacutelise aponta sua resposta ao sujeito quando diz um
sim a sua descoberta sim a sua soluccedilatildeo delirante sim a qualquer possibilidade em
que o sujeito possa se agarrar e retomar minimante seu discurso e o seu laccedilo social O
psicanalista natildeo deteacutem o saber o saber eacute do sujeito (SILVA J 2011 44)
Acolher a crise nessa perspectiva natildeo eacute abordar o paciente que chega aos serviccedilos de
emergecircncia em sauacutede mental procurando encontrar onde estaacute a integridade do sujeito dentro da
crise isto eacute natildeo se trata de fazer uma separaccedilatildeo entre o sujeito e sua loucura para entatildeo extrair-
lhe lsquoa peacuterola que seria a razatildeordquo2 mas sim ouvir o que ali dentro da loucura se coloca enquanto
sujeito
Nesse sentido quando acolhemos um usuaacuterio em crise o que a experiecircncia de crise de
um sujeito pode colocar de questatildeo sobre sua histoacuteria sua vida seu cotidiano Nossa
2 Referecircncia ao livro O Alienista de Machado de Assis especificamente ao seguinte trecho ldquosuponho o espiacuterito
humano uma vasta concha o meu fim Sr Soares eacute ver se posso extrair a peacuterola que eacute a razatildeo por outros
termos demarquemos definitivamente os limites da razatildeo e da loucura A razatildeo eacute o perfeito equiliacutebrio de todas
as faculdades fora daiacute insacircnia insacircnia e soacute insacircniardquo (ASSIS 1882 261)
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intervenccedilatildeo tem contribuiacutedo para oferecer novas possibilidades de vida a esses sujeitos ou
estamos somente silenciando sintomas
Entendemos que o modo como os profissionais compreendem a crise influencia
significativamente a produccedilatildeo de cuidado Concepccedilotildees de crise centradas nos aspectos
puramente sintomaacuteticos desencadearatildeo intervenccedilotildees no sentido de suprimir o mais
rapidamente possiacutevel os sintomas Ao passo que concepccedilotildees de crise mais abrangentes tem mais
possibilidade de remeter ao sujeito o que essa crise coloca como questatildeo na sua vida e quais
satildeo as possibilidades outras de manejo para esses conflitos Logo uma concepccedilatildeo ampla de
crise (que considere os aspectos sociais afetivos e subjetivos) pode oferecer ao sujeito a
possibilidade de se recolocar em relaccedilatildeo ao seu sintoma e encontrar outros caminhos para lidar
com seu sofrimento
22 O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS
No capiacutetulo anterior vimos como diferentes formas de compreender a loucura ao longo
da histoacuteria produziram impactos nos modos de intervir e lidar com a crise Intervenccedilotildees
baseadas na autoridade no poder na disciplina e no confinamento remetem agrave loucura enquanto
iacutendice de uma anormalidade e falam de uma concepccedilatildeo de ldquocuidadordquo que visa ldquoconsertarrdquo os
sujeitos atraveacutes da correccedilatildeo de seus comportamentos e sentimentos supostamente inadequados
Por outro lado intervenccedilotildees com base no acolhimento na construccedilatildeo de sentidos e na
contextualizaccedilatildeo dos conflitos do sujeito falam de uma concepccedilatildeo de crise que valoriza o
sujeito e sua histoacuteria e o entende como parte de um mundo que o afeta e o transforma
Assim se olhar para as praacuteticas de cuidado pode lanccedilar luz sobre as concepccedilotildees de
loucura presentes na sauacutede mental quando olhamos para o modo como a rede se organiza e se
estrutura para acolher a crise sobre que concepccedilotildees de crise ela nos fala Que sentidos de crise
estatildeo presentes no modo como o SUS foi idealizado e preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas de
sauacutede E que sentidos de crise emergem quando observamos o modo como os usuaacuterios e
trabalhadores efetivamente usam e vivenciam o SUS em cotidiano Como as poliacuteticas de sauacutede
pensam a crise E que questotildees a crise traz agraves poliacuteticas de sauacutede Quais satildeo seus
distanciamentos e aproximaccedilotildees
Tradicionalmente muitos autores tecircm se utilizado da imagem de uma piracircmide para
ldquorepresentar o modelo tecno-assistencial que gostariacuteamos de construir com a implantaccedilatildeo plena
do SUSrdquo (CECIacuteLIO 1997470) Na ampla base da piracircmide estariam dispostos os serviccedilos de
baixa complexidade como as cliacutenicas da famiacutelia que oferecem atendimento para populaccedilatildeo de
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sua aacuterea de abrangecircncia dentro das atribuiccedilotildees estabelecidas para o niacutevel de atenccedilatildeo primaacuteria
constituindo-se na porta de entrada privilegiada para os niacuteveis de maior complexidade do
sistema de sauacutede Na parte intermediaacuteria estariam localizados os serviccedilos da atenccedilatildeo
secundaacuteria que satildeo ldquobasicamente os serviccedilos ambulatoriais com suas especialidades cliacutenicas e
ciruacutergicas o conjunto de serviccedilos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico alguns serviccedilos de
atendimento a urgecircncia e emergecircncia e os hospitais gerais normalmente pensados como sendo
hospitais distritaisrdquo (CECIacuteLIO 1997 470) No topo da piracircmide encontramos por fim os
serviccedilos mais complexos como os grandes hospitais de caraacuteter regional estadual ou ateacute mesmo
nacional
O objetivo deste modelo eacute estabelecer um fluxo ordenado de pacientes atraveacutes de
mecanismos de referecircncia e contra referecircncia que regulam o acesso entre os niacuteveis de atenccedilatildeo
em sauacutede tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima na piracircmide Dessa forma para
cada necessidade de sauacutede a pessoa eacute encaminhada para o niacutevel de complexidade adequado
evitando sobrecarregar os hospitais e ambulatoacuterios com demandas de baixa complexidade e ao
mesmo tempo trabalhando na atenccedilatildeo baacutesica com estrateacutegias de prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da
sauacutede evitando o agravo de doenccedilas que se natildeo tratadas podem demandar intervenccedilotildees
meacutedicas mais complexas
No entanto no dia a dia do SUS a realidade tem se mostrado bem distante desse modelo
idealizado Como aponta Ceciacutelio (1997 471) ldquoa piracircmide a despeito da justeza dos princiacutepios
que representa tem sido muito mais um desejo dos teacutecnicos e gerentes do sistema do que uma
realidade com a qual a populaccedilatildeo usuaacuteria possa contarrdquo
Na praacutetica a populaccedilatildeo burla o tempo inteiro os fluxos da regulaccedilatildeo formal Buscam
ajuda onde acreditam que vatildeo encontraacute-la tentando acessar o sistema por onde eacute mais faacutecil ou
muitas vezes por onde eacute mais possiacutevel Na tentativa de resolver seus problemas percorrem
vaacuterias unidades de sauacutede diferentes ateacute conseguirem o que desejam um remeacutedio uma consulta
um encaminhamento uma indicaccedilatildeo de internaccedilatildeo Natildeo raro falsificam o comprovante de
residecircncia ou usam o de outra pessoa visando conseguir atendimento em uma unidade mais
proacutexima ou mais bem equipada Do mesmo modo questionam o tratamento chegando a ter em
alguns casos dois meacutedicos e dois tratamentos diferentes para uma mesma questatildeo de sauacutede sem
que um meacutedico saiba da existecircncia do outro
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Haacute quem pense que todo o problema satildeo os usuaacuterios que ldquobagunccedilamrdquo o sistema natildeo
seguem os fluxos estabelecidos pois natildeo conhecem o funcionamento do sistema e buscam
atendimento em locais inapropriados por ignoracircncia ou maacute-feacute
Ceciacutelio (1997) expotildee esse problema ao trazer a tensatildeo existente entre o que denomina o
ldquousuaacuterio-fabricadordquo e o ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo Segundo o autor o usuaacuterio-fabricado seria o
ldquousuaacuterio idealrdquo normatizado pelas estrateacutegias da Medicina Preventiva que atraveacutes de uma
perspectiva individualista de ldquohaacutebitos saudaacuteveisrdquo pretende ldquofabricarrdquo sujeitos esclarecidos e
por isso menos dependentes do sistema de sauacutede Trata-se entatildeo de produzir um usuaacuterio
disciplinado educado que segue as orientaccedilotildees meacutedicas e leva uma vida saudaacutevel e regrada
O ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo por sua vez eacute aquele que natildeo necessariamente segue as
indicaccedilotildees meacutedicas mas batalha por sua conta e risco para conseguir o acesso agrave tecnologia de
cuidado que supotildee que precisa no dispositivo de sauacutede que julga ser o mais adequado tendo
como perspectiva sua experiecircncia com a doenccedila suas crenccedilas e desejos pessoais Assim o
tempo todo ele transgride agraves regras quebra os fluxos testa e contesta o sistema produzindo agrave
sua maneira seu caminho dentro do SUS Como destaca Ceciacutelio (1997) ldquoo usuaacuterio-fabricador
com sua accedilatildeo concreta e protagonismo com suas buscas e com seus ousados experimentos de
tentativas e erros vai produzindo circuitos opccedilotildees caminhos que soacute em parte correspondem agrave
normalizaccedilatildeo oficial do sistemardquo (ibidem 288)
Contra a perspectiva de um sistema de sauacutede ideal e racionalizado o usuaacuterio-fabricador
eacute aquele que usa o SUS real e por isso encontra suas falhas e furos propondo soluccedilotildees agrave sua
maneira atraveacutes de sua experiecircncia no sistema ldquoDaiacute a ser uma prepotecircncia tecnocraacutetica dizer
que o povatildeo eacute deseducado que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de
sauacutede As pessoas acessam o sistema por onde eacute mais faacutecil ou possiacutevelrdquo (CECILIO1997 472)
E porque natildeo incluir esse saber leigo do usuaacuterio nas estrateacutegias de planejamento e
organizaccedilatildeo do cuidado em sauacutede Por que natildeo ouvir o que esses usuaacuterios tecircm a nos dizer e
incorporaacute-los como parceiros na construccedilatildeo de um SUS possiacutevel natildeo aquele idealizado mas
um que faccedila mais sentido na perspectiva de quem de fato o utiliza
Precisamos considerar que o SUS eacute feito de pessoais reais usuaacuterios trabalhadores
meacutedicos enfermeiros psicoacutelogos que ao se moverem de acordo com suas eacuteticas profissionais
seus saberes experiecircncias esperanccedilas e desejos imprimem novos significados agrave um sistema
que estaacute em permanente construccedilatildeo Esses atores ldquoproduzem inventam resistem e configuram
um cuidado que afinal nunca eacute como noacutes (gestores sanitaristas pensadores formuladores)
42
teimamos em querer normalizar formatar produzir agrave nossa imagem e semelhanccedilardquo (CECIacuteLIO
2012287)
Assim como os usuaacuterios os trabalhadores de sauacutede no encontro com as necessidades
reais de seus pacientes e com as barreiras de acesso do sistema tambeacutem burlam a regulaccedilatildeo
formal muitas vezes se utilizando de seus contatos pessoais relaccedilotildees de conhecimento e
confianccedila para produzir fluxos que possam garantir a continuidade do cuidado oferecido
especialmente nos casos difiacuteceis em que a complexidade dos pacientes natildeo se encaixa na
caixinha de cuidados formalmente oferecida pelo SUS
Quando falamos de um usuaacuterio em crise precisamos pensar que a caixinha de cuidados
padratildeo frequentemente natildeo vai dar conta da complexidade colocada em uma crise psicoacutetica
Muitas vezes a razatildeo pela qual um usuaacuterio vai parar na emergecircncia ou no hospital psiquiaacutetrico
eacute justamente porque os recursos que ele dispotildee para lidar com seu sofrimento natildeo foram mais
capazes de sustentar uma estabilizaccedilatildeo Daiacute a necessidade de podermos pensar outros recursos
outras regulaccedilotildees outros dispositivos
Um usuaacuterio em crise eacute por excelecircncia um usuaacuterio-fabricador As soluccedilotildees que ele vai
engendrar para seu sofrimento vatildeo exceder em muito os limites de um sistema de sauacutede
organizado sob a figura de uma piracircmide em niacuteveis crescentes de complexidade Quando esse
usuaacuterio consegue pedir ajuda ele o faraacute sob a sua loacutegica a partir da suas expectativas e
singularidades Ele pode ir na cliacutenica da famiacutelia no hospital na emergecircncia na poliacutecia na casa
da vizinha na Igreja na escola onde achar possiacutevel obter a ajuda que precisa ainda que suas
escolhas sejam um tanto inusitadas Do mesmo modo quando um usuaacuterio entra em crise isso
tambeacutem pode acontecer em qualquer ponto do sistema e noacutes enquanto profissionais precisamos
ser capazes de oferecer algum suporte a esse sujeito onde ele estiver e na hora em que precisa
da ajuda
A crise natildeo espera o nosso tempo o tempo do encaminhamento do acolhimento-
triagem da discussatildeo de caso do contato com o profissional de referecircncia ela acontece quando
se menos espera e por isso eacute importante que natildeo soacute o dispositivo de referecircncia esteja preparado
para acolhecirc-la mas que todas as portas de entrada do sistema estejam qualificadas enquanto
espaccedilos privilegiados para o acolhimento e reconhecimento das necessidades dos usuaacuterios
Eacute nesse sentido que Ceciacutelio (1997) propotildee uma mudanccedila na imagem de representaccedilatildeo
do modelo de sauacutede da piracircmide ao ciacuterculo Pensar o sistema de sauacutede enquanto ciacuterculo natildeo
significa abandonar os ideais da Reforma Sanitaacuteria no que diz respeito a um comprometimento
43
com a equidade o atendimento universal integral e de boa qualidade mas ao contraacuterio tomar
esses princiacutepios na sua radicalidade e pensaacute-los sob a luz das necessidades reais das pessoas e
do uso que fazem do sistema O formato do ciacuterculo reforccedila um valor essencial do SUS a
integralidade Apostar na imagem do ciacuterculo significa pensar o sistema de sauacutede menos
enquanto um fluxo hierarquizado de pessoas e mais enquanto uma rede em que todos os pontos
satildeo uma porta de acesso qualificada e possiacutevel para o usuaacuterio
Segundo Ceciacutelio (1997 475) ldquo O ciacuterculo se associa com a ideacuteia de movimento de
muacuteltiplas alternativas de entrada e saiacuteda Ele natildeo hierarquiza Abre possibilidadesrdquo Trata-se
de relativizar a hierarquizaccedilatildeo dos serviccedilos abrindo espaccedilo para que o acolhimento possa se
dar onde o paciente solicita ajuda Natildeo estamos negando com isso a especificidade e a missatildeo
diferenciada de cada serviccedilo mas tentando produzir uma rede menos fragmentada e mais
proacutexima da realidade dos usuaacuterios
A loacutegica horizontal dos vaacuterios serviccedilos de sauacutede colocados na superfiacutecie plana do
ciacuterculo eacute mais coerente com a ideacuteia de que todo e qualquer serviccedilo de sauacutede eacute espaccedilo
de alta densidade tecnoloacutegica que deve ser colocada a serviccedilo da vida dos cidadatildeos
Por esta concepccedilatildeo o que importa mais eacute a garantia de acesso ao serviccedilo adequado agrave
tecnologia adequada no momento apropriado e como responsabilidade intransferiacutevel
do sistema de sauacutede Trabalhando assim o centro das nossas preocupaccedilotildees eacute o usuaacuterio
e natildeo a construccedilatildeo de modelos assistenciais aprioriacutesticos aparentemente capazes de
introduzir uma racionalidade que se supotildee ser a melhor para as pessoas
(CECIacuteLIO1997 477)
Eacute importante ressaltar que defender o sistema de sauacutede enquanto um ciacuterculo natildeo se
limita agrave uma mera inflexatildeo teoacuterica mas a possibilidade de garantir que a integralidade seja uma
missatildeo colocada para todos os serviccedilos de sauacutede e natildeo para cada paciente individualmente em
sua peregrinaccedilatildeo pelos dispositivos de sauacutede Nesse sentido trata-se de apostar na continuidade
da linha de cuidado trabalhando para que o paciente tenha acesso agrave assistecircncia por onde ele
chega do modo como chega
Isso significa deslocar um pouco a ideia de referecircncia Ainda que o CAPS seja o serviccedilo
com maior possibilidade e capacidade de atender uma crise psicoacutetica todos os serviccedilos devem
ser capazes de oferecer algum acolhimento agrave crise Se em uma crise psicoacutetica o que estaacute
colocado eacute a fragmentaccedilatildeo do sujeito natildeo eacute possiacutevel que ele consiga se reestruturar em um
sistema igualmente fragmentado
No encontro do usuaacuterio com a equipe o que deve nortear a produccedilatildeo do cuidado eacute a
escuta das necessidades de sauacutede da pessoa que busca o serviccedilo Ainda que o serviccedilo em questatildeo
seja apenas um serviccedilo de passagem na linha de cuidado do usuaacuterio ter o compromisso e a
preocupaccedilatildeo de se fazer sempre a melhor escuta e a melhor devolutiva possiacutevel pode fazer toda
44
a diferenccedila no acolhimento de um sujeito e na continuidade de sua linha de cuidado O essencial
nesse contexto eacute que o encaminhamento natildeo seja meramente uma transferecircncia de
responsabilidade sem que nada tenha sido construiacutedo no caminho
Escutar nesse sentido natildeo se iguala a atender todas as possiacuteveis demandas que traz o
usuaacuterio A demanda eacute o pedido expliacutecito mas as necessidades podem ser bem outras A
demanda pode ser por internaccedilatildeo pela troca de medicamento pela troca do profissional de
referecircncia etc Pode ir dos pedidos mais pragmaacuteticos aos mais delirantes mas nem sempre o
que o usuaacuterio formula enquanto demanda eacute o que ele quer nos pedir
Eacute preciso estar atento tambeacutem para o que pode estar incluiacutedo no seu pedido elementos
como o viacutenculo com a equipe suas relaccedilotildees pessoais o modo como lida com seus sentimentos
sua condiccedilatildeo de vida suas expectativas e sonhos etc Cabe a equipe conhecer o usuaacuterio e ter a
sensibilidade de buscar compreender o que estaacute para aleacutem do pedido expliacutecito ajudando-o a
construir uma saiacuteda possiacutevel para seu sofrimento
Assim a integralidade da atenccedilatildeo no espaccedilo singular de cada serviccedilo de sauacutede
poderia ser definida como o esforccedilo da equipe de sauacutede de traduzir e atender da
melhor forma possiacutevel tais necessidades sempre complexas mas principalmente
tendo que ser captadas em sua expressatildeo individual () Cada atendimento de cada
profissional deve estar compromissado com a maior integralidade possiacutevel sempre
mas tambeacutem ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida soacute seraacute
alcanccedilada como fruto do trabalho solidaacuterio da equipe de sauacutede com seus muacuteltiplos
saberes e praacuteticas Maior integralidade possiacutevel na abordagem de cada profissional
maior integralidade possiacutevel como fruto de um trabalho multiprofissional (CECIacuteLIO
2009 120 121)
A integralidade nesse sentido eacute mais do que cada serviccedilo fazendo sua parte eacute mais do
que o modelo da piracircmide pode oferecer A imagem da piracircmide faz pensar os serviccedilos mais
complexos como lugares de ldquofinalizaccedilatildeo do cuidadordquo da ldquouacuteltima palavrardquo na cliacutenica do sujeito
de ldquoatendimento de demandas pontuais superespecializadas especiacuteficas e por isso mesmo
descompromissados com a integralidaderdquo (CECIacuteLIO 2009 122) Assim escuta qualificada
natildeo eacute missatildeo colocada somente para os ambulatoacuterios e nem o acolhimento agrave crise eacute uma
responsabilidade somente do CAPS Conforme Ceciacutelio (2009 123) ldquo a integralidade natildeo se
realiza nunca em um serviccedilo integralidade eacute objetivo de rederdquo Desse modo todos os serviccedilos
precisam se articular no sentido de dar seguimento ao cuidado de um sujeito em crise e natildeo
apenas o serviccedilo de referecircncia ou a atenccedilatildeo baacutesica que tem sido apontada como o lugar
privilegiado na coordenaccedilatildeo do cuidado
Haacute que se destacar que uma rede soacute seraacute efetivamente integral se for conectada com os
outros dispositivos do territoacuterio onde a vida acontece espaccedilos de cultura e lazer instituiccedilotildees
45
fora do setor sauacutede (ligadas a educaccedilatildeo justiccedila assistecircncia social e outras) associaccedilotildees de
bairros e movimentos organizados instituiccedilotildees religiosas etc Cada territoacuterio carrega em si
uma histoacuteria de ocupaccedilatildeo dos espaccedilos seus usos e costumes sua influecircncia econocircmica e
poliacutetica seu papel social etc Assim pensar a organizaccedilatildeo de um CAPS em uma cidade do
interior eacute diferente de pensar a organizaccedilatildeo desse mesmo serviccedilo em uma metroacutepole ou em uma
periferia A divisatildeo entre bairros pobres e ricos as regiotildees de comeacutercio de meretriacutecio
comunidades regiotildees atravessadas pelo poder do traacutefico e das miliacutecias influem diretamente
nos modos de vida das pessoas
Sendo assim ldquoorganizar um serviccedilo substitutivo que opere segundo a loacutegica do territoacuterio
eacute olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugarrdquo (YASUI LIMA 2010597) Eacute considerar o
contexto de vida das pessoas e suas necessidades de sauacutede Eacute entender que a organizaccedilatildeo da
rede seu acesso e suas ofertas de cuidado precisam fazer sentido na vida daquele que
experiencia o SUS e que enfrenta no seu cotidiano suas barreiras limites e insuficiecircncias
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3 METODOLOGIA
Segundo Turato (2003) meacutetodo eacute um ldquoconjunto de regras que elegemos num
determinado contexto para se obter dados que nos auxiliem nas explicaccedilotildees ou compreensotildees
dos aspectos ou fenocircmenos constituintes do mundordquo (ibidem 153) Na investigaccedilatildeo cientiacutefica
identificamos comumente dois tipos de metodologia de pesquisa a do tipo quantitativo e do
tipo qualitativo sendo tambeacutem possiacutevel uma mistura desses dois tipos denominada pesquisa
quali-quanti
Estudos quantitativos satildeo mais indicados para pesquisas interessadas em trabalhar com
dados e variaacuteveis de forma objetiva isto eacute quantificaacutevel Jaacute a pesquisa qualitativa permite uma
reflexatildeo mais profunda de fenocircmenos natildeo quantificaacuteveis sendo por isso mais indicada para
tratar de questotildees de ordem subjetiva cultural ou social
Segundo Minayo a pesquisa qualitativa eacute aquela que ldquotrabalha com o universo de
significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo
mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave
operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveisrdquo (2014 22) sendo portanto mais adequada para estudar
fenocircmenos da existecircncia humana que natildeo podem ser quantificados como eacute o caso do objeto
dessa pesquisa
Visando atingir o objetivo desse estudo ndash discutir e analisar os avanccedilos e desafios na
organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo de cuidados aos pacientes em situaccedilatildeo de crise em sauacutede mental-
realizaremos um estudo de revisatildeo bibliograacutefica integrativa de artigos cientiacuteficos da literatura
nacional
Dentre os meacutetodos de revisatildeo a revisatildeo integrativa torna-se especialmente interessante
para essa pesquisa pois permite combinar estudos de literatura teoacuterica e empiacuterica de modo que
tenhamos uma visatildeo mais ampla e concreta dos impasses que se colocam no atendimento agrave
crise no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede mental
Assim foi feita uma busca preliminar na Biblioteca Virtual em Sauacutede (BVS) e no Scielo
no mecircs de Janeiro de 2019 a partir dos seguintes descritores e combinaccedilotildees
1) ldquosauacutede mental and crise and cuidadordquo
2) ldquosauacutede mental and crise and serviccedilos de sauacutederdquo
47
Optou-se por trabalhar com textos em formato de artigos cientiacuteficos Foram
considerados os seguintes criteacuterios de exclusatildeo artigos duplicados texto completo
indisponiacutevel natildeo se aplicam a aacuterea do estudo entendimento de crise relacionado ao
acontecimento de eventos criacuteticos como cataacutestrofes ambientais incecircndios trageacutedias em massa
(queda de aviatildeo desabamentos) etc sofrimento psiacutequico em decorrecircncia de doenccedila orgacircnica
de maior gravidade (exemplo cacircncer HIV etc) toda a sorte de assuntos relacionados aos
familiares de pessoas com transtorno mental estudos que natildeo abordam o contexto brasileiro ou
que natildeo localizam a reflexatildeo das praacuteticas de cuidado no acircmbito do SUS e da Reforma
Psiquiaacutetrica questotildees especiacuteficas do cuidado de uma categoria profissional em particular
(enfermeiros meacutedicos etc) estudos de vieacutes histoacuterico epidemioloacutegico normativo ou educativo
(guias cartilhas documentos oficiais etc)
Na BVS na primeira busca encontramos 89 resultados Foi aplicado o filtro de idioma
portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 85 referecircncias disponiacuteveis Em seguida foram excluiacutedas
21 referecircncias duplicadas 2 em formato de dissertaccedilatildeo e outras 43 com a aplicaccedilatildeo dos criteacuterios
de exclusatildeo Apoacutes a leitura dos resumos foram excluiacutedas mais 9 referecircncias segundo os
criteacuterios de exclusatildeo restando um total de 10 artigos
Na segunda busca ainda na BVS encontramos 2253 resultados Foram aplicados os
seguintes filtros idioma portuguecircs e texto completo disponiacutevel gerando uma reduccedilatildeo para 123
referecircncias Apoacutes o cruzamento com a primeira pesquisa excluiacutemos mais 15 referecircncias
Eliminamos as referecircncias duplicadas e aplicamos os criteacuterios de exclusatildeo restando um total
de 28 referecircncias Excluiacutemos mais 3 referecircncias que natildeo se encaixavam no formato de texto
escolhido para anaacutelise restando um total de 25 artigos Apoacutes a leitura dos resumos foram
excluiacutedas mais 14 referecircncias segundo os criteacuterios de exclusatildeo sobrando um total de 11 artigos
Nas buscas do Scielo natildeo foi possiacutevel encontrar nenhum resultado que pudesse ser
aproveitado para a nossa pesquisa Na primeira busca encontramos 48 referecircncias Foi aplicado
filtro de idioma portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 44 referecircncias Apoacutes o entrecruzamento
dos resultados com o levantamento na BVS excluiacutemos 14 referecircncias Em seguida excluiacutemos
mais 14 resultados repetidos Os 16 artigos restantes tambeacutem foram eliminados por natildeo se
aplicarem a aacuterea do nosso estudo ou natildeo respeitarem os criteacuterios para inclusatildeo
Na segunda busca encontramos 28 resultados Apoacutes a aplicaccedilatildeo do filtro de idioma
portuguecircs restaram 26 referecircncias das quais 9 estavam duplicadas e 12 foram eliminadas por
cruzamento As 5 referecircncias restantes tambeacutem foram eliminadas por natildeo se aplicarem a nossa
48
aacuterea de estudo ou natildeo se encaixarem nos criteacuterios para inclusatildeo Trabalharemos desse modo
somente com os resultados encontrados na busca da BVS que somaram um total de 21 artigos
A anaacutelise das questotildees suscitadas a partir desta revisatildeo teraacute abordagem qualitativa e se
organizaraacute em torno de trecircs eixos temaacuteticos a saber sentidos da crise desafios e
potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidados
Segundo Minayo
Fazer uma anaacutelise temaacutetica consiste em descobrir os nuacutecleos de sentido que compotildeem
uma comunicaccedilatildeo cuja presenccedila ou frequecircncia signifiquem alguma coisa para o
objeto analiacutetico visado Para uma anaacutelise de significados a presenccedila de determinados
temas denota estruturas de relevacircnciavalores de referecircncia e modelos de
comportamento presentes ou subjacentes no discursordquo (MINAYO 2014 316)
Assim esperamos que essa anaacutelise possa lanccedilar luz sobre as questotildees mais relevantes
levantadas na literatura em torno do acolhimento agrave crise apontando os principais desafios que
ela impotildee na construccedilatildeo e sustentaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica no cotidiano das praacuteticas e dos
serviccedilos de sauacutede Os eixos temaacuteticos seratildeo correlacionados com o referencial teoacuterico dessa
pesquisa visando alcanccedilar uma anaacutelise mais profunda e feacutertil dos temas em questatildeo
49
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA
Conforme foi explicitado no capiacutetulo de metodologia a discussatildeo e reflexatildeo dos artigos
alvos dessa revisatildeo se organizaraacute a partir de trecircs categorias temaacuteticas sentidos de crise desafios
e potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidado
Nosso caminho para a formulaccedilatildeo dessas categorias comeccedilou a partir dos descritores
usados nas buscas das plataformas Da leitura dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise
and cuidado and sauacutede mentalrdquo emergiram a maior parte das questotildees relacionadas aos modos
de compreender e significar a crise em sauacutede mental suas repercussotildees sobre as praacuteticas de
cuidado bem como os desafios e estrateacutegias encontrados pelos profissionais no manejo da crise
em seu cotidiano de trabalho Assim desdobramos esse eixo em duas outras categorias
ldquosentidos de criserdquo e ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo
Dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise and sauacutede mental and serviccedilos de
sauacutederdquo emergiram predominantemente as questotildees relacionadas agrave forma como os serviccedilos tecircm
se organizado para receber e acolher as situaccedilotildees de crise Desse eixo fazem parte natildeo soacute as
questotildees relacionadas ao papel de cada serviccedilo e sua organizaccedilatildeo interna para lidar com as
situaccedilotildees de crise como tambeacutem sua possibilidade de articulaccedilatildeo com os outros serviccedilos da
RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e dispositivos do territoacuterio na construccedilatildeo de uma
resposta integral e complexa agraves demandas da crise Esses resultados estatildeo concentrados no eixo
ldquoorganizaccedilatildeo da rede de cuidadosrdquo
41 OS SENTIDOS DA CRISE
Dos muitos sentidos e significados em torno da crise destacamos trecircs que pela forccedila e
intensidade com que aparecem nos artigos atraveacutes das falas dos profissionais das narrativas
dos usuaacuterios e familiares e das situaccedilotildees que emergiram no campo de pesquisa desdobraram-
se em subcategorias na nossa anaacutelise a crise enquanto ameaccedila social a crise enquanto perda e
isolamento e a crise enquanto apropriaccedilatildeo da experiecircncia da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidos
O sentido negativo da crise enquanto ldquoameaccedila socialrdquo aparece sobretudo na fala dos
profissionais e familiares remetendo a figura do louco como ser fora de si agressivo sem
controle apresentado risco para si e para os outros agrave sua volta Os estudos de Pereira Saacute e
Miranda (2017) Milhomens e Martin (2014) Lima (2012) Garcia e Costa (2014) Brito
Bonfada e Guimaratildees (2015) abordam essa realidade Nessas narrativas observamos que a
complexidade do fenocircmeno da loucura eacute reduzida a manifestaccedilatildeo dos sintomas agressivos e
50
violentos operando um recorte muito simploacuterio da vivecircncia da crise e do contexto em que ela
ocorre Vemos como a representaccedilatildeo desse imaginaacuterio fortalece e justifica mecanismos de
controle e vigilacircncia que remontam agrave Psiquiatria Tradicional mesmo nos serviccedilos substitutivos
A crise enquanto ldquoexperiecircncia de perda e isolamentordquo foi um sentido que apareceu
especialmente nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da
primeira crise como nas pesquisas de Pereira Saacute Miranda (2017) e Milhomens Martin (2014)
A peculiaridade dos sintomas que emergem e o estigma social relacionado a eles parecem
reforccedilar nesse primeiro momento um sentido da crise enquanto perda da normalidade e
consequentemente enquanto iacutendice de uma doenccedila ou anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida Por outro lado encontramos esse sentido tambeacutem em estudos
com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees resultando em uma perda dos viacutenculos
afetivos sociais e laborativos A pesquisa de Fiorati e Saeki (2008) com homens de 30 a 50
anos em uma unidade de internaccedilatildeo em Satildeo Paulo aponta para esse resultado
A crise enquanto ldquoapropriaccedilatildeo da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidosrdquo expressa a
construccedilatildeo de um outro sentido de crise que se opotildee aos dois uacuteltimos e abre possibilidades de
vecirc-la em seu vieacutes positivo Nessa categoria destacamos os momentos em que foi possiacutevel
deslocar-se da compreensatildeo da crise como um evento limitante ou signo de anormalidade e
entendecirc-la como um evento analisador que diz do sujeito e de sua histoacuteria Vale ressaltar que o
diaacutelogo com as pesquisas de Milhomens e Martin (2014) e Costa (2007) apontaram elementos
e reflexotildees importantes na construccedilatildeo desse sentido
411 CRISE COMO AMEACcedilA SOCIAL PERICULOSIDADE E RISCO
A loucura entendida como uma ameaccedila social remonta aos primoacuterdios da Psiquiatria
Tradicional e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo e disciplinarizaccedilatildeo do seacuteculo XVIII e XIX quando
se inicia o processo de transformaccedilatildeo da loucura em patologia mental
Segundo Jardim (2007178) ldquoo conceito do risco se coloca aqui a partir do momento
que a crise eacute o prenuacutencio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doenccedila mental
(instalada ou futura)rdquo marcada por comportamentos hostis e intimidadores como mudanccedilas
bruscas de humor pensamentos persecutoacuterios e agressividade dirigida agrave si mesmo ou agrave outros
Na revisatildeo da literatura as falas dos familiares profissionais e dos pacientes reforccedilaram
esse sentido caracterizando a vivecircncia da crise enquanto momento de desorganizaccedilatildeo em que
emergem comportamentos associados agrave violecircncia ameaccedila e medo
51
Luciana ldquogritava dentro de casa quebrava tudo jogou o computador novo no chatildeo
que era o xodoacute delardquo Na terceira crise a adolescente natildeo se reconheceria como matildee
da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho ficando com o
corpo debilitado (PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Minha matildee vinha falar comigo e eu agredia ela Ela falava lsquoEu sou sua matildeersquo E eu
falava que natildeo era PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Eu agredia meus pais quase todo o dia era discussatildeo em casa era um inferno aqui
quase todo dia era discussatildeo porque eu natildeo trabalhava eu natildeo fazia curso eu natildeo saia
de casa [] O preacutedio chegou a denunciar ateacute porque era briga constante (R homem
20 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1111)
Para os nossos entrevistados as pessoas que entram em crise em alguns
momentossituaccedilotildeestornam-se ldquoperigosas violentas agressivas brabas despertam
medo incomodam os outros quebram e destroem as coisas gritamrdquo termos utilizados
pelos entrevistados (LIMA ET AL 2012 428)
Em um estudo com profissionais em um CAPS II de Aracaju (SE) para aleacutem do sentido
da crise associado ao da violecircncia coloca-se tambeacutem o fato de essas pessoas estarem em intenso
sofrimento psiacutequico
satildeo consideradas como pessoas em alto niacutevel de sofrimento porque estatildeo angustiadas
ouvem vozes de comando necessitam de vigilacircncia contiacutenua estatildeo confusas
colocam-se em risco de morte desestruturam as famiacutelias (LIMA ET AL 2012 428)
O risco envolvido na crise se transmite para os profissionais no campo das praacuteticas de
cuidado como uma necessidade constante de monitoramento vigilacircncia e controle da pessoa
em crise como reafirma um dos profissionais desse estudo a seguir
Crise a partir de uma necessidade de vigilacircncia sendo muito exigente enquanto forma
de cuidado gerando um impacto sobre a vida de todos preocupaccedilotildees e uma dedicaccedilatildeo
quase exclusiva agrave pessoa doente (Profissional de um CAPS II Aracaju SE) (LIMA
ET AL 2012 429)
Esse aspecto aparece tambeacutem no estudo de Garcia e Costa (2014) que trazem como
analisador o manejo da crise de uma usuaacuteria em estado de agressividade em um CAPS I em
Porto Real RJ
Gritos cadeiras ao alto mesas jogadas telefone quebrado agressividade Eis um
momento de surto de uma paciente no Caps A equipe pega de surpresa precisa agir
prontamente algo tem que ser feito (GARCIA COSTA 2014 400)
Nessa situaccedilatildeo na tentativa de restaurar a paz e a ordem no serviccedilo alguns profissionais
comeccedilam a demandar o poder policial e a presenccedila de um guarda municipal de plantatildeo no
CAPS como observamos nos trechos a seguir
discutiu-se o caso em reuniatildeo de equipe retomou-se sua histoacuteria foram feitas
propostas ndash produccedilatildeo de saber atravessadas por relaccedilotildees de poder que reivindicavam
lsquoordemrsquo e lsquorespeitorsquo a serem garantidos por um poder policialesco materializado nos
agentes da guarda municipal (GARCIA COSTA 2014 201)
Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito evitando que as crises
aconteccedilam como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta Com
52
a accedilatildeo da guarda seja ela ativa ou passiva de coibir esses eventos intempestivos os
pacientes evitariam ter crises por estarem sendo vigiados (ibidem 405)
Os autores destacam que a aposta na vigilacircncia como forma de controle e prevenccedilatildeo das
crises diz respeito agrave uma visatildeo de crise em que o deacuteficit estaacute no sujeito que natildeo consegue
responder de forma adequada agraves exigecircncias da vida A intervenccedilatildeo vem no sentido de favorecer
o instituiacutedo e reintroduzir a ldquonormardquo Eacute como se algo faltasse agravequele sujeito e ldquona situaccedilatildeo
apresentada precisaria ser tamponada preenchida quer pela guarda municipal por medicaccedilatildeo
ou terapiasrdquo (Garcia Costa 2014 405)
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade De tudo que se apresenta
em uma crise psicoacutetica a agressividade eacute o que fica o que marca e exige atenccedilatildeo urgente Eacute
vista como um sintoma isolado e de suma importacircncia que necessita ser suprimido o quanto
antes Assim recorre-se a praacuteticas como a contenccedilatildeo mecacircnica ou medicamentosa visando
extrair cirurgicamente o sintoma sem precisar lidar com a loucura e com o sofrimento que se
coloca em uma crise psicoacutetica
A reduccedilatildeo da complexidade de uma crise psicoacutetica aos seus sintomas agressivos reforccedila
o medo e o estigma em relaccedilatildeo agrave loucura legitimando condutas que a tratam como mera
contravenccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo da ordem social favorecendo o uso de recursos coercitivos como
o poder policial a guarda municipal e outras instacircncias que visam tratar da criminalidade e natildeo
da sauacutede de uma pessoa
Essa realidade eacute encontrada em uma pesquisa realizada com 24 profissionais de diversas
categorias da equipe de SAMU do municiacutepio de Natal- RN Observou-se que a equipe guarda
uma percepccedilatildeo do paciente em crise como um marginal ou ateacute mesmo como um animal sendo
frequente o uso da forccedila policial nas intervenccedilotildees dessa equipe como se percebe na fala a
seguir
A poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente doente mental () e quando a poliacutecia
chega eles amansam na mesma hora A maioria dos policiais jaacute vem pensando em
descer o bastatildeo entatildeo por isso que os pacientes tecircm medo (Entrevistado 13) (BRITO
BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1300 grifos nossos)
A gente precisa do apoio da poliacutecia pra prender pra interceptar (Entrevistado 2)
(idem 1298 grifos nossos)
O uso dos termos ldquoprenderrdquo e ldquointerceptarrdquo apontam para um entendimento da crise
como fenocircmeno do campo do julgamento moral e da criminalidade As contenccedilotildees satildeo
realizadas pela equipe da poliacutecia que usa de violecircncia deflagrada como ldquodescer o bastatildeordquo
mostrando total despreparo para atuar nessas situaccedilotildees Nota-se que embora os profissionais
53
reconheccedilam que a poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente psiquiaacutetrico recorre-se agrave ela na
tentativa de ldquodominarrdquo o paciente pelo medo subjugando-o como a um animal ldquoamansam na
mesma horardquo ldquopor isso eles tem medordquo Conforme lembra Caponi (2009) ldquonas entrelinhas
dessas accedilotildees estatildeo as relaccedilotildees de poder que caracterizam a Psiquiatria Claacutessica e sua autoridade
de tomar o corpo como objeto de suas praacuteticasrdquo (apud BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2015 1298 )
Assim embora o discurso em relaccedilatildeo agrave loucura tenha mudado e incorporado os
princiacutepios da Reforma Psiquiaacutetrica vemos que quando a crise emerge e com ela a dificuldade
de sustentar com o usuaacuterio um modo protegido de estar com ele a primeira resposta dos serviccedilos
ainda segue a loacutegica do enclausuramento da violecircncia e da imposiccedilatildeo pela autoridade
A associaccedilatildeo entre crise e risco se desdobra em sentimentos de ameaccedila e medo que
justificam praacuteticas de repressatildeo como prevenccedilatildeo da possiacutevel periculosidade da pessoa em crise
como vemos a seguir
A gente notando que ele ainda estaacute agitado inquieto e que agraves vezes ele pode dar o
surto de novo a poliacutecia vai na ambulacircncia sentado com a gente (Entrevistado 7)
(BRITO BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1298)
Acredito que a falta de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz
com que o atendimento siga uma forma natildeo correta (ibidem 1298)
Segundo DelacuteAcqua e Mezzina (2005) o risco implicado na crise eacute compreendido na
Psiquiatria Claacutessica enquanto iacutendice de desadaptaccedilatildeo e desequiliacutebrio proacuteprio da doenccedila mental
Assim o fator periculosidade natildeo sendo algo passiacutevel de desconstruccedilatildeomanejo e a resposta do
medo agrave ele associada fala-nos de uma cadeia estabelecida doenccedila mental- periculosidade-
internaccedilatildeo que estaacute ldquoprofundamente enraizada nos teacutecnicos como cultura forma de agir e
pensar a loucurardquo (SILVA DIMENSTEIN 2014 42)
Cabe aqui ressaltar que natildeo se trata de negar que em uma situaccedilatildeo de crise possa haver
riscos envolvidos para integridade fiacutesica da pessoa em crise e dos demais e que isso causa medo
mas eacute preciso trabalhar em uma outra direccedilatildeo para lidar com o medo que natildeo seja atemorizar
e moralizar aqueles que precisam de cuidados especialmente quando isso eacute feito em parceria
com a poliacutecia
Isso natildeo significa que natildeo se possa utilizar de recursos como a medicaccedilatildeo ou a
contenccedilatildeo mecacircnica em situaccedilotildees extremas mas faz diferenccedila quando trabalhamos em uma
loacutegica em que esses satildeo os uacuteltimos recursos disponiacuteveis e natildeo nossa primeira resposta frente agrave
crise Praacuteticas como essas ainda satildeo tomadas no campo de ldquosoluccedilotildees maacutegicasrdquo para a remissatildeo
54
dos sintomas agressivos quando deveriam ser vistas no maacuteximo como um arranjo incocircmodo
imposto por conjunturas que em niacutevel macro e micro natildeo tem conseguido sustentar a crise no
modelo substitutivo
Desse modo Brito Bonfada e Guimaratildees assinalam que urge avanccedilar na compreensatildeo
da crise enquanto evento que demanda ldquoacolhimento diaacutelogo aproximaccedilatildeo entre sujeitos
envolvidos e respeito agraves necessidades subjetivas e particularidades de cada usuaacuterio dos serviccedilos
de sauacutederdquo (2015 1301) Para tanto faz-se necessaacuterio investir em praacuteticas de educaccedilatildeo
permanente que possam trabalhar com as equipes na direccedilatildeo da construccedilatildeo de um suporte
teacutecnico-conceitual de apoio agrave crise que tenha como base os pressupostos da Reforma
Psiquiaacutetrica Essa capacitaccedilatildeo deve envolver a discussatildeo da crise enquanto um fenocircmeno
complexo que natildeo se restringe aos sintomas apresentados mas diz do modo do sujeito se
posicionar no mundo e das conjunturas conflitivas que o afligem
412 CRISE COMO PERDA E ISOLAMENTO SOCIAL
A primeira crise aparece como um ponto de ruptura a partir do qual algo muda
radicalmente e a vida natildeo pode mais se dar como antes A crise eacute vista como a descoberta de
uma ldquodoenccedilardquo e sentida como um ponto de corte a partir do qual todos os aspectos da vida
precisam ser reavaliados Os pacientes e familiares natildeo sabem mais se podem continuar com
sua rotina de antes e estabelecem uma seacuterie de limitaccedilotildees com o objetivo de ldquoevitar novas
crisesrdquo
A possibilidade de seguir na vida os sonhos os planos e objetivos ficam todos em
suspenso como se qualquer conduta repentina pudesse disparar uma nova crise Vive-se agrave
espreita em estado de alerta atento aos sintomas temendo colocar em risco a estabilidade
conquistada com o tratamento Natildeo se pode retomar a vida como antes e tambeacutem natildeo se sabe o
que eacute possiacutevel sustentar dali em diante iniciando-se entatildeo um processo de paralizaccedilatildeo e
mortificaccedilatildeo da vida
No estudo de Pereira Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise em um CAPSi
do Rio de Janeiro nota-se que a experiecircncia da crise se desdobrou em medo inseguranccedila e
perda do interesse nas atividades do cotidiano o que pode ser destacado nas falas a seguir
Thiago deixou de jogar futebol com os amigos de ir agrave escola ldquoporque eacute melhor natildeordquo
(sic) () Leticia tambeacutem deixou de frequentar a escola apoacutes a uacuteltima crise e perdeu
o interesse pelas atividades diaacuterias que antes realizava Sua matildee ao mesmo tempo
natildeo ldquoconfiavardquo mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha
temendo que esta pudesse ldquose perderrdquo (ibidem 3739)
55
Haacute um certo recuo diante da vida um fechamento em si mesmo como forma de defesa
contra a loucura e o estigma social associado agrave ela Com isso tem-se a perda das antigas
amizades e a dificuldade de se estabelecer novos laccedilos sociais em um processo crescente de
empobrecimento da vida
Ela soacute gosta de dormir vocecirc falou Leticia Soacute quer saber de dormir Antes ela gostava
de fazer as coisas agora natildeo gosta natildeo Natildeo ajuda em casa natildeo faz nenhum trabalho
soacute dorme [hellip] Antes dela ter essa crise uacuteltima ela vinha no centro pra mim fazia as
coisas Mas agora ela anda tatildeo desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as
coisas [hellip] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro pegar o
ocircnibus errado natildeo sei (ibidem3739)
No estudo de Milhomes e Martin (2014) com um grupo de jovens que fazem
acompanhamento em um CAPS II na cidade de Satildeo Paulo quando questionados sobre saiacutedas
os jovens mencionavam idas agrave igreja mercados e festas de familiares A grande maioria referia
ficar em casa com a famiacutelia auxiliando nas tarefas da casa e da vida domeacutestica de modo que
pouco se falava sobre festas ou encontro com os amigos Majoritariamente o grupo de amigos
que esses usuaacuterios tinham contato era o do CAPS havendo apenas um dos seis jovens
entrevistados que participava de um grupo de funk fora do CAPS ldquoNota-se que apoacutes a primeira
crise psiacutequica esses jovens se veem afastados das antigas amizades apresentando importante
isolamento social e perda destes pontos de partilhardquo (ibidem 1113)
Quanto agraves possibilidades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho esse mesmo estudo aponta
que apoacutes o iniacutecio do tratamento a inserccedilatildeo possiacutevel desses jovens no mercado de trabalho se
deu predominantemente pela via do trabalho informal atraveacutes de ldquobicosrdquo e negoacutecios familiares
que permitiam uma maior flexibilidade de horaacuterios e conciliaccedilatildeo com a frequecircncia no
tratamento
Nenhum dos jovens no periacuteodo das entrevistas possuiacutea emprego formal Cinco deles
haviam trabalhado com carteira assinada antes da primeira crise e somente um
retomou este tipo de emprego apoacutes a crise enquanto os outros apesar das tentativas
natildeo conseguiram exercendo uma atividade laborativa sob outros moldes
(MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Embora natildeo se possa deixar de considerar que a primazia do trabalho informal estaacute
relacionada agrave um contexto mais amplo da economia nacional nos uacuteltimos tempos a
precariedade e falta de espaccedilo para a inserccedilatildeo de pessoas com transtorno mental no mundo do
trabalho impacta diretamente na sauacutede mental dessas pessoas trazendo prejuiacutezos ao seu
processo de construccedilatildeo de autonomia reinserccedilatildeo social e independecircncia financeira
Outros estudos como a pesquisa de Fiorati e Saeki com homens com idades entre 30 e
50 anos em uma unidade de internaccedilatildeo na cidade de Satildeo Paulo apontam resultados parecidos
56
ldquoos usuaacuterios atendidos por noacutes interromperam seus processos de escolaridade ou atividade
profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade
produtivardquo (2008 767) Essa ruptura estendeu-se ainda no campo dos viacutenculos afetivos e
sociais dos participantes ldquoseus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados
casamentos interrompidos ou nunca iniciados Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de
redes de relacionamento social natildeo namoravam natildeo tinham amizades ou qualquer ligaccedilatildeo
interpessoal espontacircneardquo (ibidem 768)
O estudo de Milhomens e Martin (2014) se propocircs a pensar as causas desse isolamento
social percebido apoacutes o episoacutedio de crise Em entrevista com os jovens participantes um dos
motivos apontados por eles era ldquoa vergonha e a dificuldade de lidar com esses encontros e
exposiccedilotildees perante olhares e perguntas que causam incocircmodordquo (ibidem 1114)
A vergonha figurava como motivo de restriccedilatildeo da circulaccedilatildeo pelo territoacuterio pois assim
evitava-se o possiacutevel desconforto de encontrar amigos ou vizinhos ter que cumprimentaacute-los e
dar-lhes explicaccedilotildees sobre a vivecircncia da crise A experiecircncia da vergonha pode ser tatildeo
assustadora a ponto como em um dos casos do entrevistado sequer sentir-se confortaacutevel para
retornar a sua antiga residecircncia
Aiacute depois eu natildeo voltei mais pra casa fiquei meio traumatizado com vergonha
tambeacutem na eacutepoca Tudo essas coisas da crise de iniacutecio vocecirc natildeo sabe neacute entatildeo fica
ndash Olha o cara eacute doido [] (vergonha) das coisas que eu fiz neacute [] mesmo se eu
pudesse eu natildeo voltaria a morar laacute sei laacute por vergonha essas coisas (M homem
28 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Segundo esse mesmo estudo outro aspecto do isolamento se daacute como uma defesa e uma
resposta pelos usuaacuterios terem se sentido abandonados pelos amigos nos momentos em que
mais precisavam deles isto eacute nos periacuteodos de crise
Ah mudei assim que agora eu tomo remeacutedio agraves vezes assim pra amizade eu fico
mais na minha As pessoas estatildeo conversando e eu natildeo tenho parece assim que eu
natildeo tenho assunto com as pessoas sabe [] Era aquela flor amiga pra laacute amiga pra
caacute Aiacute quando quando que eu caiacute numa cama todo mundo desapareceu[] (D
mulher 20 anos) (ibidem1113)
O fato de precisar fazer um tratamento e tomar medicaccedilatildeo psiquiaacutetrica tambeacutem aparece
como um elemento que imprime uma marca e estabelece uma diferenccedila separando
categoricamente loucura de normalidade em um caminho sem volta como se a partir daquele
ponto eles nunca mais pudessem ser como os outros
Letiacutecia lamenta ainda por ter ficado ldquodiferente das outras pessoasrdquo pois devido agrave crise
ldquoprecisava de tratamentordquo Relatava tambeacutem uma dificuldade em escrever e ldquocopiarrdquo
a mateacuteria porque a medicaccedilatildeo fazia sua matildeo tremer (PEREIRA SAacute MIRANDA
2017 3739)
57
Essa diferenccedila tambeacutem aparece na perspectiva dos profissionais No estudo de Pereira
Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise na perspectiva dos profissionais a crise traz
uma perda natildeo apenas da vida que se tinha mas da vida que o adolescente ainda poderia ter
[hellip] natildeo vai ser igual nunca Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que
surtam voltarem a ser como eram antes[hellip]Porque eu acho que a psicose eacute isso ne
Vocecirc perde algo do que vocecirc tinha e tambeacutem perde a habilidade de adquirir novas
aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivos neacute (Profissional do serviccedilo)
(PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3740)
Nesse sentido a crise na infacircncia aparece para os profissionais como ainda mais grave
do que na vida adulta visto que desde aquele momento a perda jaacute estaria colocada limitando
as possibilidades do adolescente para toda a vida como vemos nas falas a seguir
Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertoacuterio tatildeo comeccedilando a
vida ainda tatildeo no meio do ciclo acadecircmico [hellip] parece que a cada surto se perde um
pouquinho Vai se perdendo algo Eacute muito cedo neacute O prognoacutestico eu considero mais
negativo na adolescecircncia do que na fase adulta (Profissional do serviccedilo) (PEREIRA
SAacute MIRANDA 2017 3740)
Talvez eu ache que o surto do adolescente eacute muito mais florido Impactante eacute a
palavra Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto Eacute mais
impactante sim Porque pega os pais numa situaccedilatildeo de Poxa o cara tava na escola
tava andando as coisas tatildeo indo E esse adolescente eacute ainda um pouco dependente e
aiacute eu acho que a inserccedilatildeo da famiacutelia eacute diferente da famiacutelia do adulto Porque o adulto
jaacute eacute dono de si jaacute tem um caminho andado natildeo sei acho que eacute por aiacute (Profissional
do serviccedilo) (ibidem3740)
Porque quando eacute uma crianccedila pequena esses pais jaacute vatildeo percebendo que lsquoPoxa vida
tem alguma coisa diferente com elersquo E mesmo que seja assim lsquoEle foi normalzinho
ateacute dois anos eacute diferente dele ser normalzinho ateacute dezesseis anos ateacute quinze anos O
que aconteceu com essa criatura que numa semana taacute bem e na outra semana natildeo
Que tira roupa na rua ou bate ou que agride o pairsquo [hellip] (Profissional do serviccedilo)
(ibidem3740)
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede As perdas que os usuaacuterios
vivenciam a perda da autonomia das relaccedilotildees sociais da capacidade laborativa etc satildeo apenas
um reflexo maior dos efeitos dessa diferenccedila na nossa sociedade
Retomando a fala de uma profissional ldquonatildeo vai ser igual nuncardquo natildeo se trata de negar
essa diferenccedila Poreacutem eacute preciso entender que a perda em questatildeo natildeo eacute a perda da ldquohabilidade
de adquirir novas aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivosrdquo mas a perda do
sentido isto eacute da construccedilatildeo de mundo que havia antes da vivecircncia da crise (PEREIRA SAacute
MIRANDA 2017 3740)
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Como qualquer outra experiecircncia singular e impactante que vivemos em nossas vidas
a crise tem o poder de questionar o modo de vida de uma pessoa recriando o mundo e
redistribuindo os sentidos ao redor dela Nem sempre os sentidos construiacutedos seratildeo
compartilhados ou compreensiacuteveis mas eacute possiacutevel sustentar estar junto com algueacutem mesmo
assim mesmo sem entender do mesmo modo que sustentamos estar junto com pessoas que
compartilham de visotildees de mundo muito diferentes das nossas A loucura nesse ponto eacute soacute mais
um modo de se relacionar com o mundo como tantos outros diferentes dos nossos Os sentidos
construiacutedos a partir de uma crise natildeo seratildeo os mesmos de antes mas tambeacutem podem ser potentes
e criadores de vida
413 CRISE COMO APROPRIACcedilAtildeO DA EXPERIEcircNCIA E RECONSTRUCcedilAtildeO DE
SENTIDOS
Na pesquisa de Milhomens e Martin (2014) com jovens em um CAPS adulto em Satildeo
Paulo observou-se que alguns entrevistados especialmente os que jaacute estavam haacute mais de dois
anos em acompanhamento
com a experiecircncia das crises vatildeo adquirindo estrateacutegias e ampliando as formas de
lidar e de se perceber em relaccedilatildeo ao proacuteximo Um dos entrevistados diz que pede para
que seus pais o avisem quando ele natildeo estiver bem Outra integrante diz que quando
percebe olhares estranhos para ela cogita a possibilidade ser somente uma impressatildeo
errada ldquocoisa da minha cabeccedila3rdquo (D mulher 20 anos) (ibidem1114)
Quando questionados sobre a compreensatildeo que tinham sobre o termo ldquoloucurardquo
percebe-se que em alguns casos natildeo se tinha a concepccedilatildeo por doenccedila ateacute a chegada ao CAPS
Aiacute foi aonde que eu fiquei ruim neacute num tava conhecendo ningueacutem tava vendo coisa
e eu jaacute tinha esse negoacutecio de escutar vozes mas pra mim era um negoacutecio normal
(F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Eacute importante ressaltar que reconhecer o fato de ouvir vozes como algo ldquonormalrdquo natildeo
significa que natildeo haja sofrimento implicado nessa vivecircncia visto que ldquoescutar vozesrdquo e ldquover
coisasrdquo falam de uma certa experiecircncia de invasatildeo da consciecircncia Do mesmo modo podemos
imaginar que natildeo reconhecer as pessoas com quem habitualmente se convive deve ser algo um
tanto assustador No entanto o que gostariacuteamos de destacar com esse trecho eacute o fato dessa
experiecircncia natildeo ter sido considerada pelo entrevistado como signo de uma ldquodoenccedilardquo Embora
3 Alterado pela pesquisadora a partir do texto original ldquocoisa da minha cabe drdquo (D mulher 20 anos)
(MILHOMENS A E MARTIN D 2014 1114) pelo fato da mesma entender que houve erro de digitaccedilatildeo na
palavra ldquocabeccedilardquo
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os diagnoacutesticos possam ser importantes para a praacutetica cliacutenica os efeitos desse diagnoacutestico para
os pacientes se mostram muito mais limitantes do que propulsores de vida
Vemos que mesmo nas situaccedilotildees em que haacute um julgamento social em torno da doenccedila
quando o usuaacuterio consegue se apropriar da sua experiecircncia em relaccedilatildeo agrave loucura com
tranquilidade e maturidade ele encontra forccedilas para lidar com situaccedilotildees que antes eram motivo
de vergonha ou isolamento como vemos na fala a seguir
Os outros me chamavam de Elias Maluco Hoje em dia os outros chama ainda eu levo
na brincadeira eu natildeo me sinto ofendido Quando eu tava ruim eu me sentia ofendido
entendeu Eu levo numa boa entendeu (F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Retomando a categoria anterior ldquoa crise como perda e isolamento socialrdquo Milhomens
e Martin (2014) assinalam que apoacutes o episoacutedio de crise alguns participantes de sua pesquisa
deixaram de sair e de circular pelo territoacuterio para natildeo ter que lidar com os questionamentos dos
vizinhos amigos e conhecidos em torno da sua doenccedila Nesse sentido a fala do usuaacuterio acima
fomenta outras formas de lidar com os possiacuteveis obstaacuteculos que a sociedade impotildee agrave loucura
Sua apropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da loucura faz com que ele natildeo se abale ao ser
chamado de ldquomalucordquo Haacute aiacute a invenccedilatildeo de uma forccedila e de uma potecircncia de vida que sustenta
novas possibilidades de estar na comunidade apesar das adversidades
Outro aspecto que nos chamou atenccedilatildeo nesse estudo foi a relaccedilatildeo que alguns usuaacuterios
conseguiram estabelecer com a sua medicaccedilatildeo Embora a maioria natildeo soubesse informar os
nomes e quantidades bem como a finalidade teacutecnica das mesmas muitos conseguiam mostrar
propriedade na avaliaccedilatildeo dos ldquoganhos e perdasrdquo que a medicaccedilatildeo causava em suas vidas
MILHOMENS MARTIN 2014)
Um dos impasses vivenciados por eles nesse sentido era o conflito entre beber eou
usar drogas e ter que tomar a medicaccedilatildeo Sabe-se que a interrupccedilatildeo do tratamento
medicamentoso pode causar efeitos colaterais importantes e ateacute mesmo agravar os sintomas do
quadro que se pretendia tratar Posto isso esses jovens se viam no dilema de ter que optar entre
um e outro avaliando seus riscos e benefiacutecios como vemos na fala a seguir
Aiacute os moleques tava indo fumando uma maconha laacute aiacute eu ia ficava olhando ndash Seraacute
que eu posso Seraacute que natildeo posso ndash aiacute parei de tomar o remeacutedio pra natildeo prejudicar
tipo pensei assim ndash Se eu para de tomar o remeacutedio acho que eu vou poder beber e
vou poder usar droga [] Sem (a medicaccedilatildeo) fico agitado fico agitado ando de um
lado pro outro arrumo a casa arrumo tudo [risos] e tipo jaacute o coraccedilatildeo sei laacute meio que
acelera Eu sei lidar com isso entendeu Pra ficar mais tranquumlilo fumo um cigarro
fumo ateacute mais cigarro quando acelera o coraccedilatildeo mas isso tipo se eu ficar uns por
exemplo ficar hoje hoje eacute quinta se eu ficar ateacute quarta sem tomar eu fico tranquumlilo
mas como a meacutedica falou a medicaccedilatildeo fica no organismo tem uns dias e tal mas se
eu passar de uma semana sem tomar vixi sei laacute eu natildeo sei se eacute isso ou eacute psicoloacutegico
60
pode daacute uma inseguranccedila vocecirc jaacute fica meio com receio aiacute jaacute fica pilhado deve ser
isso tambeacutem (J homem 24 anos)- (MILHOMENS MARTIN 2014 1116)
Observa-se por outro lado que embora a capacidade de autonomia e de participaccedilatildeo do
usuaacuterio no seu tratamento seja valorizada no modelo substitutivo o questionamento em relaccedilatildeo
aos proacutes e contras do uso da medicaccedilatildeo natildeo foi acolhido pelo serviccedilo e como consequecircncia os
usuaacuterios acabavam por fazer uma gestatildeo solitaacuteria da sua medicaccedilatildeo sem poder contar com o
serviccedilo enquanto um parceiro nessa decisatildeo
Quando um desses jovens fazia uma escolha em relaccedilatildeo ao seu tratamento como
interromper o uso da medicaccedilatildeo para fazer uso de drogas ou para conseguir levantar
cedo para estudar tal atitude era vista pelo serviccedilo como contraacuteria ao tratamento
Como se o exerciacutecio da autonomia soacute coubesse quando exercida em concordacircncia com
a disciplina oferecida pelo serviccedilo Optar por natildeo mais fazer uso da medicaccedilatildeo eacute
tratado como irresponsabilidade ou ldquopiora do quadrordquo (ibidem 1117)
Assim vemos que a relaccedilatildeo dos usuaacuterios com o serviccedilo sofre algumas tensotildees e muitas
vezes satildeo os proacuteprios usuaacuterios que vatildeo encontrar meios de ressignificar e modificar essas
relaccedilotildees como podemos ver na fala desse entrevistado a respeito dos grupos oferecidos no
CAPS
Os grupos eacute pra iniacutecio da crise quando tudo eacute novidade entatildeo todo grupo eacute
interessante por mais babacatildeo assim Quando a gente vai melhorando assim parece
ser meio babaca mas natildeo eacute Porque a gente natildeo taacute acostumado mas assim pintar
essas coisas que parece que eacute pra crianccedila neacute mas nossa mente taacute como de crianccedila
entatildeo parecia uma coisa meia agraves vezes quando passava em mim eu falava ndash O que
eu tocirc fazendo aqui ndash mas esses grupos me fizeram enxergar que tinha mais gente
igual eu que tinha gente numa fase pior que a minha outras melhores me ajudou
bastante (M homem 28 anos) (ibidem 1117)
Segundo os pesquisadores ldquopintar desenhos infantis e promover brincadeiras de
crianccedilas eram atividades rotineiras neste serviccedilo utilizadas com o intuito de entreter as pessoas
que ali estavamrdquo (MILHOMENS MARTIN 2014 paacutegina) Tais atividades promovidas de
forma burocraacutetica e sem aproximaccedilatildeo real com o cotidiano dos usuaacuterios contribuem para a
interrupccedilatildeo ou desistecircncia do tratamento Mesmo assim o entrevistado surpreende e lanccedila um
outro olhar para o serviccedilo reconhecendo o que na sua perspectiva ele traz de efetivamente
importante para o seu tratamento a possibilidade de se reconhecer na experiecircncia do outro e de
se conectar com pessoas que vivem os mesmos problemas e questotildees Esse eacute um elemento
proacuteprio do dispositivo grupal que por si soacute jaacute imprime um novo significado ao tratamento
oferecendo um lugar diferente do de incapacitado e infantilizado
Os usuaacuterios vatildeo encontrando cada um agrave sua maneira meios de lidar com as crises com
o estigma social e com a necessidade de sustentar seu tratamento Os recursos apontados por
eles aparecem como algo da ordem da construccedilatildeo de um saber leigo advindo da experiecircncia
subjetiva da crise e da relaccedilatildeo que eles mantem com o seu contexto soacutecio-cultural
61
Notamos que nesse processo os usuaacuterios foram capazes de criar estrateacutegias para o
enfrentamento da sua condiccedilatildeo ressignificando a relaccedilatildeo com o tratamento e encontrando
meios de estar na vida social ldquomantendo-se em movimento na composiccedilatildeo contiacutenua de novos
territoacuterios tendo a crise como principal agente de mudanccedilas e criaccedilotildeesrdquo (GUATTARI
ROLNIK 1996 apud MILHOMENS MARTIN 2014 876)
Na pesquisa de Costa (2007) com um integrante da luta antimanicomial e profissionais
da enfermaria de agudos feminina do IMAS Nise da Silveira e do EAT (Espaccedilo Aberto ao
Tempo) tambeacutem encontramos olhares e concepccedilotildees em torno da crise que se afastam da
perspectiva claacutessica medicalocecircntrica da crise enquanto iacutendice de desajuste do quadro
psicopatoloacutegico resultando em periculosidade e risco social como vemos na fala a seguir
Para mim a concepccedilatildeo que eu tenho de crise eacute a seguinte eacute quando seus pensamentos
estatildeo de tal ordem bagunccedilados que vocecirc natildeo consegue fazer coisas corriqueiras que
vocecirc geralmente costuma fazer Para mim isso eacute uma crise Natildeo significa que isso
seja uma coisa violenta que vocecirc tenha uma crise e fique violento Vocecirc pode ter uma
crise de depressatildeo pode ficar muito triste natildeo conseguir se relacionar com as pessoas
Entatildeo para mim crise eacute quando vocecirc estaacute em um estado tal de confusatildeo de
imobilidade que vocecirc natildeo consegue fazer suas coisas corriqueiras Isso para mim eacute
uma concepccedilatildeo (Integrante do Movimento da Luta Antimanicomial) (COSTA
2007 105)
Para esse usuaacuterio a crise aparece enquanto um estado de confusatildeo em que os
pensamentos estatildeo de tal modo desorganizados que fica difiacutecil dar conta ateacute mesmo das coisas
mais simples do cotidiano Haacute nessa concepccedilatildeo a ideia da crise relacionada a uma perda que eacute
a perda das referecircncias de mundo que se havia constituiacutedo ateacute entatildeo A crise vem e mexe com
o sistema de referecircncia do sujeito ldquobagunccedilardquo os pensamentos A agressividade eacute um dos modos
de se reagir agrave essa ruptura com o instituiacutedo mas natildeo o uacutenico Assim o que fica enquanto questatildeo
dessa fala eacute o que fazer para que essa perda de sentidos natildeo seja paralisante De que modo
podemos aproveitar o movimento da crise para reconstruir os sentidos perdidos e imprimir
novos movimentos de vida aos sujeitos
A fala desse profissional aponta alguns caminhos
[] Pelo menos como eu vejo o surto psicoacutetico eacute exatamente a colocaccedilatildeo em xeque
das referecircncias que sustentavam uma situaccedilatildeo sustentavam um estado de coisas que
de repente rui ou ameaccedila ruir ou comeccedila a ficar em questatildeo ()Muitas vezes o que
a gente vecirc na loucura eacute uma perda mesmo de sentido (Psiquiatra supervisor da equipe
da enfermaria de agudos feminina) (COSTA 2007 104 grifos nossos)
[] Entatildeo muitas vezes o que a gente acredita o que gente constroacutei a partir da nossa
praacutetica eacute que a possibilidade de algueacutem estar intervindo trabalhando junto na crise
pode muitas vezes em algumas situaccedilotildees facilitar a possibilidade de construccedilatildeo ou
reconstruccedilatildeo de referecircncias Quais vatildeo ser em princiacutepio a gente sugere que natildeo se
sabe Porque tem uma seacuterie de fatores sociais em volta proacuteximo do sujeito no
contexto da famiacutelia que tendem muitas vezes a querer recobrar ou retomar uma
62
situaccedilatildeo anterior [] eu acho que quando a gente estaacute intervindo junto na crise a
gente tem que ter o cuidado de natildeo querer construir novos sentidos ou tatildeo pouco
querer reconstruir os velhos porque a gente natildeo sabe Porque eacute possiacutevel que alguns
natildeo suportem retomar aquilo nem tenham a menor condiccedilatildeo a gente natildeo tem como
saber isso antes A gente tem que estar acompanhando junto com cuidado fazendo o
que for preciso Agora eacute claro que por isso mesmo a crise eacute um momento privilegiado
de possibilidades de emergirem novos sentidos muitas vezes essa produccedilatildeo de
sentido eacute do proacuteprio sujeito Pode ser um sentido delirante mas enfim eacute delirante no
sentido positivo E aiacute eacute claro que se espera que a intervenccedilatildeo natildeo seja para calar esse
sentido (Psiquiatra supervisor da equipe da enfermaria de agudos feminina) (ibidem103 grifos nossos)
Haacute uma preocupaccedilatildeo colocada em natildeo se adiantar em querer restituir o estado de coisas
anterior pois a gente natildeo sabe pode ser que o sujeito natildeo sustente mais retornar agrave vida que ele
levava antes Nessa perspectiva a crise eacute mais do que apenas um estado de desequiliacutebrio
momentacircneo ela eacute iacutendice de que algo precisa ser mudado Os velhos arranjos que o sujeito
tinha para lidar com o sofrimento natildeo satildeo mais suficientes e com isto surge a necessidade de
rever esses arranjos e pensar em novas formas de organizaccedilatildeo para o sujeito e seu cotidiano
Segundo um dos entrevistados
A crise pode ser uma grande chance de vocecirc produzir alguma coisa com aquele
indiviacuteduo alguma coisa diferente produzir a mudanccedila Ou pode ser a chance de vocecirc
fazer exatamente nada no sentido de que tirou da crise o cara volta para a vida
exatamente igual (Psiquiatra da enfermaria de agudos feminina) (ibidem 102)
Voltar exatamente igual seria justamente ignorar o que a crise produz em termos de
subjetividade no sujeito Se tomamos a crise como iacutendice de uma mudanccedila na subjetividade
isto eacute na forma como aquele sujeito se constitui para o mundo entatildeo eacute preciso pensar se os
recursos que ele tem estatildeo agrave altura da nova realidade psiacutequica em que ele se encontra Assim eacute
preciso tomar a crise enquanto um acontecimento que pode apontar para a necessidade de uma
mudanccedila na realidade concreta do sujeito no modo em que ele vive nas suas relaccedilotildees sociais
no modo como organiza seu cotidiano etc A crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um
evento analisador4 que ldquo propicia a criaccedilatildeo de recursos e estabelece uma urgecircncia de
realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (COSTA 2007
101)
Sobre esse aspecto uma profissional conta
Uma coisa que eu lembrei que vocecirc falou da crise me lembrei do CH Ele morava na
casa dos pais que morreram e que foi a casa onde ele cresceu Os pais eram muito
austeros e ele tem muitas recordaccedilotildees naquela casa Ele haacute muito tempo vinha pedindo
para sair daquela casa principalmente quando ele estava ldquoem criserdquo quando ele natildeo
estava ldquobemrdquo Quando algumas coisas aparecem a agressividade por exemplo eacute um
dos sinais de quando ele estaacute em crise aquela doccedilura dele toda natildeo aparece aparece
4 Ver Guattari F (2004) Psicanaacutelise e transversalidade ensaios de anaacutelise institucional Aparecida SP Ideacuteias
amp Letras (Original publicado em 1972)
63
mais uma agressividade uma irritabilidade No caso dele parece que satildeo duas pessoas
parece que duas pessoas habitam o mesmo corpo E ele falava muito de querer sair e
quando ele melhorava acabava que O tempo passou eu natildeo sei muito bem montar
essa histoacuteria um trabalho que a Carla fez e a famiacutelia entendeu que era mais do que
quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil tambeacutem e aiacute se comeccedilou
a procurar a casa E aiacute teve um periacuteodo minus porque ao mesmo tempo em que ele queria
sair quando ele viu a saiacuteda isso mexeu minus em que ele natildeo ficou bem e pedia para ficar
no hospital porque para ele era insuportaacutevel ficar naquela casa mas a outra casa ainda
natildeo tinha saiacutedo e a gente ldquoNatildeo mas aqui no hospital natildeo vamos negociar vocecirc fica
um diardquo E aiacute acabou que ele conseguiu alugar a casa dele estaacute superfeliz Mas esse
periacuteodo da procura da casa foi um periacuteodo em que ele pode ateacute natildeo ter entrado numa
crise mas ele natildeo estava bem natildeo estava bem por todas essas mudanccedilas porque ele
natildeo queria tambeacutem eacute difiacutecil mudar Eu natildeo sei mas numa loacutegica psiquiaacutetrica
tradicional talvez nunca se mexesse na casa e talvez diriam ldquoViu soacute como natildeo foi
bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo (Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)
(ibidem 102)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado da histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social habitacional e
relacional Eacute a partir dela que a equipe entende que natildeo eacute mais possiacutevel sustentar a permanecircncia
do usuaacuterio naquela casa A profissional ao mesmo tempo ressalta o quanto eacute difiacutecil e delicado
esse trabalho que face agrave menor mudanccedila na sintomatologia do usuaacuterio corre o risco de ser
inteiramente questionado ldquo viu como natildeo foi bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo
Assim desconstruir o paradigma manicomial implica em uma aposta incansaacutevel no
sujeito em dar creacutedito ao que ele fala e aponta como direccedilotildees possiacuteveis para seu cuidado Ainda
assim eacute preciso reconhecer que o que quer que se construa com ele seraacute sempre uma construccedilatildeo
provisoacuteria posto que as pessoas estatildeo em constante movimento de territorizalizaccedilatildeo e
desterritorializaccedilatildeo de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo de si proacuteprio e do mundo ao seu redor
Estar aberto para essa construccedilatildeo exige que os profissionais possam rever as concepccedilotildees
de crise que embasam suas praacuteticas No lugar das certezas da Psiquiatria Claacutessica eacute preciso
abrir espaccedilo para uma ldquopraacutetica aberta agrave invenccedilatildeo agrave singularidade cuja tecnologia se vai
construindo permeaacutevel aos elementos de vidardquo (Costa 2007 105) A narrativa a seguir fala
um pouco desse aspecto do trabalho
Para mim eacute isso crise eacute isso Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o
sobrinho dele morreu assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver
com uma situaccedilatildeo que ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele
continuou trabalhando na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de
trabalho E eu me lembro que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele
tirar todos os documentos E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do
nascimento dele e ele me mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e
nasceu e contou histoacuteria A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com
ele porque ele explodiu[] E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos
de novo E a gente entendeu que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia
muito que a gente o ajudasse eacute como se ele pulverizasse e a gente entendia que ele
tinha um pedido de organizaccedilatildeo Tanto eacute que ele pediu para arrumar a cantina ele
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queria arrumar as coisas da cantina depois do expediente Os documentos eu acho
que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que ele acabou entre aspas
perdendo Acho que a coisa foi meio por aiacute mas isso foi a histoacuteria dele com J seria
outra coisa com N seria outra Eu acho que vai muito por aiacute Por isso que eu natildeo tenho
uma coisa pronta Mas nas vivecircncias a gente vai vendo como vai fazendo (Psicoacuteloga
do Espaccedilo Aberto ao Tempo) (ibidem 105)
A perspectiva dessa profissional se contrapotildee a uma visatildeo mais tradicionalista da crise
que ldquovai dizer que [a crise] eacute um sintoma que ela estaacute descolada da realidade e vocecirc tem que
fazer a remissatildeo do sintoma entatildeo quando ele [o paciente] melhora eacute porque ele paacutera de delirar
e funciona em um registro mais normal mesmo que seja dopado de medicaccedilatildeo mesmo que
vocecirc esteja matando eacute isso(Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)rdquo (Costa 2007 105)
Acompanhar o movimento do sujeito em seus percursos e trajetoacuterias em busca de sauacutede
(no Parque da Catacumba na arrumaccedilatildeo da cantina na retirada dos documentos) diz de uma
postura diante da crise fundada na sustentaccedilatildeo de um natildeo saber A sustentaccedilatildeo de natildeo ter uma
resposta agrave priori eacute o que vai permitir que se possa embarcar com o paciente em novos sentidos
para sua loucura Normalmente o senso comum tende a acreditar que uma pessoa em surto
psicoacutetico faz e fala coisas sem sentido e que por isso devemos ignoraacute-las A ideia aqui eacute agir no
sentido inverso tomar as accedilotildees e falas do sujeito em crise como um saber legiacutetimo sobre si
Trata-se de retomar um pouco a ideia de Freud do deliacuterio enquanto uma tentativa de cura e
apostar na capacidade inventiva do sujeito de criar saiacutedas para seu sofrimento
Enquanto uma visatildeo mais tradicionalista da crise retiraria o sujeito do seu contexto de
vida para isolaacute-lo em uma instituiccedilatildeo de tratamento sob a justificativa de monitorar avaliar e
examinar a evoluccedilatildeo do quadro psicopatoloacutegico uma visatildeo mais ampliada da crise vai situar
esse acontecimento dentro do contexto de vida da pessoa e buscar superaacute-la trabalhando com
os elementos que fazem parte de seu cotidiano como o territoacuterio as relaccedilotildees sociais a histoacuteria
de vida etc Trata-se portanto de buscar uma saiacuteda da crise a partir da histoacuteria de vida do
sujeito e de sua realidade acolhendo os caminhos que ele aponta Vista desse modo a crise eacute
um modo de subjetivaccedilatildeo que soacute se constitui no mundo concreto e coletivo o qual o sujeito faz
parte e soacute pode se transformar na medida em que esse mundo tambeacutem se transforma para ele
42 DESAFIOS E POTENCIALIDADES NO ACOLHIMENTO A CRISE
Segundo a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (2013)
Acolher eacute reconhecer o que o outro traz como legiacutetima e singular necessidade de
sauacutede O acolhimento deve comparecer e sustentar a relaccedilatildeo entre equipesserviccedilos e
usuaacuterios populaccedilotildees Como valor das praacuteticas de sauacutede o acolhimento eacute construiacutedo
de forma coletiva a partir da anaacutelise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
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construccedilatildeo de relaccedilotildees de confianccedila compromisso e viacutenculo entre as
equipesserviccedilos trabalhadorequipes e usuaacuterio com sua rede socioafetiva (spag)
Tal poliacutetica considera ainda que o acolhimento eacute uma postura eacutetica e tecnologia
relacional de escuta qualificada a ser oferecida de acordo com agraves necessidades dos usuaacuterios e a
partir de uma avaliaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade gravidade e riscordquo (BRASIL 2013)
Tendo essa concepccedilatildeo de acolhimento como direccedilatildeo visamos atraveacutes da anaacutelise dos
artigos estudados nessa pesquisa trazer algumas contribuiccedilotildees para pensar como tem se dado
o acolhimento agrave crise na RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e quais satildeo os principais
impasses estrateacutegias e ferramentas cliacutenicas que os profissionais encontram na prestaccedilatildeo desse
cuidado no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede
Desse modo a partir da revisatildeo da literatura podemos dizer que um dos primeiros
desafios que se coloca no acircmbito do acolhimento agrave crise eacute que este natildeo seja apenas um processo
de triagem Sobre esse aspecto a pesquisa de Paulon et al (2012) encontrou resultados
relevantes Os autores entrevistaram trabalhadores e gestores de emergecircncias de hospitais gerais
na cidade de Porto AlegreRS aleacutem de analisarem os protocolos utilizados por essas unidades
no processo de acolhimento
Nos protocolos analisados por Paulon et ali (2012) chama atenccedilatildeo o fato de que em
nenhum momento a palavra ldquoacolhimentordquo eacute utilizada Os autores destacam que em um desses
documentos a palavra ldquotriagemrdquo eacute utilizada em seu lugar como um criteacuterio que permite
ldquoclassificar e escolherrdquo
O texto de introduccedilatildeo deste documento segue descrevendo a origem militar desse
termo utilizado em campos de batalha para escolher ldquoquem valeria a pena salvarrdquo de
acordo com os recursos disponiacuteveis dentre aqueles feridos em combate ldquoo objetivo
geral da classificaccedilatildeo era retornar o maior nuacutemero possiacutevel de soldados ao campo de
batalhardquo (FERNANDES RAMOS FRUSTOCKL FRANCcedilA sd 1 apud PAULON
ET AL 2012 75)
Difiacutecil pensar em produzir relaccedilotildees de cuidado a partir de um texto que orienta os
profissionais a pensarem nos seus pacientes como ldquosoldados em um campo de batalhardquo Vemos
que essa concepccedilatildeo de acolhimento enquanto triagem natildeo se restringe apenas a burocracia de
um documento sem efeitos na praacutetica mas encontra-se presente e viva no discurso dos
profissionais desse hospital como observamos na fala a seguir ldquono acolhimento os pacientes
relatam o seu problema e a partir daiacute eacute triado de acordo com a classificaccedilatildeo de riscordquo (
PAULON ET AL 2012 76 grifo do autor)
Outra profissional entrevistada associa o acolhimento ao filme ldquoTempos Modernosrdquo
relembrando a cena em que o personagem de Carlitos de tanto apertar parafusos sai repetindo
66
os movimentos desconexos rua afora Em seguida acrescenta que ldquoa sua proacutexima escala de
acolhimento ocorreraacute dali a dois meses e sente-se aliviada por isso pois prefere ficar nas
maacutequinas de raios-X do que ficar ali na linha de frenterdquo (ibidem 76)
Talvez o comentaacuterio da enfermeira revele um querer colocar as coisas em seus
ldquodevidos lugaresrdquo uma vez que o trabalho com a maquinaria requer mais
apropriadamente o tipo de conduta que lhe parece ser exigida para atuar nos
acolhimentos da emergecircncia Aleacutem disso as maacutequinas de raio-X natildeo precisam ser
esvaziadas de subjetividade do conteuacutedo psicossocial que insiste em ser sugado das
ldquopessoas-parafusordquo da linha de montagem do acolhimentotriagem (ibidem 76)
O acolhimento-triagem transforma a linha de cuidado em ldquolinha de montagemrdquo
tomando o sujeito como um objeto que precisa ser ldquotriadordquo ldquoencaminhadordquo e ldquoclassificadordquo
de acordo com os criteacuterios de um protocolo Perde-se a dimensatildeo leve e relacional desse
cuidado Aspectos como a escuta a produccedilatildeo de viacutenculo e a valorizaccedilatildeo do encontro natildeo tecircm
espaccedilo para emergir em meio ao tempo altamente controlado e aos procedimentos mecanizados
desse cuidado
Com resultado produz-se uma burocratizaccedilatildeo dos dois lados os pacientes veem o
acolhimento como mais um empecilho para ldquoresolverrdquo suas necessidades de sauacutede ou mesmo
para ldquousufruir do consumo de sua dose procedimentalrdquo e os teacutecnicos como castigo obrigaccedilatildeo e
perda de tempo pois estatildeo se afastando do cuidado que seria ldquoo verdadeiro cuidadordquo o cuidado
dos procedimentos das maacutequinas da medicaccedilatildeo etc
