1
RITOS TAUMATÚRGICOS, RELÍQUIAS SAGRADAS E SANTOS
CURADORES NA LEGENDA ÁUREA DE JACOPO DE VARAZZE,
ITÁLIA, SÉCULO XIII
doi: 10.4025/XIIjeam2013.amatuzzi4
AMATUZZI, Renato Toledo Silva1
O presente trabalho tem como objetivo compreender as relações estabelecidas entre
o poder de cura destinado aos santos – rito taumatúrgico – por intermédio das relíquias
sagradas dos mesmos, que seriam seus restos mortais, partes do seu corpo ou qualquer
objeto tocado por eles. Estes rituais taumatúrgicos e relíquias serão analisadas através das
representações de hagiografias presentes no livro Legenda Áurea. Esta obra, de autoria do
Arcebispo de Gênova Jacopo de Varazze, é uma coletânea de hagiografias que foram
reunidas, adaptadas e modificadas por ele ao longo da segunda metade do século XIII, na
região da Lombardia, Península Itálica.
O período de transição entre o século XII e XIII foi marcado por intensas
transformações que alteraram a dinâmica social da época. Merece destaque o processo de
crescimento demográfico do continente europeu que viu sua população triplicar entre os
anos de 1200 e 1300 - de 34,64 milhões de pessoas para 50,35 milhões. 2Com este aumento
populacional inserem-se no continente novos agentes sociais, por exemplo, as ordens
mendicantes dominicanas e franciscanas – que se instalam nas suburbs e ganham grande
prestígio entre os pobres - assim como os universitários, os moçárabes, povos da Ásia
Menor, norte da África e Europa Oriental, além de um considerável deslocamento massivo
de moradores do campo para os centros urbanos de médio porte, como Gênova, Veneza,
Champanhe e Flandres.
1 Professor da Rede Pública de Ensino e Pós-Graduando em História Antiga e Medieval pelo Instituto Tecnológico Educacional – Curitiba. 2 FRANCO JR. Hilário, OLIVEIRA, Ruy de. Atlas de História Geral. São Paulo: Scipione, 1993. P. 23.
2
As Cruzadas tiveram papel crucial neste processo de inserção de novos agentes
sociais nas cidades medievais e, inclusive, impulsionaram a intensificação do comércio e
economia:
“Mas vêm as Cruzadas e o mercado oriental – ao qual corresponde, aliás, um mercado “franco” da Ásia Menor, que trabalhos recentes manifestaram – banha toda a Europa, fá-la conhecer a vertigem do tráfego, o deslumbramento dos frutos estranhos, dos tecidos preciosos, dos perfumes violentos, dos costumes sumptuosos, inunda com sua luz essa época apaixonada pela cor e pela claridade. Sobretudo multiplica esse gosto pelo risco, essa sede de movimento, que na Idade Média coexiste de forma tão tocante com a ligação à terra. Nunca talvez a palavra “epopeia” foi melhor empregue que falando das Cruzadas; nunca a atração do Oriente se manifesta com mais ardor e conduz, apesar dos aparentes fracassos, a mais espantosa das indrealizações.”3
Paralelamente a Europa viu ascender uma nova e poderosa classe social, a
burguesia. Os burgueses buscaram romper com os laços de senhorio e vassalagem e cobrar
a liberdade do comércio e das taxas feudais impostas sobre os produtos vendidos e toda a
produção comercial. Inseriu-se no continente a economia monetária e inicia-se um
processo absolutamente novo de se relacionar com os bens de valor; consequentemente
foram surgindo instituições para atender esta nova prática econômica, os bancos, e com
eles vieram as moedas, as taxas de juros, enfim, elementos do nosso cotidiano que se
revelam mais antigos do que provavelmente os concebemos4.
Com prestígio semelhante aos burgueses e buscando o gozo da autonomia, as
universidades que foram pensadas e criadas no século XI ganham destaque e a proteção
dos mais altos níveis hierárquicos, ora o papado e ora o poder régio e nobiliárquico.
