ADVOCACIAGERAL DA UNIO
PROCURADORIA DA UNIO NO ESTADO DE MATOGROSSO DO SUL
Grupo Especial de Recuperao Processual do Patrimnio da Unio e de defesa
da Probidade Administrativa
RUARIOGRANDE DO SUL, 665, JARDIM DOS ESTADOS, 67-3324-1840 (FAX) 3321-4055- CEP.79020-010
AGU/PU/MS/AMRV/2013
EXMO. Juiz federal da 4 vara da 1 subseo da seo judiciria do estado de mato grosso do sul:
Salus populi, suprema lex esto (que a sade do povo seja a suprema lei mxima de Direito, da lei das XII tbuas);
II- Bom Senso:
(...) o quenos avisa do perigo das doenas infecto-contagiosas que podero vitimar a ns ou aos animais que temos sadios em casa ou nos abrigos. - o que preserva nossa integridade fsica e a de nossos animais quando vamos prestar o socorro ou adotar. (cf. in fl. 60, estatuto da associaoautora); (...). A citologia de linfonodo confirmou a presena do parasita da leishmaniose, (...). A doena leishmaniose at o momento no tem cura para o co, (...). (cf. in fl. 41, relatrio ao ento Prefeito sobre o co scooby); (...). Lembramos que esta doena de difciltratamento e a resposta a estetratamento demorado (...). (cf.relatrio, fl. 85, in fine); (...), demonstra uma menor possibilidade de transmisso da Leishmania sp. para o flebotomneo. (...) O tratamentoparaleishmaniose, comoj mencionado anteriormente, busca a curaclnica do animal, (...) (cf. relatrio, infl. 93). A doena leishmaniose at o momento no tem cura para o co, (...) (cf. relatrio, in fl. 104).
AUTOS N00035012820134036000
AO DE CONHECIMENTO
AUTORA: ASSOCIAO ABRIGO DOS BICHOS
UNIO, representada neste ato processual pelo membro da Advocacia-Geral da Unio que ao final subscreve, vem
apresentar contestao, cujos fundamentos de impugnabilidade, doravante sistematizados, evidenciam impropriedades processuais da
demanda e a improcedncia de seu pedido.
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- CONEXO ENTRE DEMANDAS COLETIVAS (ART.301, VII, CPC) PREVENO DO JUZO DA 1 VARA FEDERAL (LEI N 7.347/85:
ART. 2, NICO) -
1- A demanda, que presentemente se contesta, tem,
em sua causae petendi e, mormente, no pedido desfavorvel Unio, estreito
liame de semelhana coma demandados autos n 2008.60.00.001270-0, cujo
procedimento especial desenvolve-se perante o Juzo federal da 1 vara desta
subseo judiciria (cf. anexo 29).
2- Consideradas segundo a perspectiva de afirmao de
interesse material pela parte autora, ambas tm natureza processual de demanda
coletiva (gnero), caracterizando-se, especificamente, como aes civis
pblicas, a despeito do irrelevante rtulo de ao ordinria, aposto
aleatoriamente como nomen iuris da demanda contestada, cuja natureza, ressalte-
se, de ao civil pblica, espcie do gnero ao coletiva, razo pela
qual o rtulo com que foi impropriamente nominada no lhe traduz a correta
ontologia processual, e da ser pertinente esta lio do jurista argentino Agustn
Gordillo:
(...) as palavras no so mais que rtulos nas coisas:
colocamos rtulos nas coisas para que possamos falar delas
e, da por diante as palavras no tem mais relao com as
coisas, do que as tm rtulos de garrafas com as prprias
garrafas. (...) Qualquer rtulo conveniente na medida em
que nos ponhamos de acordo com ele e o usemos de maneira
conseqente. A garrafa conter exatamente a mesma
substncia, ainda que coloquemos nela um rtulo distinto,
assim como a coisa seria a mesma ainda que usssemos
palavra diferente para design-la (in Princpios gerais de
direito pblico, RT, 1977, pg. 2, traduo de Marco Aurlio
Greco, sem destaque).
3- So aes civis pblicas porque, em ambas, a mesma
parte autora pede, em nome prprio, tutela jurisdicional pela afirmao de
interesse transindividual (considerado, a priori e in status assertionis), do qual
no titular no plano substancial, agindo, pois, em substituio processual.
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4- A ao civil pblica, explica Teori Albino
Zavascki, procedimento moldado natureza dos direitos e interesses a
que se destina tutelar: direitos transindividuais (difusos e coletivos) (in
Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos,
So Paulo, Editora RT, 2006, p. 66), disciplinando-se, primordialmente, pelas
normas especiais do sistema processual coletivo, cujas principais fontes
formais so a lei n 7.347/85 e a lei n 8.078/90, aplicando-se-lhe, apenas
subsidiariamente, as normas comuns do CPC (art. 271 do CPC e art. 19 da lei
n 7.347/85), donde, portanto, a impropriedade formal (incorrespondncia
semntica) do rtulo inicial da actio contestada.
5- Aclaradas quanto natureza processual,
importante que agora se perceba que, em ambas as demandas, o ncleo temtico das respectivas causae petendi o comum e invarivel discurso da viabilidade do tratamento canino da leishmaniose visceral, e, por consequncia, a comum pretenso de se querer impedir que o Poder Pblico execute a medida preventiva de eutansia de ces infectados por leishmania chagasi.
6- Para uma melhor percepo do alto grau de
conexo entre as duas demandas, menciona-se, inicialmente, que o primeiro pedido de tutela jurisdicional, formulado na demanda conexa (na 1 vara), visa obteno de mandamentalidade que iniba o Poder Pblico de eutanasiar, sem prvia autorizao formal do proprietrio, co infectado por leishmania chagasi (cf. petio inicial, in anexo 29).
7- J no pedido de tutela jurisdicional, formulado em
fl. 50 destes autos, a mesma parte autora pretende assegurar semelhante situao que acol: o tratamento canino da leishmaniose visceral, o que pressupe, obviamente, a proibio de o Poder Pblico adotar a medida de eutansia do co infectado.
8- Ora, se o outro rgo jurisdicional, quando julgar o mrito da demanda conexa, vier a reconhecer, com eficcia subjetiva universal (erga omnes), a legalidade da coatividade administrativa da eutansia canina por LV, e sobretudo se tal preceito declaratrio revestir-se do atributo de imutabilidade (res iudicata), ocorrer de grave conflito lgico e prtico com eventual deciso de mrito que venha a impor, pelo julgamento do pedido desta demanda contestada, a absteno administrativa da prtica obrigatria da eutansia canina.
9- Em verdade, esse risco inicial de incompatibilidade prtica entre decises reciprocamente antagnicas, proferidas, separadamente, nas duas demandas coletivas, no mais to-somente um perigo concreto, j fato, e fato extremamente grave!
