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FORMAÇÃO HUMANA E IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL: A CRIANÇA NEGRA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
DIAS, Maria José Pereira de Oliveira1
BALDINO, José Maria2
RESUMO
É voz corrente nos espaços escolares uma crença, um discurso ideológico que enuncia que
todas as crianças são iguais, de certa forma pretensamente naturalizado e reforçado pelo
ideário liberal que as individualizam. Na prática, as cotidianidades fazem brotar as suas
diferenças e seus confrontos frente à cultura dominante. Este artigo propõe desenvolver uma
reflexão sobre a (in) visibilidade da criança negra no contexto da educação infantil e como se
constitui o conhecimento e a afirmação da cultura africana e afro-brasileira na aprendizagem e
desenvolvimento das crianças pequenas.
Palavras-chave: Educação Infantil; Questões Étnico-raciais; Apoderamento cultural.
INTRODUÇÃO
No campo da educação brasileira contemporânea tem sido reconhecida como uma
temática relevante de investigação os objetos construídos acerca das diferentes abordagens
interpretativas das questões étnico-raciais e como se manifestam nos espaços escolares da
educação infantil à universidade.
Mesmo que reconheçamos que culturalmente são questões enraizadas no passado
histórico brasileiro, ainda presente como resquícios na contemporaneidade, considerados
também os inúmeros avanços inclusive na legislação, as reproduções culturais e sociais são
visíveis. Uma instituição de educação infantil, tomada como objeto destas reflexões, pode
tornar-se um espaço privilegiado de aprendizado e construção de conhecimentos importantes
ao desenvolvimento da criança. 1 Doutoranda e Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Especialista em Docência Universitária e Graduada em Pedagogia. Atualmente é Professora Efetiva no Departamento de Educação Infantil/CEPAE/UFG. Contato: [email protected] 2 Doutor em Educação- Universidade Paulista Júlio de Mesquita Filho-Campus UNESP Marília/São Paulo/Brasil (2002), Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais UFG (1973), Aperfeiçoado em Educação Comunitária-Universidade de Wyoming - USA (1979), Especialista (1985) e Mestre em Educação- Universidade Federal de Goiás ( 1991) - UFG. Atualmente é Professor Efetivo da Pontifícia Universidade Católica de Goiás - Categoria TITULAR SOCIOLOGIA, Professor do Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Educação e integra a Linha de Pesquisa Educação, Sociedade e Cultura. Contato: [email protected]
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Considerando-se que nos termos da LDB 1996, a educação está definida como
formação humana em diferentes espaços culturais e sociais, nos escolares o professor precisa
conscientizar e reconhecer-se um como um agente social fundamental na significação de
conceitos construídos e constituídos pelos partícipes nesse processo educativo.
Entretanto, é preciso debruçar o olhar em relação ao fortalecimento da identidade das
crianças negras nesses espaços sociais, mostrando a importância significativa de uma história
e cultura tão presentes na sociedade brasileira, socialmente multicultural e racial.
Pinho e Santos (2014) destacam que o marco histórico e social do Brasil foi selado
pela exploração dos negros e indígenas. Há que se destacar para efeito de compreensão que
mesmo após o acontecimento da abolição ocorrido no último quadrante do século XIX, essa
relação de não-reconhecimento cultural entre brancos e negros permaneceu desintegrada pelos
processos de exclusão explícitos e simbólicos, reproduzindo e ampliando as injustiças e
desigualdades culturais e sociais. O mito da democracia racial como uma formação discursiva
das elites brancas intenta, na prática, escamoteia os preconceitos e naturaliza o racismo.
Embora o racismo seja comprovado, o imaginário brasileiro compreende as relações raciais pelo mito da democracia racial, o qual pressupõe relações amistosas e cordiais, e igualdade de oportunidades, atribuindo somente ao passado escravista as desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros no Brasil (PINHO, SANTOS, 2014, p. 83).
As instituições educativas devem estar orientadas pelas políticas nacionais para a
educação infantil no que tange o desenvolvimento integral das crianças pequenas e suas
peculiaridades. Atualmente, podemos encontrar nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Infantil (2009) o direcionamento das propostas pedagógicas para as discussões
relacionadas às Diversidades. As DCNs são referências que contribuem para a construção e
desenvolvimento de propostas pedagógicas criando condições em suas ações principais e
assegurando os princípios referentes ao “reconhecimento, a valorização, o respeito e a
interação das crianças com as histórias e as culturas africanas, afro-brasileiras, bem como o
combate ao racismo e à discriminação” (DCNs, 2010, p. 21).