Começam a materializar um novo ideal de ser humano, aquele que busca o conhecimento
através da investigação empírica, da valorização da observação, da experiência e da solidez
e veracidade dos fatos. 5
Pouco a pouco o homem medieval começa a moldar-se enquanto pessoa intelectiva
e a construir sua identidade como ocidental, implicando assim em uma nova forma de se
3 PERNOUD,Régine. Luz sobre a Idade Média. Portugal: Martins Codex, 1997. P. 51. 4 LE GOFF, Jacques. Bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 5 OLIVEIRA, Therezinha. Origem e memória das universidades medievais: a preservação de uma instituição educacional. In: Varia Historia, Belo Horizonte. Vol 23, nº 37: pp 113-129, Jan/Jun 2007. P.116
3
relacionar com o outro, com o espaço em que está inserido e, inclusive, com todas as
ordens e hierarquias que o cercam.
A Igreja Católica, frente a tantas e rápidas transformações institucionais, culturais e
econômicas, precisava reagir em face de todo este cenário, onde as heresias imperavam e
novas ideias colocavam em xeque sua soberania e hierarquia. Havia nos princípios do
século XI e XII um abismo profundo entre o clero e a população, sendo esta pouco
instruída e analfabeta. Não obstante, o clero era focado em seus rituais litúrgicos em latim,
na leitura de clássicos greco-romanos e da bíblia e pouco preocupado na disseminação de
uma cultura eclesiástica para um público maior. Entretanto, com as novas exigências e
demandas sociais impostas pelo século XIII, os mais altos escalões da hierarquia romana
tiveram que repensar suas práticas e mensagens evangelizadoras: era a hora da Igreja agir.6
Ocorreu no século XIII a disseminação e popularização do discurso religioso, onde
a liturgia foi levada até as camadas mais populares e adquiriu um caráter conversor,
moralizador e educador se adaptando aos modos de pensar e agir do homem comum. Os
ensinamentos e doutrinas católicas transcenderam a palavra escrita e foram difundidos
através dos vitrais, missas, das artes sacras e das pregações e sermões mais curtos e diretos
que eram feitos tanto dentro quanto fora da Igreja, atraindo a atenção de centenas de fiéis
dispostos a ouvir os ensinamentos de Deus.
Uma das formas do historiador compreender estas múltiplas manifestações de fé e
devoção, e da relação dos homens com Deus, é através destes vestígios materiais legados
ao tempo, por exemplo, os relicários, bíblias, igrejas, imagens e lugares santos de
peregrinação. Dentre estas fontes históricas medievais encontram-se as hagiografias,
amplamente difundidas e divulgadas a partir do século XIII.
As hagiografias vêm do grego, que significa “escrita dos santos”, estes textos são
diversos e narram desde biografias de santos até processos de canonização, podendo
revelar para o leitor um universo particular, através da subjetividade e cultura ali presentes,
traços da sensibilidade de outrora. Estes textos que relatam a vida de santos e mártires
surgiram na Antiguidade Tardia e, a partir da Renascença, historiadores e estudiosos da
Idade Média passaram a desconfiar de sua fidedignidade. Entretanto, após as renovações
da crítica textual e literária, as hagiografias passaram a ser observadas de diferentes
formas, ganhando credibilidade. 6 VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental – dos séculos VIII ao XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1995. P. 8.