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10- Com efeito, em deciso vigente, proferida nos autos de suspenso de liminar n 1.289-MS, o rgo de Presidncia do STJ suspendeu, com eficcia erga omnes (por se tratar de jurisdio coletiva respeitante hiptese do art. 81, nico, I, da Lei n 8.078/90), pronunciamento monocrtico, emitido pelo TRF da 3 Regio em agravo por instrumento interposto na demanda conexa, e que condicionava a prtica administrativa da eutansia canina prvia aquiescncia do proprietrio.
11- O Ministro Ari Pargendler, convencido pela fora de evidncias cientficas, que lhe eram expostas pela Unio, e sensvel extrema gravidade social da matria assim como de sua magnitude para a sade pblica, suspendeu a eficcia daquele pronunciamento do TRF, nestes termos:
(...) J a manuteno da exigncia de consentimento do proprietrio para o sacrifcio do animal doente e do direito
realizao do tratamento no animal (que pode no evitar a
transmisso da doena) tm o potencial de causar grave
leso a sade pblica. (...)
Defiro, por isto, o pedido, em parte, para suspender os
efeitos da deciso proferida pelo MM. Juiz do Tribunal
Regional Federal da 3 Regio no que diz respeito
necessidade de consentimento do proprietrio do animal
doente para a realizao da eutansia e possibilidade do
proprietrio do animal portador da doena recusar-se a
sacrific-lo, mediante a assinatura de termo de
responsabilidade de tratamento (cf., sem destaque, in anexo 24).
12- Isso implica reconhecer que na demanda conexa (na 1 vara federal), em cuja relao processual a mesma associao e a Unio encontram-se nos mesmos plos processuais antagnicos, est em vigor deciso jurisdicional superior, reconhecendo, provisoriamente, a legalidade administrativa da eutansia canina.
13- Portanto, j fato a gravssima
incompatibilidade prtica entre o preceito liminar, proferido nestes autos, e o preceito superior acima transcrito, o que peremptoriamente comprova a estreitssima conexo entre as duas demandas coletivas.
14- O conflito decisrio s no mais grave
institucionalmente, porque as duas decises reciprocamente antinmicas so provisrias, no se revestem de res iudicata, mas mesmo assim urgente e cogente a observncia do mandamento processual enunciado no art. 105 do CPC: o reconhecimento da conexo (art. 103 do CPC) e a remessa destes autos ao Juzo federal da 1 vara, prevento e que, por s-lo, h de julgar conjuntamente as lides coletivas.
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15- til enfatizar que essa regra processual
(art. 105) desdobramento especfico do princpio fundamental da harmonia
institucional dos poderes constitudos (interpretao lgica do art. 2 da CF:
So poderes da Unio, (...) e harmnicos (...) e o Judicirio), como imposio
no somente extrnseca entre eles, mas tambm interna corporis, e por isso o art.
105 do CPC regra que salvaguarda o interesse pblico pela efetividade da
deciso jurisdicional, informada pelo postulado institucional de coerncia da
unidade da jurisdio, valendo-lhe, na essncia, aquela sbia e secular mxima
de Papiniano: jus publicum privatorum pactis mutari non potest; dizer: se no pode
o Direito Pblico ser substitudo pelas convenes dos particulares, a fortiori,
acrescenta-se aqui, pelo arbtrio da autoridade que deve aplic-lo.
16- Firmada a natureza de ao civil pblica
das duas demandas coletivas e, consequentemente, o regime prevalente de
disciplina normativa pela lei n 7.347/85, a regra, que estabelece o critrio de
identificao do Juzo prevento, a que decorre do texto do pargrafo nico,
do art. 2, dessa lei, consoante o qual A propositura da ao prevenir a
jurisdio do juzo para todas as aes posteriormente intentadas que
possuam a mesma causa de pedir ou o mesmo objeto (destacou-se).
17- O conceito jurdico-processual de
propositura de ao acha-se positivado no art. 263 do CPC, nestes termos:
Considera-se proposta a ao, tanto que a petio inicial seja despachada
pelo juiz, ou simplesmente distribuda, onde houver mais de uma vara.
(...); no caso concreto, em razo da coexistncia, na 1 subseo judiciria, de
mais de uma vara federal com igual competncia civil ratione materiae, a
propositura de ao considera-se, simplesmente, como o ato
administrativo-judicirio de distribuio da petio inicial.
18- Assim, em se tratando de duas aes civis
pblicas conexas, que tramitam perante Juzos federais diversos, o Juzo
prevento, segundo a regra especial do nico, do art. 2, da lei n7.347/85,
aquele para o qual foi distribuda a petio inicial da primeira das aes
civis pblicas.
19- Dessa premissa, importa ser ressaltada a
especialidade normativa do critrio de preveno estabelecido no nico,
do art. 2, da lei n 7.347/85, a significar que sua regra especial de preveno,
decorrente dessa fonte formal extravagante, afasta, ex vi do art. 271, in fine, do
CPC, a incidncia da regra comum resultante do caput do art. 219, do CPC.
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20- Concretamente, a petio inicial da ao civil pblica contestada foi distribuda em 12/04/2013, e a da ao cautelar preparatria, em 13/11/2008 (cf. anexo 30); j a petio inicial da ao civil pblica conexa, autuada na 1 vara federal com o nmero n 2008.60.00.001270-0, fora distribuda em 17/01/2008 (cf. in anexo 29),de maneira que essa precedncia distributiva fixou a preveno do Juzo federal da 1 vara, a quem, por conseguinte, competir o julgamento conjunto das duas aes civis pblicas.
21- De ser ainda acrescentado que o Juzo prevento ainda no julgou o pedido daquela ao civil pblica conexa, inexistindo, assim, o bice reunio processual, advertido pelo enunciado
sumular n235 do STJ: A conexo no determina a reunio dos processos,
se um deles j foi julgado.
- INOBSERVNCIA DE LITISCONSRCIO PASSIVO NECESSRIO -
22- Dentre as crassas impropriedades formais que permeiam a ao contestada, assume relevo preliminar a sua omisso quanto incluso de litisconsorte passivo necessrio.
23- Com efeito, extrai-se do texto postulatrio do item I, em fl.50, a explcita impugnao de atos administrativos normativos, emanados tanto da Unio quanto do Conselho federal de medicina veterinria (CFMV).
24- percepo da exigncia in concretu de
litigncia obrigatoriamente conjunta, ou necessariedade litisconsorcial, o eixo
de referncia sempre o resultado prtico a que tende o processo,
vista do pedido e da causa de pedir, como bem o disse Barbosa Moreira (no clssico Litisconsrcio unitrio, Forense, 1972, pg. 146, n85, sem destaque).
25- Conquanto sofrvel a linguagem do texto postulatrio, ainda assim se constatam duas pretenses processuais
subjetivamente autnomas nele misturadas: ...desobrigar os requerentes a
cumprirem os preceitos da Portaria Interministerial n. 1.426, de 11 de julho
de 2008, expedida pelo Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento
e Ministrio da Sade e as resolues dos Conselhos Federal e Estadual
de Veterinria que probe a administrao de medicamento humano no
tratamento da leishmaniose, (...) (cf., sem destaque, em fl. 50).