O que prevalece assim eacute um cuidado predominantemente vertical de procedimentos
biomeacutedicos para com um usuaacuterio submisso e em estado de passividade uma perfeita
apresentaccedilatildeo do claacutessico ldquopacienterdquo (ibidem 78)
Ao referir-se sobre o acolhimento palavras como ldquoraacutepido efetivo e estabilizadordquo foram
uma constante no discurso dos profissionais Segundo um dos entrevistados
A nossa proposta de acolhimento eacute um acolhimento raacutepido ele tem que ser raacutepido e
efetivo Porque agraves vezes o paciente chega pra mim e eu tenho que conseguir classificar
ele raacutepido justamente pra ele ter um atendimento mais raacutepido (sic)rdquo (ibidem 78)
O risco e a possibilidade de morte muitas vezes colocada associada agrave percepccedilatildeo de um
corpo fiacutesico em colapso eacute o que demanda a accedilatildeo raacutepida O diaacutelogo torna-se empobrecido e
restrito ao que estaacute prescrito nos protocolos de atendimento e o contato reduz-se a execuccedilatildeo de
procedimentos biomeacutedicos que visam a estabilizaccedilatildeo (medicaccedilatildeo afericcedilatildeo dos sinais vitais
entre outros)
A funccedilatildeo da emergecircncia segundo os entrevistados seria devolver a estabilidade das
funccedilotildees orgacircnicas ao corpo que estaacute sendo assistido () E todos os procedimentos
precisam ser feitos rapidamente pois a depender da gravidade do dano instalado
naquele organismo esse desequiliacutebrio poderaacute levar agrave morte (ibidem 78)
67
Entende-se que eacute necessaacuterio que a pessoa em situaccedilatildeo de crise tenha acesso ao cuidado
de forma raacutepida No entanto o que se observa eacute que a rapidez mencionada pelos profissionais
natildeo se restringe somente ao tempo de espera do atendimento mas as etapas e fases do
acolhimento Assim no intuito de ldquoacelerarrdquo a linha de cuidado o paciente recebe um
atendimento fragmentado e burocratizado cujo objetivo eacute conseguir determinar no menor
tempo possiacutevel qual paciente pode esperar qual deve ser atendido imediatamente qual deve ser
encaminhado para outro serviccedilo e qual deveraacute ser internado Sobre esse aspecto um entrevistado
ressalta
O funcionamento da emergecircncia eacute uma coisa mais Mc Donaldrsquos natildeo tem entrada
primeiro prato segundo prato terceiro prato Eles querem ver quem eacute que tem risco
que tenha que internar senatildeo olham o que precisa e lsquodeursquo A emergecircncia eacute voltada
para o foco da doenccedila ela focaliza no tratamento que estanque aquele sofrimento
emergenterdquo (sic) (ibidem 79 grifos nossos)
Os autores pontuam que essas satildeo decisotildees complexas que natildeo podem ser tomadas ldquono
menor tempo possiacutevelrdquo sem que haja necessariamente um processo de simplificaccedilatildeo do
atendimento no qual ldquoo trabalhador tenta adequar a demanda trazida pelo usuaacuterio agravequilo de
que o serviccedilo dispotildee para poder lidar com ela e salvaguardar algum sucesso no resultado do
trabalhordquo (ibidem 79)
Assim tem-se o que Merhy (2002) descreve como ldquotrabalho mortordquo isto eacute um cuidado
que ldquonatildeo estaacute em movimento- em relaccedilatildeordquo (apud PAULON ET AL 2012 79) O sujeito eacute
visto como um ldquoproblemardquo que precisa ser ldquoresolvidordquo a partir do uso das tecnologias que o
serviccedilo dispotildee Natildeo haacute tempo para se descobrir o que haacute de singular na crise daquele sujeito ou
inventar outras articulaccedilotildees que possam dar conta desse sofrimento
Esvazia-se o processo isolam-se as anguacutestias e a complexidade do atendimento da
pessoa que demanda cuidados adequando-a ao que o hospital pode fornecer ldquoOlham
o que precisa e lsquodeursquordquo (sic) (PAULON ET AL 2012 79 grifo do autor)
O acolhimento-triagem eacute a expressatildeo de todo um modo de cuidado duro constituiacutedo por
certos ldquosaberes bem definidosrdquo orientados para que as respostas sejam as mais adequadas e
eficientes no menor tempo possiacutevel Em nome de ideais como a otimizaccedilatildeo do tempo e dos
recursos reduccedilatildeo dos custos e do foco na sintomatologia produz-se um cuidado
homogeneizado padratildeo ldquoMc Donaldsrdquo que jaacute tem em sua cesta de ferramentas todas as
respostas possiacuteveis Assim cabe perguntar
Se o foco da atenccedilatildeo estaacute direcionado aos sinais vitais e agrave sintomatologia fiacutesica
presente no quadro cliacutenico em nome de uma agilidade e eficiecircncia no atendimento
qual seraacute o espaccedilo reservado para tudo o que natildeo estiver inscrito nesse script O que
sobra do sujeito-usuaacuterio que chega com sofrimentos difusos numa emergecircncia Que
acontece quando o tipo de dor e sofrimento que ldquourgerdquo num usuaacuterio eacute de outra ordem
68
que natildeo aquela que costuma estar no foco desses serviccedilos (PAULON ET AL 2012
81)
Parece que haacute um despreparo para lidar com as situaccedilotildees subjetivas que fogem do olhar
cartesiano da Medicina Tradicional e que exigem dos trabalhadores uma disponibilidade outra
de entrar em contato com a pessoa em sofrimento emprestar seu tempo seu corpo seu afeto
As entrevistas apontam que ldquoos profissionais sentem medo de cuidar daquilo que
desconhecem do que natildeo foram capacitadosrdquo (sic)rdquo (ibidem 86) Um outro desafio que
podemos destacar relacionado a esse despreparo eacute a interferecircncia do preconceito e do
julgamento moral no atendimento agrave algumas situaccedilotildees de sauacutede mental Segundo os
pesquisadores
O julgamento moral estaacute presente desde a triagem a qual culmina em uma
classificaccedilatildeo de risco que mescla a objetividade de protocolos organicistas com um
olhar moralizante da situaccedilatildeo que se encontra o usuaacuterio que chega para atendimento
o que acaba relegando a sauacutede mental a um segundo plano e fazendo seleccedilotildees a partir
de determinados paracircmetros como [] a comunhatildeo de preconceitos e valores sociais
no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como ldquoessencialmente natildeo
urgentesrdquo (os alcooacutelatras drogados e pacientes psiquiaacutetricos) a presteza maior no
atendimento a usuaacuterios de classe social e niacutevel cultural mais abastados a importacircncia
da identificaccedilatildeo dos que fingem ou estatildeo dizendo a verdade sobre suas urgecircncias e no
consenso de que se a dor ou o problema eacute antigo quem esperou tanto para acessar o
serviccedilo pode esperar mais (Neves 2006 692 apud PAULON ET AL 2012 84)
No caso de crises relacionadas ao uso abusivo de aacutelcool e outras drogas a equipe das
emergecircncias tende a assumir uma postura acusatoacuteria relegando a responsabilidade da crise ao
usuaacuterio que teria escolhido seguir esse caminho Acredita-se que por estes nada se tem a fazer
e que o melhor eacute ldquocuidar de quem realmente quer ser cuidadordquo Na praacutetica o atendimento dessas
situaccedilotildees revela ldquodescaso incapacidade de escuta ou ateacute negligecircncia para com sujeitos em crise
de abstinecircncia ou torporrdquo (PAULON ET AL 2012 85) Os autores ressaltam que
Nesse sentido subjugar um cidadatildeo que chega agrave emergecircncia com algum tipo de
sofrimento psiacutequico limite reduzindo-o a um lugar de pecado de vergonha pelos seus
atos fora dos padrotildees aceitos socialmente emerge da junccedilatildeo das loacutegicas meacutedica e
judiciaacuteria efetuada pela ativaccedilatildeo de categorias elementares da moralidade de um
discurso essencialmente parental-infantil que eacute o discurso dos cuidadores quando se
imbuem do saber absoluto sobre ldquoo que eacute bom para o outrordquo(ibidem85 )
O atravessamento das expectativas dos profissionais sobre a vida do outro somado aos
valores morais e culturais em vigor na sociedade fomentam um processo de culpabilizaccedilatildeo da
pessoa que procura ajuda o que pode culminar em uma niacutetida desresponsabilizaccedilatildeo com o
cuidado desses pacientes como vemos nos trechos a seguir
Esses sim esses noacutes da equipe de enfermagem temos bastantes dificuldades de lidar
porque tu vecirc o viacutecio como algo que a pessoa vai e faz por que quer tem livre arbiacutetrio
ele escolheu o viacutecio Ateacute as primeiras idas ateacute antes da dependecircncia (sic) (ibidem
84 grifo do autor)
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Chegaram a dizer que ele era uma pessoa egoiacutesta e que natildeo tinha condiccedilotildees de
convivecircncia que era pra eu e minha matildee sairmos de casa ou botar(mos) ele pra fora
(CONTE ET AL 2015 1745 grifo do autor)
Nesse contexto eacute comum por exemplo que a equipe entenda que o ldquoatendimentordquo
possiacutevel eacute a resoluccedilatildeo da demanda fiacutesica do alcoolista (reestabelecimento dos sinais vitais
hidrataccedilatildeo etc) sem que haja nenhum tipo de encaminhamento para um tratamento continuado
na rede ou mesmo uma abordagem sobre a situaccedilatildeo que a pessoa se encontra naquele momento
Esse olhar do cuidado orgacircnico e centrado nos procedimentos fiacutesicos tem se apresentado
como um outro importante desafio a se transpor no niacutevel das praacuteticas de cuidado Nas
emergecircncias gerais cenaacuterio da pesquisa isso fica especialmente evidente Os profissionais
tendem a atribuir mais valor agrave dor fiacutesica do que a psicoloacutegica Como se quem estivesse sofrendo
por um trauma um corte ou uma fratura precisasse mais do atendimento do que um paciente
esquizofrecircnico dependente quiacutemico ou com crise de ansiedade Desse modo as demandas
subjetivas satildeo vistas como aquelas que ldquopodem esperarrdquo e que tomam lugar das demandas
fiacutesicas compreendidas nesta loacutegica como aquelas ldquorealmente urgentesrdquo Sobre esse aspecto
Jardim e Dimenstein (2007 182) ressaltam
O foco do trabalho das urgecircncias psiquiaacutetricas estaacute primordialmente no procedimento
em sua dimensatildeo bioloacutegica no corpo pensado como objeto de intervenccedilatildeo da
anatomia patoloacutegica e qualquer fator que extrapole esse acircmbito eacute desconsiderado
Entatildeo ateacute mesmo enquanto doenccedila mental a loucura foge da loacutegica das urgecircncias
Natildeo se manifesta enquanto lesatildeo palpaacutevel ou visiacutevel [ela] evoca outros
questionamentos incomoda por diferir tanto das outras demandas natildeo se encaixa no
espaccedilo natildeo se submete agrave autoridade potildee em xeque os teacutecnicos e seus saacutebios
conhecimentos desvela as suas impotecircncias (apud PAULON ET AL 2012 87)
Mesmo nos casos em que claramente sabe-se que o motivo da falecircncia do corpo eacute o
sofrimento subjetivo o alvo do cuidado continua sendo limitado ao reparo do dano provocado
ao corpo fiacutesico
Quando uma crianccedila chega agrave emergecircncia por automutilaccedilatildeo ou mesmo quando um
adulto adentra a sala com os pulsos cortados os profissionais entendem que sua
funccedilatildeo nesse caso eacute de limpar e suturar os ferimentos O motivo da consulta eacute o
ferimento - novamente o fiacutesico - e os possiacuteveis procedimentos que nele possam ser
executados Jaacute os motivos do plano psiacutequico e social que possivelmente causaram tal
emergecircncia (e natildeo raras vezes causaratildeo novamente e justificaratildeo uma reinternaccedilatildeo ndash
uma das variaacuteveis determinantes da hiperlotaccedilatildeo das emergecircncias) natildeo satildeo alvo de
investimentos por parte das equipes (PAULON ET AL 2012 85)
Haacute um certo mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo pois ao contraacuterio da
patologia orgacircnica ele natildeo se submete as loacutegicas de um saber estruturado e natildeo ldquo se resolverdquo a
partir de um manejo ou intervenccedilatildeo O sofrimento subjetivo retorna e continua a colocar em
xeque os profissionais seus saberes e as instituiccedilotildees Em um serviccedilo como a emergecircncia o que
70
natildeo pode ser ldquoresolvidordquo eacute frequentemente esquecido o que natildeo deixa de ser paradoxalmente
uma forma de ldquoresoluccedilatildeordquo do problema
Nos serviccedilos especializados embora a demanda de sauacutede mental seja mais evidente
parece que a direccedilatildeo do cuidado eacute igualmente no sentido de invisibilizaacute-la Pesquisas como a
de Zeferino et al (2016) sobre a percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre a atenccedilatildeo agrave crise
sauacutede mental apontam que a intervenccedilatildeo muitas vezes eacute no sentido de ldquocalarrdquo o sintoma
revelando que embora o modelo de sauacutede tenha mudado as praacuteticas medicalizantes e
hospitalocecircntricas ainda prevalecem
Essa pesquisa foi feita com 156 alunos do curso ldquoCrise e Urgecircncia em Sauacutede Mentalrdquo
ldquotrabalhadores da RAPS com formaccedilatildeo em niacutevel universitaacuterio que atuam no cuidado em sauacutede
mental no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) oriundos das diversas Regiotildees do Brasil
selecionados pelo Ministeacuterio da Sauacutederdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag) Como forma de
cuidado na crise os participantes citaram majoritariamente medidas como ldquocontenccedilatildeo
medicamentosa contenccedilatildeo mecacircnica e internaccedilatildeo accedilotildees que se limitam agrave diminuiccedilatildeo de
sintomasrdquo (idem p) como descrito nas falas abaixo
Quando chegam ao serviccedilo dependendo de como estejam satildeo contidos no leito com
faixas de contenccedilatildeo pelos monitores e depois satildeo vistos pelos meacutedicos Psiquiatras que
determinam a contenccedilatildeo medicamentosa feita a administraccedilatildeo da medicaccedilatildeo ficam
em observaccedilatildeo (E1 A124 - CAPS II) (ibidem spag )
Nas urgecircncias a primeira conduta eacute a intervenccedilatildeo medicamentosa que ocorre pela
equipe de enfermagem tanto na unidade como em domiciacutelio em alguns casos com
apoio da Guarda Municipal para contenccedilatildeo fiacutesica Logo que possiacutevel o paciente eacute
avaliado pelo meacutedico que quase sempre orienta a internaccedilatildeo (E1 A64 - CAPS II)
(ibidem spag)
Quando temos um usuaacuterio em crise e a famiacuteliar liga para pedir ajuda da equipe do
CAPS orientamos que entre em contato com o SAMU para levaacute-lo ao hospital e
entatildeo o usuaacuterio ser medicado Se a Crise for muito forte este eacute encaminhado para a
capital onde seraacute internado[] (E1 A147 - CAPS II) (ibidem spag)
Nota-se que as primeiras intervenccedilotildees mencionadas pelos profissionais satildeo a contenccedilatildeo
fiacutesica eou medicamentosa seguida do encaminhamento para o hospital A avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo
de crise eacute vista como uma responsabilidade uacutenica e exclusiva do meacutedico da qual a equipe natildeo
participa Na terceira fala por exemplo observamos que o profissional sequer tenta entender a
situaccedilatildeo que levou o usuaacuterio a entrar em crise O CAPS tampouco parece ser visto como um
dispositivo a ser acionado nas situaccedilotildees de crise O encaminhamento imediato eacute ligar para o
SAMU para que o usuaacuterio seja levado ao hospital
Embora o CAPS seja o dispositivo por excelecircncia substitutivo ao hospital e por isso
privilegiado no atendimento agraves situaccedilotildees de crise a expectativa dos profissionais eacute de que
71
outros serviccedilos se ocupem da crise e que o usuaacuterio retorne ao CAPS quando estiver
ldquoestabilizadordquo conforme vemos a seguir
A equipe tem se mostrado omissa quando presencia um momento de crise e ao inveacutes
de intervir busca encaminhar e se livrar do problema (E1 A141 - CAPS II) (ibidem
spag)
O usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao Hospital Geral para a
estabilizaccedilatildeo retornando ao CAPS assim que estiver compensado para a
continuidade do seu tratamento (E1 A92 - CAPS II) (ibidem spag)
A ideia da estabilizaccedilatildeo associada prioritariamente agrave intervenccedilatildeo farmacoloacutegica e a
hospitalizaccedilatildeo aleacutem de reforccedilar o modelo manicomial deposita a esperanccedila da melhora em uma
soluccedilatildeo externa e maacutegica retirando a possibilidade do sujeito se responsabilizar pelo seu
sintoma e talvez encontrar outra soluccedilatildeo para sua compensaccedilatildeo Segundo os autores ldquoVaacuterias
correntes teoacutericas tem apontado que o objetivo das praacuteticas de sauacutede mental precisa ser a
ampliaccedilatildeo da capacidade de cada um lidar consigo mesmo e com os outros e natildeo apenas a
remissatildeo de sintomasrdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag)
Assim embora alguns profissionais reconheccedilam a necessidade de uma mudanccedila em
relaccedilatildeo a essas praacuteticas parecem ter dificuldades de nortear suas accedilotildees sob a loacutegica do modelo
psicossocial como podemos ver nas falas a seguir
Vejo-me com tantas perguntas sobre crises como identificaacute-la como agir o que natildeo
fazer a resposta medicamentosa me parece faacutecil e raacutepida poreacutem me angustia tecirc-la
como resposta gostaria de descobrir outros caminhos (E1 A52 - CAPS II) (ibidem
spag)
A equipe tem se esforccedilado no cuidar natildeo tem sido faacutecil pois exige um
amadurecimento da mesma procurando natildeo limitar na terapia medicamentosa no
modelo meacutedico-centrado mas sim em acolher natildeo soacute o paciente mas os familiares
buscando interagir com os parceiros da RAPS Nas nossas reuniotildees de equipe sempre
discutimos casos novos (E1 A66 - CAPS I) (ibidem spag)
Destaca-se nesse contexto que a formaccedilatildeo hegemonicamente biomeacutedica e a
inadequaccedilatildeo dos curriacuteculos para aacuterea da sauacutede mental reforccedilam o apelo agrave resposta ldquoprontardquo da
medicaccedilatildeo e contribuem para a manutenccedilatildeo do modelo manicomial ldquoO diagnoacutestico apressado
a conduta extremamente teacutecnica e desumana a medicalizaccedilatildeo de todas as queixas e as
dificuldades no contatordquo (ibidem spag) satildeo expressotildees de um modelo de cuidado duro que
imbuiacutedo dos ideais de neutralidade da praacutetica meacutedica simplifica e compromete a integralidade
do cuidado Sobre esse aspecto um profissional comenta
Trabalhamos ainda focados na praacutetica meacutedica quase em todos os episoacutedios a
medicalizaccedilatildeo ocorre em primeiro lugar Principalmente com a falta de capacitaccedilatildeo
dos profissionais envolvidos Esta atuaccedilatildeo soacute fortalece a dependecircncia do hospital
psiquiaacutetrico (E1 A53 - CAPS II) (ibidem spag)
72
Para agravar a situaccedilatildeo a rede tambeacutem natildeo consegue dar respostas pois tambeacutem natildeo
estaacute preparada para tais situaccedilotildees Ocorre que esse usuaacuterio percorre um caminho de
sofrimento e descaso (E1 A141 - CAPS II) (ibidem spag)
Na pesquisa de Almeida et al (2012) com 14 profissionais de quatro equipes do SAMU
no estado de Santa Catarina a falta de capacitaccedilatildeo teacutecnica para o atendimento agraves situaccedilotildees de
crise tambeacutem aparece enquanto um desafio As dificuldades relatadas pelos profissionais
perpassam o medo a falta de conhecimento sobre a crise e o despreparo no momento de abordar
o paciente
Acredito que a experiecircncia do dia a dia me faz ter certo preparo teacutecnico mas com
dificuldade na questatildeo psicoloacutegica Por ser o SAMU um serviccedilo de Urgecircncia e
Emergecircncia e natildeo de continuaccedilatildeo do cuidado realiza-se o necessaacuterio mas acho que
poderiacuteamos ter um preparo melhor Fico muito em alerta a tudo o que o paciente faz
a forma dele agir e de se expressar Eu abordo porque tem que abordar mas eu natildeo me
sinto preparado Pode-se dizer que estou preparado na medida do possiacutevel pois
consigo realizar teacutecnicas para contenccedilatildeo fiacutesica mas natildeo psicoloacutegica Em algumas
situaccedilotildees natildeo me sinto preparado e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia militar
No caso de agressividade natildeo me sinto preparado Acredito que precisariacuteamos de mais
orientaccedilatildeo pois eacute a uacutenica aacuterea que a gente natildeo tem capacitaccedilatildeo Quando consigo me
aproximar na abordagem a pessoa fica tranquumlila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmo
Com certeza precisa mais coisa para o atendimento orientaccedilatildeo Acredito que a falta
de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz com que o
atendimento siga uma forma natildeo correta
(P1P2P3P4P5P6P7P9P10P13P14)(ALMEIDA ET AL 2012 710)
A falta de preparo muitas vezes eacute o que justifica o uso da forccedila fiacutesica e da agressividade
conforme retratado nas falas ldquoquando consigo me aproximar na abordagem a pessoa fica
tranquila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmordquo ldquoem algumas situaccedilotildees natildeo me sinto preparado
e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia miliarrdquo ldquono caso de agressividade natildeo me sinto
preparadordquo Assim vemos a importacircncia do investimento em processos de educaccedilatildeo
permanente supervisatildeo cliacutenica e cursos de formaccedilatildeo para que os profissionais encontrem meios
de manejar as situaccedilotildees de crise sem necessidade do uso de violecircncia
A formaccedilatildeo precisa ser vista como um ldquoprocesso dinacircmico e contiacutenuo de construccedilatildeo do
conhecimento pautado no diaacutelogo em que todos os atores assumam papel ativo no processo de
aprendizagem atraveacutes de uma abordagem criacutetica e reflexiva da realidaderdquo (ibidem713)
Acreditamos que atraveacutes dela as concepccedilotildees de crise o imaginaacuterio social da loucura e os
conceitos de risco e periculosidade podem ser revisitados e problematizados fornecendo
subsiacutedios para uma praacutetica orientada para a escuta das necessidades do sujeito do viacutenculo e do
cuidado em liberdade
Assim podemos dizer que o cuidado dos profissionais ainda representa em grande parte
caracteriacutesticas do modelo asilar como intervenccedilotildees centradas na contenccedilotildees fiacutesica e
medicamentosa excesso de internaccedilotildees acolhimento burocratizado falta de preparo na
73
abordagem ao paciente em crise resultando no uso da forccedila fiacutesica e da agressividade aleacutem de
praacuteticas de preconceito e discriminaccedilatildeo sendo estes alguns dos principais desafios apontados
pela literatura estudada no acolhimento agrave crise no acircmbito da Reforma Psiquiaacutetrica e do SUS
(Sistema Uacutenico de Sauacutede)
Quanto agraves potencialidades no acolhimento agrave crise podemos destacar algumas estrateacutegias
referidas pela literatura Na pesquisa de Lima et al (2012) da qual participaram profissionais
usuaacuterios gestores e familiares de 11 CAPS nas cidades da Bahia e Sergipe emergiram enquanto
elementos que favorecem o manejo da crise segundo a perspectiva dos participantes
a) acolhimento diurno e noturno b) observaccedilatildeo continuada e contiacutenua c) atenccedilatildeo
domiciliar (visitas domiciliares) d) responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso
e) presenccedila do psiquiatra na equipe para garantir o ecircxito da prescriccedilatildeo f) negociaccedilatildeo
e apoio concreto ao familiar para que o internamento seja o uacuteltimo recurso utilizado
g) elaboraccedilatildeo de cartilha com orientaccedilatildeo sobre como lidar com a crise de pessoas com
transtornos para profissionais natildeo especializados em sauacutede mental e para familiares
h) implantaccedilatildeo das ldquoOficinas de criserdquo 5nos CAPS i) estabelecimento de limites para
os usuaacuterios atraveacutes de regras de convivecircncia para evitar o uso de aacutelcool e outras drogas
no CAPS e como sugerem os parentes j) na perspectiva dos familiares natildeo podem
faltar carinho compreensatildeo e feacute (LIMA ET AL 2012 430 grifo nosso)
Recursos como o acolhimento diurno e noturno quando possiacutevel no caso de CAPS III
associado agrave observaccedilatildeo contiacutenua e agrave responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso indicam a
importacircncia de um cuidado mais intensivo nos momentos de crise Uma estrateacutegia possiacutevel
nesse sentido eacute aumentar a frequecircncia do paciente no serviccedilo para que a equipe possa
acompanhar o caso mais de perto e oferecer suporte antes que a situaccedilatildeo se agrave Isso implica
em uma revisatildeo do Projeto Singular Terapecircutico para construir outros espaccedilos onde o sujeito
possa produzir sauacutede A inclusatildeo de recursos do territoacuterio e espaccedilos no proacuteprio serviccedilo que
possam dar alguma continecircncia agrave desorganizaccedilatildeo e aos sentimentos disruptivos que emergem
na crise tambeacutem eacute uma accedilatildeo fundamental na direccedilatildeo de um cuidado territorial e em liberdade
Outras pesquisas como a de Peireira Saacute e Miranda (2017) indicam a utilizaccedilatildeo da
intensividade do cuidado de forma exitosa permitindo a saiacuteda do estado de crise
O irmatildeo de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora
resultado principalmente do aumento dos dias em que esta permanecia no serviccedilo
da disponibilizaccedilatildeo de um carro para transportaacute-la e da intensificaccedilatildeo dos contatos
dos profissionais com a famiacutelia (ibidem 3738 )
As visitas domiciliares tambeacutem se mostram estrateacutegias muito eficientes nos momentos
de crise em que natildeo eacute possiacutevel para o sujeito ir ateacute o serviccedilo Baseadas em uma tecnologia-leve
e relacional de cuidado tem como suas principais ferramentas a aposta no encontro no viacutenculo
5 Segundo os autores trata-se de um espaccedilo que ldquomanteacutem o usuaacuterio em crise sob acompanhamento intensivo
tendo como premissa soacute recorrer agrave internaccedilatildeo como uacuteltima alternativardquo (LIMA ET AL 2012 429)
74
na escuta qualificada e no diaacutelogo Aleacutem disso indicam a importacircncia de dois elementos
fundamentais na loacutegica da atenccedilatildeo psicossocial a intervenccedilatildeo dentro do contexto de vida do
sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) e a disponibilidade de prestar o cuidado
no momento em que ele eacute necessaacuterio
Outro achado da pesquisa de Lima et al (2012) que reflete a potecircncia da tecnologia
vincular no acolhimento agrave crise eacute a percepccedilatildeo dos profissionais que os usuaacuterios mais antigos e
conhecidos pela equipe tecircm menos chances de serem internados em uma situaccedilatildeo de crise do
que os novos Sobre esse aspecto ressaltamos a fala de uma trabalhadora entrevistada
Uma coisa interessante tambeacutem eacute que os pacientes jaacute conhecidos jaacute usuaacuterios haacute algum
tempo os profissionais de referecircncia deles agraves vezes jaacute datildeo conta de alguma forma A
gente observa situaccedilotildees assim os pacientes novos em geral que satildeo encaminhados pra
emergecircncia tecircm um quadro de agitaccedilatildeo e precisam de medicaccedilatildeo Mas outros casos a
gente jaacute consegue controlar sem medicaccedilatildeo pelos viacutenculos mas os que jaacute satildeo da
casa Os que jaacute tecircm um tempo conosco Como a gente tem vivenciado uma coisa que
se prende ateacute a noacutes psiquiatras porque a gente lida muito com a medicaccedilatildeo aquele
paciente sair daquele quadro sem medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431 grifo nosso)
Assim o viacutenculo e a escuta quando bem utilizados possibilitam a estabilizaccedilatildeo do
quadro de crise sem que haja necessidade de se utilizar tecnologias duras como a internaccedilatildeo
ou (leves-duras) como a medicaccedilatildeo Entrar em contato com a crise entendendo o contexto em
que ela ocorre e permitindo que o sofrimento do sujeito se expresse eacute o ponto de partida para
que algum acolhimento possa se dar
Acolher a crise poder escutar que crise eacute essa crise psiquiaacutetrica crise do sujeito
poder escutar o sujeito e aproveitar a crise como sendo a forma que ele tem de se
manifestar ele conseguiu colocar no sintoma aquele sofrimento todo que ele tava
entatildeo aproveitar fazer uma escuta e acolher aquilo antes de vocecirc calar com a
medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431)
A pesquisa de Willrich et al (2013) com profissionais de um CAPS II em Alegrete (RS)
tambeacutem aponta a importacircncia do viacutenculo e da construccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de reciprocidade com
o usuaacuterio como estrateacutegias fundamentais no acolhimento ao momento de crise como indicam
as falas dos trabalhadores participantes desse estudo
Acho que a gente tem que ter esse cuidado quando a pessoa estaacute em crise ter sempre
algueacutem que possa estar intensivamente mais perto (A4) (ibidem659)
A gente vai para desarmar a gente natildeo vai se o cara estaacute irritado violento eu natildeo
vou laacute para provocar a violecircncia nele Pelo contraacuterio eu quero que ele se apoacuteie em
mim para ver se ele consegue desarmar a tal da violecircncia que estaacute na cabeccedila dele Eacute
assim que eu procedo nesses assuntos () aiacute ele vem e ndash Ah disco voador que natildeo
sei o quecirc Eu natildeo vou dizer que natildeo existe disco voador Eu entro na loucura faccedilo
um flerte com a loucura dele para tentar construir um pouco de sauacutede ir construindo
Num primeiro momento natildeo tem como ir contra () Tem coisas que tu natildeo vai
conseguir manejar tem que ter estar junto com outros Aiacute tem que segurar tem que
sentar tem que acalmar (A6) (ibidem 659 grifo do autor)
75
A possibilidade de sustentar estar junto com o usuaacuterio tomando suas anguacutestias como
reais ainda que resultem de uma experiecircncia alucinatoacuteria ou delirante possibilita a construccedilatildeo
de uma relaccedilatildeo de confianccedila entre o profissional e o usuaacuterio A partir desta relaccedilatildeo o serviccedilo
comeccedila a se constituir enquanto um espaccedilo de apoio como uma referecircncia concreta para o
usuaacuterio de onde buscar ajuda nos momentos de crise
A tomada de responsabilidade desse CAPS em relaccedilatildeo agrave crise se transmite tambeacutem na
clareza de que o suporte nesses momentos precisa ser imediato conforme vemos a seguir
A gente sempre procura eacute pedir para as colegas laacute da frente que quando elas atendem
o telefone eacute para perguntar se eacute urgecircncia ou natildeo Se eacute um caso que um paciente estaacute
agredindo o familiar ou coisa a gente tem que largar tudo que estaacute fazendo para ir
atender (A2)( WILLRICH ET AL 2013 659)
Enquanto na pesquisa de Zeferino et al (2016) mencionada anteriormente a primeira
conduta ao atender uma situaccedilatildeo de crise por telefone era orientar a famiacutelia a chamar o SAMU
vecirc-se que neste CAPS a equipe entende as situaccedilotildees de crise como uma missatildeo desse serviccedilo
e por isso como uma prioridade na agenda Essa postura de ldquolargar tudo o que se estaacute fazendo
para ir atenderrdquo indica um compromisso eacutetico muito forte com o cuidado no territoacuterio e com a
desinstitucionalizaccedilatildeo Isso natildeo significa que a equipe natildeo possa avaliar que eacute necessaacuterio
internar mas antes ela busca apropriar do caso e oferecer suporte
A direccedilatildeo da internaccedilatildeo como o uacuteltimo recurso a ser acionado no cuidado conversa
diretamente com a importacircncia de praacuteticas de prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise e de seu
agravamento Nessa linha de pensamento podemos destacar a fala do profissional a seguir
A estrateacutegia que eu sempre penso e que eu sempre falo para o grupo eacute a estrateacutegia da
prevenccedilatildeo Se eu sei que um usuaacuterio estaacute entrando em crise e eu sei porque ele estaacute
todo o dia aqui com a gente desde laacute da recepccedilatildeo ateacute aqui Se eu sei que um usuaacuterio
estaacute com um problema mais seacuterio eu tenho que antecipar isso () se ele comeccedila a ter
problemas a gente tem que intervir () Entatildeo a gente tem que estar sempre de olho
para prevenir o surto () A visatildeo que a gente procura ter e discutir nas reuniotildees de
equipe eacute assim vamos prevenir () Entatildeo eu acho que a prevenccedilatildeo se chegou mal
aqui atende logo Se precisar levar para o pronto-socorro leva porque a gente natildeo
tem psiquiatra 24 horas oito horas aqui Entatildeo tem certas coisas que a gente natildeo pode
nem querer fazer Vai estar chamando o psiquiatra entatildeo leva para o pronto-socorro
que estaacute ali o carro estaacute aqui Se natildeo estiver vem a ambulacircncia de laacute Se toma uma
atitude para evitar (A3) (WILLRICH ET AL 2013 660 grifo nosso)
Gostariacuteamos de acrescentar que embora seja importante prestar o cuidado de forma
imediata nos momentos de crise evitando que a situaccedilatildeo se agrave devemos estar atentos para
que a direccedilatildeo de prevenir natildeo se transforme em uma caccedila agraves bruxas aos sintomas O objetivo
final natildeo pode ser medicar conter e internar para ldquoprevenirrdquo A direccedilatildeo de cuidado precisa
continuar sendo a autonomia do sujeito e a produccedilatildeo de sua sauacutede
76
Desse modo trabalhar na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise significa primeiramente
trabalhar em rede Natildeo se espera que um serviccedilo sozinho seja capaz de prevenir uma crise mas
o serviccedilo reconhecendo seus limites pode identificar e lanccedilar matildeo de outros recursos do
territoacuterio para compor uma rede de cuidados que verdadeiramente ampare o sujeito Logo saber
que o serviccedilo ldquonatildeo dispotildee de psiquiatra 24hrsrdquo e que natildeo funciona aos finais de semanas e no
periacuteodo noturno satildeo pontos que exigem dos profissionais a responsabilizaccedilatildeo do cuidado
atraveacutes da construccedilatildeo de uma articulaccedilatildeo em rede
O pronto-acolhimento indicado na fala ldquose chegou mal aqui atende logordquo a articulaccedilatildeo
em rede acompanhando o paciente em outros serviccedilos como o pronto-socorro se necessaacuterio a
revisatildeo do PTS (Projeto Terapecircutico Singular) a realizaccedilatildeo de visitas domiciliares e a
disponibilidade de cuidar da crise nos espaccedilos onde ela surge satildeo elementos que aparecem nos
artigos estudados como fundamentais no acolhimento integral agraves situaccedilotildees de crise
Outro ponto mencionado eacute o trabalho em equipe especialmente quando a situaccedilatildeo eacute
grave e pode ocasionar riscos para o profissional ou para terceiros A maioria dos profissionais
indicou ser importante natildeo estar sozinho na abordagem ao paciente em crise
Quando eacute muito assim arriscado eu natildeo vou sozinha Porque olha os casos assim
que eu natildeo estou conseguindo fazer grupo que estaacute muito nervoso que ele estaacute vendo
alguem em mim enfim eu procuro compartilhar isso com algum dos colegas Porque
dai se precisar manejar a gente maneja de dois e melhor que manejar de um [A6]
Eu acho que eacute soacute com cautela Nunca ir sozinha quando vecirc que haacute um risco de perigo
sempre levar mais algueacutem [A23]
Porque aqui a gente tem muita [] todos ajudam Entatildeo quando um estaacute um usuaacuterio
estaacute em surto geralmente todo mundo vem ajudar (WILLRICH J Q ET AL 201156-
57 grifos nossos)
Conforme ressaltam os autores ldquoessas accedilotildees contribuem para a construccedilatildeo de um olhar
que respeita a individualidade e valoriza a subjetividade rdquo (WILLRICH ET AL 2013 662)
Assim acolher eacute mais do que ldquoabrir as portas do serviccedilo para a permanecircnciardquo eacute construir uma
relaccedilatildeo de confianccedila com o usuaacuterio tecer uma rede que o ampare no territoacuterio trabalhar de
forma multidisciplinar e acolher o sofrimento do outro como vaacutelido entendendo-o como parte
da sua experiecircncia e do seu contexto de vida
43 ORGANIZACcedilAtildeO DA REDE DE CUIDADOS
A luta pela superaccedilatildeo do aparato manicomial disparada pela Reforma Psiquiaacutetrica
implica nos serviccedilos da Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial (RAPS) a transformaccedilatildeo efetiva da
assistecircncia agraves pessoas em situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico Acreditamos nesse sentido ser
fundamental a possibilidade de construccedilatildeo de uma rede coesa e bem articulada que possa
77
efetivamente substituir o hospital psiquiaacutetrico dispensando a necessidade de centralizaccedilatildeo do
cuidado em um soacute serviccedilo evitando os efeitos negativos jaacute apontados na literatura que uma
instituiccedilatildeo total6 acarreta na vida dos indiviacuteduos agrave ela submetidos
Pensando na organizaccedilatildeo da rede algumas questotildees que pretendemos investigar nesse
capiacutetulo satildeo qual eacute o grau de acessibilidade dos serviccedilos aos sujeitos em crise Quais satildeo suas
maiores barreiras de acesso O que favorece e o que desfavorece a continuidade da linha de
cuidado Como os serviccedilos enxergam seu papel na rede Como se daacute a integraccedilatildeo entre os
serviccedilos no acolhimento aos casos de crise Como eacute a integraccedilatildeo dos serviccedilos com a rede
intersetorial e com os dispositivos do territoacuterio
Vista dessa forma a atenccedilatildeo agrave crise representa um ponto de amarraccedilatildeo de diversas
estrateacutegias propostas pela PNSM sendo um importante analisador das possibilidades de
conexotildees da rede suas articulaccedilotildees com os recursos assistenciais e com os recursos do
territoacuterio sua acessibilidade e seu grau de permeabilidade diante das reais necessidades de
sauacutede das pessoas Considerando que a Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo em construccedilatildeo
cabe discutir quais satildeo os desafios que os serviccedilos encontram para acolher a crise no territoacuterio
uma vez que cada vez mais o hospital tem se tornando um ponto de ldquoescoamentordquo dos fracassos
da rede
Pensando nos aspectos que podem figurar como barreiras de acesso aos usuaacuterios no
SUS uma primeira questatildeo que surge eacute a demora para conseguir iniciar um tratamento Com
base na literatura estudada vaacuterias pesquisas como as dos autores Bonfada et al (2013) Conte
et al (2015) e Pereira Saacute e Miranda L (2014) apontam para a existecircncia de grandes filas de
espera para iniciar o tratamento mesmo nos casos de crise
Conte et al (2015) comentam que as imensas filas de espera satildeo o resultado de um
enorme deacuteficit de profissionais Aleacutem do quantitativo dos profissionais ser insuficiente para
suprir a rede natildeo haacute contrataccedilatildeo temporaacuteria para os casos de licenccedila feacuterias ou afastamento por
motivo de doenccedila Uma das profissionais entrevistada nesse estudo retrata esse quadro
comentando o impacto disso no cuidado ldquovia de regra a gente telefona explica sensibiliza o
colega e ouve olha me desculpa soacute que eu estou com uma lista de espera imensa eu sou soacute
uma A colega entrou de feacuterias e a outra em licenccedila maternidaderdquo (CONTE ET AL 2015
1746)
6 Ver Goffman (2001)
78
Na praacutetica a demora no acesso aos serviccedilos faz com que os usuaacuterios soacute consigam ser
acolhidos quando a situaccedilatildeo jaacute eacute muito grave Bonfada el al (2013) expressam esse aspecto
atraveacutes da fala de um trabalhador do serviccedilo de emergecircncia do SAMU Segundo esse
entrevistado ldquo a populaccedilatildeo natildeo tem acesso aos serviccedilos de psiquiatria Entatildeo os doentes entram
em crise pra poder ter o acesso ao serviccedilo de psiquiatria (E1)rdquo (BONFADA ET AL 2013 230)
Mesmo nos casos de crise os serviccedilos ainda encontram dificuldades para oferecer um pronto-
atendimento Pereira Saacute e Miranda L (2014) pontuam que todos os usuaacuterios participantes de
sua pesquisa ldquoesperaram ao menos uma semana para serem consultados nos serviccedilos mesmo
nas situaccedilotildees de criserdquo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2140)
Conte et al (2015) discutem que a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se
estabelecer uma classificaccedilatildeo de risco na lista de espera contribui ainda mais para dificuldade
de acesso e para a sensaccedilatildeo de impotecircncia e sofrimento dos profissionais diante da demanda
natildeo atendida
Inadequaccedilotildees da estrutura fiacutesica dos serviccedilos tambeacutem satildeo apontadas como barreiras de
acesso Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014)
Natildeo haacute adaptaccedilatildeo do preacutedio para uso de pessoas com necessidades especiais e
tampouco disponibilidade de automoacutevel (ibidem 2150)
O fato de hoje existir uma fila de espera para os primeiros atendimentos tambeacutem eacute
atribuiacutedo a falta de espaccedilo fiacutesico Haacute apenas duas salas pequenas o que prejudica a
realizaccedilatildeo de atividades grupais (ibidem 2150)
Em pesquisa sobre a atuaccedilatildeo do SAMU na cidade de Natal Brito Bonfada e Guimaratildees
(2015) mencionam a falta de ambulacircncias como um dos principais fatores que resultam em
longas filas de espera para os chamados natildeo urgentes e demora mesmo nos chamados urgentes
Percebeu-se que o nuacutemero de ambulacircncias disponiacuteveis ao atendimento da populaccedilatildeo
municipal eacute insuficiente em vaacuterias situaccedilotildees Os chamados superam a capacidade
operacional de atendimento do Samu-Natal gerando longa fila de espera e demora no
atendimento dos chamados natildeo classificados em coacutedigo vermelho ou seja
prioritaacuterios(ibidem 1297)
A superlotaccedilatildeo dos serviccedilos a inadequaccedilatildeo e insuficiecircncia dos equipamentos os deacuteficits
de equipe e as inadequaccedilotildees estruturais tambeacutem satildeo apontados como aspectos que fragilizam
os serviccedilos impossibilitam as accedilotildees no territoacuterio e a integralidade do cuidado especialmente
nos casos mais sensiacuteveis que requerem mais recursos
Algumas dificuldades praacuteticas parecem contribuir para as deficiecircncias percebidas nos
serviccedilos de sauacutede mental entre elas o nuacutemero insuficiente de equipamentos que leva
os existentes a se sobrecarregarem com uma aacuterea de abrangecircncia superior agravequela com
a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido nuacutemero e a escassa
variedade de profissionais que limitam as possibilidades de articulaccedilatildeo de accedilotildees
muacuteltiplas e criativas Em decorrecircncia dessas deficiecircncias a que muitas vezes se soma
79
a total inadequaccedilatildeo da estrutura fiacutesica os serviccedilos ficam fragilizados e assim
impossibilitados de promover accedilotildees territoriais e integrais de cuidado como
acolhimento agrave crise envolvimento da famiacutelia no tratamento e estrateacutegias de
reabilitaccedilatildeo psicossocial (MACHADO SANTOS 2013 710)
No que se refere agrave capacidade dos serviccedilos favorecerem a continuidade do cuidado
prestado no estudo de Conte al (2015) com idosos que tentaram o suiciacutedio na rede de Porto
Alegre (RS) observamos que accedilotildees fragmentadas diagnoacutesticos apressados e ofertas de cuidado
riacutegidas e padronizadas produziram o abandono do tratamento em alguns casos e a fragilizaccedilatildeo
do viacutenculo com o serviccedilo em outros Importante dizer que todos os idosos procuraram ajuda e
tinham os serviccedilos territoriais como referecircncias para sua sauacutede
Em uma das histoacuterias a paciente com diagnoacutestico de depressatildeo foi encaminhada para
um grupo terapecircutico no ambulatoacuterio poreacutem o aumento do nuacutemero dos participantes no grupo
comeccedilou a lhe provocar desconforto ldquoNo iniacutecio era bom mas depois vinham muitos
[participantes] cada um levava muitos problemas Agraves vezes tu ia[s] laacute numa boa e saias ruimrdquo
(CONTE ET AL 20151743 grifo do autor)
Por conta disso e das frequentes trocas de profissionais de referecircncia essa senhora
abandonou o tratamento iniciando a partir daiacute um circuito de sucessivas internaccedilotildees e uma
tentativa de suiciacutedio No momento em que a paciente deixou de frequentar o grupo o
ambulatoacuterio natildeo se ocupou de fazer-lhe uma visita domiciliar ou tentar contato o que poderia
ter evitado o abandono do tratamento e a posterior tentativa de suiciacutedio Por conta proacutepria a
paciente buscou ajuda e se inseriu na associaccedilatildeo do bairro que promovia atividades de lazer
(churrascos bailes e jogos) conseguindo por meio desse recurso superar a falta de vontade de
viver
Embora essa histoacuteria tenha um desfecho positivo chama atenccedilatildeo a falta de
responsabilidade do serviccedilo sobre a linha de cuidado dessa paciente Diante do fato dessa
senhora natildeo se ldquoencaixarrdquo mais no grupo o ambulatoacuterio natildeo pode ofertar-lhe um outro espaccedilo
de suporte deixando-a desassistida Isso mostra a rigidez e padronizaccedilatildeo dos espaccedilos de
cuidado desse serviccedilo que colocou sobre uma paciente fragilizada a responsabilidade integral
do seu cuidado
Em outro caso o desfecho natildeo foi tatildeo positivo Um senhor com adiccedilatildeo em jogos aacutelcool
e cigarro apoacutes vaacuterias tentativas de tratamento em serviccedilos diferentes recebia ldquoaltardquo por natildeo
aceitar ficar abstinente Segundo o mesmo ldquoSe eu tiver que parar como trago eu natildeo vou me
tratar Antidepressivo e bebida natildeo combinamrdquo (CONTE et al 2015 1744)
80
Em outra ocasiatildeo surgiu a possibilidade de ingressar em um CAPSad para realizar
tratamento do alcoolismo () Poreacutem mais uma vez ele natildeo parou de beber o que
impediu sua adesatildeo ao tratamento Novamente teve alta do tratamento porque natildeo se
enquadrava nos criteacuterios exigidos pelo serviccedilo (CONTE et al 2015 1744)
Ainda que a poliacutetica atual no tratamento de casos de drogadiccedilatildeo seja a Poliacutetica de
Reduccedilatildeo de Danos os serviccedilos em questatildeo parecem desconhecer ou resistir agrave essa alternativa
A rigidez das ofertas de cuidado impostas agrave esse senhor terminaram por deixaacute-lo em completo
abandono impossibilitando qualquer modalidade de tratamento
A Reduccedilatildeo de Danos uma vez que natildeo impotildee a abstinecircncia como condiccedilatildeo do
tratamento poderia ser um caminho na direccedilatildeo de cuidar do abuso do uso do aacutelcool e da melhora
da qualidade de vida desse paciente No entanto a inflexibilidade dos serviccedilos em repensar suas
ofertas de cuidado de modo a considerar as escolhas desejos limites e possibilidades de quem
procura ajuda resultaram na perda do tratamento e na posterior internaccedilatildeo desse idoso pela
famiacutelia em um asilo
O terceiro idoso dessa pesquisa ao deparar-se com adoecimento da esposa que tinha
Alzheimer e com a falta de ajuda dos familiares para lidar com essa situaccedilatildeo tomou para si o
seu cuidado o que ao longo dos anos lhe trouxe um vasto desgaste emocional Segundo os
autores ldquoO cansaccedilo emocional agravado pela descoberta de um tumor na proacutestata o levou agrave
primeira tentativa de suiciacutediordquo (CONTE et al 2015 1744) Na ocasiatildeo esse senhor foi levado
a um pronto-socorro onde foi submetido a uma lavagem estomacal
O peso dos cuidados em relaccedilatildeo agrave esposa somados agrave falta de apoio familiar e a problemas
financeiros motivaram a segunda tentativa de suiciacutedio ldquoEu comprei uma corda Por causa da
desajuda e da pobrezardquo (ibidem 1746) Felizmente o filho chegou na casa agrave tempo e
conseguiu evitar o enforcamento
Apoacutes essa tentativa esse idoso foi internado em um hospital onde recebeu o diagnoacutestico
de Transtorno de Personalidade Nota-se entretanto que a ecircnfase atribuiacuteda ao diagnoacutestico e as
orientaccedilotildees dadas aos familiares em decorrecircncia dele parecem ter contribuiacutedo mais para o
afastamento da famiacutelia do que para o sucesso do manejo cliacutenico de sua condiccedilatildeo Segundo os
pesquisadores ldquoOs filhos passaram a vecirc-lo como manipulador e mal intencionado
interpretavam as tentativas de suiciacutedio como um ato de covardia pra mobilizar culpa na famiacutelia
tornando-se mais hostis em relaccedilatildeo ao pairdquo (CONTE et al 2015 1744)
Durante a entrevista com os pesquisadores esse senhor referiu ldquosentimento de solidatildeo
e sofrimento com a falta de afeto dos filhos Todos os dias eacute muito triste Eu vejo [nora neta
81
filhos] e natildeo falo com ningueacutemrdquo (CONTE et al 2015 1744) aleacutem de sentimentos de desvalia
ldquoEstou virado num resto num lixordquo (ibidem) No momento da pesquisa mantinha viacutenculo com
o serviccedilo apenas para renovar a receita da medicaccedilatildeo
Observamos nesse caso que as accedilotildees de cuidado se restringiram a intervenccedilotildees pontuais
e fragmentadas tendo o modelo biomeacutedico de ldquoqueixa-condutardquo como referecircncia Quando a
tentativa de suiciacutedio se deu por ingestatildeo de medicaccedilatildeo a accedilatildeo da equipe foi cuidar apenas do
corpo fiacutesico realizando uma lavagem estomacal As questotildees existenciais que motivaram a
tentativa de suiciacutedio natildeo foram abordadas e nenhum encaminhamento foi feito para a
continuidade do cuidado Apoacutes a segunda tentativa de suiciacutedio novamente o foco do tratamento
segue o modelo medicalocecircntrico priorizando o diagnoacutestico nosograacutefico e a medicalizaccedilatildeo dos
sintomas ldquoOs sintomas dos idosos foram considerados uma forma de ldquochamar atenccedilatildeordquo e com
isso obter ganhos secundaacuterios banalizando assim o pedido de ajuda contido nos atos
desesperadosrdquo (CONTE et al 2015 1745)
No caso desse senhor o diagnoacutestico serviu apenas para fragilizar ainda mais sua rede
de apoio uma vez que os familiares passaram a vecirc-lo como ldquomanipulador e mal intencionadordquo
A falta de um Projeto Terapecircutico Singular que considerasse seu contexto de vida seus afetos
sua rede familiar e social contribuiu para o agravamento do sentimento de abandono e solidatildeo
favorecendo o risco de uma nova tentativa de suiciacutedio O uacutenico tratamento ofertado pelo serviccedilo
foi o medicamentoso e ficou niacutetida sua insuficiecircncia visto que ao ser entrevistado esse idoso
referiu sentir-se sozinho ter um cotidiano triste e esvaziado
A dificuldade de se pensar espaccedilos de cuidado baseados em tecnologias leves como o
acolhimento e o viacutenculo as oficinas padronizadas e sem perenidade agrave subjetividade do outro
aleacutem de accedilotildees emergenciais e isoladas no momento de crise satildeo apontados pelos autores como
fatores que contribuem para o abandono do tratamento quebra ou fragilizaccedilatildeo da linha de
cuidado
Estudos anteriores (Rosa 2011 Merhy 2007) evidenciaram que ao se depararem
com essas dificuldades inerentes agrave condiccedilatildeo crocircnica os profissionais do serviccedilo
podem ldquodesistirrdquo ou se desobrigar do trato do paciente ldquodifiacutecilrdquo supostamente
refrataacuterio ou ldquonatildeo responsivordquo agrave terapecircutica Em alguns momentos parece haver um
esforccedilo no sentido de ajustar o paciente ao serviccedilo e natildeo o contraacuterio como seria
desejaacutevel (Rosa2011) (MACHADO SANTOS 2013704)
Vecirc-se com isso que crise ainda eacute ldquoa crise do pacienterdquo e raramente os serviccedilos
conseguem eles proacuteprios se colocarem em crise e repensar suas ofertas e modos de cuidado A
interrupccedilatildeo e o abandono do tratamento satildeo vistos como uma dificuldade de ldquoadesatildeordquo do
82
usuaacuterio que nada tem a ver com a forma como os serviccedilos estatildeo pensando e organizando o seu
cuidado Pensando sobre a correspondecircncia entre as necessidades de sauacutede das pessoas e as
ofertas de cuidado os serviccedilos parecem natildeo perceberem o abandono ou interrupccedilatildeo do
tratamento como um analisador de suas praacuteticas Diante do natildeo enquadramento do usuaacuterio ao
modelo de intervenccedilatildeo oferecido os serviccedilos se comportam como se pouco tivessem a oferecer
O estudo de Machado e Santos (2013) aponta para resultados que confirmam esse
problema No CAPS estudado as oficinas e atividades satildeo vistas como parte de um certo
funcionamento burocraacutetico institucional as falas dos pacientes revelam a falta de sentido dessa
rotina onde as atividades parecem existir meramente para legitimar a instituiccedilatildeo preenchendo
um tempo
Vou todo dia mais tem pouca atividade Fico o dia inteiro fazendo nada deitada
Num gosto disso queria participaacute de mais atividade mais num tem vagardquo (E10)
(MACHADO SANTOS 2013 707)
Laacute no serviccedilo que eu trato eles num trabalham eles num ensinam trabalhaacute Eles potildee
laacute os paciente pra ficaacute comendo e bebendo dormindo e o dinheiro deles tudo mecircs
vem na conta O salaacuterio dos paciente vem na conta deles que eacute o benefiacutecio o dinheiro
dos funcionaacuterio vem na conta deles eacute igual aquele ditado que fala ldquoeles finge que
trabalha e eles fingem que satildeo tratadosrdquo Eacute eles tratam que nem robozinho eu pego
o cartatildeo o doutor prescreve a receita pego meu remeacutedio ndash meu tratamento eacute esse
(E8) (ibidem 707)
Outros autores tambeacutem falam de um funcionamento burocratizado do serviccedilo No
estudo de Pereira Saacute e Miranda (2014) vemos que os adolescentes do CAPSi questionam o
sentido de algumas atividades mas ainda assim essas questotildees parecem natildeo surtir efeitos sobre
o modo como a equipe pensa e organiza o cuidado
Importante notar o fato de os adolescentes terem de se adaptar aos grupos sem que
eles sejam pensados mediante a necessidade de cada um deles e das mudanccedilas vividas
ao longo do tempo Diante da insatisfaccedilatildeo dos adolescentes com as atividades os
profissionais natildeo satildeo levados a revecirc-las continuam enfatizando a necessidade de que
frequentem o serviccedilo ldquoa qualquer custordquo Todos relataram a frequente necessidade de
realizar um difiacutecil ldquotrabalhordquo de convencimento para que os adolescentes aceitem
estar no serviccedilo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2151)
Destacamos ainda a fala de uma profissional do serviccedilo que afirma que ldquoO CAPSi natildeo
tem muito mais a oferecer do que um atendimento individual em grupo um suporte agrave famiacutelia
e um suporte meacutedico medicamentosordquo (profissional do serviccedilo) (ibidem 2151) Fica evidente
nesse sentido a limitaccedilatildeo do serviccedilo em repensar suas ofertas de cuidado de modo que a
ldquoadesatildeordquo natildeo seja uma conquista agrave base de uma imposiccedilatildeo mas da produccedilatildeo de um espaccedilo que
faccedila sentido para o usuaacuterio e que lhe proporcione verdadeiramente a sensaccedilatildeo de acolhimento
83
Outro ponto importante no que diz respeito agrave quebra da continuidade do tratamento eacute a
fragmentaccedilatildeo da proacutepria equipe no processo de trabalho Sobre esse aspecto Pereira Saacute e
Miranda (2014) destacam
A equipe eacute ldquodividida por diasrdquo de maneira que cada profissional trabalha dois turnos
aleacutem da reuniatildeo de equipe Cada grupo de usuaacuterios comparece ao serviccedilo apenas num
dia especiacutefico quando encontra seu teacutecnico de referecircncia e sua miniequipe Isso leva
os profissionais a realizarem um trabalho dividido em blocos o que resulta em um
CAPSi de segunda feira e outro de terccedila feira impedindo o compartilhamento de
atuaccedilotildees entre miniequies conhecimento dos usuaacuterios dos serviccedilos aleacutem de restringir
as ofertas terapecircuticas(ibidem 2149)
Cada usuaacuterio tem um teacutecnico de referecircncia e comparece no serviccedilo no dia em que seu
teacutecnico estaacute contando tambeacutem com o suporte da mini-equipe do dia que na ausecircncia do
profissional de referecircncia satildeo os profissionais com mais apropriaccedilatildeo sobre o caso O cuidado
eacute organizado entatildeo de modo que todos os profissionais de referecircncia do usuaacuterio estatildeo
concentrados em um uacutenico dia da semana o dia em que o paciente vai ao serviccedilo Esse eacute um
funcionamento muito comum nos CAPS que entretanto dificulta profundamente o
compartilhamento dos casos
Quando pensamos em uma situaccedilatildeo de crise sabemos que os pacientes natildeo iratildeo respeitar
os dias e escalas dos profissionais de referecircncia para entrar em crise Entatildeo essa divisatildeo dos
usuaacuterios em dias preacute-determinados aleacutem de limitar o Projeto Terapecircutico agraves oficinas realizadas
naqueles dias tambeacutem restringe a capacidade do serviccedilo de se constituir efetivamente enquanto
um ponto de referecircncia na crise pois os profissionais que natildeo tecircm contato com o caso
dificilmente conseguiratildeo ofertar o suporte que esses pacientes necessitam no momento da crise
Aleacutem da fragmentaccedilatildeo do processo de trabalho no interior dos serviccedilos observamos
tambeacutem uma fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e a RAPS Constatamos a partir da
literatura que na maior parte das vezes o contato entre os serviccedilos eacute feito por telefone ou por
encaminhamento escrito entregue diretamente ao usuaacuterio Fica portanto agrave cargo do usuaacuterio a
chegada agrave um outro serviccedilo de modo que a passagem de caso fica prejudicada e o usuaacuterio fica
muitas vezes desassistido no periacuteodo de transiccedilatildeo entre um serviccedilo e outro isto quando natildeo
acaba por desistir do tratamento
Nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e os hospitais observamos que embora a gravidade
envolvida seja maior o compartilhamento do cuidado parece ainda mais difiacutecil Ao discutir a
internaccedilatildeo de uma paciente do CAPSi no hospital geral Pereira Saacute e Miranda (2014) ressaltam
que embora a paciente tenha ficado dez dias internada no hospital natildeo houve comunicaccedilatildeo
84
entre os dois serviccedilos e o CAPSi foi informado da internaccedilatildeo pela proacutepria famiacutelia da paciente
via telefone
Essa dificuldade de interlocuccedilatildeo entre CAPS e hospital eacute apontada tambeacutem no estudo
de Zeferino el al (2016) Segundo os profissionais entrevistados nessa pesquisa
o usuaacuterio e a famiacutelia em crise satildeo levado a um Hospital psiquiaacutetrico e fica afastado
do CAPS por longos periacuteodos() Em alguns casos a famiacutelia jaacute interna o usuaacuterio e soacute
comunica a equipe do CAPS posteriormente [] (ZEFERINO ET AL 2016spg)
Para aleacutem dos casos em que o hospital natildeo comunica a equipe de referecircncia sobre a
internaccedilatildeo de seus usuaacuterios observamos que tambeacutem os CAPS raramente costumam
acompanhar os usuaacuterios que encaminham para o hospital de modo que quem perde eacute o paciente
pois vive a quebra do viacutenculo terapecircutico com a equipe de referecircncia e continua passando pelas
crises sozinho no hospital Sobre esse aspecto Pereira Saacute e Miranda (2014) comentam
Fazendo um balanccedilo geral dos itineraacuterios construiacutedos pode-se perceber que o CAPSi
apresenta dificuldades no planejamento e construccedilatildeo de accedilotildees conjuntas em que
compartilhe outras instacircncias a responsabilidade pelo cuidado dos adolescentes em
crise Eacute bastante raro por exemplo que os profissionais do CAPSi de fato
acompanhem os adolescentes no Hospital Geral Como justificativa para esse cenaacuterio
todos sublinham dificuldades de contato advindas de problemas com os telefones ou
ausecircncia de um carro proacuteprio o que dificultaria o transporte no caso de uma situaccedilatildeo
de maior gravidade que pudesse acontecer no CAPSi (ibidem 2152)
Embora a falta de estrutura possa de fato dificultar a integraccedilatildeo entre os serviccedilos
percebemos que deixar o hospital se ocupar da crise tem sido praacutetica recorrente nos diversos
serviccedilos da rede Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014) nos sujeitos que participaram de sua
pesquisa o hospital geral teve papel central em todos os casos
A equipe do CAPSi entende que o Hospital Geral natildeo eacute o local ideal para as
internaccedilotildees em sauacutede mental Apesar disso atribuem ao suporte medicamentoso agrave
possiacutevel contenccedilatildeo fiacutesica e aos cuidados relativos agrave sauacutede geral a justificativa para
encaminharem ao Hospital Geral os pacientes (ibidem 2150)
O apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises leves podem
ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o hospital Essa eacute
uma direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima absolutamente o
papel do CAPS frente agrave crise
Sabemos que haacute alguns limites na capacidade dos CAPS visto que nem todos satildeo do
tipo III e que alguns serviccedilos sequer tecircm a equipe completa e o aparato estrutural miacutenimo para
funcionar Poreacutem chama atenccedilatildeo a naturalizaccedilatildeo da centralidade da rede em torno do hospital
Um exemplo claro disso aparece na fala de uma profissional desse estudo que orienta a famiacutelia
a levar a paciente ao hospital ldquofrente agrave qualquer intercorrecircnciardquo (PEREIRASAacuteMIRANDA
85
2014 2154) como se o CAPSi natildeo tivesse nenhuma responsabilidade sobre a crise de seus
pacientes
Encaminhamentos precipitados e irrefletidos ao hospital ainda constituem uma praacutetica
muito natural na rede o que coloca o CAPS na posiccedilatildeo de serviccedilo complementar e natildeo
substitutivo ao hospital Vemos que mesmo os profissionais do CAPS ainda contam com o
hospital como se a internaccedilatildeo pudesse proporcionar uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
No estudo de Zeferino el al (2016) um dos profissionais entrevistados ressalta ldquoO
usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao hospital geral para a estabilizaccedilatildeo retornando
ao CAPS assim que estiver compensado para a continuidade do seu tratamento (E1 A92 -
CAPS II)rdquo (spaacuteg)
A centralidade do fluxo das situaccedilotildees de crise para o hospital eacute praacutetica comum tambeacutem
no trabalho do SAMU Embora o SAMU tenha se constituiacutedo enquanto um recurso da rede de
assistecircncia agrave urgecircnciaemergecircncia apoacutes a Reforma Psiquiaacutetrica vemos que o modo de trabalhar
desse serviccedilo ainda eacute muito orientado pela loacutegica biomeacutedica Segundo Brito Bonfada e
Guimaratildees (2015) em pesquisa com a rede de SAMU da cidade de Natal
A partir das fichas de atendimento disponiacuteveis no sistema eletrocircnico de ocorrecircncias
do Samu-Natal observa-se que entre os meses de janeiro a marccedilo de 2010 ocorreram
314 chamadas para urgecircncias em sauacutede mental das quais 74 foram finalizadas
com o transporte para o Hospital Colocircnia Joatildeo Machado hospital psiquiaacutetrico do
municiacutepio de Natal-RN (ibidem 1301 grifo nosso )
Esse nuacutemero eacute confirmado tambeacutem pelas falas dos profissionais
Surto droga alcoolismo tudo leva para laacute a gente trabalha com o Joatildeo Machado
(Entrevistado 24) (ibidem 1302 grifo nosso)
Noacutes natildeo temos muito contato com o CAPS (Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial) A gente pega o
paciente ou na residecircncia ou em via puacuteblica e transfere para o Joatildeo Machado (Entrevistado 24)
(ibidem 1303)
Na realidade as nossas urgecircncias psiquiaacutetricas satildeo muito mais transporte Vocecirc vai
laacute conteacutem o doente e o transporta para hospital psiquiaacutetrico (Entrevistado 1) (ibidem
1302)
Percebemos que essa direcionalidade ao hospital sem levar em conta as possibilidades
assistenciais oferecidas pela rede tem relaccedilatildeo com a maneira como os serviccedilos entendem a
Reforma Psiquiaacutetrica e consequentemente como enxergam seu papel na rede Nesse ponto no
que compete ao SAMU fica clara a desorientaccedilatildeo desse serviccedilo no seu papel diante das crises
Na verdade eu sempre fui contra o Samu atender esse tipo de chamado Eu acho que
deveria existir um setor no hospital psiquiaacutetrico aqui de Natal responsaacutevel por isso
(Entrevistado 2) (BONFADA ET AL 2013 1307)
O Samu natildeo deveria fazer esse serviccedilo acho que deveria ser a poliacutecia militar
(Entrevistado13) (ibidem 1307)
86
Muitas vezes o doente psiquiaacutetrico corre muito mais risco porque a nossa rotina eacute
deixar em segundo plano a urgecircncia psiquiaacutetrica (Entrevistado 1) (ibidem 1308)
No que diz respeito agrave concepccedilatildeo que os profissionais possuem acerca da Reforma
Psiquiaacutetrica os entrevistados parecem acreditar que trata-se de uma Poliacutetica Puacuteblica restrita ao
campo juriacutedico e burocraacutetico poreacutem sem muitas implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos
A Poliacutetica Nacional de sauacutede mental eacute perfeita no papel na praacutetica natildeo estaacute
funcionando e para funcionar vai ser muito difiacutecil (E10)
Para ser muito franca ateacute agora na praacutetica natildeo vi essa reforma acontecer Natildeo acredito
natildeo nessa reforma (E7)
Na maioria das vezes isso natildeo funciona esse negoacutecio de CAPS e tudo mais porque
o proacuteprio paciente natildeo vai aiacute a famiacutelia tambeacutem natildeo tem como levaacute-lo a forccedila Entatildeo
isso aiacute natildeo taacute dando muito resultado natildeo Talvez fosse o caso de fazer o proacuteprio CAPS
mesmo como uns hospitais psiquiaacutetricos (E3)
Esse paciente quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial acaba
negligenciando o proacuteprio tratamento Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em
um hospital internado seria muito mais eficaz pois eacute um tratamento continuado
(E20) (inserir ref ndash as falas dos entrevistados aparecem assim todas juntas Se for
basta a ref ao final ndash autor ano paacutegina) ( BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2013230-231)
A falta de conhecimento sobre o papel dos serviccedilos substitutivos aleacutem das criacuteticas agrave
Reforma Psiquiaacutetrica e as sugestotildees de internaccedilatildeo dos pacientes satildeo fortes indiacutecios de que o
modelo hospitalocecircntrico concebido pela Psiquiatria Claacutessica ainda permanece vivo no ideaacuterio
desses profissionais como referecircncia de qualidade da assistecircncia em sauacutede mental A ideia de
que a RPB eacute perfeita no papel mas que na praacutetica natildeo funciona revela um entendimento
bastante ingecircnuo de que as poliacuteticas por si soacute teriam o efeito de mudar a assistecircncia quando os
profissionais continuam agindo orientados pela loacutegica manicomial
Uma ferramenta que tem sido apontada como capaz de construir e fortalecer a
integralidade da rede e a coordenaccedilatildeo do cuidado eacute o apoio matricial O apoio matricial pode
se dar via CAPS ou via NASF contribuindo para ampliar a resolutividade da Atenccedilatildeo Baacutesica
favorecendo a prevenccedilatildeo dos casos de crise e diluindo a centralidade do CAPS nos casos de
sauacutede mental
Considerando que um dos fortes obstaacuteculos dos CAPS eacute o centramento em si mesmos
fenocircmeno identificado na IV Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental e denominado
ldquoencapsulamentordquo
Ao articular rede o apoio matricial se inclina contra o ldquoencapsulamentordquo e esse tipo
de substituiccedilatildeo total produzindo um efeito reorganizador das demandas de sauacutede
mental na rede com melhor distribuiccedilatildeo e adequaccedilatildeo dos usuaacuterios dentro dos pontos
de assistecircncia em sintonia com suas demandas evitando que todas elas sejam
dirigidas ao CAPS superlotando-o Possibilitando melhor compreensatildeo e
diferenciaccedilatildeo das situaccedilotildees que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem
ser acolhidas eou acompanhadas pela ESF como refletem Bezerra e Dimenstein o
87
matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistecircncia em sauacutede mental
(LIMA DIMENSTEIN 2016 629)
Segundo Lima e Dimenstein (2016) a ESF tem meios de ldquo[] interferir em situaccedilotildees
que transcendem a especificidade do setor sauacutede e tecircm efeitos determinantes sobre as condiccedilotildees
de vida e sauacutede dos indiviacuteduos famiacutelias-comunidaderdquo (ibidem 65) Considerando sua
proximidade com o territoacuterio a ESF eacute um importante recurso na identificaccedilatildeo dos casos de crise
que natildeo chegam aos serviccedilos podendo oferecer atraveacutes do apoio matricial em sauacutede mental o
suporte e o encaminhamento para serviccedilos mais complexos quando necessaacuterio
Outra ferramenta importante na construccedilatildeo da integralidade das redes sobretudo das
redes que vatildeo para aleacutem dos serviccedilos de sauacutede eacute a praacutetica de Acompanhamento Terapecircutico
O AT tem a missatildeo de resgatar a cidadania e o direito de usufruir da vida em casos de pessoas
que foram sistematicamente excluiacutedas da sociedade devido ao seu processo de adoecimento
Sua atuaccedilatildeo visa promover a autonomia do sujeito ampliando sua circulaccedilatildeo pelo territoacuterio e
tecendo redes de cuidado que contam tambeacutem com dispositivos de cultura e lazer
Segundo Fiorati e Saeki (2008) o AT
por ser uma praacutetica cliacutenica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaccedilos
institucionais e tradicionais de tratamento e ser realizada sobretudo nos espaccedilos
puacuteblicos no ambiente domiciliar e social do paciente representaria um caminho
potencial de inserccedilatildeo em redes sociais e movimento de inclusatildeo social (ibidem 764)
Na pesquisa citada acima o AT atuou como um intercessor entre o espaccedilo de cuidado
proporcionado pelos serviccedilos e os dispositivos terapecircuticos do territoacuterio O cuidado se deu nos
serviccedilos mas tambeacutem na vida na rua atraveacutes de cursos de jardinagem desenho capacitaccedilatildeo
profissional parceria com associaccedilotildees culturais escolas e outros (FIORATI SAEKI 2008)
A produccedilatildeo de sauacutede atraveacutes dos dispositivos do territoacuterio tambeacutem aparece na pesquisa
de Conte et al (2015) no caso da senhora que buscou ajuda na associaccedilatildeo de seu bairro
Entretanto foram apontadas poucas iniciativas em nosso estudo que apostassem nos recursos
fora do setor sauacutede como possibilidade de estabilizaccedilatildeo de quadros graves Fica clara nesse
sentido a baixa integraccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e a rede intersetorial territorial sendo
este um dos principais desafios na construccedilatildeo da integralidade do cuidado
Em suma podemos observar que ainda haacute um longo caminho na construccedilatildeo de redes
que possam oferecer de fato algum amparo aos sujeitos em crise A falta de recursos certamente
figura como um dos fatores que impotildee barreiras de acesso ao cuidado motivando muitas vezes
que os profissionais usem seus proacuteprios recursos para garantir a efetividade do tratamento (usar
88
o carro proacuteprio para fazer VD deslocar-se entre um serviccedilo e outro usando recursos proacuteprios
etc)
Somando-se aos aspectos mencionados embora os serviccedilos de sauacutede mental se
proponham a realizar um cuidado extremamente complexo e diversificado funcionam em sua
maioria apenas nos horaacuterios comerciais (de segunda a sexta de 8 agraves 17h) Desse modo ldquodiante
dessa configuraccedilatildeo restrita torna-se pouco provaacutevel que de fato sejam esgotadas todas as
possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internaccedilatildeo
integral tal como prevecirc a Lei da Reforma Psiquiaacutetrica Lei nordm 10216 2001rdquo (Brasil 2004)
Vemos que as possibilidades de superaccedilatildeo desse cenaacuterio ainda partem muitas vezes de
um esforccedilo individual dos trabalhadores em produzir cuidado Diante da falta de CAPS III por
exemplo alguns CAPS II tem se organizado para funcionar em horaacuterio estendido realizando
uma escala no serviccedilo e evitando assim encaminhar o usuaacuterio para internaccedilatildeo Outra alternativa
apontada eacute o acolhimento diurno no CAPS II e o noturno no Hospital Geral eou Hospital
Psiquiaacutetrico evitando a permanecircncia integral na internaccedilatildeo (MARTINI CORACINE 2016)
Entretanto esse tipo de arranjo ainda eacute incipiente e depende em boa medida da ldquoboa vontaderdquo
dos trabalhadores visto que natildeo eacute uma poliacutetica institucionalizada de cuidado e natildeo haacute portanto
recursos previstos para esses deslocamentos
Tendo em vista essa conjuntura eacute possiacutevel perceber que a constituiccedilatildeo de uma rede de
serviccedilos integral e resolutiva nos casos de crise ainda eacute muito fraacutegil A fragmentaccedilatildeo na
comunicaccedilatildeo entre os serviccedilos a dificuldade do compartilhamento dos casos oficinas e grupos
riacutegidos e burocratizados compreensotildees deturpadas e reducionistas acerca do movimento da
Reforma Psiquiaacutetrica baixa articulaccedilatildeo intersetorial e territorial aleacutem de limitaccedilotildees estruturais
dos serviccedilos (ausecircncia de carro institucional baixo nuacutemero de CAPS III deacuteficits de equipe etc)
tem contribuiacutedo para que o hospital permaneccedila vivo e seja o ponto de escoamento de todas
essas dificuldades
Podemos citar como um exemplo dessa problemaacutetica os pacientes ldquorevolving doorrdquo7
nos hospitais psiquiaacutetricos Muitos deles fazem tratamento em algum dispositivo da rede
substitutiva no entanto continuam retornando ao hospital ainda que pontualmente com certa
frequecircncia o que remete as fragilidades da rede jaacute mencionadas anteriormente
7 O termo vem da expressatildeo inglesa ldquoporta-giratoacuteriardquo e eacute usado na sauacutede mental para se referir aos pacientes que
internam de forma recorrente poreacutem em internaccedilotildees curtas
89
Vale lembrar que o hospital se constituiu historicamente como uma soluccedilatildeo para o
problema da loucura na sociedade e mesmo havendo um esforccedilo em deslocar certas categorias
e conceitos no sentido de incluir a loucura no social a institucionalizaccedilatildeo ainda eacute
frequentemente a primeira resposta agraves situaccedilotildees de crise especialmente quando a rede natildeo
encontra meios para responder suas demandas no modelo substitutivo
90
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como foi dito na introduccedilatildeo nosso objetivo com esse estudo foi analisar as fragilidades
e potencialidades na organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto
do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica Consideramos que uma rede forte e bem articulada atua
como um fator de mudanccedila dos itineraacuterios dos usuaacuterios dos hospitais psiquiaacutetricos para os
serviccedilos territoriais No entanto o inverso tambeacutem acontece as fragilidades e insuficiecircncias
da rede tambeacutem contribuem para hospitalizaccedilotildees desnecessaacuterias
Sendo assim olhar para a forma como a crise tem sido acolhida na RAPS pode dar
indiacutecios importantes de como estamos nos posicionando no processo de construccedilatildeo da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira uma vez que costuma ser na falta de uma resposta efetiva da rede
substitutiva nos casos de crise que se recorre a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica
Atraveacutes de nosso referencial teoacuterico analisando o desenvolvimento da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira no plano assistencial percebemos avanccedilos importantes no que se
destaca a reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do
nuacutemero de CAPS e a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na
atenccedilatildeo comunitaacuteria e territorial Entretanto a insuficiecircncia de CAPS III e a permanecircncia de
grandes parques manicomiais no paiacutes indicam que ainda satildeo necessaacuterios grandes esforccedilos para
se superar o modelo manicomial
Pensando sob a luz das contribuiccedilotildees de Basaglia (1985) entendemos que a
permanecircncia dos manicocircmios natildeo se deve apenas a um descompasso entre o avanccedilo da rede
substitutiva e o fechamento dos hospitais psiquiaacutetricos mas tambeacutem a presenccedila ainda
expressiva da loacutegica manicomial nos discursos e praacuteticas em relaccedilatildeo agrave loucura
Sendo assim eacute preciso considerar que a Reforma Psiquiaacutetrica natildeo se restringe apenas as
mudanccedilas assistenciais nos serviccedilos de sauacutede mental mas a uma mudanccedila mais ampla no
processo de compreender e lidar com a loucura na sociedade
Ao longo da histoacuteria da sociedade a loucura jaacute teve diversos signos e significados
figurando desde um estado de sabedoria ligado ao profeacutetico a estados de possessatildeo demoniacuteaca
bruxaria e revolta social Entretanto eacute somente a partir do seacuteculo XVIII com o advento da
Psiquiatria que ela passa a ser compreendida enquanto doenccedila mental e a ser enclausurada e
excluiacuteda em instituiccedilotildees de tratamento
91
Com a emergecircncia da Reforma Psiquiaacutetrica inicia-se um movimento de transformaccedilatildeo
do lugar social da loucura atribuindo-lhe um estatuto que vai aleacutem da sintomatologia
psicopatoloacutegica e afirma a loucura enquanto um modo de ser no mundo Na conjuntura atual
eacute possiacutevel perceber que vivenciamos um momento de ruptura epistemoloacutegica em que os saberes
defendidos pela Reforma e o saber biomeacutedico natildeo se anulam mas convivem lado a lado se
alternando e disputando espaccedilo nos diversos pontos da RAPS
Eacute com base nessa dicotomia de saberes que proponho essa revisatildeo bibliograacutefica
Entendendo que os modos de compreender a crise e a loucura incidem na construccedilatildeo de nossas
ofertas de cuidado e no modelo de tratamento uma primeira questatildeo que se coloca eacute Quais satildeo
os sentidos de crise e de que maneira esses sentidos reverberam na produccedilatildeo de cuidado
A partir da revisatildeo da literatura estudada no primeiro capiacutetulo ldquoOs sentidos da criserdquo
identificamos trecircs eixos temaacuteticos que se desdobraram em categorias de anaacutelise satildeo eles
ldquoCrise como Ameaccedila Social Periculosidade e Riscordquo ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo
e ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
No primeiro eixo ldquoa crise como ameaccedila socialrdquo as vivecircncias da crise aparecem
marcadas por comportamentos hostis e intimidadores O risco envolvido se transmite para os
profissionais no campo das praacuteticas como uma necessidade constante de monitoramento
vigilacircncia e controle A agressividade dos sintomas eacute combatida com intervenccedilotildees igualmente
violentas sendo praacuteticas comuns a contenccedilatildeo fiacutesica medicamentosa e ateacute mesmo o uso da forccedila
policial como formas de reprimir o sujeito e estabelecer a ordem no serviccedilo
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade A agressividade eacute vista
como um sintoma isolado iacutendice de ameaccedila e risco Alguns profissionais acreditam que a
presenccedila da poliacutecia nas intervenccedilotildees eacute necessaacuteria para ldquoimpor respeitordquo como se as crises se
tratassem de manifestaccedilotildees voluntaacuterias Outros trabalhadores parecem perceber o paciente em
crise como um ldquocontraventorrdquo ldquoperturbador da ordem socialrdquo ldquomarginalrdquo e ateacute mesmo
enquanto um ldquoanimalrdquo mencionando palavras como ldquoprenderrdquo e ldquoamansarrdquo ao referir-se a
abordagem ao paciente
Muitas vezes a poliacutecia tambeacutem eacute acionada como forma de ldquodar proteccedilatildeordquo aos
profissionais que se sentem com medo e despreparados para acolher a crise Entretanto os
profissionais reconhecem que a poliacutecia tambeacutem natildeo sabe lidar com o paciente psiquiaacutetrico e
que eacute ainda mais despreparada
92
No segundo eixo a ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo a peculiaridade dos
sintomas que emergem na crise e o estigma social relacionado a eles satildeo compreendidos
enquanto iacutendice da emergecircncia de uma doenccedila ou de anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida como a vergonha o medo de ter novas crises o medo de circular
pelo territoacuterio e de fazer amizades Percebemos que esse significado apareceu especialmente
nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da primeira crise
mas tambeacutem se fez presente em estudos com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees e
que viveram com isso muitas perdas dos seus viacutenculos afetivos sociais e laborativos
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede
No terceiro eixo ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
encontramos experiecircncias relatos e situaccedilotildees que apontaram para outros modos de lidar com a
crise e com a loucura natildeo como marco de uma doenccedila limitante mas como uma experiecircncia
uacutenica e singular que traz em si uma necessidade imperiosa e urgente de reconstruccedilatildeo de
sentidos
Os usuaacuterios relataram caminhos estrateacutegias e ferramentas que permitiram a construccedilatildeo
de um outro modo de lidar com a crise e com seus sintomas Os profissionais retrataram
situaccedilotildees em que foi possiacutevel recolocar-se diante da crise e vecirc-la como um evento analisador
de suas praacuteticas bem como da vida daqueles sujeitos
Em um dos casos o usuaacuterio vinha pedindo haacute muito tempo para sair da casa onde
morava que era a casa onde vivia com os pais antes do falecimento dos mesmos e onde tinha
muitas recordaccedilotildees A partir do seu movimento de crise ldquoa famiacutelia entendeu que era mais do
que quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil E aiacute acabou que ele conseguiu
alugar a casa delerdquo (COSTA 2007 102 grifo do autor)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado na histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social relacional e
habitacional Ela eacute uma resposta a uma situaccedilatildeo que haacute muito tempo jaacute estava insustentaacutevel A
crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um evento analisador que ldquoestabelece uma urgecircncia
de realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (ibidem 103)
93
Em outra situaccedilatildeo a crise aparece enquanto um pedido de ajuda
Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o sobrinho dele morreu
assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver com uma situaccedilatildeo que
ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele continuou trabalhando
na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de trabalho E eu me lembro
que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele tirar todos os documentos
E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do nascimento dele e ele me
mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e nasceu e contou histoacuteria
A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com ele porque ele explodiu[]
E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos de novo E a gente entendeu
que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia muito que a gente o ajudasse
Os documentos eu acho que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que
ele acabou entre aspas perdendo (COSTA 2007 105)
Vemos entatildeo que os modos de produzir cuidado se tecem junto com o sujeito que vai
recontando sua histoacuteria atraveacutes dos elementos que fazem parte de seu cotidiano como o
territoacuterio suas relaccedilotildees sociais seu trabalho seu mundo Assim a produccedilatildeo de cuidado
acontece onde a vida do sujeito estaacute no parque da catacumba na cantina na retirada dos
documentos porque foi preciso destruir uma parte de sua histoacuteria para reconstruiacute-la depois
Trata-se de considerar a crise como um movimento vaacutelido que expressa o sofrimento do sujeito
e sua necessidade de construir e habitar outros territoacuterios existenciais para si
Nosso segundo objetivo especiacutefico diz respeito as praacuteticas de cuidado e se expressa nas
seguintes perguntas Quais satildeo as principais dificuldades do acolhimento agrave crise Quais satildeo as
nossas principais ferramentas cliacutenicas
Como desafios identificamos o acolhimento burocratizado e frio que se expressa
muitas vezes como uma mera triagem do paciente o cuidado orgacircnico centrado nos
procedimentos fiacutesicos e na figura do meacutedico o mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo
o despreparo para abordar e lidar com o paciente em crise que muitas vezes justifica o uso de
medidas violentas o preconceito e do julgamento moral especialmente em relaccedilatildeo aos casos
de usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas e por fim o diagnoacutestico apressado a conduta extremamente
teacutecnica e desumana
Como potencialidades identificamos a aposta no encontro no viacutenculo na escuta
qualificada e no diaacutelogo o pronto-atendimento (a disponibilidade de prestar o cuidado no
momento em que ele eacute necessaacuterio) as visitas domiciliares e a intervenccedilatildeo dentro do contexto