4
“A narrativa hagiográfica, como subgênero literário em língua portuguesa, de raízes bem mergulhadas na nossa Idade Média, tem características próprias que a diferenciam da crônica, da épica e da novela comum. Não se deve esquecer que sob cada hagiografia existe um intertexto peculiar, que não exclui o valor criativo apropriando-o às circunstancias e dando lhe nova vivencia. As hagiografias são, afinal, textos poéticos em prosa, pela fantasia que transfigura e pela sua índole simbólica “7
No cerne dos textos hagiográficos havia a presença constante de exemplums, que
são pequenas histórias, fábulas ou parábolas, com aspecto doutrinário apoiados numa
concepção religiosa e moralista com o objetivo de normatizar a conduta humana. Para isto,
utilizava de exemplos que abordavam situações mundanas e cotidianas com um desfecho
cuja resposta aos problemas e situações explicitados anteriormente estariam nas escrituras
sagradas:
“O exemplum como uma historieta, ou uma fábula, ou parábola, moralidade ou a descrição que pode ser usada para apoiar uma exposição doutrinária, religiosa ou moral. Faz parte de toda a narrativa descritiva baseada no passado e com relações no tempo presente.”. 8
A Península Itálica era, de certa maneira, o epicentro de todas as transformações
econômicas, sociais, culturais e políticas que ocorreram na Baixa Idade Média. Para o
século XIII, a região era densamente povoada, com grande atividade monetária, uma
estrutura de poder clerical muito bem definida, além de geograficamente ser uma região
estratégica e privilegiada que fez das cidades portuárias italianas – Veneza e Gênova –
grandes entrepostos comerciais na Idade Média.
Na província da Lombardia, destacou-se a figura de Jacopo de Varazze. Nascido
por volta de 1226, na cidade de Varazze, próxima à Gênova, aos dezoito anos de idade
ingressou na Ordem Dominicana, e devido ao seu alto grau de instrução e cultura, além de
senso evangelizador, subiu rapidamente na hierarquia interna dominicana. Em1267 foi
indicado para ser líder da ordem na famosa província da Lombardia9
7 LUCAS, Maria Clara Almeida. Hagiografia Medieval Portuguesa. Portugal: Instituto de Cultural e Língua Portuguesa, 1984. p.37 8GEREMEK. B. L´exemplum et la circulation de l aculture au Moyen Âge. In: Mélanges de L´Ècole française de Rome. Moyen –Age, Temps modernes. T. 92, Nº 1, 1980, p. 156. Tradução livre. 9 A província italiana no período medieval desenvolveu cidades de grande importância para a época, por exemplo, o porto de Gênova, Milão, Varesse e Monza.
5
Desde então ele se tornou uma pessoa pública e de carreira promissora, revelando-
se um dominicano cuja população local respeitava sua imagem. Prova disso é que Jacopo
foi o escolhido – junto com Rufino de Alessandria – para representar a cidade de Gênova
no Vaticano e pedir perdão pela quebra do acordo papal ao comercializarem com a Sicília,
pois a província havia sido excomungada. Foi também conciliador entre as brigas internas
da cidade de Gênova – dividida entre os guibelinos (pró Imperador) e os guelfos (pró Papa)
– e, como prova concreta de sua ativa participação provincial obteve a consagração como
arcebispo de Gênova.
Jacopo foi o responsável por reunir, compilar, adaptar e alterar dados de textos
hagiográficos, contando a vida e milagres de centenas de santos católicos, desde o
protocristianismo até o século XII, em um único livro, utilizado para ilustrar seus sermões,
missas e pregações populares.