26- Parece bvio que essa pretenso de inibir a atuao disciplinar dos mencionados Conselhos, quando invocarem a fora normativa de suas resolues na matria sub judice, pedido de tutela inibitria inconfundvel (rectius, autnomo) com o anteriormente formulado em face da Unio; onde est, ento, a declarao de vontade da autora, a incluir essas autarquias corporativas no plo passivo da demanda?
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27- Ora, raciocnio bsico do princpio fundamental da ampla defesa o de que todo aquele, para cuja esfera jurdica se direciona, desfavoravelmente, pedido de tutela jurisdicional, h de ser necessariamente indicado (art. 282, II, CPC) e citado como ru (art. 282, VII), estando o rgo jurisdicional proibido de proferir deciso favorvel ao autor, enquanto no sanado o vcio de nulidade (caput do art. 47 do CPC).
28- Se, como prescreve a 2 parte do caput do art. 47 do CPC, ...a eficcia da sentena depender da citao de todos os litisconsortes no processo, mais que bvio que a antecipao de eficcia da sentena, ou seja, a deciso antecipatria, tambm depender, e com muito mais razo, da prvia complementao de declarao de vontade do autor, no sentido de incluir os litisconsortes passivos necessrios.
29- Pasme-se: o Juzo, embora tenha lido e interpretado aquele texto postulatrio, passou ao largo do princpio fundamental, omitindo-se no dever legal de ordenar ...ao autor que promova a citao de todos os litisconsortes necessrios, dentro do prazo que assinar, sob pena de extino do processo ( nico do art. 47, do CPC), sem se esquecer, todavia, de impor antecipao de tutela mandamental a entidades que sequer foram qualificadas como rs.
30- Eis, com efeito, a parte dispositiva da liminar antecipatria:
Assim, DEFIRO O PEDIDO DE ANTECIPAO DE
TUTELA com o fim de desobrigar a autora a cumprir os
preceitos da Portaria Ministerial n 1.426, de 11 de julho de
2008, expedida pelo Ministrio da Agricultura, Pecuria e
Abastecimento e Ministrio da Sade e as Resolues dos
Conselhos Federal e Estadual de Veterinria que probe a
administrao de medicamento humano no tratamento de
leishmaniose (in fl. 141, sem destaque).
31- , porm, decorrncia do princpio informativo lgico (cf. Arruda Alvim, in manual de Direito Processual Civil, RT, 6 edio, 1997, pg. 18) a exigncia de que mesmo a cognio provisria sobre o mrito, qual a que ocorre na antecipao de eficcia de deciso de mrito, est condicionada prvia observncia dos requisitos de admissibilidade do julgamento de mrito, como os pressupostos processuais e as condies de exerccio regular do direito de ao.
32- A inobservncia, pela autora, de litisconsrcio passivo necessrio j implicava, ab initio litis, a impossibilidade de o Juzo prescindir desse requisito de admissibilidade e adentrar na cognio provisria sobre o mrito, porque a omisso litisconsorcial configura ilegitimidade passiva da Unio.
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33- Disse-o Cndido Rangel Dinamarco: A
necessariedade do litisconsrcio reside na indispensabilidade da
presena de partes plrimas, resolvendo-se numa questo de
legitimidade ad causam ativa ou passiva: dizer que o litisconsorte
necessrio significa negar a legitimidade de uma s pessoa para
demandar ou para ser demandada isoladamente, carecendo de ao o
autor que insistir na demanda isolada. Trata-se de matria de ordem
pblica, que ao juiz cumpre fiscalizar de ofcio, ditando-lhe a lei,
expressamente, o dever de determinar o necessrio para que se faa o
litisconsrcio, nos casos em que a lei o exige, sob pena de extino do
processo sem julgamento de mrito (cf., sem destaque, in Litisconsrcio,
Malheiros, 4 edio, 1996, pgs. 66 e 67).
34- Muito antes de Dinamarco, Enrico Tullio
Liebman, no seu Manual de Direito Processual Civil (in vol. 1, 2 ed., Forense,
1987, pg. 107, n51, sem destaque), j preconizava, em termos de implicao
de legitimidade ad causam, que ...o litisconsrcio necessrio resolve-se, do
ponto-de-vista terico, em uma legitimao para agir necessariamente
abrangente dos titulares da relao jurdica que o autor quer deduzir
em juzo: a ao, nica, tem cabimento conjuntamente contra o vrios
legitimados passivos necessrios, e isso quer dizer que no tem
cabimento s contra um ou alguns deles (...); movida a alguns, a ao
no poder ser julgada pelo mrito e a rigor deveria, mesmo de-ofcio,
ser declarada inadmissvel.
35- Suscita-se, por conseguinte, a exceptio plurium
litisconsortium (litisconsrcio necessrio), revelando-se a ilegitimidade ad causam
da Unio para continuar figurando, isoladamente, no plo passivo da demanda.
- A ILEGITIMIDADE ATIVA DA ASSOCIAO IMPERTINNCIA TEMTICA ENTRE OS FINS ESTATUTRIOS E A SITUAO
MATERIAL PRETENDIDA COM A DEMANDA
36- Outro importante aspecto formal, em que
falhou o filtro de admissibilidade prvia sobre a demanda contestada, o da
legitimidade ativa, porque a associao autora no , vista de seus desgnios
estatutrios, porta-voz legtimo de potenciais interesses de grupo mdico-
veterinrio nem de empresas interessadas na fabricao e comercializao de
produtos para tratamento canino da LV.
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37- que, alm do pressuposto cronolgico de
pr-constituio (in art. 5, V, a, Lei n 7.347/85), exige-se,
concorrentemente, que a associao autora inclua, entre suas finalidades
institucionais, a proteo ao meio ambiente, ao consumidor, ordem
econmica, livre concorrncia ou patrimnio artstico, esttico,
histrico, turstico e paisagstico (art. 5, V, b, Lei n 7.347/85); todavia,
e ao contrrio do que possa induzir e seduzir o resultado de uma interpretao
simplesmente literal do texto, a incluso temtico-estatutria no bastante
em si mesma.
38- Imprescindvel, e isto como resultado de
interpretao lgico-finalstica, que a prvia incluso temtico-estatutria
guarde, sob a tica da casustica litigiosa, relao de pertinencialidade com o
objetivo imediatamente prtico buscado atravs da demanda proposta, ou seja, que o
pedido mediato esteja direta e inteiramente compreendido pelo raio de
alcance dos objetivos estatutrios anunciados pelo ato constitutivo da
Associao autora.
39- O elemento da pertinncia temtica, que se
aproxima, at certa medida, da adequacy of representation do sistema norte-
americano das class actions (rule 23, n4, da Federal Rules of Civil Procedure: the
representative parties Will fairly and adequately protect the interests of the class), encontra-
se logicamente implcito no texto da alnea b, do art. 5 da Lei
n7.347/85, e compe a frmula de aferio da legitimidade ativa dos
corpos sociais intermedirios, para propositura de ao civil pblica.