de vida do sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) a revisatildeo do PTS (Projeto
Terapecircutico Singular) o trabalho multidisciplinar e a abordagem conjunta especialmente nos
casos onde pode haver riscos aos profissionais
94
Nosso terceiro objetivo especiacutefico buscou refletir sobre a as formas de organizaccedilatildeo da
rede e se resumem em torno das seguintes perguntas Como os serviccedilos tecircm se organizado para
responder agraves demandas de crise Quais satildeo os desafios que o acolhimento agrave crise na rede
substitutiva nos coloca
Identificamos que o acolhimento agrave crise eacute um dos principais noacutes criacuteticos na organizaccedilatildeo
e na integralidade da rede de cuidados A articulaccedilatildeo entre os serviccedilos ainda se mostra bastante
fragmentada sendo a maior parte dos encaminhamentos feitos de modo apressado sem a devida
discussatildeo sobre o caso (encaminhamentos por escrito ou via telefone) O acompanhamento dos
serviccedilos de referecircncia aos casos mais graves durante a internaccedilatildeo eacute bastante raro havendo uma
certa expectativa de que o hospital se ocupe dos casos mais graves e da crise e que o usuaacuterio
retorne ao serviccedilo de referecircncia quando estabilizado
Diante das dificuldades colocadas na crise psicoacutetica os profissionais tendem a fazer
encaminhamentos irrefletidos ao hospital esperando uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
Nota-se que a justificativa para esse encaminhamento passa muitas vezes pelo fato do hospital
ter mais ldquorecursos materiaisrdquo aleacutem de mecanismos de ldquocontrolerdquo e ldquomonitoramentordquo dos casos
Ressaltamos que o apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises
leves podem ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o
hospital direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima
absolutamente o papel do CAPS frente agrave crise
Quanto ao entendimento da Reforma Psiquiaacutetrica na rede nossos resultados dialogam
com as reflexotildees levantadas em nosso marco teoacuterico natildeo haacute uma compreensatildeo uniforme sobre
esse processo e os profissionais mostram-se tanto identificados com a loacutegica manicomial
quanto com alguns pressupostos da RP e do novo modelo de cuidado Alguns profissionais
tambeacutem mostram entender a RP como uma mera mudanccedila administrativajuriacutedica sem muitas
implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos o que reafirma papeacuteis engessados e fluxos
burocratizados nos serviccedilos contribuindo para que o hospital continue sendo a porta de entrada
e o destino da maior parte dos casos de crise acolhidos na rede
Enquanto desafios nesse processo ressaltamos a demora para conseguir iniciar um
tratamento a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se estabelecer uma classificaccedilatildeo
de risco na lista de espera o deacuteficit de profissionais inadequaccedilotildees na estrutura fiacutesica que
prejudicam o acesso de pessoas com necessidades especiais e de atividades grupais
insuficiecircncias de equipamentos ofertas de cuidado riacutegidas e padronizadas fragmentaccedilatildeo da
95
equipe no processo de trabalho em dias e turnos especiacuteficos da semana fragmentaccedilatildeo nas
relaccedilotildees entre os serviccedilos fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre a RAPS e a rede intersetorial e
territorial
Destacamos que as iniciativas de superaccedilatildeo dessas fragilidades ainda se concentram
muito nos esforccedilos individuais dos trabalhadores havendo pouco investimento puacuteblico em
oferecer os recursos miacutenimos para se acolher a crise de acordo com os ideais da RP
Identificamos por outro lado como ferramentas importantes na tessitura e no fortalecimento
das redes de cuidado a praacutetica do AT e do apoio matricial que podem oferecer um espaccedilo de
cuidado mais proacuteximo ao territoacuterio e agrave rede intersetorial
Por fim frisamos como limitaccedilotildees desse estudo o fato de nossa revisatildeo bibliograacutefica se
ater somente a artigos cientiacuteficos de modo que algumas dissertaccedilotildees que poderiam agregar um
significado mais profundo a certos temas foram excluiacutedas na nossa seleccedilatildeo Tambeacutem foi um
recorte dessa pesquisa o cuidado agrave crise no contexto brasileiro permanecendo enquanto questatildeo
quais satildeo as possiacuteveis contribuiccedilotildees ao nosso tema no contexto internacional
Como potencialidades dessa pesquisa destacamos a produccedilatildeo de conhecimento teoacuterico
sobre o tema a ampliaccedilatildeo do debate aos profissionais da rede de sauacutede mental e a identificaccedilatildeo
e problematizaccedilatildeo dos pontos de fragilidade e potencialidades no processo de construccedilatildeo da
RPB
96
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RESUMO
Essa dissertaccedilatildeo teve como objeto o cuidado agraves pessoas em situaccedilatildeo de crise na Rede de
Atenccedilatildeo Psicossocial Atraveacutes de um estudo de revisatildeo bibliograacutefica de 21 artigos cientiacuteficos
buscamos identificar como a crise tem sido acolhida nos serviccedilos de sauacutede No que se refere agraves
praacuteticas de cuidado interessa-nos saber quais satildeo as principais dificuldades e ferramentas
cliacutenicas que os profissionais encontram no manejo das situaccedilotildees de crise Entendendo que a
Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo que ainda estaacute em andamento e que depende
fundamentalmente de como os serviccedilos se organizam e se articulam de maneira a compor uma
rede de cuidados que possa substituir o Hospital Psiquiaacutetrico coloca-se tambeacutem a questatildeo de
quais satildeo as principais dificuldades que os serviccedilos encontram para sustentar o acolhimento da
crise no territoacuterio e quais os possiacuteveis caminhos para superaacute-las na direccedilatildeo de um cuidado em
liberdade
Palavras chaves crise sauacutede mental praacuteticas de cuidado RAPS serviccedilos de sauacutede
ABSTRACT
This dissertation had as object the care of people in situation of crisis in the Network of
Psychosocial Attention Through a bibliographical review study of 21 scientific articles we
sought to identify how the health services deals with pacient crisis Regarding to care practices
we are interested in the main difficulties and clinical tools that professionals find in the
management of crisis situations Understanding that the Psychiatric Reform is a process that is
still in progress and depends fundamentally on how services are organized and articulated in
order to create a network of care that can replace the Psychiatric Hospital arises the concern
of what are the main difficulties that the health services faces to provide the care of the crisis in
the territory and the possible ways to overcome them in the direction of care in freedom
Key words crisis mental health care practices Network of Psychosocial Attention
health services
LISTA DE GRAacuteFICOS
Graacutefico 1- Inversatildeo dos gastos (2002 a 2013) 30
Graacutefico 2- Seacuterie histoacuterica de Expansatildeo dos CAPS (2002 a 2014)31
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial por tipo UF e por indicador de CAPS100mil
habitantes (BRASILdez 2014)32
Quadro 2- Oferta de leitos de sauacutede mental em Hospitais Gerais (2014)34
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em CAPS III- Secretaria Municipal de Sauacutede do
Rio de Janeiro (setembro 2015)34
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB- Atenccedilatildeo Baacutesica
ACS- Agente Comunitaacuterio de Sauacutede
AP- Aacuterea Programaacutetica
AT- Acompanhamento Terapecircutico
CAPS- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial
CAPS II- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo II
CAPS III- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo III
CAPSad- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas
CAPSad III - Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas tipo III
CAPSi- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infantil
CF- Cliacutenica da Famiacutelia
ENSP- Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica
FIOCRUZ- Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz
IT- Itineraacuterio Terapecircutico
NASF- Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia
PNSM- Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental
RAPS- Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial
RPB- Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
SAMU- Serviccedilo Moacutevel de Urgecircncia
SRT- Residecircncia Terapecircutica
SUS- Sistema Uacutenico de Sauacutede
UBS- Unidade Baacutesica de sauacutede
VD- Visita Domiciliar
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
10 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA 16
11Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria 16
12A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira25
2 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL 34
21Reflexotildees sobre a Crise e o Cuidado em Sauacutede Mental34
22O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS39
3 METODOLOGIA 46
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA 49
41 Os Sentidos da Crise49
412 Crise como Ameaccedila Social Periculosidade e Risco50
413 Crise como Perda e Isolamento Social54
414 Crise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidos 58
42 Desafios e Potencialidades no Acolhimento agrave Crise64
43 Organizaccedilatildeo da Rede de Cuidados76
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS89
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS95
11
INTRODUCcedilAtildeO
Para o filoacutesofo Gilles Deleuze (1988) pensar natildeo eacute um exerciacutecio natural do ser humano
como costumamos acreditar no senso comum Tampouco se trata de um processo interior ou
subjetivo da ordem de uma reflexatildeo voluntaacuteria Pensamos a partir dos encontros mais insoacutelitos
quando algo nos irrompe agrave consciecircncia de maneira intempestiva e nos forccedila a pensar Pensar
nesse sentido eacute muito mais da ordem de um acontecimento do que da reflexatildeo
A abordagem tradicional da filosofia de Platatildeo agrave Kant tem na representaccedilatildeo o
fundamento do pensamento O conhecimento para esses autores se constroacutei a partir de um
julgamento criacutetico em busca da verdade Em seu livro Diferenccedila e Repeticcedilatildeo (1988) Deleuze
questiona essa tradiccedilatildeo filosoacutefica e sustenta a ideia de um pensamento que natildeo depende mais
de uma relaccedilatildeo com a verdade mas de uma relaccedilatildeo com a diferenccedila Conforme Sangiovanni a
partir da leitura de Deleuze ldquoeacute a partir do encontro com a diferenccedila que ocorre o pensamento
ou seja na relaccedilatildeo exterior natildeo hegemocircnica eacute que satildeo criadas as condiccedilotildees do pensarrdquo
(201386)
Para Deleuze haacute no encontro com a diferenccedila a forccedila de algo novo que necessariamente
nos tira do lugar e que impotildee a necessidade de pensar Nessa mesma linha de pensamento
Benetti destaca ldquoo que funda o pensamento eacute o encontro com algo violento Em outros termos
aquilo que mexe e que marca e portanto desencadeia a paixatildeo de pensarrdquo (DELEUZE 2010
95)
A crise em sauacutede mental tema desse trabalho surgiu para mim como objeto de reflexatildeo
exatamente no plano do concreto de algo que irrompe e se coloca de forma violenta a partir
da necessidade dos casos e do encontro real com o sofrimento do outro A crise fala de um
tempo in ato no aqui e agora que natildeo respeita nossas possibilidades de elaboraccedilotildees teoacutericas
preacutevias sobre o assunto e exige que estejamos inteiramente presentes e disponiacuteveis para o outro
no momento em que ele precisa
Eacute a partir dessa abertura inicial da possibilidade de ser pego de surpresa e mesmo assim
estar junto servindo de suporte para o sofrimento do outro se deixando afetar e marcar por essa
experiecircncia que algum caminho pode se dar Eacute um trabalho que soacute pode acontecer atraveacutes do
contato do encontro com o outro e da possibilidade de estar disponiacutevel para construir algo
juntos
12
A crise aponta para um momento em que as praacuteticas de cuidado e as antigas soluccedilotildees
que o sujeito podia engendrar para lidar com seu sofrimento psiacutequico de alguma forma natildeo
satildeo mais suficientes Segundo Knobloch (1998) a crise pode ser entendida como ldquoalgo
insuportaacutevel no sentido literal de natildeo haver suporte experiecircncia que nos habita como um
abismo de perda de sentido em que se perdem as principais ligaccedilotildeesrdquo (apud FERIGATO et al
2016 33) Algo se rompe algo se perde Natildeo eacute mais possiacutevel continuar a se viver da maneira
em que se estava anteriormente O que fazer
Essa ruptura com uma certa organizaccedilatildeo psiacutequica geralmente eacute entendida pelos
profissionais da sauacutede como algo negativo No entanto se tomamos a loucura e a crise que eacute a
radicalidade dessa ruptura como fenocircmenos de questionamento da ordem social e do status quo
da sociedade talvez possamos relanccedilar algumas perguntas e abrir outras possibilidades de
convivecircncia com a loucura
Apesar do sofrimento que estaacute ligado a vivecircncia da crise sua incidecircncia pode ser vista
como um evento analisador capaz de indicar a necessidade de uma mudanccedila nos modos do
sujeito se relacionar consigo mesmo com o seu tratamento e com o mundo agrave sua volta Assim
eacute precisamente nesse momento em que nada mais parece conseguir estabilizar um sujeito que
nos vemos obrigados a repensar nossas praacuteticas e ofertas de cuidado
Deslocar a perspectiva de compreensatildeo da loucura desse modo significa tomaacute-la em
sua dimensatildeo criativa no que ela traz de revolucionaacuterio e de produccedilatildeo de novos sentidos de
vida Isso implica em uma mudanccedila de atitude eacutetica e poliacutetica para com a loucura natildeo mais no
sentido de reprimi-la ou tentar a todo custo reestabelecer a normalidade perdida mas de aceitar
o movimento de crise como vaacutelido dentro da histoacuteria de vida daquelas pessoas e buscar o que
podemos construir a partir dele isto eacute o que ele pode nos sinalizar sobre as possibilidades de
vida daquele sujeito
Dessa forma algumas questotildees que pretendemos colocar com essa pesquisa satildeo Como
temos acolhido os sujeitos em crise na rede de atenccedilatildeo psicossocial Quais satildeo as principais
dificuldades nesse acolhimento Quais satildeo as nossas principais ferramentas cliacutenicas Quais satildeo
os desafios que o acolhimento agrave crise na rede substitutiva nos coloca Como pensar um
acolhimento agrave crise que natildeo seja apenas baseado na loacutegica de ldquoapagar incecircndiosrdquo Isto eacute que
outras formas de cuidado satildeo possiacuteveis para aleacutem da remissatildeo de sintomas Como trabalhar na
direccedilatildeo de um acolhimento que considere verdadeiramente o sofrimento do sujeito entendendo
a crise natildeo como um momento isolado de sua vida mas como parte de sua histoacuteria
13
Quanto aos aspectos macroestruturais que fundamentam esse trabalho haacute que se
ressaltar que a atenccedilatildeo agrave crise tem sido indicada na literatura como um dos principais desafios
para efetivaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica Embora tenha havido uma mudanccedila no modelo de
sauacutede orientada para um cuidado em liberdade alguns aspectos como a insuficiecircncia da
cobertura dos serviccedilos substitutivos no cenaacuterio local e nacional a baixa articulaccedilatildeo
intersetorial a fragmentaccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e os deacuteficits em relaccedilatildeo aos recursos
humanos e estruturais (BRASIL 2015) tecircm constituiacutedo grandes obstaacuteculos no que se refere a
capacidade dos serviccedilos de acolherem a crise no territoacuterio
No que tange ao cenaacuterio atual o SUS vem sofrendo um forte processo de desmonte
atraveacutes de poliacuteticas de Estado que ameaccedilam seu caraacuteter puacuteblico integral e universal Quanto ao
financiamento destaca-se a Emenda agrave Constituiccedilatildeo 952016 que estabelece um teto para as
despesas em sauacutede puacuteblica considerando o orccedilamento do ano anterior corrigido pela inflaccedilatildeo
sem o aumento real mesmo que haja crescimento econocircmico Isso significa que qualquer
aumento populacional mudanccedilas de perfil demograacutefico ou de quadro sanitaacuterio do paiacutes natildeo
seratildeo acompanhadas pelo incremento das ofertas em sauacutede devido ao congelamento dos gastos
ainda que as receitas tenham aumentado naquele ano Com isso ateacute mesmo a incorporaccedilatildeo de
avanccedilos tecnoloacutegicos fica comprometida contribuindo para ampliar a defasagem do sistema
puacuteblico de sauacutede em relaccedilatildeo aos atendimentos oferecidos pela iniciativa privada
Quanto aos aspectos legislativos e institucionais a recente Nota Teacutecnica 112019
institui uma seacuterie de mudanccedilas que implicam em graves retrocessos na rede assistencial Na
Poliacutetica de Aacutelcool e Outras Drogas o documento confirma o abandono da estrateacutegia de Reduccedilatildeo
de Danos uma abordagem que tem se mostrado eficaz e vem sendo utilizada em diversos
paiacuteses como Canadaacute Portugal Espanha Holanda e alguns estados dentro dos Estados Unidos
Aposta enquanto uacutenica modalidade de tratamento na abstinecircncia total a ser alcanccedilada por meio
internaccedilatildeo de longo prazo reconhecendo enquanto um dispositivo da Rede SUS as
Comunidades Terapecircuticas instituiccedilotildees majoritariamente religiosas focadas no isolamento e
nas praacuteticas religiosas
Quanto agrave organizaccedilatildeo dos serviccedilos os Hospitais Psiquiaacutetricos passam a ser
reconhecidos como parte da RAPS e os Hospitais Gerais ganham ldquoUnidades Psiquiaacutetricas
Especializadasrdquo com capacidade de ateacute 30 leitos para internaccedilotildees psiquiaacutetricas funcionando
como ldquominirdquo Hospitais Psiquiaacutetricos dentro dos Hospitais Gerais o que reproduz novamente a
loacutegica cronificante e alienadora do Hospital Outro ponto eacute a defesa da internaccedilatildeo de crianccedilas e
adolescentes contrariando ECA (Lei 8069 de 1990) Reforccedilamos que essas medidas aleacutem de
14
deslegitimarem o CAPS III como dispositivo privilegiado para o atendimento da crise
claramente contradizem a Poliacutetica de Desinstitucionalizaccedilatildeo e de descredenciamento e
fechamento de Hospitais Psiquiaacutetricos
Na Atenccedilatildeo Baacutesica no municiacutepio do Rio de Janeiro a poliacutetica de ldquoReestruturaccedilatildeo da
Atenccedilatildeo Baacutesicardquo e os cortes previstos na Lei Orccedilamentaacuteria de 2019 foram responsaacuteveis por um
processo de demissatildeo em massa que previa para o ano de 2019 um corte de 239 equipes no
municiacutepio - 184 de sauacutede da famiacutelia e 55 de sauacutede bucal gerando um total de 1400 demissotildees
Segundo levantamento do Nenhum Serviccedilo a Menos em 012019 jaacute haviam sido demitidos 479
servidores sendo a grande maioria deles Agentes Comunitaacuterios da Sauacutede Entre as
mobilizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores foram pautas tambeacutem os atrasos nos salaacuterios
a falta de insumos nas unidades e o descompromisso da Gestatildeo Municipal com o direito agrave
Sauacutede
Assim vecirc-se um avanccedilo preocupante de uma poliacutetica de Estado que visa sucatear a
sauacutede puacuteblica e vai de encontro aos ideais defendidos pela Reforma Sanitaacuteria e aos direitos
promulgados na Constituiccedilatildeo de 1988 que fazem referecircncia agrave sauacutede como direito social
universal garantido pelo Estado
Essas questotildees tornam-se especialmente importantes quando falamos da atenccedilatildeo agrave crise
pois a crise natildeo eacute apenas a crise do usuaacuterio (enquanto um sujeito isolado no mundo e no espaccedilo)
mas tambeacutem a crise do Estado das poliacuteticas puacuteblicas e especialmente das instituiccedilotildees
Desse modo torna-se imprescindiacutevel investir em pesquisas que apontem quais satildeo os
impasses que os profissionais de sauacutede encontram para atender as situaccedilotildees de crise nos serviccedilos
substitutivos e quais estrateacutegias satildeo necessaacuterias no plano micro e macropoliacutetico para mudar o
itineraacuterio dos usuaacuterios em crise do hospital para os serviccedilos substitutivos
Nesse sentido destacamos como objetivo geral deste estudo analisar as fragilidades e
potencialidades apontadas na bibliografia cientiacutefica para a organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da
assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica
Como objetivos especiacuteficos buscaremos
Problematizar as noccedilotildees de crise em sauacutede mental presentes na literatura
e suas repercussotildees para o cuidado
Identificar os desafios e potencialidades encontrados nas praacuteticas de
acolhimento agrave crise na RAPS
Refletir sobre a forma como os serviccedilos tecircm se organizado para responder
agraves demandas de crise
15
Com o intuito de alcanccedilar nossos objetivos realizamos uma pesquisa de revisatildeo
bibliograacutefica de artigos cientiacuteficos que tomaram com objeto os sentidos da crise as praacuteticas de
cuidado e a organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos na resposta agrave crise
Quanto agrave organizaccedilatildeo dessa dissertaccedilatildeo no primeiro capiacutetulo encontramos o referencial
teoacuterico que foi dividido em dois eixos principais No primeiro ldquoDo modelo asilar agraves Reformas
na Psiquiatriardquo retomamos a histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica no mundo explicitando como as
diversas concepccedilotildees de loucura e de crise presentes na sociedade foram responsaacuteveis pela
organizaccedilatildeo de diferentes modelos de cuidado No segundo ldquoA Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileirardquo vemos as repercussotildees da mudanccedila da loacutegica do cuidado no desenvolvimento da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e na reorganizaccedilatildeo da assistecircncia Para esse capiacutetulo usamos
os seguintes autores como referecircncia Foucault Amarante Tenoacuterio Caponi DellacuteAcqua e
Mezzina Birman e outros
No segundo capiacutetulo buscamos discutir mais agrave fundo o conceito de crise e suas relaccedilotildees
com as poliacuteticas de sauacutede no contexto do SUS Na primeira parte ldquoReflexotildees sobre a crise e
o cuidado em sauacutede mentalrdquo faremos uma retomada da origem etimoloacutegica do termo ldquocriserdquo
explicitando seus diversos significados A partir das reflexotildees de autores como DelacuteAcqua
Feriagato Bailarin Corbisier ressaltamos a crise em seu vieacutes criativo produtor de novas
possibilidades de vida Na segunda parte ldquoO Acolhimento agrave crise e a Organizaccedilatildeo do SUSrdquo
contextualizamos os desafios do atendimento agrave crise dentro da loacutegica do SUS A partir das
contribuiccedilotildees de Ceciacutelio (1997) expomos as contradiccedilotildees de um modelo idealizado de SUS
conforme preconizado pelas Poliacuteticas Puacuteblicas que na tentativa de regular todos os fluxos e
linhas de cuidado perde a proximidade com o sujeito e suas reais necessidades de sauacutede
O terceiro capiacutetulo se destina a apresentaccedilatildeo da metodologia utilizada seus aspectos
teoacutericos os caminhos percorridos na seleccedilatildeo dos artigos as bases utilizadas e os criteacuterios de
inclusatildeo de exclusatildeo dos artigos
O quarto capiacutetulo ldquoReflexatildeo e Discussatildeo da Literaturardquo concentra a revisatildeo dos artigos
No intuito de facilitar a anaacutelise dividimos esse capitulo em trecircs eixos conceituais ldquoos sentidos
da criserdquo ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo e a ldquoorganizaccedilatildeo da rede de
cuidadosrdquo
16
1 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA
11 Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria
Ateacute o seacuteculo XVIII na Europa a loucura natildeo era considerada uma doenccedila Ao longo da
histoacuteria a loucura jaacute teve diversos sentidos e explicaccedilotildees figurando desde algo ligado ao
sagrado e ao profeacutetico agrave possessatildeo demoniacuteaca Com a ascensatildeo da sociedade burguesa a
loucura jaacute tinha o estatuto de algo ldquoestranhordquo e junto com todos aqueles considerados
ldquoindesejaacuteveisrdquo agrave sociedade leprosos sifiliacuteticos aleijados mendigos etc comeccedila a ser
confinada nas entatildeo chamadas ldquocasas de internaccedilatildeordquo grandes instituiccedilotildees filantroacutepicas ou
religiosas que tinham como objetivo afastar a pobreza e a miseacuteria das ruas em uma grande
medida de higiene social Segundo Foucault
Estranha superfiacutecie a que comporta as medidas de internamento Doentes veneacutereos
devassos dissipadores homossexuais blasfemadores alquimistas libertinos toda
uma populaccedilatildeo matizada se vecirc repentinamente na segunda metade do seacuteculo XVII
rejeitada para aleacutem de uma linha de divisatildeo e reclusa em asilos que se tornaratildeo em
um ou dois seacuteculos os campos fechados da loucura (2002 116)
Esse periacuteodo histoacuterico eacute denominado pelo autor como a ldquoA Grande Internaccedilatildeordquo (2002)
fazendo alusatildeo ao fato de que a internaccedilatildeo natildeo era apenas para os loucos mas para toda a sorte
de indiviacuteduos que por algum motivo perturbavam a ordem social Esse periacuteodo se inscreve
desde o seacuteculo XVII ateacute o final seacuteculo XVIII e seu fim inaugura a emergecircncia da psiquiatria
enquanto ciecircncia (RIBEIRO PINTO 2011)
As ldquocasas de internaccedilatildeordquo natildeo tinham como objetivo a cura de enfermos ou a reabilitaccedilatildeo
dessas pessoas Eram verdadeiros depoacutesitos humanos lugares de exclusatildeo social da pobreza e
da miseacuteria produzidas pelos regimes absolutistas da eacutepoca Laacute permaneciam isolados e
esquecidos esperando a proacutepria morte
As primeiras casas surgiram nas regiotildees mais industrializadas do paiacutes como uma
alternativa para crise econocircmica atraveacutes da exploraccedilatildeo da matildeo de obra barata Segundo o
regulamento de uma das casas ldquoos internos devem trabalhar todos Determina-se o valor exato
de sua produccedilatildeo e daacute-se-lhes a quarta parte Pois o trabalho natildeo eacute apenas ocupaccedilatildeo deve ser
produtivordquo (FOUCAULT 2002 67)
Os loucos natildeo recebiam tratamento diferenciado em relaccedilatildeo aos outros pobres poreacutem
distinguiam-se pela ldquoincapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida
17
coletivardquo (FOUCAULT 2002 73) Assim comeccedila-se a se pensar a loucura como um caso agrave
parte uma vez que ela natildeo responde da mesma forma agraves demandas de produtividade
Com a expansatildeo industrial o pobre passa a ser necessaacuterio nas cidades logo natildeo podia
mais estar internado mas e o pobre e louco A quem caberia a responsabilidade de assistecircncia
dessas pessoas Aos poucos as casas de internaccedilatildeo foram mudando de figura
O poder exercido no interior dessas Instituiccedilotildees pertencia agrave Igreja e ao Estado mas
em funccedilatildeo das revoluccedilotildees francesa e industrial do surgimento de novos atores sociais
ndash a burguesia a classe meacutedia o proletariado - e do surgimento de uma nova
racionalidade na produccedilatildeo do conhecimento essas instituiccedilotildees vatildeo gradativamente se
transformando em instituiccedilotildees meacutedicas (BARRIacuteGIO 2010 18)
Em 1791 na Franccedila eacute decretada uma lei que responsabiliza as famiacutelias por vigiar seus
loucos evitando que eles fiquem ldquovagando na ruardquo ou cometam alguma ldquodesordemrdquo No
entanto para as famiacutelias mais pobres que natildeo tinham condiccedilotildees de assistir seus familiares
chegam vaacuterios pedidos de internaccedilatildeo ao Ministeacuterio do Interior Nesse cenaacuterio destacam-se
duas instituiccedilotildees que sob agrave eacutegide da Medicina comeccedilam a se configurar enquanto os primeiros
hospitais especializados no tratamento da loucura Bicecirctre para o puacuteblico masculino e
Salpetriegravere para o puacuteblico feminino (HENNA 2014)
Em 1792 o meacutedico Phillipe Pinel assumiu a direccedilatildeo do Hospital de Bicetrecirc em Paris
onde operou inuacutemeras transformaccedilotildees consideradas atualmente por alguns autores como a
primeira Reforma da Psiquiatria Pinel inspirado pelos ideais de igualdade fraternidade e
liberdade da Revoluccedilatildeo Francesa libertou os loucos das correntes aboliu teacutecnicas como ldquoa
imersatildeo em aacutegua gelada os golpes as sangrias e as torturasrdquo (CAPONI 2012 49) e combateu
o pensamento da eacutepoca que a loucura era um fenocircmeno de possessatildeo demoniacuteaca
A funccedilatildeo meacutedica eacute claramente introduzida em Bicecirctre trata-se agora de rever todos
os internamentos por demecircncia que foram decretados no passado E pela primeira vez
na histoacuteria do Hospital Geral eacute nomeado para as enfermarias de Bicecirctre um homem
que jaacute adquiriu certa reputaccedilatildeo no conhecimento das doenccedilas do espiacuterito a designaccedilatildeo
de Pinel prova por si soacute que a presenccedila de loucos em Bicecirctre jaacute eacute um problema meacutedico
(FOUCAULT 2002 464)
A Psiquiatria de Pinel teve como objetivo demarcar os precisos limites entre a
normalidade e a loucura Devem-se a ele os primeiros esforccedilos no sentido de separar e
classificar os diversos tipos de desvio ou alienaccedilatildeo mentalrdquo com o intuito de estudaacute-los e
trataacute-los Com Pinel a loucura comeccedila a ganhar o status de uma ldquodoenccedila mentalrdquo com
sintomatologia proacutepria que requer cura e tratamento
Em seu Traite Medico-Philosophique sur IAlienation Mentale Pinel (1801) afirma que
18
Os alienados longe de serem culpados a quem se deve punir satildeo doentes cujo
doloroso estado merece toda a consideraccedilatildeo devida a humanidade que sofre e para
quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razatildeo desviada (apud
PEREIRA 2004 114 grifo nosso)
Hegel inspirado pelos estudos de Pinel afirma que a loucura natildeo eacute uma perda total da
razatildeo mas a contradiccedilatildeo de uma razatildeo que ainda existe O alienado eacute portanto um ser em
contradiccedilatildeo consigo mesmo mas que preserva em algum lugar um ponto lucidez
O verdadeiro tratamento apega-se a concepccedilatildeo de que a alienaccedilatildeo natildeo eacute a perda
abstrata da razatildeo nem do lado da inteligecircncia nem do lado da vontade ou da sua
responsabilidade mas um simples desarranjo do espiacuterito uma contradiccedilatildeo na
razatildeo que ainda existe assim como a doenccedila fiacutesica natildeo eacute uma perda abstrata isto eacute
completa da sauacutede (isso seria a morte) mas eacute uma contradiccedilatildeo dentro dela Esse
tratamento humano isto eacute tatildeo benevolente quanto razoaacutevel da loucura pressupotildee que
o doente eacute razoaacutevel e aiacute encontra um soacutelido ponto para abordaacute-lo desse lado (HEGEL
apud FOUCAULT 1972 524 grifo nosso)
Sendo a alienaccedilatildeo um distuacuterbio das paixotildees no interior da proacutepria razatildeo e natildeo fora dela
o tratamento possiacutevel para a loucura era buscar reestabelecer a normalidade perdida Conforme
afirma Pinel (1801) ldquohaacute sempre um resto de razatildeo mesmo no mais alienado dos alienadosrdquo e
se haacute um resto de razatildeo para Pinel era possiacutevel resgataacute-la (apud CAPONI 2012 48)
Os meios propostos por Pinel para reestabelecer o equiliacutebrio do doente constituiacuteam no
que ele chamou de ldquotratamento moralrdquo O termo moral nesse sentido era usado para designar
aquilo que pertence ao espiacuterito em contraposiccedilatildeo ao que eacute fiacutesico Assim o tratamento moral
visava reeducar o ldquodoenterdquo no sentido de ldquocriar estrateacutegias para dominar as paixotildees e recuperar
a razatildeordquo (CAPONI 2012 53)
O chamado tratamento moral praticado pelos alienistas incluiacutea o afastamento dos
doentes do contato exterior com todas as influecircncias da vida social e de qualquer
contato que pudesse modificar o que era considerado o desenvolvimento natural da
doenccedila (PEREIRA 2004 114)
A estrateacutegia de isolamento praticada com o tratamento moral procurava manter distacircncia
das condiccedilotildees que Pinel acreditava terem contribuiacutedo para o desenvolvimento da doenccedila
Segundo seus estudos tratavam-se de elementos de ordem social e afetiva que ele relacionava
com certos tipos de alienaccedilatildeo mental
Existe uma marcada diferenccedila na frequecircncia de certas causas conforme as espeacutecies de
alienaccedilatildeo problemas domeacutesticos produzem mais frequentemente a mania uma
devoccedilatildeo muito exaltada determina a melancolia Um amor contrariado e infeliz parece
ser a fonte fecunda para duas espeacutecies de alienaccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo ao idiotismo os
estudos indicam que as causas fiacutesicas como um viacutecio de conformaccedilatildeo podem estar na
origem da maior parte dos casos (PINEL apud CAPONI 2012 48)
19
Podemos ver que as ldquocausas moraisrdquo mais frequentes da alienaccedilatildeo satildeo experiecircncias
comuns a vida cotidiana ( amor contrariado problemas domeacutesticos devoccedilatildeo religiosa etc) que
poderiam ser revertidas com o tratamento atraveacutes da submissatildeo do doente a um ambiente de
controle onde seria possiacutevel dominar as paixotildees desenfreadas e os comportamentos
inadequados atraveacutes da ldquovoz da razatildeordquo representada pela figura do psiquiatra
Conforme Pinel
A terapecircutica da loucura eacute a arte de subjulgar e dominar por assim dizer o alienado
pondo-o em extrema dependecircncia de um homem que por suas qualidades fiacutesicas e
morais estaacute apto para exercer sobre ele um domiacutenio irresistiacutevel algueacutem capaz de
mudar a cadeia viciosa de suas ideacuteias (FOUCAULT 2003 apud CAPONI 2012 41)
Assim dois elementos mostram-se fundamentais para o sucesso do tratamento moral
isolamento e poder Por um lado a ideia de privar o doente do contato com as condiccedilotildees que
ocasionaram a sua doenccedila resulta no seu isolamento por outro a submissatildeo a um ambiente
riacutegido de regras firmes e incontestaacuteveis seria o fator imprescindiacutevel para exercer o controle das
paixotildees
A proacutepria organizaccedilatildeo do espaccedilo e das rotinas do ambiente asilar eram pensadas de
modo que a disciplina do ambiente pudesse se refletir tambeacutem nos pacientes operando assim
uma espeacutecie de ldquocontenccedilatildeordquo pelo ambiente (CAPONI 2012) As regras condutas horaacuterios e
regimentos do hospital tinham como objetivo reeducar a mente do ldquoalienadordquo afastar os deliacuterios
e ldquochamar agrave consciecircncia agrave realidaderdquo (AMARANTE 200733) Assim o hospital passa a ser
natildeo somente o lugar onde acontece o tratamento mas ele proacuteprio um instrumento ldquoterapecircuticordquo
Este tratamento exige uma reorganizaccedilatildeo interna do espaccedilo asilar uma distribuiccedilatildeo
minuciosa das diferentes espeacutecies de doente ficando os melancoacutelicos mais proacuteximos
do paacutetio e situando-se o restando dos pacientes mais longe de acordo com a sua
periculosidade Assim como existe uma minuciosa descriccedilatildeo e organizaccedilatildeo do
espaccedilo algo semelhante ocorreraacute com o controle do tempo As atividades exercidas
no asilo tem tempos estabelecidas assim como os tratamentos para cada tipo de
doenccedila As regras seratildeo previamente estabelecidas e fixadas sendo que cada
estrateacutegia disciplinar pretende contrapor a loucura agrave racionalidade e agrave mesura
representadas pelo saber meacutedico Define-se assim o modelo que deve ser interiorizado
por esse tipo de ortopedia moral que rege nos asilos (CAPONI2012 50)
Vecirc-se entatildeo que o surgimento dos hospitais psiquiaacutetricos nasce estreitamente ligado agrave
concepccedilatildeo de loucura enquanto doenccedila mental e a ideia de um tratamento que usa como
recursos terapecircuticos o isolamento a disciplina e a autoridade Com o alienismo o hospital
deixa de ser um espaccedilo de assistecircncia e filantropia para se tornar de fato uma instituiccedilatildeo
meacutedica Comeccedila-se a se estabelecer uma diferenccedila entre o louco o criminoso o pobre e o
20
doente dos oacutergatildeos de modo que se torna necessaacuterio isolar o louco dos demais internos em um
ambiente separado afim de observaacute-lo e estudar a natureza de sua doenccedila Embora os loucos jaacute
fossem institucionalizados antes do alienismo haacute nesse momento uma marcada diferenccedila a
clausura em questatildeo natildeo se daacute mais por caridade ou repressatildeo mas ldquopor um imperativo
terapecircuticordquo (AMARANTE 2007 33)
Assim as condiccedilotildees de possibilidade para o surgimento do manicocircmio enquanto uma
instituiccedilatildeo de isolamento da loucura contemplam tanto os alienistas e seu entendimento sobre
a loucura quanto agraves necessidades da sociedade como um todo Por um lado a concepccedilatildeo que
se tinha em relaccedilatildeo agrave loucura exigia o reestabelecimento da razatildeo atraveacutes de uma reeducaccedilatildeo
moral cujos alicerces eram o isolamento e as riacutegidas disciplinas institucionais por outro
haviam os anseios da populaccedilatildeo por isolamento e exclusatildeo daqueles que desviam da norma
social e que por isso lhe parecem estranhos e perigosos
Foi assim que segundo Amarante (2007 33) ldquoo alienismo pineliano ganhou o mundordquo
e embora tenha havido algumas criacuteticas a esse modelo ele soacute seraacute efetivamente questionado no
seacuteculo XX no contexto do poacutes-guerra na Europa
As duas grandes Guerras Mundiais voltaram a sociedade para uma reflexatildeo sobre a
natureza humana a crueldade e solidariedade com o proacuteximo No poacutes-Segunda Guerra com a
queda do nazismo especificamente percebeu-se que as condiccedilotildees de vida oferecidas nos
hospitais psiquiaacutetricos pouco se distanciavam daquelas oferecidas aos judeus nos campos de
concentraccedilatildeo nazistas (AMARANTE 2007)
Paralelamente a Europa sofreu um forte abalo econocircmico Segundo Heidrich (2007
38) ldquoos autores destacam que soacute na Franccedila 40 mil doentes mentais morreram nos asilos devido
agraves maacutes condiccedilotildees e a falta de alimentaccedilatildeordquo Houve uma perda consideraacutevel da matildeo-de-obra
disponiacutevel que fora lanccedilada ao campo de batalha e jaacute natildeo havia mais quem pudesse reconstruir
a economia e reparar os danos do poacutes-guerra
Nessa atual conjuntura natildeo era mais possiacutevel assistir-se passivamente ao
deterioramento do espetaacuteculo asilar natildeo era mais possiacutevel aceitar uma situaccedilatildeo em
que um conjunto de homens passiacuteveis de atividade pudessem estar espantosamente
estragados no hospiacutecio Passou-se a enxergar como um grande absurdo esse montante
de desperdiacutecio da forccedila de trabalho (BIRMAN COSTA 1994 46-7)
Segundo Birman e Costa (1994) lidos por Heidrich (2007) haviam duas preocupaccedilotildees
centrais que demandavam a reforma do modelo asilar
Por um lado a preocupaccedilatildeo dos proacuteprios psiquiatras com relaccedilatildeo agrave sua impotecircncia
terapecircutica por outro as preocupaccedilotildees governamentais geradas pelos altos iacutendices
21
de cronicidade das doenccedilas mentais com sua consequente incapacidade social Dessa
forma a psiquiatria social aparece transferindo o campo de atuaccedilatildeo da psiquiatria da
doenccedila mental para a sauacutede mental ( BIRMAN COSTA 1994 apud HEIDRICH
2007 36-7)
O Hospital Psiquiaacutetrico comeccedila a aparecer entatildeo como o principal responsaacutevel pela
degradaccedilatildeo dos pacientes e pela manutenccedilatildeo e pela cronicidade de sua doenccedila Assim surgem
vaacuterias experiecircncias com o objetivo de transformar o ambiente asilar e reabilitar os pacientes
para a vida social e para o trabalho
Segundo Amarante (2007) esses movimentos reformistas foram divididos em ldquodois
grupos mais umrdquo
O primeiro grupo composto pela Comunidade Terapecircutica e pela Psicoterapia
Institucional destaca duas experiecircncias que investiram no princiacutepio de que o fracasso
estava na forma de gestatildeo do proacuteprio hospital e que a soluccedilatildeo portanto seria
introduzir mudanccedilas na instituiccedilatildeo O segundo grupo eacute formado pela Psicoterapia de
Setor e Psiquiatria Preventiva experiecircncias que acreditavam que o modelo hospitalar
estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ldquopelas beiradasrdquo como se diz
na linguagem popular isto eacute deveria ser tornado obsoleto a partir da construccedilatildeo de
serviccedilos assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapecircutico (hospitais dia
oficinas terapecircuticas centros de sauacutede mental etc) ao mesmo tempo que iriam
diminuindo a importacircncia e a necessidade do hospital psiquiaacutetrico No lsquooutrorsquo grupo
em que estatildeo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica o termo reforma parece
inadequado Ambas consideram que a questatildeo mesma estaria no modelo cientiacutefico
psiquiaacutetrico que eacute todo ele colocado em xeque assim como suas instituiccedilotildees
assistenciais (AMARANTE 2007 41)
O primeiro grupo formado pela Comunidade Terapecircutica (Inglaterra e EUA) e pela a
Psicoterapia Institucional (Franccedila) acreditava em uma reforma do ambiente hospitalar de modo
a humanizaacute-lo e tornaacute-lo efetivamente terapecircutico Assim empreenderam propostas de
democratizar o hospital dissolver a rigidez da hierarquia e da disciplina do ambiente hospitalar
de modo a horizontalizar as relaccedilotildees de poder Todos deviam fazer parte de uma mesma
comunidade terapecircutica e lutar contra a violecircncia institucional O sistema eacute pensado de modo a
apostar no potencial terapecircutico do coletivo e a incluir o sujeito que experiecircncia o sofrimento
como co-participante de seu tratamento Jaacute vemos aiacute uma inversatildeo em relaccedilatildeo a psiquiatria
pineliana e ao modo tradicional de se entender a loucura poreacutem natildeo haacute um questionamento em
relaccedilatildeo a necessidade de institucionalizaccedilatildeo do louco
O segundo grupo composto pela Psiquiatria de Setor (Franccedila) e pela Psiquiatria
Preventiva (EUA) jaacute apontava para a necessidade de um trabalho externo ao manicocircmio A
Psiquiatria de Setor se destacou por criar serviccedilos externos agrave internaccedilatildeo os CSM (Centros de
Sauacutede Mental) distribuiacutedos pelo territoacuterio de acordo com o contingente populacional nos
diferentes setores administrativos das regiotildees francesas O hospital por sua vez era tambeacutem
dividido em vaacuterios setores de modo que pacientes de uma mesma regiatildeo administrativa fossem
22
sempre internados no mesmo setor do hospital e quando recebessem alta eram enviados ao CMS
correspondente (AMARANTE 2007)
Organizar o cuidado desse modo permitia que o sujeito pudesse ser acompanhado pela
mesma equipe multiprofissional desde a internaccedilatildeo hospitalar ateacute a alta e encaminhamento para
o CMS do setor contando com o viacutenculo como um recurso terapecircutico Comeccedila-se a se
construir a ideia de uma equipe multidisciplinar de modo que o cuidado natildeo ficasse mais apenas
centralizado na figura do meacutedico
A Psiquiatria Preventiva tambeacutem conhecida como Psiquiatria Comunitaacuteria buscou
aplicar o meacutetodo da Medicina Preventiva agrave Psiquiatria visando reduzir a incidecircncia das doenccedilas
mentais na populaccedilatildeo Caplan fundador dessa corrente acreditava que ldquotodas as doenccedilas
mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocementerdquo (apud AMARANTE
2007 48)
Para a Psiquiatria Preventiva o conceito de crise passa a ser norteador A crise era
entendida a partir do vieacutes socioloacutegico de ldquoadaptaccedilatildeo e desadaptaccedilatildeo socialrdquo Segundo Joel
Birman e Jurandir Freire Costa atraveacutes da leitura de Amarante as crises eram classificadas em
dois grandes grupos
1) Evolutivas-quando relacionadas a processos normais do desenvolvimento fiacutesico
emocional ou social Em tais processos na passagem de uma fase agrave outra da vida a
conduta natildeo estaria caracterizada por um padratildeo estabelecido Tratar-se-ia de um
periacuteodo transitoacuterio quando o indiviacuteduo perderia sua caracterizaccedilatildeo anterior sem no
entanto adquirir uma nova organizaccedilatildeo Na hipoacutetese de os conflitos gerados natildeo
serem bem absorvidos poderiam levar agrave desadaptaccedilatildeo que natildeo sendo elaborados pela
pessoa poderiam conduzir agrave doenccedila mental
2) Acidentais- quando precipitadas por alguma perda ou risco (desemprego separaccedilatildeo
conjugal falecimento de uma pessoa querida etc) A perturbaccedilatildeo emocional
ocasionada pela crise provocaria eventualmente o surgimento de alguma enfermidade
mental assim torna-se um momento estrateacutegico de intervenccedilatildeo preventiva na medida
em que em contrapartida a crise pode ser encarada como uma possibilidade de
crescimento para o indiviacuteduo (Birman e Costa 1998 apud AMARANTE 2007 49-
50)
Entendendo que algumas situaccedilotildees sejam elas relativas ao desenvolvimento natural do
ser humano ou a condiccedilotildees externas diversas apontam para momentos mais delicados da vida
a Psiquiatria Preventiva propocircs estrateacutegias de trabalho de base comunitaacuteria investindo em
equipes de sauacutede mental que pudessem acompanhar os usuaacuterios preventivamente identificando
e intervindo na crise em seu vieacutes individual familiar e social
Tambeacutem foram implantados vaacuterios serviccedilos comunitaacuterios de cuidado com o objetivo de
acompanhar os usuaacuterios preventivamente diminuindo a incidecircncia das doenccedilas mentais e a
23
necessidade de internaccedilotildees psiquiaacutetricas de modo que aos poucos o hospital se tornasse um
recurso obsoleto e desnecessaacuterio (AMARANTE 2007)
No entanto aconteceu paradoxalmente um aumento importante da demanda psiquiaacutetrica
nos EUA tanto nos serviccedilos extra hospitalares quanto nos hospitais psiquiaacutetricos ldquoos proacuteprios
serviccedilos comunitaacuterios se transformaram em grandes captadores e encaminhadores de novas
clientelas para os hospitais psiquiaacutetricosrdquo (AMARANTE 2007 51)
Assim vemos que embora tenha havido uma mudanccedila na estruturaccedilatildeo dos serviccedilos ela
natildeo eacute suficiente sem uma mudanccedila de mentalidade em relaccedilatildeo agrave loucura e aos modos de trataacute-
la Ainda que os novos dispositivos tenham sido pensados para evitar as internaccedilotildees
psiquiaacutetricas isso natildeo ocorreraacute se os profissionais continuam a pensar do mesmo modo e se natildeo
haacute um trabalho com a sociedade no sentido de questionar a exclusatildeo da loucura e inventar novas
possibilidades de convivecircncia
Nesse ponto a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica Italiana se destacam das
demais propostas de reformas da psiquiatria Para a Antipsiquiatria as pessoas tidas como
loucas eram reprimidas e violentadas natildeo soacute nos hospitais mas na sociedade como um todo
Logo ldquoa experiecircncia dita patoloacutegica ocorria natildeo no indiviacuteduo na condiccedilatildeo de corpo ou mente
doente mas nas relaccedilotildees estabelecidas entre ele e a sociedaderdquo (AMARANTE 2007 35)
Assim natildeo era apenas a instituiccedilatildeo que precisava mudar tampouco o sujeito dito louco mas a
proacutepria relaccedilatildeo entre loucura e sociedade
O princiacutepio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiecircncia esta seria
por si soacute terapecircutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de
reorganizaccedilatildeo interior Ao lsquoterapeutarsquo competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a
superar esse processo acompanhando-a protegendo-a inclusive da violecircncia da
proacutepria psiquiatria (AMARANTE 2007 54)
Quanto agrave experiecircncia italiana Franco Basaglia (1968) precursor do movimento
entendia que era preciso superar natildeo apenas o manicocircmio mas todo o aparato manicomial isto
eacute natildeo soacute a estrutura fiacutesica do hospital mas o conjunto de seus saberes e praacuteticas cientiacuteficas
sociais juriacutedicas e legislativas
Essa inflexatildeo destaca que a luta natildeo eacute contra o manicocircmio em si mas contra toda e
qualquer praacutetica manicomial Com isso Basaglia (1968) chama atenccedilatildeo para o fato de que
mesmo nos dispositivos ditos ldquonovosrdquo eacute possiacutevel haver uma reproduccedilatildeo de praacuteticas autoritaacuterias
e opressoras em relaccedilatildeo agrave loucura Vale dizer que foi esse movimento que serviu de inspiraccedilatildeo
e base para a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira tema do nosso proacuteximo capiacutetulo
24
Inspirado na Psiquiatria Comunitaacuteria Basaglia tambeacutem criou centros regionalizados
para atender as demandas de sauacutede mental No entanto diferente desse primeiro movimento
natildeo eram dispositivos que davam continuidade ao tratamento apoacutes a alta e que reinternavam os
pacientes nos manicocircmios nos momentos de crise mas serviccedilos que constituiacuteam por excelecircncia
o modelo de tratamento em sauacutede mental rejeitando definitivamente o hospital como lugar de
tratamento
Quanto ao entendimento da loucura haacute tambeacutem nesse ponto uma ruptura
epistemoloacutegica importante com o paradigma anterior Basaglia (1968) considera que o mal
obscuro da psiquiatria foi ter colocado o sujeito entre parecircnteses e ter elegido como seu objeto
de estudo ldquoa doenccedilardquo (apud AMARANTE 2007) Assim a proposta da Psiquiatria
Democraacutetica Italiana consiste em operar uma inversatildeo colocar a doenccedila entre parecircnteses e
tomar o sujeito como o objeto da psiquiatria Importante destacar que isto natildeo significa negar a
doenccedila enquanto um estado de produccedilatildeo de dor e sofrimento mas compreender que a totalidade
do sujeito natildeo se reduz agrave ela
Com isto o objeto da Psiquiatria se desloca da ldquodoenccedila mentalrdquo para a ldquosauacutede mentalrdquo
e o mandato dessa ciecircncia deixa de ser centrado na cura do paciente para se tornar uma
preocupaccedilatildeo com a sua sauacutede e com seu bem-estar social
Assim vemos que os significados da loucura na sociedade e os modelos assistenciais
desenhados para dar conta dessa questatildeo nunca foram objetos ldquodadosrdquo historicamente mas
construccedilotildees sociais Diferentes noccedilotildees de crise e de loucura permitiram a emergecircncia de
diferentes modelos de assistecircncia Com isto podemos observar que os modos de compreensatildeo
da crise e da loucura influem nas nossas ofertas de cuidado assim como nossas ofertas de
cuidado tambeacutem dizem algo do modo como estamos pensando e compreendendo a loucura e as
intervenccedilotildees possiacuteveis em uma situaccedilatildeo de crise
12 A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
O movimento de Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira encontra suas origens no final da
deacutecada de 1970 no bojo dos movimentos sociais ligados agrave luta contra a ditadura e dentro de um
movimento mais amplo de reformas no setor da sauacutede Dentre esses movimentos emergentes
em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores da Sauacutede Mental (MTSM) que assumiu um
papel importante na criacutetica e na oposiccedilatildeo ao regime militar em especial no que concernia agraves
situaccedilotildees de violaccedilatildeo dos direitos humanos dentro dos hospitais psiquiaacutetricos Esse movimento
25
permitiu colocar em evidecircncia a violecircncia e a miseacuteria agraves quais eram submetidas as pessoas com
transtorno mental internadas nos hospitais da rede puacuteblica aleacutem de reivindicar melhorias nas
condiccedilotildees de trabalho dos profissionais de sauacutede (AMARANTE 1998)
Segundo Amarante (1998) um ponto crucial para o surgimento desse movimento foi o
que se denominou a ldquocrise da Divisatildeo Nacional de Sauacutede Mentalrdquo1 movimento de denuacutencia e
criacutetica agraves peacutessimas condiccedilotildees em que se encontravam os quatro hospitais da Divisatildeo Nacional
de Sauacutede Mental do Ministeacuterio da Sauacutede no Rio de Janeiro (Centro Psiquiaacutetrico Pedro II ndash
CPPII Hospital Pinel Colocircnia Juliano Moreira ndash CJM e Manicocircmio Judiciaacuterio Heitor
Carrilho) Essa situaccedilatildeo culminou na greve de meacutedicos e funcionaacuterios no primeiro trimestre de
1978 seguida da demissatildeo de 260 estagiaacuterios e profissionais
Na eacutepoca devido ao destaque do Rio de Janeiro como ex-capital federal e como capital
cultural do Brasil somado a gravidade dessas denuacutencias terem ocorrido dentro de um oacutergatildeo
federal constatou-se um verdadeiro escacircndalo no modo como o Estado tratava os pacientes
com transtorno mental e seus funcionaacuterios Isso permitiu com que a situaccedilatildeo atingisse
repercussatildeo nacional tanto atraveacutes da divulgaccedilatildeo na miacutedia quanto pelo debate em setores
expressivos da sociedade brasileira o que impulsionou o movimento de Reforma por todo o
paiacutes (AMARANTE 1998)
Em 1987 surge o Movimento de Luta Antimanicomial a partir do Encontro dos
Trabalhadores da Sauacutede Mental que reuniu mais de 350 trabalhadores na cidade de Bauru no
estado de Satildeo Paulo O movimento assumiu um papel importante no processo de construccedilatildeo da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira contribuindo no fortalecimento e na organizaccedilatildeo dos
trabalhadores usuaacuterios e familiares em torno das pautas e reivindicaccedilotildees da aacuterea
(VASCONCELOS 2008)
Na deacutecada de 1980 haacute um fortalecimento dos movimentos reformistas Segundo
Tenoacuterio (2002) houve um amadurecimento da criacutetica ao modelo asilarsegregador e uma
contestaccedilatildeo mais forte em relaccedilatildeo agraves internaccedilotildees conveniadas
a deacutecada de 1980 assistiu ainda a trecircs processos tambeacutem importantes para a
consolidaccedilatildeo das caracteriacutesticas atuais do movimento da reforma a ampliaccedilatildeo dos
atores sociais envolvidos no processo a iniciativa de reformulaccedilatildeo legislativa e o
surgimento de experiecircncias institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo
tipo de cuidado em sauacutede mental (TENOacuteRIO 2002 27)
1 Oacutergatildeo do Ministeacuterio da Sauacutede responsaacutevel pela formulaccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede do subsetor sauacutede mental
26
Em 1989 o deputado Paulo Delgado propotildee o projeto de lei no 365789 estabelecendo
os direitos das pessoas com transtorno mental e prevendo a extinccedilatildeo dos manicocircmios poreacutem
devido aos fortes lobbies dos proprietaacuterios de hospitais psiquiaacutetricos o projeto natildeo eacute aprovado
mas produz a ampliaccedilatildeo do debate em torno da reestruturaccedilatildeo da assistecircncia por todo o paiacutes
A intensificaccedilatildeo do debate e a popularizaccedilatildeo da causa da reforma desencadeadas pela
iniciativa de revisatildeo legislativa certamente impulsionaram os avanccedilos que a luta
alcanccedilou nos anos seguintes Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiaacutetrica
proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou a situaccedilatildeo curiosa de ser
uma lei que produziu seus efeitos antes de ser aprovada (TENOacuteRIO 2002 28
grifo nosso)
Embora a lei natildeo tenha sido aprovada nesse primeiro momento ela teve efeitos
importantes na organizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos serviccedilos em prol da Reforma Psiquiaacutetrica A
partir de 1992 os movimentos sociais conseguem aprovar em vaacuterios estados do Brasil as
primeiras leis que determinam a substituiccedilatildeo progressiva dos leitos psiquiaacutetricos por uma rede
integrada de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental (BRASIL 2005 8) Nesse contexto atraveacutes
PortariaSNAS nordm 2241992 surgem os Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e os Nuacutecleos
de Atenccedilatildeo Psicossocial (NAPS) dois importantes dispositivos com a proposta de atuarem de
formas substitutiva ao modelo asilar
Ainda nesse ano destaca-se um outro marco na histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileira a II Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental Esta conferecircncia contou com a ampla
participaccedilatildeo dos usuaacuterios e familiares de sauacutede mental cabe ressaltar que aproximadamente
20 dos delegados da conferecircncia eram usuaacuterios dos serviccedilos de sauacutede mental ou familiares de
usuaacuterios
Segundo Tenoacuterio (2002) a conferecircncia estabelece dois marcos conceituais importantes
a atenccedilatildeo integral e a cidadania
Segundo essa referecircncia satildeo desenvolvidos o tema dos direitos e da legislaccedilatildeo e a
questatildeo do modelo e da rede de atenccedilatildeo na perspectiva da municipalizaccedilatildeo As
recomendaccedilotildees gerais sobre o modelo de atenccedilatildeo propunham a adoccedilatildeo dos conceitos
de territoacuterio e responsabilidade como forma de ruptura com o modelo
hospitalocecircntrico e de garantir o direito dos usuaacuterios agrave assistecircncia e agrave recusa ao
tratamento bem como a obrigaccedilatildeo do serviccedilo em natildeo abandonaacute-los agrave proacutepria sorte
(Ministeacuterio da Sauacutede Brasil 1994 22 apud TENOacuteRIO 2002)
Ao longo da deacutecada de 1990 a proposta da construccedilatildeo de uma rede de serviccedilos que
possibilitasse a extinccedilatildeo dos manicocircmios ganhou forccedila e houve uma expansatildeo significativa dos
serviccedilos de atenccedilatildeo diaacuteria substitutivos aos hospitalares Nesse periacuteodo entre os muitos pontos
importantes destacam-se
a penetraccedilatildeo crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiaacutetrico (natildeo obstante
o triunfalismo da psiquiatria bioloacutegica) a permanecircncia continuada de diretrizes
27
reformistas no campo das poliacuteticas puacuteblicas com os postos de coordenaccedilatildeo e gerecircncia
ocupados por partidaacuterios da reforma (no caso do Rio de Janeiro nos trecircs niacuteveis
gestores federal estadual e municipal) a existecircncia de experiecircncias renovadoras com
resultados iniciais positivos em todas as regiotildees do paiacutes a capacidade das experiecircncias
mais antigas de manter sua vitalidade os reiterados indiacutecios de um novo olhar sobre
a loucura vicejando no espaccedilo social um olhar natildeo mais tatildeo fortemente marcado pelos
estigmas do preconceito e do medo (TENOacuteRIO 200241)
Depois de 12 anos tramitando no congresso eacute aprovado em 2001 um projeto substitutivo
da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado a lei 10216 que sofreu muitas modificaccedilotildees no
texto original A referida lei ldquodispotildee sobre a proteccedilatildeo das pessoas com transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sauacutede mentalrdquo (BRASIL 2001) No artigo 2ordm paraacutegrafo
uacutenico estabelece que satildeo direitos da pessoa com transtorno mental
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de sauacutede consentacircneo agraves suas
necessidades II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua sauacutede visando alcanccedilar sua recuperaccedilatildeo pela inserccedilatildeo na famiacutelia no
trabalho e na comunidade III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e
exploraccedilatildeo IV ndash ter garantia de sigilo nas informaccedilotildees prestadas V ndash ter direito agrave
presenccedila meacutedica em qualquer tempo para esclarecer a necessidade ou natildeo de sua
hospitalizaccedilatildeo involuntaacuteria VI ndash ter livre acesso aos meios de comunicaccedilatildeo
disponiacuteveis VII ndash receber o maior nuacutemero de informaccedilotildees a respeito de sua doenccedila e
de seu tratamento VIII ndash ser tratada em ambiente terapecircutico pelos meios menos
invasivos possiacuteveis IX ndash ser tratada preferencialmente em serviccedilos comunitaacuterios de
sauacutede mental (BRASIL 2001)
A lei 10216 tambeacutem regulamenta as internaccedilotildees psquiaacutetricas e redireciona o modelo
assistencial em sauacutede
Aleacutem dos CAPS previu-se a implantaccedilatildeo de ambulatoacuterios de sauacutede mental NAPS
residecircncias terapecircuticas hospitais-dia unidades de psiquiatria em hospitais gerais
lares protegidos e centros de convivecircncia e cultura (BRASIL 2001 apud BARROSO
SILVA 2011 73)
Previram-se tambeacutem a criaccedilatildeo de oficinas de trabalho protegido unidades de
preparaccedilatildeo para a reinserccedilatildeo social dos pacientes e serviccedilos para o atendimento agraves
famiacutelias (BARROSO SILVA 201173 )
Apoacutes a aprovaccedilatildeo da lei 10216 surgiram mais duas portarias que instituiacuteam os serviccedilos
residenciais terapecircuticos (106 e 1220 ambas de 2000)
outras oito leis estaduais e diversas portarias e programas foram criados para
regulamentaccedilatildeo do atendimento psiquiaacutetrico comunitaacuterio Merecem destaque o
programa ldquoDe volta para casardquo (BRASIL 2003) e a portaria 336GM que atribui aos
CAPS o papel central na psiquiatria comunitaacuteria brasileira (DELGADO et al 2007)
(BARROSO SILVA 2011 74)
Quanto agraves mudanccedilas na assistecircncia e na superaccedilatildeo do modelo manicomial desde a
aprovaccedilatildeo da lei cabe levantar alguns dados para fins de anaacutelise Destaca-se como um avanccedilo
significativo na RPB a inversatildeo da curva do financiamento do SUS para a sauacutede mental a
partir de 2006 O valor anteriormente destinado aos hospitais psiquiaacutetricos passa a ser investido
em igual proporccedilatildeo nos serviccedilos de natureza aberta e comunitaacuteria (Graacutefico 1) o que mostra um
28
fortalecimento da rede substitutiva e um empenho na efetiva transformaccedilatildeo do modelo de
assistecircncia de acordo com as novas diretrizes da RPB (BRASIL 2015)
Cabe mencionar que os gastos em Atenccedilatildeo Comunitaacuteria Territorial incluem natildeo
somente os CAPS mas todos os serviccedilos da rede substitutiva tais como Serviccedilos Residenciais
Terapecircuticos (SRT) Centros de Convivecircncia Oficinas de geraccedilatildeo de renda aleacutem de programas
de incentivo financeiro como o Programa Volta para Casa
Quanto agrave expansatildeo dos CAPS desde a aprovaccedilatildeo da Lei 10216 dados do Ministeacuterio da
Sauacutede (2015) apontam uma expansatildeo meacutedia significativa e contiacutenua em todo o territoacuterio
nacional Desde 2002 ateacute 2014 houve um aumento de aproximadamente 150 CAPS por ano
chegando ao total de 2209 serviccedilos em 2014 nas diferentes modalidades como pode ser visto
no Graacutefico 2 (BRASIL 2015)
29
Graacutefico 2 - Seacuterie histoacuterica de expansatildeo de CAPS (2002 a 2014)
Fonte Sauacutede Mental em Dados BRASIL 2015 Elaboraccedilatildeo proacutepria
Vale ressaltar entretanto que a modalidade de CAPS tipo III (com funcionamento 24hrs
e leitos de acolhimento noturno) natildeo acompanhou esse crescimento Como podemos observar
no Quadro 1 no ano de 2014 dos 2209 CAPS existentes no paiacutes apenas 154 eram do tipo III
Considerando que 65 satildeo CAPS ad III destinados aos usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas temos
somente 85 CAPS do tipo III especificamente com capacidade de oferecer acolhimento noturno
agrave crise psicoacutetica e outros transtornos mentais graves percentual correspondente a apenas 38
do total de CAPS no paiacutes (BRASIL 2015)
Quanto a distribuiccedilatildeo dos CAPS III em 2014 verifica-se uma concentraccedilatildeo da oferta
desses serviccedilos em Satildeo Paulo e Minas Gerais que contavam com 35 e 12 unidades
respectivamente Os estados que figuraram em seguida com o maior nuacutemero de CAPS III foram
Paraiacuteba e Pernambuco com quatro serviccedilos cada um Paraacute Bahia Cearaacute Maranhatildeo Sergipe
Paranaacute e Rio de Janeiro contavam com trecircs CAPS III cada um Natildeo possuiacuteam CAPS III os
estados de Acre Amapaacute Rondocircnia Tocantins Alagoas Espiacuterito Santo Mato Grosso e o
Distrito Federal (Quadro 1)
30
31
A baixa participaccedilatildeo dos CAPS III no total de CAPS bem como a ausecircncia deste serviccedilo
em diversos estados mostra que sua proposta natildeo foi assumida pela gestatildeo municipal na escala
observada para os outros tipos de serviccedilos (COSTA et al 2011) Vale ressaltar que a
implantaccedilatildeo dos CAPS III ficou aqueacutem do esperado pelo proacuteprio MS (BRASIL 2011) o que
impacta diretamente na capacidade da RAPS acolher agrave crise em uma proposta de cuidado
substitutiva ao Hospital Psiquiaacutetrico
Em relaccedilatildeo a quantidade de leitos disponiacuteveis para a atenccedilatildeo agrave crise verificamos que haacute
uma marcada preponderacircncia dos leitos em hospitais psiquiaacutetricos em detrimento dos leitos de
sauacutede mental em hospitais gerais e em CAPS III Chama atenccedilatildeo especialmente o fato de que
a quantidade de leitos disponiacuteveis em CAPS III quando comparada ao total de leitos no cenaacuterio
nacional e local eacute praticamente nula alcanccedilando uma meacutedia de 238 e 1 2 em 2014
respectivamente
No cenaacuterio nacional segundo o Ministeacuterio da Sauacutede haviam 25988 leitos em hospitais
psiquiaacutetricos em 2014 (BRASIL 2015) Nos hospitais gerais considerando que o MS faz
distinccedilatildeo entre ldquoleitos de sauacutede mentalrdquo e de ldquopsiquiatriardquo de acordo com o CNES em 2014
haviam 4620 leitos de psiquiatria em HG pediaacutetricos e maternidades destinados ao SUS
(BRASIL 2015) No mesmo ano constam 888 leitos de sauacutede mental em hospitais gerais
conforme podemos ver no Quadro 2 resultando em uma soma de 5508 leitos disponiacuteveis para
a sauacutede mental em hospitais gerais no Brasil
Considerando que de acordo com Portaria 336 que rege o funcionamento dos CAPS
cada CAPS III deve ter no maacuteximo 5 leitos (BRASIL 2002) e que em 2014 de acordo com o
Quadro 1 constavam 154 CAPS III espalhados pelo territoacuterio nacional tomando para fins de
estimativa a capacidade maacutexima de leitos por CAPS teriacuteamos aproximadamente 770 leitos nos
CAPS III destinados a retaguarda noturna nos casos de crise Esse percentual correspondente
a apenas 2 38 do total de leitos o que significa que aproximadamente 8055 dos leitos estatildeo
nos hospitais psiquiaacutetricos
No municiacutepio do Rio de Janeiro de acordo com o Quadro 3 dos 1572 leitos
psiquiaacutetricos existentes 1504 se localizam em hospitais psiquiaacutetricos representando 975
do total de leitos Apenas 31 (49 leitos) se localizam em hospitais gerais e 1 2 (19) nos
CAPS III (BRASIL 2015)
32
Fonte Sauacutede Mental em Dados Brasil (2015)
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo
IIIndashSecretaria Municipal de Sauacutede do Rio de Janeirondashsetembro de 2015
FonteCNESMinisteacuterio da Sauacutede setembro de 2015
Localizaccedilatildeo
dos Leitos
Quantidade Porcentagem
Hospital
Psiquiaacutetrico
1504 957
Hospitais
Gerais
49 31
CAPS III 19 12
Total 1572 100
33
Desse modo embora tenhamos conquistado alguns avanccedilos significativos no processo
de reestruturaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede mental ao longo dos uacuteltimos 30 anos destaca-se a
reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do nuacutemero de
CAPS a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na atenccedilatildeo
comunitaacuteria e territorial etc na praacutetica os hospitais psiquiaacutetricos continuam ocupando um
lugar central na assistecircncia agrave crise constituindo-se muitas vezes na porta de entrada do usuaacuterio
ao sistema de sauacutede
Assim o cenaacuterio atual eacute marcado pela expansatildeo dos serviccedilos substitutivos mas tambeacutem
pela permanecircncia do hospitais psiquiaacutetricos e dispositivos tradicionais determinando a
coexistecircncia de dois modelos de cuidado opostos e mutuamente excludentes o tradicional
modelo asilar e o modelo substitutivo de modo que a RAPS no momento se caracteriza muito
mais por ser complementar do que substitutiva ao modelo asilar como era de se esperar
Logo os manicocircmios natildeo apenas resistem como insistem e se queremos
desinstitucionalizar e acolher a crise no territoacuterio eacute imprescindiacutevel perguntar ao que a
institucionalizaccedilatildeo de um paciente estaacute respondendo Qual eacute o problema que ela coloca Como
desmontar a soluccedilatildeo institucional (a internaccedilatildeo) e reconstruir o problema sobre outras bases
Importante dizer que construir novos arranjos para lidar com a crise natildeo se trata apenas
de aumentar a capacidade de resolutividade dos serviccedilos Eacute preciso ampliar o cuidado para
atender a crise de forma integral Isso significa fazer articulaccedilotildees com o que haacute de produccedilatildeo de
vida tambeacutem fora do espaccedilo dos serviccedilos isto eacute na vida na comunidade na cidade Persiste
desse modo o desafio de romper natildeo soacute com o manicocircmio mas com toda loacutegica e praacutetica de
segregaccedilatildeo da loucura
34
20 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL
21 Reflexotildees sobre a crise e o cuidado
Segundo Moebus e Fernandes (sd) a palavra crise em sua origem grega (krisis ou
Kriacutenein) significa um estado no qual uma decisatildeo tem que ser tomada Esse termo era usado
pelos meacutedicos da antiguidade grega no intuito de se referir a um ponto na evoluccedilatildeo da doenccedila
do paciente no qual ele tanto poderia apresentar uma melhora em direccedilatildeo agrave cura ou piora em
direccedilatildeo agrave morte A ideia de crise portanto aproximava-se nesse contexto agrave noccedilatildeo de um
momento criacutetico decisivo cujo desfecho poderia ser tanto positivo quanto negativo
Jaacute a origem sacircnscrita da palavra eacute kri ou kir que significa ldquodesembaraccedilarrdquo ou purificar
Compartilhando desse mesmo sentido podemos destacar a palavra ldquocrisolrdquo que significa
ldquoelemento quiacutemico que purifica o ouro das gangas limpando-o dos elementos que se fixaram
no metal pelo seu processo vital ou histoacuterico e ao longo do tempo tomaram conta de seu cerne
a ponto de comprometerem sua substacircncia em sirdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN
200732) Crise nessa acepccedilatildeo carrega um teor de transformaccedilatildeo e purificaccedilatildeo em que a
substacircncia pode alcanccedilar sua verdadeira essecircncia
Destaca-se nessas significaccedilotildees originaacuterias da palavra elementos que trazem a ideia de
crise associada agrave um desequiliacutebrio transitoacuterio a um processo de mudanccedila transformaccedilatildeo com
possibilidade de evoluir de maneira positiva Eacute um momento de descontinuidade e perturbaccedilatildeo
da normalidade da vida em algo que eacute deixado para traacutes poreacutem ao mesmo tempo por isso
mesmo abre-se uma nova possibilidade de ser e estar no mundo
Outros autores de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica relacionam o conceito de crise ao conceito de
trauma que para Freud diz respeito ldquoa uma vivecircncia que traz um grande aumento da excitaccedilatildeo
da vida psiacutequica em um curto espaccedilo de tempo tendo por caracteriacutestica o fracasso de sua
liquidaccedilatildeo por meios habituaisrdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Nesse mesmo sentido segundo Laplanche e Pontalis (1986 768) ldquoo trauma consiste
em um acontecimento da crise que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se
acha o indiviacuteduo de lhe responder de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos
patogecircnicos que provoca na organizaccedilatildeo psiacutequicardquo
Haacute nessas definiccedilotildees algo da ordem de um excesso que rompe com o estado de
equiliacutebrio que o indiviacuteduo se encontra e transborda lanccedilando-o em direccedilatildeo a algo estranho e
desconhecido Essa ruptura eacute vivenciada pelo sujeito como algo assustador ao qual ele natildeo
35
encontra recursos psiacutequicos para responder ou mesmo para atribuir qualquer tipo de
significaccedilatildeo As soluccedilotildees que o sujeito costumeiramente encontrava para lidar com seu
sofrimento de alguma forma natildeo satildeo mais suficientes daiacute resultando entatildeo seu estado de
anguacutestia
Knobloch (1998) estudiosa de Ferenczi designa a crise como uma ldquoexperiecircncia limite
natildeo por ser uma experiecircncia que desafia o limite mas por extravasar o delimitado ldquoEacute uma
experiecircncia que traz um excesso excesso do que eacute insuportaacutevel e intoleraacutevel Ruptura em que
se redistribuem de uma maneira brutal as condiccedilotildees da realidade rdquo (apud FERIGATO
CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Para Birman (1983) a pessoa em crise encontra-se em um estado mental no qual ldquoa
anguacutestia provocada pelo que nos escapa eacute tatildeo importante que ficamos com o sentimento de que
a nossa proacutepria vida estaacute escapando uma experiecircncia de perda de seus sistemas de referecircncia
isto eacute a ameaccedila de perda da proacutepria identidaderdquo (apud FERIGATO CAMPOS BALLARIN
2007 35)
Se por um lado haacute a forccedila de um questionamento das convicccedilotildees mais fundamentais de
um indiviacuteduo por outro haacute tambeacutem uma abertura um espaccedilo para a criaccedilatildeo de algo novo de
outros arranjos e possibilidades de organizaccedilatildeo psiacutequica Embora essa vivecircncia seja marcada
por uma extrema sensaccedilatildeo de anguacutestia invasatildeo e sofrimento podemos apontar tambeacutem sua
potecircncia em produzir um desvio em caracterizar a saiacuteda de um lugar historicamente dado para
outro a ser construiacutedo exigindo outras ligaccedilotildees ateacute entatildeo inexistentes (FERIGATO CAMPOS
BALLARIN 2007)
Podemos ver a crise como um acontecimento extremo poreacutem muitas vezes necessaacuterio
na vida de um sujeito Eacute um momento que marca uma diferenccedila a partir da qual natildeo eacute mais
possiacutevel se viver do modo em que se estava vivendo anteriormente Eacute preciso reelaborar a
experiecircncia para habitar outro territoacuterio existencial
No entanto na histoacuteria da Psiquiatria especialmente na Psiquiatria claacutessica-asilar e
hospitalocecircntrica o sentido de crise perdeu sua dimensatildeo de renovaccedilatildeo O que rompe com a
organizaccedilatildeo e com o equiliacutebrio de um indiviacuteduo foi automaticamente entendido como algo
destrutivo que coloca o sujeito em um lugar de exclusatildeo social
A crise e toda a complexidade ligada ao sofrimento de um sujeito foi reduzida agrave
ldquoagudizaccedilatildeo da sintomatologia psiquiaacutetricardquo isto eacute a gama de sinais e sintomas (deliacuterios
alucinaccedilotildees agitaccedilatildeo psicomotora etc) caracteriacutesticos de uma determinada doenccedila Nesse
36
sentido o objetivo da intervenccedilatildeo dos psiquiatras era garantir a remissatildeo completa dos
sintomas em curto periacuteodo de tempo para que o sujeito pudesse voltar a seu estado de
ldquonormalidaderdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007) desconsiderando desse modo as
vivecircncias e situaccedilotildees que possivelmente contribuiacuteram para a eclosatildeo da situaccedilatildeo de crise em
que o sujeito se encontra
Nessa perspectiva a crise eacute entendida como um momento isolado da vida do sujeito
que nada tem a ver com sua histoacuteria com suas relaccedilotildees ou seu contexto soacutecio-afetivo Por isso
o cuidado possiacutevel tem como direccedilatildeo a estabilizaccedilatildeo dos sintomas isto eacute o silenciamento
daquilo que aparece como socialmente inapropriado ou inadequado na conduta do sujeito
Assim a medicaccedilatildeo a contenccedilatildeo fiacutesica e a internaccedilatildeo aparecem como os principais recursos
terapecircuticos aplacando a intensidade do momento fazendo um corte na experiecircncia de
sofrimento do sujeito para que apoacutes algum tempo ele volte naturalmente ao seu estado de
ldquonormalidaderdquo
Tecnologias de cuidado com base na classificaccedilatildeo de distuacuterbios e homogeneizaccedilatildeo de
grupos de problemas tambeacutem satildeo utilizadas com o intuito de preacute-estabelecer condutas e
respostas padratildeo para toda e qualquer situaccedilatildeo de crise que possa vir a emergir Segundo
Dell`Acqua e Mezzina (1991) o serviccedilo passa a responder agrave crise atraveacutes do seu proacuteprio
sintoma Assim toda a complexidade da existecircncia de sofrimento de um sujeito reduz-se a um
mero sinal caracteriacutestico da crise
Ao longo da histoacuteria da Psiquiatria a crise sempre foi vista como uma crise do paciente
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Pinel apostava em uma proposta terapecircutica de
confinamento da loucura em um ambiente controlado para que os alienistas pudessem
recuperar e ldquocorrigirrdquo os erros de pensamento que incidiam sobre as pessoas em situaccedilatildeo de
crise O tratamento natildeo visava agir diretamente nas questotildees sociais e afetivas que tinham
relaccedilatildeo com a experiecircncia de sofrimento vivenciada pelo sujeito mas pretendia isolar o sujeito
para entatildeo ldquoconsertaacute-lordquo em uma clara perspectiva de que o problema estava no sujeito
Com o advento da Psicanaacutelise vemos uma inversatildeo dessa loacutegica Para Freud o deliacuterio
eacute uma tentativa de cura que visa dar sentido a uma experiecircncia psiacutequica de sofrimento Sendo
assim ldquonatildeo haacute o que ser corrigido haacute o que ser escutado Haacute o que ser recuperado Haacute o que
ser construiacutedordquo (CORBISIER 1991 10)
Com Pinel aqueles que se encontravam desviados de sua verdadeira razatildeo deviam ser
conduzidos novamente agrave realidade atraveacutes da correccedilatildeo dos sentimentos comportamentos e
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pensamentos equivocados Com Freud o deliacuterio eacute entendido como uma forma do sujeito
construir um sentido para uma experiecircncia perturbadora (como por exemplo ouvir vozes ver
coisas que natildeo existem etc) que lhe causa sofrimento Assim o problema natildeo estaacute no sujeito
nem no deliacuterio nem nos sintomas mas no modo como ele consegue ou natildeo atribuir sentido ao
que vivencia
Atribuindo um sentido (ainda que delirante) a vivecircncias que satildeo perturbadoras o sujeito
pode ressignificar sua relaccedilatildeo com o mundo e encontrar modos menos angustiantes de estar na
vida Natildeo eacute necessaacuterio portanto ldquoadequarrdquo o pensamento de um sujeito agrave realidade O deliacuterio
pode ele mesmo ser um ponto de estabilizaccedilatildeo na medida que oferece alguma possibilidade de
inserir novamente o sujeito no campo do simboacutelico isto eacute de refazer as conexotildees perdidas na
situaccedilatildeo de crise Se a crise eacute marcada por uma ruptura a possibilidade de construccedilatildeo de um
deliacuterio pode ser justamente aquilo que reconecta o sujeito ao mundo que lhe cerca
Assim eacute preciso escutar as diferenccedilas e tratar do sofrimento que ela pode vir a ocasionar
sem no entanto aboli-las A Psicanaacutelise traz em sua aposta na escuta a possibilidade de
recuperar as diferenccedilas Atraveacutes da fala o sujeito vai contando sua histoacuteria e resgatando aquilo
que lhe pertence que lhe eacute peculiar e o que o constitui Essa experiecircncia permite estabelecer
um corte com as tentativas homogeneizantes da Psiquiatria Claacutessica de lidar com a loucura A
aposta na fala permite ao sujeito construir novos sentidos para o seu sofrimento e perceber que
a presenccedila de um outro que o escute pode produzir algum aliacutevio para sua dor
Embora possamos agrupar sinais e sintomas comuns a psicose (deliacuterio alucinaccedilatildeo
dificuldade em construir laccedilo social etc) cada sujeito vai imprimir em seu sintoma a sua marca
Assim cada loucura eacute singular pois cada um delira de um jeito cada um faz laccedilo social de um
jeito etc Na sintomatologia de um sujeito vamos encontrar elementos que pertencem a sua
cultura agrave sua histoacuteria pessoal e aos seus prazeres e desprazeres em torno da vida Logo as
intervenccedilotildees vatildeo ser diferentes a depender daquilo que o sujeito traz
Nesse ponto vale fazer uma distinccedilatildeo entre emergecircncia psiquiaacutetrica e urgecircncia
subjetiva A emergecircncia psiquiaacutetrica se refere a emergecircncia do sintoma Logo o alvo de sua
intervenccedilatildeo eacute o corpo bioloacutegico O caos de sentimentos e de pensamentos supostamente sem
sentido que emergem na crise psicoacutetica devem ser suprimidos atraveacutes da medicaccedilatildeo restituindo
o corpo ao estado que se encontrava anteriormente (BARRETO 2004)
No afatilde de se estabilizar o sujeito suprimindo seu sintoma natildeo haacute tempo para pensar o
que se coloca em questatildeo em uma crise psicoacutetica Natildeo haacute espaccedilo para direcionar um olhar para
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o sujeito que estaacute inserido naquela situaccedilatildeo emergencial e ver o que nela haacute de singular pois
ldquohaacute coisas para fazer O clinico seleciona coisas para fazer e simplifica a situaccedilatildeordquo (BARRETO
2004 2) a fim de devolver o sujeito ao seu estado de normalidade
A partir da referecircncia da Psicanaacutelise a urgecircncia subjetiva eacute entendida como a urgecircncia
do sujeito que estaacute em crise logo abrange o sintoma mas natildeo se reduz a ele Barreto (2004)
aponta que na crise psicoacutetica acontece uma ruptura com a cadeia de significantes de modo que
a manifestaccedilatildeo dos sintomas que se seguem ao momento de crise expressa uma
ldquoimpossibilidade de significar minimamente pela fala um gozo que natildeo encontra o significante
necessaacuterio para transformaacute-lordquo (BARRETO 2004 1)
A urgecircncia subjetiva se refere portanto ao que haacute de singular em cada crise no
sofrimento do sujeito que se constitui enquanto demanda para um outro Nesse sentido ela
aponta para a necessidade de uma intervenccedilatildeo que natildeo pode ser adiada dada a gravidade em
que se encontra o sujeito poreacutem eacute o avesso da contenccedilatildeo do sintoma pois se utiliza da urgecircncia
que o sujeito coloca para construir a partir dela alguma outra resposta possiacutevel a ser fabricada
no caso a caso
Assim reintroduzir a dimensatildeo subjetiva no sujeito eacute a proposta da Psicanaacutelise
(SELDES 2004)
A psiquiatria apresenta uma resposta para o sujeito atraveacutes de uma nomenclatura
diagnoacutestica oriunda dos manuais de classificaccedilatildeo no vieacutes de uma certeza do Outro o
grande outro da ciecircncia A psicanaacutelise aponta sua resposta ao sujeito quando diz um
sim a sua descoberta sim a sua soluccedilatildeo delirante sim a qualquer possibilidade em
que o sujeito possa se agarrar e retomar minimante seu discurso e o seu laccedilo social O
psicanalista natildeo deteacutem o saber o saber eacute do sujeito (SILVA J 2011 44)
Acolher a crise nessa perspectiva natildeo eacute abordar o paciente que chega aos serviccedilos de
emergecircncia em sauacutede mental procurando encontrar onde estaacute a integridade do sujeito dentro da
crise isto eacute natildeo se trata de fazer uma separaccedilatildeo entre o sujeito e sua loucura para entatildeo extrair-
lhe lsquoa peacuterola que seria a razatildeordquo2 mas sim ouvir o que ali dentro da loucura se coloca enquanto
sujeito
Nesse sentido quando acolhemos um usuaacuterio em crise o que a experiecircncia de crise de
um sujeito pode colocar de questatildeo sobre sua histoacuteria sua vida seu cotidiano Nossa
2 Referecircncia ao livro O Alienista de Machado de Assis especificamente ao seguinte trecho ldquosuponho o espiacuterito
humano uma vasta concha o meu fim Sr Soares eacute ver se posso extrair a peacuterola que eacute a razatildeo por outros
termos demarquemos definitivamente os limites da razatildeo e da loucura A razatildeo eacute o perfeito equiliacutebrio de todas
as faculdades fora daiacute insacircnia insacircnia e soacute insacircniardquo (ASSIS 1882 261)
39
intervenccedilatildeo tem contribuiacutedo para oferecer novas possibilidades de vida a esses sujeitos ou
estamos somente silenciando sintomas
Entendemos que o modo como os profissionais compreendem a crise influencia
significativamente a produccedilatildeo de cuidado Concepccedilotildees de crise centradas nos aspectos
puramente sintomaacuteticos desencadearatildeo intervenccedilotildees no sentido de suprimir o mais
rapidamente possiacutevel os sintomas Ao passo que concepccedilotildees de crise mais abrangentes tem mais
possibilidade de remeter ao sujeito o que essa crise coloca como questatildeo na sua vida e quais