“O objetivo imediato de Jacopo de Varazze era fornecer aos seus colegas de hábito, os dominicanos ou frades pregadores, material para a elaboração de seus sermões. Material teologicamente correto isenta de qualquer contágio herético, mas também compreensível e agradável aos leigos que ouviriam a pregação”10
O resultado foi a publicação da Legendae Sanctorum, vulgo Historia Lombardica
Dicta, ou Legenda Aurea, que não tardou para se tornar um grande sucesso no meio
clerical e ser traduzido para diversos idiomas séculos adiante. Um dos elementos que a
tornaram tão conhecida e famosa foi a presença de uma linguagem simples, direta, com
historietas engraçadas, com elementos fantásticos e mágicos, fáceis de memorizar e
dotadas de cunho moral, evangelizador e civilizatório, alertando acerca dos perigos
mundanos e das consequências – muitas vezes cruéis – tomadas por Deus e seus
representantes, os santos – para com aqueles que se recusassem a trilhar os caminhos da
temperança e virtuosidade cristã. A Legenda teve como objetivo “aproximar através do
púlpito, clérigos e leigos”. 11
O fato de Jacopo ter sido um compilador e organizador de textos hagiográficos não
retira a originalidade e valia do documento, assim como o fato de não possuir um padrão
de textos reunidos – uma vez que ele insere a vida de santos do Egito, Egéia, Gália e até 10 FRANCO JUNIOR. Hilário. P. 12. In: VARAZZE, Jacopo. Legenda Aurea: Vida de Santos. São Paulo: Cia das Letras, 2011. 11 ALMEIDA, B. N. Palavra de púlpito e erudição no século XIII. A Legenda Aurea de Jacopo de Varazze. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, Vol 22, nº 43, P. 74.
6
mesmo da Ásia Menor em seu livro, do século IV ao XI – o simples ato de escolher e
selecionar uns em detrimento de outros nos faz deparar com a intenção do autor.
“Mas, com a mudança de posição, a figura do escritor só reforça a situação do amante e de mando ocupada pelo manuscrito parece falar junto, senão no lugar do manuscrito. Assim nasceu esse critério da última vontade do autor (escritor) que justifica uma impostura. O escritor, que tinha abandonado seu texto ao público e ao crítico, retoma posse de seu texto indevidamente , como se fosse vivo, e continua reinando através de suas supostas intenções, isto é, supostas pelo crítico no deciframento do manuscrito.”. 12
Além do mais, Varazze enquadra-se no contexto de intelectual medieval, pois a
Legenda foi produzida no estilo tradicional de escrita medieval, onde o autor lê, sintetiza,
intervém e reinterpreta com total liberdade no processo de confecção final do texto. O
autor soma e subtrai tudo aquilo que lhe convêm, busca atingir através do texto o maior
número de pessoas possíveis;13 para isso vale-se de elementos folclóricos, mágicos ,que
ultrapassam a descrição apostólica formal e engloba elementos populares em seus textos,
que apesar de contraditórios, revelam-se como estratégia pedagógica e política que
assegura a domesticação física e moral do homem. 14
Reforçando a legitimidade da Legenda Áurea como uma fonte riquíssima de
entendimento do século XIII e das relações entre credulidade e imaginário popular, vale
ressaltar que a Legenda foi escrita para ser lida nos sermões e missas, uma vez que a
literatura medieval era mais oral do que escrita, voltada para um auditório, um público
onde a palavra oral tinha mais poder do que a escrita, pois as dimensões que a voz – ainda
mais sendo proferida por alguém que possua discurso competente, no caso o Arcebispo de
Gênova– atinge e penetra na natureza psíquica do sujeito ouvinte, conforme afirma a tese
do medievalista Paul Zumthor em “A Letra e a Voz: a Literatura Medieval”.
Os textos hagiográficos embora não se preocupem com uma exatidão de datas e
cronologias, são carregados de símbolos e através deles podemos adentrar o universo da
época, pois a mentalidade medieval era simbólica15. A linguagem bíblica simbolizava
12 WILLEMART, Phillippe. Intenção do autor, vontade do autor ou lógica do texto. In: Rev. In. Est. Bras., SP. 33: 128-135,1992. P.129-130. 13 LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio Ed. 2006. 14 ALMEIDA, Néri de Barros. P.80. 15 FRANCO JR. Hilário. In: VARAZZE, Jacopo. P. 17.