40- A legitimao extraordinria de uma associao civil no atributo que lhe decorre da mera personalidade jurdica (existncia legal), ou como se lhe fosse um predicado a priori e tematicamente universal, que resultasse de presuno legal absoluta (juris et de jure); ao contrrio disso, ela um conceito relacional e ad hoc (casustico), e por isso exigente de aferio sempre luz de parmetros concretos e objetivos da res in iudicium deducta.
41- O conceito relacional de legitimao categoricamente enfatizado pela processualstica atual, a exemplo desta doutrina de Fredie Didier e Hermes Zaneti:
Como se sabe, a legitimidade ad causam a capacidade de
conduzir um processo em que se discute determinada
situao jurdica substancial. A legitimidade uma
capacidade que se atribui a um sujeito de direito tendo em
vista a relao que ele mantm com o objeto litigioso do
processo (a situao jurdica afirmada na demanda).
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Para que se saiba se a parte legtima, preciso investigar o
objeto litigioso do processo, a situao concretamente
deduzida pela demanda. No se pode examinar a
legitimidade a priori, independentemente da situao
concreta que foi submetida ao Judicirio. No existe parte
em tese legtima; a parte s ou no legtima aps o
confronto com a situao concreta submetida ao Judicirio (in Curso de Direito Processual Civil, processo coletivo, Vol. 4, PODIVM, 5 edio, pg. 220, sem destaque).
42- Marcelo Abelha Rodrigues tambm expe de maneira clara a essncia relacional do conceito jurdico de legitimidade:
O sujeito processual s estar credenciado a atuar na
posio jurdica processual respectiva se possuir
legitimidade para tanto. Exatamente por isso a palavra
legitimidade exprime idia de transitividade, de carter
relacional, e s existe perante uma dada situao. Assim, s
se legtimo com relao a alguma coisa e/ou algum, no
sendo lcito pensar que a legitimidade seja sinnimo de
atributo de algum e que por isso mesmo exista de per si e
acompanhe a pessoa em qualquer situao (in Elementos de
Direito Processual Civil, vol. 1, RT, 2 ed., pgs. 187 e 188, sem
destaque).
43- Como a legitimao ativa extraordinria a regra no sistema processual coletivo, a pertinncia temtica seu elemento logicamente indissocivel, cuja funo , praticamente, a de validar critrio de aferio da legitimidade in concreto, cujo parmetro , como ressaltado, a res in
iudicium deducta, uma vez que Todos os critrios para a aferio da
representatividade adequada devem ser examinados a partir do contedo
da demanda coletiva (Fredie Didier e Hermes Zaneti, in ob. cit., pg. 211, sem destaque).
44- Essa aluso doutrinria a representatividade adequada, como sinnimo da expresso pertinncia temtica, precisa ser entendida e empregada, no Direito ptrio, segundo esta advertncia de Antnio Gidi:
Representante aqui deve ser considerado como sinnimo
de porta-voz: o autor da ao coletiva um porta-voz
dos interesses do grupo, sendo seu portador em juzo (cf.
A representao adequada nas aes coletivas brasileiras: uma proposta, in
Revista de Processo, RT, 2003, pg. 62).
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45- , pois, nesse sentido que se pode dizer que
(...) o art. 5 da LCP e o art. 82 do CDC j trazem a limitao do
aforamento de aes coletivas somente consentneas ao objeto
estatutrio quando ajuizadas por associao civil (Fredie Didier e Hermes Zaneti, in ob. Cit., pg. 210, sem destaque).
46- Enquanto que o pressuposto cronolgico da
pr-constituio associativa (art. 5, V, a) suscetvel de ser motivadamente relevado ope judicis (4 do art. 5), a exigncia da alnea b, do art. 5, da lei n7347/85, imprescindvel, inafastvel, absolutamente cogente e vinculante:
Art. 5. Tm legitimidade para propor a ao principal e a
ao cautelar:
(...);
V- a associao que, concomitantemente:
(...)
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteo ao
meio ambiente, ao consumidor, ordem econmica, livre
concorrncia ou ao patrimnio artstico, esttico, histrico,
turstico e paisagstico.
47- Pois bem; ex vi legis, qualquer
tratamento canino procedimento privativo da prtica de clnica mdico-veterinria.
48- O Decreto n23.133, de 09 de setembro de 1933, que foi a primeira fonte de sistematizao normativa da profisso veterinria no Brasil, j o estabelecia, nestes termos:
Art. 11. So funes privativas dos mdicos veterinrios:
a) exame, diagnstico e aplicao de teraputica mdica e
cirrgica veterinria (destacou-se).
49- Em captulo com a rubrica Do exerccio Profissional, a vigente Lei n5.517, de 23 de outubro de 1968, regulando inteiramente a matria profissional, manteve essa titularidade privativa:
Art. 5. da competncia privativa do mdico veterinrio o
exerccio das seguintes atividades (...):
a) a prtica da clnica em todas as suas modalidades;
(...)
c) a assistncia tcnica e sanitria aos animais sob qualquer
forma; (...) (destacou-se).
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50- Ora, se o pedido de tutela jurisdicional compreende, em seu alcance mediato, a assegurao da prtica de conduta privativa da profisso mdico-veterinria, estaria isso includo nas finalidades institucionais da associao autora?
51- A resposta documental e, portanto, materialmente objetiva, encontrando-se peremptoriamente negativa pela anlise dos nove incisos do artigo 2 do estatuto social da associao (in fl. 23 dos autos principais); dizer: a associao autora no detm a representao adequada da classe mdico-veterinria, no tendo, institucionalmente, relao de pertinncia temtica com a defesa da tese mdico-veterinria do tratamento canino da LV.
52- bvio que para burlar a exigncia legal (art. 5, V, b) a associao ilegtima tergiversou at onde lhe foi possvel, mas, ainda assim, sua tese nuclear de causae petendi, ou seja, o argumento de ilegalidade da Portaria federal n1426/2008, o macro e veemente indcio de desvio de finalidade institucional.
53- ainda mais acentuada essa incompatibilidade, em se considerando os textos dos art. 3 e 4 da Portaria impugnada:
Art.3 Para a obteno do registro, no MAPA, de produto de uso veterinrio para tratamento de leishmaniose
visceral canina o interessado dever observar, alm dos
previstos na legislao vigente, os seguintes requisitos:
I- realizao de ensaios controlados, aps a autorizao do
MAPA; e
II- aprovao do relatrio de concluso dos ensaios clnicos
mediante nota tcnica conjunta elaborada pelo MAPA e o
Ministrio da Sade (MS).
1 O pedido de autorizao para realizao de ensaios
clnicos controlados deve estar acompanhado do seu
Protocolo.