Assim, propõem direcionamentos para se pensar nos aspectos pedagógicos culturais
que possam contribuir no desenvolvimento integral da criança, garantindo que sejam
sistematicamente respeitados os principais direitos de proteção contra qualquer tipo de
“violência – física ou simbólica” no contexto interno ou externo a instituição de educação
infantil.
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O presente artigo buscou pesquisar a identidade étnico-racial das crianças pequenas
em uma determinada instituição de educação infantil - para efeito de sigilo, denominada como
Espaço das Brincadeiras e Interações, no sentido de propor uma discussão sobre a
representatividade da identidade afro-brasileira, neste contexto, e a formação de conceitos
importantes relacionados ao fortalecimento da relação das crianças negras nas interações
sociais. Com isso, foi necessário analisar os movimentos das crianças negras em uma
instituição de educação infantil, considerando, principalmente, as posturas e os valores
presentes no contexto dessa instituição, das famílias e das interações específicas dos pequenos
em diferentes processos das rotinas e ações pedagógicas promovidas pelos professores
responsáveis por um agrupamento de pequenos com idades compreendidas entre os 3 a 4
anos.
O objetivo principal orientador destas reflexões é investigar como se dá o processo de
construção da identidade étnico-racial em uma instituição de educação infantil,
compreendendo como as crianças brancas e negras reagem frente ao debate, observando de
que forma brincam e interagem entre si, e também, como são as relações sociais com as
brincadeiras e brinquedos ligados a cultura africana e afro-brasileira.
No campo teórico-metodológico, recorreu-se como procedimento empírico a
observação participante, por intermédio de buscas de dados nos registros diários, rodas de
conversas com as crianças, diálogos com os professores e pais/responsáveis em relação ao
processo de aprendizagem e desenvolvimento dos pequenos. A base teórica parte das
reflexões e debates com os autores Vigotski (2003; 2010), Cerisara (2000), Pinho; Santos
(2014) e demais pesquisadores.
As reflexões se iniciaram a partir de diferentes observações advindas do ano anterior,
onde as crianças em dados momentos participaram de propostas com metodologias voltadas a
cultura africana e afro-brasileira, a partir de literaturas e contação de histórias que abordavam
a questão étnico-racial.
Nesse processo, foi necessário lançar um olhar sensível considerando-se a presença de
poucas crianças negras no contexto da instituição e a ausência de um amplo debate sobre esta
questão em pauta. O silenciamento era latente nas poucas falas das crianças negras nos
momentos das rodas de conversas, na subserviência de alguns, na negação da própria
identidade, na expressão do desejo de ser branco, na rejeição e não identificação com as
pouquíssimas bonecas negras do acervo de brinquedos existentes na instituição.
Sendo assim, nos aportamos na perspectiva teórica da concepção histórico-cultural,
base epistemológica do atual Projeto Político Pedagógico da referida Instituição.
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1. O contexto teórico na perspectiva histórico-cultural e a educação infantil
A criança para se desenvolver, precisa estar em contato com os processos culturais que
foram produzidos por homens ao longo da história humana. E para isto, necessita de
diferentes fatores sociais, afetivos, cognitivos, motores, psicológicos e emocionais para o seu
pleno desenvolvimento.
Os estudos sobre a teoria histórico-cultural, constituída por pesquisadores como
Vigotski, Luria e Leontiev, foi tomando força no contexto da educação, dando sentido a
compreensão dos processos da aprendizagem e desenvolvimento na formação humana. Para
esses pesquisadores, ligados a psicologia histórico-cultural, a formação humana se diferencia
dos demais animais pelo trabalho e por sua ação em transformar a natureza. Assim, o ser
humano é um ser biológico, mas precisa passar por um processo de transformação social onde
vai se complexicando nesse contexto para então se desenvolver como ser social e se
relacionar com os demais. Portanto, nasce um ser biológico, mas precisa se tornar um ser
social por meio da aprendizagem que o tornará mais humano, ou seja, se humanizará como
sujeito.