7
todos seus elementos e a Legenda Áurea também o faz, seja através do mouro16, do menino
negro17, da mulher18, do mendigo19, dos gigantes20 dentre outros elementos como a maçã,
gatos pretos, anjos, dragões, cruzes, relicários etc. O símbolo se revela o espelho que
possibilita avistar algo, mesmo que seja de uma maneira abstrata para, por seguinte, vê-lo
face a face no Além – “Videmus nunc per speculum in aenigmate: tunc autem faciem ad
faciem” 21(I Coríntios 13, 12).
Temos aqui duas formas de adentrar o universo religioso e devocional da Baixa
Idade Média, através da intenção do autor e lógica do texto, explicado através dos recursos
linguísticos de Phillipe Willemart e pela simbologia explícita e implícita nos textos
hagiográficos conforme aponta Hilário Franco Júnior e Maria Clara Almeida Lucas. É
importante também observar Jacopo de Varazze como um intelectual medieval, fruto do
seu tempo e das correntes filosóficas – escolástica – que prevaleceram no seio da Igreja do
século XIII, conforme o conceito de intelectual formulado por Jacques Le Goff. CITAR Le
Goff
Dentre as dezenas de hagiografias que contém a Legenda Áurea, destacam-se as de
São Cosme e Damião, que até o tempo presente são santos populares no catolicismo e a
eles inúmeras preces são pedidas. Os dados biográficos que aqui se seguem foram retirados
da própria Legenda Áurea.
Ao iniciar o relato hagiográfico de São Cosme e Damião, Jacopo retoma a origem
do nome dos santos, não no sentido etimológico, mas sim com o objetivo de romper com o
invólucro sagrado e revelar o lado humano, terreno e sensível dos santos: 22chegar à
verdade em seu sentido escolástico, ou seja, compreendê-la uma vez que somente seria
contemplada nas esferas espirituais e divinas.
Cosme e Damião possuem nome de origem grega, Cosme provém de “cosmos”, o
puro, e Damião derivado de “damum”, sacrifício. Os irmãos nasceram na Egéia, filhos de
Teodota, “foram instruídos nas artes da medicina pelo Espírito Santo”. Foram perseguidos
pelo pro-cônsul Lísias, cargo militar do Império Romano na região da Egéia – Ásia Menor
– por recusarem-se a idolatrar os deuses pagãos dos romanos, foram torturados
16 VARAZZE, Jacopo. Cap. 27 pág. 198. 17 Ibidem, p. 171 18 Ibidem, p. 58 19 Ibidem, p. 69 20 Ibidem, p. 175 21 “Agora vemos por espelho em enigma, para depois ver face a face”. 22 ETIENE, Gilson.
8
incessantemente; seus corpos, porém, nada sofreram, pelo contrário, mantiveram-se
intactos e protegidos. Confuso e amedrontado por tamanha resistência, Lisías mandou
decapitar Cosme e Damião junto com seus outros três irmãos (Ântimo, Leônico e
Euprépio).
Os relatos das curas de Cosme e Damião são diversos, conforme Jacopo de Varazze
aponta no capítulo 136 da Legenda Aurea:
“Depois de ter trabalhado na colheita, um camponês dormia de boca aberta e uma serpente penetrou até suas entranhas. Ao despertar não sentia nada e voltou para casa, mas à noite passou por sofrimentos atrozes: lançava gritos horríveis e invocava em seu socorro os santos de Deus Cosme e Damião. A dor aumentava constantemente e ele se refugiou na Igreja dos santos mártires, onde subitamente adormeceu e a serpente saiu por sua boca como entrara.” (VARAZZE, Jacopo. Página 796.).