satildeo as possibilidades outras de manejo para esses conflitos Logo uma concepccedilatildeo ampla de
crise (que considere os aspectos sociais afetivos e subjetivos) pode oferecer ao sujeito a
possibilidade de se recolocar em relaccedilatildeo ao seu sintoma e encontrar outros caminhos para lidar
com seu sofrimento
22 O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS
No capiacutetulo anterior vimos como diferentes formas de compreender a loucura ao longo
da histoacuteria produziram impactos nos modos de intervir e lidar com a crise Intervenccedilotildees
baseadas na autoridade no poder na disciplina e no confinamento remetem agrave loucura enquanto
iacutendice de uma anormalidade e falam de uma concepccedilatildeo de ldquocuidadordquo que visa ldquoconsertarrdquo os
sujeitos atraveacutes da correccedilatildeo de seus comportamentos e sentimentos supostamente inadequados
Por outro lado intervenccedilotildees com base no acolhimento na construccedilatildeo de sentidos e na
contextualizaccedilatildeo dos conflitos do sujeito falam de uma concepccedilatildeo de crise que valoriza o
sujeito e sua histoacuteria e o entende como parte de um mundo que o afeta e o transforma
Assim se olhar para as praacuteticas de cuidado pode lanccedilar luz sobre as concepccedilotildees de
loucura presentes na sauacutede mental quando olhamos para o modo como a rede se organiza e se
estrutura para acolher a crise sobre que concepccedilotildees de crise ela nos fala Que sentidos de crise
estatildeo presentes no modo como o SUS foi idealizado e preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas de
sauacutede E que sentidos de crise emergem quando observamos o modo como os usuaacuterios e
trabalhadores efetivamente usam e vivenciam o SUS em cotidiano Como as poliacuteticas de sauacutede
pensam a crise E que questotildees a crise traz agraves poliacuteticas de sauacutede Quais satildeo seus
distanciamentos e aproximaccedilotildees
Tradicionalmente muitos autores tecircm se utilizado da imagem de uma piracircmide para
ldquorepresentar o modelo tecno-assistencial que gostariacuteamos de construir com a implantaccedilatildeo plena
do SUSrdquo (CECIacuteLIO 1997470) Na ampla base da piracircmide estariam dispostos os serviccedilos de
baixa complexidade como as cliacutenicas da famiacutelia que oferecem atendimento para populaccedilatildeo de
40
sua aacuterea de abrangecircncia dentro das atribuiccedilotildees estabelecidas para o niacutevel de atenccedilatildeo primaacuteria
constituindo-se na porta de entrada privilegiada para os niacuteveis de maior complexidade do
sistema de sauacutede Na parte intermediaacuteria estariam localizados os serviccedilos da atenccedilatildeo
secundaacuteria que satildeo ldquobasicamente os serviccedilos ambulatoriais com suas especialidades cliacutenicas e
ciruacutergicas o conjunto de serviccedilos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico alguns serviccedilos de
atendimento a urgecircncia e emergecircncia e os hospitais gerais normalmente pensados como sendo
hospitais distritaisrdquo (CECIacuteLIO 1997 470) No topo da piracircmide encontramos por fim os
serviccedilos mais complexos como os grandes hospitais de caraacuteter regional estadual ou ateacute mesmo
nacional
O objetivo deste modelo eacute estabelecer um fluxo ordenado de pacientes atraveacutes de
mecanismos de referecircncia e contra referecircncia que regulam o acesso entre os niacuteveis de atenccedilatildeo
em sauacutede tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima na piracircmide Dessa forma para
cada necessidade de sauacutede a pessoa eacute encaminhada para o niacutevel de complexidade adequado
evitando sobrecarregar os hospitais e ambulatoacuterios com demandas de baixa complexidade e ao
mesmo tempo trabalhando na atenccedilatildeo baacutesica com estrateacutegias de prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da
sauacutede evitando o agravo de doenccedilas que se natildeo tratadas podem demandar intervenccedilotildees
meacutedicas mais complexas
No entanto no dia a dia do SUS a realidade tem se mostrado bem distante desse modelo
idealizado Como aponta Ceciacutelio (1997 471) ldquoa piracircmide a despeito da justeza dos princiacutepios
que representa tem sido muito mais um desejo dos teacutecnicos e gerentes do sistema do que uma
realidade com a qual a populaccedilatildeo usuaacuteria possa contarrdquo
Na praacutetica a populaccedilatildeo burla o tempo inteiro os fluxos da regulaccedilatildeo formal Buscam
ajuda onde acreditam que vatildeo encontraacute-la tentando acessar o sistema por onde eacute mais faacutecil ou
muitas vezes por onde eacute mais possiacutevel Na tentativa de resolver seus problemas percorrem
vaacuterias unidades de sauacutede diferentes ateacute conseguirem o que desejam um remeacutedio uma consulta
um encaminhamento uma indicaccedilatildeo de internaccedilatildeo Natildeo raro falsificam o comprovante de
residecircncia ou usam o de outra pessoa visando conseguir atendimento em uma unidade mais
proacutexima ou mais bem equipada Do mesmo modo questionam o tratamento chegando a ter em
alguns casos dois meacutedicos e dois tratamentos diferentes para uma mesma questatildeo de sauacutede sem
que um meacutedico saiba da existecircncia do outro
41
Haacute quem pense que todo o problema satildeo os usuaacuterios que ldquobagunccedilamrdquo o sistema natildeo
seguem os fluxos estabelecidos pois natildeo conhecem o funcionamento do sistema e buscam
atendimento em locais inapropriados por ignoracircncia ou maacute-feacute
Ceciacutelio (1997) expotildee esse problema ao trazer a tensatildeo existente entre o que denomina o
ldquousuaacuterio-fabricadordquo e o ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo Segundo o autor o usuaacuterio-fabricado seria o
ldquousuaacuterio idealrdquo normatizado pelas estrateacutegias da Medicina Preventiva que atraveacutes de uma
perspectiva individualista de ldquohaacutebitos saudaacuteveisrdquo pretende ldquofabricarrdquo sujeitos esclarecidos e
por isso menos dependentes do sistema de sauacutede Trata-se entatildeo de produzir um usuaacuterio
disciplinado educado que segue as orientaccedilotildees meacutedicas e leva uma vida saudaacutevel e regrada
O ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo por sua vez eacute aquele que natildeo necessariamente segue as
indicaccedilotildees meacutedicas mas batalha por sua conta e risco para conseguir o acesso agrave tecnologia de
cuidado que supotildee que precisa no dispositivo de sauacutede que julga ser o mais adequado tendo
como perspectiva sua experiecircncia com a doenccedila suas crenccedilas e desejos pessoais Assim o
tempo todo ele transgride agraves regras quebra os fluxos testa e contesta o sistema produzindo agrave
sua maneira seu caminho dentro do SUS Como destaca Ceciacutelio (1997) ldquoo usuaacuterio-fabricador
com sua accedilatildeo concreta e protagonismo com suas buscas e com seus ousados experimentos de
tentativas e erros vai produzindo circuitos opccedilotildees caminhos que soacute em parte correspondem agrave
normalizaccedilatildeo oficial do sistemardquo (ibidem 288)
Contra a perspectiva de um sistema de sauacutede ideal e racionalizado o usuaacuterio-fabricador
eacute aquele que usa o SUS real e por isso encontra suas falhas e furos propondo soluccedilotildees agrave sua
maneira atraveacutes de sua experiecircncia no sistema ldquoDaiacute a ser uma prepotecircncia tecnocraacutetica dizer
que o povatildeo eacute deseducado que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de
sauacutede As pessoas acessam o sistema por onde eacute mais faacutecil ou possiacutevelrdquo (CECILIO1997 472)
E porque natildeo incluir esse saber leigo do usuaacuterio nas estrateacutegias de planejamento e
organizaccedilatildeo do cuidado em sauacutede Por que natildeo ouvir o que esses usuaacuterios tecircm a nos dizer e
incorporaacute-los como parceiros na construccedilatildeo de um SUS possiacutevel natildeo aquele idealizado mas
um que faccedila mais sentido na perspectiva de quem de fato o utiliza
Precisamos considerar que o SUS eacute feito de pessoais reais usuaacuterios trabalhadores
meacutedicos enfermeiros psicoacutelogos que ao se moverem de acordo com suas eacuteticas profissionais
seus saberes experiecircncias esperanccedilas e desejos imprimem novos significados agrave um sistema
que estaacute em permanente construccedilatildeo Esses atores ldquoproduzem inventam resistem e configuram
um cuidado que afinal nunca eacute como noacutes (gestores sanitaristas pensadores formuladores)
42
teimamos em querer normalizar formatar produzir agrave nossa imagem e semelhanccedilardquo (CECIacuteLIO
2012287)
Assim como os usuaacuterios os trabalhadores de sauacutede no encontro com as necessidades
reais de seus pacientes e com as barreiras de acesso do sistema tambeacutem burlam a regulaccedilatildeo
formal muitas vezes se utilizando de seus contatos pessoais relaccedilotildees de conhecimento e
confianccedila para produzir fluxos que possam garantir a continuidade do cuidado oferecido
especialmente nos casos difiacuteceis em que a complexidade dos pacientes natildeo se encaixa na
caixinha de cuidados formalmente oferecida pelo SUS
Quando falamos de um usuaacuterio em crise precisamos pensar que a caixinha de cuidados
padratildeo frequentemente natildeo vai dar conta da complexidade colocada em uma crise psicoacutetica
Muitas vezes a razatildeo pela qual um usuaacuterio vai parar na emergecircncia ou no hospital psiquiaacutetrico
eacute justamente porque os recursos que ele dispotildee para lidar com seu sofrimento natildeo foram mais
capazes de sustentar uma estabilizaccedilatildeo Daiacute a necessidade de podermos pensar outros recursos
outras regulaccedilotildees outros dispositivos
Um usuaacuterio em crise eacute por excelecircncia um usuaacuterio-fabricador As soluccedilotildees que ele vai
engendrar para seu sofrimento vatildeo exceder em muito os limites de um sistema de sauacutede
organizado sob a figura de uma piracircmide em niacuteveis crescentes de complexidade Quando esse
usuaacuterio consegue pedir ajuda ele o faraacute sob a sua loacutegica a partir da suas expectativas e
singularidades Ele pode ir na cliacutenica da famiacutelia no hospital na emergecircncia na poliacutecia na casa
da vizinha na Igreja na escola onde achar possiacutevel obter a ajuda que precisa ainda que suas
escolhas sejam um tanto inusitadas Do mesmo modo quando um usuaacuterio entra em crise isso
tambeacutem pode acontecer em qualquer ponto do sistema e noacutes enquanto profissionais precisamos
ser capazes de oferecer algum suporte a esse sujeito onde ele estiver e na hora em que precisa
da ajuda
A crise natildeo espera o nosso tempo o tempo do encaminhamento do acolhimento-
triagem da discussatildeo de caso do contato com o profissional de referecircncia ela acontece quando
se menos espera e por isso eacute importante que natildeo soacute o dispositivo de referecircncia esteja preparado
para acolhecirc-la mas que todas as portas de entrada do sistema estejam qualificadas enquanto
espaccedilos privilegiados para o acolhimento e reconhecimento das necessidades dos usuaacuterios
Eacute nesse sentido que Ceciacutelio (1997) propotildee uma mudanccedila na imagem de representaccedilatildeo
do modelo de sauacutede da piracircmide ao ciacuterculo Pensar o sistema de sauacutede enquanto ciacuterculo natildeo
significa abandonar os ideais da Reforma Sanitaacuteria no que diz respeito a um comprometimento
43
com a equidade o atendimento universal integral e de boa qualidade mas ao contraacuterio tomar
esses princiacutepios na sua radicalidade e pensaacute-los sob a luz das necessidades reais das pessoas e
do uso que fazem do sistema O formato do ciacuterculo reforccedila um valor essencial do SUS a
integralidade Apostar na imagem do ciacuterculo significa pensar o sistema de sauacutede menos
enquanto um fluxo hierarquizado de pessoas e mais enquanto uma rede em que todos os pontos
satildeo uma porta de acesso qualificada e possiacutevel para o usuaacuterio
Segundo Ceciacutelio (1997 475) ldquo O ciacuterculo se associa com a ideacuteia de movimento de
muacuteltiplas alternativas de entrada e saiacuteda Ele natildeo hierarquiza Abre possibilidadesrdquo Trata-se
de relativizar a hierarquizaccedilatildeo dos serviccedilos abrindo espaccedilo para que o acolhimento possa se
dar onde o paciente solicita ajuda Natildeo estamos negando com isso a especificidade e a missatildeo
diferenciada de cada serviccedilo mas tentando produzir uma rede menos fragmentada e mais
proacutexima da realidade dos usuaacuterios
A loacutegica horizontal dos vaacuterios serviccedilos de sauacutede colocados na superfiacutecie plana do
ciacuterculo eacute mais coerente com a ideacuteia de que todo e qualquer serviccedilo de sauacutede eacute espaccedilo
de alta densidade tecnoloacutegica que deve ser colocada a serviccedilo da vida dos cidadatildeos
Por esta concepccedilatildeo o que importa mais eacute a garantia de acesso ao serviccedilo adequado agrave
tecnologia adequada no momento apropriado e como responsabilidade intransferiacutevel
do sistema de sauacutede Trabalhando assim o centro das nossas preocupaccedilotildees eacute o usuaacuterio
e natildeo a construccedilatildeo de modelos assistenciais aprioriacutesticos aparentemente capazes de
introduzir uma racionalidade que se supotildee ser a melhor para as pessoas
(CECIacuteLIO1997 477)
Eacute importante ressaltar que defender o sistema de sauacutede enquanto um ciacuterculo natildeo se
limita agrave uma mera inflexatildeo teoacuterica mas a possibilidade de garantir que a integralidade seja uma
missatildeo colocada para todos os serviccedilos de sauacutede e natildeo para cada paciente individualmente em
sua peregrinaccedilatildeo pelos dispositivos de sauacutede Nesse sentido trata-se de apostar na continuidade
da linha de cuidado trabalhando para que o paciente tenha acesso agrave assistecircncia por onde ele
chega do modo como chega
Isso significa deslocar um pouco a ideia de referecircncia Ainda que o CAPS seja o serviccedilo
com maior possibilidade e capacidade de atender uma crise psicoacutetica todos os serviccedilos devem
ser capazes de oferecer algum acolhimento agrave crise Se em uma crise psicoacutetica o que estaacute
colocado eacute a fragmentaccedilatildeo do sujeito natildeo eacute possiacutevel que ele consiga se reestruturar em um
sistema igualmente fragmentado
No encontro do usuaacuterio com a equipe o que deve nortear a produccedilatildeo do cuidado eacute a
escuta das necessidades de sauacutede da pessoa que busca o serviccedilo Ainda que o serviccedilo em questatildeo
seja apenas um serviccedilo de passagem na linha de cuidado do usuaacuterio ter o compromisso e a
preocupaccedilatildeo de se fazer sempre a melhor escuta e a melhor devolutiva possiacutevel pode fazer toda
44
a diferenccedila no acolhimento de um sujeito e na continuidade de sua linha de cuidado O essencial
nesse contexto eacute que o encaminhamento natildeo seja meramente uma transferecircncia de
responsabilidade sem que nada tenha sido construiacutedo no caminho
Escutar nesse sentido natildeo se iguala a atender todas as possiacuteveis demandas que traz o
usuaacuterio A demanda eacute o pedido expliacutecito mas as necessidades podem ser bem outras A
demanda pode ser por internaccedilatildeo pela troca de medicamento pela troca do profissional de
referecircncia etc Pode ir dos pedidos mais pragmaacuteticos aos mais delirantes mas nem sempre o
que o usuaacuterio formula enquanto demanda eacute o que ele quer nos pedir
Eacute preciso estar atento tambeacutem para o que pode estar incluiacutedo no seu pedido elementos
como o viacutenculo com a equipe suas relaccedilotildees pessoais o modo como lida com seus sentimentos
sua condiccedilatildeo de vida suas expectativas e sonhos etc Cabe a equipe conhecer o usuaacuterio e ter a
sensibilidade de buscar compreender o que estaacute para aleacutem do pedido expliacutecito ajudando-o a
construir uma saiacuteda possiacutevel para seu sofrimento
Assim a integralidade da atenccedilatildeo no espaccedilo singular de cada serviccedilo de sauacutede
poderia ser definida como o esforccedilo da equipe de sauacutede de traduzir e atender da
melhor forma possiacutevel tais necessidades sempre complexas mas principalmente
tendo que ser captadas em sua expressatildeo individual () Cada atendimento de cada
profissional deve estar compromissado com a maior integralidade possiacutevel sempre
mas tambeacutem ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida soacute seraacute
alcanccedilada como fruto do trabalho solidaacuterio da equipe de sauacutede com seus muacuteltiplos
saberes e praacuteticas Maior integralidade possiacutevel na abordagem de cada profissional
maior integralidade possiacutevel como fruto de um trabalho multiprofissional (CECIacuteLIO
2009 120 121)
A integralidade nesse sentido eacute mais do que cada serviccedilo fazendo sua parte eacute mais do
que o modelo da piracircmide pode oferecer A imagem da piracircmide faz pensar os serviccedilos mais
complexos como lugares de ldquofinalizaccedilatildeo do cuidadordquo da ldquouacuteltima palavrardquo na cliacutenica do sujeito
de ldquoatendimento de demandas pontuais superespecializadas especiacuteficas e por isso mesmo
descompromissados com a integralidaderdquo (CECIacuteLIO 2009 122) Assim escuta qualificada
natildeo eacute missatildeo colocada somente para os ambulatoacuterios e nem o acolhimento agrave crise eacute uma
responsabilidade somente do CAPS Conforme Ceciacutelio (2009 123) ldquo a integralidade natildeo se
realiza nunca em um serviccedilo integralidade eacute objetivo de rederdquo Desse modo todos os serviccedilos
precisam se articular no sentido de dar seguimento ao cuidado de um sujeito em crise e natildeo
apenas o serviccedilo de referecircncia ou a atenccedilatildeo baacutesica que tem sido apontada como o lugar
privilegiado na coordenaccedilatildeo do cuidado
Haacute que se destacar que uma rede soacute seraacute efetivamente integral se for conectada com os
outros dispositivos do territoacuterio onde a vida acontece espaccedilos de cultura e lazer instituiccedilotildees
45
fora do setor sauacutede (ligadas a educaccedilatildeo justiccedila assistecircncia social e outras) associaccedilotildees de
bairros e movimentos organizados instituiccedilotildees religiosas etc Cada territoacuterio carrega em si
uma histoacuteria de ocupaccedilatildeo dos espaccedilos seus usos e costumes sua influecircncia econocircmica e
poliacutetica seu papel social etc Assim pensar a organizaccedilatildeo de um CAPS em uma cidade do
interior eacute diferente de pensar a organizaccedilatildeo desse mesmo serviccedilo em uma metroacutepole ou em uma
periferia A divisatildeo entre bairros pobres e ricos as regiotildees de comeacutercio de meretriacutecio
comunidades regiotildees atravessadas pelo poder do traacutefico e das miliacutecias influem diretamente
nos modos de vida das pessoas
Sendo assim ldquoorganizar um serviccedilo substitutivo que opere segundo a loacutegica do territoacuterio
eacute olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugarrdquo (YASUI LIMA 2010597) Eacute considerar o
contexto de vida das pessoas e suas necessidades de sauacutede Eacute entender que a organizaccedilatildeo da
rede seu acesso e suas ofertas de cuidado precisam fazer sentido na vida daquele que
experiencia o SUS e que enfrenta no seu cotidiano suas barreiras limites e insuficiecircncias
46
3 METODOLOGIA
Segundo Turato (2003) meacutetodo eacute um ldquoconjunto de regras que elegemos num
determinado contexto para se obter dados que nos auxiliem nas explicaccedilotildees ou compreensotildees
dos aspectos ou fenocircmenos constituintes do mundordquo (ibidem 153) Na investigaccedilatildeo cientiacutefica
identificamos comumente dois tipos de metodologia de pesquisa a do tipo quantitativo e do
tipo qualitativo sendo tambeacutem possiacutevel uma mistura desses dois tipos denominada pesquisa
quali-quanti
Estudos quantitativos satildeo mais indicados para pesquisas interessadas em trabalhar com
dados e variaacuteveis de forma objetiva isto eacute quantificaacutevel Jaacute a pesquisa qualitativa permite uma
reflexatildeo mais profunda de fenocircmenos natildeo quantificaacuteveis sendo por isso mais indicada para
tratar de questotildees de ordem subjetiva cultural ou social
Segundo Minayo a pesquisa qualitativa eacute aquela que ldquotrabalha com o universo de
significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo
mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave
operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveisrdquo (2014 22) sendo portanto mais adequada para estudar
fenocircmenos da existecircncia humana que natildeo podem ser quantificados como eacute o caso do objeto
dessa pesquisa
Visando atingir o objetivo desse estudo ndash discutir e analisar os avanccedilos e desafios na
organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo de cuidados aos pacientes em situaccedilatildeo de crise em sauacutede mental-
realizaremos um estudo de revisatildeo bibliograacutefica integrativa de artigos cientiacuteficos da literatura
nacional
Dentre os meacutetodos de revisatildeo a revisatildeo integrativa torna-se especialmente interessante
para essa pesquisa pois permite combinar estudos de literatura teoacuterica e empiacuterica de modo que
tenhamos uma visatildeo mais ampla e concreta dos impasses que se colocam no atendimento agrave
crise no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede mental
Assim foi feita uma busca preliminar na Biblioteca Virtual em Sauacutede (BVS) e no Scielo
no mecircs de Janeiro de 2019 a partir dos seguintes descritores e combinaccedilotildees
1) ldquosauacutede mental and crise and cuidadordquo
2) ldquosauacutede mental and crise and serviccedilos de sauacutederdquo
47
Optou-se por trabalhar com textos em formato de artigos cientiacuteficos Foram
considerados os seguintes criteacuterios de exclusatildeo artigos duplicados texto completo
indisponiacutevel natildeo se aplicam a aacuterea do estudo entendimento de crise relacionado ao
acontecimento de eventos criacuteticos como cataacutestrofes ambientais incecircndios trageacutedias em massa
(queda de aviatildeo desabamentos) etc sofrimento psiacutequico em decorrecircncia de doenccedila orgacircnica
de maior gravidade (exemplo cacircncer HIV etc) toda a sorte de assuntos relacionados aos
familiares de pessoas com transtorno mental estudos que natildeo abordam o contexto brasileiro ou
que natildeo localizam a reflexatildeo das praacuteticas de cuidado no acircmbito do SUS e da Reforma
Psiquiaacutetrica questotildees especiacuteficas do cuidado de uma categoria profissional em particular
(enfermeiros meacutedicos etc) estudos de vieacutes histoacuterico epidemioloacutegico normativo ou educativo
(guias cartilhas documentos oficiais etc)
Na BVS na primeira busca encontramos 89 resultados Foi aplicado o filtro de idioma
portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 85 referecircncias disponiacuteveis Em seguida foram excluiacutedas
21 referecircncias duplicadas 2 em formato de dissertaccedilatildeo e outras 43 com a aplicaccedilatildeo dos criteacuterios
de exclusatildeo Apoacutes a leitura dos resumos foram excluiacutedas mais 9 referecircncias segundo os
criteacuterios de exclusatildeo restando um total de 10 artigos
Na segunda busca ainda na BVS encontramos 2253 resultados Foram aplicados os
seguintes filtros idioma portuguecircs e texto completo disponiacutevel gerando uma reduccedilatildeo para 123
referecircncias Apoacutes o cruzamento com a primeira pesquisa excluiacutemos mais 15 referecircncias
Eliminamos as referecircncias duplicadas e aplicamos os criteacuterios de exclusatildeo restando um total
de 28 referecircncias Excluiacutemos mais 3 referecircncias que natildeo se encaixavam no formato de texto
escolhido para anaacutelise restando um total de 25 artigos Apoacutes a leitura dos resumos foram
excluiacutedas mais 14 referecircncias segundo os criteacuterios de exclusatildeo sobrando um total de 11 artigos
Nas buscas do Scielo natildeo foi possiacutevel encontrar nenhum resultado que pudesse ser
aproveitado para a nossa pesquisa Na primeira busca encontramos 48 referecircncias Foi aplicado
filtro de idioma portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 44 referecircncias Apoacutes o entrecruzamento
dos resultados com o levantamento na BVS excluiacutemos 14 referecircncias Em seguida excluiacutemos
mais 14 resultados repetidos Os 16 artigos restantes tambeacutem foram eliminados por natildeo se
aplicarem a aacuterea do nosso estudo ou natildeo respeitarem os criteacuterios para inclusatildeo
Na segunda busca encontramos 28 resultados Apoacutes a aplicaccedilatildeo do filtro de idioma
portuguecircs restaram 26 referecircncias das quais 9 estavam duplicadas e 12 foram eliminadas por
cruzamento As 5 referecircncias restantes tambeacutem foram eliminadas por natildeo se aplicarem a nossa
48
aacuterea de estudo ou natildeo se encaixarem nos criteacuterios para inclusatildeo Trabalharemos desse modo
somente com os resultados encontrados na busca da BVS que somaram um total de 21 artigos
A anaacutelise das questotildees suscitadas a partir desta revisatildeo teraacute abordagem qualitativa e se
organizaraacute em torno de trecircs eixos temaacuteticos a saber sentidos da crise desafios e
potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidados
Segundo Minayo
Fazer uma anaacutelise temaacutetica consiste em descobrir os nuacutecleos de sentido que compotildeem
uma comunicaccedilatildeo cuja presenccedila ou frequecircncia signifiquem alguma coisa para o
objeto analiacutetico visado Para uma anaacutelise de significados a presenccedila de determinados
temas denota estruturas de relevacircnciavalores de referecircncia e modelos de
comportamento presentes ou subjacentes no discursordquo (MINAYO 2014 316)
Assim esperamos que essa anaacutelise possa lanccedilar luz sobre as questotildees mais relevantes
levantadas na literatura em torno do acolhimento agrave crise apontando os principais desafios que
ela impotildee na construccedilatildeo e sustentaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica no cotidiano das praacuteticas e dos
serviccedilos de sauacutede Os eixos temaacuteticos seratildeo correlacionados com o referencial teoacuterico dessa
pesquisa visando alcanccedilar uma anaacutelise mais profunda e feacutertil dos temas em questatildeo
49
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA
Conforme foi explicitado no capiacutetulo de metodologia a discussatildeo e reflexatildeo dos artigos
alvos dessa revisatildeo se organizaraacute a partir de trecircs categorias temaacuteticas sentidos de crise desafios
e potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidado
Nosso caminho para a formulaccedilatildeo dessas categorias comeccedilou a partir dos descritores
usados nas buscas das plataformas Da leitura dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise
and cuidado and sauacutede mentalrdquo emergiram a maior parte das questotildees relacionadas aos modos
de compreender e significar a crise em sauacutede mental suas repercussotildees sobre as praacuteticas de
cuidado bem como os desafios e estrateacutegias encontrados pelos profissionais no manejo da crise
em seu cotidiano de trabalho Assim desdobramos esse eixo em duas outras categorias
ldquosentidos de criserdquo e ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo
Dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise and sauacutede mental and serviccedilos de
sauacutederdquo emergiram predominantemente as questotildees relacionadas agrave forma como os serviccedilos tecircm
se organizado para receber e acolher as situaccedilotildees de crise Desse eixo fazem parte natildeo soacute as
questotildees relacionadas ao papel de cada serviccedilo e sua organizaccedilatildeo interna para lidar com as
situaccedilotildees de crise como tambeacutem sua possibilidade de articulaccedilatildeo com os outros serviccedilos da
RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e dispositivos do territoacuterio na construccedilatildeo de uma
resposta integral e complexa agraves demandas da crise Esses resultados estatildeo concentrados no eixo
ldquoorganizaccedilatildeo da rede de cuidadosrdquo
41 OS SENTIDOS DA CRISE
Dos muitos sentidos e significados em torno da crise destacamos trecircs que pela forccedila e
intensidade com que aparecem nos artigos atraveacutes das falas dos profissionais das narrativas
dos usuaacuterios e familiares e das situaccedilotildees que emergiram no campo de pesquisa desdobraram-
se em subcategorias na nossa anaacutelise a crise enquanto ameaccedila social a crise enquanto perda e
isolamento e a crise enquanto apropriaccedilatildeo da experiecircncia da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidos
O sentido negativo da crise enquanto ldquoameaccedila socialrdquo aparece sobretudo na fala dos
profissionais e familiares remetendo a figura do louco como ser fora de si agressivo sem
controle apresentado risco para si e para os outros agrave sua volta Os estudos de Pereira Saacute e
Miranda (2017) Milhomens e Martin (2014) Lima (2012) Garcia e Costa (2014) Brito
Bonfada e Guimaratildees (2015) abordam essa realidade Nessas narrativas observamos que a
complexidade do fenocircmeno da loucura eacute reduzida a manifestaccedilatildeo dos sintomas agressivos e
50
violentos operando um recorte muito simploacuterio da vivecircncia da crise e do contexto em que ela
ocorre Vemos como a representaccedilatildeo desse imaginaacuterio fortalece e justifica mecanismos de
controle e vigilacircncia que remontam agrave Psiquiatria Tradicional mesmo nos serviccedilos substitutivos
A crise enquanto ldquoexperiecircncia de perda e isolamentordquo foi um sentido que apareceu
especialmente nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da
primeira crise como nas pesquisas de Pereira Saacute Miranda (2017) e Milhomens Martin (2014)
A peculiaridade dos sintomas que emergem e o estigma social relacionado a eles parecem
reforccedilar nesse primeiro momento um sentido da crise enquanto perda da normalidade e
consequentemente enquanto iacutendice de uma doenccedila ou anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida Por outro lado encontramos esse sentido tambeacutem em estudos
com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees resultando em uma perda dos viacutenculos
afetivos sociais e laborativos A pesquisa de Fiorati e Saeki (2008) com homens de 30 a 50
anos em uma unidade de internaccedilatildeo em Satildeo Paulo aponta para esse resultado
A crise enquanto ldquoapropriaccedilatildeo da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidosrdquo expressa a
construccedilatildeo de um outro sentido de crise que se opotildee aos dois uacuteltimos e abre possibilidades de
vecirc-la em seu vieacutes positivo Nessa categoria destacamos os momentos em que foi possiacutevel
deslocar-se da compreensatildeo da crise como um evento limitante ou signo de anormalidade e
entendecirc-la como um evento analisador que diz do sujeito e de sua histoacuteria Vale ressaltar que o
diaacutelogo com as pesquisas de Milhomens e Martin (2014) e Costa (2007) apontaram elementos
e reflexotildees importantes na construccedilatildeo desse sentido
411 CRISE COMO AMEACcedilA SOCIAL PERICULOSIDADE E RISCO
A loucura entendida como uma ameaccedila social remonta aos primoacuterdios da Psiquiatria
Tradicional e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo e disciplinarizaccedilatildeo do seacuteculo XVIII e XIX quando
se inicia o processo de transformaccedilatildeo da loucura em patologia mental
Segundo Jardim (2007178) ldquoo conceito do risco se coloca aqui a partir do momento
que a crise eacute o prenuacutencio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doenccedila mental
(instalada ou futura)rdquo marcada por comportamentos hostis e intimidadores como mudanccedilas
bruscas de humor pensamentos persecutoacuterios e agressividade dirigida agrave si mesmo ou agrave outros
Na revisatildeo da literatura as falas dos familiares profissionais e dos pacientes reforccedilaram
esse sentido caracterizando a vivecircncia da crise enquanto momento de desorganizaccedilatildeo em que
emergem comportamentos associados agrave violecircncia ameaccedila e medo
51
Luciana ldquogritava dentro de casa quebrava tudo jogou o computador novo no chatildeo
que era o xodoacute delardquo Na terceira crise a adolescente natildeo se reconheceria como matildee
da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho ficando com o
corpo debilitado (PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Minha matildee vinha falar comigo e eu agredia ela Ela falava lsquoEu sou sua matildeersquo E eu
falava que natildeo era PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Eu agredia meus pais quase todo o dia era discussatildeo em casa era um inferno aqui
quase todo dia era discussatildeo porque eu natildeo trabalhava eu natildeo fazia curso eu natildeo saia
de casa [] O preacutedio chegou a denunciar ateacute porque era briga constante (R homem
20 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1111)
Para os nossos entrevistados as pessoas que entram em crise em alguns
momentossituaccedilotildeestornam-se ldquoperigosas violentas agressivas brabas despertam
medo incomodam os outros quebram e destroem as coisas gritamrdquo termos utilizados
pelos entrevistados (LIMA ET AL 2012 428)
Em um estudo com profissionais em um CAPS II de Aracaju (SE) para aleacutem do sentido
da crise associado ao da violecircncia coloca-se tambeacutem o fato de essas pessoas estarem em intenso
sofrimento psiacutequico
satildeo consideradas como pessoas em alto niacutevel de sofrimento porque estatildeo angustiadas
ouvem vozes de comando necessitam de vigilacircncia contiacutenua estatildeo confusas
colocam-se em risco de morte desestruturam as famiacutelias (LIMA ET AL 2012 428)
O risco envolvido na crise se transmite para os profissionais no campo das praacuteticas de
cuidado como uma necessidade constante de monitoramento vigilacircncia e controle da pessoa
em crise como reafirma um dos profissionais desse estudo a seguir
Crise a partir de uma necessidade de vigilacircncia sendo muito exigente enquanto forma
de cuidado gerando um impacto sobre a vida de todos preocupaccedilotildees e uma dedicaccedilatildeo
quase exclusiva agrave pessoa doente (Profissional de um CAPS II Aracaju SE) (LIMA
ET AL 2012 429)
Esse aspecto aparece tambeacutem no estudo de Garcia e Costa (2014) que trazem como
analisador o manejo da crise de uma usuaacuteria em estado de agressividade em um CAPS I em
Porto Real RJ
Gritos cadeiras ao alto mesas jogadas telefone quebrado agressividade Eis um
momento de surto de uma paciente no Caps A equipe pega de surpresa precisa agir
prontamente algo tem que ser feito (GARCIA COSTA 2014 400)
Nessa situaccedilatildeo na tentativa de restaurar a paz e a ordem no serviccedilo alguns profissionais
comeccedilam a demandar o poder policial e a presenccedila de um guarda municipal de plantatildeo no
CAPS como observamos nos trechos a seguir
discutiu-se o caso em reuniatildeo de equipe retomou-se sua histoacuteria foram feitas
propostas ndash produccedilatildeo de saber atravessadas por relaccedilotildees de poder que reivindicavam
lsquoordemrsquo e lsquorespeitorsquo a serem garantidos por um poder policialesco materializado nos
agentes da guarda municipal (GARCIA COSTA 2014 201)
Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito evitando que as crises
aconteccedilam como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta Com
52
a accedilatildeo da guarda seja ela ativa ou passiva de coibir esses eventos intempestivos os
pacientes evitariam ter crises por estarem sendo vigiados (ibidem 405)
Os autores destacam que a aposta na vigilacircncia como forma de controle e prevenccedilatildeo das
crises diz respeito agrave uma visatildeo de crise em que o deacuteficit estaacute no sujeito que natildeo consegue
responder de forma adequada agraves exigecircncias da vida A intervenccedilatildeo vem no sentido de favorecer
o instituiacutedo e reintroduzir a ldquonormardquo Eacute como se algo faltasse agravequele sujeito e ldquona situaccedilatildeo
apresentada precisaria ser tamponada preenchida quer pela guarda municipal por medicaccedilatildeo
ou terapiasrdquo (Garcia Costa 2014 405)
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade De tudo que se apresenta
em uma crise psicoacutetica a agressividade eacute o que fica o que marca e exige atenccedilatildeo urgente Eacute
vista como um sintoma isolado e de suma importacircncia que necessita ser suprimido o quanto
antes Assim recorre-se a praacuteticas como a contenccedilatildeo mecacircnica ou medicamentosa visando
extrair cirurgicamente o sintoma sem precisar lidar com a loucura e com o sofrimento que se
coloca em uma crise psicoacutetica
A reduccedilatildeo da complexidade de uma crise psicoacutetica aos seus sintomas agressivos reforccedila
o medo e o estigma em relaccedilatildeo agrave loucura legitimando condutas que a tratam como mera
contravenccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo da ordem social favorecendo o uso de recursos coercitivos como
o poder policial a guarda municipal e outras instacircncias que visam tratar da criminalidade e natildeo
da sauacutede de uma pessoa
Essa realidade eacute encontrada em uma pesquisa realizada com 24 profissionais de diversas
categorias da equipe de SAMU do municiacutepio de Natal- RN Observou-se que a equipe guarda
uma percepccedilatildeo do paciente em crise como um marginal ou ateacute mesmo como um animal sendo
frequente o uso da forccedila policial nas intervenccedilotildees dessa equipe como se percebe na fala a
seguir
A poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente doente mental () e quando a poliacutecia
chega eles amansam na mesma hora A maioria dos policiais jaacute vem pensando em
descer o bastatildeo entatildeo por isso que os pacientes tecircm medo (Entrevistado 13) (BRITO
BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1300 grifos nossos)
A gente precisa do apoio da poliacutecia pra prender pra interceptar (Entrevistado 2)
(idem 1298 grifos nossos)
O uso dos termos ldquoprenderrdquo e ldquointerceptarrdquo apontam para um entendimento da crise
como fenocircmeno do campo do julgamento moral e da criminalidade As contenccedilotildees satildeo
realizadas pela equipe da poliacutecia que usa de violecircncia deflagrada como ldquodescer o bastatildeordquo
mostrando total despreparo para atuar nessas situaccedilotildees Nota-se que embora os profissionais
53
reconheccedilam que a poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente psiquiaacutetrico recorre-se agrave ela na
tentativa de ldquodominarrdquo o paciente pelo medo subjugando-o como a um animal ldquoamansam na
mesma horardquo ldquopor isso eles tem medordquo Conforme lembra Caponi (2009) ldquonas entrelinhas
dessas accedilotildees estatildeo as relaccedilotildees de poder que caracterizam a Psiquiatria Claacutessica e sua autoridade
de tomar o corpo como objeto de suas praacuteticasrdquo (apud BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2015 1298 )
Assim embora o discurso em relaccedilatildeo agrave loucura tenha mudado e incorporado os
princiacutepios da Reforma Psiquiaacutetrica vemos que quando a crise emerge e com ela a dificuldade
de sustentar com o usuaacuterio um modo protegido de estar com ele a primeira resposta dos serviccedilos
ainda segue a loacutegica do enclausuramento da violecircncia e da imposiccedilatildeo pela autoridade
A associaccedilatildeo entre crise e risco se desdobra em sentimentos de ameaccedila e medo que
justificam praacuteticas de repressatildeo como prevenccedilatildeo da possiacutevel periculosidade da pessoa em crise
como vemos a seguir
A gente notando que ele ainda estaacute agitado inquieto e que agraves vezes ele pode dar o
surto de novo a poliacutecia vai na ambulacircncia sentado com a gente (Entrevistado 7)
(BRITO BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1298)
Acredito que a falta de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz
com que o atendimento siga uma forma natildeo correta (ibidem 1298)
Segundo DelacuteAcqua e Mezzina (2005) o risco implicado na crise eacute compreendido na
Psiquiatria Claacutessica enquanto iacutendice de desadaptaccedilatildeo e desequiliacutebrio proacuteprio da doenccedila mental
Assim o fator periculosidade natildeo sendo algo passiacutevel de desconstruccedilatildeomanejo e a resposta do
medo agrave ele associada fala-nos de uma cadeia estabelecida doenccedila mental- periculosidade-
internaccedilatildeo que estaacute ldquoprofundamente enraizada nos teacutecnicos como cultura forma de agir e
pensar a loucurardquo (SILVA DIMENSTEIN 2014 42)
Cabe aqui ressaltar que natildeo se trata de negar que em uma situaccedilatildeo de crise possa haver
riscos envolvidos para integridade fiacutesica da pessoa em crise e dos demais e que isso causa medo
mas eacute preciso trabalhar em uma outra direccedilatildeo para lidar com o medo que natildeo seja atemorizar
e moralizar aqueles que precisam de cuidados especialmente quando isso eacute feito em parceria
com a poliacutecia
Isso natildeo significa que natildeo se possa utilizar de recursos como a medicaccedilatildeo ou a
contenccedilatildeo mecacircnica em situaccedilotildees extremas mas faz diferenccedila quando trabalhamos em uma
loacutegica em que esses satildeo os uacuteltimos recursos disponiacuteveis e natildeo nossa primeira resposta frente agrave
crise Praacuteticas como essas ainda satildeo tomadas no campo de ldquosoluccedilotildees maacutegicasrdquo para a remissatildeo
54
dos sintomas agressivos quando deveriam ser vistas no maacuteximo como um arranjo incocircmodo
imposto por conjunturas que em niacutevel macro e micro natildeo tem conseguido sustentar a crise no
modelo substitutivo
Desse modo Brito Bonfada e Guimaratildees assinalam que urge avanccedilar na compreensatildeo
da crise enquanto evento que demanda ldquoacolhimento diaacutelogo aproximaccedilatildeo entre sujeitos
envolvidos e respeito agraves necessidades subjetivas e particularidades de cada usuaacuterio dos serviccedilos
de sauacutederdquo (2015 1301) Para tanto faz-se necessaacuterio investir em praacuteticas de educaccedilatildeo
permanente que possam trabalhar com as equipes na direccedilatildeo da construccedilatildeo de um suporte
teacutecnico-conceitual de apoio agrave crise que tenha como base os pressupostos da Reforma
Psiquiaacutetrica Essa capacitaccedilatildeo deve envolver a discussatildeo da crise enquanto um fenocircmeno
complexo que natildeo se restringe aos sintomas apresentados mas diz do modo do sujeito se
posicionar no mundo e das conjunturas conflitivas que o afligem
412 CRISE COMO PERDA E ISOLAMENTO SOCIAL
A primeira crise aparece como um ponto de ruptura a partir do qual algo muda
radicalmente e a vida natildeo pode mais se dar como antes A crise eacute vista como a descoberta de
uma ldquodoenccedilardquo e sentida como um ponto de corte a partir do qual todos os aspectos da vida
precisam ser reavaliados Os pacientes e familiares natildeo sabem mais se podem continuar com
sua rotina de antes e estabelecem uma seacuterie de limitaccedilotildees com o objetivo de ldquoevitar novas
crisesrdquo
A possibilidade de seguir na vida os sonhos os planos e objetivos ficam todos em
suspenso como se qualquer conduta repentina pudesse disparar uma nova crise Vive-se agrave
espreita em estado de alerta atento aos sintomas temendo colocar em risco a estabilidade
conquistada com o tratamento Natildeo se pode retomar a vida como antes e tambeacutem natildeo se sabe o
que eacute possiacutevel sustentar dali em diante iniciando-se entatildeo um processo de paralizaccedilatildeo e
mortificaccedilatildeo da vida
No estudo de Pereira Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise em um CAPSi
do Rio de Janeiro nota-se que a experiecircncia da crise se desdobrou em medo inseguranccedila e
perda do interesse nas atividades do cotidiano o que pode ser destacado nas falas a seguir
Thiago deixou de jogar futebol com os amigos de ir agrave escola ldquoporque eacute melhor natildeordquo
(sic) () Leticia tambeacutem deixou de frequentar a escola apoacutes a uacuteltima crise e perdeu
o interesse pelas atividades diaacuterias que antes realizava Sua matildee ao mesmo tempo
natildeo ldquoconfiavardquo mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha
temendo que esta pudesse ldquose perderrdquo (ibidem 3739)
55
Haacute um certo recuo diante da vida um fechamento em si mesmo como forma de defesa
contra a loucura e o estigma social associado agrave ela Com isso tem-se a perda das antigas
amizades e a dificuldade de se estabelecer novos laccedilos sociais em um processo crescente de
empobrecimento da vida
Ela soacute gosta de dormir vocecirc falou Leticia Soacute quer saber de dormir Antes ela gostava
de fazer as coisas agora natildeo gosta natildeo Natildeo ajuda em casa natildeo faz nenhum trabalho
soacute dorme [hellip] Antes dela ter essa crise uacuteltima ela vinha no centro pra mim fazia as
coisas Mas agora ela anda tatildeo desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as
coisas [hellip] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro pegar o
ocircnibus errado natildeo sei (ibidem3739)
No estudo de Milhomes e Martin (2014) com um grupo de jovens que fazem
acompanhamento em um CAPS II na cidade de Satildeo Paulo quando questionados sobre saiacutedas
os jovens mencionavam idas agrave igreja mercados e festas de familiares A grande maioria referia
ficar em casa com a famiacutelia auxiliando nas tarefas da casa e da vida domeacutestica de modo que
pouco se falava sobre festas ou encontro com os amigos Majoritariamente o grupo de amigos
que esses usuaacuterios tinham contato era o do CAPS havendo apenas um dos seis jovens
entrevistados que participava de um grupo de funk fora do CAPS ldquoNota-se que apoacutes a primeira
crise psiacutequica esses jovens se veem afastados das antigas amizades apresentando importante
isolamento social e perda destes pontos de partilhardquo (ibidem 1113)
Quanto agraves possibilidades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho esse mesmo estudo aponta
que apoacutes o iniacutecio do tratamento a inserccedilatildeo possiacutevel desses jovens no mercado de trabalho se
deu predominantemente pela via do trabalho informal atraveacutes de ldquobicosrdquo e negoacutecios familiares
que permitiam uma maior flexibilidade de horaacuterios e conciliaccedilatildeo com a frequecircncia no
tratamento
Nenhum dos jovens no periacuteodo das entrevistas possuiacutea emprego formal Cinco deles
haviam trabalhado com carteira assinada antes da primeira crise e somente um
retomou este tipo de emprego apoacutes a crise enquanto os outros apesar das tentativas
natildeo conseguiram exercendo uma atividade laborativa sob outros moldes
(MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Embora natildeo se possa deixar de considerar que a primazia do trabalho informal estaacute
relacionada agrave um contexto mais amplo da economia nacional nos uacuteltimos tempos a
precariedade e falta de espaccedilo para a inserccedilatildeo de pessoas com transtorno mental no mundo do
trabalho impacta diretamente na sauacutede mental dessas pessoas trazendo prejuiacutezos ao seu
processo de construccedilatildeo de autonomia reinserccedilatildeo social e independecircncia financeira
Outros estudos como a pesquisa de Fiorati e Saeki com homens com idades entre 30 e
50 anos em uma unidade de internaccedilatildeo na cidade de Satildeo Paulo apontam resultados parecidos
56
ldquoos usuaacuterios atendidos por noacutes interromperam seus processos de escolaridade ou atividade
profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade
produtivardquo (2008 767) Essa ruptura estendeu-se ainda no campo dos viacutenculos afetivos e
sociais dos participantes ldquoseus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados
casamentos interrompidos ou nunca iniciados Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de
redes de relacionamento social natildeo namoravam natildeo tinham amizades ou qualquer ligaccedilatildeo
interpessoal espontacircneardquo (ibidem 768)
O estudo de Milhomens e Martin (2014) se propocircs a pensar as causas desse isolamento
social percebido apoacutes o episoacutedio de crise Em entrevista com os jovens participantes um dos
motivos apontados por eles era ldquoa vergonha e a dificuldade de lidar com esses encontros e
exposiccedilotildees perante olhares e perguntas que causam incocircmodordquo (ibidem 1114)
A vergonha figurava como motivo de restriccedilatildeo da circulaccedilatildeo pelo territoacuterio pois assim
evitava-se o possiacutevel desconforto de encontrar amigos ou vizinhos ter que cumprimentaacute-los e
dar-lhes explicaccedilotildees sobre a vivecircncia da crise A experiecircncia da vergonha pode ser tatildeo
assustadora a ponto como em um dos casos do entrevistado sequer sentir-se confortaacutevel para
retornar a sua antiga residecircncia
Aiacute depois eu natildeo voltei mais pra casa fiquei meio traumatizado com vergonha
tambeacutem na eacutepoca Tudo essas coisas da crise de iniacutecio vocecirc natildeo sabe neacute entatildeo fica
ndash Olha o cara eacute doido [] (vergonha) das coisas que eu fiz neacute [] mesmo se eu
pudesse eu natildeo voltaria a morar laacute sei laacute por vergonha essas coisas (M homem
28 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Segundo esse mesmo estudo outro aspecto do isolamento se daacute como uma defesa e uma
resposta pelos usuaacuterios terem se sentido abandonados pelos amigos nos momentos em que
mais precisavam deles isto eacute nos periacuteodos de crise
Ah mudei assim que agora eu tomo remeacutedio agraves vezes assim pra amizade eu fico
mais na minha As pessoas estatildeo conversando e eu natildeo tenho parece assim que eu
natildeo tenho assunto com as pessoas sabe [] Era aquela flor amiga pra laacute amiga pra
caacute Aiacute quando quando que eu caiacute numa cama todo mundo desapareceu[] (D
mulher 20 anos) (ibidem1113)
O fato de precisar fazer um tratamento e tomar medicaccedilatildeo psiquiaacutetrica tambeacutem aparece
como um elemento que imprime uma marca e estabelece uma diferenccedila separando
categoricamente loucura de normalidade em um caminho sem volta como se a partir daquele
ponto eles nunca mais pudessem ser como os outros
Letiacutecia lamenta ainda por ter ficado ldquodiferente das outras pessoasrdquo pois devido agrave crise
ldquoprecisava de tratamentordquo Relatava tambeacutem uma dificuldade em escrever e ldquocopiarrdquo
a mateacuteria porque a medicaccedilatildeo fazia sua matildeo tremer (PEREIRA SAacute MIRANDA
2017 3739)
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Essa diferenccedila tambeacutem aparece na perspectiva dos profissionais No estudo de Pereira
Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise na perspectiva dos profissionais a crise traz
uma perda natildeo apenas da vida que se tinha mas da vida que o adolescente ainda poderia ter
[hellip] natildeo vai ser igual nunca Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que
surtam voltarem a ser como eram antes[hellip]Porque eu acho que a psicose eacute isso ne
Vocecirc perde algo do que vocecirc tinha e tambeacutem perde a habilidade de adquirir novas
aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivos neacute (Profissional do serviccedilo)
(PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3740)
Nesse sentido a crise na infacircncia aparece para os profissionais como ainda mais grave
do que na vida adulta visto que desde aquele momento a perda jaacute estaria colocada limitando
as possibilidades do adolescente para toda a vida como vemos nas falas a seguir
Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertoacuterio tatildeo comeccedilando a
vida ainda tatildeo no meio do ciclo acadecircmico [hellip] parece que a cada surto se perde um
pouquinho Vai se perdendo algo Eacute muito cedo neacute O prognoacutestico eu considero mais
negativo na adolescecircncia do que na fase adulta (Profissional do serviccedilo) (PEREIRA
SAacute MIRANDA 2017 3740)
Talvez eu ache que o surto do adolescente eacute muito mais florido Impactante eacute a
palavra Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto Eacute mais
impactante sim Porque pega os pais numa situaccedilatildeo de Poxa o cara tava na escola
tava andando as coisas tatildeo indo E esse adolescente eacute ainda um pouco dependente e
aiacute eu acho que a inserccedilatildeo da famiacutelia eacute diferente da famiacutelia do adulto Porque o adulto
jaacute eacute dono de si jaacute tem um caminho andado natildeo sei acho que eacute por aiacute (Profissional
do serviccedilo) (ibidem3740)
Porque quando eacute uma crianccedila pequena esses pais jaacute vatildeo percebendo que lsquoPoxa vida
tem alguma coisa diferente com elersquo E mesmo que seja assim lsquoEle foi normalzinho
ateacute dois anos eacute diferente dele ser normalzinho ateacute dezesseis anos ateacute quinze anos O
que aconteceu com essa criatura que numa semana taacute bem e na outra semana natildeo
Que tira roupa na rua ou bate ou que agride o pairsquo [hellip] (Profissional do serviccedilo)
(ibidem3740)
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede As perdas que os usuaacuterios
vivenciam a perda da autonomia das relaccedilotildees sociais da capacidade laborativa etc satildeo apenas
um reflexo maior dos efeitos dessa diferenccedila na nossa sociedade
Retomando a fala de uma profissional ldquonatildeo vai ser igual nuncardquo natildeo se trata de negar
essa diferenccedila Poreacutem eacute preciso entender que a perda em questatildeo natildeo eacute a perda da ldquohabilidade
de adquirir novas aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivosrdquo mas a perda do
sentido isto eacute da construccedilatildeo de mundo que havia antes da vivecircncia da crise (PEREIRA SAacute
MIRANDA 2017 3740)
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Como qualquer outra experiecircncia singular e impactante que vivemos em nossas vidas
a crise tem o poder de questionar o modo de vida de uma pessoa recriando o mundo e
redistribuindo os sentidos ao redor dela Nem sempre os sentidos construiacutedos seratildeo
compartilhados ou compreensiacuteveis mas eacute possiacutevel sustentar estar junto com algueacutem mesmo
assim mesmo sem entender do mesmo modo que sustentamos estar junto com pessoas que
compartilham de visotildees de mundo muito diferentes das nossas A loucura nesse ponto eacute soacute mais
um modo de se relacionar com o mundo como tantos outros diferentes dos nossos Os sentidos
construiacutedos a partir de uma crise natildeo seratildeo os mesmos de antes mas tambeacutem podem ser potentes
e criadores de vida
413 CRISE COMO APROPRIACcedilAtildeO DA EXPERIEcircNCIA E RECONSTRUCcedilAtildeO DE
SENTIDOS
Na pesquisa de Milhomens e Martin (2014) com jovens em um CAPS adulto em Satildeo
Paulo observou-se que alguns entrevistados especialmente os que jaacute estavam haacute mais de dois
anos em acompanhamento
com a experiecircncia das crises vatildeo adquirindo estrateacutegias e ampliando as formas de
lidar e de se perceber em relaccedilatildeo ao proacuteximo Um dos entrevistados diz que pede para
que seus pais o avisem quando ele natildeo estiver bem Outra integrante diz que quando
percebe olhares estranhos para ela cogita a possibilidade ser somente uma impressatildeo
errada ldquocoisa da minha cabeccedila3rdquo (D mulher 20 anos) (ibidem1114)
Quando questionados sobre a compreensatildeo que tinham sobre o termo ldquoloucurardquo
percebe-se que em alguns casos natildeo se tinha a concepccedilatildeo por doenccedila ateacute a chegada ao CAPS
Aiacute foi aonde que eu fiquei ruim neacute num tava conhecendo ningueacutem tava vendo coisa
e eu jaacute tinha esse negoacutecio de escutar vozes mas pra mim era um negoacutecio normal
(F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Eacute importante ressaltar que reconhecer o fato de ouvir vozes como algo ldquonormalrdquo natildeo
significa que natildeo haja sofrimento implicado nessa vivecircncia visto que ldquoescutar vozesrdquo e ldquover
coisasrdquo falam de uma certa experiecircncia de invasatildeo da consciecircncia Do mesmo modo podemos
imaginar que natildeo reconhecer as pessoas com quem habitualmente se convive deve ser algo um
tanto assustador No entanto o que gostariacuteamos de destacar com esse trecho eacute o fato dessa
experiecircncia natildeo ter sido considerada pelo entrevistado como signo de uma ldquodoenccedilardquo Embora
3 Alterado pela pesquisadora a partir do texto original ldquocoisa da minha cabe drdquo (D mulher 20 anos)
(MILHOMENS A E MARTIN D 2014 1114) pelo fato da mesma entender que houve erro de digitaccedilatildeo na
palavra ldquocabeccedilardquo
59
os diagnoacutesticos possam ser importantes para a praacutetica cliacutenica os efeitos desse diagnoacutestico para
os pacientes se mostram muito mais limitantes do que propulsores de vida
Vemos que mesmo nas situaccedilotildees em que haacute um julgamento social em torno da doenccedila
quando o usuaacuterio consegue se apropriar da sua experiecircncia em relaccedilatildeo agrave loucura com
tranquilidade e maturidade ele encontra forccedilas para lidar com situaccedilotildees que antes eram motivo
de vergonha ou isolamento como vemos na fala a seguir
Os outros me chamavam de Elias Maluco Hoje em dia os outros chama ainda eu levo
na brincadeira eu natildeo me sinto ofendido Quando eu tava ruim eu me sentia ofendido
entendeu Eu levo numa boa entendeu (F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Retomando a categoria anterior ldquoa crise como perda e isolamento socialrdquo Milhomens
e Martin (2014) assinalam que apoacutes o episoacutedio de crise alguns participantes de sua pesquisa
deixaram de sair e de circular pelo territoacuterio para natildeo ter que lidar com os questionamentos dos
vizinhos amigos e conhecidos em torno da sua doenccedila Nesse sentido a fala do usuaacuterio acima
fomenta outras formas de lidar com os possiacuteveis obstaacuteculos que a sociedade impotildee agrave loucura
Sua apropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da loucura faz com que ele natildeo se abale ao ser
chamado de ldquomalucordquo Haacute aiacute a invenccedilatildeo de uma forccedila e de uma potecircncia de vida que sustenta
novas possibilidades de estar na comunidade apesar das adversidades
Outro aspecto que nos chamou atenccedilatildeo nesse estudo foi a relaccedilatildeo que alguns usuaacuterios
conseguiram estabelecer com a sua medicaccedilatildeo Embora a maioria natildeo soubesse informar os
nomes e quantidades bem como a finalidade teacutecnica das mesmas muitos conseguiam mostrar
propriedade na avaliaccedilatildeo dos ldquoganhos e perdasrdquo que a medicaccedilatildeo causava em suas vidas
MILHOMENS MARTIN 2014)
Um dos impasses vivenciados por eles nesse sentido era o conflito entre beber eou
usar drogas e ter que tomar a medicaccedilatildeo Sabe-se que a interrupccedilatildeo do tratamento
medicamentoso pode causar efeitos colaterais importantes e ateacute mesmo agravar os sintomas do
quadro que se pretendia tratar Posto isso esses jovens se viam no dilema de ter que optar entre
um e outro avaliando seus riscos e benefiacutecios como vemos na fala a seguir
Aiacute os moleques tava indo fumando uma maconha laacute aiacute eu ia ficava olhando ndash Seraacute
que eu posso Seraacute que natildeo posso ndash aiacute parei de tomar o remeacutedio pra natildeo prejudicar
tipo pensei assim ndash Se eu para de tomar o remeacutedio acho que eu vou poder beber e
vou poder usar droga [] Sem (a medicaccedilatildeo) fico agitado fico agitado ando de um
lado pro outro arrumo a casa arrumo tudo [risos] e tipo jaacute o coraccedilatildeo sei laacute meio que
acelera Eu sei lidar com isso entendeu Pra ficar mais tranquumlilo fumo um cigarro
fumo ateacute mais cigarro quando acelera o coraccedilatildeo mas isso tipo se eu ficar uns por
exemplo ficar hoje hoje eacute quinta se eu ficar ateacute quarta sem tomar eu fico tranquumlilo
mas como a meacutedica falou a medicaccedilatildeo fica no organismo tem uns dias e tal mas se
eu passar de uma semana sem tomar vixi sei laacute eu natildeo sei se eacute isso ou eacute psicoloacutegico
60
pode daacute uma inseguranccedila vocecirc jaacute fica meio com receio aiacute jaacute fica pilhado deve ser
isso tambeacutem (J homem 24 anos)- (MILHOMENS MARTIN 2014 1116)
Observa-se por outro lado que embora a capacidade de autonomia e de participaccedilatildeo do
usuaacuterio no seu tratamento seja valorizada no modelo substitutivo o questionamento em relaccedilatildeo
aos proacutes e contras do uso da medicaccedilatildeo natildeo foi acolhido pelo serviccedilo e como consequecircncia os
usuaacuterios acabavam por fazer uma gestatildeo solitaacuteria da sua medicaccedilatildeo sem poder contar com o
serviccedilo enquanto um parceiro nessa decisatildeo
Quando um desses jovens fazia uma escolha em relaccedilatildeo ao seu tratamento como
interromper o uso da medicaccedilatildeo para fazer uso de drogas ou para conseguir levantar
cedo para estudar tal atitude era vista pelo serviccedilo como contraacuteria ao tratamento
Como se o exerciacutecio da autonomia soacute coubesse quando exercida em concordacircncia com
a disciplina oferecida pelo serviccedilo Optar por natildeo mais fazer uso da medicaccedilatildeo eacute
tratado como irresponsabilidade ou ldquopiora do quadrordquo (ibidem 1117)
Assim vemos que a relaccedilatildeo dos usuaacuterios com o serviccedilo sofre algumas tensotildees e muitas
vezes satildeo os proacuteprios usuaacuterios que vatildeo encontrar meios de ressignificar e modificar essas
relaccedilotildees como podemos ver na fala desse entrevistado a respeito dos grupos oferecidos no
CAPS
Os grupos eacute pra iniacutecio da crise quando tudo eacute novidade entatildeo todo grupo eacute
interessante por mais babacatildeo assim Quando a gente vai melhorando assim parece
ser meio babaca mas natildeo eacute Porque a gente natildeo taacute acostumado mas assim pintar
essas coisas que parece que eacute pra crianccedila neacute mas nossa mente taacute como de crianccedila
entatildeo parecia uma coisa meia agraves vezes quando passava em mim eu falava ndash O que
eu tocirc fazendo aqui ndash mas esses grupos me fizeram enxergar que tinha mais gente
igual eu que tinha gente numa fase pior que a minha outras melhores me ajudou
bastante (M homem 28 anos) (ibidem 1117)
Segundo os pesquisadores ldquopintar desenhos infantis e promover brincadeiras de
crianccedilas eram atividades rotineiras neste serviccedilo utilizadas com o intuito de entreter as pessoas
que ali estavamrdquo (MILHOMENS MARTIN 2014 paacutegina) Tais atividades promovidas de
forma burocraacutetica e sem aproximaccedilatildeo real com o cotidiano dos usuaacuterios contribuem para a
interrupccedilatildeo ou desistecircncia do tratamento Mesmo assim o entrevistado surpreende e lanccedila um
outro olhar para o serviccedilo reconhecendo o que na sua perspectiva ele traz de efetivamente
importante para o seu tratamento a possibilidade de se reconhecer na experiecircncia do outro e de
se conectar com pessoas que vivem os mesmos problemas e questotildees Esse eacute um elemento
proacuteprio do dispositivo grupal que por si soacute jaacute imprime um novo significado ao tratamento
oferecendo um lugar diferente do de incapacitado e infantilizado
Os usuaacuterios vatildeo encontrando cada um agrave sua maneira meios de lidar com as crises com
o estigma social e com a necessidade de sustentar seu tratamento Os recursos apontados por
eles aparecem como algo da ordem da construccedilatildeo de um saber leigo advindo da experiecircncia
subjetiva da crise e da relaccedilatildeo que eles mantem com o seu contexto soacutecio-cultural
61
Notamos que nesse processo os usuaacuterios foram capazes de criar estrateacutegias para o
enfrentamento da sua condiccedilatildeo ressignificando a relaccedilatildeo com o tratamento e encontrando
meios de estar na vida social ldquomantendo-se em movimento na composiccedilatildeo contiacutenua de novos
territoacuterios tendo a crise como principal agente de mudanccedilas e criaccedilotildeesrdquo (GUATTARI
ROLNIK 1996 apud MILHOMENS MARTIN 2014 876)
Na pesquisa de Costa (2007) com um integrante da luta antimanicomial e profissionais
da enfermaria de agudos feminina do IMAS Nise da Silveira e do EAT (Espaccedilo Aberto ao
Tempo) tambeacutem encontramos olhares e concepccedilotildees em torno da crise que se afastam da
perspectiva claacutessica medicalocecircntrica da crise enquanto iacutendice de desajuste do quadro
psicopatoloacutegico resultando em periculosidade e risco social como vemos na fala a seguir
Para mim a concepccedilatildeo que eu tenho de crise eacute a seguinte eacute quando seus pensamentos
estatildeo de tal ordem bagunccedilados que vocecirc natildeo consegue fazer coisas corriqueiras que
vocecirc geralmente costuma fazer Para mim isso eacute uma crise Natildeo significa que isso
seja uma coisa violenta que vocecirc tenha uma crise e fique violento Vocecirc pode ter uma
crise de depressatildeo pode ficar muito triste natildeo conseguir se relacionar com as pessoas
Entatildeo para mim crise eacute quando vocecirc estaacute em um estado tal de confusatildeo de
imobilidade que vocecirc natildeo consegue fazer suas coisas corriqueiras Isso para mim eacute
uma concepccedilatildeo (Integrante do Movimento da Luta Antimanicomial) (COSTA
2007 105)
Para esse usuaacuterio a crise aparece enquanto um estado de confusatildeo em que os
pensamentos estatildeo de tal modo desorganizados que fica difiacutecil dar conta ateacute mesmo das coisas
mais simples do cotidiano Haacute nessa concepccedilatildeo a ideia da crise relacionada a uma perda que eacute
a perda das referecircncias de mundo que se havia constituiacutedo ateacute entatildeo A crise vem e mexe com
o sistema de referecircncia do sujeito ldquobagunccedilardquo os pensamentos A agressividade eacute um dos modos
de se reagir agrave essa ruptura com o instituiacutedo mas natildeo o uacutenico Assim o que fica enquanto questatildeo
dessa fala eacute o que fazer para que essa perda de sentidos natildeo seja paralisante De que modo
podemos aproveitar o movimento da crise para reconstruir os sentidos perdidos e imprimir
novos movimentos de vida aos sujeitos
A fala desse profissional aponta alguns caminhos
[] Pelo menos como eu vejo o surto psicoacutetico eacute exatamente a colocaccedilatildeo em xeque
das referecircncias que sustentavam uma situaccedilatildeo sustentavam um estado de coisas que
de repente rui ou ameaccedila ruir ou comeccedila a ficar em questatildeo ()Muitas vezes o que
a gente vecirc na loucura eacute uma perda mesmo de sentido (Psiquiatra supervisor da equipe
da enfermaria de agudos feminina) (COSTA 2007 104 grifos nossos)
[] Entatildeo muitas vezes o que a gente acredita o que gente constroacutei a partir da nossa
praacutetica eacute que a possibilidade de algueacutem estar intervindo trabalhando junto na crise
pode muitas vezes em algumas situaccedilotildees facilitar a possibilidade de construccedilatildeo ou
reconstruccedilatildeo de referecircncias Quais vatildeo ser em princiacutepio a gente sugere que natildeo se
sabe Porque tem uma seacuterie de fatores sociais em volta proacuteximo do sujeito no
contexto da famiacutelia que tendem muitas vezes a querer recobrar ou retomar uma
62
situaccedilatildeo anterior [] eu acho que quando a gente estaacute intervindo junto na crise a
gente tem que ter o cuidado de natildeo querer construir novos sentidos ou tatildeo pouco
querer reconstruir os velhos porque a gente natildeo sabe Porque eacute possiacutevel que alguns
natildeo suportem retomar aquilo nem tenham a menor condiccedilatildeo a gente natildeo tem como
saber isso antes A gente tem que estar acompanhando junto com cuidado fazendo o
que for preciso Agora eacute claro que por isso mesmo a crise eacute um momento privilegiado
de possibilidades de emergirem novos sentidos muitas vezes essa produccedilatildeo de
sentido eacute do proacuteprio sujeito Pode ser um sentido delirante mas enfim eacute delirante no
sentido positivo E aiacute eacute claro que se espera que a intervenccedilatildeo natildeo seja para calar esse
sentido (Psiquiatra supervisor da equipe da enfermaria de agudos feminina) (ibidem103 grifos nossos)
Haacute uma preocupaccedilatildeo colocada em natildeo se adiantar em querer restituir o estado de coisas
anterior pois a gente natildeo sabe pode ser que o sujeito natildeo sustente mais retornar agrave vida que ele
levava antes Nessa perspectiva a crise eacute mais do que apenas um estado de desequiliacutebrio
momentacircneo ela eacute iacutendice de que algo precisa ser mudado Os velhos arranjos que o sujeito
tinha para lidar com o sofrimento natildeo satildeo mais suficientes e com isto surge a necessidade de
rever esses arranjos e pensar em novas formas de organizaccedilatildeo para o sujeito e seu cotidiano
Segundo um dos entrevistados
A crise pode ser uma grande chance de vocecirc produzir alguma coisa com aquele
indiviacuteduo alguma coisa diferente produzir a mudanccedila Ou pode ser a chance de vocecirc
fazer exatamente nada no sentido de que tirou da crise o cara volta para a vida
exatamente igual (Psiquiatra da enfermaria de agudos feminina) (ibidem 102)
Voltar exatamente igual seria justamente ignorar o que a crise produz em termos de
subjetividade no sujeito Se tomamos a crise como iacutendice de uma mudanccedila na subjetividade
isto eacute na forma como aquele sujeito se constitui para o mundo entatildeo eacute preciso pensar se os
recursos que ele tem estatildeo agrave altura da nova realidade psiacutequica em que ele se encontra Assim eacute
preciso tomar a crise enquanto um acontecimento que pode apontar para a necessidade de uma
mudanccedila na realidade concreta do sujeito no modo em que ele vive nas suas relaccedilotildees sociais
no modo como organiza seu cotidiano etc A crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um
evento analisador4 que ldquo propicia a criaccedilatildeo de recursos e estabelece uma urgecircncia de
realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (COSTA 2007
101)
Sobre esse aspecto uma profissional conta
Uma coisa que eu lembrei que vocecirc falou da crise me lembrei do CH Ele morava na
casa dos pais que morreram e que foi a casa onde ele cresceu Os pais eram muito
austeros e ele tem muitas recordaccedilotildees naquela casa Ele haacute muito tempo vinha pedindo
para sair daquela casa principalmente quando ele estava ldquoem criserdquo quando ele natildeo
estava ldquobemrdquo Quando algumas coisas aparecem a agressividade por exemplo eacute um
dos sinais de quando ele estaacute em crise aquela doccedilura dele toda natildeo aparece aparece
4 Ver Guattari F (2004) Psicanaacutelise e transversalidade ensaios de anaacutelise institucional Aparecida SP Ideacuteias
amp Letras (Original publicado em 1972)
63
mais uma agressividade uma irritabilidade No caso dele parece que satildeo duas pessoas
parece que duas pessoas habitam o mesmo corpo E ele falava muito de querer sair e
quando ele melhorava acabava que O tempo passou eu natildeo sei muito bem montar
essa histoacuteria um trabalho que a Carla fez e a famiacutelia entendeu que era mais do que
quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil tambeacutem e aiacute se comeccedilou
a procurar a casa E aiacute teve um periacuteodo minus porque ao mesmo tempo em que ele queria
sair quando ele viu a saiacuteda isso mexeu minus em que ele natildeo ficou bem e pedia para ficar
no hospital porque para ele era insuportaacutevel ficar naquela casa mas a outra casa ainda
natildeo tinha saiacutedo e a gente ldquoNatildeo mas aqui no hospital natildeo vamos negociar vocecirc fica
um diardquo E aiacute acabou que ele conseguiu alugar a casa dele estaacute superfeliz Mas esse
periacuteodo da procura da casa foi um periacuteodo em que ele pode ateacute natildeo ter entrado numa
crise mas ele natildeo estava bem natildeo estava bem por todas essas mudanccedilas porque ele
natildeo queria tambeacutem eacute difiacutecil mudar Eu natildeo sei mas numa loacutegica psiquiaacutetrica
tradicional talvez nunca se mexesse na casa e talvez diriam ldquoViu soacute como natildeo foi
bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo (Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)
(ibidem 102)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado da histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social habitacional e
relacional Eacute a partir dela que a equipe entende que natildeo eacute mais possiacutevel sustentar a permanecircncia
do usuaacuterio naquela casa A profissional ao mesmo tempo ressalta o quanto eacute difiacutecil e delicado
esse trabalho que face agrave menor mudanccedila na sintomatologia do usuaacuterio corre o risco de ser
inteiramente questionado ldquo viu como natildeo foi bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo
Assim desconstruir o paradigma manicomial implica em uma aposta incansaacutevel no
sujeito em dar creacutedito ao que ele fala e aponta como direccedilotildees possiacuteveis para seu cuidado Ainda
assim eacute preciso reconhecer que o que quer que se construa com ele seraacute sempre uma construccedilatildeo
provisoacuteria posto que as pessoas estatildeo em constante movimento de territorizalizaccedilatildeo e
desterritorializaccedilatildeo de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo de si proacuteprio e do mundo ao seu redor
Estar aberto para essa construccedilatildeo exige que os profissionais possam rever as concepccedilotildees
de crise que embasam suas praacuteticas No lugar das certezas da Psiquiatria Claacutessica eacute preciso
abrir espaccedilo para uma ldquopraacutetica aberta agrave invenccedilatildeo agrave singularidade cuja tecnologia se vai
construindo permeaacutevel aos elementos de vidardquo (Costa 2007 105) A narrativa a seguir fala
um pouco desse aspecto do trabalho
Para mim eacute isso crise eacute isso Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o
sobrinho dele morreu assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver
com uma situaccedilatildeo que ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele
continuou trabalhando na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de
trabalho E eu me lembro que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele
tirar todos os documentos E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do
nascimento dele e ele me mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e
nasceu e contou histoacuteria A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com
ele porque ele explodiu[] E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos
de novo E a gente entendeu que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia
muito que a gente o ajudasse eacute como se ele pulverizasse e a gente entendia que ele
tinha um pedido de organizaccedilatildeo Tanto eacute que ele pediu para arrumar a cantina ele
64
queria arrumar as coisas da cantina depois do expediente Os documentos eu acho
que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que ele acabou entre aspas
perdendo Acho que a coisa foi meio por aiacute mas isso foi a histoacuteria dele com J seria
outra coisa com N seria outra Eu acho que vai muito por aiacute Por isso que eu natildeo tenho
uma coisa pronta Mas nas vivecircncias a gente vai vendo como vai fazendo (Psicoacuteloga
do Espaccedilo Aberto ao Tempo) (ibidem 105)
A perspectiva dessa profissional se contrapotildee a uma visatildeo mais tradicionalista da crise
que ldquovai dizer que [a crise] eacute um sintoma que ela estaacute descolada da realidade e vocecirc tem que
fazer a remissatildeo do sintoma entatildeo quando ele [o paciente] melhora eacute porque ele paacutera de delirar
e funciona em um registro mais normal mesmo que seja dopado de medicaccedilatildeo mesmo que
vocecirc esteja matando eacute isso(Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)rdquo (Costa 2007 105)
Acompanhar o movimento do sujeito em seus percursos e trajetoacuterias em busca de sauacutede
(no Parque da Catacumba na arrumaccedilatildeo da cantina na retirada dos documentos) diz de uma
postura diante da crise fundada na sustentaccedilatildeo de um natildeo saber A sustentaccedilatildeo de natildeo ter uma
resposta agrave priori eacute o que vai permitir que se possa embarcar com o paciente em novos sentidos
para sua loucura Normalmente o senso comum tende a acreditar que uma pessoa em surto
psicoacutetico faz e fala coisas sem sentido e que por isso devemos ignoraacute-las A ideia aqui eacute agir no
sentido inverso tomar as accedilotildees e falas do sujeito em crise como um saber legiacutetimo sobre si
Trata-se de retomar um pouco a ideia de Freud do deliacuterio enquanto uma tentativa de cura e
apostar na capacidade inventiva do sujeito de criar saiacutedas para seu sofrimento
Enquanto uma visatildeo mais tradicionalista da crise retiraria o sujeito do seu contexto de
vida para isolaacute-lo em uma instituiccedilatildeo de tratamento sob a justificativa de monitorar avaliar e
examinar a evoluccedilatildeo do quadro psicopatoloacutegico uma visatildeo mais ampliada da crise vai situar
esse acontecimento dentro do contexto de vida da pessoa e buscar superaacute-la trabalhando com
os elementos que fazem parte de seu cotidiano como o territoacuterio as relaccedilotildees sociais a histoacuteria
de vida etc Trata-se portanto de buscar uma saiacuteda da crise a partir da histoacuteria de vida do
sujeito e de sua realidade acolhendo os caminhos que ele aponta Vista desse modo a crise eacute
um modo de subjetivaccedilatildeo que soacute se constitui no mundo concreto e coletivo o qual o sujeito faz
parte e soacute pode se transformar na medida em que esse mundo tambeacutem se transforma para ele
42 DESAFIOS E POTENCIALIDADES NO ACOLHIMENTO A CRISE
Segundo a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (2013)
Acolher eacute reconhecer o que o outro traz como legiacutetima e singular necessidade de
sauacutede O acolhimento deve comparecer e sustentar a relaccedilatildeo entre equipesserviccedilos e
usuaacuterios populaccedilotildees Como valor das praacuteticas de sauacutede o acolhimento eacute construiacutedo
de forma coletiva a partir da anaacutelise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
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construccedilatildeo de relaccedilotildees de confianccedila compromisso e viacutenculo entre as
equipesserviccedilos trabalhadorequipes e usuaacuterio com sua rede socioafetiva (spag)
Tal poliacutetica considera ainda que o acolhimento eacute uma postura eacutetica e tecnologia
relacional de escuta qualificada a ser oferecida de acordo com agraves necessidades dos usuaacuterios e a
partir de uma avaliaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade gravidade e riscordquo (BRASIL 2013)
Tendo essa concepccedilatildeo de acolhimento como direccedilatildeo visamos atraveacutes da anaacutelise dos
artigos estudados nessa pesquisa trazer algumas contribuiccedilotildees para pensar como tem se dado
o acolhimento agrave crise na RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e quais satildeo os principais
impasses estrateacutegias e ferramentas cliacutenicas que os profissionais encontram na prestaccedilatildeo desse
cuidado no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede
Desse modo a partir da revisatildeo da literatura podemos dizer que um dos primeiros
desafios que se coloca no acircmbito do acolhimento agrave crise eacute que este natildeo seja apenas um processo
de triagem Sobre esse aspecto a pesquisa de Paulon et al (2012) encontrou resultados
relevantes Os autores entrevistaram trabalhadores e gestores de emergecircncias de hospitais gerais
na cidade de Porto AlegreRS aleacutem de analisarem os protocolos utilizados por essas unidades
no processo de acolhimento
Nos protocolos analisados por Paulon et ali (2012) chama atenccedilatildeo o fato de que em
nenhum momento a palavra ldquoacolhimentordquo eacute utilizada Os autores destacam que em um desses
documentos a palavra ldquotriagemrdquo eacute utilizada em seu lugar como um criteacuterio que permite
ldquoclassificar e escolherrdquo
O texto de introduccedilatildeo deste documento segue descrevendo a origem militar desse
termo utilizado em campos de batalha para escolher ldquoquem valeria a pena salvarrdquo de
acordo com os recursos disponiacuteveis dentre aqueles feridos em combate ldquoo objetivo
geral da classificaccedilatildeo era retornar o maior nuacutemero possiacutevel de soldados ao campo de
batalhardquo (FERNANDES RAMOS FRUSTOCKL FRANCcedilA sd 1 apud PAULON
ET AL 2012 75)
Difiacutecil pensar em produzir relaccedilotildees de cuidado a partir de um texto que orienta os
profissionais a pensarem nos seus pacientes como ldquosoldados em um campo de batalhardquo Vemos
que essa concepccedilatildeo de acolhimento enquanto triagem natildeo se restringe apenas a burocracia de
um documento sem efeitos na praacutetica mas encontra-se presente e viva no discurso dos
profissionais desse hospital como observamos na fala a seguir ldquono acolhimento os pacientes
relatam o seu problema e a partir daiacute eacute triado de acordo com a classificaccedilatildeo de riscordquo (
PAULON ET AL 2012 76 grifo do autor)
Outra profissional entrevistada associa o acolhimento ao filme ldquoTempos Modernosrdquo
relembrando a cena em que o personagem de Carlitos de tanto apertar parafusos sai repetindo
66
os movimentos desconexos rua afora Em seguida acrescenta que ldquoa sua proacutexima escala de
acolhimento ocorreraacute dali a dois meses e sente-se aliviada por isso pois prefere ficar nas
maacutequinas de raios-X do que ficar ali na linha de frenterdquo (ibidem 76)
Talvez o comentaacuterio da enfermeira revele um querer colocar as coisas em seus
ldquodevidos lugaresrdquo uma vez que o trabalho com a maquinaria requer mais
apropriadamente o tipo de conduta que lhe parece ser exigida para atuar nos
acolhimentos da emergecircncia Aleacutem disso as maacutequinas de raio-X natildeo precisam ser
esvaziadas de subjetividade do conteuacutedo psicossocial que insiste em ser sugado das
ldquopessoas-parafusordquo da linha de montagem do acolhimentotriagem (ibidem 76)
O acolhimento-triagem transforma a linha de cuidado em ldquolinha de montagemrdquo
tomando o sujeito como um objeto que precisa ser ldquotriadordquo ldquoencaminhadordquo e ldquoclassificadordquo
de acordo com os criteacuterios de um protocolo Perde-se a dimensatildeo leve e relacional desse
cuidado Aspectos como a escuta a produccedilatildeo de viacutenculo e a valorizaccedilatildeo do encontro natildeo tecircm
espaccedilo para emergir em meio ao tempo altamente controlado e aos procedimentos mecanizados
desse cuidado
Com resultado produz-se uma burocratizaccedilatildeo dos dois lados os pacientes veem o
acolhimento como mais um empecilho para ldquoresolverrdquo suas necessidades de sauacutede ou mesmo
para ldquousufruir do consumo de sua dose procedimentalrdquo e os teacutecnicos como castigo obrigaccedilatildeo e
perda de tempo pois estatildeo se afastando do cuidado que seria ldquoo verdadeiro cuidadordquo o cuidado
dos procedimentos das maacutequinas da medicaccedilatildeo etc
O que prevalece assim eacute um cuidado predominantemente vertical de procedimentos
biomeacutedicos para com um usuaacuterio submisso e em estado de passividade uma perfeita
apresentaccedilatildeo do claacutessico ldquopacienterdquo (ibidem 78)
Ao referir-se sobre o acolhimento palavras como ldquoraacutepido efetivo e estabilizadordquo foram
uma constante no discurso dos profissionais Segundo um dos entrevistados
A nossa proposta de acolhimento eacute um acolhimento raacutepido ele tem que ser raacutepido e
efetivo Porque agraves vezes o paciente chega pra mim e eu tenho que conseguir classificar
ele raacutepido justamente pra ele ter um atendimento mais raacutepido (sic)rdquo (ibidem 78)
O risco e a possibilidade de morte muitas vezes colocada associada agrave percepccedilatildeo de um
corpo fiacutesico em colapso eacute o que demanda a accedilatildeo raacutepida O diaacutelogo torna-se empobrecido e
restrito ao que estaacute prescrito nos protocolos de atendimento e o contato reduz-se a execuccedilatildeo de
procedimentos biomeacutedicos que visam a estabilizaccedilatildeo (medicaccedilatildeo afericcedilatildeo dos sinais vitais
entre outros)
A funccedilatildeo da emergecircncia segundo os entrevistados seria devolver a estabilidade das
funccedilotildees orgacircnicas ao corpo que estaacute sendo assistido () E todos os procedimentos
precisam ser feitos rapidamente pois a depender da gravidade do dano instalado
naquele organismo esse desequiliacutebrio poderaacute levar agrave morte (ibidem 78)
67
Entende-se que eacute necessaacuterio que a pessoa em situaccedilatildeo de crise tenha acesso ao cuidado
de forma raacutepida No entanto o que se observa eacute que a rapidez mencionada pelos profissionais
natildeo se restringe somente ao tempo de espera do atendimento mas as etapas e fases do
acolhimento Assim no intuito de ldquoacelerarrdquo a linha de cuidado o paciente recebe um
atendimento fragmentado e burocratizado cujo objetivo eacute conseguir determinar no menor
tempo possiacutevel qual paciente pode esperar qual deve ser atendido imediatamente qual deve ser
encaminhado para outro serviccedilo e qual deveraacute ser internado Sobre esse aspecto um entrevistado
ressalta
O funcionamento da emergecircncia eacute uma coisa mais Mc Donaldrsquos natildeo tem entrada
primeiro prato segundo prato terceiro prato Eles querem ver quem eacute que tem risco