Vigotski, Leontiev e Luria, com a teoria histórico-cultural, buscavam superar o
entendimento sobre a relação do homem com a cultura e as interações no processo de
aprendizagem e desenvolvimento, e, tomaram como base a perspectiva marxista, no período
pós-revolução. A compreensão parte de que a aprendizagem determina o desenvolvimento
humano, o homem aprende e se desenvolve numa perspectiva dialética. Mas para isso é
mediado por sistemas objetivos e subjetivos que são importantes na constituição de novos
conhecimentos ou conteúdos científicos que foram se construíndos socialmente.
Vigotski (2010) ressalta que a mediação, por meio dos instrumentos e signos,
significará as experiências da criança com o meio social. Para esse autor a palavra nunca será
vazia, pois estará sempre carregada de conceitos e significados que fazem relação com a
cultura constituída no contexto histórico. Assim, a linguagem é importante nesse processo por
ter um significado histórico-cultural. A criança é produto e produtora do ambiente em que
vive. O aprendizado desperta o desenvolvimento e contribui na construção do conhecimento
gradual e cíclico. Esse autor, aportado em teorias marxistas, propõem reflexões baseadas na
dialética entre o ensino e aprendizagem, desenvolvimento e apropriação do conhecimento na
compreensão da linguagem como um sistema simbólico de representação do real, considerada
fundamental nas relações humanas.
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Para Vigotski (2010) o homem desde que nasce já se constitui pelo mundo da
linguagem e tenta comunicar com o seu grupo social. No entanto, nessas interações esse
sistema de apropriação da linguagem ficará ainda mais complexo e contribuirá no
desenvolvimento das funções psicológicas superiores do indivíduo. Esse processo relacionado
ao aprendizado e desenvolvimento da criança é defendido como uma relação mutua entre
aspectos sociais e biológicos, construção significativa do conhecimento e de importante
significação do meio em que o sujeito vive. Sendo assim, a criança tem direito a essa cultura
mais complexa historicamente construída pelo homem. Por sua vez, a escola ou a instituição
de educação infantil é um local privilegiado a esse conhecimento, principalmente na
constituição dos conceitos científicos.
É importante ressaltar que a criança que frequenta uma instituição de educação infantil
não chega isenta de cultura, muito pelo contrário, já traz consigo um conhecimento prévio de
conceitos científicos e sociais que são considerados nesta teoria como um conhecimento real e
objetivado, mas que poderão ser problematizados para se alcançar novos saberes. Por outro
lado, a instituição precisa potencializar esses conhecimentos para que ampliem e se tornem
complexos cada vez mais, até atingir o que chamamos de conhecimento potencial.
Para isso, torna se importante o papel do adulto mais experiente no contexto
institucional. O professor é importante nesse processo, chamado por Vigotski (2010) como
mediador do conhecimento e dos conceitos científicos. Esse professor, que preferencialmente
deve ser qualificado em educação, contribuirá significativamente na aprendizagem e
desenvolvimento dessa criança potencializando-a por meio da zona de desenvolvimento
proximal, considerada pela autora Zoia Prestes (2010) como Zona de Desenvolvimento
Iminente, ou seja, está em processo de eminência e ainda não foi desenvolvida. Deve-se partir
do desenvolvimento atual, que é real, para o domínio dos signos e conceitos científicos. Essa
transcendência deve ser promovida pelo par mais experiente, nesse caso o professor, que fará
inicialmente uma observação detalhada dos processos de desenvolvimento da criança para que
a mesma progrida e avance em suas aprendizagens.
Portanto, a instituição de educação infantil não pode ser considerada como um único
espaço de aprendizagem, mas como um lugar privilegiado que contribui na promoção das
aprendizagens e desenvolvimento da criança pequena.
2. A representatividade da criança negra no contexto institucional: a identidade e a
identificação com a cor
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A instituição Espaço das Brincadeiras e Interações, atualmente, atende em média 90
crianças com idades de 4 meses a 5 anos. Possui uma estrutura e localização privilegiada
dentro de uma universidade pública, onde a demanda de participação das famílias é bastante
significativa. O processo de ingresso dessas crianças acontece por meio de um sorteio público
divulgado por um edital. O agrupamento analisado é formado por crianças com idades de 3 a
4 anos, sendo 15 no período matutino e destas, somente 8 frequentam o período integral.