Mais adiante, há o relato de um construtor muito devoto que ergueu a pedido do
Papa Félix, a basílica em homenagem a São Cosme e Damião. Porém, este construtor tinha
um câncer que devorara sua perna e, não aguentando de tanta dor invocou São Cosme e
São Damião:
“Então, durante o sono de seu devoto, os santos Cosme e Damião apareceram-lhe trazendo consigo unguentos e instrumentos. Um disse ao outro: “Onde conseguiremos com que preencher o lugar de onde cortaremos a carne pútrida?”. O outro respondeu: “No cemitério de São Pedro Acorrentado há um etíope recém – sepultado; traga sua carne para substituir esta.” [...] ao despertar, aquele homem não sentia mais dor, levou a mão à perna e ali não encontrou nenhuma lesão [...]. Caindo em si, saltou da cama alegre e contou a todos o que vira dormindo e como fora curado.” (VARAZZE, página 796).
É interessante apontar que, embora praticassem as curas, os santos não deveriam
cobrá-las, pois o dom do Espírito Santo não poderia ser usado para o acúmulo de riquezas
e posses materiais, já que as mesmas eram mal vistas aos olhos da Santa Sé. Nomeamos
estes santos, além de taumaturgos, de santos anárgiros (Άγιοι Ανάργυροι = desprovidos de
pagamento). Esta característica é explicitada por Varazze no trecho abaixo:
“Uma mulher chamada Paládia, que gastara todos os bens em despesas com médicos, dirigiu-se a eles, e os santos recuperaram completamente sua saúde. Ela ofereceu um pequeno presente a São Damião, e como este
9
não quis aceitar, ela o obrigou, com terríveis juramentos. Ele concordou em receber, não porque a cupidez o levasse a buscar esta recompensa, mas por complacência por aquela dama que lhe oferecia o testemunho de seu reconhecimento [...].” (VARAZEE, Jacopo. Página 794).
Além das hagiografias de São Cosme e Damião, outros santos possuíam poderes
taumatúrgicos – que agiam através das relíquias. A taumaturgia era o único quesito para
elevar uma pessoa à categoria de santo no período. Na Legenda Áurea destacam-se
também a presença da taumaturgia através de relicários e restos mortais em Santa Ágata23,
Santo Agostinho24, Amando25, Nicolau 26e Tiago27.
As historias de santos possuem normalmente um padrão: a negação das riquezas e
da vida confortável, seguido das missões divinas que eram para eles incumbidas de
resolver, a morte, em sua maioria de maneira trágica – martírio –, o encontro com Deus e a
elevação à categoria de santo. No caso de Santo Amando, negou sua vida confortável e
nobre e se refugiou em um mosteiro próximo a Roma, onde adorou e seguiu os passos de
São Martinho. Após dias refletindo sobre o túmulo de São Martinho, Santo Amando seguiu
até Roma onde lá teve uma revelação através dos sonhos acerca de uma missão na Gália, a
de recriminar e repreender o rei Dagoberto sobre seus crimes e barbáries.
Após uma série de peregrinações pela região da Vascônia e Gália (atualmente
sudeste da Suíça e região central da França), Santo Amando fez inúmeros milagres e
escapou de incontáveis armadilhas demoníacas, reveladas a ele através de sonhos e sinais.
Morreu no ano de 653 e alguns objetos, ou lugares tocados por ele, passaram a promover a
cura de muitas pessoas: “Certa vez um bispo mandou guardar a água na qual Amando
lavara as mãos, e algum tempo depois ela proporcionou a cura de um cego”. (VARAZZE,
Jacopo. Página 263).
Outro detalhe que não passa despercebido, não somente nesta hagiografia, mas ao
longo da Legenda Áurea, é que somente os devotos são salvos e têm suas preces atendidas,
revelando uma essência humana nos santos mesmo eles pertencendo à esfera divina. Os
maus devotos tinham seus pedidos ignorados e muitas vezes sofriam com a ira dos santos e
suas vinganças; por sua vez, os bons fiéis – apresentados acima como aqueles que evocam
orações aos santos e ajudam a construir templos em sua homenagem – são agraciados com 23 Ibidem, p. 256 24 Ibidem, p. 706 25 Ibidem, p. 262 26 Ibidem, p.69 27 VARAZZE, Jacopo. P. 974
10
sua bondade, proteção e, inclusive, a taumaturgia dos mesmos, ao se refugiarem em solo
sagrado ou terem seus males curados.