que tenha que internar senatildeo olham o que precisa e lsquodeursquo A emergecircncia eacute voltada
para o foco da doenccedila ela focaliza no tratamento que estanque aquele sofrimento
emergenterdquo (sic) (ibidem 79 grifos nossos)
Os autores pontuam que essas satildeo decisotildees complexas que natildeo podem ser tomadas ldquono
menor tempo possiacutevelrdquo sem que haja necessariamente um processo de simplificaccedilatildeo do
atendimento no qual ldquoo trabalhador tenta adequar a demanda trazida pelo usuaacuterio agravequilo de
que o serviccedilo dispotildee para poder lidar com ela e salvaguardar algum sucesso no resultado do
trabalhordquo (ibidem 79)
Assim tem-se o que Merhy (2002) descreve como ldquotrabalho mortordquo isto eacute um cuidado
que ldquonatildeo estaacute em movimento- em relaccedilatildeordquo (apud PAULON ET AL 2012 79) O sujeito eacute
visto como um ldquoproblemardquo que precisa ser ldquoresolvidordquo a partir do uso das tecnologias que o
serviccedilo dispotildee Natildeo haacute tempo para se descobrir o que haacute de singular na crise daquele sujeito ou
inventar outras articulaccedilotildees que possam dar conta desse sofrimento
Esvazia-se o processo isolam-se as anguacutestias e a complexidade do atendimento da
pessoa que demanda cuidados adequando-a ao que o hospital pode fornecer ldquoOlham
o que precisa e lsquodeursquordquo (sic) (PAULON ET AL 2012 79 grifo do autor)
O acolhimento-triagem eacute a expressatildeo de todo um modo de cuidado duro constituiacutedo por
certos ldquosaberes bem definidosrdquo orientados para que as respostas sejam as mais adequadas e
eficientes no menor tempo possiacutevel Em nome de ideais como a otimizaccedilatildeo do tempo e dos
recursos reduccedilatildeo dos custos e do foco na sintomatologia produz-se um cuidado
homogeneizado padratildeo ldquoMc Donaldsrdquo que jaacute tem em sua cesta de ferramentas todas as
respostas possiacuteveis Assim cabe perguntar
Se o foco da atenccedilatildeo estaacute direcionado aos sinais vitais e agrave sintomatologia fiacutesica
presente no quadro cliacutenico em nome de uma agilidade e eficiecircncia no atendimento
qual seraacute o espaccedilo reservado para tudo o que natildeo estiver inscrito nesse script O que
sobra do sujeito-usuaacuterio que chega com sofrimentos difusos numa emergecircncia Que
acontece quando o tipo de dor e sofrimento que ldquourgerdquo num usuaacuterio eacute de outra ordem
68
que natildeo aquela que costuma estar no foco desses serviccedilos (PAULON ET AL 2012
81)
Parece que haacute um despreparo para lidar com as situaccedilotildees subjetivas que fogem do olhar
cartesiano da Medicina Tradicional e que exigem dos trabalhadores uma disponibilidade outra
de entrar em contato com a pessoa em sofrimento emprestar seu tempo seu corpo seu afeto
As entrevistas apontam que ldquoos profissionais sentem medo de cuidar daquilo que
desconhecem do que natildeo foram capacitadosrdquo (sic)rdquo (ibidem 86) Um outro desafio que
podemos destacar relacionado a esse despreparo eacute a interferecircncia do preconceito e do
julgamento moral no atendimento agrave algumas situaccedilotildees de sauacutede mental Segundo os
pesquisadores
O julgamento moral estaacute presente desde a triagem a qual culmina em uma
classificaccedilatildeo de risco que mescla a objetividade de protocolos organicistas com um
olhar moralizante da situaccedilatildeo que se encontra o usuaacuterio que chega para atendimento
o que acaba relegando a sauacutede mental a um segundo plano e fazendo seleccedilotildees a partir
de determinados paracircmetros como [] a comunhatildeo de preconceitos e valores sociais
no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como ldquoessencialmente natildeo
urgentesrdquo (os alcooacutelatras drogados e pacientes psiquiaacutetricos) a presteza maior no
atendimento a usuaacuterios de classe social e niacutevel cultural mais abastados a importacircncia
da identificaccedilatildeo dos que fingem ou estatildeo dizendo a verdade sobre suas urgecircncias e no
consenso de que se a dor ou o problema eacute antigo quem esperou tanto para acessar o
serviccedilo pode esperar mais (Neves 2006 692 apud PAULON ET AL 2012 84)
No caso de crises relacionadas ao uso abusivo de aacutelcool e outras drogas a equipe das
emergecircncias tende a assumir uma postura acusatoacuteria relegando a responsabilidade da crise ao
usuaacuterio que teria escolhido seguir esse caminho Acredita-se que por estes nada se tem a fazer
e que o melhor eacute ldquocuidar de quem realmente quer ser cuidadordquo Na praacutetica o atendimento dessas
situaccedilotildees revela ldquodescaso incapacidade de escuta ou ateacute negligecircncia para com sujeitos em crise
de abstinecircncia ou torporrdquo (PAULON ET AL 2012 85) Os autores ressaltam que
Nesse sentido subjugar um cidadatildeo que chega agrave emergecircncia com algum tipo de
sofrimento psiacutequico limite reduzindo-o a um lugar de pecado de vergonha pelos seus
atos fora dos padrotildees aceitos socialmente emerge da junccedilatildeo das loacutegicas meacutedica e
judiciaacuteria efetuada pela ativaccedilatildeo de categorias elementares da moralidade de um
discurso essencialmente parental-infantil que eacute o discurso dos cuidadores quando se
imbuem do saber absoluto sobre ldquoo que eacute bom para o outrordquo(ibidem85 )
O atravessamento das expectativas dos profissionais sobre a vida do outro somado aos
valores morais e culturais em vigor na sociedade fomentam um processo de culpabilizaccedilatildeo da
pessoa que procura ajuda o que pode culminar em uma niacutetida desresponsabilizaccedilatildeo com o
cuidado desses pacientes como vemos nos trechos a seguir
Esses sim esses noacutes da equipe de enfermagem temos bastantes dificuldades de lidar
porque tu vecirc o viacutecio como algo que a pessoa vai e faz por que quer tem livre arbiacutetrio
ele escolheu o viacutecio Ateacute as primeiras idas ateacute antes da dependecircncia (sic) (ibidem
84 grifo do autor)
69
Chegaram a dizer que ele era uma pessoa egoiacutesta e que natildeo tinha condiccedilotildees de
convivecircncia que era pra eu e minha matildee sairmos de casa ou botar(mos) ele pra fora
(CONTE ET AL 2015 1745 grifo do autor)
Nesse contexto eacute comum por exemplo que a equipe entenda que o ldquoatendimentordquo
possiacutevel eacute a resoluccedilatildeo da demanda fiacutesica do alcoolista (reestabelecimento dos sinais vitais
hidrataccedilatildeo etc) sem que haja nenhum tipo de encaminhamento para um tratamento continuado
na rede ou mesmo uma abordagem sobre a situaccedilatildeo que a pessoa se encontra naquele momento
Esse olhar do cuidado orgacircnico e centrado nos procedimentos fiacutesicos tem se apresentado
como um outro importante desafio a se transpor no niacutevel das praacuteticas de cuidado Nas
emergecircncias gerais cenaacuterio da pesquisa isso fica especialmente evidente Os profissionais
tendem a atribuir mais valor agrave dor fiacutesica do que a psicoloacutegica Como se quem estivesse sofrendo
por um trauma um corte ou uma fratura precisasse mais do atendimento do que um paciente
esquizofrecircnico dependente quiacutemico ou com crise de ansiedade Desse modo as demandas
subjetivas satildeo vistas como aquelas que ldquopodem esperarrdquo e que tomam lugar das demandas
fiacutesicas compreendidas nesta loacutegica como aquelas ldquorealmente urgentesrdquo Sobre esse aspecto
Jardim e Dimenstein (2007 182) ressaltam
O foco do trabalho das urgecircncias psiquiaacutetricas estaacute primordialmente no procedimento
em sua dimensatildeo bioloacutegica no corpo pensado como objeto de intervenccedilatildeo da
anatomia patoloacutegica e qualquer fator que extrapole esse acircmbito eacute desconsiderado
Entatildeo ateacute mesmo enquanto doenccedila mental a loucura foge da loacutegica das urgecircncias
Natildeo se manifesta enquanto lesatildeo palpaacutevel ou visiacutevel [ela] evoca outros
questionamentos incomoda por diferir tanto das outras demandas natildeo se encaixa no
espaccedilo natildeo se submete agrave autoridade potildee em xeque os teacutecnicos e seus saacutebios
conhecimentos desvela as suas impotecircncias (apud PAULON ET AL 2012 87)
Mesmo nos casos em que claramente sabe-se que o motivo da falecircncia do corpo eacute o
sofrimento subjetivo o alvo do cuidado continua sendo limitado ao reparo do dano provocado
ao corpo fiacutesico
Quando uma crianccedila chega agrave emergecircncia por automutilaccedilatildeo ou mesmo quando um
adulto adentra a sala com os pulsos cortados os profissionais entendem que sua
funccedilatildeo nesse caso eacute de limpar e suturar os ferimentos O motivo da consulta eacute o
ferimento - novamente o fiacutesico - e os possiacuteveis procedimentos que nele possam ser
executados Jaacute os motivos do plano psiacutequico e social que possivelmente causaram tal
emergecircncia (e natildeo raras vezes causaratildeo novamente e justificaratildeo uma reinternaccedilatildeo ndash
uma das variaacuteveis determinantes da hiperlotaccedilatildeo das emergecircncias) natildeo satildeo alvo de
investimentos por parte das equipes (PAULON ET AL 2012 85)
Haacute um certo mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo pois ao contraacuterio da
patologia orgacircnica ele natildeo se submete as loacutegicas de um saber estruturado e natildeo ldquo se resolverdquo a
partir de um manejo ou intervenccedilatildeo O sofrimento subjetivo retorna e continua a colocar em
xeque os profissionais seus saberes e as instituiccedilotildees Em um serviccedilo como a emergecircncia o que
70
natildeo pode ser ldquoresolvidordquo eacute frequentemente esquecido o que natildeo deixa de ser paradoxalmente
uma forma de ldquoresoluccedilatildeordquo do problema
Nos serviccedilos especializados embora a demanda de sauacutede mental seja mais evidente
parece que a direccedilatildeo do cuidado eacute igualmente no sentido de invisibilizaacute-la Pesquisas como a
de Zeferino et al (2016) sobre a percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre a atenccedilatildeo agrave crise
sauacutede mental apontam que a intervenccedilatildeo muitas vezes eacute no sentido de ldquocalarrdquo o sintoma
revelando que embora o modelo de sauacutede tenha mudado as praacuteticas medicalizantes e
hospitalocecircntricas ainda prevalecem
Essa pesquisa foi feita com 156 alunos do curso ldquoCrise e Urgecircncia em Sauacutede Mentalrdquo
ldquotrabalhadores da RAPS com formaccedilatildeo em niacutevel universitaacuterio que atuam no cuidado em sauacutede
mental no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) oriundos das diversas Regiotildees do Brasil
selecionados pelo Ministeacuterio da Sauacutederdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag) Como forma de
cuidado na crise os participantes citaram majoritariamente medidas como ldquocontenccedilatildeo
medicamentosa contenccedilatildeo mecacircnica e internaccedilatildeo accedilotildees que se limitam agrave diminuiccedilatildeo de
sintomasrdquo (idem p) como descrito nas falas abaixo
Quando chegam ao serviccedilo dependendo de como estejam satildeo contidos no leito com
faixas de contenccedilatildeo pelos monitores e depois satildeo vistos pelos meacutedicos Psiquiatras que
determinam a contenccedilatildeo medicamentosa feita a administraccedilatildeo da medicaccedilatildeo ficam
em observaccedilatildeo (E1 A124 - CAPS II) (ibidem spag )
Nas urgecircncias a primeira conduta eacute a intervenccedilatildeo medicamentosa que ocorre pela
equipe de enfermagem tanto na unidade como em domiciacutelio em alguns casos com
apoio da Guarda Municipal para contenccedilatildeo fiacutesica Logo que possiacutevel o paciente eacute
avaliado pelo meacutedico que quase sempre orienta a internaccedilatildeo (E1 A64 - CAPS II)
(ibidem spag)
Quando temos um usuaacuterio em crise e a famiacuteliar liga para pedir ajuda da equipe do
CAPS orientamos que entre em contato com o SAMU para levaacute-lo ao hospital e
entatildeo o usuaacuterio ser medicado Se a Crise for muito forte este eacute encaminhado para a
capital onde seraacute internado[] (E1 A147 - CAPS II) (ibidem spag)
Nota-se que as primeiras intervenccedilotildees mencionadas pelos profissionais satildeo a contenccedilatildeo
fiacutesica eou medicamentosa seguida do encaminhamento para o hospital A avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo
de crise eacute vista como uma responsabilidade uacutenica e exclusiva do meacutedico da qual a equipe natildeo
participa Na terceira fala por exemplo observamos que o profissional sequer tenta entender a
situaccedilatildeo que levou o usuaacuterio a entrar em crise O CAPS tampouco parece ser visto como um
dispositivo a ser acionado nas situaccedilotildees de crise O encaminhamento imediato eacute ligar para o
SAMU para que o usuaacuterio seja levado ao hospital
Embora o CAPS seja o dispositivo por excelecircncia substitutivo ao hospital e por isso
privilegiado no atendimento agraves situaccedilotildees de crise a expectativa dos profissionais eacute de que
71
outros serviccedilos se ocupem da crise e que o usuaacuterio retorne ao CAPS quando estiver
ldquoestabilizadordquo conforme vemos a seguir
A equipe tem se mostrado omissa quando presencia um momento de crise e ao inveacutes
de intervir busca encaminhar e se livrar do problema (E1 A141 - CAPS II) (ibidem
spag)
O usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao Hospital Geral para a
estabilizaccedilatildeo retornando ao CAPS assim que estiver compensado para a
continuidade do seu tratamento (E1 A92 - CAPS II) (ibidem spag)
A ideia da estabilizaccedilatildeo associada prioritariamente agrave intervenccedilatildeo farmacoloacutegica e a
hospitalizaccedilatildeo aleacutem de reforccedilar o modelo manicomial deposita a esperanccedila da melhora em uma
soluccedilatildeo externa e maacutegica retirando a possibilidade do sujeito se responsabilizar pelo seu
sintoma e talvez encontrar outra soluccedilatildeo para sua compensaccedilatildeo Segundo os autores ldquoVaacuterias
correntes teoacutericas tem apontado que o objetivo das praacuteticas de sauacutede mental precisa ser a
ampliaccedilatildeo da capacidade de cada um lidar consigo mesmo e com os outros e natildeo apenas a
remissatildeo de sintomasrdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag)
Assim embora alguns profissionais reconheccedilam a necessidade de uma mudanccedila em
relaccedilatildeo a essas praacuteticas parecem ter dificuldades de nortear suas accedilotildees sob a loacutegica do modelo
psicossocial como podemos ver nas falas a seguir
Vejo-me com tantas perguntas sobre crises como identificaacute-la como agir o que natildeo
fazer a resposta medicamentosa me parece faacutecil e raacutepida poreacutem me angustia tecirc-la
como resposta gostaria de descobrir outros caminhos (E1 A52 - CAPS II) (ibidem
spag)
A equipe tem se esforccedilado no cuidar natildeo tem sido faacutecil pois exige um
amadurecimento da mesma procurando natildeo limitar na terapia medicamentosa no
modelo meacutedico-centrado mas sim em acolher natildeo soacute o paciente mas os familiares
buscando interagir com os parceiros da RAPS Nas nossas reuniotildees de equipe sempre
discutimos casos novos (E1 A66 - CAPS I) (ibidem spag)
Destaca-se nesse contexto que a formaccedilatildeo hegemonicamente biomeacutedica e a
inadequaccedilatildeo dos curriacuteculos para aacuterea da sauacutede mental reforccedilam o apelo agrave resposta ldquoprontardquo da
medicaccedilatildeo e contribuem para a manutenccedilatildeo do modelo manicomial ldquoO diagnoacutestico apressado
a conduta extremamente teacutecnica e desumana a medicalizaccedilatildeo de todas as queixas e as
dificuldades no contatordquo (ibidem spag) satildeo expressotildees de um modelo de cuidado duro que
imbuiacutedo dos ideais de neutralidade da praacutetica meacutedica simplifica e compromete a integralidade
do cuidado Sobre esse aspecto um profissional comenta
Trabalhamos ainda focados na praacutetica meacutedica quase em todos os episoacutedios a
medicalizaccedilatildeo ocorre em primeiro lugar Principalmente com a falta de capacitaccedilatildeo
dos profissionais envolvidos Esta atuaccedilatildeo soacute fortalece a dependecircncia do hospital
psiquiaacutetrico (E1 A53 - CAPS II) (ibidem spag)
72
Para agravar a situaccedilatildeo a rede tambeacutem natildeo consegue dar respostas pois tambeacutem natildeo
estaacute preparada para tais situaccedilotildees Ocorre que esse usuaacuterio percorre um caminho de
sofrimento e descaso (E1 A141 - CAPS II) (ibidem spag)
Na pesquisa de Almeida et al (2012) com 14 profissionais de quatro equipes do SAMU
no estado de Santa Catarina a falta de capacitaccedilatildeo teacutecnica para o atendimento agraves situaccedilotildees de
crise tambeacutem aparece enquanto um desafio As dificuldades relatadas pelos profissionais
perpassam o medo a falta de conhecimento sobre a crise e o despreparo no momento de abordar
o paciente
Acredito que a experiecircncia do dia a dia me faz ter certo preparo teacutecnico mas com
dificuldade na questatildeo psicoloacutegica Por ser o SAMU um serviccedilo de Urgecircncia e
Emergecircncia e natildeo de continuaccedilatildeo do cuidado realiza-se o necessaacuterio mas acho que
poderiacuteamos ter um preparo melhor Fico muito em alerta a tudo o que o paciente faz
a forma dele agir e de se expressar Eu abordo porque tem que abordar mas eu natildeo me
sinto preparado Pode-se dizer que estou preparado na medida do possiacutevel pois
consigo realizar teacutecnicas para contenccedilatildeo fiacutesica mas natildeo psicoloacutegica Em algumas
situaccedilotildees natildeo me sinto preparado e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia militar
No caso de agressividade natildeo me sinto preparado Acredito que precisariacuteamos de mais
orientaccedilatildeo pois eacute a uacutenica aacuterea que a gente natildeo tem capacitaccedilatildeo Quando consigo me
aproximar na abordagem a pessoa fica tranquumlila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmo
Com certeza precisa mais coisa para o atendimento orientaccedilatildeo Acredito que a falta
de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz com que o
atendimento siga uma forma natildeo correta
(P1P2P3P4P5P6P7P9P10P13P14)(ALMEIDA ET AL 2012 710)
A falta de preparo muitas vezes eacute o que justifica o uso da forccedila fiacutesica e da agressividade
conforme retratado nas falas ldquoquando consigo me aproximar na abordagem a pessoa fica
tranquila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmordquo ldquoem algumas situaccedilotildees natildeo me sinto preparado
e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia miliarrdquo ldquono caso de agressividade natildeo me sinto
preparadordquo Assim vemos a importacircncia do investimento em processos de educaccedilatildeo
permanente supervisatildeo cliacutenica e cursos de formaccedilatildeo para que os profissionais encontrem meios
de manejar as situaccedilotildees de crise sem necessidade do uso de violecircncia
A formaccedilatildeo precisa ser vista como um ldquoprocesso dinacircmico e contiacutenuo de construccedilatildeo do
conhecimento pautado no diaacutelogo em que todos os atores assumam papel ativo no processo de
aprendizagem atraveacutes de uma abordagem criacutetica e reflexiva da realidaderdquo (ibidem713)
Acreditamos que atraveacutes dela as concepccedilotildees de crise o imaginaacuterio social da loucura e os
conceitos de risco e periculosidade podem ser revisitados e problematizados fornecendo
subsiacutedios para uma praacutetica orientada para a escuta das necessidades do sujeito do viacutenculo e do
cuidado em liberdade
Assim podemos dizer que o cuidado dos profissionais ainda representa em grande parte
caracteriacutesticas do modelo asilar como intervenccedilotildees centradas na contenccedilotildees fiacutesica e
medicamentosa excesso de internaccedilotildees acolhimento burocratizado falta de preparo na
73
abordagem ao paciente em crise resultando no uso da forccedila fiacutesica e da agressividade aleacutem de
praacuteticas de preconceito e discriminaccedilatildeo sendo estes alguns dos principais desafios apontados
pela literatura estudada no acolhimento agrave crise no acircmbito da Reforma Psiquiaacutetrica e do SUS
(Sistema Uacutenico de Sauacutede)
Quanto agraves potencialidades no acolhimento agrave crise podemos destacar algumas estrateacutegias
referidas pela literatura Na pesquisa de Lima et al (2012) da qual participaram profissionais
usuaacuterios gestores e familiares de 11 CAPS nas cidades da Bahia e Sergipe emergiram enquanto
elementos que favorecem o manejo da crise segundo a perspectiva dos participantes
a) acolhimento diurno e noturno b) observaccedilatildeo continuada e contiacutenua c) atenccedilatildeo
domiciliar (visitas domiciliares) d) responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso
e) presenccedila do psiquiatra na equipe para garantir o ecircxito da prescriccedilatildeo f) negociaccedilatildeo
e apoio concreto ao familiar para que o internamento seja o uacuteltimo recurso utilizado
g) elaboraccedilatildeo de cartilha com orientaccedilatildeo sobre como lidar com a crise de pessoas com
transtornos para profissionais natildeo especializados em sauacutede mental e para familiares
h) implantaccedilatildeo das ldquoOficinas de criserdquo 5nos CAPS i) estabelecimento de limites para
os usuaacuterios atraveacutes de regras de convivecircncia para evitar o uso de aacutelcool e outras drogas
no CAPS e como sugerem os parentes j) na perspectiva dos familiares natildeo podem
faltar carinho compreensatildeo e feacute (LIMA ET AL 2012 430 grifo nosso)
Recursos como o acolhimento diurno e noturno quando possiacutevel no caso de CAPS III
associado agrave observaccedilatildeo contiacutenua e agrave responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso indicam a
importacircncia de um cuidado mais intensivo nos momentos de crise Uma estrateacutegia possiacutevel
nesse sentido eacute aumentar a frequecircncia do paciente no serviccedilo para que a equipe possa
acompanhar o caso mais de perto e oferecer suporte antes que a situaccedilatildeo se agrave Isso implica
em uma revisatildeo do Projeto Singular Terapecircutico para construir outros espaccedilos onde o sujeito
possa produzir sauacutede A inclusatildeo de recursos do territoacuterio e espaccedilos no proacuteprio serviccedilo que
possam dar alguma continecircncia agrave desorganizaccedilatildeo e aos sentimentos disruptivos que emergem
na crise tambeacutem eacute uma accedilatildeo fundamental na direccedilatildeo de um cuidado territorial e em liberdade
Outras pesquisas como a de Peireira Saacute e Miranda (2017) indicam a utilizaccedilatildeo da
intensividade do cuidado de forma exitosa permitindo a saiacuteda do estado de crise
O irmatildeo de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora
resultado principalmente do aumento dos dias em que esta permanecia no serviccedilo
da disponibilizaccedilatildeo de um carro para transportaacute-la e da intensificaccedilatildeo dos contatos
dos profissionais com a famiacutelia (ibidem 3738 )
As visitas domiciliares tambeacutem se mostram estrateacutegias muito eficientes nos momentos
de crise em que natildeo eacute possiacutevel para o sujeito ir ateacute o serviccedilo Baseadas em uma tecnologia-leve
e relacional de cuidado tem como suas principais ferramentas a aposta no encontro no viacutenculo
5 Segundo os autores trata-se de um espaccedilo que ldquomanteacutem o usuaacuterio em crise sob acompanhamento intensivo
tendo como premissa soacute recorrer agrave internaccedilatildeo como uacuteltima alternativardquo (LIMA ET AL 2012 429)
74
na escuta qualificada e no diaacutelogo Aleacutem disso indicam a importacircncia de dois elementos
fundamentais na loacutegica da atenccedilatildeo psicossocial a intervenccedilatildeo dentro do contexto de vida do
sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) e a disponibilidade de prestar o cuidado
no momento em que ele eacute necessaacuterio
Outro achado da pesquisa de Lima et al (2012) que reflete a potecircncia da tecnologia
vincular no acolhimento agrave crise eacute a percepccedilatildeo dos profissionais que os usuaacuterios mais antigos e
conhecidos pela equipe tecircm menos chances de serem internados em uma situaccedilatildeo de crise do
que os novos Sobre esse aspecto ressaltamos a fala de uma trabalhadora entrevistada
Uma coisa interessante tambeacutem eacute que os pacientes jaacute conhecidos jaacute usuaacuterios haacute algum
tempo os profissionais de referecircncia deles agraves vezes jaacute datildeo conta de alguma forma A
gente observa situaccedilotildees assim os pacientes novos em geral que satildeo encaminhados pra
emergecircncia tecircm um quadro de agitaccedilatildeo e precisam de medicaccedilatildeo Mas outros casos a
gente jaacute consegue controlar sem medicaccedilatildeo pelos viacutenculos mas os que jaacute satildeo da
casa Os que jaacute tecircm um tempo conosco Como a gente tem vivenciado uma coisa que
se prende ateacute a noacutes psiquiatras porque a gente lida muito com a medicaccedilatildeo aquele
paciente sair daquele quadro sem medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431 grifo nosso)
Assim o viacutenculo e a escuta quando bem utilizados possibilitam a estabilizaccedilatildeo do
quadro de crise sem que haja necessidade de se utilizar tecnologias duras como a internaccedilatildeo
ou (leves-duras) como a medicaccedilatildeo Entrar em contato com a crise entendendo o contexto em
que ela ocorre e permitindo que o sofrimento do sujeito se expresse eacute o ponto de partida para
que algum acolhimento possa se dar
Acolher a crise poder escutar que crise eacute essa crise psiquiaacutetrica crise do sujeito
poder escutar o sujeito e aproveitar a crise como sendo a forma que ele tem de se
manifestar ele conseguiu colocar no sintoma aquele sofrimento todo que ele tava
entatildeo aproveitar fazer uma escuta e acolher aquilo antes de vocecirc calar com a
medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431)
A pesquisa de Willrich et al (2013) com profissionais de um CAPS II em Alegrete (RS)
tambeacutem aponta a importacircncia do viacutenculo e da construccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de reciprocidade com
o usuaacuterio como estrateacutegias fundamentais no acolhimento ao momento de crise como indicam
as falas dos trabalhadores participantes desse estudo
Acho que a gente tem que ter esse cuidado quando a pessoa estaacute em crise ter sempre
algueacutem que possa estar intensivamente mais perto (A4) (ibidem659)
A gente vai para desarmar a gente natildeo vai se o cara estaacute irritado violento eu natildeo
vou laacute para provocar a violecircncia nele Pelo contraacuterio eu quero que ele se apoacuteie em
mim para ver se ele consegue desarmar a tal da violecircncia que estaacute na cabeccedila dele Eacute
assim que eu procedo nesses assuntos () aiacute ele vem e ndash Ah disco voador que natildeo
sei o quecirc Eu natildeo vou dizer que natildeo existe disco voador Eu entro na loucura faccedilo
um flerte com a loucura dele para tentar construir um pouco de sauacutede ir construindo
Num primeiro momento natildeo tem como ir contra () Tem coisas que tu natildeo vai
conseguir manejar tem que ter estar junto com outros Aiacute tem que segurar tem que
sentar tem que acalmar (A6) (ibidem 659 grifo do autor)
75
A possibilidade de sustentar estar junto com o usuaacuterio tomando suas anguacutestias como
reais ainda que resultem de uma experiecircncia alucinatoacuteria ou delirante possibilita a construccedilatildeo
de uma relaccedilatildeo de confianccedila entre o profissional e o usuaacuterio A partir desta relaccedilatildeo o serviccedilo
comeccedila a se constituir enquanto um espaccedilo de apoio como uma referecircncia concreta para o
usuaacuterio de onde buscar ajuda nos momentos de crise
A tomada de responsabilidade desse CAPS em relaccedilatildeo agrave crise se transmite tambeacutem na
clareza de que o suporte nesses momentos precisa ser imediato conforme vemos a seguir
A gente sempre procura eacute pedir para as colegas laacute da frente que quando elas atendem
o telefone eacute para perguntar se eacute urgecircncia ou natildeo Se eacute um caso que um paciente estaacute
agredindo o familiar ou coisa a gente tem que largar tudo que estaacute fazendo para ir
atender (A2)( WILLRICH ET AL 2013 659)
Enquanto na pesquisa de Zeferino et al (2016) mencionada anteriormente a primeira
conduta ao atender uma situaccedilatildeo de crise por telefone era orientar a famiacutelia a chamar o SAMU
vecirc-se que neste CAPS a equipe entende as situaccedilotildees de crise como uma missatildeo desse serviccedilo
e por isso como uma prioridade na agenda Essa postura de ldquolargar tudo o que se estaacute fazendo
para ir atenderrdquo indica um compromisso eacutetico muito forte com o cuidado no territoacuterio e com a
desinstitucionalizaccedilatildeo Isso natildeo significa que a equipe natildeo possa avaliar que eacute necessaacuterio
internar mas antes ela busca apropriar do caso e oferecer suporte
A direccedilatildeo da internaccedilatildeo como o uacuteltimo recurso a ser acionado no cuidado conversa
diretamente com a importacircncia de praacuteticas de prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise e de seu
agravamento Nessa linha de pensamento podemos destacar a fala do profissional a seguir
A estrateacutegia que eu sempre penso e que eu sempre falo para o grupo eacute a estrateacutegia da
prevenccedilatildeo Se eu sei que um usuaacuterio estaacute entrando em crise e eu sei porque ele estaacute
todo o dia aqui com a gente desde laacute da recepccedilatildeo ateacute aqui Se eu sei que um usuaacuterio
estaacute com um problema mais seacuterio eu tenho que antecipar isso () se ele comeccedila a ter
problemas a gente tem que intervir () Entatildeo a gente tem que estar sempre de olho
para prevenir o surto () A visatildeo que a gente procura ter e discutir nas reuniotildees de
equipe eacute assim vamos prevenir () Entatildeo eu acho que a prevenccedilatildeo se chegou mal
aqui atende logo Se precisar levar para o pronto-socorro leva porque a gente natildeo
tem psiquiatra 24 horas oito horas aqui Entatildeo tem certas coisas que a gente natildeo pode
nem querer fazer Vai estar chamando o psiquiatra entatildeo leva para o pronto-socorro
que estaacute ali o carro estaacute aqui Se natildeo estiver vem a ambulacircncia de laacute Se toma uma
atitude para evitar (A3) (WILLRICH ET AL 2013 660 grifo nosso)
Gostariacuteamos de acrescentar que embora seja importante prestar o cuidado de forma
imediata nos momentos de crise evitando que a situaccedilatildeo se agrave devemos estar atentos para
que a direccedilatildeo de prevenir natildeo se transforme em uma caccedila agraves bruxas aos sintomas O objetivo
final natildeo pode ser medicar conter e internar para ldquoprevenirrdquo A direccedilatildeo de cuidado precisa
continuar sendo a autonomia do sujeito e a produccedilatildeo de sua sauacutede
76
Desse modo trabalhar na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise significa primeiramente
trabalhar em rede Natildeo se espera que um serviccedilo sozinho seja capaz de prevenir uma crise mas
o serviccedilo reconhecendo seus limites pode identificar e lanccedilar matildeo de outros recursos do
territoacuterio para compor uma rede de cuidados que verdadeiramente ampare o sujeito Logo saber
que o serviccedilo ldquonatildeo dispotildee de psiquiatra 24hrsrdquo e que natildeo funciona aos finais de semanas e no
periacuteodo noturno satildeo pontos que exigem dos profissionais a responsabilizaccedilatildeo do cuidado
atraveacutes da construccedilatildeo de uma articulaccedilatildeo em rede
O pronto-acolhimento indicado na fala ldquose chegou mal aqui atende logordquo a articulaccedilatildeo
em rede acompanhando o paciente em outros serviccedilos como o pronto-socorro se necessaacuterio a
revisatildeo do PTS (Projeto Terapecircutico Singular) a realizaccedilatildeo de visitas domiciliares e a
disponibilidade de cuidar da crise nos espaccedilos onde ela surge satildeo elementos que aparecem nos
artigos estudados como fundamentais no acolhimento integral agraves situaccedilotildees de crise
Outro ponto mencionado eacute o trabalho em equipe especialmente quando a situaccedilatildeo eacute
grave e pode ocasionar riscos para o profissional ou para terceiros A maioria dos profissionais
indicou ser importante natildeo estar sozinho na abordagem ao paciente em crise
Quando eacute muito assim arriscado eu natildeo vou sozinha Porque olha os casos assim
que eu natildeo estou conseguindo fazer grupo que estaacute muito nervoso que ele estaacute vendo
alguem em mim enfim eu procuro compartilhar isso com algum dos colegas Porque
dai se precisar manejar a gente maneja de dois e melhor que manejar de um [A6]
Eu acho que eacute soacute com cautela Nunca ir sozinha quando vecirc que haacute um risco de perigo
sempre levar mais algueacutem [A23]
Porque aqui a gente tem muita [] todos ajudam Entatildeo quando um estaacute um usuaacuterio
estaacute em surto geralmente todo mundo vem ajudar (WILLRICH J Q ET AL 201156-
57 grifos nossos)
Conforme ressaltam os autores ldquoessas accedilotildees contribuem para a construccedilatildeo de um olhar
que respeita a individualidade e valoriza a subjetividade rdquo (WILLRICH ET AL 2013 662)
Assim acolher eacute mais do que ldquoabrir as portas do serviccedilo para a permanecircnciardquo eacute construir uma
relaccedilatildeo de confianccedila com o usuaacuterio tecer uma rede que o ampare no territoacuterio trabalhar de
forma multidisciplinar e acolher o sofrimento do outro como vaacutelido entendendo-o como parte
da sua experiecircncia e do seu contexto de vida
43 ORGANIZACcedilAtildeO DA REDE DE CUIDADOS
A luta pela superaccedilatildeo do aparato manicomial disparada pela Reforma Psiquiaacutetrica
implica nos serviccedilos da Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial (RAPS) a transformaccedilatildeo efetiva da
assistecircncia agraves pessoas em situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico Acreditamos nesse sentido ser
fundamental a possibilidade de construccedilatildeo de uma rede coesa e bem articulada que possa
77
efetivamente substituir o hospital psiquiaacutetrico dispensando a necessidade de centralizaccedilatildeo do
cuidado em um soacute serviccedilo evitando os efeitos negativos jaacute apontados na literatura que uma
instituiccedilatildeo total6 acarreta na vida dos indiviacuteduos agrave ela submetidos
Pensando na organizaccedilatildeo da rede algumas questotildees que pretendemos investigar nesse
capiacutetulo satildeo qual eacute o grau de acessibilidade dos serviccedilos aos sujeitos em crise Quais satildeo suas
maiores barreiras de acesso O que favorece e o que desfavorece a continuidade da linha de
cuidado Como os serviccedilos enxergam seu papel na rede Como se daacute a integraccedilatildeo entre os
serviccedilos no acolhimento aos casos de crise Como eacute a integraccedilatildeo dos serviccedilos com a rede
intersetorial e com os dispositivos do territoacuterio
Vista dessa forma a atenccedilatildeo agrave crise representa um ponto de amarraccedilatildeo de diversas
estrateacutegias propostas pela PNSM sendo um importante analisador das possibilidades de
conexotildees da rede suas articulaccedilotildees com os recursos assistenciais e com os recursos do
territoacuterio sua acessibilidade e seu grau de permeabilidade diante das reais necessidades de
sauacutede das pessoas Considerando que a Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo em construccedilatildeo
cabe discutir quais satildeo os desafios que os serviccedilos encontram para acolher a crise no territoacuterio
uma vez que cada vez mais o hospital tem se tornando um ponto de ldquoescoamentordquo dos fracassos
da rede
Pensando nos aspectos que podem figurar como barreiras de acesso aos usuaacuterios no
SUS uma primeira questatildeo que surge eacute a demora para conseguir iniciar um tratamento Com
base na literatura estudada vaacuterias pesquisas como as dos autores Bonfada et al (2013) Conte
et al (2015) e Pereira Saacute e Miranda L (2014) apontam para a existecircncia de grandes filas de
espera para iniciar o tratamento mesmo nos casos de crise
Conte et al (2015) comentam que as imensas filas de espera satildeo o resultado de um
enorme deacuteficit de profissionais Aleacutem do quantitativo dos profissionais ser insuficiente para
suprir a rede natildeo haacute contrataccedilatildeo temporaacuteria para os casos de licenccedila feacuterias ou afastamento por
motivo de doenccedila Uma das profissionais entrevistada nesse estudo retrata esse quadro
comentando o impacto disso no cuidado ldquovia de regra a gente telefona explica sensibiliza o
colega e ouve olha me desculpa soacute que eu estou com uma lista de espera imensa eu sou soacute
uma A colega entrou de feacuterias e a outra em licenccedila maternidaderdquo (CONTE ET AL 2015
1746)
6 Ver Goffman (2001)
78
Na praacutetica a demora no acesso aos serviccedilos faz com que os usuaacuterios soacute consigam ser
acolhidos quando a situaccedilatildeo jaacute eacute muito grave Bonfada el al (2013) expressam esse aspecto
atraveacutes da fala de um trabalhador do serviccedilo de emergecircncia do SAMU Segundo esse
entrevistado ldquo a populaccedilatildeo natildeo tem acesso aos serviccedilos de psiquiatria Entatildeo os doentes entram
em crise pra poder ter o acesso ao serviccedilo de psiquiatria (E1)rdquo (BONFADA ET AL 2013 230)
Mesmo nos casos de crise os serviccedilos ainda encontram dificuldades para oferecer um pronto-
atendimento Pereira Saacute e Miranda L (2014) pontuam que todos os usuaacuterios participantes de
sua pesquisa ldquoesperaram ao menos uma semana para serem consultados nos serviccedilos mesmo
nas situaccedilotildees de criserdquo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2140)
Conte et al (2015) discutem que a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se
estabelecer uma classificaccedilatildeo de risco na lista de espera contribui ainda mais para dificuldade
de acesso e para a sensaccedilatildeo de impotecircncia e sofrimento dos profissionais diante da demanda
natildeo atendida
Inadequaccedilotildees da estrutura fiacutesica dos serviccedilos tambeacutem satildeo apontadas como barreiras de
acesso Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014)
Natildeo haacute adaptaccedilatildeo do preacutedio para uso de pessoas com necessidades especiais e
tampouco disponibilidade de automoacutevel (ibidem 2150)
O fato de hoje existir uma fila de espera para os primeiros atendimentos tambeacutem eacute
atribuiacutedo a falta de espaccedilo fiacutesico Haacute apenas duas salas pequenas o que prejudica a
realizaccedilatildeo de atividades grupais (ibidem 2150)
Em pesquisa sobre a atuaccedilatildeo do SAMU na cidade de Natal Brito Bonfada e Guimaratildees
(2015) mencionam a falta de ambulacircncias como um dos principais fatores que resultam em
longas filas de espera para os chamados natildeo urgentes e demora mesmo nos chamados urgentes
Percebeu-se que o nuacutemero de ambulacircncias disponiacuteveis ao atendimento da populaccedilatildeo
municipal eacute insuficiente em vaacuterias situaccedilotildees Os chamados superam a capacidade
operacional de atendimento do Samu-Natal gerando longa fila de espera e demora no
atendimento dos chamados natildeo classificados em coacutedigo vermelho ou seja
prioritaacuterios(ibidem 1297)
A superlotaccedilatildeo dos serviccedilos a inadequaccedilatildeo e insuficiecircncia dos equipamentos os deacuteficits
de equipe e as inadequaccedilotildees estruturais tambeacutem satildeo apontados como aspectos que fragilizam
os serviccedilos impossibilitam as accedilotildees no territoacuterio e a integralidade do cuidado especialmente
nos casos mais sensiacuteveis que requerem mais recursos
Algumas dificuldades praacuteticas parecem contribuir para as deficiecircncias percebidas nos
serviccedilos de sauacutede mental entre elas o nuacutemero insuficiente de equipamentos que leva
os existentes a se sobrecarregarem com uma aacuterea de abrangecircncia superior agravequela com
a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido nuacutemero e a escassa
variedade de profissionais que limitam as possibilidades de articulaccedilatildeo de accedilotildees
muacuteltiplas e criativas Em decorrecircncia dessas deficiecircncias a que muitas vezes se soma
79
a total inadequaccedilatildeo da estrutura fiacutesica os serviccedilos ficam fragilizados e assim
impossibilitados de promover accedilotildees territoriais e integrais de cuidado como
acolhimento agrave crise envolvimento da famiacutelia no tratamento e estrateacutegias de
reabilitaccedilatildeo psicossocial (MACHADO SANTOS 2013 710)
No que se refere agrave capacidade dos serviccedilos favorecerem a continuidade do cuidado
prestado no estudo de Conte al (2015) com idosos que tentaram o suiciacutedio na rede de Porto
Alegre (RS) observamos que accedilotildees fragmentadas diagnoacutesticos apressados e ofertas de cuidado
riacutegidas e padronizadas produziram o abandono do tratamento em alguns casos e a fragilizaccedilatildeo
do viacutenculo com o serviccedilo em outros Importante dizer que todos os idosos procuraram ajuda e
tinham os serviccedilos territoriais como referecircncias para sua sauacutede
Em uma das histoacuterias a paciente com diagnoacutestico de depressatildeo foi encaminhada para
um grupo terapecircutico no ambulatoacuterio poreacutem o aumento do nuacutemero dos participantes no grupo
comeccedilou a lhe provocar desconforto ldquoNo iniacutecio era bom mas depois vinham muitos
[participantes] cada um levava muitos problemas Agraves vezes tu ia[s] laacute numa boa e saias ruimrdquo
(CONTE ET AL 20151743 grifo do autor)
Por conta disso e das frequentes trocas de profissionais de referecircncia essa senhora
abandonou o tratamento iniciando a partir daiacute um circuito de sucessivas internaccedilotildees e uma
tentativa de suiciacutedio No momento em que a paciente deixou de frequentar o grupo o
ambulatoacuterio natildeo se ocupou de fazer-lhe uma visita domiciliar ou tentar contato o que poderia
ter evitado o abandono do tratamento e a posterior tentativa de suiciacutedio Por conta proacutepria a
paciente buscou ajuda e se inseriu na associaccedilatildeo do bairro que promovia atividades de lazer
(churrascos bailes e jogos) conseguindo por meio desse recurso superar a falta de vontade de
viver
Embora essa histoacuteria tenha um desfecho positivo chama atenccedilatildeo a falta de
responsabilidade do serviccedilo sobre a linha de cuidado dessa paciente Diante do fato dessa
senhora natildeo se ldquoencaixarrdquo mais no grupo o ambulatoacuterio natildeo pode ofertar-lhe um outro espaccedilo
de suporte deixando-a desassistida Isso mostra a rigidez e padronizaccedilatildeo dos espaccedilos de
cuidado desse serviccedilo que colocou sobre uma paciente fragilizada a responsabilidade integral
do seu cuidado
Em outro caso o desfecho natildeo foi tatildeo positivo Um senhor com adiccedilatildeo em jogos aacutelcool
e cigarro apoacutes vaacuterias tentativas de tratamento em serviccedilos diferentes recebia ldquoaltardquo por natildeo
aceitar ficar abstinente Segundo o mesmo ldquoSe eu tiver que parar como trago eu natildeo vou me
tratar Antidepressivo e bebida natildeo combinamrdquo (CONTE et al 2015 1744)
80
Em outra ocasiatildeo surgiu a possibilidade de ingressar em um CAPSad para realizar
tratamento do alcoolismo () Poreacutem mais uma vez ele natildeo parou de beber o que
impediu sua adesatildeo ao tratamento Novamente teve alta do tratamento porque natildeo se
enquadrava nos criteacuterios exigidos pelo serviccedilo (CONTE et al 2015 1744)
Ainda que a poliacutetica atual no tratamento de casos de drogadiccedilatildeo seja a Poliacutetica de
Reduccedilatildeo de Danos os serviccedilos em questatildeo parecem desconhecer ou resistir agrave essa alternativa
A rigidez das ofertas de cuidado impostas agrave esse senhor terminaram por deixaacute-lo em completo
abandono impossibilitando qualquer modalidade de tratamento
A Reduccedilatildeo de Danos uma vez que natildeo impotildee a abstinecircncia como condiccedilatildeo do
tratamento poderia ser um caminho na direccedilatildeo de cuidar do abuso do uso do aacutelcool e da melhora
da qualidade de vida desse paciente No entanto a inflexibilidade dos serviccedilos em repensar suas
ofertas de cuidado de modo a considerar as escolhas desejos limites e possibilidades de quem
procura ajuda resultaram na perda do tratamento e na posterior internaccedilatildeo desse idoso pela
famiacutelia em um asilo
O terceiro idoso dessa pesquisa ao deparar-se com adoecimento da esposa que tinha
Alzheimer e com a falta de ajuda dos familiares para lidar com essa situaccedilatildeo tomou para si o
seu cuidado o que ao longo dos anos lhe trouxe um vasto desgaste emocional Segundo os
autores ldquoO cansaccedilo emocional agravado pela descoberta de um tumor na proacutestata o levou agrave
primeira tentativa de suiciacutediordquo (CONTE et al 2015 1744) Na ocasiatildeo esse senhor foi levado
a um pronto-socorro onde foi submetido a uma lavagem estomacal
O peso dos cuidados em relaccedilatildeo agrave esposa somados agrave falta de apoio familiar e a problemas
financeiros motivaram a segunda tentativa de suiciacutedio ldquoEu comprei uma corda Por causa da
desajuda e da pobrezardquo (ibidem 1746) Felizmente o filho chegou na casa agrave tempo e
conseguiu evitar o enforcamento
Apoacutes essa tentativa esse idoso foi internado em um hospital onde recebeu o diagnoacutestico
de Transtorno de Personalidade Nota-se entretanto que a ecircnfase atribuiacuteda ao diagnoacutestico e as
orientaccedilotildees dadas aos familiares em decorrecircncia dele parecem ter contribuiacutedo mais para o
afastamento da famiacutelia do que para o sucesso do manejo cliacutenico de sua condiccedilatildeo Segundo os
pesquisadores ldquoOs filhos passaram a vecirc-lo como manipulador e mal intencionado
interpretavam as tentativas de suiciacutedio como um ato de covardia pra mobilizar culpa na famiacutelia
tornando-se mais hostis em relaccedilatildeo ao pairdquo (CONTE et al 2015 1744)
Durante a entrevista com os pesquisadores esse senhor referiu ldquosentimento de solidatildeo
e sofrimento com a falta de afeto dos filhos Todos os dias eacute muito triste Eu vejo [nora neta
81
filhos] e natildeo falo com ningueacutemrdquo (CONTE et al 2015 1744) aleacutem de sentimentos de desvalia
ldquoEstou virado num resto num lixordquo (ibidem) No momento da pesquisa mantinha viacutenculo com
o serviccedilo apenas para renovar a receita da medicaccedilatildeo
Observamos nesse caso que as accedilotildees de cuidado se restringiram a intervenccedilotildees pontuais
e fragmentadas tendo o modelo biomeacutedico de ldquoqueixa-condutardquo como referecircncia Quando a
tentativa de suiciacutedio se deu por ingestatildeo de medicaccedilatildeo a accedilatildeo da equipe foi cuidar apenas do
corpo fiacutesico realizando uma lavagem estomacal As questotildees existenciais que motivaram a
tentativa de suiciacutedio natildeo foram abordadas e nenhum encaminhamento foi feito para a
continuidade do cuidado Apoacutes a segunda tentativa de suiciacutedio novamente o foco do tratamento
segue o modelo medicalocecircntrico priorizando o diagnoacutestico nosograacutefico e a medicalizaccedilatildeo dos
sintomas ldquoOs sintomas dos idosos foram considerados uma forma de ldquochamar atenccedilatildeordquo e com
isso obter ganhos secundaacuterios banalizando assim o pedido de ajuda contido nos atos
desesperadosrdquo (CONTE et al 2015 1745)
No caso desse senhor o diagnoacutestico serviu apenas para fragilizar ainda mais sua rede
de apoio uma vez que os familiares passaram a vecirc-lo como ldquomanipulador e mal intencionadordquo
A falta de um Projeto Terapecircutico Singular que considerasse seu contexto de vida seus afetos
sua rede familiar e social contribuiu para o agravamento do sentimento de abandono e solidatildeo
favorecendo o risco de uma nova tentativa de suiciacutedio O uacutenico tratamento ofertado pelo serviccedilo
foi o medicamentoso e ficou niacutetida sua insuficiecircncia visto que ao ser entrevistado esse idoso
referiu sentir-se sozinho ter um cotidiano triste e esvaziado
A dificuldade de se pensar espaccedilos de cuidado baseados em tecnologias leves como o
acolhimento e o viacutenculo as oficinas padronizadas e sem perenidade agrave subjetividade do outro
aleacutem de accedilotildees emergenciais e isoladas no momento de crise satildeo apontados pelos autores como
fatores que contribuem para o abandono do tratamento quebra ou fragilizaccedilatildeo da linha de
cuidado
Estudos anteriores (Rosa 2011 Merhy 2007) evidenciaram que ao se depararem
com essas dificuldades inerentes agrave condiccedilatildeo crocircnica os profissionais do serviccedilo
podem ldquodesistirrdquo ou se desobrigar do trato do paciente ldquodifiacutecilrdquo supostamente
refrataacuterio ou ldquonatildeo responsivordquo agrave terapecircutica Em alguns momentos parece haver um
esforccedilo no sentido de ajustar o paciente ao serviccedilo e natildeo o contraacuterio como seria
desejaacutevel (Rosa2011) (MACHADO SANTOS 2013704)
Vecirc-se com isso que crise ainda eacute ldquoa crise do pacienterdquo e raramente os serviccedilos
conseguem eles proacuteprios se colocarem em crise e repensar suas ofertas e modos de cuidado A
interrupccedilatildeo e o abandono do tratamento satildeo vistos como uma dificuldade de ldquoadesatildeordquo do
82
usuaacuterio que nada tem a ver com a forma como os serviccedilos estatildeo pensando e organizando o seu
cuidado Pensando sobre a correspondecircncia entre as necessidades de sauacutede das pessoas e as
ofertas de cuidado os serviccedilos parecem natildeo perceberem o abandono ou interrupccedilatildeo do
tratamento como um analisador de suas praacuteticas Diante do natildeo enquadramento do usuaacuterio ao
modelo de intervenccedilatildeo oferecido os serviccedilos se comportam como se pouco tivessem a oferecer
O estudo de Machado e Santos (2013) aponta para resultados que confirmam esse
problema No CAPS estudado as oficinas e atividades satildeo vistas como parte de um certo
funcionamento burocraacutetico institucional as falas dos pacientes revelam a falta de sentido dessa
rotina onde as atividades parecem existir meramente para legitimar a instituiccedilatildeo preenchendo
um tempo
Vou todo dia mais tem pouca atividade Fico o dia inteiro fazendo nada deitada
Num gosto disso queria participaacute de mais atividade mais num tem vagardquo (E10)
(MACHADO SANTOS 2013 707)
Laacute no serviccedilo que eu trato eles num trabalham eles num ensinam trabalhaacute Eles potildee
laacute os paciente pra ficaacute comendo e bebendo dormindo e o dinheiro deles tudo mecircs
vem na conta O salaacuterio dos paciente vem na conta deles que eacute o benefiacutecio o dinheiro
dos funcionaacuterio vem na conta deles eacute igual aquele ditado que fala ldquoeles finge que
trabalha e eles fingem que satildeo tratadosrdquo Eacute eles tratam que nem robozinho eu pego
o cartatildeo o doutor prescreve a receita pego meu remeacutedio ndash meu tratamento eacute esse
(E8) (ibidem 707)
Outros autores tambeacutem falam de um funcionamento burocratizado do serviccedilo No
estudo de Pereira Saacute e Miranda (2014) vemos que os adolescentes do CAPSi questionam o
sentido de algumas atividades mas ainda assim essas questotildees parecem natildeo surtir efeitos sobre
o modo como a equipe pensa e organiza o cuidado
Importante notar o fato de os adolescentes terem de se adaptar aos grupos sem que
eles sejam pensados mediante a necessidade de cada um deles e das mudanccedilas vividas
ao longo do tempo Diante da insatisfaccedilatildeo dos adolescentes com as atividades os
profissionais natildeo satildeo levados a revecirc-las continuam enfatizando a necessidade de que
frequentem o serviccedilo ldquoa qualquer custordquo Todos relataram a frequente necessidade de
realizar um difiacutecil ldquotrabalhordquo de convencimento para que os adolescentes aceitem
estar no serviccedilo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2151)
Destacamos ainda a fala de uma profissional do serviccedilo que afirma que ldquoO CAPSi natildeo
tem muito mais a oferecer do que um atendimento individual em grupo um suporte agrave famiacutelia
e um suporte meacutedico medicamentosordquo (profissional do serviccedilo) (ibidem 2151) Fica evidente
nesse sentido a limitaccedilatildeo do serviccedilo em repensar suas ofertas de cuidado de modo que a
ldquoadesatildeordquo natildeo seja uma conquista agrave base de uma imposiccedilatildeo mas da produccedilatildeo de um espaccedilo que
faccedila sentido para o usuaacuterio e que lhe proporcione verdadeiramente a sensaccedilatildeo de acolhimento
83
Outro ponto importante no que diz respeito agrave quebra da continuidade do tratamento eacute a
fragmentaccedilatildeo da proacutepria equipe no processo de trabalho Sobre esse aspecto Pereira Saacute e
Miranda (2014) destacam
A equipe eacute ldquodividida por diasrdquo de maneira que cada profissional trabalha dois turnos
aleacutem da reuniatildeo de equipe Cada grupo de usuaacuterios comparece ao serviccedilo apenas num
dia especiacutefico quando encontra seu teacutecnico de referecircncia e sua miniequipe Isso leva
os profissionais a realizarem um trabalho dividido em blocos o que resulta em um
CAPSi de segunda feira e outro de terccedila feira impedindo o compartilhamento de
atuaccedilotildees entre miniequies conhecimento dos usuaacuterios dos serviccedilos aleacutem de restringir
as ofertas terapecircuticas(ibidem 2149)
Cada usuaacuterio tem um teacutecnico de referecircncia e comparece no serviccedilo no dia em que seu
teacutecnico estaacute contando tambeacutem com o suporte da mini-equipe do dia que na ausecircncia do
profissional de referecircncia satildeo os profissionais com mais apropriaccedilatildeo sobre o caso O cuidado
eacute organizado entatildeo de modo que todos os profissionais de referecircncia do usuaacuterio estatildeo
concentrados em um uacutenico dia da semana o dia em que o paciente vai ao serviccedilo Esse eacute um
funcionamento muito comum nos CAPS que entretanto dificulta profundamente o
compartilhamento dos casos
Quando pensamos em uma situaccedilatildeo de crise sabemos que os pacientes natildeo iratildeo respeitar
os dias e escalas dos profissionais de referecircncia para entrar em crise Entatildeo essa divisatildeo dos
usuaacuterios em dias preacute-determinados aleacutem de limitar o Projeto Terapecircutico agraves oficinas realizadas
naqueles dias tambeacutem restringe a capacidade do serviccedilo de se constituir efetivamente enquanto
um ponto de referecircncia na crise pois os profissionais que natildeo tecircm contato com o caso
dificilmente conseguiratildeo ofertar o suporte que esses pacientes necessitam no momento da crise
Aleacutem da fragmentaccedilatildeo do processo de trabalho no interior dos serviccedilos observamos
tambeacutem uma fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e a RAPS Constatamos a partir da
literatura que na maior parte das vezes o contato entre os serviccedilos eacute feito por telefone ou por
encaminhamento escrito entregue diretamente ao usuaacuterio Fica portanto agrave cargo do usuaacuterio a
chegada agrave um outro serviccedilo de modo que a passagem de caso fica prejudicada e o usuaacuterio fica
muitas vezes desassistido no periacuteodo de transiccedilatildeo entre um serviccedilo e outro isto quando natildeo
acaba por desistir do tratamento
Nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e os hospitais observamos que embora a gravidade
envolvida seja maior o compartilhamento do cuidado parece ainda mais difiacutecil Ao discutir a
internaccedilatildeo de uma paciente do CAPSi no hospital geral Pereira Saacute e Miranda (2014) ressaltam
que embora a paciente tenha ficado dez dias internada no hospital natildeo houve comunicaccedilatildeo
84
entre os dois serviccedilos e o CAPSi foi informado da internaccedilatildeo pela proacutepria famiacutelia da paciente
via telefone
Essa dificuldade de interlocuccedilatildeo entre CAPS e hospital eacute apontada tambeacutem no estudo
de Zeferino el al (2016) Segundo os profissionais entrevistados nessa pesquisa
o usuaacuterio e a famiacutelia em crise satildeo levado a um Hospital psiquiaacutetrico e fica afastado
do CAPS por longos periacuteodos() Em alguns casos a famiacutelia jaacute interna o usuaacuterio e soacute
comunica a equipe do CAPS posteriormente [] (ZEFERINO ET AL 2016spg)
Para aleacutem dos casos em que o hospital natildeo comunica a equipe de referecircncia sobre a
internaccedilatildeo de seus usuaacuterios observamos que tambeacutem os CAPS raramente costumam
acompanhar os usuaacuterios que encaminham para o hospital de modo que quem perde eacute o paciente
pois vive a quebra do viacutenculo terapecircutico com a equipe de referecircncia e continua passando pelas
crises sozinho no hospital Sobre esse aspecto Pereira Saacute e Miranda (2014) comentam
Fazendo um balanccedilo geral dos itineraacuterios construiacutedos pode-se perceber que o CAPSi
apresenta dificuldades no planejamento e construccedilatildeo de accedilotildees conjuntas em que
compartilhe outras instacircncias a responsabilidade pelo cuidado dos adolescentes em
crise Eacute bastante raro por exemplo que os profissionais do CAPSi de fato
acompanhem os adolescentes no Hospital Geral Como justificativa para esse cenaacuterio
todos sublinham dificuldades de contato advindas de problemas com os telefones ou
ausecircncia de um carro proacuteprio o que dificultaria o transporte no caso de uma situaccedilatildeo
de maior gravidade que pudesse acontecer no CAPSi (ibidem 2152)
Embora a falta de estrutura possa de fato dificultar a integraccedilatildeo entre os serviccedilos
percebemos que deixar o hospital se ocupar da crise tem sido praacutetica recorrente nos diversos
serviccedilos da rede Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014) nos sujeitos que participaram de sua
pesquisa o hospital geral teve papel central em todos os casos
A equipe do CAPSi entende que o Hospital Geral natildeo eacute o local ideal para as
internaccedilotildees em sauacutede mental Apesar disso atribuem ao suporte medicamentoso agrave
possiacutevel contenccedilatildeo fiacutesica e aos cuidados relativos agrave sauacutede geral a justificativa para
encaminharem ao Hospital Geral os pacientes (ibidem 2150)
O apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises leves podem
ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o hospital Essa eacute
uma direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima absolutamente o
papel do CAPS frente agrave crise
Sabemos que haacute alguns limites na capacidade dos CAPS visto que nem todos satildeo do
tipo III e que alguns serviccedilos sequer tecircm a equipe completa e o aparato estrutural miacutenimo para
funcionar Poreacutem chama atenccedilatildeo a naturalizaccedilatildeo da centralidade da rede em torno do hospital
Um exemplo claro disso aparece na fala de uma profissional desse estudo que orienta a famiacutelia
a levar a paciente ao hospital ldquofrente agrave qualquer intercorrecircnciardquo (PEREIRASAacuteMIRANDA
85
2014 2154) como se o CAPSi natildeo tivesse nenhuma responsabilidade sobre a crise de seus
pacientes
Encaminhamentos precipitados e irrefletidos ao hospital ainda constituem uma praacutetica
muito natural na rede o que coloca o CAPS na posiccedilatildeo de serviccedilo complementar e natildeo
substitutivo ao hospital Vemos que mesmo os profissionais do CAPS ainda contam com o
hospital como se a internaccedilatildeo pudesse proporcionar uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
No estudo de Zeferino el al (2016) um dos profissionais entrevistados ressalta ldquoO
usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao hospital geral para a estabilizaccedilatildeo retornando
ao CAPS assim que estiver compensado para a continuidade do seu tratamento (E1 A92 -
CAPS II)rdquo (spaacuteg)
A centralidade do fluxo das situaccedilotildees de crise para o hospital eacute praacutetica comum tambeacutem
no trabalho do SAMU Embora o SAMU tenha se constituiacutedo enquanto um recurso da rede de
assistecircncia agrave urgecircnciaemergecircncia apoacutes a Reforma Psiquiaacutetrica vemos que o modo de trabalhar
desse serviccedilo ainda eacute muito orientado pela loacutegica biomeacutedica Segundo Brito Bonfada e
Guimaratildees (2015) em pesquisa com a rede de SAMU da cidade de Natal
A partir das fichas de atendimento disponiacuteveis no sistema eletrocircnico de ocorrecircncias
do Samu-Natal observa-se que entre os meses de janeiro a marccedilo de 2010 ocorreram
314 chamadas para urgecircncias em sauacutede mental das quais 74 foram finalizadas
com o transporte para o Hospital Colocircnia Joatildeo Machado hospital psiquiaacutetrico do
municiacutepio de Natal-RN (ibidem 1301 grifo nosso )
Esse nuacutemero eacute confirmado tambeacutem pelas falas dos profissionais
Surto droga alcoolismo tudo leva para laacute a gente trabalha com o Joatildeo Machado
(Entrevistado 24) (ibidem 1302 grifo nosso)
Noacutes natildeo temos muito contato com o CAPS (Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial) A gente pega o
paciente ou na residecircncia ou em via puacuteblica e transfere para o Joatildeo Machado (Entrevistado 24)
(ibidem 1303)
Na realidade as nossas urgecircncias psiquiaacutetricas satildeo muito mais transporte Vocecirc vai
laacute conteacutem o doente e o transporta para hospital psiquiaacutetrico (Entrevistado 1) (ibidem
1302)
Percebemos que essa direcionalidade ao hospital sem levar em conta as possibilidades
assistenciais oferecidas pela rede tem relaccedilatildeo com a maneira como os serviccedilos entendem a
Reforma Psiquiaacutetrica e consequentemente como enxergam seu papel na rede Nesse ponto no
que compete ao SAMU fica clara a desorientaccedilatildeo desse serviccedilo no seu papel diante das crises
Na verdade eu sempre fui contra o Samu atender esse tipo de chamado Eu acho que
deveria existir um setor no hospital psiquiaacutetrico aqui de Natal responsaacutevel por isso
(Entrevistado 2) (BONFADA ET AL 2013 1307)
O Samu natildeo deveria fazer esse serviccedilo acho que deveria ser a poliacutecia militar
(Entrevistado13) (ibidem 1307)
86
Muitas vezes o doente psiquiaacutetrico corre muito mais risco porque a nossa rotina eacute
deixar em segundo plano a urgecircncia psiquiaacutetrica (Entrevistado 1) (ibidem 1308)
No que diz respeito agrave concepccedilatildeo que os profissionais possuem acerca da Reforma
Psiquiaacutetrica os entrevistados parecem acreditar que trata-se de uma Poliacutetica Puacuteblica restrita ao
campo juriacutedico e burocraacutetico poreacutem sem muitas implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos
A Poliacutetica Nacional de sauacutede mental eacute perfeita no papel na praacutetica natildeo estaacute
funcionando e para funcionar vai ser muito difiacutecil (E10)
Para ser muito franca ateacute agora na praacutetica natildeo vi essa reforma acontecer Natildeo acredito
natildeo nessa reforma (E7)
Na maioria das vezes isso natildeo funciona esse negoacutecio de CAPS e tudo mais porque
o proacuteprio paciente natildeo vai aiacute a famiacutelia tambeacutem natildeo tem como levaacute-lo a forccedila Entatildeo
isso aiacute natildeo taacute dando muito resultado natildeo Talvez fosse o caso de fazer o proacuteprio CAPS
mesmo como uns hospitais psiquiaacutetricos (E3)
Esse paciente quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial acaba
negligenciando o proacuteprio tratamento Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em
um hospital internado seria muito mais eficaz pois eacute um tratamento continuado
(E20) (inserir ref ndash as falas dos entrevistados aparecem assim todas juntas Se for
basta a ref ao final ndash autor ano paacutegina) ( BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2013230-231)
A falta de conhecimento sobre o papel dos serviccedilos substitutivos aleacutem das criacuteticas agrave
Reforma Psiquiaacutetrica e as sugestotildees de internaccedilatildeo dos pacientes satildeo fortes indiacutecios de que o
modelo hospitalocecircntrico concebido pela Psiquiatria Claacutessica ainda permanece vivo no ideaacuterio
desses profissionais como referecircncia de qualidade da assistecircncia em sauacutede mental A ideia de
que a RPB eacute perfeita no papel mas que na praacutetica natildeo funciona revela um entendimento
bastante ingecircnuo de que as poliacuteticas por si soacute teriam o efeito de mudar a assistecircncia quando os
profissionais continuam agindo orientados pela loacutegica manicomial
Uma ferramenta que tem sido apontada como capaz de construir e fortalecer a
integralidade da rede e a coordenaccedilatildeo do cuidado eacute o apoio matricial O apoio matricial pode
se dar via CAPS ou via NASF contribuindo para ampliar a resolutividade da Atenccedilatildeo Baacutesica
favorecendo a prevenccedilatildeo dos casos de crise e diluindo a centralidade do CAPS nos casos de
sauacutede mental
Considerando que um dos fortes obstaacuteculos dos CAPS eacute o centramento em si mesmos
fenocircmeno identificado na IV Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental e denominado
ldquoencapsulamentordquo
Ao articular rede o apoio matricial se inclina contra o ldquoencapsulamentordquo e esse tipo
de substituiccedilatildeo total produzindo um efeito reorganizador das demandas de sauacutede
mental na rede com melhor distribuiccedilatildeo e adequaccedilatildeo dos usuaacuterios dentro dos pontos
de assistecircncia em sintonia com suas demandas evitando que todas elas sejam
dirigidas ao CAPS superlotando-o Possibilitando melhor compreensatildeo e
diferenciaccedilatildeo das situaccedilotildees que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem
ser acolhidas eou acompanhadas pela ESF como refletem Bezerra e Dimenstein o
87
matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistecircncia em sauacutede mental
(LIMA DIMENSTEIN 2016 629)
Segundo Lima e Dimenstein (2016) a ESF tem meios de ldquo[] interferir em situaccedilotildees
que transcendem a especificidade do setor sauacutede e tecircm efeitos determinantes sobre as condiccedilotildees
de vida e sauacutede dos indiviacuteduos famiacutelias-comunidaderdquo (ibidem 65) Considerando sua
proximidade com o territoacuterio a ESF eacute um importante recurso na identificaccedilatildeo dos casos de crise
que natildeo chegam aos serviccedilos podendo oferecer atraveacutes do apoio matricial em sauacutede mental o
suporte e o encaminhamento para serviccedilos mais complexos quando necessaacuterio
Outra ferramenta importante na construccedilatildeo da integralidade das redes sobretudo das
redes que vatildeo para aleacutem dos serviccedilos de sauacutede eacute a praacutetica de Acompanhamento Terapecircutico
O AT tem a missatildeo de resgatar a cidadania e o direito de usufruir da vida em casos de pessoas
que foram sistematicamente excluiacutedas da sociedade devido ao seu processo de adoecimento
Sua atuaccedilatildeo visa promover a autonomia do sujeito ampliando sua circulaccedilatildeo pelo territoacuterio e
tecendo redes de cuidado que contam tambeacutem com dispositivos de cultura e lazer
Segundo Fiorati e Saeki (2008) o AT
por ser uma praacutetica cliacutenica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaccedilos
institucionais e tradicionais de tratamento e ser realizada sobretudo nos espaccedilos
puacuteblicos no ambiente domiciliar e social do paciente representaria um caminho
potencial de inserccedilatildeo em redes sociais e movimento de inclusatildeo social (ibidem 764)
Na pesquisa citada acima o AT atuou como um intercessor entre o espaccedilo de cuidado
proporcionado pelos serviccedilos e os dispositivos terapecircuticos do territoacuterio O cuidado se deu nos
serviccedilos mas tambeacutem na vida na rua atraveacutes de cursos de jardinagem desenho capacitaccedilatildeo
profissional parceria com associaccedilotildees culturais escolas e outros (FIORATI SAEKI 2008)
A produccedilatildeo de sauacutede atraveacutes dos dispositivos do territoacuterio tambeacutem aparece na pesquisa
de Conte et al (2015) no caso da senhora que buscou ajuda na associaccedilatildeo de seu bairro
Entretanto foram apontadas poucas iniciativas em nosso estudo que apostassem nos recursos
fora do setor sauacutede como possibilidade de estabilizaccedilatildeo de quadros graves Fica clara nesse
sentido a baixa integraccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e a rede intersetorial territorial sendo
este um dos principais desafios na construccedilatildeo da integralidade do cuidado
Em suma podemos observar que ainda haacute um longo caminho na construccedilatildeo de redes
que possam oferecer de fato algum amparo aos sujeitos em crise A falta de recursos certamente
figura como um dos fatores que impotildee barreiras de acesso ao cuidado motivando muitas vezes
que os profissionais usem seus proacuteprios recursos para garantir a efetividade do tratamento (usar
88
o carro proacuteprio para fazer VD deslocar-se entre um serviccedilo e outro usando recursos proacuteprios
etc)
Somando-se aos aspectos mencionados embora os serviccedilos de sauacutede mental se
proponham a realizar um cuidado extremamente complexo e diversificado funcionam em sua
maioria apenas nos horaacuterios comerciais (de segunda a sexta de 8 agraves 17h) Desse modo ldquodiante
dessa configuraccedilatildeo restrita torna-se pouco provaacutevel que de fato sejam esgotadas todas as
possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internaccedilatildeo
integral tal como prevecirc a Lei da Reforma Psiquiaacutetrica Lei nordm 10216 2001rdquo (Brasil 2004)
Vemos que as possibilidades de superaccedilatildeo desse cenaacuterio ainda partem muitas vezes de
um esforccedilo individual dos trabalhadores em produzir cuidado Diante da falta de CAPS III por
exemplo alguns CAPS II tem se organizado para funcionar em horaacuterio estendido realizando
uma escala no serviccedilo e evitando assim encaminhar o usuaacuterio para internaccedilatildeo Outra alternativa
apontada eacute o acolhimento diurno no CAPS II e o noturno no Hospital Geral eou Hospital
Psiquiaacutetrico evitando a permanecircncia integral na internaccedilatildeo (MARTINI CORACINE 2016)
Entretanto esse tipo de arranjo ainda eacute incipiente e depende em boa medida da ldquoboa vontaderdquo
dos trabalhadores visto que natildeo eacute uma poliacutetica institucionalizada de cuidado e natildeo haacute portanto
recursos previstos para esses deslocamentos
Tendo em vista essa conjuntura eacute possiacutevel perceber que a constituiccedilatildeo de uma rede de
serviccedilos integral e resolutiva nos casos de crise ainda eacute muito fraacutegil A fragmentaccedilatildeo na
comunicaccedilatildeo entre os serviccedilos a dificuldade do compartilhamento dos casos oficinas e grupos
riacutegidos e burocratizados compreensotildees deturpadas e reducionistas acerca do movimento da
Reforma Psiquiaacutetrica baixa articulaccedilatildeo intersetorial e territorial aleacutem de limitaccedilotildees estruturais
dos serviccedilos (ausecircncia de carro institucional baixo nuacutemero de CAPS III deacuteficits de equipe etc)
tem contribuiacutedo para que o hospital permaneccedila vivo e seja o ponto de escoamento de todas
essas dificuldades
Podemos citar como um exemplo dessa problemaacutetica os pacientes ldquorevolving doorrdquo7
nos hospitais psiquiaacutetricos Muitos deles fazem tratamento em algum dispositivo da rede
substitutiva no entanto continuam retornando ao hospital ainda que pontualmente com certa
frequecircncia o que remete as fragilidades da rede jaacute mencionadas anteriormente
7 O termo vem da expressatildeo inglesa ldquoporta-giratoacuteriardquo e eacute usado na sauacutede mental para se referir aos pacientes que
internam de forma recorrente poreacutem em internaccedilotildees curtas
89
Vale lembrar que o hospital se constituiu historicamente como uma soluccedilatildeo para o
problema da loucura na sociedade e mesmo havendo um esforccedilo em deslocar certas categorias
e conceitos no sentido de incluir a loucura no social a institucionalizaccedilatildeo ainda eacute
frequentemente a primeira resposta agraves situaccedilotildees de crise especialmente quando a rede natildeo
encontra meios para responder suas demandas no modelo substitutivo
90
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como foi dito na introduccedilatildeo nosso objetivo com esse estudo foi analisar as fragilidades
e potencialidades na organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto
do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica Consideramos que uma rede forte e bem articulada atua
como um fator de mudanccedila dos itineraacuterios dos usuaacuterios dos hospitais psiquiaacutetricos para os
serviccedilos territoriais No entanto o inverso tambeacutem acontece as fragilidades e insuficiecircncias
da rede tambeacutem contribuem para hospitalizaccedilotildees desnecessaacuterias
Sendo assim olhar para a forma como a crise tem sido acolhida na RAPS pode dar
indiacutecios importantes de como estamos nos posicionando no processo de construccedilatildeo da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira uma vez que costuma ser na falta de uma resposta efetiva da rede
substitutiva nos casos de crise que se recorre a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica
Atraveacutes de nosso referencial teoacuterico analisando o desenvolvimento da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira no plano assistencial percebemos avanccedilos importantes no que se
destaca a reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do
nuacutemero de CAPS e a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na
atenccedilatildeo comunitaacuteria e territorial Entretanto a insuficiecircncia de CAPS III e a permanecircncia de
grandes parques manicomiais no paiacutes indicam que ainda satildeo necessaacuterios grandes esforccedilos para
se superar o modelo manicomial
Pensando sob a luz das contribuiccedilotildees de Basaglia (1985) entendemos que a
permanecircncia dos manicocircmios natildeo se deve apenas a um descompasso entre o avanccedilo da rede
substitutiva e o fechamento dos hospitais psiquiaacutetricos mas tambeacutem a presenccedila ainda
expressiva da loacutegica manicomial nos discursos e praacuteticas em relaccedilatildeo agrave loucura
Sendo assim eacute preciso considerar que a Reforma Psiquiaacutetrica natildeo se restringe apenas as
mudanccedilas assistenciais nos serviccedilos de sauacutede mental mas a uma mudanccedila mais ampla no
processo de compreender e lidar com a loucura na sociedade
Ao longo da histoacuteria da sociedade a loucura jaacute teve diversos signos e significados
figurando desde um estado de sabedoria ligado ao profeacutetico a estados de possessatildeo demoniacuteaca
bruxaria e revolta social Entretanto eacute somente a partir do seacuteculo XVIII com o advento da
Psiquiatria que ela passa a ser compreendida enquanto doenccedila mental e a ser enclausurada e
excluiacuteda em instituiccedilotildees de tratamento
91
Com a emergecircncia da Reforma Psiquiaacutetrica inicia-se um movimento de transformaccedilatildeo
do lugar social da loucura atribuindo-lhe um estatuto que vai aleacutem da sintomatologia
psicopatoloacutegica e afirma a loucura enquanto um modo de ser no mundo Na conjuntura atual
eacute possiacutevel perceber que vivenciamos um momento de ruptura epistemoloacutegica em que os saberes
defendidos pela Reforma e o saber biomeacutedico natildeo se anulam mas convivem lado a lado se
alternando e disputando espaccedilo nos diversos pontos da RAPS
Eacute com base nessa dicotomia de saberes que proponho essa revisatildeo bibliograacutefica
Entendendo que os modos de compreender a crise e a loucura incidem na construccedilatildeo de nossas
ofertas de cuidado e no modelo de tratamento uma primeira questatildeo que se coloca eacute Quais satildeo
os sentidos de crise e de que maneira esses sentidos reverberam na produccedilatildeo de cuidado
A partir da revisatildeo da literatura estudada no primeiro capiacutetulo ldquoOs sentidos da criserdquo
identificamos trecircs eixos temaacuteticos que se desdobraram em categorias de anaacutelise satildeo eles
ldquoCrise como Ameaccedila Social Periculosidade e Riscordquo ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo
e ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
No primeiro eixo ldquoa crise como ameaccedila socialrdquo as vivecircncias da crise aparecem
marcadas por comportamentos hostis e intimidadores O risco envolvido se transmite para os
profissionais no campo das praacuteticas como uma necessidade constante de monitoramento
vigilacircncia e controle A agressividade dos sintomas eacute combatida com intervenccedilotildees igualmente
violentas sendo praacuteticas comuns a contenccedilatildeo fiacutesica medicamentosa e ateacute mesmo o uso da forccedila
policial como formas de reprimir o sujeito e estabelecer a ordem no serviccedilo
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade A agressividade eacute vista
como um sintoma isolado iacutendice de ameaccedila e risco Alguns profissionais acreditam que a
presenccedila da poliacutecia nas intervenccedilotildees eacute necessaacuteria para ldquoimpor respeitordquo como se as crises se
tratassem de manifestaccedilotildees voluntaacuterias Outros trabalhadores parecem perceber o paciente em
crise como um ldquocontraventorrdquo ldquoperturbador da ordem socialrdquo ldquomarginalrdquo e ateacute mesmo
enquanto um ldquoanimalrdquo mencionando palavras como ldquoprenderrdquo e ldquoamansarrdquo ao referir-se a
abordagem ao paciente
Muitas vezes a poliacutecia tambeacutem eacute acionada como forma de ldquodar proteccedilatildeordquo aos
profissionais que se sentem com medo e despreparados para acolher a crise Entretanto os
profissionais reconhecem que a poliacutecia tambeacutem natildeo sabe lidar com o paciente psiquiaacutetrico e
que eacute ainda mais despreparada
92
No segundo eixo a ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo a peculiaridade dos
sintomas que emergem na crise e o estigma social relacionado a eles satildeo compreendidos
enquanto iacutendice da emergecircncia de uma doenccedila ou de anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida como a vergonha o medo de ter novas crises o medo de circular
pelo territoacuterio e de fazer amizades Percebemos que esse significado apareceu especialmente
nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da primeira crise
mas tambeacutem se fez presente em estudos com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees e
que viveram com isso muitas perdas dos seus viacutenculos afetivos sociais e laborativos
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede
No terceiro eixo ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
encontramos experiecircncias relatos e situaccedilotildees que apontaram para outros modos de lidar com a
crise e com a loucura natildeo como marco de uma doenccedila limitante mas como uma experiecircncia
uacutenica e singular que traz em si uma necessidade imperiosa e urgente de reconstruccedilatildeo de
sentidos
Os usuaacuterios relataram caminhos estrateacutegias e ferramentas que permitiram a construccedilatildeo
de um outro modo de lidar com a crise e com seus sintomas Os profissionais retrataram
situaccedilotildees em que foi possiacutevel recolocar-se diante da crise e vecirc-la como um evento analisador
de suas praacuteticas bem como da vida daqueles sujeitos
Em um dos casos o usuaacuterio vinha pedindo haacute muito tempo para sair da casa onde
morava que era a casa onde vivia com os pais antes do falecimento dos mesmos e onde tinha
muitas recordaccedilotildees A partir do seu movimento de crise ldquoa famiacutelia entendeu que era mais do
que quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil E aiacute acabou que ele conseguiu
alugar a casa delerdquo (COSTA 2007 102 grifo do autor)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado na histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social relacional e
habitacional Ela eacute uma resposta a uma situaccedilatildeo que haacute muito tempo jaacute estava insustentaacutevel A
crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um evento analisador que ldquoestabelece uma urgecircncia
de realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (ibidem 103)
93
Em outra situaccedilatildeo a crise aparece enquanto um pedido de ajuda
Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o sobrinho dele morreu
assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver com uma situaccedilatildeo que
ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele continuou trabalhando
na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de trabalho E eu me lembro
que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele tirar todos os documentos
E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do nascimento dele e ele me
mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e nasceu e contou histoacuteria
A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com ele porque ele explodiu[]
E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos de novo E a gente entendeu
que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia muito que a gente o ajudasse
Os documentos eu acho que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que
ele acabou entre aspas perdendo (COSTA 2007 105)
Vemos entatildeo que os modos de produzir cuidado se tecem junto com o sujeito que vai
recontando sua histoacuteria atraveacutes dos elementos que fazem parte de seu cotidiano como o
territoacuterio suas relaccedilotildees sociais seu trabalho seu mundo Assim a produccedilatildeo de cuidado
acontece onde a vida do sujeito estaacute no parque da catacumba na cantina na retirada dos
documentos porque foi preciso destruir uma parte de sua histoacuteria para reconstruiacute-la depois
Trata-se de considerar a crise como um movimento vaacutelido que expressa o sofrimento do sujeito
e sua necessidade de construir e habitar outros territoacuterios existenciais para si
Nosso segundo objetivo especiacutefico diz respeito as praacuteticas de cuidado e se expressa nas
seguintes perguntas Quais satildeo as principais dificuldades do acolhimento agrave crise Quais satildeo as
nossas principais ferramentas cliacutenicas
Como desafios identificamos o acolhimento burocratizado e frio que se expressa
muitas vezes como uma mera triagem do paciente o cuidado orgacircnico centrado nos
procedimentos fiacutesicos e na figura do meacutedico o mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo
o despreparo para abordar e lidar com o paciente em crise que muitas vezes justifica o uso de
medidas violentas o preconceito e do julgamento moral especialmente em relaccedilatildeo aos casos
de usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas e por fim o diagnoacutestico apressado a conduta extremamente
teacutecnica e desumana
Como potencialidades identificamos a aposta no encontro no viacutenculo na escuta
qualificada e no diaacutelogo o pronto-atendimento (a disponibilidade de prestar o cuidado no
momento em que ele eacute necessaacuterio) as visitas domiciliares e a intervenccedilatildeo dentro do contexto
de vida do sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) a revisatildeo do PTS (Projeto
Terapecircutico Singular) o trabalho multidisciplinar e a abordagem conjunta especialmente nos
casos onde pode haver riscos aos profissionais
94
Nosso terceiro objetivo especiacutefico buscou refletir sobre a as formas de organizaccedilatildeo da
rede e se resumem em torno das seguintes perguntas Como os serviccedilos tecircm se organizado para
responder agraves demandas de crise Quais satildeo os desafios que o acolhimento agrave crise na rede
substitutiva nos coloca
Identificamos que o acolhimento agrave crise eacute um dos principais noacutes criacuteticos na organizaccedilatildeo
e na integralidade da rede de cuidados A articulaccedilatildeo entre os serviccedilos ainda se mostra bastante
fragmentada sendo a maior parte dos encaminhamentos feitos de modo apressado sem a devida
discussatildeo sobre o caso (encaminhamentos por escrito ou via telefone) O acompanhamento dos
serviccedilos de referecircncia aos casos mais graves durante a internaccedilatildeo eacute bastante raro havendo uma
certa expectativa de que o hospital se ocupe dos casos mais graves e da crise e que o usuaacuterio
retorne ao serviccedilo de referecircncia quando estabilizado
Diante das dificuldades colocadas na crise psicoacutetica os profissionais tendem a fazer
encaminhamentos irrefletidos ao hospital esperando uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
Nota-se que a justificativa para esse encaminhamento passa muitas vezes pelo fato do hospital
ter mais ldquorecursos materiaisrdquo aleacutem de mecanismos de ldquocontrolerdquo e ldquomonitoramentordquo dos casos
Ressaltamos que o apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises
leves podem ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o
hospital direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima
absolutamente o papel do CAPS frente agrave crise
Quanto ao entendimento da Reforma Psiquiaacutetrica na rede nossos resultados dialogam
com as reflexotildees levantadas em nosso marco teoacuterico natildeo haacute uma compreensatildeo uniforme sobre
esse processo e os profissionais mostram-se tanto identificados com a loacutegica manicomial
quanto com alguns pressupostos da RP e do novo modelo de cuidado Alguns profissionais
tambeacutem mostram entender a RP como uma mera mudanccedila administrativajuriacutedica sem muitas
implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos o que reafirma papeacuteis engessados e fluxos
burocratizados nos serviccedilos contribuindo para que o hospital continue sendo a porta de entrada
e o destino da maior parte dos casos de crise acolhidos na rede
Enquanto desafios nesse processo ressaltamos a demora para conseguir iniciar um
tratamento a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se estabelecer uma classificaccedilatildeo
de risco na lista de espera o deacuteficit de profissionais inadequaccedilotildees na estrutura fiacutesica que
prejudicam o acesso de pessoas com necessidades especiais e de atividades grupais
insuficiecircncias de equipamentos ofertas de cuidado riacutegidas e padronizadas fragmentaccedilatildeo da
95
equipe no processo de trabalho em dias e turnos especiacuteficos da semana fragmentaccedilatildeo nas
relaccedilotildees entre os serviccedilos fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre a RAPS e a rede intersetorial e
territorial
Destacamos que as iniciativas de superaccedilatildeo dessas fragilidades ainda se concentram
muito nos esforccedilos individuais dos trabalhadores havendo pouco investimento puacuteblico em
oferecer os recursos miacutenimos para se acolher a crise de acordo com os ideais da RP
Identificamos por outro lado como ferramentas importantes na tessitura e no fortalecimento
das redes de cuidado a praacutetica do AT e do apoio matricial que podem oferecer um espaccedilo de
cuidado mais proacuteximo ao territoacuterio e agrave rede intersetorial
Por fim frisamos como limitaccedilotildees desse estudo o fato de nossa revisatildeo bibliograacutefica se
ater somente a artigos cientiacuteficos de modo que algumas dissertaccedilotildees que poderiam agregar um
significado mais profundo a certos temas foram excluiacutedas na nossa seleccedilatildeo Tambeacutem foi um
recorte dessa pesquisa o cuidado agrave crise no contexto brasileiro permanecendo enquanto questatildeo
quais satildeo as possiacuteveis contribuiccedilotildees ao nosso tema no contexto internacional
Como potencialidades dessa pesquisa destacamos a produccedilatildeo de conhecimento teoacuterico
sobre o tema a ampliaccedilatildeo do debate aos profissionais da rede de sauacutede mental e a identificaccedilatildeo
e problematizaccedilatildeo dos pontos de fragilidade e potencialidades no processo de construccedilatildeo da
RPB
96
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ABSTRACT
This dissertation had as object the care of people in situation of crisis in the Network of
Psychosocial Attention Through a bibliographical review study of 21 scientific articles we
sought to identify how the health services deals with pacient crisis Regarding to care practices
we are interested in the main difficulties and clinical tools that professionals find in the
management of crisis situations Understanding that the Psychiatric Reform is a process that is
still in progress and depends fundamentally on how services are organized and articulated in
order to create a network of care that can replace the Psychiatric Hospital arises the concern
of what are the main difficulties that the health services faces to provide the care of the crisis in
the territory and the possible ways to overcome them in the direction of care in freedom
Key words crisis mental health care practices Network of Psychosocial Attention
health services
LISTA DE GRAacuteFICOS
Graacutefico 1- Inversatildeo dos gastos (2002 a 2013) 30
Graacutefico 2- Seacuterie histoacuterica de Expansatildeo dos CAPS (2002 a 2014)31
LISTA DE QUADROS
Quadro 1- Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial por tipo UF e por indicador de CAPS100mil
habitantes (BRASILdez 2014)32
Quadro 2- Oferta de leitos de sauacutede mental em Hospitais Gerais (2014)34
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em CAPS III- Secretaria Municipal de Sauacutede do
Rio de Janeiro (setembro 2015)34
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AB- Atenccedilatildeo Baacutesica
ACS- Agente Comunitaacuterio de Sauacutede
AP- Aacuterea Programaacutetica
AT- Acompanhamento Terapecircutico
CAPS- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial
CAPS II- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo II
CAPS III- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo III
CAPSad- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas
CAPSad III - Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial especializado em Aacutelcool e outras drogas tipo III
CAPSi- Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial Infantil
CF- Cliacutenica da Famiacutelia
ENSP- Escola Nacional de Sauacutede Puacuteblica
FIOCRUZ- Fundaccedilatildeo Oswaldo Cruz
IT- Itineraacuterio Terapecircutico
NASF- Nuacutecleo de Apoio agrave Sauacutede da Famiacutelia
PNSM- Poliacutetica Nacional de Sauacutede Mental
RAPS- Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial
RPB- Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
SAMU- Serviccedilo Moacutevel de Urgecircncia
SRT- Residecircncia Terapecircutica
SUS- Sistema Uacutenico de Sauacutede
UBS- Unidade Baacutesica de sauacutede
VD- Visita Domiciliar
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO11
10 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA 16
11Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria 16
12A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira25
2 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL 34
21Reflexotildees sobre a Crise e o Cuidado em Sauacutede Mental34
22O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS39
3 METODOLOGIA 46
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA 49
41 Os Sentidos da Crise49
412 Crise como Ameaccedila Social Periculosidade e Risco50
413 Crise como Perda e Isolamento Social54
414 Crise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidos 58
42 Desafios e Potencialidades no Acolhimento agrave Crise64
43 Organizaccedilatildeo da Rede de Cuidados76
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS89
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS95
11
INTRODUCcedilAtildeO
Para o filoacutesofo Gilles Deleuze (1988) pensar natildeo eacute um exerciacutecio natural do ser humano
como costumamos acreditar no senso comum Tampouco se trata de um processo interior ou
subjetivo da ordem de uma reflexatildeo voluntaacuteria Pensamos a partir dos encontros mais insoacutelitos
quando algo nos irrompe agrave consciecircncia de maneira intempestiva e nos forccedila a pensar Pensar
nesse sentido eacute muito mais da ordem de um acontecimento do que da reflexatildeo
A abordagem tradicional da filosofia de Platatildeo agrave Kant tem na representaccedilatildeo o
fundamento do pensamento O conhecimento para esses autores se constroacutei a partir de um
julgamento criacutetico em busca da verdade Em seu livro Diferenccedila e Repeticcedilatildeo (1988) Deleuze
questiona essa tradiccedilatildeo filosoacutefica e sustenta a ideia de um pensamento que natildeo depende mais
de uma relaccedilatildeo com a verdade mas de uma relaccedilatildeo com a diferenccedila Conforme Sangiovanni a
partir da leitura de Deleuze ldquoeacute a partir do encontro com a diferenccedila que ocorre o pensamento
ou seja na relaccedilatildeo exterior natildeo hegemocircnica eacute que satildeo criadas as condiccedilotildees do pensarrdquo
(201386)
Para Deleuze haacute no encontro com a diferenccedila a forccedila de algo novo que necessariamente
nos tira do lugar e que impotildee a necessidade de pensar Nessa mesma linha de pensamento
Benetti destaca ldquoo que funda o pensamento eacute o encontro com algo violento Em outros termos
aquilo que mexe e que marca e portanto desencadeia a paixatildeo de pensarrdquo (DELEUZE 2010
95)
A crise em sauacutede mental tema desse trabalho surgiu para mim como objeto de reflexatildeo
exatamente no plano do concreto de algo que irrompe e se coloca de forma violenta a partir
da necessidade dos casos e do encontro real com o sofrimento do outro A crise fala de um
tempo in ato no aqui e agora que natildeo respeita nossas possibilidades de elaboraccedilotildees teoacutericas
preacutevias sobre o assunto e exige que estejamos inteiramente presentes e disponiacuteveis para o outro
no momento em que ele precisa
Eacute a partir dessa abertura inicial da possibilidade de ser pego de surpresa e mesmo assim
estar junto servindo de suporte para o sofrimento do outro se deixando afetar e marcar por essa
experiecircncia que algum caminho pode se dar Eacute um trabalho que soacute pode acontecer atraveacutes do
contato do encontro com o outro e da possibilidade de estar disponiacutevel para construir algo
juntos
12
A crise aponta para um momento em que as praacuteticas de cuidado e as antigas soluccedilotildees
que o sujeito podia engendrar para lidar com seu sofrimento psiacutequico de alguma forma natildeo
satildeo mais suficientes Segundo Knobloch (1998) a crise pode ser entendida como ldquoalgo
insuportaacutevel no sentido literal de natildeo haver suporte experiecircncia que nos habita como um
abismo de perda de sentido em que se perdem as principais ligaccedilotildeesrdquo (apud FERIGATO et al
2016 33) Algo se rompe algo se perde Natildeo eacute mais possiacutevel continuar a se viver da maneira
em que se estava anteriormente O que fazer
Essa ruptura com uma certa organizaccedilatildeo psiacutequica geralmente eacute entendida pelos
profissionais da sauacutede como algo negativo No entanto se tomamos a loucura e a crise que eacute a
radicalidade dessa ruptura como fenocircmenos de questionamento da ordem social e do status quo
da sociedade talvez possamos relanccedilar algumas perguntas e abrir outras possibilidades de
convivecircncia com a loucura
Apesar do sofrimento que estaacute ligado a vivecircncia da crise sua incidecircncia pode ser vista
como um evento analisador capaz de indicar a necessidade de uma mudanccedila nos modos do
sujeito se relacionar consigo mesmo com o seu tratamento e com o mundo agrave sua volta Assim
eacute precisamente nesse momento em que nada mais parece conseguir estabilizar um sujeito que
nos vemos obrigados a repensar nossas praacuteticas e ofertas de cuidado
Deslocar a perspectiva de compreensatildeo da loucura desse modo significa tomaacute-la em
sua dimensatildeo criativa no que ela traz de revolucionaacuterio e de produccedilatildeo de novos sentidos de
vida Isso implica em uma mudanccedila de atitude eacutetica e poliacutetica para com a loucura natildeo mais no
sentido de reprimi-la ou tentar a todo custo reestabelecer a normalidade perdida mas de aceitar
o movimento de crise como vaacutelido dentro da histoacuteria de vida daquelas pessoas e buscar o que
podemos construir a partir dele isto eacute o que ele pode nos sinalizar sobre as possibilidades de
vida daquele sujeito
Dessa forma algumas questotildees que pretendemos colocar com essa pesquisa satildeo Como
temos acolhido os sujeitos em crise na rede de atenccedilatildeo psicossocial Quais satildeo as principais
dificuldades nesse acolhimento Quais satildeo as nossas principais ferramentas cliacutenicas Quais satildeo
os desafios que o acolhimento agrave crise na rede substitutiva nos coloca Como pensar um
acolhimento agrave crise que natildeo seja apenas baseado na loacutegica de ldquoapagar incecircndiosrdquo Isto eacute que
outras formas de cuidado satildeo possiacuteveis para aleacutem da remissatildeo de sintomas Como trabalhar na
direccedilatildeo de um acolhimento que considere verdadeiramente o sofrimento do sujeito entendendo
a crise natildeo como um momento isolado de sua vida mas como parte de sua histoacuteria
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Quanto aos aspectos macroestruturais que fundamentam esse trabalho haacute que se
ressaltar que a atenccedilatildeo agrave crise tem sido indicada na literatura como um dos principais desafios
para efetivaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica Embora tenha havido uma mudanccedila no modelo de
sauacutede orientada para um cuidado em liberdade alguns aspectos como a insuficiecircncia da
cobertura dos serviccedilos substitutivos no cenaacuterio local e nacional a baixa articulaccedilatildeo
intersetorial a fragmentaccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e os deacuteficits em relaccedilatildeo aos recursos
humanos e estruturais (BRASIL 2015) tecircm constituiacutedo grandes obstaacuteculos no que se refere a
capacidade dos serviccedilos de acolherem a crise no territoacuterio
No que tange ao cenaacuterio atual o SUS vem sofrendo um forte processo de desmonte
atraveacutes de poliacuteticas de Estado que ameaccedilam seu caraacuteter puacuteblico integral e universal Quanto ao
financiamento destaca-se a Emenda agrave Constituiccedilatildeo 952016 que estabelece um teto para as
despesas em sauacutede puacuteblica considerando o orccedilamento do ano anterior corrigido pela inflaccedilatildeo
sem o aumento real mesmo que haja crescimento econocircmico Isso significa que qualquer
aumento populacional mudanccedilas de perfil demograacutefico ou de quadro sanitaacuterio do paiacutes natildeo
seratildeo acompanhadas pelo incremento das ofertas em sauacutede devido ao congelamento dos gastos
ainda que as receitas tenham aumentado naquele ano Com isso ateacute mesmo a incorporaccedilatildeo de
avanccedilos tecnoloacutegicos fica comprometida contribuindo para ampliar a defasagem do sistema
puacuteblico de sauacutede em relaccedilatildeo aos atendimentos oferecidos pela iniciativa privada
Quanto aos aspectos legislativos e institucionais a recente Nota Teacutecnica 112019
institui uma seacuterie de mudanccedilas que implicam em graves retrocessos na rede assistencial Na
Poliacutetica de Aacutelcool e Outras Drogas o documento confirma o abandono da estrateacutegia de Reduccedilatildeo
de Danos uma abordagem que tem se mostrado eficaz e vem sendo utilizada em diversos
paiacuteses como Canadaacute Portugal Espanha Holanda e alguns estados dentro dos Estados Unidos
Aposta enquanto uacutenica modalidade de tratamento na abstinecircncia total a ser alcanccedilada por meio
internaccedilatildeo de longo prazo reconhecendo enquanto um dispositivo da Rede SUS as
Comunidades Terapecircuticas instituiccedilotildees majoritariamente religiosas focadas no isolamento e
nas praacuteticas religiosas
Quanto agrave organizaccedilatildeo dos serviccedilos os Hospitais Psiquiaacutetricos passam a ser
reconhecidos como parte da RAPS e os Hospitais Gerais ganham ldquoUnidades Psiquiaacutetricas
Especializadasrdquo com capacidade de ateacute 30 leitos para internaccedilotildees psiquiaacutetricas funcionando
como ldquominirdquo Hospitais Psiquiaacutetricos dentro dos Hospitais Gerais o que reproduz novamente a
loacutegica cronificante e alienadora do Hospital Outro ponto eacute a defesa da internaccedilatildeo de crianccedilas e
adolescentes contrariando ECA (Lei 8069 de 1990) Reforccedilamos que essas medidas aleacutem de
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deslegitimarem o CAPS III como dispositivo privilegiado para o atendimento da crise
claramente contradizem a Poliacutetica de Desinstitucionalizaccedilatildeo e de descredenciamento e
fechamento de Hospitais Psiquiaacutetricos
Na Atenccedilatildeo Baacutesica no municiacutepio do Rio de Janeiro a poliacutetica de ldquoReestruturaccedilatildeo da
Atenccedilatildeo Baacutesicardquo e os cortes previstos na Lei Orccedilamentaacuteria de 2019 foram responsaacuteveis por um
processo de demissatildeo em massa que previa para o ano de 2019 um corte de 239 equipes no
municiacutepio - 184 de sauacutede da famiacutelia e 55 de sauacutede bucal gerando um total de 1400 demissotildees
Segundo levantamento do Nenhum Serviccedilo a Menos em 012019 jaacute haviam sido demitidos 479
servidores sendo a grande maioria deles Agentes Comunitaacuterios da Sauacutede Entre as
mobilizaccedilotildees e reivindicaccedilotildees dos trabalhadores foram pautas tambeacutem os atrasos nos salaacuterios
a falta de insumos nas unidades e o descompromisso da Gestatildeo Municipal com o direito agrave
Sauacutede
Assim vecirc-se um avanccedilo preocupante de uma poliacutetica de Estado que visa sucatear a
sauacutede puacuteblica e vai de encontro aos ideais defendidos pela Reforma Sanitaacuteria e aos direitos
promulgados na Constituiccedilatildeo de 1988 que fazem referecircncia agrave sauacutede como direito social
universal garantido pelo Estado
Essas questotildees tornam-se especialmente importantes quando falamos da atenccedilatildeo agrave crise
pois a crise natildeo eacute apenas a crise do usuaacuterio (enquanto um sujeito isolado no mundo e no espaccedilo)
mas tambeacutem a crise do Estado das poliacuteticas puacuteblicas e especialmente das instituiccedilotildees
Desse modo torna-se imprescindiacutevel investir em pesquisas que apontem quais satildeo os
impasses que os profissionais de sauacutede encontram para atender as situaccedilotildees de crise nos serviccedilos
substitutivos e quais estrateacutegias satildeo necessaacuterias no plano micro e macropoliacutetico para mudar o
itineraacuterio dos usuaacuterios em crise do hospital para os serviccedilos substitutivos
Nesse sentido destacamos como objetivo geral deste estudo analisar as fragilidades e
potencialidades apontadas na bibliografia cientiacutefica para a organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da
assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica
Como objetivos especiacuteficos buscaremos
Problematizar as noccedilotildees de crise em sauacutede mental presentes na literatura
e suas repercussotildees para o cuidado
Identificar os desafios e potencialidades encontrados nas praacuteticas de
acolhimento agrave crise na RAPS
Refletir sobre a forma como os serviccedilos tecircm se organizado para responder
agraves demandas de crise
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Com o intuito de alcanccedilar nossos objetivos realizamos uma pesquisa de revisatildeo
bibliograacutefica de artigos cientiacuteficos que tomaram com objeto os sentidos da crise as praacuteticas de
cuidado e a organizaccedilatildeo da rede de serviccedilos na resposta agrave crise
Quanto agrave organizaccedilatildeo dessa dissertaccedilatildeo no primeiro capiacutetulo encontramos o referencial
teoacuterico que foi dividido em dois eixos principais No primeiro ldquoDo modelo asilar agraves Reformas
na Psiquiatriardquo retomamos a histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica no mundo explicitando como as
diversas concepccedilotildees de loucura e de crise presentes na sociedade foram responsaacuteveis pela
organizaccedilatildeo de diferentes modelos de cuidado No segundo ldquoA Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileirardquo vemos as repercussotildees da mudanccedila da loacutegica do cuidado no desenvolvimento da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira e na reorganizaccedilatildeo da assistecircncia Para esse capiacutetulo usamos
os seguintes autores como referecircncia Foucault Amarante Tenoacuterio Caponi DellacuteAcqua e
Mezzina Birman e outros
No segundo capiacutetulo buscamos discutir mais agrave fundo o conceito de crise e suas relaccedilotildees
com as poliacuteticas de sauacutede no contexto do SUS Na primeira parte ldquoReflexotildees sobre a crise e
o cuidado em sauacutede mentalrdquo faremos uma retomada da origem etimoloacutegica do termo ldquocriserdquo
explicitando seus diversos significados A partir das reflexotildees de autores como DelacuteAcqua
Feriagato Bailarin Corbisier ressaltamos a crise em seu vieacutes criativo produtor de novas
possibilidades de vida Na segunda parte ldquoO Acolhimento agrave crise e a Organizaccedilatildeo do SUSrdquo
contextualizamos os desafios do atendimento agrave crise dentro da loacutegica do SUS A partir das
contribuiccedilotildees de Ceciacutelio (1997) expomos as contradiccedilotildees de um modelo idealizado de SUS
conforme preconizado pelas Poliacuteticas Puacuteblicas que na tentativa de regular todos os fluxos e
linhas de cuidado perde a proximidade com o sujeito e suas reais necessidades de sauacutede
O terceiro capiacutetulo se destina a apresentaccedilatildeo da metodologia utilizada seus aspectos
teoacutericos os caminhos percorridos na seleccedilatildeo dos artigos as bases utilizadas e os criteacuterios de
inclusatildeo de exclusatildeo dos artigos
O quarto capiacutetulo ldquoReflexatildeo e Discussatildeo da Literaturardquo concentra a revisatildeo dos artigos
No intuito de facilitar a anaacutelise dividimos esse capitulo em trecircs eixos conceituais ldquoos sentidos
da criserdquo ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo e a ldquoorganizaccedilatildeo da rede de
cuidadosrdquo
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1 A CONSTRUCcedilAtildeO DE UM NOVO MODELO DE CUIDADO ASPECTOS
HISTOacuteRICOS E ESTRUTURAIS DA REFORMA PSIQUIAacuteTRICA
11 Do modelo asilar agraves Reformas na Psiquiatria
Ateacute o seacuteculo XVIII na Europa a loucura natildeo era considerada uma doenccedila Ao longo da
histoacuteria a loucura jaacute teve diversos sentidos e explicaccedilotildees figurando desde algo ligado ao
sagrado e ao profeacutetico agrave possessatildeo demoniacuteaca Com a ascensatildeo da sociedade burguesa a
loucura jaacute tinha o estatuto de algo ldquoestranhordquo e junto com todos aqueles considerados
ldquoindesejaacuteveisrdquo agrave sociedade leprosos sifiliacuteticos aleijados mendigos etc comeccedila a ser
confinada nas entatildeo chamadas ldquocasas de internaccedilatildeordquo grandes instituiccedilotildees filantroacutepicas ou
religiosas que tinham como objetivo afastar a pobreza e a miseacuteria das ruas em uma grande
medida de higiene social Segundo Foucault
Estranha superfiacutecie a que comporta as medidas de internamento Doentes veneacutereos
devassos dissipadores homossexuais blasfemadores alquimistas libertinos toda
uma populaccedilatildeo matizada se vecirc repentinamente na segunda metade do seacuteculo XVII
rejeitada para aleacutem de uma linha de divisatildeo e reclusa em asilos que se tornaratildeo em
um ou dois seacuteculos os campos fechados da loucura (2002 116)
Esse periacuteodo histoacuterico eacute denominado pelo autor como a ldquoA Grande Internaccedilatildeordquo (2002)
fazendo alusatildeo ao fato de que a internaccedilatildeo natildeo era apenas para os loucos mas para toda a sorte
de indiviacuteduos que por algum motivo perturbavam a ordem social Esse periacuteodo se inscreve
desde o seacuteculo XVII ateacute o final seacuteculo XVIII e seu fim inaugura a emergecircncia da psiquiatria
enquanto ciecircncia (RIBEIRO PINTO 2011)
As ldquocasas de internaccedilatildeordquo natildeo tinham como objetivo a cura de enfermos ou a reabilitaccedilatildeo
dessas pessoas Eram verdadeiros depoacutesitos humanos lugares de exclusatildeo social da pobreza e
da miseacuteria produzidas pelos regimes absolutistas da eacutepoca Laacute permaneciam isolados e
esquecidos esperando a proacutepria morte
As primeiras casas surgiram nas regiotildees mais industrializadas do paiacutes como uma
alternativa para crise econocircmica atraveacutes da exploraccedilatildeo da matildeo de obra barata Segundo o
regulamento de uma das casas ldquoos internos devem trabalhar todos Determina-se o valor exato
de sua produccedilatildeo e daacute-se-lhes a quarta parte Pois o trabalho natildeo eacute apenas ocupaccedilatildeo deve ser
produtivordquo (FOUCAULT 2002 67)
Os loucos natildeo recebiam tratamento diferenciado em relaccedilatildeo aos outros pobres poreacutem
distinguiam-se pela ldquoincapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida
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coletivardquo (FOUCAULT 2002 73) Assim comeccedila-se a se pensar a loucura como um caso agrave
parte uma vez que ela natildeo responde da mesma forma agraves demandas de produtividade
Com a expansatildeo industrial o pobre passa a ser necessaacuterio nas cidades logo natildeo podia
mais estar internado mas e o pobre e louco A quem caberia a responsabilidade de assistecircncia
dessas pessoas Aos poucos as casas de internaccedilatildeo foram mudando de figura
O poder exercido no interior dessas Instituiccedilotildees pertencia agrave Igreja e ao Estado mas
em funccedilatildeo das revoluccedilotildees francesa e industrial do surgimento de novos atores sociais
ndash a burguesia a classe meacutedia o proletariado - e do surgimento de uma nova
racionalidade na produccedilatildeo do conhecimento essas instituiccedilotildees vatildeo gradativamente se
transformando em instituiccedilotildees meacutedicas (BARRIacuteGIO 2010 18)
Em 1791 na Franccedila eacute decretada uma lei que responsabiliza as famiacutelias por vigiar seus
loucos evitando que eles fiquem ldquovagando na ruardquo ou cometam alguma ldquodesordemrdquo No
entanto para as famiacutelias mais pobres que natildeo tinham condiccedilotildees de assistir seus familiares
chegam vaacuterios pedidos de internaccedilatildeo ao Ministeacuterio do Interior Nesse cenaacuterio destacam-se
duas instituiccedilotildees que sob agrave eacutegide da Medicina comeccedilam a se configurar enquanto os primeiros
hospitais especializados no tratamento da loucura Bicecirctre para o puacuteblico masculino e
Salpetriegravere para o puacuteblico feminino (HENNA 2014)
Em 1792 o meacutedico Phillipe Pinel assumiu a direccedilatildeo do Hospital de Bicetrecirc em Paris
onde operou inuacutemeras transformaccedilotildees consideradas atualmente por alguns autores como a
primeira Reforma da Psiquiatria Pinel inspirado pelos ideais de igualdade fraternidade e
liberdade da Revoluccedilatildeo Francesa libertou os loucos das correntes aboliu teacutecnicas como ldquoa
imersatildeo em aacutegua gelada os golpes as sangrias e as torturasrdquo (CAPONI 2012 49) e combateu
o pensamento da eacutepoca que a loucura era um fenocircmeno de possessatildeo demoniacuteaca
A funccedilatildeo meacutedica eacute claramente introduzida em Bicecirctre trata-se agora de rever todos
os internamentos por demecircncia que foram decretados no passado E pela primeira vez
na histoacuteria do Hospital Geral eacute nomeado para as enfermarias de Bicecirctre um homem
que jaacute adquiriu certa reputaccedilatildeo no conhecimento das doenccedilas do espiacuterito a designaccedilatildeo
de Pinel prova por si soacute que a presenccedila de loucos em Bicecirctre jaacute eacute um problema meacutedico
(FOUCAULT 2002 464)
A Psiquiatria de Pinel teve como objetivo demarcar os precisos limites entre a
normalidade e a loucura Devem-se a ele os primeiros esforccedilos no sentido de separar e
classificar os diversos tipos de desvio ou alienaccedilatildeo mentalrdquo com o intuito de estudaacute-los e
trataacute-los Com Pinel a loucura comeccedila a ganhar o status de uma ldquodoenccedila mentalrdquo com
sintomatologia proacutepria que requer cura e tratamento
Em seu Traite Medico-Philosophique sur IAlienation Mentale Pinel (1801) afirma que
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Os alienados longe de serem culpados a quem se deve punir satildeo doentes cujo
doloroso estado merece toda a consideraccedilatildeo devida a humanidade que sofre e para
quem se deve buscar pelos meios mais simples restabelecer a razatildeo desviada (apud
PEREIRA 2004 114 grifo nosso)
Hegel inspirado pelos estudos de Pinel afirma que a loucura natildeo eacute uma perda total da
razatildeo mas a contradiccedilatildeo de uma razatildeo que ainda existe O alienado eacute portanto um ser em
contradiccedilatildeo consigo mesmo mas que preserva em algum lugar um ponto lucidez
O verdadeiro tratamento apega-se a concepccedilatildeo de que a alienaccedilatildeo natildeo eacute a perda
abstrata da razatildeo nem do lado da inteligecircncia nem do lado da vontade ou da sua
responsabilidade mas um simples desarranjo do espiacuterito uma contradiccedilatildeo na
razatildeo que ainda existe assim como a doenccedila fiacutesica natildeo eacute uma perda abstrata isto eacute
completa da sauacutede (isso seria a morte) mas eacute uma contradiccedilatildeo dentro dela Esse
tratamento humano isto eacute tatildeo benevolente quanto razoaacutevel da loucura pressupotildee que
o doente eacute razoaacutevel e aiacute encontra um soacutelido ponto para abordaacute-lo desse lado (HEGEL
apud FOUCAULT 1972 524 grifo nosso)
Sendo a alienaccedilatildeo um distuacuterbio das paixotildees no interior da proacutepria razatildeo e natildeo fora dela
o tratamento possiacutevel para a loucura era buscar reestabelecer a normalidade perdida Conforme
afirma Pinel (1801) ldquohaacute sempre um resto de razatildeo mesmo no mais alienado dos alienadosrdquo e
se haacute um resto de razatildeo para Pinel era possiacutevel resgataacute-la (apud CAPONI 2012 48)
Os meios propostos por Pinel para reestabelecer o equiliacutebrio do doente constituiacuteam no
que ele chamou de ldquotratamento moralrdquo O termo moral nesse sentido era usado para designar
aquilo que pertence ao espiacuterito em contraposiccedilatildeo ao que eacute fiacutesico Assim o tratamento moral
visava reeducar o ldquodoenterdquo no sentido de ldquocriar estrateacutegias para dominar as paixotildees e recuperar
a razatildeordquo (CAPONI 2012 53)
O chamado tratamento moral praticado pelos alienistas incluiacutea o afastamento dos
doentes do contato exterior com todas as influecircncias da vida social e de qualquer
contato que pudesse modificar o que era considerado o desenvolvimento natural da
doenccedila (PEREIRA 2004 114)
A estrateacutegia de isolamento praticada com o tratamento moral procurava manter distacircncia
das condiccedilotildees que Pinel acreditava terem contribuiacutedo para o desenvolvimento da doenccedila
Segundo seus estudos tratavam-se de elementos de ordem social e afetiva que ele relacionava
com certos tipos de alienaccedilatildeo mental
Existe uma marcada diferenccedila na frequecircncia de certas causas conforme as espeacutecies de
alienaccedilatildeo problemas domeacutesticos produzem mais frequentemente a mania uma
devoccedilatildeo muito exaltada determina a melancolia Um amor contrariado e infeliz parece
ser a fonte fecunda para duas espeacutecies de alienaccedilatildeo [] Em relaccedilatildeo ao idiotismo os
estudos indicam que as causas fiacutesicas como um viacutecio de conformaccedilatildeo podem estar na
origem da maior parte dos casos (PINEL apud CAPONI 2012 48)
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Podemos ver que as ldquocausas moraisrdquo mais frequentes da alienaccedilatildeo satildeo experiecircncias
comuns a vida cotidiana ( amor contrariado problemas domeacutesticos devoccedilatildeo religiosa etc) que
poderiam ser revertidas com o tratamento atraveacutes da submissatildeo do doente a um ambiente de
controle onde seria possiacutevel dominar as paixotildees desenfreadas e os comportamentos
inadequados atraveacutes da ldquovoz da razatildeordquo representada pela figura do psiquiatra
Conforme Pinel
A terapecircutica da loucura eacute a arte de subjulgar e dominar por assim dizer o alienado
pondo-o em extrema dependecircncia de um homem que por suas qualidades fiacutesicas e
morais estaacute apto para exercer sobre ele um domiacutenio irresistiacutevel algueacutem capaz de
mudar a cadeia viciosa de suas ideacuteias (FOUCAULT 2003 apud CAPONI 2012 41)
Assim dois elementos mostram-se fundamentais para o sucesso do tratamento moral
isolamento e poder Por um lado a ideia de privar o doente do contato com as condiccedilotildees que
ocasionaram a sua doenccedila resulta no seu isolamento por outro a submissatildeo a um ambiente
riacutegido de regras firmes e incontestaacuteveis seria o fator imprescindiacutevel para exercer o controle das
paixotildees
A proacutepria organizaccedilatildeo do espaccedilo e das rotinas do ambiente asilar eram pensadas de
modo que a disciplina do ambiente pudesse se refletir tambeacutem nos pacientes operando assim
uma espeacutecie de ldquocontenccedilatildeordquo pelo ambiente (CAPONI 2012) As regras condutas horaacuterios e
regimentos do hospital tinham como objetivo reeducar a mente do ldquoalienadordquo afastar os deliacuterios
e ldquochamar agrave consciecircncia agrave realidaderdquo (AMARANTE 200733) Assim o hospital passa a ser
natildeo somente o lugar onde acontece o tratamento mas ele proacuteprio um instrumento ldquoterapecircuticordquo
Este tratamento exige uma reorganizaccedilatildeo interna do espaccedilo asilar uma distribuiccedilatildeo
minuciosa das diferentes espeacutecies de doente ficando os melancoacutelicos mais proacuteximos
do paacutetio e situando-se o restando dos pacientes mais longe de acordo com a sua
periculosidade Assim como existe uma minuciosa descriccedilatildeo e organizaccedilatildeo do
espaccedilo algo semelhante ocorreraacute com o controle do tempo As atividades exercidas
no asilo tem tempos estabelecidas assim como os tratamentos para cada tipo de
doenccedila As regras seratildeo previamente estabelecidas e fixadas sendo que cada
estrateacutegia disciplinar pretende contrapor a loucura agrave racionalidade e agrave mesura
representadas pelo saber meacutedico Define-se assim o modelo que deve ser interiorizado
por esse tipo de ortopedia moral que rege nos asilos (CAPONI2012 50)
Vecirc-se entatildeo que o surgimento dos hospitais psiquiaacutetricos nasce estreitamente ligado agrave
concepccedilatildeo de loucura enquanto doenccedila mental e a ideia de um tratamento que usa como
recursos terapecircuticos o isolamento a disciplina e a autoridade Com o alienismo o hospital
deixa de ser um espaccedilo de assistecircncia e filantropia para se tornar de fato uma instituiccedilatildeo
meacutedica Comeccedila-se a se estabelecer uma diferenccedila entre o louco o criminoso o pobre e o
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doente dos oacutergatildeos de modo que se torna necessaacuterio isolar o louco dos demais internos em um
ambiente separado afim de observaacute-lo e estudar a natureza de sua doenccedila Embora os loucos jaacute
fossem institucionalizados antes do alienismo haacute nesse momento uma marcada diferenccedila a
clausura em questatildeo natildeo se daacute mais por caridade ou repressatildeo mas ldquopor um imperativo
terapecircuticordquo (AMARANTE 2007 33)
Assim as condiccedilotildees de possibilidade para o surgimento do manicocircmio enquanto uma
instituiccedilatildeo de isolamento da loucura contemplam tanto os alienistas e seu entendimento sobre
a loucura quanto agraves necessidades da sociedade como um todo Por um lado a concepccedilatildeo que
se tinha em relaccedilatildeo agrave loucura exigia o reestabelecimento da razatildeo atraveacutes de uma reeducaccedilatildeo
moral cujos alicerces eram o isolamento e as riacutegidas disciplinas institucionais por outro
haviam os anseios da populaccedilatildeo por isolamento e exclusatildeo daqueles que desviam da norma
social e que por isso lhe parecem estranhos e perigosos
Foi assim que segundo Amarante (2007 33) ldquoo alienismo pineliano ganhou o mundordquo
e embora tenha havido algumas criacuteticas a esse modelo ele soacute seraacute efetivamente questionado no
seacuteculo XX no contexto do poacutes-guerra na Europa
As duas grandes Guerras Mundiais voltaram a sociedade para uma reflexatildeo sobre a
natureza humana a crueldade e solidariedade com o proacuteximo No poacutes-Segunda Guerra com a
queda do nazismo especificamente percebeu-se que as condiccedilotildees de vida oferecidas nos
hospitais psiquiaacutetricos pouco se distanciavam daquelas oferecidas aos judeus nos campos de
concentraccedilatildeo nazistas (AMARANTE 2007)
Paralelamente a Europa sofreu um forte abalo econocircmico Segundo Heidrich (2007
38) ldquoos autores destacam que soacute na Franccedila 40 mil doentes mentais morreram nos asilos devido
agraves maacutes condiccedilotildees e a falta de alimentaccedilatildeordquo Houve uma perda consideraacutevel da matildeo-de-obra
disponiacutevel que fora lanccedilada ao campo de batalha e jaacute natildeo havia mais quem pudesse reconstruir
a economia e reparar os danos do poacutes-guerra
Nessa atual conjuntura natildeo era mais possiacutevel assistir-se passivamente ao
deterioramento do espetaacuteculo asilar natildeo era mais possiacutevel aceitar uma situaccedilatildeo em
que um conjunto de homens passiacuteveis de atividade pudessem estar espantosamente
estragados no hospiacutecio Passou-se a enxergar como um grande absurdo esse montante
de desperdiacutecio da forccedila de trabalho (BIRMAN COSTA 1994 46-7)
Segundo Birman e Costa (1994) lidos por Heidrich (2007) haviam duas preocupaccedilotildees
centrais que demandavam a reforma do modelo asilar
Por um lado a preocupaccedilatildeo dos proacuteprios psiquiatras com relaccedilatildeo agrave sua impotecircncia
terapecircutica por outro as preocupaccedilotildees governamentais geradas pelos altos iacutendices
21
de cronicidade das doenccedilas mentais com sua consequente incapacidade social Dessa
forma a psiquiatria social aparece transferindo o campo de atuaccedilatildeo da psiquiatria da
doenccedila mental para a sauacutede mental ( BIRMAN COSTA 1994 apud HEIDRICH
2007 36-7)
O Hospital Psiquiaacutetrico comeccedila a aparecer entatildeo como o principal responsaacutevel pela
degradaccedilatildeo dos pacientes e pela manutenccedilatildeo e pela cronicidade de sua doenccedila Assim surgem
vaacuterias experiecircncias com o objetivo de transformar o ambiente asilar e reabilitar os pacientes
para a vida social e para o trabalho
Segundo Amarante (2007) esses movimentos reformistas foram divididos em ldquodois
grupos mais umrdquo
O primeiro grupo composto pela Comunidade Terapecircutica e pela Psicoterapia
Institucional destaca duas experiecircncias que investiram no princiacutepio de que o fracasso
estava na forma de gestatildeo do proacuteprio hospital e que a soluccedilatildeo portanto seria
introduzir mudanccedilas na instituiccedilatildeo O segundo grupo eacute formado pela Psicoterapia de
Setor e Psiquiatria Preventiva experiecircncias que acreditavam que o modelo hospitalar
estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ldquopelas beiradasrdquo como se diz
na linguagem popular isto eacute deveria ser tornado obsoleto a partir da construccedilatildeo de
serviccedilos assistenciais que iriam qualificando o cuidado terapecircutico (hospitais dia
oficinas terapecircuticas centros de sauacutede mental etc) ao mesmo tempo que iriam
diminuindo a importacircncia e a necessidade do hospital psiquiaacutetrico No lsquooutrorsquo grupo
em que estatildeo a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica o termo reforma parece
inadequado Ambas consideram que a questatildeo mesma estaria no modelo cientiacutefico
psiquiaacutetrico que eacute todo ele colocado em xeque assim como suas instituiccedilotildees
assistenciais (AMARANTE 2007 41)
O primeiro grupo formado pela Comunidade Terapecircutica (Inglaterra e EUA) e pela a
Psicoterapia Institucional (Franccedila) acreditava em uma reforma do ambiente hospitalar de modo
a humanizaacute-lo e tornaacute-lo efetivamente terapecircutico Assim empreenderam propostas de
democratizar o hospital dissolver a rigidez da hierarquia e da disciplina do ambiente hospitalar
de modo a horizontalizar as relaccedilotildees de poder Todos deviam fazer parte de uma mesma
comunidade terapecircutica e lutar contra a violecircncia institucional O sistema eacute pensado de modo a
apostar no potencial terapecircutico do coletivo e a incluir o sujeito que experiecircncia o sofrimento
como co-participante de seu tratamento Jaacute vemos aiacute uma inversatildeo em relaccedilatildeo a psiquiatria
pineliana e ao modo tradicional de se entender a loucura poreacutem natildeo haacute um questionamento em
relaccedilatildeo a necessidade de institucionalizaccedilatildeo do louco
O segundo grupo composto pela Psiquiatria de Setor (Franccedila) e pela Psiquiatria
Preventiva (EUA) jaacute apontava para a necessidade de um trabalho externo ao manicocircmio A
Psiquiatria de Setor se destacou por criar serviccedilos externos agrave internaccedilatildeo os CSM (Centros de
Sauacutede Mental) distribuiacutedos pelo territoacuterio de acordo com o contingente populacional nos
diferentes setores administrativos das regiotildees francesas O hospital por sua vez era tambeacutem
dividido em vaacuterios setores de modo que pacientes de uma mesma regiatildeo administrativa fossem
22
sempre internados no mesmo setor do hospital e quando recebessem alta eram enviados ao CMS
correspondente (AMARANTE 2007)
Organizar o cuidado desse modo permitia que o sujeito pudesse ser acompanhado pela
mesma equipe multiprofissional desde a internaccedilatildeo hospitalar ateacute a alta e encaminhamento para
o CMS do setor contando com o viacutenculo como um recurso terapecircutico Comeccedila-se a se
construir a ideia de uma equipe multidisciplinar de modo que o cuidado natildeo ficasse mais apenas
centralizado na figura do meacutedico
A Psiquiatria Preventiva tambeacutem conhecida como Psiquiatria Comunitaacuteria buscou
aplicar o meacutetodo da Medicina Preventiva agrave Psiquiatria visando reduzir a incidecircncia das doenccedilas
mentais na populaccedilatildeo Caplan fundador dessa corrente acreditava que ldquotodas as doenccedilas
mentais poderiam ser prevenidas desde que detectadas precocementerdquo (apud AMARANTE
2007 48)
Para a Psiquiatria Preventiva o conceito de crise passa a ser norteador A crise era
entendida a partir do vieacutes socioloacutegico de ldquoadaptaccedilatildeo e desadaptaccedilatildeo socialrdquo Segundo Joel
Birman e Jurandir Freire Costa atraveacutes da leitura de Amarante as crises eram classificadas em
dois grandes grupos
1) Evolutivas-quando relacionadas a processos normais do desenvolvimento fiacutesico
emocional ou social Em tais processos na passagem de uma fase agrave outra da vida a
conduta natildeo estaria caracterizada por um padratildeo estabelecido Tratar-se-ia de um
periacuteodo transitoacuterio quando o indiviacuteduo perderia sua caracterizaccedilatildeo anterior sem no
entanto adquirir uma nova organizaccedilatildeo Na hipoacutetese de os conflitos gerados natildeo
serem bem absorvidos poderiam levar agrave desadaptaccedilatildeo que natildeo sendo elaborados pela
pessoa poderiam conduzir agrave doenccedila mental
2) Acidentais- quando precipitadas por alguma perda ou risco (desemprego separaccedilatildeo
conjugal falecimento de uma pessoa querida etc) A perturbaccedilatildeo emocional
ocasionada pela crise provocaria eventualmente o surgimento de alguma enfermidade
mental assim torna-se um momento estrateacutegico de intervenccedilatildeo preventiva na medida
em que em contrapartida a crise pode ser encarada como uma possibilidade de
crescimento para o indiviacuteduo (Birman e Costa 1998 apud AMARANTE 2007 49-
50)
Entendendo que algumas situaccedilotildees sejam elas relativas ao desenvolvimento natural do
ser humano ou a condiccedilotildees externas diversas apontam para momentos mais delicados da vida
a Psiquiatria Preventiva propocircs estrateacutegias de trabalho de base comunitaacuteria investindo em
equipes de sauacutede mental que pudessem acompanhar os usuaacuterios preventivamente identificando
e intervindo na crise em seu vieacutes individual familiar e social
Tambeacutem foram implantados vaacuterios serviccedilos comunitaacuterios de cuidado com o objetivo de
acompanhar os usuaacuterios preventivamente diminuindo a incidecircncia das doenccedilas mentais e a
23
necessidade de internaccedilotildees psiquiaacutetricas de modo que aos poucos o hospital se tornasse um
recurso obsoleto e desnecessaacuterio (AMARANTE 2007)
No entanto aconteceu paradoxalmente um aumento importante da demanda psiquiaacutetrica
nos EUA tanto nos serviccedilos extra hospitalares quanto nos hospitais psiquiaacutetricos ldquoos proacuteprios
serviccedilos comunitaacuterios se transformaram em grandes captadores e encaminhadores de novas
clientelas para os hospitais psiquiaacutetricosrdquo (AMARANTE 2007 51)
Assim vemos que embora tenha havido uma mudanccedila na estruturaccedilatildeo dos serviccedilos ela
natildeo eacute suficiente sem uma mudanccedila de mentalidade em relaccedilatildeo agrave loucura e aos modos de trataacute-
la Ainda que os novos dispositivos tenham sido pensados para evitar as internaccedilotildees
psiquiaacutetricas isso natildeo ocorreraacute se os profissionais continuam a pensar do mesmo modo e se natildeo
haacute um trabalho com a sociedade no sentido de questionar a exclusatildeo da loucura e inventar novas
possibilidades de convivecircncia
Nesse ponto a Antipsiquiatria e a Psiquiatria Democraacutetica Italiana se destacam das
demais propostas de reformas da psiquiatria Para a Antipsiquiatria as pessoas tidas como
loucas eram reprimidas e violentadas natildeo soacute nos hospitais mas na sociedade como um todo
Logo ldquoa experiecircncia dita patoloacutegica ocorria natildeo no indiviacuteduo na condiccedilatildeo de corpo ou mente
doente mas nas relaccedilotildees estabelecidas entre ele e a sociedaderdquo (AMARANTE 2007 35)
Assim natildeo era apenas a instituiccedilatildeo que precisava mudar tampouco o sujeito dito louco mas a
proacutepria relaccedilatildeo entre loucura e sociedade
O princiacutepio seria o de permitir que a pessoa vivenciasse a sua experiecircncia esta seria
por si soacute terapecircutica na medida em que o sintoma expressaria uma possibilidade de
reorganizaccedilatildeo interior Ao lsquoterapeutarsquo competiria auxiliar a pessoa a vivenciar e a
superar esse processo acompanhando-a protegendo-a inclusive da violecircncia da
proacutepria psiquiatria (AMARANTE 2007 54)
Quanto agrave experiecircncia italiana Franco Basaglia (1968) precursor do movimento
entendia que era preciso superar natildeo apenas o manicocircmio mas todo o aparato manicomial isto
eacute natildeo soacute a estrutura fiacutesica do hospital mas o conjunto de seus saberes e praacuteticas cientiacuteficas
sociais juriacutedicas e legislativas
Essa inflexatildeo destaca que a luta natildeo eacute contra o manicocircmio em si mas contra toda e
qualquer praacutetica manicomial Com isso Basaglia (1968) chama atenccedilatildeo para o fato de que
mesmo nos dispositivos ditos ldquonovosrdquo eacute possiacutevel haver uma reproduccedilatildeo de praacuteticas autoritaacuterias
e opressoras em relaccedilatildeo agrave loucura Vale dizer que foi esse movimento que serviu de inspiraccedilatildeo
e base para a Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira tema do nosso proacuteximo capiacutetulo
24
Inspirado na Psiquiatria Comunitaacuteria Basaglia tambeacutem criou centros regionalizados
para atender as demandas de sauacutede mental No entanto diferente desse primeiro movimento
natildeo eram dispositivos que davam continuidade ao tratamento apoacutes a alta e que reinternavam os
pacientes nos manicocircmios nos momentos de crise mas serviccedilos que constituiacuteam por excelecircncia
o modelo de tratamento em sauacutede mental rejeitando definitivamente o hospital como lugar de
tratamento
Quanto ao entendimento da loucura haacute tambeacutem nesse ponto uma ruptura
epistemoloacutegica importante com o paradigma anterior Basaglia (1968) considera que o mal
obscuro da psiquiatria foi ter colocado o sujeito entre parecircnteses e ter elegido como seu objeto
de estudo ldquoa doenccedilardquo (apud AMARANTE 2007) Assim a proposta da Psiquiatria
Democraacutetica Italiana consiste em operar uma inversatildeo colocar a doenccedila entre parecircnteses e
tomar o sujeito como o objeto da psiquiatria Importante destacar que isto natildeo significa negar a
doenccedila enquanto um estado de produccedilatildeo de dor e sofrimento mas compreender que a totalidade
do sujeito natildeo se reduz agrave ela
Com isto o objeto da Psiquiatria se desloca da ldquodoenccedila mentalrdquo para a ldquosauacutede mentalrdquo
e o mandato dessa ciecircncia deixa de ser centrado na cura do paciente para se tornar uma
preocupaccedilatildeo com a sua sauacutede e com seu bem-estar social
Assim vemos que os significados da loucura na sociedade e os modelos assistenciais
desenhados para dar conta dessa questatildeo nunca foram objetos ldquodadosrdquo historicamente mas
construccedilotildees sociais Diferentes noccedilotildees de crise e de loucura permitiram a emergecircncia de
diferentes modelos de assistecircncia Com isto podemos observar que os modos de compreensatildeo
da crise e da loucura influem nas nossas ofertas de cuidado assim como nossas ofertas de
cuidado tambeacutem dizem algo do modo como estamos pensando e compreendendo a loucura e as
intervenccedilotildees possiacuteveis em uma situaccedilatildeo de crise
12 A Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira
O movimento de Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira encontra suas origens no final da
deacutecada de 1970 no bojo dos movimentos sociais ligados agrave luta contra a ditadura e dentro de um
movimento mais amplo de reformas no setor da sauacutede Dentre esses movimentos emergentes
em 1978 surge o Movimento dos Trabalhadores da Sauacutede Mental (MTSM) que assumiu um
papel importante na criacutetica e na oposiccedilatildeo ao regime militar em especial no que concernia agraves
situaccedilotildees de violaccedilatildeo dos direitos humanos dentro dos hospitais psiquiaacutetricos Esse movimento
25
permitiu colocar em evidecircncia a violecircncia e a miseacuteria agraves quais eram submetidas as pessoas com
transtorno mental internadas nos hospitais da rede puacuteblica aleacutem de reivindicar melhorias nas
condiccedilotildees de trabalho dos profissionais de sauacutede (AMARANTE 1998)
Segundo Amarante (1998) um ponto crucial para o surgimento desse movimento foi o
que se denominou a ldquocrise da Divisatildeo Nacional de Sauacutede Mentalrdquo1 movimento de denuacutencia e
criacutetica agraves peacutessimas condiccedilotildees em que se encontravam os quatro hospitais da Divisatildeo Nacional
de Sauacutede Mental do Ministeacuterio da Sauacutede no Rio de Janeiro (Centro Psiquiaacutetrico Pedro II ndash
CPPII Hospital Pinel Colocircnia Juliano Moreira ndash CJM e Manicocircmio Judiciaacuterio Heitor
Carrilho) Essa situaccedilatildeo culminou na greve de meacutedicos e funcionaacuterios no primeiro trimestre de
1978 seguida da demissatildeo de 260 estagiaacuterios e profissionais
Na eacutepoca devido ao destaque do Rio de Janeiro como ex-capital federal e como capital
cultural do Brasil somado a gravidade dessas denuacutencias terem ocorrido dentro de um oacutergatildeo
federal constatou-se um verdadeiro escacircndalo no modo como o Estado tratava os pacientes
com transtorno mental e seus funcionaacuterios Isso permitiu com que a situaccedilatildeo atingisse
repercussatildeo nacional tanto atraveacutes da divulgaccedilatildeo na miacutedia quanto pelo debate em setores
expressivos da sociedade brasileira o que impulsionou o movimento de Reforma por todo o
paiacutes (AMARANTE 1998)
Em 1987 surge o Movimento de Luta Antimanicomial a partir do Encontro dos
Trabalhadores da Sauacutede Mental que reuniu mais de 350 trabalhadores na cidade de Bauru no
estado de Satildeo Paulo O movimento assumiu um papel importante no processo de construccedilatildeo da
Reforma Psiquiaacutetrica Brasileira contribuindo no fortalecimento e na organizaccedilatildeo dos
trabalhadores usuaacuterios e familiares em torno das pautas e reivindicaccedilotildees da aacuterea
(VASCONCELOS 2008)
Na deacutecada de 1980 haacute um fortalecimento dos movimentos reformistas Segundo
Tenoacuterio (2002) houve um amadurecimento da criacutetica ao modelo asilarsegregador e uma
contestaccedilatildeo mais forte em relaccedilatildeo agraves internaccedilotildees conveniadas
a deacutecada de 1980 assistiu ainda a trecircs processos tambeacutem importantes para a
consolidaccedilatildeo das caracteriacutesticas atuais do movimento da reforma a ampliaccedilatildeo dos
atores sociais envolvidos no processo a iniciativa de reformulaccedilatildeo legislativa e o
surgimento de experiecircncias institucionais bem-sucedidas na arquitetura de um novo
tipo de cuidado em sauacutede mental (TENOacuteRIO 2002 27)
1 Oacutergatildeo do Ministeacuterio da Sauacutede responsaacutevel pela formulaccedilatildeo das poliacuteticas de sauacutede do subsetor sauacutede mental
26
Em 1989 o deputado Paulo Delgado propotildee o projeto de lei no 365789 estabelecendo
os direitos das pessoas com transtorno mental e prevendo a extinccedilatildeo dos manicocircmios poreacutem
devido aos fortes lobbies dos proprietaacuterios de hospitais psiquiaacutetricos o projeto natildeo eacute aprovado
mas produz a ampliaccedilatildeo do debate em torno da reestruturaccedilatildeo da assistecircncia por todo o paiacutes
A intensificaccedilatildeo do debate e a popularizaccedilatildeo da causa da reforma desencadeadas pela
iniciativa de revisatildeo legislativa certamente impulsionaram os avanccedilos que a luta
alcanccedilou nos anos seguintes Pode-se dizer que a lei de reforma psiquiaacutetrica
proposta pelo deputado Paulo Delgado protagonizou a situaccedilatildeo curiosa de ser
uma lei que produziu seus efeitos antes de ser aprovada (TENOacuteRIO 2002 28
grifo nosso)
Embora a lei natildeo tenha sido aprovada nesse primeiro momento ela teve efeitos
importantes na organizaccedilatildeo e mobilizaccedilatildeo dos serviccedilos em prol da Reforma Psiquiaacutetrica A
partir de 1992 os movimentos sociais conseguem aprovar em vaacuterios estados do Brasil as
primeiras leis que determinam a substituiccedilatildeo progressiva dos leitos psiquiaacutetricos por uma rede
integrada de atenccedilatildeo agrave sauacutede mental (BRASIL 2005 8) Nesse contexto atraveacutes
PortariaSNAS nordm 2241992 surgem os Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial (CAPS) e os Nuacutecleos
de Atenccedilatildeo Psicossocial (NAPS) dois importantes dispositivos com a proposta de atuarem de
formas substitutiva ao modelo asilar
Ainda nesse ano destaca-se um outro marco na histoacuteria da Reforma Psiquiaacutetrica
Brasileira a II Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental Esta conferecircncia contou com a ampla
participaccedilatildeo dos usuaacuterios e familiares de sauacutede mental cabe ressaltar que aproximadamente
20 dos delegados da conferecircncia eram usuaacuterios dos serviccedilos de sauacutede mental ou familiares de
usuaacuterios
Segundo Tenoacuterio (2002) a conferecircncia estabelece dois marcos conceituais importantes
a atenccedilatildeo integral e a cidadania
Segundo essa referecircncia satildeo desenvolvidos o tema dos direitos e da legislaccedilatildeo e a
questatildeo do modelo e da rede de atenccedilatildeo na perspectiva da municipalizaccedilatildeo As
recomendaccedilotildees gerais sobre o modelo de atenccedilatildeo propunham a adoccedilatildeo dos conceitos
de territoacuterio e responsabilidade como forma de ruptura com o modelo
hospitalocecircntrico e de garantir o direito dos usuaacuterios agrave assistecircncia e agrave recusa ao
tratamento bem como a obrigaccedilatildeo do serviccedilo em natildeo abandonaacute-los agrave proacutepria sorte
(Ministeacuterio da Sauacutede Brasil 1994 22 apud TENOacuteRIO 2002)
Ao longo da deacutecada de 1990 a proposta da construccedilatildeo de uma rede de serviccedilos que
possibilitasse a extinccedilatildeo dos manicocircmios ganhou forccedila e houve uma expansatildeo significativa dos
serviccedilos de atenccedilatildeo diaacuteria substitutivos aos hospitalares Nesse periacuteodo entre os muitos pontos
importantes destacam-se
a penetraccedilatildeo crescente de uma nova mentalidade no campo psiquiaacutetrico (natildeo obstante
o triunfalismo da psiquiatria bioloacutegica) a permanecircncia continuada de diretrizes
27
reformistas no campo das poliacuteticas puacuteblicas com os postos de coordenaccedilatildeo e gerecircncia
ocupados por partidaacuterios da reforma (no caso do Rio de Janeiro nos trecircs niacuteveis
gestores federal estadual e municipal) a existecircncia de experiecircncias renovadoras com
resultados iniciais positivos em todas as regiotildees do paiacutes a capacidade das experiecircncias
mais antigas de manter sua vitalidade os reiterados indiacutecios de um novo olhar sobre
a loucura vicejando no espaccedilo social um olhar natildeo mais tatildeo fortemente marcado pelos
estigmas do preconceito e do medo (TENOacuteRIO 200241)
Depois de 12 anos tramitando no congresso eacute aprovado em 2001 um projeto substitutivo
da lei proposta pelo deputado Paulo Delgado a lei 10216 que sofreu muitas modificaccedilotildees no
texto original A referida lei ldquodispotildee sobre a proteccedilatildeo das pessoas com transtornos mentais e
redireciona o modelo assistencial em sauacutede mentalrdquo (BRASIL 2001) No artigo 2ordm paraacutegrafo
uacutenico estabelece que satildeo direitos da pessoa com transtorno mental
I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de sauacutede consentacircneo agraves suas
necessidades II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneficiar sua sauacutede visando alcanccedilar sua recuperaccedilatildeo pela inserccedilatildeo na famiacutelia no
trabalho e na comunidade III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e
exploraccedilatildeo IV ndash ter garantia de sigilo nas informaccedilotildees prestadas V ndash ter direito agrave
presenccedila meacutedica em qualquer tempo para esclarecer a necessidade ou natildeo de sua
hospitalizaccedilatildeo involuntaacuteria VI ndash ter livre acesso aos meios de comunicaccedilatildeo
disponiacuteveis VII ndash receber o maior nuacutemero de informaccedilotildees a respeito de sua doenccedila e
de seu tratamento VIII ndash ser tratada em ambiente terapecircutico pelos meios menos
invasivos possiacuteveis IX ndash ser tratada preferencialmente em serviccedilos comunitaacuterios de
sauacutede mental (BRASIL 2001)
A lei 10216 tambeacutem regulamenta as internaccedilotildees psquiaacutetricas e redireciona o modelo
assistencial em sauacutede
Aleacutem dos CAPS previu-se a implantaccedilatildeo de ambulatoacuterios de sauacutede mental NAPS
residecircncias terapecircuticas hospitais-dia unidades de psiquiatria em hospitais gerais
lares protegidos e centros de convivecircncia e cultura (BRASIL 2001 apud BARROSO
SILVA 2011 73)
Previram-se tambeacutem a criaccedilatildeo de oficinas de trabalho protegido unidades de
preparaccedilatildeo para a reinserccedilatildeo social dos pacientes e serviccedilos para o atendimento agraves
famiacutelias (BARROSO SILVA 201173 )
Apoacutes a aprovaccedilatildeo da lei 10216 surgiram mais duas portarias que instituiacuteam os serviccedilos
residenciais terapecircuticos (106 e 1220 ambas de 2000)
outras oito leis estaduais e diversas portarias e programas foram criados para
regulamentaccedilatildeo do atendimento psiquiaacutetrico comunitaacuterio Merecem destaque o
programa ldquoDe volta para casardquo (BRASIL 2003) e a portaria 336GM que atribui aos
CAPS o papel central na psiquiatria comunitaacuteria brasileira (DELGADO et al 2007)
(BARROSO SILVA 2011 74)
Quanto agraves mudanccedilas na assistecircncia e na superaccedilatildeo do modelo manicomial desde a
aprovaccedilatildeo da lei cabe levantar alguns dados para fins de anaacutelise Destaca-se como um avanccedilo
significativo na RPB a inversatildeo da curva do financiamento do SUS para a sauacutede mental a
partir de 2006 O valor anteriormente destinado aos hospitais psiquiaacutetricos passa a ser investido
em igual proporccedilatildeo nos serviccedilos de natureza aberta e comunitaacuteria (Graacutefico 1) o que mostra um
28
fortalecimento da rede substitutiva e um empenho na efetiva transformaccedilatildeo do modelo de
assistecircncia de acordo com as novas diretrizes da RPB (BRASIL 2015)
Cabe mencionar que os gastos em Atenccedilatildeo Comunitaacuteria Territorial incluem natildeo
somente os CAPS mas todos os serviccedilos da rede substitutiva tais como Serviccedilos Residenciais
Terapecircuticos (SRT) Centros de Convivecircncia Oficinas de geraccedilatildeo de renda aleacutem de programas
de incentivo financeiro como o Programa Volta para Casa
Quanto agrave expansatildeo dos CAPS desde a aprovaccedilatildeo da Lei 10216 dados do Ministeacuterio da
Sauacutede (2015) apontam uma expansatildeo meacutedia significativa e contiacutenua em todo o territoacuterio
nacional Desde 2002 ateacute 2014 houve um aumento de aproximadamente 150 CAPS por ano
chegando ao total de 2209 serviccedilos em 2014 nas diferentes modalidades como pode ser visto
no Graacutefico 2 (BRASIL 2015)
29
Graacutefico 2 - Seacuterie histoacuterica de expansatildeo de CAPS (2002 a 2014)
Fonte Sauacutede Mental em Dados BRASIL 2015 Elaboraccedilatildeo proacutepria
Vale ressaltar entretanto que a modalidade de CAPS tipo III (com funcionamento 24hrs
e leitos de acolhimento noturno) natildeo acompanhou esse crescimento Como podemos observar
no Quadro 1 no ano de 2014 dos 2209 CAPS existentes no paiacutes apenas 154 eram do tipo III
Considerando que 65 satildeo CAPS ad III destinados aos usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas temos
somente 85 CAPS do tipo III especificamente com capacidade de oferecer acolhimento noturno
agrave crise psicoacutetica e outros transtornos mentais graves percentual correspondente a apenas 38
do total de CAPS no paiacutes (BRASIL 2015)
Quanto a distribuiccedilatildeo dos CAPS III em 2014 verifica-se uma concentraccedilatildeo da oferta
desses serviccedilos em Satildeo Paulo e Minas Gerais que contavam com 35 e 12 unidades
respectivamente Os estados que figuraram em seguida com o maior nuacutemero de CAPS III foram
Paraiacuteba e Pernambuco com quatro serviccedilos cada um Paraacute Bahia Cearaacute Maranhatildeo Sergipe
Paranaacute e Rio de Janeiro contavam com trecircs CAPS III cada um Natildeo possuiacuteam CAPS III os
estados de Acre Amapaacute Rondocircnia Tocantins Alagoas Espiacuterito Santo Mato Grosso e o
Distrito Federal (Quadro 1)
30
31
A baixa participaccedilatildeo dos CAPS III no total de CAPS bem como a ausecircncia deste serviccedilo
em diversos estados mostra que sua proposta natildeo foi assumida pela gestatildeo municipal na escala
observada para os outros tipos de serviccedilos (COSTA et al 2011) Vale ressaltar que a
implantaccedilatildeo dos CAPS III ficou aqueacutem do esperado pelo proacuteprio MS (BRASIL 2011) o que
impacta diretamente na capacidade da RAPS acolher agrave crise em uma proposta de cuidado
substitutiva ao Hospital Psiquiaacutetrico
Em relaccedilatildeo a quantidade de leitos disponiacuteveis para a atenccedilatildeo agrave crise verificamos que haacute
uma marcada preponderacircncia dos leitos em hospitais psiquiaacutetricos em detrimento dos leitos de
sauacutede mental em hospitais gerais e em CAPS III Chama atenccedilatildeo especialmente o fato de que
a quantidade de leitos disponiacuteveis em CAPS III quando comparada ao total de leitos no cenaacuterio
nacional e local eacute praticamente nula alcanccedilando uma meacutedia de 238 e 1 2 em 2014
respectivamente
No cenaacuterio nacional segundo o Ministeacuterio da Sauacutede haviam 25988 leitos em hospitais
psiquiaacutetricos em 2014 (BRASIL 2015) Nos hospitais gerais considerando que o MS faz
distinccedilatildeo entre ldquoleitos de sauacutede mentalrdquo e de ldquopsiquiatriardquo de acordo com o CNES em 2014
haviam 4620 leitos de psiquiatria em HG pediaacutetricos e maternidades destinados ao SUS
(BRASIL 2015) No mesmo ano constam 888 leitos de sauacutede mental em hospitais gerais
conforme podemos ver no Quadro 2 resultando em uma soma de 5508 leitos disponiacuteveis para
a sauacutede mental em hospitais gerais no Brasil
Considerando que de acordo com Portaria 336 que rege o funcionamento dos CAPS
cada CAPS III deve ter no maacuteximo 5 leitos (BRASIL 2002) e que em 2014 de acordo com o
Quadro 1 constavam 154 CAPS III espalhados pelo territoacuterio nacional tomando para fins de
estimativa a capacidade maacutexima de leitos por CAPS teriacuteamos aproximadamente 770 leitos nos
CAPS III destinados a retaguarda noturna nos casos de crise Esse percentual correspondente
a apenas 2 38 do total de leitos o que significa que aproximadamente 8055 dos leitos estatildeo
nos hospitais psiquiaacutetricos
No municiacutepio do Rio de Janeiro de acordo com o Quadro 3 dos 1572 leitos
psiquiaacutetricos existentes 1504 se localizam em hospitais psiquiaacutetricos representando 975
do total de leitos Apenas 31 (49 leitos) se localizam em hospitais gerais e 1 2 (19) nos
CAPS III (BRASIL 2015)
32
Fonte Sauacutede Mental em Dados Brasil (2015)
Quadro 3- Leitos psiquiaacutetricos hospitalares e em Centros de Atenccedilatildeo Psicossocial tipo
IIIndashSecretaria Municipal de Sauacutede do Rio de Janeirondashsetembro de 2015
FonteCNESMinisteacuterio da Sauacutede setembro de 2015
Localizaccedilatildeo
dos Leitos
Quantidade Porcentagem
Hospital
Psiquiaacutetrico
1504 957
Hospitais
Gerais
49 31
CAPS III 19 12
Total 1572 100
33
Desse modo embora tenhamos conquistado alguns avanccedilos significativos no processo
de reestruturaccedilatildeo da assistecircncia em sauacutede mental ao longo dos uacuteltimos 30 anos destaca-se a
reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do nuacutemero de
CAPS a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na atenccedilatildeo
comunitaacuteria e territorial etc na praacutetica os hospitais psiquiaacutetricos continuam ocupando um
lugar central na assistecircncia agrave crise constituindo-se muitas vezes na porta de entrada do usuaacuterio
ao sistema de sauacutede
Assim o cenaacuterio atual eacute marcado pela expansatildeo dos serviccedilos substitutivos mas tambeacutem
pela permanecircncia do hospitais psiquiaacutetricos e dispositivos tradicionais determinando a
coexistecircncia de dois modelos de cuidado opostos e mutuamente excludentes o tradicional
modelo asilar e o modelo substitutivo de modo que a RAPS no momento se caracteriza muito
mais por ser complementar do que substitutiva ao modelo asilar como era de se esperar
Logo os manicocircmios natildeo apenas resistem como insistem e se queremos
desinstitucionalizar e acolher a crise no territoacuterio eacute imprescindiacutevel perguntar ao que a
institucionalizaccedilatildeo de um paciente estaacute respondendo Qual eacute o problema que ela coloca Como
desmontar a soluccedilatildeo institucional (a internaccedilatildeo) e reconstruir o problema sobre outras bases
Importante dizer que construir novos arranjos para lidar com a crise natildeo se trata apenas
de aumentar a capacidade de resolutividade dos serviccedilos Eacute preciso ampliar o cuidado para
atender a crise de forma integral Isso significa fazer articulaccedilotildees com o que haacute de produccedilatildeo de
vida tambeacutem fora do espaccedilo dos serviccedilos isto eacute na vida na comunidade na cidade Persiste
desse modo o desafio de romper natildeo soacute com o manicocircmio mas com toda loacutegica e praacutetica de
segregaccedilatildeo da loucura
34
20 A ATENCcedilAtildeO Agrave CRISE EM SAUacuteDE MENTAL
21 Reflexotildees sobre a crise e o cuidado
Segundo Moebus e Fernandes (sd) a palavra crise em sua origem grega (krisis ou
Kriacutenein) significa um estado no qual uma decisatildeo tem que ser tomada Esse termo era usado
pelos meacutedicos da antiguidade grega no intuito de se referir a um ponto na evoluccedilatildeo da doenccedila
do paciente no qual ele tanto poderia apresentar uma melhora em direccedilatildeo agrave cura ou piora em
direccedilatildeo agrave morte A ideia de crise portanto aproximava-se nesse contexto agrave noccedilatildeo de um
momento criacutetico decisivo cujo desfecho poderia ser tanto positivo quanto negativo
Jaacute a origem sacircnscrita da palavra eacute kri ou kir que significa ldquodesembaraccedilarrdquo ou purificar
Compartilhando desse mesmo sentido podemos destacar a palavra ldquocrisolrdquo que significa
ldquoelemento quiacutemico que purifica o ouro das gangas limpando-o dos elementos que se fixaram
no metal pelo seu processo vital ou histoacuterico e ao longo do tempo tomaram conta de seu cerne
a ponto de comprometerem sua substacircncia em sirdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN
200732) Crise nessa acepccedilatildeo carrega um teor de transformaccedilatildeo e purificaccedilatildeo em que a
substacircncia pode alcanccedilar sua verdadeira essecircncia
Destaca-se nessas significaccedilotildees originaacuterias da palavra elementos que trazem a ideia de
crise associada agrave um desequiliacutebrio transitoacuterio a um processo de mudanccedila transformaccedilatildeo com
possibilidade de evoluir de maneira positiva Eacute um momento de descontinuidade e perturbaccedilatildeo
da normalidade da vida em algo que eacute deixado para traacutes poreacutem ao mesmo tempo por isso
mesmo abre-se uma nova possibilidade de ser e estar no mundo
Outros autores de orientaccedilatildeo psicanaliacutetica relacionam o conceito de crise ao conceito de
trauma que para Freud diz respeito ldquoa uma vivecircncia que traz um grande aumento da excitaccedilatildeo
da vida psiacutequica em um curto espaccedilo de tempo tendo por caracteriacutestica o fracasso de sua
liquidaccedilatildeo por meios habituaisrdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Nesse mesmo sentido segundo Laplanche e Pontalis (1986 768) ldquoo trauma consiste
em um acontecimento da crise que se define pela sua intensidade pela incapacidade em que se
acha o indiviacuteduo de lhe responder de forma adequada pelo transtorno e pelos efeitos
patogecircnicos que provoca na organizaccedilatildeo psiacutequicardquo
Haacute nessas definiccedilotildees algo da ordem de um excesso que rompe com o estado de
equiliacutebrio que o indiviacuteduo se encontra e transborda lanccedilando-o em direccedilatildeo a algo estranho e
desconhecido Essa ruptura eacute vivenciada pelo sujeito como algo assustador ao qual ele natildeo
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encontra recursos psiacutequicos para responder ou mesmo para atribuir qualquer tipo de
significaccedilatildeo As soluccedilotildees que o sujeito costumeiramente encontrava para lidar com seu
sofrimento de alguma forma natildeo satildeo mais suficientes daiacute resultando entatildeo seu estado de
anguacutestia
Knobloch (1998) estudiosa de Ferenczi designa a crise como uma ldquoexperiecircncia limite
natildeo por ser uma experiecircncia que desafia o limite mas por extravasar o delimitado ldquoEacute uma
experiecircncia que traz um excesso excesso do que eacute insuportaacutevel e intoleraacutevel Ruptura em que
se redistribuem de uma maneira brutal as condiccedilotildees da realidade rdquo (apud FERIGATO
CAMPOS BALLARIN 2007 35)
Para Birman (1983) a pessoa em crise encontra-se em um estado mental no qual ldquoa
anguacutestia provocada pelo que nos escapa eacute tatildeo importante que ficamos com o sentimento de que
a nossa proacutepria vida estaacute escapando uma experiecircncia de perda de seus sistemas de referecircncia
isto eacute a ameaccedila de perda da proacutepria identidaderdquo (apud FERIGATO CAMPOS BALLARIN
2007 35)
Se por um lado haacute a forccedila de um questionamento das convicccedilotildees mais fundamentais de
um indiviacuteduo por outro haacute tambeacutem uma abertura um espaccedilo para a criaccedilatildeo de algo novo de
outros arranjos e possibilidades de organizaccedilatildeo psiacutequica Embora essa vivecircncia seja marcada
por uma extrema sensaccedilatildeo de anguacutestia invasatildeo e sofrimento podemos apontar tambeacutem sua
potecircncia em produzir um desvio em caracterizar a saiacuteda de um lugar historicamente dado para
outro a ser construiacutedo exigindo outras ligaccedilotildees ateacute entatildeo inexistentes (FERIGATO CAMPOS
BALLARIN 2007)
Podemos ver a crise como um acontecimento extremo poreacutem muitas vezes necessaacuterio
na vida de um sujeito Eacute um momento que marca uma diferenccedila a partir da qual natildeo eacute mais
possiacutevel se viver do modo em que se estava vivendo anteriormente Eacute preciso reelaborar a
experiecircncia para habitar outro territoacuterio existencial
No entanto na histoacuteria da Psiquiatria especialmente na Psiquiatria claacutessica-asilar e
hospitalocecircntrica o sentido de crise perdeu sua dimensatildeo de renovaccedilatildeo O que rompe com a
organizaccedilatildeo e com o equiliacutebrio de um indiviacuteduo foi automaticamente entendido como algo
destrutivo que coloca o sujeito em um lugar de exclusatildeo social
A crise e toda a complexidade ligada ao sofrimento de um sujeito foi reduzida agrave
ldquoagudizaccedilatildeo da sintomatologia psiquiaacutetricardquo isto eacute a gama de sinais e sintomas (deliacuterios
alucinaccedilotildees agitaccedilatildeo psicomotora etc) caracteriacutesticos de uma determinada doenccedila Nesse
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sentido o objetivo da intervenccedilatildeo dos psiquiatras era garantir a remissatildeo completa dos
sintomas em curto periacuteodo de tempo para que o sujeito pudesse voltar a seu estado de
ldquonormalidaderdquo (FERIGATO CAMPOS BALLARIN 2007) desconsiderando desse modo as
vivecircncias e situaccedilotildees que possivelmente contribuiacuteram para a eclosatildeo da situaccedilatildeo de crise em
que o sujeito se encontra
Nessa perspectiva a crise eacute entendida como um momento isolado da vida do sujeito
que nada tem a ver com sua histoacuteria com suas relaccedilotildees ou seu contexto soacutecio-afetivo Por isso
o cuidado possiacutevel tem como direccedilatildeo a estabilizaccedilatildeo dos sintomas isto eacute o silenciamento
daquilo que aparece como socialmente inapropriado ou inadequado na conduta do sujeito
Assim a medicaccedilatildeo a contenccedilatildeo fiacutesica e a internaccedilatildeo aparecem como os principais recursos
terapecircuticos aplacando a intensidade do momento fazendo um corte na experiecircncia de
sofrimento do sujeito para que apoacutes algum tempo ele volte naturalmente ao seu estado de
ldquonormalidaderdquo
Tecnologias de cuidado com base na classificaccedilatildeo de distuacuterbios e homogeneizaccedilatildeo de
grupos de problemas tambeacutem satildeo utilizadas com o intuito de preacute-estabelecer condutas e
respostas padratildeo para toda e qualquer situaccedilatildeo de crise que possa vir a emergir Segundo
Dell`Acqua e Mezzina (1991) o serviccedilo passa a responder agrave crise atraveacutes do seu proacuteprio
sintoma Assim toda a complexidade da existecircncia de sofrimento de um sujeito reduz-se a um
mero sinal caracteriacutestico da crise
Ao longo da histoacuteria da Psiquiatria a crise sempre foi vista como uma crise do paciente
Conforme vimos no capiacutetulo anterior Pinel apostava em uma proposta terapecircutica de
confinamento da loucura em um ambiente controlado para que os alienistas pudessem
recuperar e ldquocorrigirrdquo os erros de pensamento que incidiam sobre as pessoas em situaccedilatildeo de
crise O tratamento natildeo visava agir diretamente nas questotildees sociais e afetivas que tinham
relaccedilatildeo com a experiecircncia de sofrimento vivenciada pelo sujeito mas pretendia isolar o sujeito
para entatildeo ldquoconsertaacute-lordquo em uma clara perspectiva de que o problema estava no sujeito
Com o advento da Psicanaacutelise vemos uma inversatildeo dessa loacutegica Para Freud o deliacuterio
eacute uma tentativa de cura que visa dar sentido a uma experiecircncia psiacutequica de sofrimento Sendo
assim ldquonatildeo haacute o que ser corrigido haacute o que ser escutado Haacute o que ser recuperado Haacute o que
ser construiacutedordquo (CORBISIER 1991 10)
Com Pinel aqueles que se encontravam desviados de sua verdadeira razatildeo deviam ser
conduzidos novamente agrave realidade atraveacutes da correccedilatildeo dos sentimentos comportamentos e
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pensamentos equivocados Com Freud o deliacuterio eacute entendido como uma forma do sujeito
construir um sentido para uma experiecircncia perturbadora (como por exemplo ouvir vozes ver
coisas que natildeo existem etc) que lhe causa sofrimento Assim o problema natildeo estaacute no sujeito
nem no deliacuterio nem nos sintomas mas no modo como ele consegue ou natildeo atribuir sentido ao
que vivencia
Atribuindo um sentido (ainda que delirante) a vivecircncias que satildeo perturbadoras o sujeito
pode ressignificar sua relaccedilatildeo com o mundo e encontrar modos menos angustiantes de estar na
vida Natildeo eacute necessaacuterio portanto ldquoadequarrdquo o pensamento de um sujeito agrave realidade O deliacuterio
pode ele mesmo ser um ponto de estabilizaccedilatildeo na medida que oferece alguma possibilidade de
inserir novamente o sujeito no campo do simboacutelico isto eacute de refazer as conexotildees perdidas na
situaccedilatildeo de crise Se a crise eacute marcada por uma ruptura a possibilidade de construccedilatildeo de um
deliacuterio pode ser justamente aquilo que reconecta o sujeito ao mundo que lhe cerca
Assim eacute preciso escutar as diferenccedilas e tratar do sofrimento que ela pode vir a ocasionar
sem no entanto aboli-las A Psicanaacutelise traz em sua aposta na escuta a possibilidade de
recuperar as diferenccedilas Atraveacutes da fala o sujeito vai contando sua histoacuteria e resgatando aquilo
que lhe pertence que lhe eacute peculiar e o que o constitui Essa experiecircncia permite estabelecer
um corte com as tentativas homogeneizantes da Psiquiatria Claacutessica de lidar com a loucura A
aposta na fala permite ao sujeito construir novos sentidos para o seu sofrimento e perceber que
a presenccedila de um outro que o escute pode produzir algum aliacutevio para sua dor
Embora possamos agrupar sinais e sintomas comuns a psicose (deliacuterio alucinaccedilatildeo
dificuldade em construir laccedilo social etc) cada sujeito vai imprimir em seu sintoma a sua marca
Assim cada loucura eacute singular pois cada um delira de um jeito cada um faz laccedilo social de um
jeito etc Na sintomatologia de um sujeito vamos encontrar elementos que pertencem a sua
cultura agrave sua histoacuteria pessoal e aos seus prazeres e desprazeres em torno da vida Logo as
intervenccedilotildees vatildeo ser diferentes a depender daquilo que o sujeito traz
Nesse ponto vale fazer uma distinccedilatildeo entre emergecircncia psiquiaacutetrica e urgecircncia
subjetiva A emergecircncia psiquiaacutetrica se refere a emergecircncia do sintoma Logo o alvo de sua
intervenccedilatildeo eacute o corpo bioloacutegico O caos de sentimentos e de pensamentos supostamente sem
sentido que emergem na crise psicoacutetica devem ser suprimidos atraveacutes da medicaccedilatildeo restituindo
o corpo ao estado que se encontrava anteriormente (BARRETO 2004)
No afatilde de se estabilizar o sujeito suprimindo seu sintoma natildeo haacute tempo para pensar o
que se coloca em questatildeo em uma crise psicoacutetica Natildeo haacute espaccedilo para direcionar um olhar para
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o sujeito que estaacute inserido naquela situaccedilatildeo emergencial e ver o que nela haacute de singular pois
ldquohaacute coisas para fazer O clinico seleciona coisas para fazer e simplifica a situaccedilatildeordquo (BARRETO
2004 2) a fim de devolver o sujeito ao seu estado de normalidade
A partir da referecircncia da Psicanaacutelise a urgecircncia subjetiva eacute entendida como a urgecircncia
do sujeito que estaacute em crise logo abrange o sintoma mas natildeo se reduz a ele Barreto (2004)
aponta que na crise psicoacutetica acontece uma ruptura com a cadeia de significantes de modo que
a manifestaccedilatildeo dos sintomas que se seguem ao momento de crise expressa uma
ldquoimpossibilidade de significar minimamente pela fala um gozo que natildeo encontra o significante
necessaacuterio para transformaacute-lordquo (BARRETO 2004 1)
A urgecircncia subjetiva se refere portanto ao que haacute de singular em cada crise no
sofrimento do sujeito que se constitui enquanto demanda para um outro Nesse sentido ela
aponta para a necessidade de uma intervenccedilatildeo que natildeo pode ser adiada dada a gravidade em
que se encontra o sujeito poreacutem eacute o avesso da contenccedilatildeo do sintoma pois se utiliza da urgecircncia
que o sujeito coloca para construir a partir dela alguma outra resposta possiacutevel a ser fabricada
no caso a caso
Assim reintroduzir a dimensatildeo subjetiva no sujeito eacute a proposta da Psicanaacutelise
(SELDES 2004)
A psiquiatria apresenta uma resposta para o sujeito atraveacutes de uma nomenclatura
diagnoacutestica oriunda dos manuais de classificaccedilatildeo no vieacutes de uma certeza do Outro o
grande outro da ciecircncia A psicanaacutelise aponta sua resposta ao sujeito quando diz um
sim a sua descoberta sim a sua soluccedilatildeo delirante sim a qualquer possibilidade em
que o sujeito possa se agarrar e retomar minimante seu discurso e o seu laccedilo social O
psicanalista natildeo deteacutem o saber o saber eacute do sujeito (SILVA J 2011 44)
Acolher a crise nessa perspectiva natildeo eacute abordar o paciente que chega aos serviccedilos de
emergecircncia em sauacutede mental procurando encontrar onde estaacute a integridade do sujeito dentro da
crise isto eacute natildeo se trata de fazer uma separaccedilatildeo entre o sujeito e sua loucura para entatildeo extrair-
lhe lsquoa peacuterola que seria a razatildeordquo2 mas sim ouvir o que ali dentro da loucura se coloca enquanto
sujeito
Nesse sentido quando acolhemos um usuaacuterio em crise o que a experiecircncia de crise de
um sujeito pode colocar de questatildeo sobre sua histoacuteria sua vida seu cotidiano Nossa
2 Referecircncia ao livro O Alienista de Machado de Assis especificamente ao seguinte trecho ldquosuponho o espiacuterito
humano uma vasta concha o meu fim Sr Soares eacute ver se posso extrair a peacuterola que eacute a razatildeo por outros
termos demarquemos definitivamente os limites da razatildeo e da loucura A razatildeo eacute o perfeito equiliacutebrio de todas
as faculdades fora daiacute insacircnia insacircnia e soacute insacircniardquo (ASSIS 1882 261)
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intervenccedilatildeo tem contribuiacutedo para oferecer novas possibilidades de vida a esses sujeitos ou
estamos somente silenciando sintomas
Entendemos que o modo como os profissionais compreendem a crise influencia
significativamente a produccedilatildeo de cuidado Concepccedilotildees de crise centradas nos aspectos
puramente sintomaacuteticos desencadearatildeo intervenccedilotildees no sentido de suprimir o mais
rapidamente possiacutevel os sintomas Ao passo que concepccedilotildees de crise mais abrangentes tem mais
possibilidade de remeter ao sujeito o que essa crise coloca como questatildeo na sua vida e quais
satildeo as possibilidades outras de manejo para esses conflitos Logo uma concepccedilatildeo ampla de
crise (que considere os aspectos sociais afetivos e subjetivos) pode oferecer ao sujeito a
possibilidade de se recolocar em relaccedilatildeo ao seu sintoma e encontrar outros caminhos para lidar
com seu sofrimento
22 O Acolhimento agrave Crise e a Organizaccedilatildeo do SUS
No capiacutetulo anterior vimos como diferentes formas de compreender a loucura ao longo
da histoacuteria produziram impactos nos modos de intervir e lidar com a crise Intervenccedilotildees
baseadas na autoridade no poder na disciplina e no confinamento remetem agrave loucura enquanto
iacutendice de uma anormalidade e falam de uma concepccedilatildeo de ldquocuidadordquo que visa ldquoconsertarrdquo os
sujeitos atraveacutes da correccedilatildeo de seus comportamentos e sentimentos supostamente inadequados
Por outro lado intervenccedilotildees com base no acolhimento na construccedilatildeo de sentidos e na
contextualizaccedilatildeo dos conflitos do sujeito falam de uma concepccedilatildeo de crise que valoriza o
sujeito e sua histoacuteria e o entende como parte de um mundo que o afeta e o transforma
Assim se olhar para as praacuteticas de cuidado pode lanccedilar luz sobre as concepccedilotildees de
loucura presentes na sauacutede mental quando olhamos para o modo como a rede se organiza e se
estrutura para acolher a crise sobre que concepccedilotildees de crise ela nos fala Que sentidos de crise
estatildeo presentes no modo como o SUS foi idealizado e preconizado pelas poliacuteticas puacuteblicas de
sauacutede E que sentidos de crise emergem quando observamos o modo como os usuaacuterios e
trabalhadores efetivamente usam e vivenciam o SUS em cotidiano Como as poliacuteticas de sauacutede
pensam a crise E que questotildees a crise traz agraves poliacuteticas de sauacutede Quais satildeo seus
distanciamentos e aproximaccedilotildees
Tradicionalmente muitos autores tecircm se utilizado da imagem de uma piracircmide para
ldquorepresentar o modelo tecno-assistencial que gostariacuteamos de construir com a implantaccedilatildeo plena
do SUSrdquo (CECIacuteLIO 1997470) Na ampla base da piracircmide estariam dispostos os serviccedilos de
baixa complexidade como as cliacutenicas da famiacutelia que oferecem atendimento para populaccedilatildeo de
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sua aacuterea de abrangecircncia dentro das atribuiccedilotildees estabelecidas para o niacutevel de atenccedilatildeo primaacuteria
constituindo-se na porta de entrada privilegiada para os niacuteveis de maior complexidade do
sistema de sauacutede Na parte intermediaacuteria estariam localizados os serviccedilos da atenccedilatildeo
secundaacuteria que satildeo ldquobasicamente os serviccedilos ambulatoriais com suas especialidades cliacutenicas e
ciruacutergicas o conjunto de serviccedilos de apoio diagnoacutestico e terapecircutico alguns serviccedilos de
atendimento a urgecircncia e emergecircncia e os hospitais gerais normalmente pensados como sendo
hospitais distritaisrdquo (CECIacuteLIO 1997 470) No topo da piracircmide encontramos por fim os