Foto 1 – A roda de conversa
A Proposta Pedagógica Institucional está pautada nos estudos e perspectivas histórico-
cultural do desenvolvimento humano, vertente essa com especificidades teóricas propostas
pelo russo Vigotski e demais colaboradores. Para esses autores, a criança aprende a partir das
mediações com o outro, que por sua vez é uma portadora importante do conhecimento e da
cultura, na constituição e construção da história humana.
A teoria histórico-cultural considera que o meio social é importante no aprendizado e
desenvolvimento das crianças e essa sociabilidade se dá a partir das interações desde os
primeiros sinais de vida do homem. Para Vigotski (2003; 2010) a aprendizagem é
desenvolvida nas interações sociais constituídas e construídas por meio das atividades
socializadas entre as crianças, adultos e demais objetos sócio históricos.
Na perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento infantil, as ações das crianças
partem da necessidade das interações sociais constituídas sistematicamente no mundo em que
vive. Para isso, o entorno social é fundamental para a aprendizagem e o desenvolvimento de
capacidades individuais e da construção da própria identidade da criança.
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Sendo assim, é fundamental esse olhar sensível da instituição, dos professores e
demais envolvidos sobre as questões sociais vigentes e pertinentes as diferentes reflexões,
debates constituídos num espaço institucional e social. As discussões relacionadas as
diversidades e a inclusão propõem romper os diferentes estereótipos no contexto da sociedade
atual.
Nesse sentido, faz-se necessário uma organização pedagógica que compreenda a
educação infantil como um campo privilegiado de ações e construções de conceitos
importantes na mediação da aprendizagem e desenvolvimento da criança pequena.
3. O brincar e suas ressignificações
Os processos de cuidar/educar, além de serem indissociáveis na formação da criança,
contribuem na composição da autonomia para além do cuidado consigo e com o outro, dando-
lhe o direito de transitar por espaços que transcendem o seu seio familiar, portanto, a sua
institucionalização formal é importante. O currículo voltado a educação infantil deve ser
pensado levando em consideração todas as especificidades do trabalho com os pequenos e,
principalmente, considerando os direitos da criança de ter voz ativa e ser partícipe no processo
institucional.
Vale ressaltar que o brincar e as diferentes interações das crianças são eixos
fundamentais quando se defende uma proposta pedagógica no contexto da Educação Infantil.
O brincar, os brinquedos e as brincadeiras nesse contexto de aprendizado e desenvolvimento
são elementos primordiais na internalização da cultura socialmente produzida pelo homem e
na sua formação como sujeito social. Sendo assim, considerando esses elementos, é preciso
promover brincadeiras livres que não estejam ligadas e condicionadas aos equipamentos
industriais, possibilitando o sujar sem limite para imaginar e ressignificar o livremente. A
autora Zilma de Oliveira ressalta que
As atividades “livres” devem fazer parte da programação diária de todos os grupos de crianças. Desde berçário até as turmas dos maiores, devem ser organizados locais e momentos para que as crianças explorem o ambiente com maior liberdade de escolher seu foco de atenção (OLIVEIRA, 1992, 100).
Portanto, as crianças precisam desse tempo e da autonomia de poder escolher, em
dado momento as suas brincadeiras e seus ambientes para brincarem sem um direcionamento
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intencional, embora nessas brincadeiras os professores podem se tornar cumplices das ações,
caso sejam convidados ou aceitos pelas crianças.
As brincadeiras, os jogos e os brinquedos são apontados na teoria histórico-cultural
como instrumentos pedagógicos privilegiados, importantes e fundamentais no
desenvolvimento, na constituição do conhecimento de si e do mundo da criança. São as
diferentes vivências e experiências que vão significar e contribuir na formação integral da
criança. A Instituição de Educação Infantil precisa investir no tempo, espaço e nas propostas
pedagógicas, provendo o brincar como contexto dialeticamente inter-relacionado ao educar/
cuidar.
Foto 2 – momento das brincadeiras não dirigidas
Desse modo, não somente o brinquedo, as brincadeiras e os jogos simbólicos são
importantes, mas também as diferentes produções culturais e linguagens como o teatro,
fantoches, faz de conta, literaturas podem contribuir no desenvolvimento integral da criança.
O brincar deve ser um elemento principal de todas as propostas planejadas às crianças. As
brincadeiras precisam aparecer nos diferentes momentos das rotinas das acolhidas,
perpassando pelo processo de higienização e alimentação, até as atividades coletivas e
individuais.