A figura do mal em constante luta contra o bem é uma característica comum da
vida espiritual do homem medieval, o” belicismo”, ou seja, o conflito entre antagônicos se
fazia presente em todas as esferas: a escuridão em oposição ao dia – luz divina; o pecado e
a salvação; o bem e o mal; a virtude e o pecado, ou seja, um dualismo que o homem
medieval deveria assumir em qual lado ocuparia. As forças ocultas, das trevas, poderiam
assumir formas diversas, inclusive ilusórias, uma destas materializações do mal era através
da doença, da moléstia, da degradação física responsabilizada como uma artimanha
demoníaca. 28
Um dos critérios da Igreja de identificar e santificar alguém era através da
comprovação de milagres de cura durante a vida e post mortem; uma vez estes milagres
atribuídos e comprovados como autoria do defunto eles eram analisados e aceitos pela
Cúria Romana, após isso já se iniciavam formalmente as honras – embora alguns restos
mortais não necessitassem da aprovação vaticanista para serem cultuados.
Após a morte e santificação destas pessoas iniciava-se o culto às relíquias sagradas,
marcadas pela veneração de restos mortais (ossos principalmente) ou objetos tocados pelos
santos e enterrados em capelas ou igrejas que, por abrigarem o corpo de um santo,
consequentemente se tornaram espaços sagrados e alvo de grandes peregrinações de fiéis
em busca da presença divina.
A religião católica, fundada por uma narrativa de martírio e morte, desenvolveu
uma relação bastante particular com os cadáveres dos seus santos. Os túmulos dos mártires
foram os primeiros locais de culto dos cristãos, locais de contato entre o cotidiano e o
sagrado e entre o mundo dos vivos e o dos mortos. Ali, onde as relíquias estavam
depositadas, o homem medieval concebia-as como a interseção onde Deus agiria e
aproximaria seu poder de cura das enfermidades que maltratavam os homens daquele
tempo.
É interessante destacar que o culto às relíquias acabou por estimular o crescimento
de cidades devido ao intenso número de peregrinos e fiéis que caminhavam para o local,
que por sua vez acabavam por se instalar nas redondezas para se alimentar, tratar dos seus
cavalos e animais de transporte, dormir e, inclusive, adquirir objetos religiosos dos santos
28 VAUCHEZ, André. Pág. 59
11
venerados na região, uma espécie primitiva de mercado religioso. Este mercado religioso
intensificou as atividades monetárias na região e possibilitou a vinda de inúmeros
charlatões e vigaristas que passaram a enriquecer por meio da venda e troca de falsas
relíquias, pois a intensidade de fé era tão grande que os devotos dificilmente questionariam
acerca das origens e veracidade dos relicários. Esta aquisição material de objetos santos e
multiplicação de relicários reforça a tese de André Vauchez sobre a necessidade de
materialização do contato entre o terreno e o sobrenatural feito por meio destas peças.
Como a totalidade do santo estava presente em suas partes, mesmo nas menores,
seus corpos podiam ser fragmentados e distribuídos por onde sua presença era exigida. O
poder de multiplicação de suas relíquias, o culto às relíquias atravessou a Idade Média e
modelou inclusive a urbs medieval e posteriormente as cidades modernas:
“O culto às relíquias atravessou toda a Idade Média como elemento estruturador do território das cidades cristãs. Durante todo esse período, foi impensável a existência de uma cidade, igreja ou até mesmo altar sem uma relíquia. As relíquias mais importantes eram os restos físicos dos santos, seus ossos, cabelos, lágrimas ou sangue, e, destas, as mais antigas eram, em geral, mais preciosas”. 29
Através dos textos hagiográficos um universo rico e peculiar se revela ao
historiador atento aos símbolos e subjetividade intrínsecos nas intenções do autor, Jacopo
de Varazze, que se responsabilizou por gerar uma das obras literárias mais conhecidas,
traduzidas e divulgadas ao longo da História. Concebida num período de grandes
transformações, o livro agiu como uma estratégia política de trazer para o seio da Igreja
Católica um maior número de fiéis e manter também os que nela já estavam. Através de
um discurso religioso impôs a legitimação de sua soberania face aos poderes régios e
burgueses que ascendiam rapidamente e ameaçavam a Cúria Romana, assim, utilizou dos
dogmas como caminhos para a coerção moral.