2 Os ensaios clnicos controlados devem utilizar,
preferencialmente, drogas no destinadas ao tratamento de
seres humanos.
3 A autorizao do MAPA vincula-se nota tcnica
conjunta elaborada pelo MAPA e o MS.
Art. 4 A importao de matrias-primas para pesquisa,
desenvolvimento ou fabricao de medicamentos para
tratamento de leishmaniose visceral canina dever ser
solicitada previamente ao Ministrio da Agricultura,
Pecuria e Abastecimento, devendo a mesma estar
acompanhada do protocolo de estudo e respectivas notas
do artigo anterior.
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54- O texto do art. 3 refere-se a interesse jurdico pela obteno de registro, no MAPA, de produto para tratamento da LVC, ou seja, alude a interesse material manifestvel por Instituies de pesquisa ou por empresas que queiram fabric-lo ou comercializ-lo.
55- Considerando-se, comparativamente, tais potenciais interessados no registro e os desgnios institucionais da associao autora, discriminados nos nove incisos do art. 2 de seu estatuto (fl. 59), veemente a constatao de que a associao no tem nenhuma vocao para pesquisa cientfica e, tampouco, para as atividades empresariais de fabricao e de comercializao de produtos de uso veterinrio, cujas finalidades lucrativas so, alis, incompossveis com a clusula estatutria sem fins lucrativos (cf. art. 1 do estatuto, in fl. 59).
56- No tocante ao texto do art. 4 (cf. supra) da Portaria impugnada, concernente ao interesse jurdico pela importao de matria-prima para pesquisa, desenvolvimento e fabricao de medicamentos, a mesma ratio essendi do item anterior encontra-se presente.
57- V-se que tanto o pedido impugnatrio da Portaria federal, quanto o pedido impugnativo das Resolues dos Conselhos de Medicina Veterinria objetivam situaes de vantagem ou para grupo de veterinrios adeptos da corrente ideolgica do tratamento da LVC, ou para empresas com fins lucrativos, que fabriquem ou comerciem produtos de uso veterinrio.
58- importante que se perceba que essa real inteno, alheia aos escopos estatutrios associao, vem habilmente ocultada pelo pretexto de luta contra a eutansia canina, cuja argumentao discursiva procura incutir a construo artificiosa de que o ato da Portaria impugnada estaria a determinar, pelo art. 1, a eutansia canina; sem embargo do sentido e alcance muito claros da sua norma tcnica proibitiva, foroso convir que, at o presente momento, o sofisma tem ludibriado eficazmente o Poder Judicirio.
59- Por conta disso, primordial desconstruir, logicamente, a capciosidade de que o art. 1 da Portaria n1426/2008 estaria a impor a eutansia do co com LV, retificao que tanto afastar o pretexto ambiental do discurso postulatrio, como tambm iluminar os reais interesses extra-estatutrios a que, veladamente, se pretende beneficiar.
60- Assim, do enunciado do art. 1 da Portaria impugnada no se extrai, luz de uma correta interpretao, nenhum mandamento para a prtica de eutansia canina, in verbis:
Art.1 Proibir, em todo o territrio nacional, o tratamento
da leishmaniose visceral em ces infectados ou doentes com
produtos de uso humano ou produtos no registrados no
Ministrio da Agricultura, Pecuria e Abastecimento
(MAPA).
14
61- Ao contrrio do que procura seduzir o
discurso ambiental da autora, o sentido unvoco que logicamente se extrai
desse texto o de mandamento proibitivo de o mdico veterinrio tratar da
leishmaniose visceral canina com produto no registro no MAPA, ou que seja
de uso da medicina humana.
62- Com efeito, o sentido de norma cujo
elemento dentico primrio (mandamento) caracteriza-se por um dever
de non facere (no tratar da LVC com medicamento sem registro), ou seja, de
dever jurdico de prestao negativa (observar conduta omissiva), de modo
que, se o proprietrio do co com LV simplesmente ouvir do mdico
veterinrio a recusa do tratamento, inegvel que o profissional ter
cumprido seu dever jurdico, ainda que no tenha procedido eutansia
do co.
63- Diversamente da conduta omissiva de no
tratar da LVC, , fenomenicamente, a conduta comissiva de praticar a eutansia
canina, que prestao de facere, cujo mandamento normativo encontra-se fora
do contedo da Portaria n 1.412/2008.
64- Mister compreender que o fim social
precpuo almejado pela norma proibitiva do art. 1 da Portaria federal o de
proteger, da resistncia parasitria (da leishmania chagasi), a eficcia
teraputica dos poucos medicamentos disponveis para o tratamento da
leishmaniose visceral humana (LVH), uma vez que o desvio para
tratamento canino, cuja dosagem dez vezes maior que a ministrada a
humanos e por perodo mais longo (id. est., o tratamento da LVC vitalcio),
implicar, irreversivelmente, o dano social ( sade pblica) do surgimento de
cepas parasitrias progressivamente resistentes.
65- Acima das normas legais, s quais confere
detalhamento material, a norma proibitiva do art. 1 encontra fundamento de
validez constitucional no art. 200, I:
Art. 200. Ao sistema nico de sade compete, alm de
outras atribuies, nos termos da lei:
I- controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e
substncias de interesse para a sade e participar da
produo de medicamentos, equipamentos, imunobiolgicos,
hemoderivados e outros insumos; (...) (destacou-se).
15
66- Ademais, Proibir, em todo o territrio
nacional, o tratamento da leishmaniose visceral em ces infectados ou
doentes linguagem de norma proibitiva, cujo modal dentico preordena-se a um comportamento social omissivo; ao invs de non facere, uma determinao normativa de eutansia canina prpria de mandamento de norma preceptiva:
As normas jurdicas contm mandamentos de naturezas diversas, tendo em conta o efeito jurdico que desejam
produzir na realidade. As normas preceptivas contm
comandos prescrevendo determinada ao positiva, um ato
comissivo, um fazer. (...) As normas proibitivas so as que
vedam determinada ao, interditam a conduta nela
prevista, impondo um dever de absteno, de no fazer
alguma coisa (cf. Lus Roberto Barroso, in Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 4 edio, pg. 215).
67- Ora, in abstracto, o nico profissional, a
quem a lei defere, privativamente, a atividade econmico-liberal de ministrar
teraputica a co, o mdico veterinrio:
Art. 5. da competncia privativa do mdico veterinrio o
exerccio das seguintes atividades (...):
a) a prtica da clnica em todas as suas modalidades;
(...)
c) a assistncia tcnica e sanitria aos animais sob qualquer
forma; (...) (Lei n5.517/1968, sem destaque).
68- Logo, se h algum potencialmente interessado, mormente pela alta rentabilidade econmica, na pretendida atividade de tratamento da LVC, e, portanto, no afastamento da proibio da norma tcnica do art. 1 da Portaria, esse algum o mdico veterinrio praticante da clnica de pequenos animais.