serviccedilos mais complexos como os grandes hospitais de caraacuteter regional estadual ou ateacute mesmo
nacional
O objetivo deste modelo eacute estabelecer um fluxo ordenado de pacientes atraveacutes de
mecanismos de referecircncia e contra referecircncia que regulam o acesso entre os niacuteveis de atenccedilatildeo
em sauacutede tanto de cima para baixo quanto de baixo para cima na piracircmide Dessa forma para
cada necessidade de sauacutede a pessoa eacute encaminhada para o niacutevel de complexidade adequado
evitando sobrecarregar os hospitais e ambulatoacuterios com demandas de baixa complexidade e ao
mesmo tempo trabalhando na atenccedilatildeo baacutesica com estrateacutegias de prevenccedilatildeo e promoccedilatildeo da
sauacutede evitando o agravo de doenccedilas que se natildeo tratadas podem demandar intervenccedilotildees
meacutedicas mais complexas
No entanto no dia a dia do SUS a realidade tem se mostrado bem distante desse modelo
idealizado Como aponta Ceciacutelio (1997 471) ldquoa piracircmide a despeito da justeza dos princiacutepios
que representa tem sido muito mais um desejo dos teacutecnicos e gerentes do sistema do que uma
realidade com a qual a populaccedilatildeo usuaacuteria possa contarrdquo
Na praacutetica a populaccedilatildeo burla o tempo inteiro os fluxos da regulaccedilatildeo formal Buscam
ajuda onde acreditam que vatildeo encontraacute-la tentando acessar o sistema por onde eacute mais faacutecil ou
muitas vezes por onde eacute mais possiacutevel Na tentativa de resolver seus problemas percorrem
vaacuterias unidades de sauacutede diferentes ateacute conseguirem o que desejam um remeacutedio uma consulta
um encaminhamento uma indicaccedilatildeo de internaccedilatildeo Natildeo raro falsificam o comprovante de
residecircncia ou usam o de outra pessoa visando conseguir atendimento em uma unidade mais
proacutexima ou mais bem equipada Do mesmo modo questionam o tratamento chegando a ter em
alguns casos dois meacutedicos e dois tratamentos diferentes para uma mesma questatildeo de sauacutede sem
que um meacutedico saiba da existecircncia do outro
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Haacute quem pense que todo o problema satildeo os usuaacuterios que ldquobagunccedilamrdquo o sistema natildeo
seguem os fluxos estabelecidos pois natildeo conhecem o funcionamento do sistema e buscam
atendimento em locais inapropriados por ignoracircncia ou maacute-feacute
Ceciacutelio (1997) expotildee esse problema ao trazer a tensatildeo existente entre o que denomina o
ldquousuaacuterio-fabricadordquo e o ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo Segundo o autor o usuaacuterio-fabricado seria o
ldquousuaacuterio idealrdquo normatizado pelas estrateacutegias da Medicina Preventiva que atraveacutes de uma
perspectiva individualista de ldquohaacutebitos saudaacuteveisrdquo pretende ldquofabricarrdquo sujeitos esclarecidos e
por isso menos dependentes do sistema de sauacutede Trata-se entatildeo de produzir um usuaacuterio
disciplinado educado que segue as orientaccedilotildees meacutedicas e leva uma vida saudaacutevel e regrada
O ldquousuaacuterio-fabricadorrdquo por sua vez eacute aquele que natildeo necessariamente segue as
indicaccedilotildees meacutedicas mas batalha por sua conta e risco para conseguir o acesso agrave tecnologia de
cuidado que supotildee que precisa no dispositivo de sauacutede que julga ser o mais adequado tendo
como perspectiva sua experiecircncia com a doenccedila suas crenccedilas e desejos pessoais Assim o
tempo todo ele transgride agraves regras quebra os fluxos testa e contesta o sistema produzindo agrave
sua maneira seu caminho dentro do SUS Como destaca Ceciacutelio (1997) ldquoo usuaacuterio-fabricador
com sua accedilatildeo concreta e protagonismo com suas buscas e com seus ousados experimentos de
tentativas e erros vai produzindo circuitos opccedilotildees caminhos que soacute em parte correspondem agrave
normalizaccedilatildeo oficial do sistemardquo (ibidem 288)
Contra a perspectiva de um sistema de sauacutede ideal e racionalizado o usuaacuterio-fabricador
eacute aquele que usa o SUS real e por isso encontra suas falhas e furos propondo soluccedilotildees agrave sua
maneira atraveacutes de sua experiecircncia no sistema ldquoDaiacute a ser uma prepotecircncia tecnocraacutetica dizer
que o povatildeo eacute deseducado que vai ao pronto-socorro quando poderia estar indo ao centro de
sauacutede As pessoas acessam o sistema por onde eacute mais faacutecil ou possiacutevelrdquo (CECILIO1997 472)
E porque natildeo incluir esse saber leigo do usuaacuterio nas estrateacutegias de planejamento e
organizaccedilatildeo do cuidado em sauacutede Por que natildeo ouvir o que esses usuaacuterios tecircm a nos dizer e
incorporaacute-los como parceiros na construccedilatildeo de um SUS possiacutevel natildeo aquele idealizado mas
um que faccedila mais sentido na perspectiva de quem de fato o utiliza
Precisamos considerar que o SUS eacute feito de pessoais reais usuaacuterios trabalhadores
meacutedicos enfermeiros psicoacutelogos que ao se moverem de acordo com suas eacuteticas profissionais
seus saberes experiecircncias esperanccedilas e desejos imprimem novos significados agrave um sistema
que estaacute em permanente construccedilatildeo Esses atores ldquoproduzem inventam resistem e configuram
um cuidado que afinal nunca eacute como noacutes (gestores sanitaristas pensadores formuladores)
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teimamos em querer normalizar formatar produzir agrave nossa imagem e semelhanccedilardquo (CECIacuteLIO
2012287)
Assim como os usuaacuterios os trabalhadores de sauacutede no encontro com as necessidades
reais de seus pacientes e com as barreiras de acesso do sistema tambeacutem burlam a regulaccedilatildeo
formal muitas vezes se utilizando de seus contatos pessoais relaccedilotildees de conhecimento e
confianccedila para produzir fluxos que possam garantir a continuidade do cuidado oferecido
especialmente nos casos difiacuteceis em que a complexidade dos pacientes natildeo se encaixa na
caixinha de cuidados formalmente oferecida pelo SUS
Quando falamos de um usuaacuterio em crise precisamos pensar que a caixinha de cuidados
padratildeo frequentemente natildeo vai dar conta da complexidade colocada em uma crise psicoacutetica
Muitas vezes a razatildeo pela qual um usuaacuterio vai parar na emergecircncia ou no hospital psiquiaacutetrico
eacute justamente porque os recursos que ele dispotildee para lidar com seu sofrimento natildeo foram mais
capazes de sustentar uma estabilizaccedilatildeo Daiacute a necessidade de podermos pensar outros recursos
outras regulaccedilotildees outros dispositivos
Um usuaacuterio em crise eacute por excelecircncia um usuaacuterio-fabricador As soluccedilotildees que ele vai
engendrar para seu sofrimento vatildeo exceder em muito os limites de um sistema de sauacutede
organizado sob a figura de uma piracircmide em niacuteveis crescentes de complexidade Quando esse
usuaacuterio consegue pedir ajuda ele o faraacute sob a sua loacutegica a partir da suas expectativas e
singularidades Ele pode ir na cliacutenica da famiacutelia no hospital na emergecircncia na poliacutecia na casa
da vizinha na Igreja na escola onde achar possiacutevel obter a ajuda que precisa ainda que suas
escolhas sejam um tanto inusitadas Do mesmo modo quando um usuaacuterio entra em crise isso
tambeacutem pode acontecer em qualquer ponto do sistema e noacutes enquanto profissionais precisamos
ser capazes de oferecer algum suporte a esse sujeito onde ele estiver e na hora em que precisa
da ajuda
A crise natildeo espera o nosso tempo o tempo do encaminhamento do acolhimento-
triagem da discussatildeo de caso do contato com o profissional de referecircncia ela acontece quando
se menos espera e por isso eacute importante que natildeo soacute o dispositivo de referecircncia esteja preparado
para acolhecirc-la mas que todas as portas de entrada do sistema estejam qualificadas enquanto
espaccedilos privilegiados para o acolhimento e reconhecimento das necessidades dos usuaacuterios
Eacute nesse sentido que Ceciacutelio (1997) propotildee uma mudanccedila na imagem de representaccedilatildeo
do modelo de sauacutede da piracircmide ao ciacuterculo Pensar o sistema de sauacutede enquanto ciacuterculo natildeo
significa abandonar os ideais da Reforma Sanitaacuteria no que diz respeito a um comprometimento
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com a equidade o atendimento universal integral e de boa qualidade mas ao contraacuterio tomar
esses princiacutepios na sua radicalidade e pensaacute-los sob a luz das necessidades reais das pessoas e
do uso que fazem do sistema O formato do ciacuterculo reforccedila um valor essencial do SUS a
integralidade Apostar na imagem do ciacuterculo significa pensar o sistema de sauacutede menos
enquanto um fluxo hierarquizado de pessoas e mais enquanto uma rede em que todos os pontos
satildeo uma porta de acesso qualificada e possiacutevel para o usuaacuterio
Segundo Ceciacutelio (1997 475) ldquo O ciacuterculo se associa com a ideacuteia de movimento de
muacuteltiplas alternativas de entrada e saiacuteda Ele natildeo hierarquiza Abre possibilidadesrdquo Trata-se
de relativizar a hierarquizaccedilatildeo dos serviccedilos abrindo espaccedilo para que o acolhimento possa se
dar onde o paciente solicita ajuda Natildeo estamos negando com isso a especificidade e a missatildeo
diferenciada de cada serviccedilo mas tentando produzir uma rede menos fragmentada e mais
proacutexima da realidade dos usuaacuterios
A loacutegica horizontal dos vaacuterios serviccedilos de sauacutede colocados na superfiacutecie plana do
ciacuterculo eacute mais coerente com a ideacuteia de que todo e qualquer serviccedilo de sauacutede eacute espaccedilo
de alta densidade tecnoloacutegica que deve ser colocada a serviccedilo da vida dos cidadatildeos
Por esta concepccedilatildeo o que importa mais eacute a garantia de acesso ao serviccedilo adequado agrave
tecnologia adequada no momento apropriado e como responsabilidade intransferiacutevel
do sistema de sauacutede Trabalhando assim o centro das nossas preocupaccedilotildees eacute o usuaacuterio
e natildeo a construccedilatildeo de modelos assistenciais aprioriacutesticos aparentemente capazes de
introduzir uma racionalidade que se supotildee ser a melhor para as pessoas
(CECIacuteLIO1997 477)
Eacute importante ressaltar que defender o sistema de sauacutede enquanto um ciacuterculo natildeo se
limita agrave uma mera inflexatildeo teoacuterica mas a possibilidade de garantir que a integralidade seja uma
missatildeo colocada para todos os serviccedilos de sauacutede e natildeo para cada paciente individualmente em
sua peregrinaccedilatildeo pelos dispositivos de sauacutede Nesse sentido trata-se de apostar na continuidade
da linha de cuidado trabalhando para que o paciente tenha acesso agrave assistecircncia por onde ele
chega do modo como chega
Isso significa deslocar um pouco a ideia de referecircncia Ainda que o CAPS seja o serviccedilo
com maior possibilidade e capacidade de atender uma crise psicoacutetica todos os serviccedilos devem
ser capazes de oferecer algum acolhimento agrave crise Se em uma crise psicoacutetica o que estaacute
colocado eacute a fragmentaccedilatildeo do sujeito natildeo eacute possiacutevel que ele consiga se reestruturar em um
sistema igualmente fragmentado
No encontro do usuaacuterio com a equipe o que deve nortear a produccedilatildeo do cuidado eacute a
escuta das necessidades de sauacutede da pessoa que busca o serviccedilo Ainda que o serviccedilo em questatildeo
seja apenas um serviccedilo de passagem na linha de cuidado do usuaacuterio ter o compromisso e a
preocupaccedilatildeo de se fazer sempre a melhor escuta e a melhor devolutiva possiacutevel pode fazer toda
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a diferenccedila no acolhimento de um sujeito e na continuidade de sua linha de cuidado O essencial
nesse contexto eacute que o encaminhamento natildeo seja meramente uma transferecircncia de
responsabilidade sem que nada tenha sido construiacutedo no caminho
Escutar nesse sentido natildeo se iguala a atender todas as possiacuteveis demandas que traz o
usuaacuterio A demanda eacute o pedido expliacutecito mas as necessidades podem ser bem outras A
demanda pode ser por internaccedilatildeo pela troca de medicamento pela troca do profissional de
referecircncia etc Pode ir dos pedidos mais pragmaacuteticos aos mais delirantes mas nem sempre o
que o usuaacuterio formula enquanto demanda eacute o que ele quer nos pedir
Eacute preciso estar atento tambeacutem para o que pode estar incluiacutedo no seu pedido elementos
como o viacutenculo com a equipe suas relaccedilotildees pessoais o modo como lida com seus sentimentos
sua condiccedilatildeo de vida suas expectativas e sonhos etc Cabe a equipe conhecer o usuaacuterio e ter a
sensibilidade de buscar compreender o que estaacute para aleacutem do pedido expliacutecito ajudando-o a
construir uma saiacuteda possiacutevel para seu sofrimento
Assim a integralidade da atenccedilatildeo no espaccedilo singular de cada serviccedilo de sauacutede
poderia ser definida como o esforccedilo da equipe de sauacutede de traduzir e atender da
melhor forma possiacutevel tais necessidades sempre complexas mas principalmente
tendo que ser captadas em sua expressatildeo individual () Cada atendimento de cada
profissional deve estar compromissado com a maior integralidade possiacutevel sempre
mas tambeacutem ser realizado na perspectiva de que a integralidade pretendida soacute seraacute
alcanccedilada como fruto do trabalho solidaacuterio da equipe de sauacutede com seus muacuteltiplos
saberes e praacuteticas Maior integralidade possiacutevel na abordagem de cada profissional
maior integralidade possiacutevel como fruto de um trabalho multiprofissional (CECIacuteLIO
2009 120 121)
A integralidade nesse sentido eacute mais do que cada serviccedilo fazendo sua parte eacute mais do
que o modelo da piracircmide pode oferecer A imagem da piracircmide faz pensar os serviccedilos mais
complexos como lugares de ldquofinalizaccedilatildeo do cuidadordquo da ldquouacuteltima palavrardquo na cliacutenica do sujeito
de ldquoatendimento de demandas pontuais superespecializadas especiacuteficas e por isso mesmo
descompromissados com a integralidaderdquo (CECIacuteLIO 2009 122) Assim escuta qualificada
natildeo eacute missatildeo colocada somente para os ambulatoacuterios e nem o acolhimento agrave crise eacute uma
responsabilidade somente do CAPS Conforme Ceciacutelio (2009 123) ldquo a integralidade natildeo se
realiza nunca em um serviccedilo integralidade eacute objetivo de rederdquo Desse modo todos os serviccedilos
precisam se articular no sentido de dar seguimento ao cuidado de um sujeito em crise e natildeo
apenas o serviccedilo de referecircncia ou a atenccedilatildeo baacutesica que tem sido apontada como o lugar
privilegiado na coordenaccedilatildeo do cuidado
Haacute que se destacar que uma rede soacute seraacute efetivamente integral se for conectada com os
outros dispositivos do territoacuterio onde a vida acontece espaccedilos de cultura e lazer instituiccedilotildees
45
fora do setor sauacutede (ligadas a educaccedilatildeo justiccedila assistecircncia social e outras) associaccedilotildees de
bairros e movimentos organizados instituiccedilotildees religiosas etc Cada territoacuterio carrega em si
uma histoacuteria de ocupaccedilatildeo dos espaccedilos seus usos e costumes sua influecircncia econocircmica e
poliacutetica seu papel social etc Assim pensar a organizaccedilatildeo de um CAPS em uma cidade do
interior eacute diferente de pensar a organizaccedilatildeo desse mesmo serviccedilo em uma metroacutepole ou em uma
periferia A divisatildeo entre bairros pobres e ricos as regiotildees de comeacutercio de meretriacutecio
comunidades regiotildees atravessadas pelo poder do traacutefico e das miliacutecias influem diretamente
nos modos de vida das pessoas
Sendo assim ldquoorganizar um serviccedilo substitutivo que opere segundo a loacutegica do territoacuterio
eacute olhar e ouvir a vida que pulsa nesse lugarrdquo (YASUI LIMA 2010597) Eacute considerar o
contexto de vida das pessoas e suas necessidades de sauacutede Eacute entender que a organizaccedilatildeo da
rede seu acesso e suas ofertas de cuidado precisam fazer sentido na vida daquele que
experiencia o SUS e que enfrenta no seu cotidiano suas barreiras limites e insuficiecircncias
46
3 METODOLOGIA
Segundo Turato (2003) meacutetodo eacute um ldquoconjunto de regras que elegemos num
determinado contexto para se obter dados que nos auxiliem nas explicaccedilotildees ou compreensotildees
dos aspectos ou fenocircmenos constituintes do mundordquo (ibidem 153) Na investigaccedilatildeo cientiacutefica
identificamos comumente dois tipos de metodologia de pesquisa a do tipo quantitativo e do
tipo qualitativo sendo tambeacutem possiacutevel uma mistura desses dois tipos denominada pesquisa
quali-quanti
Estudos quantitativos satildeo mais indicados para pesquisas interessadas em trabalhar com
dados e variaacuteveis de forma objetiva isto eacute quantificaacutevel Jaacute a pesquisa qualitativa permite uma
reflexatildeo mais profunda de fenocircmenos natildeo quantificaacuteveis sendo por isso mais indicada para
tratar de questotildees de ordem subjetiva cultural ou social
Segundo Minayo a pesquisa qualitativa eacute aquela que ldquotrabalha com o universo de
significados motivos aspiraccedilotildees crenccedilas valores e atitudes o que corresponde a um espaccedilo
mais profundo das relaccedilotildees dos processos e dos fenocircmenos que natildeo podem ser reduzidos agrave
operacionalizaccedilatildeo de variaacuteveisrdquo (2014 22) sendo portanto mais adequada para estudar
fenocircmenos da existecircncia humana que natildeo podem ser quantificados como eacute o caso do objeto
dessa pesquisa
Visando atingir o objetivo desse estudo ndash discutir e analisar os avanccedilos e desafios na
organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo de cuidados aos pacientes em situaccedilatildeo de crise em sauacutede mental-
realizaremos um estudo de revisatildeo bibliograacutefica integrativa de artigos cientiacuteficos da literatura
nacional
Dentre os meacutetodos de revisatildeo a revisatildeo integrativa torna-se especialmente interessante
para essa pesquisa pois permite combinar estudos de literatura teoacuterica e empiacuterica de modo que
tenhamos uma visatildeo mais ampla e concreta dos impasses que se colocam no atendimento agrave
crise no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede mental
Assim foi feita uma busca preliminar na Biblioteca Virtual em Sauacutede (BVS) e no Scielo
no mecircs de Janeiro de 2019 a partir dos seguintes descritores e combinaccedilotildees
1) ldquosauacutede mental and crise and cuidadordquo
2) ldquosauacutede mental and crise and serviccedilos de sauacutederdquo
47
Optou-se por trabalhar com textos em formato de artigos cientiacuteficos Foram
considerados os seguintes criteacuterios de exclusatildeo artigos duplicados texto completo
indisponiacutevel natildeo se aplicam a aacuterea do estudo entendimento de crise relacionado ao
acontecimento de eventos criacuteticos como cataacutestrofes ambientais incecircndios trageacutedias em massa
(queda de aviatildeo desabamentos) etc sofrimento psiacutequico em decorrecircncia de doenccedila orgacircnica
de maior gravidade (exemplo cacircncer HIV etc) toda a sorte de assuntos relacionados aos
familiares de pessoas com transtorno mental estudos que natildeo abordam o contexto brasileiro ou
que natildeo localizam a reflexatildeo das praacuteticas de cuidado no acircmbito do SUS e da Reforma
Psiquiaacutetrica questotildees especiacuteficas do cuidado de uma categoria profissional em particular
(enfermeiros meacutedicos etc) estudos de vieacutes histoacuterico epidemioloacutegico normativo ou educativo
(guias cartilhas documentos oficiais etc)
Na BVS na primeira busca encontramos 89 resultados Foi aplicado o filtro de idioma
portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 85 referecircncias disponiacuteveis Em seguida foram excluiacutedas
21 referecircncias duplicadas 2 em formato de dissertaccedilatildeo e outras 43 com a aplicaccedilatildeo dos criteacuterios
de exclusatildeo Apoacutes a leitura dos resumos foram excluiacutedas mais 9 referecircncias segundo os
criteacuterios de exclusatildeo restando um total de 10 artigos
Na segunda busca ainda na BVS encontramos 2253 resultados Foram aplicados os
seguintes filtros idioma portuguecircs e texto completo disponiacutevel gerando uma reduccedilatildeo para 123
referecircncias Apoacutes o cruzamento com a primeira pesquisa excluiacutemos mais 15 referecircncias
Eliminamos as referecircncias duplicadas e aplicamos os criteacuterios de exclusatildeo restando um total
de 28 referecircncias Excluiacutemos mais 3 referecircncias que natildeo se encaixavam no formato de texto
escolhido para anaacutelise restando um total de 25 artigos Apoacutes a leitura dos resumos foram
excluiacutedas mais 14 referecircncias segundo os criteacuterios de exclusatildeo sobrando um total de 11 artigos
Nas buscas do Scielo natildeo foi possiacutevel encontrar nenhum resultado que pudesse ser
aproveitado para a nossa pesquisa Na primeira busca encontramos 48 referecircncias Foi aplicado
filtro de idioma portuguecircs reduzindo esse nuacutemero para 44 referecircncias Apoacutes o entrecruzamento
dos resultados com o levantamento na BVS excluiacutemos 14 referecircncias Em seguida excluiacutemos
mais 14 resultados repetidos Os 16 artigos restantes tambeacutem foram eliminados por natildeo se
aplicarem a aacuterea do nosso estudo ou natildeo respeitarem os criteacuterios para inclusatildeo
Na segunda busca encontramos 28 resultados Apoacutes a aplicaccedilatildeo do filtro de idioma
portuguecircs restaram 26 referecircncias das quais 9 estavam duplicadas e 12 foram eliminadas por
cruzamento As 5 referecircncias restantes tambeacutem foram eliminadas por natildeo se aplicarem a nossa
48
aacuterea de estudo ou natildeo se encaixarem nos criteacuterios para inclusatildeo Trabalharemos desse modo
somente com os resultados encontrados na busca da BVS que somaram um total de 21 artigos
A anaacutelise das questotildees suscitadas a partir desta revisatildeo teraacute abordagem qualitativa e se
organizaraacute em torno de trecircs eixos temaacuteticos a saber sentidos da crise desafios e
potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidados
Segundo Minayo
Fazer uma anaacutelise temaacutetica consiste em descobrir os nuacutecleos de sentido que compotildeem
uma comunicaccedilatildeo cuja presenccedila ou frequecircncia signifiquem alguma coisa para o
objeto analiacutetico visado Para uma anaacutelise de significados a presenccedila de determinados
temas denota estruturas de relevacircnciavalores de referecircncia e modelos de
comportamento presentes ou subjacentes no discursordquo (MINAYO 2014 316)
Assim esperamos que essa anaacutelise possa lanccedilar luz sobre as questotildees mais relevantes
levantadas na literatura em torno do acolhimento agrave crise apontando os principais desafios que
ela impotildee na construccedilatildeo e sustentaccedilatildeo da Reforma Psiquiaacutetrica no cotidiano das praacuteticas e dos
serviccedilos de sauacutede Os eixos temaacuteticos seratildeo correlacionados com o referencial teoacuterico dessa
pesquisa visando alcanccedilar uma anaacutelise mais profunda e feacutertil dos temas em questatildeo
49
4 REFLEXAtildeO E DISCUSSAtildeO DA LITERATURA
Conforme foi explicitado no capiacutetulo de metodologia a discussatildeo e reflexatildeo dos artigos
alvos dessa revisatildeo se organizaraacute a partir de trecircs categorias temaacuteticas sentidos de crise desafios
e potencialidades no acolhimento agrave crise e organizaccedilatildeo da rede de cuidado
Nosso caminho para a formulaccedilatildeo dessas categorias comeccedilou a partir dos descritores
usados nas buscas das plataformas Da leitura dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise
and cuidado and sauacutede mentalrdquo emergiram a maior parte das questotildees relacionadas aos modos
de compreender e significar a crise em sauacutede mental suas repercussotildees sobre as praacuteticas de
cuidado bem como os desafios e estrateacutegias encontrados pelos profissionais no manejo da crise
em seu cotidiano de trabalho Assim desdobramos esse eixo em duas outras categorias
ldquosentidos de criserdquo e ldquodesafios e potencialidades no acolhimento agrave criserdquo
Dos artigos agrupados sob os descritores ldquocrise and sauacutede mental and serviccedilos de
sauacutederdquo emergiram predominantemente as questotildees relacionadas agrave forma como os serviccedilos tecircm
se organizado para receber e acolher as situaccedilotildees de crise Desse eixo fazem parte natildeo soacute as
questotildees relacionadas ao papel de cada serviccedilo e sua organizaccedilatildeo interna para lidar com as
situaccedilotildees de crise como tambeacutem sua possibilidade de articulaccedilatildeo com os outros serviccedilos da
RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e dispositivos do territoacuterio na construccedilatildeo de uma
resposta integral e complexa agraves demandas da crise Esses resultados estatildeo concentrados no eixo
ldquoorganizaccedilatildeo da rede de cuidadosrdquo
41 OS SENTIDOS DA CRISE
Dos muitos sentidos e significados em torno da crise destacamos trecircs que pela forccedila e
intensidade com que aparecem nos artigos atraveacutes das falas dos profissionais das narrativas
dos usuaacuterios e familiares e das situaccedilotildees que emergiram no campo de pesquisa desdobraram-
se em subcategorias na nossa anaacutelise a crise enquanto ameaccedila social a crise enquanto perda e
isolamento e a crise enquanto apropriaccedilatildeo da experiecircncia da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidos
O sentido negativo da crise enquanto ldquoameaccedila socialrdquo aparece sobretudo na fala dos
profissionais e familiares remetendo a figura do louco como ser fora de si agressivo sem
controle apresentado risco para si e para os outros agrave sua volta Os estudos de Pereira Saacute e
Miranda (2017) Milhomens e Martin (2014) Lima (2012) Garcia e Costa (2014) Brito
Bonfada e Guimaratildees (2015) abordam essa realidade Nessas narrativas observamos que a
complexidade do fenocircmeno da loucura eacute reduzida a manifestaccedilatildeo dos sintomas agressivos e
50
violentos operando um recorte muito simploacuterio da vivecircncia da crise e do contexto em que ela
ocorre Vemos como a representaccedilatildeo desse imaginaacuterio fortalece e justifica mecanismos de
controle e vigilacircncia que remontam agrave Psiquiatria Tradicional mesmo nos serviccedilos substitutivos
A crise enquanto ldquoexperiecircncia de perda e isolamentordquo foi um sentido que apareceu
especialmente nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da
primeira crise como nas pesquisas de Pereira Saacute Miranda (2017) e Milhomens Martin (2014)
A peculiaridade dos sintomas que emergem e o estigma social relacionado a eles parecem
reforccedilar nesse primeiro momento um sentido da crise enquanto perda da normalidade e
consequentemente enquanto iacutendice de uma doenccedila ou anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida Por outro lado encontramos esse sentido tambeacutem em estudos
com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees resultando em uma perda dos viacutenculos
afetivos sociais e laborativos A pesquisa de Fiorati e Saeki (2008) com homens de 30 a 50
anos em uma unidade de internaccedilatildeo em Satildeo Paulo aponta para esse resultado
A crise enquanto ldquoapropriaccedilatildeo da loucura e reconstruccedilatildeo de sentidosrdquo expressa a
construccedilatildeo de um outro sentido de crise que se opotildee aos dois uacuteltimos e abre possibilidades de
vecirc-la em seu vieacutes positivo Nessa categoria destacamos os momentos em que foi possiacutevel
deslocar-se da compreensatildeo da crise como um evento limitante ou signo de anormalidade e
entendecirc-la como um evento analisador que diz do sujeito e de sua histoacuteria Vale ressaltar que o
diaacutelogo com as pesquisas de Milhomens e Martin (2014) e Costa (2007) apontaram elementos
e reflexotildees importantes na construccedilatildeo desse sentido
411 CRISE COMO AMEACcedilA SOCIAL PERICULOSIDADE E RISCO
A loucura entendida como uma ameaccedila social remonta aos primoacuterdios da Psiquiatria
Tradicional e agraves praacuteticas de normalizaccedilatildeo e disciplinarizaccedilatildeo do seacuteculo XVIII e XIX quando
se inicia o processo de transformaccedilatildeo da loucura em patologia mental
Segundo Jardim (2007178) ldquoo conceito do risco se coloca aqui a partir do momento
que a crise eacute o prenuacutencio do agravo ou desencadeamento de uma suposta doenccedila mental
(instalada ou futura)rdquo marcada por comportamentos hostis e intimidadores como mudanccedilas
bruscas de humor pensamentos persecutoacuterios e agressividade dirigida agrave si mesmo ou agrave outros
Na revisatildeo da literatura as falas dos familiares profissionais e dos pacientes reforccedilaram
esse sentido caracterizando a vivecircncia da crise enquanto momento de desorganizaccedilatildeo em que
emergem comportamentos associados agrave violecircncia ameaccedila e medo
51
Luciana ldquogritava dentro de casa quebrava tudo jogou o computador novo no chatildeo
que era o xodoacute delardquo Na terceira crise a adolescente natildeo se reconheceria como matildee
da filha que acabara de nascer e deixou de se alimentar e tomar banho ficando com o
corpo debilitado (PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Minha matildee vinha falar comigo e eu agredia ela Ela falava lsquoEu sou sua matildeersquo E eu
falava que natildeo era PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3737)
Eu agredia meus pais quase todo o dia era discussatildeo em casa era um inferno aqui
quase todo dia era discussatildeo porque eu natildeo trabalhava eu natildeo fazia curso eu natildeo saia
de casa [] O preacutedio chegou a denunciar ateacute porque era briga constante (R homem
20 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1111)
Para os nossos entrevistados as pessoas que entram em crise em alguns
momentossituaccedilotildeestornam-se ldquoperigosas violentas agressivas brabas despertam
medo incomodam os outros quebram e destroem as coisas gritamrdquo termos utilizados
pelos entrevistados (LIMA ET AL 2012 428)
Em um estudo com profissionais em um CAPS II de Aracaju (SE) para aleacutem do sentido
da crise associado ao da violecircncia coloca-se tambeacutem o fato de essas pessoas estarem em intenso
sofrimento psiacutequico
satildeo consideradas como pessoas em alto niacutevel de sofrimento porque estatildeo angustiadas
ouvem vozes de comando necessitam de vigilacircncia contiacutenua estatildeo confusas
colocam-se em risco de morte desestruturam as famiacutelias (LIMA ET AL 2012 428)
O risco envolvido na crise se transmite para os profissionais no campo das praacuteticas de
cuidado como uma necessidade constante de monitoramento vigilacircncia e controle da pessoa
em crise como reafirma um dos profissionais desse estudo a seguir
Crise a partir de uma necessidade de vigilacircncia sendo muito exigente enquanto forma
de cuidado gerando um impacto sobre a vida de todos preocupaccedilotildees e uma dedicaccedilatildeo
quase exclusiva agrave pessoa doente (Profissional de um CAPS II Aracaju SE) (LIMA
ET AL 2012 429)
Esse aspecto aparece tambeacutem no estudo de Garcia e Costa (2014) que trazem como
analisador o manejo da crise de uma usuaacuteria em estado de agressividade em um CAPS I em
Porto Real RJ
Gritos cadeiras ao alto mesas jogadas telefone quebrado agressividade Eis um
momento de surto de uma paciente no Caps A equipe pega de surpresa precisa agir
prontamente algo tem que ser feito (GARCIA COSTA 2014 400)
Nessa situaccedilatildeo na tentativa de restaurar a paz e a ordem no serviccedilo alguns profissionais
comeccedilam a demandar o poder policial e a presenccedila de um guarda municipal de plantatildeo no
CAPS como observamos nos trechos a seguir
discutiu-se o caso em reuniatildeo de equipe retomou-se sua histoacuteria foram feitas
propostas ndash produccedilatildeo de saber atravessadas por relaccedilotildees de poder que reivindicavam
lsquoordemrsquo e lsquorespeitorsquo a serem garantidos por um poder policialesco materializado nos
agentes da guarda municipal (GARCIA COSTA 2014 201)
Acredita-se que um sujeito fardado colocaria respeito evitando que as crises
aconteccedilam como se fossem fruto necessariamente de um querer e uma afronta Com
52
a accedilatildeo da guarda seja ela ativa ou passiva de coibir esses eventos intempestivos os
pacientes evitariam ter crises por estarem sendo vigiados (ibidem 405)
Os autores destacam que a aposta na vigilacircncia como forma de controle e prevenccedilatildeo das
crises diz respeito agrave uma visatildeo de crise em que o deacuteficit estaacute no sujeito que natildeo consegue
responder de forma adequada agraves exigecircncias da vida A intervenccedilatildeo vem no sentido de favorecer
o instituiacutedo e reintroduzir a ldquonormardquo Eacute como se algo faltasse agravequele sujeito e ldquona situaccedilatildeo
apresentada precisaria ser tamponada preenchida quer pela guarda municipal por medicaccedilatildeo
ou terapiasrdquo (Garcia Costa 2014 405)
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade De tudo que se apresenta
em uma crise psicoacutetica a agressividade eacute o que fica o que marca e exige atenccedilatildeo urgente Eacute
vista como um sintoma isolado e de suma importacircncia que necessita ser suprimido o quanto
antes Assim recorre-se a praacuteticas como a contenccedilatildeo mecacircnica ou medicamentosa visando
extrair cirurgicamente o sintoma sem precisar lidar com a loucura e com o sofrimento que se
coloca em uma crise psicoacutetica
A reduccedilatildeo da complexidade de uma crise psicoacutetica aos seus sintomas agressivos reforccedila
o medo e o estigma em relaccedilatildeo agrave loucura legitimando condutas que a tratam como mera
contravenccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo da ordem social favorecendo o uso de recursos coercitivos como
o poder policial a guarda municipal e outras instacircncias que visam tratar da criminalidade e natildeo
da sauacutede de uma pessoa
Essa realidade eacute encontrada em uma pesquisa realizada com 24 profissionais de diversas
categorias da equipe de SAMU do municiacutepio de Natal- RN Observou-se que a equipe guarda
uma percepccedilatildeo do paciente em crise como um marginal ou ateacute mesmo como um animal sendo
frequente o uso da forccedila policial nas intervenccedilotildees dessa equipe como se percebe na fala a
seguir
A poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente doente mental () e quando a poliacutecia
chega eles amansam na mesma hora A maioria dos policiais jaacute vem pensando em
descer o bastatildeo entatildeo por isso que os pacientes tecircm medo (Entrevistado 13) (BRITO
BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1300 grifos nossos)
A gente precisa do apoio da poliacutecia pra prender pra interceptar (Entrevistado 2)
(idem 1298 grifos nossos)
O uso dos termos ldquoprenderrdquo e ldquointerceptarrdquo apontam para um entendimento da crise
como fenocircmeno do campo do julgamento moral e da criminalidade As contenccedilotildees satildeo
realizadas pela equipe da poliacutecia que usa de violecircncia deflagrada como ldquodescer o bastatildeordquo
mostrando total despreparo para atuar nessas situaccedilotildees Nota-se que embora os profissionais
53
reconheccedilam que a poliacutecia natildeo tem noccedilatildeo do que eacute um paciente psiquiaacutetrico recorre-se agrave ela na
tentativa de ldquodominarrdquo o paciente pelo medo subjugando-o como a um animal ldquoamansam na
mesma horardquo ldquopor isso eles tem medordquo Conforme lembra Caponi (2009) ldquonas entrelinhas
dessas accedilotildees estatildeo as relaccedilotildees de poder que caracterizam a Psiquiatria Claacutessica e sua autoridade
de tomar o corpo como objeto de suas praacuteticasrdquo (apud BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2015 1298 )
Assim embora o discurso em relaccedilatildeo agrave loucura tenha mudado e incorporado os
princiacutepios da Reforma Psiquiaacutetrica vemos que quando a crise emerge e com ela a dificuldade
de sustentar com o usuaacuterio um modo protegido de estar com ele a primeira resposta dos serviccedilos
ainda segue a loacutegica do enclausuramento da violecircncia e da imposiccedilatildeo pela autoridade
A associaccedilatildeo entre crise e risco se desdobra em sentimentos de ameaccedila e medo que
justificam praacuteticas de repressatildeo como prevenccedilatildeo da possiacutevel periculosidade da pessoa em crise
como vemos a seguir
A gente notando que ele ainda estaacute agitado inquieto e que agraves vezes ele pode dar o
surto de novo a poliacutecia vai na ambulacircncia sentado com a gente (Entrevistado 7)
(BRITO BONFADA GUIMARAtildeES 2015 1298)
Acredito que a falta de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz
com que o atendimento siga uma forma natildeo correta (ibidem 1298)
Segundo DelacuteAcqua e Mezzina (2005) o risco implicado na crise eacute compreendido na
Psiquiatria Claacutessica enquanto iacutendice de desadaptaccedilatildeo e desequiliacutebrio proacuteprio da doenccedila mental
Assim o fator periculosidade natildeo sendo algo passiacutevel de desconstruccedilatildeomanejo e a resposta do
medo agrave ele associada fala-nos de uma cadeia estabelecida doenccedila mental- periculosidade-
internaccedilatildeo que estaacute ldquoprofundamente enraizada nos teacutecnicos como cultura forma de agir e
pensar a loucurardquo (SILVA DIMENSTEIN 2014 42)
Cabe aqui ressaltar que natildeo se trata de negar que em uma situaccedilatildeo de crise possa haver
riscos envolvidos para integridade fiacutesica da pessoa em crise e dos demais e que isso causa medo
mas eacute preciso trabalhar em uma outra direccedilatildeo para lidar com o medo que natildeo seja atemorizar
e moralizar aqueles que precisam de cuidados especialmente quando isso eacute feito em parceria
com a poliacutecia
Isso natildeo significa que natildeo se possa utilizar de recursos como a medicaccedilatildeo ou a
contenccedilatildeo mecacircnica em situaccedilotildees extremas mas faz diferenccedila quando trabalhamos em uma
loacutegica em que esses satildeo os uacuteltimos recursos disponiacuteveis e natildeo nossa primeira resposta frente agrave
crise Praacuteticas como essas ainda satildeo tomadas no campo de ldquosoluccedilotildees maacutegicasrdquo para a remissatildeo
54
dos sintomas agressivos quando deveriam ser vistas no maacuteximo como um arranjo incocircmodo
imposto por conjunturas que em niacutevel macro e micro natildeo tem conseguido sustentar a crise no
modelo substitutivo
Desse modo Brito Bonfada e Guimaratildees assinalam que urge avanccedilar na compreensatildeo
da crise enquanto evento que demanda ldquoacolhimento diaacutelogo aproximaccedilatildeo entre sujeitos
envolvidos e respeito agraves necessidades subjetivas e particularidades de cada usuaacuterio dos serviccedilos
de sauacutederdquo (2015 1301) Para tanto faz-se necessaacuterio investir em praacuteticas de educaccedilatildeo
permanente que possam trabalhar com as equipes na direccedilatildeo da construccedilatildeo de um suporte
teacutecnico-conceitual de apoio agrave crise que tenha como base os pressupostos da Reforma
Psiquiaacutetrica Essa capacitaccedilatildeo deve envolver a discussatildeo da crise enquanto um fenocircmeno
complexo que natildeo se restringe aos sintomas apresentados mas diz do modo do sujeito se
posicionar no mundo e das conjunturas conflitivas que o afligem
412 CRISE COMO PERDA E ISOLAMENTO SOCIAL
A primeira crise aparece como um ponto de ruptura a partir do qual algo muda
radicalmente e a vida natildeo pode mais se dar como antes A crise eacute vista como a descoberta de
uma ldquodoenccedilardquo e sentida como um ponto de corte a partir do qual todos os aspectos da vida
precisam ser reavaliados Os pacientes e familiares natildeo sabem mais se podem continuar com
sua rotina de antes e estabelecem uma seacuterie de limitaccedilotildees com o objetivo de ldquoevitar novas
crisesrdquo
A possibilidade de seguir na vida os sonhos os planos e objetivos ficam todos em
suspenso como se qualquer conduta repentina pudesse disparar uma nova crise Vive-se agrave
espreita em estado de alerta atento aos sintomas temendo colocar em risco a estabilidade
conquistada com o tratamento Natildeo se pode retomar a vida como antes e tambeacutem natildeo se sabe o
que eacute possiacutevel sustentar dali em diante iniciando-se entatildeo um processo de paralizaccedilatildeo e
mortificaccedilatildeo da vida
No estudo de Pereira Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise em um CAPSi
do Rio de Janeiro nota-se que a experiecircncia da crise se desdobrou em medo inseguranccedila e
perda do interesse nas atividades do cotidiano o que pode ser destacado nas falas a seguir
Thiago deixou de jogar futebol com os amigos de ir agrave escola ldquoporque eacute melhor natildeordquo
(sic) () Leticia tambeacutem deixou de frequentar a escola apoacutes a uacuteltima crise e perdeu
o interesse pelas atividades diaacuterias que antes realizava Sua matildee ao mesmo tempo
natildeo ldquoconfiavardquo mais que a adolescente pudesse ir ao centro de sua cidade sozinha
temendo que esta pudesse ldquose perderrdquo (ibidem 3739)
55
Haacute um certo recuo diante da vida um fechamento em si mesmo como forma de defesa
contra a loucura e o estigma social associado agrave ela Com isso tem-se a perda das antigas
amizades e a dificuldade de se estabelecer novos laccedilos sociais em um processo crescente de
empobrecimento da vida
Ela soacute gosta de dormir vocecirc falou Leticia Soacute quer saber de dormir Antes ela gostava
de fazer as coisas agora natildeo gosta natildeo Natildeo ajuda em casa natildeo faz nenhum trabalho
soacute dorme [hellip] Antes dela ter essa crise uacuteltima ela vinha no centro pra mim fazia as
coisas Mas agora ela anda tatildeo desanimada que tenho medo de mandar ela fazer as
coisas [hellip] Acho que ela pode pensar que vai pra um lugar e vai pra outro pegar o
ocircnibus errado natildeo sei (ibidem3739)
No estudo de Milhomes e Martin (2014) com um grupo de jovens que fazem
acompanhamento em um CAPS II na cidade de Satildeo Paulo quando questionados sobre saiacutedas
os jovens mencionavam idas agrave igreja mercados e festas de familiares A grande maioria referia
ficar em casa com a famiacutelia auxiliando nas tarefas da casa e da vida domeacutestica de modo que
pouco se falava sobre festas ou encontro com os amigos Majoritariamente o grupo de amigos
que esses usuaacuterios tinham contato era o do CAPS havendo apenas um dos seis jovens
entrevistados que participava de um grupo de funk fora do CAPS ldquoNota-se que apoacutes a primeira
crise psiacutequica esses jovens se veem afastados das antigas amizades apresentando importante
isolamento social e perda destes pontos de partilhardquo (ibidem 1113)
Quanto agraves possibilidades de inserccedilatildeo no mercado de trabalho esse mesmo estudo aponta
que apoacutes o iniacutecio do tratamento a inserccedilatildeo possiacutevel desses jovens no mercado de trabalho se
deu predominantemente pela via do trabalho informal atraveacutes de ldquobicosrdquo e negoacutecios familiares
que permitiam uma maior flexibilidade de horaacuterios e conciliaccedilatildeo com a frequecircncia no
tratamento
Nenhum dos jovens no periacuteodo das entrevistas possuiacutea emprego formal Cinco deles
haviam trabalhado com carteira assinada antes da primeira crise e somente um
retomou este tipo de emprego apoacutes a crise enquanto os outros apesar das tentativas
natildeo conseguiram exercendo uma atividade laborativa sob outros moldes
(MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Embora natildeo se possa deixar de considerar que a primazia do trabalho informal estaacute
relacionada agrave um contexto mais amplo da economia nacional nos uacuteltimos tempos a
precariedade e falta de espaccedilo para a inserccedilatildeo de pessoas com transtorno mental no mundo do
trabalho impacta diretamente na sauacutede mental dessas pessoas trazendo prejuiacutezos ao seu
processo de construccedilatildeo de autonomia reinserccedilatildeo social e independecircncia financeira
Outros estudos como a pesquisa de Fiorati e Saeki com homens com idades entre 30 e
50 anos em uma unidade de internaccedilatildeo na cidade de Satildeo Paulo apontam resultados parecidos
56
ldquoos usuaacuterios atendidos por noacutes interromperam seus processos de escolaridade ou atividade
profissional devido ao adoecimento mental e encontravam-se apartados de qualquer atividade
produtivardquo (2008 767) Essa ruptura estendeu-se ainda no campo dos viacutenculos afetivos e
sociais dos participantes ldquoseus relacionamentos interpessoais estavam fragmentados
casamentos interrompidos ou nunca iniciados Essas pessoas mantinham-se desvinculadas de
redes de relacionamento social natildeo namoravam natildeo tinham amizades ou qualquer ligaccedilatildeo
interpessoal espontacircneardquo (ibidem 768)
O estudo de Milhomens e Martin (2014) se propocircs a pensar as causas desse isolamento
social percebido apoacutes o episoacutedio de crise Em entrevista com os jovens participantes um dos
motivos apontados por eles era ldquoa vergonha e a dificuldade de lidar com esses encontros e
exposiccedilotildees perante olhares e perguntas que causam incocircmodordquo (ibidem 1114)
A vergonha figurava como motivo de restriccedilatildeo da circulaccedilatildeo pelo territoacuterio pois assim
evitava-se o possiacutevel desconforto de encontrar amigos ou vizinhos ter que cumprimentaacute-los e
dar-lhes explicaccedilotildees sobre a vivecircncia da crise A experiecircncia da vergonha pode ser tatildeo
assustadora a ponto como em um dos casos do entrevistado sequer sentir-se confortaacutevel para
retornar a sua antiga residecircncia
Aiacute depois eu natildeo voltei mais pra casa fiquei meio traumatizado com vergonha
tambeacutem na eacutepoca Tudo essas coisas da crise de iniacutecio vocecirc natildeo sabe neacute entatildeo fica
ndash Olha o cara eacute doido [] (vergonha) das coisas que eu fiz neacute [] mesmo se eu
pudesse eu natildeo voltaria a morar laacute sei laacute por vergonha essas coisas (M homem
28 anos) (MILHOMENS MARTIN 2014 1114)
Segundo esse mesmo estudo outro aspecto do isolamento se daacute como uma defesa e uma
resposta pelos usuaacuterios terem se sentido abandonados pelos amigos nos momentos em que
mais precisavam deles isto eacute nos periacuteodos de crise
Ah mudei assim que agora eu tomo remeacutedio agraves vezes assim pra amizade eu fico
mais na minha As pessoas estatildeo conversando e eu natildeo tenho parece assim que eu
natildeo tenho assunto com as pessoas sabe [] Era aquela flor amiga pra laacute amiga pra
caacute Aiacute quando quando que eu caiacute numa cama todo mundo desapareceu[] (D
mulher 20 anos) (ibidem1113)
O fato de precisar fazer um tratamento e tomar medicaccedilatildeo psiquiaacutetrica tambeacutem aparece
como um elemento que imprime uma marca e estabelece uma diferenccedila separando
categoricamente loucura de normalidade em um caminho sem volta como se a partir daquele
ponto eles nunca mais pudessem ser como os outros
Letiacutecia lamenta ainda por ter ficado ldquodiferente das outras pessoasrdquo pois devido agrave crise
ldquoprecisava de tratamentordquo Relatava tambeacutem uma dificuldade em escrever e ldquocopiarrdquo
a mateacuteria porque a medicaccedilatildeo fazia sua matildeo tremer (PEREIRA SAacute MIRANDA
2017 3739)
57
Essa diferenccedila tambeacutem aparece na perspectiva dos profissionais No estudo de Pereira
Saacute e Miranda (2017) com adolescentes em crise na perspectiva dos profissionais a crise traz
uma perda natildeo apenas da vida que se tinha mas da vida que o adolescente ainda poderia ter
[hellip] natildeo vai ser igual nunca Pelo menos eu nunca vi um adulto ou adolescente que
surtam voltarem a ser como eram antes[hellip]Porque eu acho que a psicose eacute isso ne
Vocecirc perde algo do que vocecirc tinha e tambeacutem perde a habilidade de adquirir novas
aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivos neacute (Profissional do serviccedilo)
(PEREIRA SAacute MIRANDA 2017 3740)
Nesse sentido a crise na infacircncia aparece para os profissionais como ainda mais grave
do que na vida adulta visto que desde aquele momento a perda jaacute estaria colocada limitando
as possibilidades do adolescente para toda a vida como vemos nas falas a seguir
Aos 16 anos eles adquiriram pouca bagagem e pouco repertoacuterio tatildeo comeccedilando a
vida ainda tatildeo no meio do ciclo acadecircmico [hellip] parece que a cada surto se perde um
pouquinho Vai se perdendo algo Eacute muito cedo neacute O prognoacutestico eu considero mais
negativo na adolescecircncia do que na fase adulta (Profissional do serviccedilo) (PEREIRA
SAacute MIRANDA 2017 3740)
Talvez eu ache que o surto do adolescente eacute muito mais florido Impactante eacute a
palavra Mas eu acho que ele mexe muito mais do que o surto do adulto Eacute mais
impactante sim Porque pega os pais numa situaccedilatildeo de Poxa o cara tava na escola
tava andando as coisas tatildeo indo E esse adolescente eacute ainda um pouco dependente e
aiacute eu acho que a inserccedilatildeo da famiacutelia eacute diferente da famiacutelia do adulto Porque o adulto
jaacute eacute dono de si jaacute tem um caminho andado natildeo sei acho que eacute por aiacute (Profissional
do serviccedilo) (ibidem3740)
Porque quando eacute uma crianccedila pequena esses pais jaacute vatildeo percebendo que lsquoPoxa vida
tem alguma coisa diferente com elersquo E mesmo que seja assim lsquoEle foi normalzinho
ateacute dois anos eacute diferente dele ser normalzinho ateacute dezesseis anos ateacute quinze anos O
que aconteceu com essa criatura que numa semana taacute bem e na outra semana natildeo
Que tira roupa na rua ou bate ou que agride o pairsquo [hellip] (Profissional do serviccedilo)
(ibidem3740)
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede As perdas que os usuaacuterios
vivenciam a perda da autonomia das relaccedilotildees sociais da capacidade laborativa etc satildeo apenas
um reflexo maior dos efeitos dessa diferenccedila na nossa sociedade
Retomando a fala de uma profissional ldquonatildeo vai ser igual nuncardquo natildeo se trata de negar
essa diferenccedila Poreacutem eacute preciso entender que a perda em questatildeo natildeo eacute a perda da ldquohabilidade
de adquirir novas aprendizagens novos conhecimentos ganhos afetivosrdquo mas a perda do
sentido isto eacute da construccedilatildeo de mundo que havia antes da vivecircncia da crise (PEREIRA SAacute
MIRANDA 2017 3740)
58
Como qualquer outra experiecircncia singular e impactante que vivemos em nossas vidas
a crise tem o poder de questionar o modo de vida de uma pessoa recriando o mundo e
redistribuindo os sentidos ao redor dela Nem sempre os sentidos construiacutedos seratildeo
compartilhados ou compreensiacuteveis mas eacute possiacutevel sustentar estar junto com algueacutem mesmo
assim mesmo sem entender do mesmo modo que sustentamos estar junto com pessoas que
compartilham de visotildees de mundo muito diferentes das nossas A loucura nesse ponto eacute soacute mais
um modo de se relacionar com o mundo como tantos outros diferentes dos nossos Os sentidos
construiacutedos a partir de uma crise natildeo seratildeo os mesmos de antes mas tambeacutem podem ser potentes
e criadores de vida
413 CRISE COMO APROPRIACcedilAtildeO DA EXPERIEcircNCIA E RECONSTRUCcedilAtildeO DE
SENTIDOS
Na pesquisa de Milhomens e Martin (2014) com jovens em um CAPS adulto em Satildeo
Paulo observou-se que alguns entrevistados especialmente os que jaacute estavam haacute mais de dois
anos em acompanhamento
com a experiecircncia das crises vatildeo adquirindo estrateacutegias e ampliando as formas de
lidar e de se perceber em relaccedilatildeo ao proacuteximo Um dos entrevistados diz que pede para
que seus pais o avisem quando ele natildeo estiver bem Outra integrante diz que quando
percebe olhares estranhos para ela cogita a possibilidade ser somente uma impressatildeo
errada ldquocoisa da minha cabeccedila3rdquo (D mulher 20 anos) (ibidem1114)
Quando questionados sobre a compreensatildeo que tinham sobre o termo ldquoloucurardquo
percebe-se que em alguns casos natildeo se tinha a concepccedilatildeo por doenccedila ateacute a chegada ao CAPS
Aiacute foi aonde que eu fiquei ruim neacute num tava conhecendo ningueacutem tava vendo coisa
e eu jaacute tinha esse negoacutecio de escutar vozes mas pra mim era um negoacutecio normal
(F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Eacute importante ressaltar que reconhecer o fato de ouvir vozes como algo ldquonormalrdquo natildeo
significa que natildeo haja sofrimento implicado nessa vivecircncia visto que ldquoescutar vozesrdquo e ldquover
coisasrdquo falam de uma certa experiecircncia de invasatildeo da consciecircncia Do mesmo modo podemos
imaginar que natildeo reconhecer as pessoas com quem habitualmente se convive deve ser algo um
tanto assustador No entanto o que gostariacuteamos de destacar com esse trecho eacute o fato dessa
experiecircncia natildeo ter sido considerada pelo entrevistado como signo de uma ldquodoenccedilardquo Embora
3 Alterado pela pesquisadora a partir do texto original ldquocoisa da minha cabe drdquo (D mulher 20 anos)
(MILHOMENS A E MARTIN D 2014 1114) pelo fato da mesma entender que houve erro de digitaccedilatildeo na
palavra ldquocabeccedilardquo
59
os diagnoacutesticos possam ser importantes para a praacutetica cliacutenica os efeitos desse diagnoacutestico para
os pacientes se mostram muito mais limitantes do que propulsores de vida
Vemos que mesmo nas situaccedilotildees em que haacute um julgamento social em torno da doenccedila
quando o usuaacuterio consegue se apropriar da sua experiecircncia em relaccedilatildeo agrave loucura com
tranquilidade e maturidade ele encontra forccedilas para lidar com situaccedilotildees que antes eram motivo
de vergonha ou isolamento como vemos na fala a seguir
Os outros me chamavam de Elias Maluco Hoje em dia os outros chama ainda eu levo
na brincadeira eu natildeo me sinto ofendido Quando eu tava ruim eu me sentia ofendido
entendeu Eu levo numa boa entendeu (F homem 26 anos) (ibidem 1112)
Retomando a categoria anterior ldquoa crise como perda e isolamento socialrdquo Milhomens
e Martin (2014) assinalam que apoacutes o episoacutedio de crise alguns participantes de sua pesquisa
deixaram de sair e de circular pelo territoacuterio para natildeo ter que lidar com os questionamentos dos
vizinhos amigos e conhecidos em torno da sua doenccedila Nesse sentido a fala do usuaacuterio acima
fomenta outras formas de lidar com os possiacuteveis obstaacuteculos que a sociedade impotildee agrave loucura
Sua apropriaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave experiecircncia da loucura faz com que ele natildeo se abale ao ser
chamado de ldquomalucordquo Haacute aiacute a invenccedilatildeo de uma forccedila e de uma potecircncia de vida que sustenta
novas possibilidades de estar na comunidade apesar das adversidades
Outro aspecto que nos chamou atenccedilatildeo nesse estudo foi a relaccedilatildeo que alguns usuaacuterios
conseguiram estabelecer com a sua medicaccedilatildeo Embora a maioria natildeo soubesse informar os
nomes e quantidades bem como a finalidade teacutecnica das mesmas muitos conseguiam mostrar
propriedade na avaliaccedilatildeo dos ldquoganhos e perdasrdquo que a medicaccedilatildeo causava em suas vidas
MILHOMENS MARTIN 2014)
Um dos impasses vivenciados por eles nesse sentido era o conflito entre beber eou
usar drogas e ter que tomar a medicaccedilatildeo Sabe-se que a interrupccedilatildeo do tratamento
medicamentoso pode causar efeitos colaterais importantes e ateacute mesmo agravar os sintomas do
quadro que se pretendia tratar Posto isso esses jovens se viam no dilema de ter que optar entre
um e outro avaliando seus riscos e benefiacutecios como vemos na fala a seguir
Aiacute os moleques tava indo fumando uma maconha laacute aiacute eu ia ficava olhando ndash Seraacute
que eu posso Seraacute que natildeo posso ndash aiacute parei de tomar o remeacutedio pra natildeo prejudicar
tipo pensei assim ndash Se eu para de tomar o remeacutedio acho que eu vou poder beber e
vou poder usar droga [] Sem (a medicaccedilatildeo) fico agitado fico agitado ando de um
lado pro outro arrumo a casa arrumo tudo [risos] e tipo jaacute o coraccedilatildeo sei laacute meio que
acelera Eu sei lidar com isso entendeu Pra ficar mais tranquumlilo fumo um cigarro
fumo ateacute mais cigarro quando acelera o coraccedilatildeo mas isso tipo se eu ficar uns por
exemplo ficar hoje hoje eacute quinta se eu ficar ateacute quarta sem tomar eu fico tranquumlilo
mas como a meacutedica falou a medicaccedilatildeo fica no organismo tem uns dias e tal mas se
eu passar de uma semana sem tomar vixi sei laacute eu natildeo sei se eacute isso ou eacute psicoloacutegico
60
pode daacute uma inseguranccedila vocecirc jaacute fica meio com receio aiacute jaacute fica pilhado deve ser
isso tambeacutem (J homem 24 anos)- (MILHOMENS MARTIN 2014 1116)
Observa-se por outro lado que embora a capacidade de autonomia e de participaccedilatildeo do
usuaacuterio no seu tratamento seja valorizada no modelo substitutivo o questionamento em relaccedilatildeo
aos proacutes e contras do uso da medicaccedilatildeo natildeo foi acolhido pelo serviccedilo e como consequecircncia os
usuaacuterios acabavam por fazer uma gestatildeo solitaacuteria da sua medicaccedilatildeo sem poder contar com o
serviccedilo enquanto um parceiro nessa decisatildeo
Quando um desses jovens fazia uma escolha em relaccedilatildeo ao seu tratamento como
interromper o uso da medicaccedilatildeo para fazer uso de drogas ou para conseguir levantar
cedo para estudar tal atitude era vista pelo serviccedilo como contraacuteria ao tratamento
Como se o exerciacutecio da autonomia soacute coubesse quando exercida em concordacircncia com
a disciplina oferecida pelo serviccedilo Optar por natildeo mais fazer uso da medicaccedilatildeo eacute
tratado como irresponsabilidade ou ldquopiora do quadrordquo (ibidem 1117)
Assim vemos que a relaccedilatildeo dos usuaacuterios com o serviccedilo sofre algumas tensotildees e muitas
vezes satildeo os proacuteprios usuaacuterios que vatildeo encontrar meios de ressignificar e modificar essas
relaccedilotildees como podemos ver na fala desse entrevistado a respeito dos grupos oferecidos no
CAPS
Os grupos eacute pra iniacutecio da crise quando tudo eacute novidade entatildeo todo grupo eacute
interessante por mais babacatildeo assim Quando a gente vai melhorando assim parece
ser meio babaca mas natildeo eacute Porque a gente natildeo taacute acostumado mas assim pintar
essas coisas que parece que eacute pra crianccedila neacute mas nossa mente taacute como de crianccedila
entatildeo parecia uma coisa meia agraves vezes quando passava em mim eu falava ndash O que
eu tocirc fazendo aqui ndash mas esses grupos me fizeram enxergar que tinha mais gente
igual eu que tinha gente numa fase pior que a minha outras melhores me ajudou
bastante (M homem 28 anos) (ibidem 1117)
Segundo os pesquisadores ldquopintar desenhos infantis e promover brincadeiras de
crianccedilas eram atividades rotineiras neste serviccedilo utilizadas com o intuito de entreter as pessoas
que ali estavamrdquo (MILHOMENS MARTIN 2014 paacutegina) Tais atividades promovidas de
forma burocraacutetica e sem aproximaccedilatildeo real com o cotidiano dos usuaacuterios contribuem para a
interrupccedilatildeo ou desistecircncia do tratamento Mesmo assim o entrevistado surpreende e lanccedila um
outro olhar para o serviccedilo reconhecendo o que na sua perspectiva ele traz de efetivamente
importante para o seu tratamento a possibilidade de se reconhecer na experiecircncia do outro e de
se conectar com pessoas que vivem os mesmos problemas e questotildees Esse eacute um elemento
proacuteprio do dispositivo grupal que por si soacute jaacute imprime um novo significado ao tratamento
oferecendo um lugar diferente do de incapacitado e infantilizado
Os usuaacuterios vatildeo encontrando cada um agrave sua maneira meios de lidar com as crises com
o estigma social e com a necessidade de sustentar seu tratamento Os recursos apontados por
eles aparecem como algo da ordem da construccedilatildeo de um saber leigo advindo da experiecircncia
subjetiva da crise e da relaccedilatildeo que eles mantem com o seu contexto soacutecio-cultural
61
Notamos que nesse processo os usuaacuterios foram capazes de criar estrateacutegias para o
enfrentamento da sua condiccedilatildeo ressignificando a relaccedilatildeo com o tratamento e encontrando
meios de estar na vida social ldquomantendo-se em movimento na composiccedilatildeo contiacutenua de novos
territoacuterios tendo a crise como principal agente de mudanccedilas e criaccedilotildeesrdquo (GUATTARI
ROLNIK 1996 apud MILHOMENS MARTIN 2014 876)
Na pesquisa de Costa (2007) com um integrante da luta antimanicomial e profissionais
da enfermaria de agudos feminina do IMAS Nise da Silveira e do EAT (Espaccedilo Aberto ao
Tempo) tambeacutem encontramos olhares e concepccedilotildees em torno da crise que se afastam da
perspectiva claacutessica medicalocecircntrica da crise enquanto iacutendice de desajuste do quadro
psicopatoloacutegico resultando em periculosidade e risco social como vemos na fala a seguir
Para mim a concepccedilatildeo que eu tenho de crise eacute a seguinte eacute quando seus pensamentos
estatildeo de tal ordem bagunccedilados que vocecirc natildeo consegue fazer coisas corriqueiras que
vocecirc geralmente costuma fazer Para mim isso eacute uma crise Natildeo significa que isso
seja uma coisa violenta que vocecirc tenha uma crise e fique violento Vocecirc pode ter uma
crise de depressatildeo pode ficar muito triste natildeo conseguir se relacionar com as pessoas
Entatildeo para mim crise eacute quando vocecirc estaacute em um estado tal de confusatildeo de
imobilidade que vocecirc natildeo consegue fazer suas coisas corriqueiras Isso para mim eacute
uma concepccedilatildeo (Integrante do Movimento da Luta Antimanicomial) (COSTA
2007 105)
Para esse usuaacuterio a crise aparece enquanto um estado de confusatildeo em que os
pensamentos estatildeo de tal modo desorganizados que fica difiacutecil dar conta ateacute mesmo das coisas
mais simples do cotidiano Haacute nessa concepccedilatildeo a ideia da crise relacionada a uma perda que eacute
a perda das referecircncias de mundo que se havia constituiacutedo ateacute entatildeo A crise vem e mexe com
o sistema de referecircncia do sujeito ldquobagunccedilardquo os pensamentos A agressividade eacute um dos modos
de se reagir agrave essa ruptura com o instituiacutedo mas natildeo o uacutenico Assim o que fica enquanto questatildeo
dessa fala eacute o que fazer para que essa perda de sentidos natildeo seja paralisante De que modo
podemos aproveitar o movimento da crise para reconstruir os sentidos perdidos e imprimir
novos movimentos de vida aos sujeitos
A fala desse profissional aponta alguns caminhos
[] Pelo menos como eu vejo o surto psicoacutetico eacute exatamente a colocaccedilatildeo em xeque
das referecircncias que sustentavam uma situaccedilatildeo sustentavam um estado de coisas que
de repente rui ou ameaccedila ruir ou comeccedila a ficar em questatildeo ()Muitas vezes o que
a gente vecirc na loucura eacute uma perda mesmo de sentido (Psiquiatra supervisor da equipe
da enfermaria de agudos feminina) (COSTA 2007 104 grifos nossos)
[] Entatildeo muitas vezes o que a gente acredita o que gente constroacutei a partir da nossa
praacutetica eacute que a possibilidade de algueacutem estar intervindo trabalhando junto na crise
pode muitas vezes em algumas situaccedilotildees facilitar a possibilidade de construccedilatildeo ou
reconstruccedilatildeo de referecircncias Quais vatildeo ser em princiacutepio a gente sugere que natildeo se
sabe Porque tem uma seacuterie de fatores sociais em volta proacuteximo do sujeito no
contexto da famiacutelia que tendem muitas vezes a querer recobrar ou retomar uma
62
situaccedilatildeo anterior [] eu acho que quando a gente estaacute intervindo junto na crise a
gente tem que ter o cuidado de natildeo querer construir novos sentidos ou tatildeo pouco
querer reconstruir os velhos porque a gente natildeo sabe Porque eacute possiacutevel que alguns
natildeo suportem retomar aquilo nem tenham a menor condiccedilatildeo a gente natildeo tem como
saber isso antes A gente tem que estar acompanhando junto com cuidado fazendo o
que for preciso Agora eacute claro que por isso mesmo a crise eacute um momento privilegiado
de possibilidades de emergirem novos sentidos muitas vezes essa produccedilatildeo de
sentido eacute do proacuteprio sujeito Pode ser um sentido delirante mas enfim eacute delirante no
sentido positivo E aiacute eacute claro que se espera que a intervenccedilatildeo natildeo seja para calar esse
sentido (Psiquiatra supervisor da equipe da enfermaria de agudos feminina) (ibidem103 grifos nossos)
Haacute uma preocupaccedilatildeo colocada em natildeo se adiantar em querer restituir o estado de coisas
anterior pois a gente natildeo sabe pode ser que o sujeito natildeo sustente mais retornar agrave vida que ele
levava antes Nessa perspectiva a crise eacute mais do que apenas um estado de desequiliacutebrio
momentacircneo ela eacute iacutendice de que algo precisa ser mudado Os velhos arranjos que o sujeito
tinha para lidar com o sofrimento natildeo satildeo mais suficientes e com isto surge a necessidade de
rever esses arranjos e pensar em novas formas de organizaccedilatildeo para o sujeito e seu cotidiano
Segundo um dos entrevistados
A crise pode ser uma grande chance de vocecirc produzir alguma coisa com aquele
indiviacuteduo alguma coisa diferente produzir a mudanccedila Ou pode ser a chance de vocecirc
fazer exatamente nada no sentido de que tirou da crise o cara volta para a vida
exatamente igual (Psiquiatra da enfermaria de agudos feminina) (ibidem 102)
Voltar exatamente igual seria justamente ignorar o que a crise produz em termos de
subjetividade no sujeito Se tomamos a crise como iacutendice de uma mudanccedila na subjetividade
isto eacute na forma como aquele sujeito se constitui para o mundo entatildeo eacute preciso pensar se os
recursos que ele tem estatildeo agrave altura da nova realidade psiacutequica em que ele se encontra Assim eacute
preciso tomar a crise enquanto um acontecimento que pode apontar para a necessidade de uma
mudanccedila na realidade concreta do sujeito no modo em que ele vive nas suas relaccedilotildees sociais
no modo como organiza seu cotidiano etc A crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um
evento analisador4 que ldquo propicia a criaccedilatildeo de recursos e estabelece uma urgecircncia de
realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (COSTA 2007
101)
Sobre esse aspecto uma profissional conta
Uma coisa que eu lembrei que vocecirc falou da crise me lembrei do CH Ele morava na
casa dos pais que morreram e que foi a casa onde ele cresceu Os pais eram muito
austeros e ele tem muitas recordaccedilotildees naquela casa Ele haacute muito tempo vinha pedindo
para sair daquela casa principalmente quando ele estava ldquoem criserdquo quando ele natildeo
estava ldquobemrdquo Quando algumas coisas aparecem a agressividade por exemplo eacute um
dos sinais de quando ele estaacute em crise aquela doccedilura dele toda natildeo aparece aparece
4 Ver Guattari F (2004) Psicanaacutelise e transversalidade ensaios de anaacutelise institucional Aparecida SP Ideacuteias
amp Letras (Original publicado em 1972)
63
mais uma agressividade uma irritabilidade No caso dele parece que satildeo duas pessoas
parece que duas pessoas habitam o mesmo corpo E ele falava muito de querer sair e
quando ele melhorava acabava que O tempo passou eu natildeo sei muito bem montar
essa histoacuteria um trabalho que a Carla fez e a famiacutelia entendeu que era mais do que
quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil tambeacutem e aiacute se comeccedilou
a procurar a casa E aiacute teve um periacuteodo minus porque ao mesmo tempo em que ele queria
sair quando ele viu a saiacuteda isso mexeu minus em que ele natildeo ficou bem e pedia para ficar
no hospital porque para ele era insuportaacutevel ficar naquela casa mas a outra casa ainda
natildeo tinha saiacutedo e a gente ldquoNatildeo mas aqui no hospital natildeo vamos negociar vocecirc fica
um diardquo E aiacute acabou que ele conseguiu alugar a casa dele estaacute superfeliz Mas esse
periacuteodo da procura da casa foi um periacuteodo em que ele pode ateacute natildeo ter entrado numa
crise mas ele natildeo estava bem natildeo estava bem por todas essas mudanccedilas porque ele
natildeo queria tambeacutem eacute difiacutecil mudar Eu natildeo sei mas numa loacutegica psiquiaacutetrica
tradicional talvez nunca se mexesse na casa e talvez diriam ldquoViu soacute como natildeo foi
bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo (Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)
(ibidem 102)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado da histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social habitacional e
relacional Eacute a partir dela que a equipe entende que natildeo eacute mais possiacutevel sustentar a permanecircncia
do usuaacuterio naquela casa A profissional ao mesmo tempo ressalta o quanto eacute difiacutecil e delicado
esse trabalho que face agrave menor mudanccedila na sintomatologia do usuaacuterio corre o risco de ser
inteiramente questionado ldquo viu como natildeo foi bom jaacute estaacute voltando a sintomatologiardquo
Assim desconstruir o paradigma manicomial implica em uma aposta incansaacutevel no
sujeito em dar creacutedito ao que ele fala e aponta como direccedilotildees possiacuteveis para seu cuidado Ainda
assim eacute preciso reconhecer que o que quer que se construa com ele seraacute sempre uma construccedilatildeo
provisoacuteria posto que as pessoas estatildeo em constante movimento de territorizalizaccedilatildeo e
desterritorializaccedilatildeo de construccedilatildeo e desconstruccedilatildeo de si proacuteprio e do mundo ao seu redor
Estar aberto para essa construccedilatildeo exige que os profissionais possam rever as concepccedilotildees
de crise que embasam suas praacuteticas No lugar das certezas da Psiquiatria Claacutessica eacute preciso
abrir espaccedilo para uma ldquopraacutetica aberta agrave invenccedilatildeo agrave singularidade cuja tecnologia se vai
construindo permeaacutevel aos elementos de vidardquo (Costa 2007 105) A narrativa a seguir fala
um pouco desse aspecto do trabalho
Para mim eacute isso crise eacute isso Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o
sobrinho dele morreu assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver
com uma situaccedilatildeo que ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele
continuou trabalhando na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de
trabalho E eu me lembro que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele
tirar todos os documentos E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do
nascimento dele e ele me mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e
nasceu e contou histoacuteria A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com
ele porque ele explodiu[] E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos
de novo E a gente entendeu que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia
muito que a gente o ajudasse eacute como se ele pulverizasse e a gente entendia que ele
tinha um pedido de organizaccedilatildeo Tanto eacute que ele pediu para arrumar a cantina ele
64
queria arrumar as coisas da cantina depois do expediente Os documentos eu acho
que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que ele acabou entre aspas
perdendo Acho que a coisa foi meio por aiacute mas isso foi a histoacuteria dele com J seria
outra coisa com N seria outra Eu acho que vai muito por aiacute Por isso que eu natildeo tenho
uma coisa pronta Mas nas vivecircncias a gente vai vendo como vai fazendo (Psicoacuteloga
do Espaccedilo Aberto ao Tempo) (ibidem 105)
A perspectiva dessa profissional se contrapotildee a uma visatildeo mais tradicionalista da crise
que ldquovai dizer que [a crise] eacute um sintoma que ela estaacute descolada da realidade e vocecirc tem que
fazer a remissatildeo do sintoma entatildeo quando ele [o paciente] melhora eacute porque ele paacutera de delirar
e funciona em um registro mais normal mesmo que seja dopado de medicaccedilatildeo mesmo que
vocecirc esteja matando eacute isso(Psicoacuteloga do Espaccedilo Aberto ao Tempo)rdquo (Costa 2007 105)
Acompanhar o movimento do sujeito em seus percursos e trajetoacuterias em busca de sauacutede
(no Parque da Catacumba na arrumaccedilatildeo da cantina na retirada dos documentos) diz de uma
postura diante da crise fundada na sustentaccedilatildeo de um natildeo saber A sustentaccedilatildeo de natildeo ter uma
resposta agrave priori eacute o que vai permitir que se possa embarcar com o paciente em novos sentidos
para sua loucura Normalmente o senso comum tende a acreditar que uma pessoa em surto
psicoacutetico faz e fala coisas sem sentido e que por isso devemos ignoraacute-las A ideia aqui eacute agir no
sentido inverso tomar as accedilotildees e falas do sujeito em crise como um saber legiacutetimo sobre si
Trata-se de retomar um pouco a ideia de Freud do deliacuterio enquanto uma tentativa de cura e
apostar na capacidade inventiva do sujeito de criar saiacutedas para seu sofrimento
Enquanto uma visatildeo mais tradicionalista da crise retiraria o sujeito do seu contexto de
vida para isolaacute-lo em uma instituiccedilatildeo de tratamento sob a justificativa de monitorar avaliar e
examinar a evoluccedilatildeo do quadro psicopatoloacutegico uma visatildeo mais ampliada da crise vai situar
esse acontecimento dentro do contexto de vida da pessoa e buscar superaacute-la trabalhando com
os elementos que fazem parte de seu cotidiano como o territoacuterio as relaccedilotildees sociais a histoacuteria
de vida etc Trata-se portanto de buscar uma saiacuteda da crise a partir da histoacuteria de vida do
sujeito e de sua realidade acolhendo os caminhos que ele aponta Vista desse modo a crise eacute
um modo de subjetivaccedilatildeo que soacute se constitui no mundo concreto e coletivo o qual o sujeito faz
parte e soacute pode se transformar na medida em que esse mundo tambeacutem se transforma para ele
42 DESAFIOS E POTENCIALIDADES NO ACOLHIMENTO A CRISE
Segundo a Poliacutetica Nacional de Humanizaccedilatildeo (2013)
Acolher eacute reconhecer o que o outro traz como legiacutetima e singular necessidade de
sauacutede O acolhimento deve comparecer e sustentar a relaccedilatildeo entre equipesserviccedilos e
usuaacuterios populaccedilotildees Como valor das praacuteticas de sauacutede o acolhimento eacute construiacutedo
de forma coletiva a partir da anaacutelise dos processos de trabalho e tem como objetivo a
65
construccedilatildeo de relaccedilotildees de confianccedila compromisso e viacutenculo entre as
equipesserviccedilos trabalhadorequipes e usuaacuterio com sua rede socioafetiva (spag)
Tal poliacutetica considera ainda que o acolhimento eacute uma postura eacutetica e tecnologia
relacional de escuta qualificada a ser oferecida de acordo com agraves necessidades dos usuaacuterios e a
partir de uma avaliaccedilatildeo de ldquovulnerabilidade gravidade e riscordquo (BRASIL 2013)
Tendo essa concepccedilatildeo de acolhimento como direccedilatildeo visamos atraveacutes da anaacutelise dos
artigos estudados nessa pesquisa trazer algumas contribuiccedilotildees para pensar como tem se dado
o acolhimento agrave crise na RAPS (Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial) e quais satildeo os principais
impasses estrateacutegias e ferramentas cliacutenicas que os profissionais encontram na prestaccedilatildeo desse
cuidado no cotidiano dos serviccedilos de sauacutede
Desse modo a partir da revisatildeo da literatura podemos dizer que um dos primeiros
desafios que se coloca no acircmbito do acolhimento agrave crise eacute que este natildeo seja apenas um processo
de triagem Sobre esse aspecto a pesquisa de Paulon et al (2012) encontrou resultados
relevantes Os autores entrevistaram trabalhadores e gestores de emergecircncias de hospitais gerais
na cidade de Porto AlegreRS aleacutem de analisarem os protocolos utilizados por essas unidades
no processo de acolhimento
Nos protocolos analisados por Paulon et ali (2012) chama atenccedilatildeo o fato de que em
nenhum momento a palavra ldquoacolhimentordquo eacute utilizada Os autores destacam que em um desses
documentos a palavra ldquotriagemrdquo eacute utilizada em seu lugar como um criteacuterio que permite
ldquoclassificar e escolherrdquo
O texto de introduccedilatildeo deste documento segue descrevendo a origem militar desse
termo utilizado em campos de batalha para escolher ldquoquem valeria a pena salvarrdquo de
acordo com os recursos disponiacuteveis dentre aqueles feridos em combate ldquoo objetivo
geral da classificaccedilatildeo era retornar o maior nuacutemero possiacutevel de soldados ao campo de
batalhardquo (FERNANDES RAMOS FRUSTOCKL FRANCcedilA sd 1 apud PAULON
ET AL 2012 75)
Difiacutecil pensar em produzir relaccedilotildees de cuidado a partir de um texto que orienta os
profissionais a pensarem nos seus pacientes como ldquosoldados em um campo de batalhardquo Vemos
que essa concepccedilatildeo de acolhimento enquanto triagem natildeo se restringe apenas a burocracia de
um documento sem efeitos na praacutetica mas encontra-se presente e viva no discurso dos
profissionais desse hospital como observamos na fala a seguir ldquono acolhimento os pacientes
relatam o seu problema e a partir daiacute eacute triado de acordo com a classificaccedilatildeo de riscordquo (
PAULON ET AL 2012 76 grifo do autor)
Outra profissional entrevistada associa o acolhimento ao filme ldquoTempos Modernosrdquo
relembrando a cena em que o personagem de Carlitos de tanto apertar parafusos sai repetindo
66
os movimentos desconexos rua afora Em seguida acrescenta que ldquoa sua proacutexima escala de
acolhimento ocorreraacute dali a dois meses e sente-se aliviada por isso pois prefere ficar nas
maacutequinas de raios-X do que ficar ali na linha de frenterdquo (ibidem 76)
Talvez o comentaacuterio da enfermeira revele um querer colocar as coisas em seus
ldquodevidos lugaresrdquo uma vez que o trabalho com a maquinaria requer mais
apropriadamente o tipo de conduta que lhe parece ser exigida para atuar nos
acolhimentos da emergecircncia Aleacutem disso as maacutequinas de raio-X natildeo precisam ser
esvaziadas de subjetividade do conteuacutedo psicossocial que insiste em ser sugado das
ldquopessoas-parafusordquo da linha de montagem do acolhimentotriagem (ibidem 76)
O acolhimento-triagem transforma a linha de cuidado em ldquolinha de montagemrdquo
tomando o sujeito como um objeto que precisa ser ldquotriadordquo ldquoencaminhadordquo e ldquoclassificadordquo
de acordo com os criteacuterios de um protocolo Perde-se a dimensatildeo leve e relacional desse
cuidado Aspectos como a escuta a produccedilatildeo de viacutenculo e a valorizaccedilatildeo do encontro natildeo tecircm
espaccedilo para emergir em meio ao tempo altamente controlado e aos procedimentos mecanizados
desse cuidado
Com resultado produz-se uma burocratizaccedilatildeo dos dois lados os pacientes veem o
acolhimento como mais um empecilho para ldquoresolverrdquo suas necessidades de sauacutede ou mesmo
para ldquousufruir do consumo de sua dose procedimentalrdquo e os teacutecnicos como castigo obrigaccedilatildeo e
perda de tempo pois estatildeo se afastando do cuidado que seria ldquoo verdadeiro cuidadordquo o cuidado
dos procedimentos das maacutequinas da medicaccedilatildeo etc
O que prevalece assim eacute um cuidado predominantemente vertical de procedimentos
biomeacutedicos para com um usuaacuterio submisso e em estado de passividade uma perfeita
apresentaccedilatildeo do claacutessico ldquopacienterdquo (ibidem 78)
Ao referir-se sobre o acolhimento palavras como ldquoraacutepido efetivo e estabilizadordquo foram
uma constante no discurso dos profissionais Segundo um dos entrevistados
A nossa proposta de acolhimento eacute um acolhimento raacutepido ele tem que ser raacutepido e
efetivo Porque agraves vezes o paciente chega pra mim e eu tenho que conseguir classificar
ele raacutepido justamente pra ele ter um atendimento mais raacutepido (sic)rdquo (ibidem 78)
O risco e a possibilidade de morte muitas vezes colocada associada agrave percepccedilatildeo de um
corpo fiacutesico em colapso eacute o que demanda a accedilatildeo raacutepida O diaacutelogo torna-se empobrecido e
restrito ao que estaacute prescrito nos protocolos de atendimento e o contato reduz-se a execuccedilatildeo de
procedimentos biomeacutedicos que visam a estabilizaccedilatildeo (medicaccedilatildeo afericcedilatildeo dos sinais vitais
entre outros)
A funccedilatildeo da emergecircncia segundo os entrevistados seria devolver a estabilidade das
funccedilotildees orgacircnicas ao corpo que estaacute sendo assistido () E todos os procedimentos
precisam ser feitos rapidamente pois a depender da gravidade do dano instalado
naquele organismo esse desequiliacutebrio poderaacute levar agrave morte (ibidem 78)
67
Entende-se que eacute necessaacuterio que a pessoa em situaccedilatildeo de crise tenha acesso ao cuidado
de forma raacutepida No entanto o que se observa eacute que a rapidez mencionada pelos profissionais
natildeo se restringe somente ao tempo de espera do atendimento mas as etapas e fases do
acolhimento Assim no intuito de ldquoacelerarrdquo a linha de cuidado o paciente recebe um
atendimento fragmentado e burocratizado cujo objetivo eacute conseguir determinar no menor
tempo possiacutevel qual paciente pode esperar qual deve ser atendido imediatamente qual deve ser
encaminhado para outro serviccedilo e qual deveraacute ser internado Sobre esse aspecto um entrevistado
ressalta
O funcionamento da emergecircncia eacute uma coisa mais Mc Donaldrsquos natildeo tem entrada
primeiro prato segundo prato terceiro prato Eles querem ver quem eacute que tem risco
que tenha que internar senatildeo olham o que precisa e lsquodeursquo A emergecircncia eacute voltada
para o foco da doenccedila ela focaliza no tratamento que estanque aquele sofrimento
emergenterdquo (sic) (ibidem 79 grifos nossos)
Os autores pontuam que essas satildeo decisotildees complexas que natildeo podem ser tomadas ldquono
menor tempo possiacutevelrdquo sem que haja necessariamente um processo de simplificaccedilatildeo do
atendimento no qual ldquoo trabalhador tenta adequar a demanda trazida pelo usuaacuterio agravequilo de
que o serviccedilo dispotildee para poder lidar com ela e salvaguardar algum sucesso no resultado do
trabalhordquo (ibidem 79)
Assim tem-se o que Merhy (2002) descreve como ldquotrabalho mortordquo isto eacute um cuidado
que ldquonatildeo estaacute em movimento- em relaccedilatildeordquo (apud PAULON ET AL 2012 79) O sujeito eacute
visto como um ldquoproblemardquo que precisa ser ldquoresolvidordquo a partir do uso das tecnologias que o
serviccedilo dispotildee Natildeo haacute tempo para se descobrir o que haacute de singular na crise daquele sujeito ou
inventar outras articulaccedilotildees que possam dar conta desse sofrimento
Esvazia-se o processo isolam-se as anguacutestias e a complexidade do atendimento da
pessoa que demanda cuidados adequando-a ao que o hospital pode fornecer ldquoOlham
o que precisa e lsquodeursquordquo (sic) (PAULON ET AL 2012 79 grifo do autor)
O acolhimento-triagem eacute a expressatildeo de todo um modo de cuidado duro constituiacutedo por
certos ldquosaberes bem definidosrdquo orientados para que as respostas sejam as mais adequadas e
eficientes no menor tempo possiacutevel Em nome de ideais como a otimizaccedilatildeo do tempo e dos
recursos reduccedilatildeo dos custos e do foco na sintomatologia produz-se um cuidado
homogeneizado padratildeo ldquoMc Donaldsrdquo que jaacute tem em sua cesta de ferramentas todas as
respostas possiacuteveis Assim cabe perguntar
Se o foco da atenccedilatildeo estaacute direcionado aos sinais vitais e agrave sintomatologia fiacutesica
presente no quadro cliacutenico em nome de uma agilidade e eficiecircncia no atendimento
qual seraacute o espaccedilo reservado para tudo o que natildeo estiver inscrito nesse script O que
sobra do sujeito-usuaacuterio que chega com sofrimentos difusos numa emergecircncia Que
acontece quando o tipo de dor e sofrimento que ldquourgerdquo num usuaacuterio eacute de outra ordem
68
que natildeo aquela que costuma estar no foco desses serviccedilos (PAULON ET AL 2012
81)
Parece que haacute um despreparo para lidar com as situaccedilotildees subjetivas que fogem do olhar
cartesiano da Medicina Tradicional e que exigem dos trabalhadores uma disponibilidade outra
de entrar em contato com a pessoa em sofrimento emprestar seu tempo seu corpo seu afeto
As entrevistas apontam que ldquoos profissionais sentem medo de cuidar daquilo que
desconhecem do que natildeo foram capacitadosrdquo (sic)rdquo (ibidem 86) Um outro desafio que
podemos destacar relacionado a esse despreparo eacute a interferecircncia do preconceito e do