A construção de brinquedos precisa ser desenvolvida cada vez mais com o objetivo de
ensinar as crianças as diferentes possibilidades de brincar para além das brincadeiras com
objetos industrializados. Os brinquedos artesanais e os materiais reaproveitados são
facilmente incorporados e apropriados pelas crianças como elementos importantes no
desenvolvimento de suas principais brincadeiras.
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No entanto, as brincadeiras dirigidas pelos adultos experientes são fundamentais nesse
contexto da educação infantil e o professor é um importante mediador nesse processo. No
entanto, as brincadeiras livres e não dirigidas possuem papéis importantes e não podem ser
desconsideradas. As crianças precisam desse tempo para que possam desenvolver ainda mais
a criatividade, o faz de conta, as interações e as ressignificações a partir do brincar e demais
situações pertinentes ao seu desenvolvimento. São nas brincadeiras livres que a criança
incorpora papéis que geralmente não conseguiria realizar por ser tão pequena. Nesses
momentos das brincadeiras, é comum presenciarmos crianças colocando bonecas para serem
amamentadas em si, outras dando novos significados aos brinquedos e objetos encontrados
pelos espaços, e interações significativas entre pares sem distinção de tamanhos ou gêneros.
Ações como essas, respaldam ainda mais o processo de aprendizagem e
desenvolvimento das crianças e os tornam protagonistas no contexto da educação infantil.
4. As bonecas negras nas principais brincadeiras
Foto 3 – A sala de brinquedos
Ao investigar sobre a presença da criança negra no contexto da educação infantil,
principalmente na instituição pesquisada, observamos um quantitativo inferior no quesito
representatividade desse perfil, não chegando a 30% de crianças negras frequentadoras desse
espaço. O silenciamento é bastante visível na ausência de objetos e brinquedos que remetam a
cultura negra nesse espaço.
Observou-se que a disposição das bonecas organizadas na sala de brinquedos se
resumem em pouquíssimos pontos negros em meio a um grande quantitativo de bonecas
brancas, loiras e de olhos azuis, onde nos mostram a falta de reconhecimento e identificação
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das crianças negras com as bonecas de sua cor, levando-as a preferir a maioria das vezes as
bonecas brancas. Notou-se que em algumas atividades as bonecas negras pouco eram
exploradas nas principais brincadeiras das crianças. Mesmo sendo oferecidos, esses
brinquedos rapidamente eram rejeitados.
Vale ressaltar que diferentes metodologias foram desenvolvidas no sentido de ampliar
o debate relacionado ao respeito as diferenças no contexto social. Nas rodas de conversas do
grupo, quando as crianças pesquisadas eram questionadas sobre a sua cor, observou-se que as
negras não se reconheciam, tendo a ideia de si como forma de “branqueamento” da sua
própria pele.
Neste agrupamento investigado, as professoras responsáveis eram nitidamente
representadas por pessoas de peles negras e com suas identidades visivelmente constituídas.
Algumas crianças conseguiram compreender que sua própria constituição identitária era
geneticamente de família negra. Já outras observavam as diferentes cores e ainda assim se
identificavam com a cor branca, mesmo sendo negras.
Foram planejados diferentes momentos de debates sobre o assunto da identidade
étnico-racial. Partiu-se de diferentes metodologias, como as literaturas nas histórias da
“Menina Bonita do Laço de Fita”, “O cabelo de Lelê” e muitas outras. A partir dessas
histórias, várias rodas de conversas foram se formando para o diálogo sobre as ações
desenvolvidas pelos personagens, propondo uma reflexão sobre questões atuais, presentes na
instituição e no próprio grupo.
Foto 4 – Contação de histórias
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Buscou-se por meio das literaturas fomentar diferentes conceitos referentes a temática
em destaque, suscitando uma compreensão da realidade das crianças do contexto interno e
externo a instituição. Partindo desse aporte metodológico, Abramovich (1997) ressalta que ler
histórias para as crianças,
É também suscitar o imaginário, é ter a curiosidade respondida em relação a tantas perguntas, é encontrar outras ideias para solucionar questões (como as personagens fizeram...). É uma possibilidade de descobrir o mundo imenso dos conflitos, dos impasses, das soluções que todos vivemos e atravessamos – dum jeito ou de outro – através dos problemas que vão sendo defrontados, enfrentados (ou não), resolvidos (ou não) pelas personagens de cada história (cada uma a seu modo)...É a cada vez ir se identificando com outra personagem (cada qual no momento que corresponde àquele que está sendo vivido pela criança)...e, assim, esclarecer melhor as próprias dificuldades ou encontrar um caminho para a resolução delas...( ABRAMOVICH ,1997, p. 17).