69- Ratificam-no, alis, vrios documentos nos autos, os quais, confrontados reciprocamente, geram indcio veemente de que a Associao autora esteja sendo utilizada para buscar, dissimuladamente, tutela jurisdicional ao interesse comum de alguns desses profissionais a ela vinculados direta ou indiretamente.
70- Confrontem-se, por exemplo, os documentos em fls. 52, 54, 55, 94, nos quais aparece o nome de Mara Kaviski Peixoto, mdica veterinria (CRMV/MS n2311) e atual presidenta da Associao autora, relatando-se, em fl. 55, sua atuao clnica como mdica veterinria.
16
71- Nesse mesmo documento de fl. 55, faz-se
meno a Soares da Fonseca, ou seja, ao mdico veterinrio Andr Lus
Soares da Fonseca (CRMV/MS n1404), que, como advogado da Associao,
patrocinou-lhe a demanda conexa (na 1 vara federal - cf. anexo 29) e que, no
documento em fl. 76, tambm se junta a outros mdicos veterinrios
interessados no tratamento da LVC.
72- Seu interesse fica sobremaneira evidente,
cotejando-se os documentos novos, compilados nos anexos 25 e 31 desta pea
de defesa.
73- Em fl. 53 dos autos, assim como no anexo
31 desta defesa, surge o nome de Maria Lcia Metello, mdica veterinria e
ex-presidenta da Associao autora; j em fls. 85, 93, 95, 96, 97, 99, 100 a 109
dos autos, depara-se com o nome de Janecler Oliveira, mdica veterinria
(CRMV/MS n3364) tambm vinculada, economicamente, empresa
Pronto Dog, empresa essa que, consoante fl. 97, emitiu laudo de exame
citopatolgico sobre o co scooby, e, nos documentos em fls. 99 a 103, consta,
em laudos de exames laboratoriais, como empresa cliente proprietria
do mesmo animal.
74- Sobre serem questionveis vrios aspectos
de eticidade em meio a essa miscelnea de interesses econmico-
profissionais com interesses puros da Associao, esse descortinamento da
constrangedora promiscuidade expe luz quem sero os verdadeiros
beneficirios imediatos da eventual tutela de procedncia.
75- Por conseguinte, se as pretendidas situaes
materiais de vantagem, a que visam os pedidos formulados pela associao,
satisfaro, em verdade, a interesses profissionais comuns de grupo
mdico-veterinrio, cujos partidrios tm interesse de lucrar com
tratamento da LVC, resulta evidenciada a impertinncia temtica entre os
atos jurdicos impugnados nos pedidos e o programa teleolgico
compromissado no estatuto social da autora.
76- Com razo estava Kazuo Watanabe, ao
alertar que, assim como a class action norte-americana sofreu deturpaes em seu
uso, as aes coletivas, no Brasil, esto mais suscetveis a freqentemente sofr-
la, tanto por individualismos dissimulados, quanto pela incipincia judiciria
no exerccio da admissibilidade de jurisdio coletiva:
17
Nos Estados Unidos, onde a class action tem longa tradio,
h opinies favorveis (...) e tambm negativas (...), e no
so poucos os que manifestam a preocupao a respeito de
sua correta utilizao de modo a no transform-las em
instrumento de proveito egostico de quem as prope, em
vez de faz-las cumprir objetivos sociais a que se
vocacionam. Com maior razo, preocupao redobrada
devemos ter no Brasil, onde o individualismo mais
acentuado e no temos ainda a tradio no trato com as
demandas coletivas (in As garantias do cidado na justia, Saraiva, 1993, pg. 186, sem destaque).
- A CONTROVRSIA POR UMA VISO DE SADE PBLICA E DE
MEIO AMBIENTE
77- Como j foi advertida, a associao autora faz proposital confuso entre a determinao normativa para a Administrao Pblica proceder eutansia canina por LV e a proibio, aos mdicos veterinrios, de tratar da LVC com medicamentos no registrados no MAPA.
78- Alm da confuso, seu discurso postulatrio, abundante em informaes cientificamente inverdicas, imprime estreitssimo ngulo de viso complexa problemtica, tratando-a nos limites da relao econmica entre cliente (proprietrio), paciente (co) e mdico veterinrio.
79- Ocorre que, ao contrrio do que se passa na Europa continental, por exemplo, onde os fatores naturais e culturais implicados so essencialmente diversos e incomparveis com os daqui e por isso, l, a zoonose ainda no tem importncia social como questo de endemia, a leishmaniose visceral, em nosso pas, um alarmante problema de sade pblica, mais do que uma simples questo do reduto mdico-veterinrio:
No Brasil, a LV inicialmente tinha um carter eminentemente rural e, mais recentemente, vem se
expandindo para as reas urbanas de mdio e grande porte
(...). A doena mais freqente em crianas menores de 10
anos (54,4%), sendo 41% dos casos registrados em
menores de 5 anos. (cf. in anexo 1).
80- Malgrado a incomparabilidade de cenrios, um dos maiores equvocos metodolgicos, a que so induzidas as decises judiciais, o de reduzir a complexa matria estreiteza dos interesses da prtica diria da clnica veterinria, isolando-a de sua irredutvel dimenso social, subtraindo-a de uma viso de sade pblica, da qual est intrinsecamente indissocivel.
18
81- Mesmo quando o assunto [muito mal]
versado luz da legislao ambiental, as argumentaes da autora so
tendenciosamente reducionistas e deturpadoras do razovel sentido das normas
e valores constitucionais e legais sobre meio ambiente, isolando-os da
objetividade jurdica de sadia qualidade de vida humana.
82- No obstante, em se cuidando de uma
doena parasitariamente incurvel (leishmaniose visceral), em cujo ciclo de
transmisso do protozorio (leishmania chagasi) o ser humano tem o papel
exclusivamente de hospedeiro, mesmo impensvel, luz da boa razo,
que a matria possa ser discutida e apreciada fora do campo de interseco
entre sade pblica e meio ambiente.
83- No centro desse espao comum de interface encontra-se o valor supremo da dignidade da pessoa humana, razo finalstica do ordenamento jurdico e, consequentemente, parmetro dotado de ubiqidade para a interpretao normativa.
84- Celso Antnio Pacheco Fiorillo e Marcelo
Abelha Rodrigues enfatizam muito bem essa premissa fundamental:
(...), o que no pode ser olvidado a dignidade humana, princpio fundamental da repblica, um dos valores
cardeais de vida do meio ambiente ecologicamente
equilibrado. Trata-se, pois, de um piso mnimo exigido do
Poder Pblico e Coletividade, na busca do efetivo exerccio
dos demais direitos humanos, j que tutelar o meio
ambiente de certa forma garantir os soportes y fatores esenciales para la existencia del hombre sobre la tierra. (in Manual de Direito Ambiental e Legislao Aplicvel, So Paulo, Editora Max Limonad, 1997, p. 35/36, com citao, in fine, de Ramn Martin Mateo).