julgamento moral no atendimento agrave algumas situaccedilotildees de sauacutede mental Segundo os
pesquisadores
O julgamento moral estaacute presente desde a triagem a qual culmina em uma
classificaccedilatildeo de risco que mescla a objetividade de protocolos organicistas com um
olhar moralizante da situaccedilatildeo que se encontra o usuaacuterio que chega para atendimento
o que acaba relegando a sauacutede mental a um segundo plano e fazendo seleccedilotildees a partir
de determinados paracircmetros como [] a comunhatildeo de preconceitos e valores sociais
no descaso ao atendimento de pacientes categorizados como ldquoessencialmente natildeo
urgentesrdquo (os alcooacutelatras drogados e pacientes psiquiaacutetricos) a presteza maior no
atendimento a usuaacuterios de classe social e niacutevel cultural mais abastados a importacircncia
da identificaccedilatildeo dos que fingem ou estatildeo dizendo a verdade sobre suas urgecircncias e no
consenso de que se a dor ou o problema eacute antigo quem esperou tanto para acessar o
serviccedilo pode esperar mais (Neves 2006 692 apud PAULON ET AL 2012 84)
No caso de crises relacionadas ao uso abusivo de aacutelcool e outras drogas a equipe das
emergecircncias tende a assumir uma postura acusatoacuteria relegando a responsabilidade da crise ao
usuaacuterio que teria escolhido seguir esse caminho Acredita-se que por estes nada se tem a fazer
e que o melhor eacute ldquocuidar de quem realmente quer ser cuidadordquo Na praacutetica o atendimento dessas
situaccedilotildees revela ldquodescaso incapacidade de escuta ou ateacute negligecircncia para com sujeitos em crise
de abstinecircncia ou torporrdquo (PAULON ET AL 2012 85) Os autores ressaltam que
Nesse sentido subjugar um cidadatildeo que chega agrave emergecircncia com algum tipo de
sofrimento psiacutequico limite reduzindo-o a um lugar de pecado de vergonha pelos seus
atos fora dos padrotildees aceitos socialmente emerge da junccedilatildeo das loacutegicas meacutedica e
judiciaacuteria efetuada pela ativaccedilatildeo de categorias elementares da moralidade de um
discurso essencialmente parental-infantil que eacute o discurso dos cuidadores quando se
imbuem do saber absoluto sobre ldquoo que eacute bom para o outrordquo(ibidem85 )
O atravessamento das expectativas dos profissionais sobre a vida do outro somado aos
valores morais e culturais em vigor na sociedade fomentam um processo de culpabilizaccedilatildeo da
pessoa que procura ajuda o que pode culminar em uma niacutetida desresponsabilizaccedilatildeo com o
cuidado desses pacientes como vemos nos trechos a seguir
Esses sim esses noacutes da equipe de enfermagem temos bastantes dificuldades de lidar
porque tu vecirc o viacutecio como algo que a pessoa vai e faz por que quer tem livre arbiacutetrio
ele escolheu o viacutecio Ateacute as primeiras idas ateacute antes da dependecircncia (sic) (ibidem
84 grifo do autor)
69
Chegaram a dizer que ele era uma pessoa egoiacutesta e que natildeo tinha condiccedilotildees de
convivecircncia que era pra eu e minha matildee sairmos de casa ou botar(mos) ele pra fora
(CONTE ET AL 2015 1745 grifo do autor)
Nesse contexto eacute comum por exemplo que a equipe entenda que o ldquoatendimentordquo
possiacutevel eacute a resoluccedilatildeo da demanda fiacutesica do alcoolista (reestabelecimento dos sinais vitais
hidrataccedilatildeo etc) sem que haja nenhum tipo de encaminhamento para um tratamento continuado
na rede ou mesmo uma abordagem sobre a situaccedilatildeo que a pessoa se encontra naquele momento
Esse olhar do cuidado orgacircnico e centrado nos procedimentos fiacutesicos tem se apresentado
como um outro importante desafio a se transpor no niacutevel das praacuteticas de cuidado Nas
emergecircncias gerais cenaacuterio da pesquisa isso fica especialmente evidente Os profissionais
tendem a atribuir mais valor agrave dor fiacutesica do que a psicoloacutegica Como se quem estivesse sofrendo
por um trauma um corte ou uma fratura precisasse mais do atendimento do que um paciente
esquizofrecircnico dependente quiacutemico ou com crise de ansiedade Desse modo as demandas
subjetivas satildeo vistas como aquelas que ldquopodem esperarrdquo e que tomam lugar das demandas
fiacutesicas compreendidas nesta loacutegica como aquelas ldquorealmente urgentesrdquo Sobre esse aspecto
Jardim e Dimenstein (2007 182) ressaltam
O foco do trabalho das urgecircncias psiquiaacutetricas estaacute primordialmente no procedimento
em sua dimensatildeo bioloacutegica no corpo pensado como objeto de intervenccedilatildeo da
anatomia patoloacutegica e qualquer fator que extrapole esse acircmbito eacute desconsiderado
Entatildeo ateacute mesmo enquanto doenccedila mental a loucura foge da loacutegica das urgecircncias
Natildeo se manifesta enquanto lesatildeo palpaacutevel ou visiacutevel [ela] evoca outros
questionamentos incomoda por diferir tanto das outras demandas natildeo se encaixa no
espaccedilo natildeo se submete agrave autoridade potildee em xeque os teacutecnicos e seus saacutebios
conhecimentos desvela as suas impotecircncias (apud PAULON ET AL 2012 87)
Mesmo nos casos em que claramente sabe-se que o motivo da falecircncia do corpo eacute o
sofrimento subjetivo o alvo do cuidado continua sendo limitado ao reparo do dano provocado
ao corpo fiacutesico
Quando uma crianccedila chega agrave emergecircncia por automutilaccedilatildeo ou mesmo quando um
adulto adentra a sala com os pulsos cortados os profissionais entendem que sua
funccedilatildeo nesse caso eacute de limpar e suturar os ferimentos O motivo da consulta eacute o
ferimento - novamente o fiacutesico - e os possiacuteveis procedimentos que nele possam ser
executados Jaacute os motivos do plano psiacutequico e social que possivelmente causaram tal
emergecircncia (e natildeo raras vezes causaratildeo novamente e justificaratildeo uma reinternaccedilatildeo ndash
uma das variaacuteveis determinantes da hiperlotaccedilatildeo das emergecircncias) natildeo satildeo alvo de
investimentos por parte das equipes (PAULON ET AL 2012 85)
Haacute um certo mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo pois ao contraacuterio da
patologia orgacircnica ele natildeo se submete as loacutegicas de um saber estruturado e natildeo ldquo se resolverdquo a
partir de um manejo ou intervenccedilatildeo O sofrimento subjetivo retorna e continua a colocar em
xeque os profissionais seus saberes e as instituiccedilotildees Em um serviccedilo como a emergecircncia o que
70
natildeo pode ser ldquoresolvidordquo eacute frequentemente esquecido o que natildeo deixa de ser paradoxalmente
uma forma de ldquoresoluccedilatildeordquo do problema
Nos serviccedilos especializados embora a demanda de sauacutede mental seja mais evidente
parece que a direccedilatildeo do cuidado eacute igualmente no sentido de invisibilizaacute-la Pesquisas como a
de Zeferino et al (2016) sobre a percepccedilatildeo dos trabalhadores da sauacutede sobre a atenccedilatildeo agrave crise
sauacutede mental apontam que a intervenccedilatildeo muitas vezes eacute no sentido de ldquocalarrdquo o sintoma
revelando que embora o modelo de sauacutede tenha mudado as praacuteticas medicalizantes e
hospitalocecircntricas ainda prevalecem
Essa pesquisa foi feita com 156 alunos do curso ldquoCrise e Urgecircncia em Sauacutede Mentalrdquo
ldquotrabalhadores da RAPS com formaccedilatildeo em niacutevel universitaacuterio que atuam no cuidado em sauacutede
mental no Sistema Uacutenico de Sauacutede (SUS) oriundos das diversas Regiotildees do Brasil
selecionados pelo Ministeacuterio da Sauacutederdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag) Como forma de
cuidado na crise os participantes citaram majoritariamente medidas como ldquocontenccedilatildeo
medicamentosa contenccedilatildeo mecacircnica e internaccedilatildeo accedilotildees que se limitam agrave diminuiccedilatildeo de
sintomasrdquo (idem p) como descrito nas falas abaixo
Quando chegam ao serviccedilo dependendo de como estejam satildeo contidos no leito com
faixas de contenccedilatildeo pelos monitores e depois satildeo vistos pelos meacutedicos Psiquiatras que
determinam a contenccedilatildeo medicamentosa feita a administraccedilatildeo da medicaccedilatildeo ficam
em observaccedilatildeo (E1 A124 - CAPS II) (ibidem spag )
Nas urgecircncias a primeira conduta eacute a intervenccedilatildeo medicamentosa que ocorre pela
equipe de enfermagem tanto na unidade como em domiciacutelio em alguns casos com
apoio da Guarda Municipal para contenccedilatildeo fiacutesica Logo que possiacutevel o paciente eacute
avaliado pelo meacutedico que quase sempre orienta a internaccedilatildeo (E1 A64 - CAPS II)
(ibidem spag)
Quando temos um usuaacuterio em crise e a famiacuteliar liga para pedir ajuda da equipe do
CAPS orientamos que entre em contato com o SAMU para levaacute-lo ao hospital e
entatildeo o usuaacuterio ser medicado Se a Crise for muito forte este eacute encaminhado para a
capital onde seraacute internado[] (E1 A147 - CAPS II) (ibidem spag)
Nota-se que as primeiras intervenccedilotildees mencionadas pelos profissionais satildeo a contenccedilatildeo
fiacutesica eou medicamentosa seguida do encaminhamento para o hospital A avaliaccedilatildeo da situaccedilatildeo
de crise eacute vista como uma responsabilidade uacutenica e exclusiva do meacutedico da qual a equipe natildeo
participa Na terceira fala por exemplo observamos que o profissional sequer tenta entender a
situaccedilatildeo que levou o usuaacuterio a entrar em crise O CAPS tampouco parece ser visto como um
dispositivo a ser acionado nas situaccedilotildees de crise O encaminhamento imediato eacute ligar para o
SAMU para que o usuaacuterio seja levado ao hospital
Embora o CAPS seja o dispositivo por excelecircncia substitutivo ao hospital e por isso
privilegiado no atendimento agraves situaccedilotildees de crise a expectativa dos profissionais eacute de que
71
outros serviccedilos se ocupem da crise e que o usuaacuterio retorne ao CAPS quando estiver
ldquoestabilizadordquo conforme vemos a seguir
A equipe tem se mostrado omissa quando presencia um momento de crise e ao inveacutes
de intervir busca encaminhar e se livrar do problema (E1 A141 - CAPS II) (ibidem
spag)
O usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao Hospital Geral para a
estabilizaccedilatildeo retornando ao CAPS assim que estiver compensado para a
continuidade do seu tratamento (E1 A92 - CAPS II) (ibidem spag)
A ideia da estabilizaccedilatildeo associada prioritariamente agrave intervenccedilatildeo farmacoloacutegica e a
hospitalizaccedilatildeo aleacutem de reforccedilar o modelo manicomial deposita a esperanccedila da melhora em uma
soluccedilatildeo externa e maacutegica retirando a possibilidade do sujeito se responsabilizar pelo seu
sintoma e talvez encontrar outra soluccedilatildeo para sua compensaccedilatildeo Segundo os autores ldquoVaacuterias
correntes teoacutericas tem apontado que o objetivo das praacuteticas de sauacutede mental precisa ser a
ampliaccedilatildeo da capacidade de cada um lidar consigo mesmo e com os outros e natildeo apenas a
remissatildeo de sintomasrdquo (ZEFERINO ET AL 2016 spag)
Assim embora alguns profissionais reconheccedilam a necessidade de uma mudanccedila em
relaccedilatildeo a essas praacuteticas parecem ter dificuldades de nortear suas accedilotildees sob a loacutegica do modelo
psicossocial como podemos ver nas falas a seguir
Vejo-me com tantas perguntas sobre crises como identificaacute-la como agir o que natildeo
fazer a resposta medicamentosa me parece faacutecil e raacutepida poreacutem me angustia tecirc-la
como resposta gostaria de descobrir outros caminhos (E1 A52 - CAPS II) (ibidem
spag)
A equipe tem se esforccedilado no cuidar natildeo tem sido faacutecil pois exige um
amadurecimento da mesma procurando natildeo limitar na terapia medicamentosa no
modelo meacutedico-centrado mas sim em acolher natildeo soacute o paciente mas os familiares
buscando interagir com os parceiros da RAPS Nas nossas reuniotildees de equipe sempre
discutimos casos novos (E1 A66 - CAPS I) (ibidem spag)
Destaca-se nesse contexto que a formaccedilatildeo hegemonicamente biomeacutedica e a
inadequaccedilatildeo dos curriacuteculos para aacuterea da sauacutede mental reforccedilam o apelo agrave resposta ldquoprontardquo da
medicaccedilatildeo e contribuem para a manutenccedilatildeo do modelo manicomial ldquoO diagnoacutestico apressado
a conduta extremamente teacutecnica e desumana a medicalizaccedilatildeo de todas as queixas e as
dificuldades no contatordquo (ibidem spag) satildeo expressotildees de um modelo de cuidado duro que
imbuiacutedo dos ideais de neutralidade da praacutetica meacutedica simplifica e compromete a integralidade
do cuidado Sobre esse aspecto um profissional comenta
Trabalhamos ainda focados na praacutetica meacutedica quase em todos os episoacutedios a
medicalizaccedilatildeo ocorre em primeiro lugar Principalmente com a falta de capacitaccedilatildeo
dos profissionais envolvidos Esta atuaccedilatildeo soacute fortalece a dependecircncia do hospital
psiquiaacutetrico (E1 A53 - CAPS II) (ibidem spag)
72
Para agravar a situaccedilatildeo a rede tambeacutem natildeo consegue dar respostas pois tambeacutem natildeo
estaacute preparada para tais situaccedilotildees Ocorre que esse usuaacuterio percorre um caminho de
sofrimento e descaso (E1 A141 - CAPS II) (ibidem spag)
Na pesquisa de Almeida et al (2012) com 14 profissionais de quatro equipes do SAMU
no estado de Santa Catarina a falta de capacitaccedilatildeo teacutecnica para o atendimento agraves situaccedilotildees de
crise tambeacutem aparece enquanto um desafio As dificuldades relatadas pelos profissionais
perpassam o medo a falta de conhecimento sobre a crise e o despreparo no momento de abordar
o paciente
Acredito que a experiecircncia do dia a dia me faz ter certo preparo teacutecnico mas com
dificuldade na questatildeo psicoloacutegica Por ser o SAMU um serviccedilo de Urgecircncia e
Emergecircncia e natildeo de continuaccedilatildeo do cuidado realiza-se o necessaacuterio mas acho que
poderiacuteamos ter um preparo melhor Fico muito em alerta a tudo o que o paciente faz
a forma dele agir e de se expressar Eu abordo porque tem que abordar mas eu natildeo me
sinto preparado Pode-se dizer que estou preparado na medida do possiacutevel pois
consigo realizar teacutecnicas para contenccedilatildeo fiacutesica mas natildeo psicoloacutegica Em algumas
situaccedilotildees natildeo me sinto preparado e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia militar
No caso de agressividade natildeo me sinto preparado Acredito que precisariacuteamos de mais
orientaccedilatildeo pois eacute a uacutenica aacuterea que a gente natildeo tem capacitaccedilatildeo Quando consigo me
aproximar na abordagem a pessoa fica tranquumlila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmo
Com certeza precisa mais coisa para o atendimento orientaccedilatildeo Acredito que a falta
de preparo e de conhecimento associada ao estigma do medo faz com que o
atendimento siga uma forma natildeo correta
(P1P2P3P4P5P6P7P9P10P13P14)(ALMEIDA ET AL 2012 710)
A falta de preparo muitas vezes eacute o que justifica o uso da forccedila fiacutesica e da agressividade
conforme retratado nas falas ldquoquando consigo me aproximar na abordagem a pessoa fica
tranquila mas quando natildeo eacute na forccedila mesmordquo ldquoem algumas situaccedilotildees natildeo me sinto preparado
e abordo a pessoa com a presenccedila da poliacutecia miliarrdquo ldquono caso de agressividade natildeo me sinto
preparadordquo Assim vemos a importacircncia do investimento em processos de educaccedilatildeo
permanente supervisatildeo cliacutenica e cursos de formaccedilatildeo para que os profissionais encontrem meios
de manejar as situaccedilotildees de crise sem necessidade do uso de violecircncia
A formaccedilatildeo precisa ser vista como um ldquoprocesso dinacircmico e contiacutenuo de construccedilatildeo do
conhecimento pautado no diaacutelogo em que todos os atores assumam papel ativo no processo de
aprendizagem atraveacutes de uma abordagem criacutetica e reflexiva da realidaderdquo (ibidem713)
Acreditamos que atraveacutes dela as concepccedilotildees de crise o imaginaacuterio social da loucura e os
conceitos de risco e periculosidade podem ser revisitados e problematizados fornecendo
subsiacutedios para uma praacutetica orientada para a escuta das necessidades do sujeito do viacutenculo e do
cuidado em liberdade
Assim podemos dizer que o cuidado dos profissionais ainda representa em grande parte
caracteriacutesticas do modelo asilar como intervenccedilotildees centradas na contenccedilotildees fiacutesica e
medicamentosa excesso de internaccedilotildees acolhimento burocratizado falta de preparo na
73
abordagem ao paciente em crise resultando no uso da forccedila fiacutesica e da agressividade aleacutem de
praacuteticas de preconceito e discriminaccedilatildeo sendo estes alguns dos principais desafios apontados
pela literatura estudada no acolhimento agrave crise no acircmbito da Reforma Psiquiaacutetrica e do SUS
(Sistema Uacutenico de Sauacutede)
Quanto agraves potencialidades no acolhimento agrave crise podemos destacar algumas estrateacutegias
referidas pela literatura Na pesquisa de Lima et al (2012) da qual participaram profissionais
usuaacuterios gestores e familiares de 11 CAPS nas cidades da Bahia e Sergipe emergiram enquanto
elementos que favorecem o manejo da crise segundo a perspectiva dos participantes
a) acolhimento diurno e noturno b) observaccedilatildeo continuada e contiacutenua c) atenccedilatildeo
domiciliar (visitas domiciliares) d) responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso
e) presenccedila do psiquiatra na equipe para garantir o ecircxito da prescriccedilatildeo f) negociaccedilatildeo
e apoio concreto ao familiar para que o internamento seja o uacuteltimo recurso utilizado
g) elaboraccedilatildeo de cartilha com orientaccedilatildeo sobre como lidar com a crise de pessoas com
transtornos para profissionais natildeo especializados em sauacutede mental e para familiares
h) implantaccedilatildeo das ldquoOficinas de criserdquo 5nos CAPS i) estabelecimento de limites para
os usuaacuterios atraveacutes de regras de convivecircncia para evitar o uso de aacutelcool e outras drogas
no CAPS e como sugerem os parentes j) na perspectiva dos familiares natildeo podem
faltar carinho compreensatildeo e feacute (LIMA ET AL 2012 430 grifo nosso)
Recursos como o acolhimento diurno e noturno quando possiacutevel no caso de CAPS III
associado agrave observaccedilatildeo contiacutenua e agrave responsabilizaccedilatildeo pelo cuidado medicamentoso indicam a
importacircncia de um cuidado mais intensivo nos momentos de crise Uma estrateacutegia possiacutevel
nesse sentido eacute aumentar a frequecircncia do paciente no serviccedilo para que a equipe possa
acompanhar o caso mais de perto e oferecer suporte antes que a situaccedilatildeo se agrave Isso implica
em uma revisatildeo do Projeto Singular Terapecircutico para construir outros espaccedilos onde o sujeito
possa produzir sauacutede A inclusatildeo de recursos do territoacuterio e espaccedilos no proacuteprio serviccedilo que
possam dar alguma continecircncia agrave desorganizaccedilatildeo e aos sentimentos disruptivos que emergem
na crise tambeacutem eacute uma accedilatildeo fundamental na direccedilatildeo de um cuidado territorial e em liberdade
Outras pesquisas como a de Peireira Saacute e Miranda (2017) indicam a utilizaccedilatildeo da
intensividade do cuidado de forma exitosa permitindo a saiacuteda do estado de crise
O irmatildeo de Luciana e uma profissional ressaltam que a melhora da adolescente fora
resultado principalmente do aumento dos dias em que esta permanecia no serviccedilo
da disponibilizaccedilatildeo de um carro para transportaacute-la e da intensificaccedilatildeo dos contatos
dos profissionais com a famiacutelia (ibidem 3738 )
As visitas domiciliares tambeacutem se mostram estrateacutegias muito eficientes nos momentos
de crise em que natildeo eacute possiacutevel para o sujeito ir ateacute o serviccedilo Baseadas em uma tecnologia-leve
e relacional de cuidado tem como suas principais ferramentas a aposta no encontro no viacutenculo
5 Segundo os autores trata-se de um espaccedilo que ldquomanteacutem o usuaacuterio em crise sob acompanhamento intensivo
tendo como premissa soacute recorrer agrave internaccedilatildeo como uacuteltima alternativardquo (LIMA ET AL 2012 429)
74
na escuta qualificada e no diaacutelogo Aleacutem disso indicam a importacircncia de dois elementos
fundamentais na loacutegica da atenccedilatildeo psicossocial a intervenccedilatildeo dentro do contexto de vida do
sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) e a disponibilidade de prestar o cuidado
no momento em que ele eacute necessaacuterio
Outro achado da pesquisa de Lima et al (2012) que reflete a potecircncia da tecnologia
vincular no acolhimento agrave crise eacute a percepccedilatildeo dos profissionais que os usuaacuterios mais antigos e
conhecidos pela equipe tecircm menos chances de serem internados em uma situaccedilatildeo de crise do
que os novos Sobre esse aspecto ressaltamos a fala de uma trabalhadora entrevistada
Uma coisa interessante tambeacutem eacute que os pacientes jaacute conhecidos jaacute usuaacuterios haacute algum
tempo os profissionais de referecircncia deles agraves vezes jaacute datildeo conta de alguma forma A
gente observa situaccedilotildees assim os pacientes novos em geral que satildeo encaminhados pra
emergecircncia tecircm um quadro de agitaccedilatildeo e precisam de medicaccedilatildeo Mas outros casos a
gente jaacute consegue controlar sem medicaccedilatildeo pelos viacutenculos mas os que jaacute satildeo da
casa Os que jaacute tecircm um tempo conosco Como a gente tem vivenciado uma coisa que
se prende ateacute a noacutes psiquiatras porque a gente lida muito com a medicaccedilatildeo aquele
paciente sair daquele quadro sem medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431 grifo nosso)
Assim o viacutenculo e a escuta quando bem utilizados possibilitam a estabilizaccedilatildeo do
quadro de crise sem que haja necessidade de se utilizar tecnologias duras como a internaccedilatildeo
ou (leves-duras) como a medicaccedilatildeo Entrar em contato com a crise entendendo o contexto em
que ela ocorre e permitindo que o sofrimento do sujeito se expresse eacute o ponto de partida para
que algum acolhimento possa se dar
Acolher a crise poder escutar que crise eacute essa crise psiquiaacutetrica crise do sujeito
poder escutar o sujeito e aproveitar a crise como sendo a forma que ele tem de se
manifestar ele conseguiu colocar no sintoma aquele sofrimento todo que ele tava
entatildeo aproveitar fazer uma escuta e acolher aquilo antes de vocecirc calar com a
medicaccedilatildeo (LIMA ET AL 2012 431)
A pesquisa de Willrich et al (2013) com profissionais de um CAPS II em Alegrete (RS)
tambeacutem aponta a importacircncia do viacutenculo e da construccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de reciprocidade com
o usuaacuterio como estrateacutegias fundamentais no acolhimento ao momento de crise como indicam
as falas dos trabalhadores participantes desse estudo
Acho que a gente tem que ter esse cuidado quando a pessoa estaacute em crise ter sempre
algueacutem que possa estar intensivamente mais perto (A4) (ibidem659)
A gente vai para desarmar a gente natildeo vai se o cara estaacute irritado violento eu natildeo
vou laacute para provocar a violecircncia nele Pelo contraacuterio eu quero que ele se apoacuteie em
mim para ver se ele consegue desarmar a tal da violecircncia que estaacute na cabeccedila dele Eacute
assim que eu procedo nesses assuntos () aiacute ele vem e ndash Ah disco voador que natildeo
sei o quecirc Eu natildeo vou dizer que natildeo existe disco voador Eu entro na loucura faccedilo
um flerte com a loucura dele para tentar construir um pouco de sauacutede ir construindo
Num primeiro momento natildeo tem como ir contra () Tem coisas que tu natildeo vai
conseguir manejar tem que ter estar junto com outros Aiacute tem que segurar tem que
sentar tem que acalmar (A6) (ibidem 659 grifo do autor)
75
A possibilidade de sustentar estar junto com o usuaacuterio tomando suas anguacutestias como
reais ainda que resultem de uma experiecircncia alucinatoacuteria ou delirante possibilita a construccedilatildeo
de uma relaccedilatildeo de confianccedila entre o profissional e o usuaacuterio A partir desta relaccedilatildeo o serviccedilo
comeccedila a se constituir enquanto um espaccedilo de apoio como uma referecircncia concreta para o
usuaacuterio de onde buscar ajuda nos momentos de crise
A tomada de responsabilidade desse CAPS em relaccedilatildeo agrave crise se transmite tambeacutem na
clareza de que o suporte nesses momentos precisa ser imediato conforme vemos a seguir
A gente sempre procura eacute pedir para as colegas laacute da frente que quando elas atendem
o telefone eacute para perguntar se eacute urgecircncia ou natildeo Se eacute um caso que um paciente estaacute
agredindo o familiar ou coisa a gente tem que largar tudo que estaacute fazendo para ir
atender (A2)( WILLRICH ET AL 2013 659)
Enquanto na pesquisa de Zeferino et al (2016) mencionada anteriormente a primeira
conduta ao atender uma situaccedilatildeo de crise por telefone era orientar a famiacutelia a chamar o SAMU
vecirc-se que neste CAPS a equipe entende as situaccedilotildees de crise como uma missatildeo desse serviccedilo
e por isso como uma prioridade na agenda Essa postura de ldquolargar tudo o que se estaacute fazendo
para ir atenderrdquo indica um compromisso eacutetico muito forte com o cuidado no territoacuterio e com a
desinstitucionalizaccedilatildeo Isso natildeo significa que a equipe natildeo possa avaliar que eacute necessaacuterio
internar mas antes ela busca apropriar do caso e oferecer suporte
A direccedilatildeo da internaccedilatildeo como o uacuteltimo recurso a ser acionado no cuidado conversa
diretamente com a importacircncia de praacuteticas de prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise e de seu
agravamento Nessa linha de pensamento podemos destacar a fala do profissional a seguir
A estrateacutegia que eu sempre penso e que eu sempre falo para o grupo eacute a estrateacutegia da
prevenccedilatildeo Se eu sei que um usuaacuterio estaacute entrando em crise e eu sei porque ele estaacute
todo o dia aqui com a gente desde laacute da recepccedilatildeo ateacute aqui Se eu sei que um usuaacuterio
estaacute com um problema mais seacuterio eu tenho que antecipar isso () se ele comeccedila a ter
problemas a gente tem que intervir () Entatildeo a gente tem que estar sempre de olho
para prevenir o surto () A visatildeo que a gente procura ter e discutir nas reuniotildees de
equipe eacute assim vamos prevenir () Entatildeo eu acho que a prevenccedilatildeo se chegou mal
aqui atende logo Se precisar levar para o pronto-socorro leva porque a gente natildeo
tem psiquiatra 24 horas oito horas aqui Entatildeo tem certas coisas que a gente natildeo pode
nem querer fazer Vai estar chamando o psiquiatra entatildeo leva para o pronto-socorro
que estaacute ali o carro estaacute aqui Se natildeo estiver vem a ambulacircncia de laacute Se toma uma
atitude para evitar (A3) (WILLRICH ET AL 2013 660 grifo nosso)
Gostariacuteamos de acrescentar que embora seja importante prestar o cuidado de forma
imediata nos momentos de crise evitando que a situaccedilatildeo se agrave devemos estar atentos para
que a direccedilatildeo de prevenir natildeo se transforme em uma caccedila agraves bruxas aos sintomas O objetivo
final natildeo pode ser medicar conter e internar para ldquoprevenirrdquo A direccedilatildeo de cuidado precisa
continuar sendo a autonomia do sujeito e a produccedilatildeo de sua sauacutede
76
Desse modo trabalhar na prevenccedilatildeo das situaccedilotildees de crise significa primeiramente
trabalhar em rede Natildeo se espera que um serviccedilo sozinho seja capaz de prevenir uma crise mas
o serviccedilo reconhecendo seus limites pode identificar e lanccedilar matildeo de outros recursos do
territoacuterio para compor uma rede de cuidados que verdadeiramente ampare o sujeito Logo saber
que o serviccedilo ldquonatildeo dispotildee de psiquiatra 24hrsrdquo e que natildeo funciona aos finais de semanas e no
periacuteodo noturno satildeo pontos que exigem dos profissionais a responsabilizaccedilatildeo do cuidado
atraveacutes da construccedilatildeo de uma articulaccedilatildeo em rede
O pronto-acolhimento indicado na fala ldquose chegou mal aqui atende logordquo a articulaccedilatildeo
em rede acompanhando o paciente em outros serviccedilos como o pronto-socorro se necessaacuterio a
revisatildeo do PTS (Projeto Terapecircutico Singular) a realizaccedilatildeo de visitas domiciliares e a
disponibilidade de cuidar da crise nos espaccedilos onde ela surge satildeo elementos que aparecem nos
artigos estudados como fundamentais no acolhimento integral agraves situaccedilotildees de crise
Outro ponto mencionado eacute o trabalho em equipe especialmente quando a situaccedilatildeo eacute
grave e pode ocasionar riscos para o profissional ou para terceiros A maioria dos profissionais
indicou ser importante natildeo estar sozinho na abordagem ao paciente em crise
Quando eacute muito assim arriscado eu natildeo vou sozinha Porque olha os casos assim
que eu natildeo estou conseguindo fazer grupo que estaacute muito nervoso que ele estaacute vendo
alguem em mim enfim eu procuro compartilhar isso com algum dos colegas Porque
dai se precisar manejar a gente maneja de dois e melhor que manejar de um [A6]
Eu acho que eacute soacute com cautela Nunca ir sozinha quando vecirc que haacute um risco de perigo
sempre levar mais algueacutem [A23]
Porque aqui a gente tem muita [] todos ajudam Entatildeo quando um estaacute um usuaacuterio
estaacute em surto geralmente todo mundo vem ajudar (WILLRICH J Q ET AL 201156-
57 grifos nossos)
Conforme ressaltam os autores ldquoessas accedilotildees contribuem para a construccedilatildeo de um olhar
que respeita a individualidade e valoriza a subjetividade rdquo (WILLRICH ET AL 2013 662)
Assim acolher eacute mais do que ldquoabrir as portas do serviccedilo para a permanecircnciardquo eacute construir uma
relaccedilatildeo de confianccedila com o usuaacuterio tecer uma rede que o ampare no territoacuterio trabalhar de
forma multidisciplinar e acolher o sofrimento do outro como vaacutelido entendendo-o como parte
da sua experiecircncia e do seu contexto de vida
43 ORGANIZACcedilAtildeO DA REDE DE CUIDADOS
A luta pela superaccedilatildeo do aparato manicomial disparada pela Reforma Psiquiaacutetrica
implica nos serviccedilos da Rede de Atenccedilatildeo Psicossocial (RAPS) a transformaccedilatildeo efetiva da
assistecircncia agraves pessoas em situaccedilatildeo de sofrimento psiacutequico Acreditamos nesse sentido ser
fundamental a possibilidade de construccedilatildeo de uma rede coesa e bem articulada que possa
77
efetivamente substituir o hospital psiquiaacutetrico dispensando a necessidade de centralizaccedilatildeo do
cuidado em um soacute serviccedilo evitando os efeitos negativos jaacute apontados na literatura que uma
instituiccedilatildeo total6 acarreta na vida dos indiviacuteduos agrave ela submetidos
Pensando na organizaccedilatildeo da rede algumas questotildees que pretendemos investigar nesse
capiacutetulo satildeo qual eacute o grau de acessibilidade dos serviccedilos aos sujeitos em crise Quais satildeo suas
maiores barreiras de acesso O que favorece e o que desfavorece a continuidade da linha de
cuidado Como os serviccedilos enxergam seu papel na rede Como se daacute a integraccedilatildeo entre os
serviccedilos no acolhimento aos casos de crise Como eacute a integraccedilatildeo dos serviccedilos com a rede
intersetorial e com os dispositivos do territoacuterio
Vista dessa forma a atenccedilatildeo agrave crise representa um ponto de amarraccedilatildeo de diversas
estrateacutegias propostas pela PNSM sendo um importante analisador das possibilidades de
conexotildees da rede suas articulaccedilotildees com os recursos assistenciais e com os recursos do
territoacuterio sua acessibilidade e seu grau de permeabilidade diante das reais necessidades de
sauacutede das pessoas Considerando que a Reforma Psiquiaacutetrica eacute um processo em construccedilatildeo
cabe discutir quais satildeo os desafios que os serviccedilos encontram para acolher a crise no territoacuterio
uma vez que cada vez mais o hospital tem se tornando um ponto de ldquoescoamentordquo dos fracassos
da rede
Pensando nos aspectos que podem figurar como barreiras de acesso aos usuaacuterios no
SUS uma primeira questatildeo que surge eacute a demora para conseguir iniciar um tratamento Com
base na literatura estudada vaacuterias pesquisas como as dos autores Bonfada et al (2013) Conte
et al (2015) e Pereira Saacute e Miranda L (2014) apontam para a existecircncia de grandes filas de
espera para iniciar o tratamento mesmo nos casos de crise
Conte et al (2015) comentam que as imensas filas de espera satildeo o resultado de um
enorme deacuteficit de profissionais Aleacutem do quantitativo dos profissionais ser insuficiente para
suprir a rede natildeo haacute contrataccedilatildeo temporaacuteria para os casos de licenccedila feacuterias ou afastamento por
motivo de doenccedila Uma das profissionais entrevistada nesse estudo retrata esse quadro
comentando o impacto disso no cuidado ldquovia de regra a gente telefona explica sensibiliza o
colega e ouve olha me desculpa soacute que eu estou com uma lista de espera imensa eu sou soacute
uma A colega entrou de feacuterias e a outra em licenccedila maternidaderdquo (CONTE ET AL 2015
1746)
6 Ver Goffman (2001)
78
Na praacutetica a demora no acesso aos serviccedilos faz com que os usuaacuterios soacute consigam ser
acolhidos quando a situaccedilatildeo jaacute eacute muito grave Bonfada el al (2013) expressam esse aspecto
atraveacutes da fala de um trabalhador do serviccedilo de emergecircncia do SAMU Segundo esse
entrevistado ldquo a populaccedilatildeo natildeo tem acesso aos serviccedilos de psiquiatria Entatildeo os doentes entram
em crise pra poder ter o acesso ao serviccedilo de psiquiatria (E1)rdquo (BONFADA ET AL 2013 230)
Mesmo nos casos de crise os serviccedilos ainda encontram dificuldades para oferecer um pronto-
atendimento Pereira Saacute e Miranda L (2014) pontuam que todos os usuaacuterios participantes de
sua pesquisa ldquoesperaram ao menos uma semana para serem consultados nos serviccedilos mesmo
nas situaccedilotildees de criserdquo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2140)
Conte et al (2015) discutem que a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se
estabelecer uma classificaccedilatildeo de risco na lista de espera contribui ainda mais para dificuldade
de acesso e para a sensaccedilatildeo de impotecircncia e sofrimento dos profissionais diante da demanda
natildeo atendida
Inadequaccedilotildees da estrutura fiacutesica dos serviccedilos tambeacutem satildeo apontadas como barreiras de
acesso Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014)
Natildeo haacute adaptaccedilatildeo do preacutedio para uso de pessoas com necessidades especiais e
tampouco disponibilidade de automoacutevel (ibidem 2150)
O fato de hoje existir uma fila de espera para os primeiros atendimentos tambeacutem eacute
atribuiacutedo a falta de espaccedilo fiacutesico Haacute apenas duas salas pequenas o que prejudica a
realizaccedilatildeo de atividades grupais (ibidem 2150)
Em pesquisa sobre a atuaccedilatildeo do SAMU na cidade de Natal Brito Bonfada e Guimaratildees
(2015) mencionam a falta de ambulacircncias como um dos principais fatores que resultam em
longas filas de espera para os chamados natildeo urgentes e demora mesmo nos chamados urgentes
Percebeu-se que o nuacutemero de ambulacircncias disponiacuteveis ao atendimento da populaccedilatildeo
municipal eacute insuficiente em vaacuterias situaccedilotildees Os chamados superam a capacidade
operacional de atendimento do Samu-Natal gerando longa fila de espera e demora no
atendimento dos chamados natildeo classificados em coacutedigo vermelho ou seja
prioritaacuterios(ibidem 1297)
A superlotaccedilatildeo dos serviccedilos a inadequaccedilatildeo e insuficiecircncia dos equipamentos os deacuteficits
de equipe e as inadequaccedilotildees estruturais tambeacutem satildeo apontados como aspectos que fragilizam
os serviccedilos impossibilitam as accedilotildees no territoacuterio e a integralidade do cuidado especialmente
nos casos mais sensiacuteveis que requerem mais recursos
Algumas dificuldades praacuteticas parecem contribuir para as deficiecircncias percebidas nos
serviccedilos de sauacutede mental entre elas o nuacutemero insuficiente de equipamentos que leva
os existentes a se sobrecarregarem com uma aacuterea de abrangecircncia superior agravequela com
a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido nuacutemero e a escassa
variedade de profissionais que limitam as possibilidades de articulaccedilatildeo de accedilotildees
muacuteltiplas e criativas Em decorrecircncia dessas deficiecircncias a que muitas vezes se soma
79
a total inadequaccedilatildeo da estrutura fiacutesica os serviccedilos ficam fragilizados e assim
impossibilitados de promover accedilotildees territoriais e integrais de cuidado como
acolhimento agrave crise envolvimento da famiacutelia no tratamento e estrateacutegias de
reabilitaccedilatildeo psicossocial (MACHADO SANTOS 2013 710)
No que se refere agrave capacidade dos serviccedilos favorecerem a continuidade do cuidado
prestado no estudo de Conte al (2015) com idosos que tentaram o suiciacutedio na rede de Porto
Alegre (RS) observamos que accedilotildees fragmentadas diagnoacutesticos apressados e ofertas de cuidado
riacutegidas e padronizadas produziram o abandono do tratamento em alguns casos e a fragilizaccedilatildeo
do viacutenculo com o serviccedilo em outros Importante dizer que todos os idosos procuraram ajuda e
tinham os serviccedilos territoriais como referecircncias para sua sauacutede
Em uma das histoacuterias a paciente com diagnoacutestico de depressatildeo foi encaminhada para
um grupo terapecircutico no ambulatoacuterio poreacutem o aumento do nuacutemero dos participantes no grupo
comeccedilou a lhe provocar desconforto ldquoNo iniacutecio era bom mas depois vinham muitos
[participantes] cada um levava muitos problemas Agraves vezes tu ia[s] laacute numa boa e saias ruimrdquo
(CONTE ET AL 20151743 grifo do autor)
Por conta disso e das frequentes trocas de profissionais de referecircncia essa senhora
abandonou o tratamento iniciando a partir daiacute um circuito de sucessivas internaccedilotildees e uma
tentativa de suiciacutedio No momento em que a paciente deixou de frequentar o grupo o
ambulatoacuterio natildeo se ocupou de fazer-lhe uma visita domiciliar ou tentar contato o que poderia
ter evitado o abandono do tratamento e a posterior tentativa de suiciacutedio Por conta proacutepria a
paciente buscou ajuda e se inseriu na associaccedilatildeo do bairro que promovia atividades de lazer
(churrascos bailes e jogos) conseguindo por meio desse recurso superar a falta de vontade de
viver
Embora essa histoacuteria tenha um desfecho positivo chama atenccedilatildeo a falta de
responsabilidade do serviccedilo sobre a linha de cuidado dessa paciente Diante do fato dessa
senhora natildeo se ldquoencaixarrdquo mais no grupo o ambulatoacuterio natildeo pode ofertar-lhe um outro espaccedilo
de suporte deixando-a desassistida Isso mostra a rigidez e padronizaccedilatildeo dos espaccedilos de
cuidado desse serviccedilo que colocou sobre uma paciente fragilizada a responsabilidade integral
do seu cuidado
Em outro caso o desfecho natildeo foi tatildeo positivo Um senhor com adiccedilatildeo em jogos aacutelcool
e cigarro apoacutes vaacuterias tentativas de tratamento em serviccedilos diferentes recebia ldquoaltardquo por natildeo
aceitar ficar abstinente Segundo o mesmo ldquoSe eu tiver que parar como trago eu natildeo vou me
tratar Antidepressivo e bebida natildeo combinamrdquo (CONTE et al 2015 1744)
80
Em outra ocasiatildeo surgiu a possibilidade de ingressar em um CAPSad para realizar
tratamento do alcoolismo () Poreacutem mais uma vez ele natildeo parou de beber o que
impediu sua adesatildeo ao tratamento Novamente teve alta do tratamento porque natildeo se
enquadrava nos criteacuterios exigidos pelo serviccedilo (CONTE et al 2015 1744)
Ainda que a poliacutetica atual no tratamento de casos de drogadiccedilatildeo seja a Poliacutetica de
Reduccedilatildeo de Danos os serviccedilos em questatildeo parecem desconhecer ou resistir agrave essa alternativa
A rigidez das ofertas de cuidado impostas agrave esse senhor terminaram por deixaacute-lo em completo
abandono impossibilitando qualquer modalidade de tratamento
A Reduccedilatildeo de Danos uma vez que natildeo impotildee a abstinecircncia como condiccedilatildeo do
tratamento poderia ser um caminho na direccedilatildeo de cuidar do abuso do uso do aacutelcool e da melhora
da qualidade de vida desse paciente No entanto a inflexibilidade dos serviccedilos em repensar suas
ofertas de cuidado de modo a considerar as escolhas desejos limites e possibilidades de quem
procura ajuda resultaram na perda do tratamento e na posterior internaccedilatildeo desse idoso pela
famiacutelia em um asilo
O terceiro idoso dessa pesquisa ao deparar-se com adoecimento da esposa que tinha
Alzheimer e com a falta de ajuda dos familiares para lidar com essa situaccedilatildeo tomou para si o
seu cuidado o que ao longo dos anos lhe trouxe um vasto desgaste emocional Segundo os
autores ldquoO cansaccedilo emocional agravado pela descoberta de um tumor na proacutestata o levou agrave
primeira tentativa de suiciacutediordquo (CONTE et al 2015 1744) Na ocasiatildeo esse senhor foi levado
a um pronto-socorro onde foi submetido a uma lavagem estomacal
O peso dos cuidados em relaccedilatildeo agrave esposa somados agrave falta de apoio familiar e a problemas
financeiros motivaram a segunda tentativa de suiciacutedio ldquoEu comprei uma corda Por causa da
desajuda e da pobrezardquo (ibidem 1746) Felizmente o filho chegou na casa agrave tempo e
conseguiu evitar o enforcamento
Apoacutes essa tentativa esse idoso foi internado em um hospital onde recebeu o diagnoacutestico
de Transtorno de Personalidade Nota-se entretanto que a ecircnfase atribuiacuteda ao diagnoacutestico e as
orientaccedilotildees dadas aos familiares em decorrecircncia dele parecem ter contribuiacutedo mais para o
afastamento da famiacutelia do que para o sucesso do manejo cliacutenico de sua condiccedilatildeo Segundo os
pesquisadores ldquoOs filhos passaram a vecirc-lo como manipulador e mal intencionado
interpretavam as tentativas de suiciacutedio como um ato de covardia pra mobilizar culpa na famiacutelia
tornando-se mais hostis em relaccedilatildeo ao pairdquo (CONTE et al 2015 1744)
Durante a entrevista com os pesquisadores esse senhor referiu ldquosentimento de solidatildeo
e sofrimento com a falta de afeto dos filhos Todos os dias eacute muito triste Eu vejo [nora neta
81
filhos] e natildeo falo com ningueacutemrdquo (CONTE et al 2015 1744) aleacutem de sentimentos de desvalia
ldquoEstou virado num resto num lixordquo (ibidem) No momento da pesquisa mantinha viacutenculo com
o serviccedilo apenas para renovar a receita da medicaccedilatildeo
Observamos nesse caso que as accedilotildees de cuidado se restringiram a intervenccedilotildees pontuais
e fragmentadas tendo o modelo biomeacutedico de ldquoqueixa-condutardquo como referecircncia Quando a
tentativa de suiciacutedio se deu por ingestatildeo de medicaccedilatildeo a accedilatildeo da equipe foi cuidar apenas do
corpo fiacutesico realizando uma lavagem estomacal As questotildees existenciais que motivaram a
tentativa de suiciacutedio natildeo foram abordadas e nenhum encaminhamento foi feito para a
continuidade do cuidado Apoacutes a segunda tentativa de suiciacutedio novamente o foco do tratamento
segue o modelo medicalocecircntrico priorizando o diagnoacutestico nosograacutefico e a medicalizaccedilatildeo dos
sintomas ldquoOs sintomas dos idosos foram considerados uma forma de ldquochamar atenccedilatildeordquo e com
isso obter ganhos secundaacuterios banalizando assim o pedido de ajuda contido nos atos
desesperadosrdquo (CONTE et al 2015 1745)
No caso desse senhor o diagnoacutestico serviu apenas para fragilizar ainda mais sua rede
de apoio uma vez que os familiares passaram a vecirc-lo como ldquomanipulador e mal intencionadordquo
A falta de um Projeto Terapecircutico Singular que considerasse seu contexto de vida seus afetos
sua rede familiar e social contribuiu para o agravamento do sentimento de abandono e solidatildeo
favorecendo o risco de uma nova tentativa de suiciacutedio O uacutenico tratamento ofertado pelo serviccedilo
foi o medicamentoso e ficou niacutetida sua insuficiecircncia visto que ao ser entrevistado esse idoso
referiu sentir-se sozinho ter um cotidiano triste e esvaziado
A dificuldade de se pensar espaccedilos de cuidado baseados em tecnologias leves como o
acolhimento e o viacutenculo as oficinas padronizadas e sem perenidade agrave subjetividade do outro
aleacutem de accedilotildees emergenciais e isoladas no momento de crise satildeo apontados pelos autores como
fatores que contribuem para o abandono do tratamento quebra ou fragilizaccedilatildeo da linha de
cuidado
Estudos anteriores (Rosa 2011 Merhy 2007) evidenciaram que ao se depararem
com essas dificuldades inerentes agrave condiccedilatildeo crocircnica os profissionais do serviccedilo
podem ldquodesistirrdquo ou se desobrigar do trato do paciente ldquodifiacutecilrdquo supostamente
refrataacuterio ou ldquonatildeo responsivordquo agrave terapecircutica Em alguns momentos parece haver um
esforccedilo no sentido de ajustar o paciente ao serviccedilo e natildeo o contraacuterio como seria
desejaacutevel (Rosa2011) (MACHADO SANTOS 2013704)
Vecirc-se com isso que crise ainda eacute ldquoa crise do pacienterdquo e raramente os serviccedilos
conseguem eles proacuteprios se colocarem em crise e repensar suas ofertas e modos de cuidado A
interrupccedilatildeo e o abandono do tratamento satildeo vistos como uma dificuldade de ldquoadesatildeordquo do
82
usuaacuterio que nada tem a ver com a forma como os serviccedilos estatildeo pensando e organizando o seu
cuidado Pensando sobre a correspondecircncia entre as necessidades de sauacutede das pessoas e as
ofertas de cuidado os serviccedilos parecem natildeo perceberem o abandono ou interrupccedilatildeo do
tratamento como um analisador de suas praacuteticas Diante do natildeo enquadramento do usuaacuterio ao
modelo de intervenccedilatildeo oferecido os serviccedilos se comportam como se pouco tivessem a oferecer
O estudo de Machado e Santos (2013) aponta para resultados que confirmam esse
problema No CAPS estudado as oficinas e atividades satildeo vistas como parte de um certo
funcionamento burocraacutetico institucional as falas dos pacientes revelam a falta de sentido dessa
rotina onde as atividades parecem existir meramente para legitimar a instituiccedilatildeo preenchendo
um tempo
Vou todo dia mais tem pouca atividade Fico o dia inteiro fazendo nada deitada
Num gosto disso queria participaacute de mais atividade mais num tem vagardquo (E10)
(MACHADO SANTOS 2013 707)
Laacute no serviccedilo que eu trato eles num trabalham eles num ensinam trabalhaacute Eles potildee
laacute os paciente pra ficaacute comendo e bebendo dormindo e o dinheiro deles tudo mecircs
vem na conta O salaacuterio dos paciente vem na conta deles que eacute o benefiacutecio o dinheiro
dos funcionaacuterio vem na conta deles eacute igual aquele ditado que fala ldquoeles finge que
trabalha e eles fingem que satildeo tratadosrdquo Eacute eles tratam que nem robozinho eu pego
o cartatildeo o doutor prescreve a receita pego meu remeacutedio ndash meu tratamento eacute esse
(E8) (ibidem 707)
Outros autores tambeacutem falam de um funcionamento burocratizado do serviccedilo No
estudo de Pereira Saacute e Miranda (2014) vemos que os adolescentes do CAPSi questionam o
sentido de algumas atividades mas ainda assim essas questotildees parecem natildeo surtir efeitos sobre
o modo como a equipe pensa e organiza o cuidado
Importante notar o fato de os adolescentes terem de se adaptar aos grupos sem que
eles sejam pensados mediante a necessidade de cada um deles e das mudanccedilas vividas
ao longo do tempo Diante da insatisfaccedilatildeo dos adolescentes com as atividades os
profissionais natildeo satildeo levados a revecirc-las continuam enfatizando a necessidade de que
frequentem o serviccedilo ldquoa qualquer custordquo Todos relataram a frequente necessidade de
realizar um difiacutecil ldquotrabalhordquo de convencimento para que os adolescentes aceitem
estar no serviccedilo (PEREIRA SAacute MIRANDA 2014 2151)
Destacamos ainda a fala de uma profissional do serviccedilo que afirma que ldquoO CAPSi natildeo
tem muito mais a oferecer do que um atendimento individual em grupo um suporte agrave famiacutelia
e um suporte meacutedico medicamentosordquo (profissional do serviccedilo) (ibidem 2151) Fica evidente
nesse sentido a limitaccedilatildeo do serviccedilo em repensar suas ofertas de cuidado de modo que a
ldquoadesatildeordquo natildeo seja uma conquista agrave base de uma imposiccedilatildeo mas da produccedilatildeo de um espaccedilo que
faccedila sentido para o usuaacuterio e que lhe proporcione verdadeiramente a sensaccedilatildeo de acolhimento
83
Outro ponto importante no que diz respeito agrave quebra da continuidade do tratamento eacute a
fragmentaccedilatildeo da proacutepria equipe no processo de trabalho Sobre esse aspecto Pereira Saacute e
Miranda (2014) destacam
A equipe eacute ldquodividida por diasrdquo de maneira que cada profissional trabalha dois turnos
aleacutem da reuniatildeo de equipe Cada grupo de usuaacuterios comparece ao serviccedilo apenas num
dia especiacutefico quando encontra seu teacutecnico de referecircncia e sua miniequipe Isso leva
os profissionais a realizarem um trabalho dividido em blocos o que resulta em um
CAPSi de segunda feira e outro de terccedila feira impedindo o compartilhamento de
atuaccedilotildees entre miniequies conhecimento dos usuaacuterios dos serviccedilos aleacutem de restringir
as ofertas terapecircuticas(ibidem 2149)
Cada usuaacuterio tem um teacutecnico de referecircncia e comparece no serviccedilo no dia em que seu
teacutecnico estaacute contando tambeacutem com o suporte da mini-equipe do dia que na ausecircncia do
profissional de referecircncia satildeo os profissionais com mais apropriaccedilatildeo sobre o caso O cuidado
eacute organizado entatildeo de modo que todos os profissionais de referecircncia do usuaacuterio estatildeo
concentrados em um uacutenico dia da semana o dia em que o paciente vai ao serviccedilo Esse eacute um
funcionamento muito comum nos CAPS que entretanto dificulta profundamente o
compartilhamento dos casos
Quando pensamos em uma situaccedilatildeo de crise sabemos que os pacientes natildeo iratildeo respeitar
os dias e escalas dos profissionais de referecircncia para entrar em crise Entatildeo essa divisatildeo dos
usuaacuterios em dias preacute-determinados aleacutem de limitar o Projeto Terapecircutico agraves oficinas realizadas
naqueles dias tambeacutem restringe a capacidade do serviccedilo de se constituir efetivamente enquanto
um ponto de referecircncia na crise pois os profissionais que natildeo tecircm contato com o caso
dificilmente conseguiratildeo ofertar o suporte que esses pacientes necessitam no momento da crise
Aleacutem da fragmentaccedilatildeo do processo de trabalho no interior dos serviccedilos observamos
tambeacutem uma fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e a RAPS Constatamos a partir da
literatura que na maior parte das vezes o contato entre os serviccedilos eacute feito por telefone ou por
encaminhamento escrito entregue diretamente ao usuaacuterio Fica portanto agrave cargo do usuaacuterio a
chegada agrave um outro serviccedilo de modo que a passagem de caso fica prejudicada e o usuaacuterio fica
muitas vezes desassistido no periacuteodo de transiccedilatildeo entre um serviccedilo e outro isto quando natildeo
acaba por desistir do tratamento
Nas relaccedilotildees entre os serviccedilos e os hospitais observamos que embora a gravidade
envolvida seja maior o compartilhamento do cuidado parece ainda mais difiacutecil Ao discutir a
internaccedilatildeo de uma paciente do CAPSi no hospital geral Pereira Saacute e Miranda (2014) ressaltam
que embora a paciente tenha ficado dez dias internada no hospital natildeo houve comunicaccedilatildeo
84
entre os dois serviccedilos e o CAPSi foi informado da internaccedilatildeo pela proacutepria famiacutelia da paciente
via telefone
Essa dificuldade de interlocuccedilatildeo entre CAPS e hospital eacute apontada tambeacutem no estudo
de Zeferino el al (2016) Segundo os profissionais entrevistados nessa pesquisa
o usuaacuterio e a famiacutelia em crise satildeo levado a um Hospital psiquiaacutetrico e fica afastado
do CAPS por longos periacuteodos() Em alguns casos a famiacutelia jaacute interna o usuaacuterio e soacute
comunica a equipe do CAPS posteriormente [] (ZEFERINO ET AL 2016spg)
Para aleacutem dos casos em que o hospital natildeo comunica a equipe de referecircncia sobre a
internaccedilatildeo de seus usuaacuterios observamos que tambeacutem os CAPS raramente costumam
acompanhar os usuaacuterios que encaminham para o hospital de modo que quem perde eacute o paciente
pois vive a quebra do viacutenculo terapecircutico com a equipe de referecircncia e continua passando pelas
crises sozinho no hospital Sobre esse aspecto Pereira Saacute e Miranda (2014) comentam
Fazendo um balanccedilo geral dos itineraacuterios construiacutedos pode-se perceber que o CAPSi
apresenta dificuldades no planejamento e construccedilatildeo de accedilotildees conjuntas em que
compartilhe outras instacircncias a responsabilidade pelo cuidado dos adolescentes em
crise Eacute bastante raro por exemplo que os profissionais do CAPSi de fato
acompanhem os adolescentes no Hospital Geral Como justificativa para esse cenaacuterio
todos sublinham dificuldades de contato advindas de problemas com os telefones ou
ausecircncia de um carro proacuteprio o que dificultaria o transporte no caso de uma situaccedilatildeo
de maior gravidade que pudesse acontecer no CAPSi (ibidem 2152)
Embora a falta de estrutura possa de fato dificultar a integraccedilatildeo entre os serviccedilos
percebemos que deixar o hospital se ocupar da crise tem sido praacutetica recorrente nos diversos
serviccedilos da rede Segundo Pereira Saacute e Miranda (2014) nos sujeitos que participaram de sua
pesquisa o hospital geral teve papel central em todos os casos
A equipe do CAPSi entende que o Hospital Geral natildeo eacute o local ideal para as
internaccedilotildees em sauacutede mental Apesar disso atribuem ao suporte medicamentoso agrave
possiacutevel contenccedilatildeo fiacutesica e aos cuidados relativos agrave sauacutede geral a justificativa para
encaminharem ao Hospital Geral os pacientes (ibidem 2150)
O apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises leves podem
ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o hospital Essa eacute
uma direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima absolutamente o
papel do CAPS frente agrave crise
Sabemos que haacute alguns limites na capacidade dos CAPS visto que nem todos satildeo do
tipo III e que alguns serviccedilos sequer tecircm a equipe completa e o aparato estrutural miacutenimo para
funcionar Poreacutem chama atenccedilatildeo a naturalizaccedilatildeo da centralidade da rede em torno do hospital
Um exemplo claro disso aparece na fala de uma profissional desse estudo que orienta a famiacutelia
a levar a paciente ao hospital ldquofrente agrave qualquer intercorrecircnciardquo (PEREIRASAacuteMIRANDA
85
2014 2154) como se o CAPSi natildeo tivesse nenhuma responsabilidade sobre a crise de seus
pacientes
Encaminhamentos precipitados e irrefletidos ao hospital ainda constituem uma praacutetica
muito natural na rede o que coloca o CAPS na posiccedilatildeo de serviccedilo complementar e natildeo
substitutivo ao hospital Vemos que mesmo os profissionais do CAPS ainda contam com o
hospital como se a internaccedilatildeo pudesse proporcionar uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
No estudo de Zeferino el al (2016) um dos profissionais entrevistados ressalta ldquoO
usuaacuterio com o seu responsaacutevel eacute encaminhado ao hospital geral para a estabilizaccedilatildeo retornando
ao CAPS assim que estiver compensado para a continuidade do seu tratamento (E1 A92 -
CAPS II)rdquo (spaacuteg)
A centralidade do fluxo das situaccedilotildees de crise para o hospital eacute praacutetica comum tambeacutem
no trabalho do SAMU Embora o SAMU tenha se constituiacutedo enquanto um recurso da rede de
assistecircncia agrave urgecircnciaemergecircncia apoacutes a Reforma Psiquiaacutetrica vemos que o modo de trabalhar
desse serviccedilo ainda eacute muito orientado pela loacutegica biomeacutedica Segundo Brito Bonfada e
Guimaratildees (2015) em pesquisa com a rede de SAMU da cidade de Natal
A partir das fichas de atendimento disponiacuteveis no sistema eletrocircnico de ocorrecircncias
do Samu-Natal observa-se que entre os meses de janeiro a marccedilo de 2010 ocorreram
314 chamadas para urgecircncias em sauacutede mental das quais 74 foram finalizadas
com o transporte para o Hospital Colocircnia Joatildeo Machado hospital psiquiaacutetrico do
municiacutepio de Natal-RN (ibidem 1301 grifo nosso )
Esse nuacutemero eacute confirmado tambeacutem pelas falas dos profissionais
Surto droga alcoolismo tudo leva para laacute a gente trabalha com o Joatildeo Machado
(Entrevistado 24) (ibidem 1302 grifo nosso)
Noacutes natildeo temos muito contato com o CAPS (Centro de Atenccedilatildeo Psicossocial) A gente pega o
paciente ou na residecircncia ou em via puacuteblica e transfere para o Joatildeo Machado (Entrevistado 24)
(ibidem 1303)
Na realidade as nossas urgecircncias psiquiaacutetricas satildeo muito mais transporte Vocecirc vai
laacute conteacutem o doente e o transporta para hospital psiquiaacutetrico (Entrevistado 1) (ibidem
1302)
Percebemos que essa direcionalidade ao hospital sem levar em conta as possibilidades
assistenciais oferecidas pela rede tem relaccedilatildeo com a maneira como os serviccedilos entendem a
Reforma Psiquiaacutetrica e consequentemente como enxergam seu papel na rede Nesse ponto no
que compete ao SAMU fica clara a desorientaccedilatildeo desse serviccedilo no seu papel diante das crises
Na verdade eu sempre fui contra o Samu atender esse tipo de chamado Eu acho que
deveria existir um setor no hospital psiquiaacutetrico aqui de Natal responsaacutevel por isso
(Entrevistado 2) (BONFADA ET AL 2013 1307)
O Samu natildeo deveria fazer esse serviccedilo acho que deveria ser a poliacutecia militar
(Entrevistado13) (ibidem 1307)
86
Muitas vezes o doente psiquiaacutetrico corre muito mais risco porque a nossa rotina eacute
deixar em segundo plano a urgecircncia psiquiaacutetrica (Entrevistado 1) (ibidem 1308)
No que diz respeito agrave concepccedilatildeo que os profissionais possuem acerca da Reforma
Psiquiaacutetrica os entrevistados parecem acreditar que trata-se de uma Poliacutetica Puacuteblica restrita ao
campo juriacutedico e burocraacutetico poreacutem sem muitas implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos
A Poliacutetica Nacional de sauacutede mental eacute perfeita no papel na praacutetica natildeo estaacute
funcionando e para funcionar vai ser muito difiacutecil (E10)
Para ser muito franca ateacute agora na praacutetica natildeo vi essa reforma acontecer Natildeo acredito
natildeo nessa reforma (E7)
Na maioria das vezes isso natildeo funciona esse negoacutecio de CAPS e tudo mais porque
o proacuteprio paciente natildeo vai aiacute a famiacutelia tambeacutem natildeo tem como levaacute-lo a forccedila Entatildeo
isso aiacute natildeo taacute dando muito resultado natildeo Talvez fosse o caso de fazer o proacuteprio CAPS
mesmo como uns hospitais psiquiaacutetricos (E3)
Esse paciente quando ele volta para ser tratado em CAPS ambulatorial acaba
negligenciando o proacuteprio tratamento Seria muito mais eficaz se ele fosse tratado em
um hospital internado seria muito mais eficaz pois eacute um tratamento continuado
(E20) (inserir ref ndash as falas dos entrevistados aparecem assim todas juntas Se for
basta a ref ao final ndash autor ano paacutegina) ( BRITO BONFADA GUIMARAtildeES
2013230-231)
A falta de conhecimento sobre o papel dos serviccedilos substitutivos aleacutem das criacuteticas agrave
Reforma Psiquiaacutetrica e as sugestotildees de internaccedilatildeo dos pacientes satildeo fortes indiacutecios de que o
modelo hospitalocecircntrico concebido pela Psiquiatria Claacutessica ainda permanece vivo no ideaacuterio
desses profissionais como referecircncia de qualidade da assistecircncia em sauacutede mental A ideia de
que a RPB eacute perfeita no papel mas que na praacutetica natildeo funciona revela um entendimento
bastante ingecircnuo de que as poliacuteticas por si soacute teriam o efeito de mudar a assistecircncia quando os
profissionais continuam agindo orientados pela loacutegica manicomial
Uma ferramenta que tem sido apontada como capaz de construir e fortalecer a
integralidade da rede e a coordenaccedilatildeo do cuidado eacute o apoio matricial O apoio matricial pode
se dar via CAPS ou via NASF contribuindo para ampliar a resolutividade da Atenccedilatildeo Baacutesica
favorecendo a prevenccedilatildeo dos casos de crise e diluindo a centralidade do CAPS nos casos de
sauacutede mental
Considerando que um dos fortes obstaacuteculos dos CAPS eacute o centramento em si mesmos
fenocircmeno identificado na IV Conferecircncia Nacional de Sauacutede Mental e denominado
ldquoencapsulamentordquo
Ao articular rede o apoio matricial se inclina contra o ldquoencapsulamentordquo e esse tipo
de substituiccedilatildeo total produzindo um efeito reorganizador das demandas de sauacutede
mental na rede com melhor distribuiccedilatildeo e adequaccedilatildeo dos usuaacuterios dentro dos pontos
de assistecircncia em sintonia com suas demandas evitando que todas elas sejam
dirigidas ao CAPS superlotando-o Possibilitando melhor compreensatildeo e
diferenciaccedilatildeo das situaccedilotildees que demandam cuidados nos CAPS e aquelas que podem
ser acolhidas eou acompanhadas pela ESF como refletem Bezerra e Dimenstein o
87
matriciamento atua como um regulador de fluxos na assistecircncia em sauacutede mental
(LIMA DIMENSTEIN 2016 629)
Segundo Lima e Dimenstein (2016) a ESF tem meios de ldquo[] interferir em situaccedilotildees
que transcendem a especificidade do setor sauacutede e tecircm efeitos determinantes sobre as condiccedilotildees
de vida e sauacutede dos indiviacuteduos famiacutelias-comunidaderdquo (ibidem 65) Considerando sua
proximidade com o territoacuterio a ESF eacute um importante recurso na identificaccedilatildeo dos casos de crise
que natildeo chegam aos serviccedilos podendo oferecer atraveacutes do apoio matricial em sauacutede mental o
suporte e o encaminhamento para serviccedilos mais complexos quando necessaacuterio
Outra ferramenta importante na construccedilatildeo da integralidade das redes sobretudo das
redes que vatildeo para aleacutem dos serviccedilos de sauacutede eacute a praacutetica de Acompanhamento Terapecircutico
O AT tem a missatildeo de resgatar a cidadania e o direito de usufruir da vida em casos de pessoas
que foram sistematicamente excluiacutedas da sociedade devido ao seu processo de adoecimento
Sua atuaccedilatildeo visa promover a autonomia do sujeito ampliando sua circulaccedilatildeo pelo territoacuterio e
tecendo redes de cuidado que contam tambeacutem com dispositivos de cultura e lazer
Segundo Fiorati e Saeki (2008) o AT
por ser uma praacutetica cliacutenica que se caracteriza por se desenvolver fora dos espaccedilos
institucionais e tradicionais de tratamento e ser realizada sobretudo nos espaccedilos
puacuteblicos no ambiente domiciliar e social do paciente representaria um caminho
potencial de inserccedilatildeo em redes sociais e movimento de inclusatildeo social (ibidem 764)
Na pesquisa citada acima o AT atuou como um intercessor entre o espaccedilo de cuidado
proporcionado pelos serviccedilos e os dispositivos terapecircuticos do territoacuterio O cuidado se deu nos
serviccedilos mas tambeacutem na vida na rua atraveacutes de cursos de jardinagem desenho capacitaccedilatildeo
profissional parceria com associaccedilotildees culturais escolas e outros (FIORATI SAEKI 2008)
A produccedilatildeo de sauacutede atraveacutes dos dispositivos do territoacuterio tambeacutem aparece na pesquisa
de Conte et al (2015) no caso da senhora que buscou ajuda na associaccedilatildeo de seu bairro
Entretanto foram apontadas poucas iniciativas em nosso estudo que apostassem nos recursos
fora do setor sauacutede como possibilidade de estabilizaccedilatildeo de quadros graves Fica clara nesse
sentido a baixa integraccedilatildeo entre os serviccedilos de sauacutede e a rede intersetorial territorial sendo
este um dos principais desafios na construccedilatildeo da integralidade do cuidado
Em suma podemos observar que ainda haacute um longo caminho na construccedilatildeo de redes
que possam oferecer de fato algum amparo aos sujeitos em crise A falta de recursos certamente
figura como um dos fatores que impotildee barreiras de acesso ao cuidado motivando muitas vezes
que os profissionais usem seus proacuteprios recursos para garantir a efetividade do tratamento (usar
88
o carro proacuteprio para fazer VD deslocar-se entre um serviccedilo e outro usando recursos proacuteprios
etc)
Somando-se aos aspectos mencionados embora os serviccedilos de sauacutede mental se
proponham a realizar um cuidado extremamente complexo e diversificado funcionam em sua
maioria apenas nos horaacuterios comerciais (de segunda a sexta de 8 agraves 17h) Desse modo ldquodiante
dessa configuraccedilatildeo restrita torna-se pouco provaacutevel que de fato sejam esgotadas todas as
possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internaccedilatildeo
integral tal como prevecirc a Lei da Reforma Psiquiaacutetrica Lei nordm 10216 2001rdquo (Brasil 2004)
Vemos que as possibilidades de superaccedilatildeo desse cenaacuterio ainda partem muitas vezes de
um esforccedilo individual dos trabalhadores em produzir cuidado Diante da falta de CAPS III por
exemplo alguns CAPS II tem se organizado para funcionar em horaacuterio estendido realizando
uma escala no serviccedilo e evitando assim encaminhar o usuaacuterio para internaccedilatildeo Outra alternativa
apontada eacute o acolhimento diurno no CAPS II e o noturno no Hospital Geral eou Hospital
Psiquiaacutetrico evitando a permanecircncia integral na internaccedilatildeo (MARTINI CORACINE 2016)
Entretanto esse tipo de arranjo ainda eacute incipiente e depende em boa medida da ldquoboa vontaderdquo
dos trabalhadores visto que natildeo eacute uma poliacutetica institucionalizada de cuidado e natildeo haacute portanto
recursos previstos para esses deslocamentos
Tendo em vista essa conjuntura eacute possiacutevel perceber que a constituiccedilatildeo de uma rede de
serviccedilos integral e resolutiva nos casos de crise ainda eacute muito fraacutegil A fragmentaccedilatildeo na
comunicaccedilatildeo entre os serviccedilos a dificuldade do compartilhamento dos casos oficinas e grupos
riacutegidos e burocratizados compreensotildees deturpadas e reducionistas acerca do movimento da
Reforma Psiquiaacutetrica baixa articulaccedilatildeo intersetorial e territorial aleacutem de limitaccedilotildees estruturais
dos serviccedilos (ausecircncia de carro institucional baixo nuacutemero de CAPS III deacuteficits de equipe etc)
tem contribuiacutedo para que o hospital permaneccedila vivo e seja o ponto de escoamento de todas
essas dificuldades
Podemos citar como um exemplo dessa problemaacutetica os pacientes ldquorevolving doorrdquo7
nos hospitais psiquiaacutetricos Muitos deles fazem tratamento em algum dispositivo da rede
substitutiva no entanto continuam retornando ao hospital ainda que pontualmente com certa
frequecircncia o que remete as fragilidades da rede jaacute mencionadas anteriormente
7 O termo vem da expressatildeo inglesa ldquoporta-giratoacuteriardquo e eacute usado na sauacutede mental para se referir aos pacientes que
internam de forma recorrente poreacutem em internaccedilotildees curtas
89
Vale lembrar que o hospital se constituiu historicamente como uma soluccedilatildeo para o
problema da loucura na sociedade e mesmo havendo um esforccedilo em deslocar certas categorias
e conceitos no sentido de incluir a loucura no social a institucionalizaccedilatildeo ainda eacute
frequentemente a primeira resposta agraves situaccedilotildees de crise especialmente quando a rede natildeo
encontra meios para responder suas demandas no modelo substitutivo
90
5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
Como foi dito na introduccedilatildeo nosso objetivo com esse estudo foi analisar as fragilidades
e potencialidades na organizaccedilatildeo e prestaccedilatildeo da assistecircncia agrave crise em sauacutede mental no contexto
do SUS e da Reforma Psiquiaacutetrica Consideramos que uma rede forte e bem articulada atua
como um fator de mudanccedila dos itineraacuterios dos usuaacuterios dos hospitais psiquiaacutetricos para os
serviccedilos territoriais No entanto o inverso tambeacutem acontece as fragilidades e insuficiecircncias
da rede tambeacutem contribuem para hospitalizaccedilotildees desnecessaacuterias
Sendo assim olhar para a forma como a crise tem sido acolhida na RAPS pode dar
indiacutecios importantes de como estamos nos posicionando no processo de construccedilatildeo da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira uma vez que costuma ser na falta de uma resposta efetiva da rede
substitutiva nos casos de crise que se recorre a internaccedilatildeo psiquiaacutetrica
Atraveacutes de nosso referencial teoacuterico analisando o desenvolvimento da Reforma
Psiquiaacutetrica Brasileira no plano assistencial percebemos avanccedilos importantes no que se
destaca a reduccedilatildeo do nuacutemero de internaccedilotildees a expansatildeo meacutedia contiacutenua e expressiva do
nuacutemero de CAPS e a inversatildeo igualmente proporcional dos gastos hospitalares em gastos na
atenccedilatildeo comunitaacuteria e territorial Entretanto a insuficiecircncia de CAPS III e a permanecircncia de
grandes parques manicomiais no paiacutes indicam que ainda satildeo necessaacuterios grandes esforccedilos para
se superar o modelo manicomial
Pensando sob a luz das contribuiccedilotildees de Basaglia (1985) entendemos que a
permanecircncia dos manicocircmios natildeo se deve apenas a um descompasso entre o avanccedilo da rede
substitutiva e o fechamento dos hospitais psiquiaacutetricos mas tambeacutem a presenccedila ainda
expressiva da loacutegica manicomial nos discursos e praacuteticas em relaccedilatildeo agrave loucura
Sendo assim eacute preciso considerar que a Reforma Psiquiaacutetrica natildeo se restringe apenas as
mudanccedilas assistenciais nos serviccedilos de sauacutede mental mas a uma mudanccedila mais ampla no
processo de compreender e lidar com a loucura na sociedade
Ao longo da histoacuteria da sociedade a loucura jaacute teve diversos signos e significados
figurando desde um estado de sabedoria ligado ao profeacutetico a estados de possessatildeo demoniacuteaca
bruxaria e revolta social Entretanto eacute somente a partir do seacuteculo XVIII com o advento da
Psiquiatria que ela passa a ser compreendida enquanto doenccedila mental e a ser enclausurada e
excluiacuteda em instituiccedilotildees de tratamento
91
Com a emergecircncia da Reforma Psiquiaacutetrica inicia-se um movimento de transformaccedilatildeo
do lugar social da loucura atribuindo-lhe um estatuto que vai aleacutem da sintomatologia
psicopatoloacutegica e afirma a loucura enquanto um modo de ser no mundo Na conjuntura atual
eacute possiacutevel perceber que vivenciamos um momento de ruptura epistemoloacutegica em que os saberes
defendidos pela Reforma e o saber biomeacutedico natildeo se anulam mas convivem lado a lado se
alternando e disputando espaccedilo nos diversos pontos da RAPS
Eacute com base nessa dicotomia de saberes que proponho essa revisatildeo bibliograacutefica
Entendendo que os modos de compreender a crise e a loucura incidem na construccedilatildeo de nossas
ofertas de cuidado e no modelo de tratamento uma primeira questatildeo que se coloca eacute Quais satildeo
os sentidos de crise e de que maneira esses sentidos reverberam na produccedilatildeo de cuidado
A partir da revisatildeo da literatura estudada no primeiro capiacutetulo ldquoOs sentidos da criserdquo
identificamos trecircs eixos temaacuteticos que se desdobraram em categorias de anaacutelise satildeo eles
ldquoCrise como Ameaccedila Social Periculosidade e Riscordquo ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo
e ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
No primeiro eixo ldquoa crise como ameaccedila socialrdquo as vivecircncias da crise aparecem
marcadas por comportamentos hostis e intimidadores O risco envolvido se transmite para os
profissionais no campo das praacuteticas como uma necessidade constante de monitoramento
vigilacircncia e controle A agressividade dos sintomas eacute combatida com intervenccedilotildees igualmente
violentas sendo praacuteticas comuns a contenccedilatildeo fiacutesica medicamentosa e ateacute mesmo o uso da forccedila
policial como formas de reprimir o sujeito e estabelecer a ordem no serviccedilo
A urgecircncia de ldquoresolver o sintomardquo impede que se possa entrar em contato com o sujeito
e com o que precisa ser manifestado por ele enquanto agressividade A agressividade eacute vista
como um sintoma isolado iacutendice de ameaccedila e risco Alguns profissionais acreditam que a
presenccedila da poliacutecia nas intervenccedilotildees eacute necessaacuteria para ldquoimpor respeitordquo como se as crises se
tratassem de manifestaccedilotildees voluntaacuterias Outros trabalhadores parecem perceber o paciente em
crise como um ldquocontraventorrdquo ldquoperturbador da ordem socialrdquo ldquomarginalrdquo e ateacute mesmo
enquanto um ldquoanimalrdquo mencionando palavras como ldquoprenderrdquo e ldquoamansarrdquo ao referir-se a
abordagem ao paciente
Muitas vezes a poliacutecia tambeacutem eacute acionada como forma de ldquodar proteccedilatildeordquo aos
profissionais que se sentem com medo e despreparados para acolher a crise Entretanto os
profissionais reconhecem que a poliacutecia tambeacutem natildeo sabe lidar com o paciente psiquiaacutetrico e
que eacute ainda mais despreparada
92
No segundo eixo a ldquoCrise como Perda e Isolamento Socialrdquo a peculiaridade dos
sintomas que emergem na crise e o estigma social relacionado a eles satildeo compreendidos
enquanto iacutendice da emergecircncia de uma doenccedila ou de anormalidade que impotildee uma seacuterie de
limitaccedilotildees e obstaacuteculos agrave vida como a vergonha o medo de ter novas crises o medo de circular
pelo territoacuterio e de fazer amizades Percebemos que esse significado apareceu especialmente
nos artigos que abordam a temaacutetica da adolescecircnciajuventude e a eclosatildeo da primeira crise
mas tambeacutem se fez presente em estudos com adultos que passaram por muacuteltiplas internaccedilotildees e
que viveram com isso muitas perdas dos seus viacutenculos afetivos sociais e laborativos
Vemos que essa visatildeo da crise enquanto perda natildeo diz respeito apenas agraves dificuldades
individuais dos usuaacuterios em retomar sua vida apoacutes o episoacutedio de crise mas a uma distinccedilatildeo
mais ampla entre loucura e normalidade sentida no plano concreto das relaccedilotildees sociais do
cotidiano dos usuaacuterios e na relaccedilatildeo destes com os serviccedilos de sauacutede
No terceiro eixo ldquoCrise como Apropriaccedilatildeo da Experiecircncia e Reconstruccedilatildeo de Sentidosrdquo
encontramos experiecircncias relatos e situaccedilotildees que apontaram para outros modos de lidar com a
crise e com a loucura natildeo como marco de uma doenccedila limitante mas como uma experiecircncia
uacutenica e singular que traz em si uma necessidade imperiosa e urgente de reconstruccedilatildeo de
sentidos
Os usuaacuterios relataram caminhos estrateacutegias e ferramentas que permitiram a construccedilatildeo
de um outro modo de lidar com a crise e com seus sintomas Os profissionais retrataram
situaccedilotildees em que foi possiacutevel recolocar-se diante da crise e vecirc-la como um evento analisador
de suas praacuteticas bem como da vida daqueles sujeitos
Em um dos casos o usuaacuterio vinha pedindo haacute muito tempo para sair da casa onde
morava que era a casa onde vivia com os pais antes do falecimento dos mesmos e onde tinha
muitas recordaccedilotildees A partir do seu movimento de crise ldquoa famiacutelia entendeu que era mais do
que quando ele natildeo estava bem que ele natildeo queria ficar laacute que aquela casa era muito
complicada e a relaccedilatildeo com os vizinhos estava muito difiacutecil E aiacute acabou que ele conseguiu
alugar a casa delerdquo (COSTA 2007 102 grifo do autor)
A crise nesse caso natildeo aparece enquanto um evento isolado na histoacuteria de vida desse
sujeito mas enquanto um acontecimento situado em seu contexto social relacional e
habitacional Ela eacute uma resposta a uma situaccedilatildeo que haacute muito tempo jaacute estava insustentaacutevel A
crise vista sob esse vieacutes ganha o sentido de um evento analisador que ldquoestabelece uma urgecircncia
de realizaccedilotildees que no curso habitual da vida geralmente vatildeo sendo proteladasrdquo (ibidem 103)
93
Em outra situaccedilatildeo a crise aparece enquanto um pedido de ajuda
Por exemplo o J S [] Ele entrou em crise quando o sobrinho dele morreu
assassinado era um sobrinho que ele amava [] Tinha a ver com uma situaccedilatildeo que
ele viveu insuportaacutevel E a gente lidou Mas por exemplo ele continuou trabalhando
na cantina a gente foi acompanhando o percurso dele de trabalho E eu me lembro
que ele queimou todos os documentos entatildeo eu fui com ele tirar todos os documentos
E aiacute a gente foi laacute em Copacabana onde tinha o registro do nascimento dele e ele me
mostrou o Parque da Catacumba que foi onde ele morou e nasceu e contou histoacuteria
A gente foi meio que montando uma histoacuteria de novo com ele porque ele explodiu[]
E nessa confusatildeo toda ele pediu para tirar os documentos de novo E a gente entendeu
que isso era um pedido meio de tentar Porque ele pedia muito que a gente o ajudasse
Os documentos eu acho que tinha a ver com uma arrumaccedilatildeo dessa histoacuteria dele que
ele acabou entre aspas perdendo (COSTA 2007 105)
Vemos entatildeo que os modos de produzir cuidado se tecem junto com o sujeito que vai
recontando sua histoacuteria atraveacutes dos elementos que fazem parte de seu cotidiano como o
territoacuterio suas relaccedilotildees sociais seu trabalho seu mundo Assim a produccedilatildeo de cuidado
acontece onde a vida do sujeito estaacute no parque da catacumba na cantina na retirada dos
documentos porque foi preciso destruir uma parte de sua histoacuteria para reconstruiacute-la depois
Trata-se de considerar a crise como um movimento vaacutelido que expressa o sofrimento do sujeito
e sua necessidade de construir e habitar outros territoacuterios existenciais para si
Nosso segundo objetivo especiacutefico diz respeito as praacuteticas de cuidado e se expressa nas
seguintes perguntas Quais satildeo as principais dificuldades do acolhimento agrave crise Quais satildeo as
nossas principais ferramentas cliacutenicas
Como desafios identificamos o acolhimento burocratizado e frio que se expressa
muitas vezes como uma mera triagem do paciente o cuidado orgacircnico centrado nos
procedimentos fiacutesicos e na figura do meacutedico o mal-estar em lidar com o sofrimento subjetivo
o despreparo para abordar e lidar com o paciente em crise que muitas vezes justifica o uso de
medidas violentas o preconceito e do julgamento moral especialmente em relaccedilatildeo aos casos
de usuaacuterios de aacutelcool e outras drogas e por fim o diagnoacutestico apressado a conduta extremamente
teacutecnica e desumana
Como potencialidades identificamos a aposta no encontro no viacutenculo na escuta
qualificada e no diaacutelogo o pronto-atendimento (a disponibilidade de prestar o cuidado no
momento em que ele eacute necessaacuterio) as visitas domiciliares e a intervenccedilatildeo dentro do contexto
de vida do sujeito (na sua casa com a sua famiacutelia no seu territoacuterio) a revisatildeo do PTS (Projeto
Terapecircutico Singular) o trabalho multidisciplinar e a abordagem conjunta especialmente nos
casos onde pode haver riscos aos profissionais
94
Nosso terceiro objetivo especiacutefico buscou refletir sobre a as formas de organizaccedilatildeo da
rede e se resumem em torno das seguintes perguntas Como os serviccedilos tecircm se organizado para
responder agraves demandas de crise Quais satildeo os desafios que o acolhimento agrave crise na rede
substitutiva nos coloca
Identificamos que o acolhimento agrave crise eacute um dos principais noacutes criacuteticos na organizaccedilatildeo
e na integralidade da rede de cuidados A articulaccedilatildeo entre os serviccedilos ainda se mostra bastante
fragmentada sendo a maior parte dos encaminhamentos feitos de modo apressado sem a devida
discussatildeo sobre o caso (encaminhamentos por escrito ou via telefone) O acompanhamento dos
serviccedilos de referecircncia aos casos mais graves durante a internaccedilatildeo eacute bastante raro havendo uma
certa expectativa de que o hospital se ocupe dos casos mais graves e da crise e que o usuaacuterio
retorne ao serviccedilo de referecircncia quando estabilizado
Diante das dificuldades colocadas na crise psicoacutetica os profissionais tendem a fazer
encaminhamentos irrefletidos ao hospital esperando uma ldquoestabilizaccedilatildeo maacutegicardquo do quadro
Nota-se que a justificativa para esse encaminhamento passa muitas vezes pelo fato do hospital
ter mais ldquorecursos materiaisrdquo aleacutem de mecanismos de ldquocontrolerdquo e ldquomonitoramentordquo dos casos
Ressaltamos que o apelo pelas tecnologias duras de cuidado ratifica a ideia de que crises
leves podem ser tratadas no CAPS mas que as crises realmente seacuterias precisam ir para o
hospital direccedilatildeo que coloca em risco todo o modelo substitutivo pois deslegitima
absolutamente o papel do CAPS frente agrave crise
Quanto ao entendimento da Reforma Psiquiaacutetrica na rede nossos resultados dialogam
com as reflexotildees levantadas em nosso marco teoacuterico natildeo haacute uma compreensatildeo uniforme sobre
esse processo e os profissionais mostram-se tanto identificados com a loacutegica manicomial
quanto com alguns pressupostos da RP e do novo modelo de cuidado Alguns profissionais
tambeacutem mostram entender a RP como uma mera mudanccedila administrativajuriacutedica sem muitas
implicaccedilotildees para a praacutetica dos serviccedilos o que reafirma papeacuteis engessados e fluxos
burocratizados nos serviccedilos contribuindo para que o hospital continue sendo a porta de entrada
e o destino da maior parte dos casos de crise acolhidos na rede
Enquanto desafios nesse processo ressaltamos a demora para conseguir iniciar um
tratamento a falta de criteacuterios pactuados entre os serviccedilos para se estabelecer uma classificaccedilatildeo
de risco na lista de espera o deacuteficit de profissionais inadequaccedilotildees na estrutura fiacutesica que
prejudicam o acesso de pessoas com necessidades especiais e de atividades grupais
insuficiecircncias de equipamentos ofertas de cuidado riacutegidas e padronizadas fragmentaccedilatildeo da
95
equipe no processo de trabalho em dias e turnos especiacuteficos da semana fragmentaccedilatildeo nas
relaccedilotildees entre os serviccedilos fragmentaccedilatildeo nas relaccedilotildees entre a RAPS e a rede intersetorial e
territorial
Destacamos que as iniciativas de superaccedilatildeo dessas fragilidades ainda se concentram
muito nos esforccedilos individuais dos trabalhadores havendo pouco investimento puacuteblico em
oferecer os recursos miacutenimos para se acolher a crise de acordo com os ideais da RP
Identificamos por outro lado como ferramentas importantes na tessitura e no fortalecimento
das redes de cuidado a praacutetica do AT e do apoio matricial que podem oferecer um espaccedilo de
cuidado mais proacuteximo ao territoacuterio e agrave rede intersetorial
Por fim frisamos como limitaccedilotildees desse estudo o fato de nossa revisatildeo bibliograacutefica se
ater somente a artigos cientiacuteficos de modo que algumas dissertaccedilotildees que poderiam agregar um
significado mais profundo a certos temas foram excluiacutedas na nossa seleccedilatildeo Tambeacutem foi um
recorte dessa pesquisa o cuidado agrave crise no contexto brasileiro permanecendo enquanto questatildeo
quais satildeo as possiacuteveis contribuiccedilotildees ao nosso tema no contexto internacional
Como potencialidades dessa pesquisa destacamos a produccedilatildeo de conhecimento teoacuterico
sobre o tema a ampliaccedilatildeo do debate aos profissionais da rede de sauacutede mental e a identificaccedilatildeo
e problematizaccedilatildeo dos pontos de fragilidade e potencialidades no processo de construccedilatildeo da
RPB
96
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