Sendo assim, as histórias permearam por um longo tempo o imaginário das crianças.
Suas famílias relataram várias situações envolvendo o contexto das literaturas desenvolvidas
sobre a representatividade dos negros na atual sociedade.
Além disso, nos diferentes momentos das principais brincadeiras foram desenvolvidas
ações no sentido de ampliar a imagem positiva dos negros e elevar a autoestima,
principalmente, das crianças que se inferiorizavam em relação a sua cor e cabelo.
A partir dos diálogos constituídos nas primeiras rodas de conversas, e em diferentes
brincadeiras não dirigidas, algumas crianças passaram a se olhar no espelho na tentativa de
reconhecimento de si e da sua cor, se reafirmando como identidade negra e esboçavam
expressões positivas em relação à estética apresentada.
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Foto 5 – Brincadeiras não dirigidas (boneca negra)
A partir das primeiras ações pedagógicas desenvolvidas, registrou-se uma importante
motivação das crianças de conhecer a cultura, de reconhecer a sua identidade e das diferentes
etnias presentes no contexto social. Observou-se ainda, que a organização curricular e o plano
de ação das principais propostas desenvolvidas partiram, além das novas demandas
apresentadas pelas crianças, também da continuidade e aprofundamento na temática
relacionada as diversidades étnicos raciais e demais ações pertinentes ao processo
pedagógico.
5. A instituição de educação infantil e a organização curricular sobre as diversidades
étnicos- raciais
Ao desenvolver as propostas pedagógicas na educação infantil, levando em
consideração a temática diversidade cultural no contexto das relações étnico-racial, foi
necessário colocar em pauta as questões ligadas ao preconceito sofrido pela cultura negra,
quilombola, indígena e até mesmo os imigrantes que vivem neste país.
Cavallero (2001, p.9), no prefácio do seu livro “Racismo e Antirracismo na
Educação – repensando nossa escola” ressalta que [...]” falar sobre a discriminação no
ambiente escolar não é realizar um discurso de lamentação, mas dar visibilidade à
discriminação de que crianças e adolescentes negros são objetos. A autora aponta ainda, que
no contexto da instituição esse racismo é apresentado de diferentes formas como “negação das
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tradições africanas e afro-brasileiras, dos nossos costumes, negação da nossa filosofia de vida,
de nossa posição no mundo...da nossa humanidade” (p. 8).
Não podemos negar que algumas instituições de educação infantil, por vezes, tem se
deparado com práticas pedagógicas excludentes e de desconsideração da cultura negra na
atual sociedade. As propostas pedagógicas precisam buscam a igualdade, reconhecer as
diferenças existentes e suscitar a reflexão relacionada aos direitos de todos os sujeitos sociais.
É dever da instituição, respeitar as diferentes culturas e contribuir no combate aos diversos
tipos de preconceitos oriundos do contexto social.
Sendo assim, as práticas pedagógicas devem considerar o desenvolvimento de um
sujeito que respeite as diferenças, rejeite qualquer prática preconceituosa e racista, e,
sobretudo, se constitua como ser histórico-social e protagonista desse processo. Nesse sentido,
é preciso dar visibilidade a cultura africana e afro-brasileira, principalmente no contexto da
educação infantil, desvelar o preconceito existente e afirmar positivamente uma etnia que
contribuiu e continua a contribuir significativa na cultura vigente.
Foto 6 – Atividade com música: instrumento de origem africanaÉ preciso problematizar a questão com os sujeitos desse processo de aprendizagem e
desenvolvimento, favorecendo a construção ao respeito as diferenças existentes como
condição humana, promovendo uma cultura para a inclusão e integração social.
Nesse sentido, o cuidar/educar na educação infantil são dimensões necessárias e
contribui para o reconhecimento das particularidades, desejos, necessidades e acolhimento de
cada criança. Esse ato configura de modo significativo para o fortalecimento das interações
entre as crianças e os adultos, sobretudo, implica o respeito as culturas do atual contexto
social.