No entanto, esta é uma das diversas análises feitas acerca da Legenda Áurea e do
seu autor; é válida, porém é bastante simplista e já debatida longamente por medievalistas.
Cabe aqui compreender a Legenda Áurea como um livro que serviu de inspiração para
sermões de padres, monges e bispos em diversos cantos do continente europeu, revelando
aos leigos a santidade, traços da vida e conduta de pessoas veneradas, os santos. As
29 CYMBALISTA, Renato. Relíquias Sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna. In: An. mus. paul. vol.14 nº.2 .São Paulo Jul/Dez. 2006. P.
12
hagiografias eram espelhos para o homem comum se identificar e seguir os mesmos
passos, na boa conduta, virtuosidade e temperança.
Enfim, as hagiografias, os martírios, os sermões, as relíquias sagradas, as imagens
sacras, os símbolos cristãos e todos os elementos que possibilitam hoje um estudo mais
aprofundando do homem medieval, eram para a época, e ainda o são, os elos materiais
entre Deus e o homem, entre o Paraíso e a Terra. Na Legenda Áurea, Jacopo de Varazze
buscou reunir todos os ensinamentos do Criador, proferidos através do púlpito para quem
estivesse disposto a ouvir e a perseverar no que ali seria passado; os sermões buscavam
acalentar as aflições de pessoas que presenciavam mudanças intensas e rápidas em tempos
que realmente eram incertos.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, B. N. Palavra de púlpito e erudição no século XIII. A Legenda Aurea de Jacopo de Varazze. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, Vol 22, nº 43.
CYMBALISTA, Renato. Relíquias Sagradas e a construção do território cristão na Idade Moderna. In: Anais do Museu Paulista. Vol.14 Nº 2.São Paulo Jul/Dez. 2006.
ETIENE, Gilson. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
FRANCO JR. Hilário, OLIVEIRA, Ruy de. Atlas de História Geral. São Paulo: Scipione, 1993.
GEREMEK. B. L´exemplum et la circulation de l aculture au Moyen Âge. In: Mélanges de L´Ècole française de Rome. Moyen – Age, Temps modernes. T. 92, Nº 1, 1980, p. 156. Tradução livre.
HUIZINGA, Johan. Outono da Idade Média. São Paulo: Cosacnaify, 2010.
LE GOFF, Jacques. A Bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
LE GOFF, Jacques. Os intelectuais na Idade Média. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006.
LOYN, Henry Royston. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 1989.
LUCAS, Maria Clara Almeida. Hagiografia Medieval Portuguesa. Portugal: Instituto de Cultural e Língua Portuguesa, 1984.
13
OLIVEIRA, Therezinha. Origem e memória das universidades medievais: a preservação de uma instituição educacional. In: Varia Historia, Belo Horizonte. Vol 23, nº 37: pp 113-129, Jan/Jun 2007.
PERNOUD, Régine. Luz sobre a Idade Média. Portugal: Martins Codex, 1997. P. 51.
VARAZZE, Jacopo. Legenda Aurea: Vidas de Santos. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
VAUCHEZ, André. A espiritualidade na Idade Média Ocidental – dos séculos VIII ao XIII. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1995.
Endereços eletrônicos:
http://dpg.lib.berkeley.edu/webdb/dsheh/heh_brf?CallNumber=HM+3027&Description=&page=1