85- Tambm Gomes Canotilho e Vital Moreira, ao comentarem o tratamento ambiental na Constituio Portuguesa, uma das fontes de inspirao do Constituinte brasileiro, exaltam a proeminncia do valor humano no contexto ambiental:
A compreenso antropocntrica de meio ambiente justifica a consagrao do direito ao ambiente como um
direito constitucional fundamental, o que constitui uma
relativa originalidade em direito constitucional
comparado (in Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1985, p. 348).
19
86- Alis, vale ainda lembrar, como informe til de interpretao histrica e que vem reforar a posio de centralidade humana em matria ambiental, que a Constituio de 1988 inspirou-se tambm no art. 45-1 da Constituio espanhola de 1978, cujo texto correlaciona o equilbrio ambiental como meio para o fim de desenvolvimento da pessoa humana:
Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente
adecuado para el desarrollo de la persona, as como el
deber de conservarlo (destacou-se).
87- Consoante nossa Constituio de 1988, o
direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (caput do art. 225 da CF) direito humano de terceira dimenso (sic in STF: MS n 22.164-0 SP) e tem por objeto a sadia qualidade da vida humana, tanto das presentes quanto das futuras geraes, estabelecendo-se entre elas, luz de uma leitura moral do texto constitucional (do caput do art. 225), uma tica de solidariedade entre geraes:
Art. 225. Todos tm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder
pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo
para as presentes e futuras geraes (destacou-se).
88- vista disso, o fato social da
predominncia de morbimortalidade em crianas acometidas por LV
uma importante evidncia de que a eutansia de ces infectados e a proibio de
desvio de medicamentos de uso humano para tratamento da LVC so medidas
estratgicas, integradas sistematicamente a outras, para assegurar, no s a
vida, mas, sobretudo, a sadia qualidade devida a essa gerao futura, na
medida em que tais providncias constituem, respectivamente, instrumento de
manejo ambiental (v.g., eutansia do co infectado art. 225, 1, I, da CF) e
de proteo da longevidade de eficcia teraputica dos medicamentos de
uso humano (art. 200, I, e art. 225, V, da CF).
89- fundamental compreender que o
ambiente urbano (do latim urbs, urbis: cidade), em razo das funes sociais da
cidade (art. 2 da Lei n 10.257/2001), est a exigir uma concepo de padro
de meio ambiente ecologicamente equilibrado um tanto diversa da que
apropriada para o ambiente natural ou silvestre; isso, evidentemente, sem
prejuzo da necessria noo de interao e interdependncia recprocas
entre esses dois aspectos do todo ambiental.
20
90- A disseminao urbana de ces infectados
por leishmania chagasi um fato natural que desequilibra o meio ambiente da
cidade, pondo em perigo, coletivamente, a sadia qualidade de vida
humana.
91- A disseminao urbana de fmeas de
lutzomyia longipalpis, ou de lutzomyia cruzi, infectadas por leishmania chagasi,
tambm fato natural que desequilibra o meio ambiente da cidade e pe
em perigo a sadia qualidade de vida humana, coletivamente.
92- empreendimento humano invivel, e at
constitucionalmente questionvel (art. 225, 1, VI), envidarem-se esforos
para extinguir as duas espcies vetoras (lutzomyia longipalpis e lutzomyia cruzi), cujo
ciclo biolgico ocorre, inicialmente, em superfcie terrestre (ovo, larva e
pupa), e, depois, quando inseto adulto, em construes de peri e
intradomiclio.
93- Tais caractersticas entomolgicas, por si
ss, j indicam que o combate a essas espcies vetoras exige metodologia
diversa da empregada para o combate ao vetor da dengue, at porque nem
todos os habitantes da cidade esto dispostos a permitir que os agentes
de controle de endemia da LV entrem em suas moradias, ou
estabelecimentos, afastem mveis e borrifem, nas paredes e tetos, o
inseticida de efeito residual (imaginem-se as recusas, as portas fechadas e o
tempo consumido pela medida de controle qumico em apenas um edifcio de
apartamentos!).
94- Outro detalhe peculiar e importantssimo:
essa borrifao qumica s funcional para o inseto adulto, cuja mortalidade
somente ocorrer pelo contato com as superfcies tratadas. No Brasil, um
dos sofismas de que se utilizam os pregadores do tratamento canino da LV o
discurso da isonomia de mtodos e condies entre o combate ao vetor
da dengue e o combate ao vetor da leishmaniose visceral.
95- Ora, se, no ambiente urbano,
ineliminvel o risco do inseto adulto (a fmea de lutzomyia longipalpis ou de
lutzomyia cruzi) infectar-se com o protozorio (leishmania chagasi) e de transmiti-lo
ao homem pelo repasto sanguneo, racional, ento, que se adotem medidas
de mitigao desse risco ambiental, proibindo-se prticas humanas
perigosas, como a de manter o co infectado (reservatrio vitalcio do
protozorio) em cidade onde investigaes entomolgicas comprovem a
existncia de quaisquer das espcies vetoras e a vigilncia
epidemiolgica confirme a ocorrncia de infeco humana autctone.
21
96- Alis, segundo critrios objetivos de
estratificao e informes levantados por vigilncia epidemiolgica, a cidade de
Campo Grande classifica-se como rea de transmisso intensa de LV, onde
existem centenas de ces infectados e as duas espcies vetoras (lutzomyia
longipalpis e lutzomyia cruzi).
97- O programa nacional de vigilncia e
controle da LV, cujas normas tcnicas encontram-se dispostas em linguagem
pedaggica no instrumento denominado Manual de Vigilncia de Controle da
Leishmaniose Visceral (in anexo 1), uma das mais importantes polticas
sociais do SUS e que visa reduo do risco da leishmaniose visceral
humana, legitimando-se, constitucionalmente, como adimplemento normativo
do dever estatal imposto pela norma constitucional do art. 196:
A sade direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante polticas sociais e econmicas que visem
reduo do risco de doenas e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitrio s aes e servios para sua
promoo, proteo e recuperao
98- O programa (o PCVLV) tem como eixo
metodolgico a estratificao das reas e regies brasileiras em trs categorias e
classificadas segundo o critrio da mdia de casos humanos autctones de
LV: reas de transmisso espordica, reas de transmisso moderada e reas
de transmisso intensa.
99- Vale ressaltar que a sistemtica tcnica da
metodologia programtica dessa poltica social de sade pblica, alm de mpar,
a melhor no mundo inteiro, exatamente porque considera a peculiar
situao epidemiolgica brasileira, recusando-se a mimetismo europeu.
100- Fundamentalmente, contemplam-se no
PCVLV a ao de eutansia do co infectado, principal reservatrio urbano e
domiciliar do parasito, a ao de controle qumico do vetor adulto, a ao de
saneamento ambiental direcionada ao ovo, larva e pupa do vetor, e os servios
de diagnstico e tratamento dos casos humanos de LV.