O referido plano de ação, dentro da proposta pedagógica da instituição, objetivou
compreender essas relações sociais, oferecendo aos sujeitos do processo de aprendizagem e
desenvolvimento elementos significativos e com ações que levassem a igualdade, o respeito
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as particularidades e a identidade das culturas, prioritariamente a cultura negra, no sentido de
“empoderar” as crianças, muitas vezes, silenciadas e excluídas por ter uma pele mais escura
ou por serem consideradas como diferentes.
Torna-se necessário desenvolver práticas pedagógicas significativas na construção da
identidade e autonomia da criança, por meio das brincadeiras e dos elementos da faz de conta,
oferecendo oportunidade para construir/reconstruir a sua aceitação e confiança em si mesmo,
favorecendo as interações e relações de solidariedade, cooperação e respeito uns com os
outros e adultos mais experientes desse contexto social.
Santos (2001) ressalta que a instituição de ensino precisa dar condições para que a
história dos negros e índios seja contada por mais sujeitos, “é necessário romper o silêncio a
que foram relegados negros e índios na historiografia brasileira para que possam construir
uma imagem positiva de si mesmos (p. 107).
Portanto, a proposta curricular e, principalmente, o plano de ação do referido
agrupamento visou promover o reconhecimento e o respeito as individualidades e diferentes
culturas. Propôs também:
a)-construir, a partir da problematização, uma imagem positiva que possa contribuir
com a ampliação da autoestima das crianças nos espaços da instituição ;
b)-possibilitar espaços de brincadeiras, jogos e literaturas que contemplem as
diversidades étnicos-raciais e demais pertinentes ao processo pedagógico;
c)-apresentar literaturas que possibilitem a reflexão sobre o respeito e a solidariedade
em relação as diferenças individuais, culturais e sociais.
Por fim, a metodologia ligada à temática, considerou a aprendizagem e o
desenvolvimento das crianças como fundamento principal para se pensar e repensar as ações
pedagógicas que promovam o avanço significativo de todos, considerando as particularidades
e singularidades dos sujeitos envolvidos. E que para Santos (2001) a instituição escolar deve
promover essas “vivências” e experiências de “diálogos”, “discussões” e “questionamentos”
(p. 106).
Considerou-se a criança como protagonista dos seus saberes e conhecimentos. E para
isto foi necessário sondar os conhecimentos prévios que pudessem apresentar elementos nas
apropriações desses conceitos sobre a valorização e o respeito as diversidades e a identidade
de cada sujeito.
A avaliação do trabalho ocorreu em todo o processo desenvolvimento: nas
observações, diários de campo, produções das crianças, narrativas nas rodas de conversas,
movimentos registrados em vídeos e fotos.
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Sendo assim, a escuta e o diálogo desses sujeitos foram elementos apresentados
como possibilidades de transformação pela ação histórico-cultural e emancipação humana.
Notas finais...
Este artigo, propôs uma reflexão acerca das relações étnicos-raciais no contexto da
educação infantil. Procurou-se com isso, compreender a criança e suas especificidades a partir
de uma concepção teórica que considera os sujeitos como importantes na compreensão da
totalidade social e na construção do conhecimento constituído e ressignificado socialmente ao
longo da história humana.
O contexto pedagógico observado, nos permitiram refletir sobre os resquícios
presentes na sociedade atual na falta de consideração com o outro, sobretudo questões
relacionadas ao preconceito e a intolerância ao diferente. Os silenciamentos podem ser
rompidos, temporariamente, mas é preciso desvelar cada vez mais os movimentos, os olhares,
as brincadeiras, as falas que são expressos pelas crianças que enfrentam essas indiferenças
dentro e fora da instituição educativa.
Cabe a nós professores promover ações para que as diferentes culturas sejam
conhecidas, reconhecidas e respeitadas no contexto educacional. Como representante
institucional e responsáveis pelo processo de aprendizagem e desenvolvimento dos pequenos,
nos cabe pensar em metodologias que promovam autonomia integral da criança, dando-lhe
voz e a possibilitando de se libertar das amarras do preconceito social, racial e os demais
presentes na sociedade, promovendo assim, a emancipação desses sujeitos sociais.
Para isso, é preciso que a instituição e os professores desvelem as diferentes culturas
e identidades étnicos-raciais, presentes no contexto social, e desenvolvam metodologias que
possam reconhecer e afirmar, na cultura atual, a forte presença africana e afro-brasileira e suas
importantes contribuições nos diferentes processos e aspectos sociais.
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