101- J se faz ver, portanto, que a regra tcnica
de eutansia de co infectado decorre, imediatamente, do programa nacional de
controle e vigilncia da LV, e no do art. 1 da Portaria n 1426/2008, cujo
ato normativo o nico ato administrativo impugnado pelo pedido formulado
em face da Unio.
22
102- A principal ratio essendi da proibio do
tratamento canino com medicamentos de uso humano ou no registrados
no MAPA, como mandamento da norma tcnica do art. 1 da Portaria
federal, est relacionada com a eficcia do tratamento de recuperao da
sade humana, aspecto proeminente do SUS, porque mandamento
proibitivo com o fim social de evitar o surgimento de resistncia
parasitria aos poucos medicamentos disponveis para uso na medicina
humana contra a LV.
103- De uma perspectiva ambiental, a medida
estatal de eutansia do co infectado ao administrativa que se
compreende no conceito lato de manejo ambiental, o qual instrumento tambm
indispensvel manuteno do equilbrio ecolgico no ambiente urbano e
assegurado ao Poder Pblico pela regra constitucional do inciso I, do 1 do art.
225:
1 Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe
ao Poder Pblico:
I (...) e prover ao manejo ecolgico das espcies (...)
(destacou-se).
104- Etimologicamente (cf. Antnio Geraldo da
Cunha, in dicionrio etimolgico da lngua portuguesa, Lexikon, 4 edio, pg.
408), o vocbulo manejo vem do italiano manggio e manejar vem do italiano
maneggiare, derivado do latim medievo manizzare, e este remontando ao latim
manus, cuja semntica compreende poder, domnio, influncia.
105- Tcnica e rigorosamente analisada, a
conduta individual de manter a criao de co infectado em rea endmica de
LV conduta de degradao do ambiente urbano (art. 3, II, Lei n
6.938/81), na medida em que expe a perigo concreto de leso coletiva a
sade da espcie humana e dos demais animais no infectados, concorrendo
para o efeito de propagao parasitria (do agente etiolgico), que evento de
desequilbrio ecolgico na cidade.
106- Com efeito, ilcito ambiental porque enquadrvel, conceitualmente, nos enunciados categricos dos incisos II e III, do art. 3 da Lei n 6.938/81:
23
Art. 3. Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
(...)
II degradao da qualidade ambiental: a alterao
adversa das caractersticas do meio ambiente;
III- poluio: a degradao da qualidade ambiental
resultante de atividades que direta ou indireta:
a) Prejudiquem a sade, a segurana e o bem estar da
populao;
b) Criem condies adversas s atividades sociais e
econmicas;
c) Afetem desfavoravelmente a biota;
d) Afetem as condies estticas ou sanitrias do meio
ambiente; (...).
107- Mutatis mutandis, equipara-se,
exemplificativamente, conduta de criador de bovino, ou de suno, cujos
animais estivessem infectados pelo vrus aphtae epizooticae, o vrus causador da
febre aftosa, recusando-se, a pretexto de crueldade contra a vida animal, a
permitir a eutansia dos animais hospedeiros, fontes de disseminao de novos
vrus no meio ambiente.
108- Outra eloqente imagem comparativa a de
uma Associao de proteo a bovinos que pretendesse impedir a eutansia
de animais acometidos pela doena neurolgica encefalopatia espongiforme
transmissvel (BSE), ou seja, pelo mal da vaca louca, cuja epidemia, no
ano de 1990, gerou, em humanos, a doena denominada Creutzfeldt-Jacob
(CDJ) e caracterizada por infeco generalizada do crebro e invariavelmente
letal.
109- A fora das comparaes leva a uma
indagao legitimamente constrangedora, mas que bem expe um dos
paradoxos em que se enfiou a Associao autora: por que nunca lhe foi
preocupante a eutansia de bovinos acometidos por febre aftosa ou pelo mal da
vaca louca?
110- No captulo constitucional do meio
ambiente, o Poder Constituinte incumbiu o Ente Pblico de controlar a
produo, a comercializao e o emprego de tcnicas, mtodos e
substncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o
meio ambiente (cf., sem destaque, no inciso V, 1 do art. 225).
24
111- Esse texto harmoniza-se, finalisticamente, com os textos constitucionais dos incisos I e VIII do art. 200:
Art. 200. Ao sistema nico de sade compete, alm de outras atribuies, nos termos da lei:
I- controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e
substncias de interesse para a sade e participar da
produo de medicamentos, equipamentos, imunobiolgicos,
hemoderivados e outros insumos;
(...)
VIII colaborar na proteo do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho (destacou-se).
112- A norma tcnica de proibio do tratamento da leishmaniose visceral canina (art. 1 da Portaria n1426/2008) com produtos de uso na medicina humana, ou que no sejam registrados no MAPA, corresponde, verticalmente, ao ltimo nvel de densidade normativa que detalha a norma constitucional impositiva do dever estatal de controlar (...)
emprego de tcnicas, mtodos e substncias que comportem risco para a
vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (cf., sem destaque, no inciso V, 1 do art. 225).
113- Comentando essa ascendncia constitucional, prelecionou Paulo Affonso Leme Machado, com muita proficincia:
Constituio Federal manda que o Poder Pblico no se omita no exame das tcnicas e mtodos utilizados nas
atividades humanas que ensejem risco para a sade
humana e o meio ambiente. O inciso V do 1 necessita ser
levado em conta, juntamente com o prprio enunciado do
art. 225 CF, onde o meio ambiente considerado essencial sadia qualidade de vida. Controlar o risco no aceitar qualquer risco. H riscos inaceitveis, como aquele que
coloca em perigo os valores constitucionais protegidos,
como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, (...) (in Direito Ambiental Brasileiro, 13 ed., Malheiros Editores, So Paulo, 2005, pg. 73, sem destaque).
114- No Brasil, a conduta de fazer o
tratamento da LV canina gera, no estgio atual da Cincia e da arte clnica,
dois perigos concretos, ao meio ambiente urbano e sade pblica
concomitantemente: a disseminao parasitria (degradao do equilbrio
ecolgico urbano) e a resistncia patognica (progressiva ineficincia
medicamentosa do tratamento humano da LV).
25
115- comum ouvir-se dos partidrios do
tratamento canino, na maioria, clnicos veterinrios de pequenos animais, que o
Poder de Polcia que se lhes contrape inconstitucional, porque feriria o
princpio constitucional da livre iniciativa (art. 170).
116- Ocorre que nessa tenso axiolgica entre livre
iniciativa e meio ambiente, o prprio Constituinte condicionou, no mesmo
art. 170 (inciso VI), todas as atividades humanas da Ordem Econmica
proteo do meio ambiente (natural, cultural, urbano e do trabalho).
117- Prudente e racional que, enquanto o campo
da Cincia no avalizar um seguro e eficaz protocolo teraputico para a LVC,
capaz de afastar ambos aqueles perigos concretos, o princpio da precauo,
do qual corolrio a norma constitucional do inciso V, 1 do art. 225, tem
fora normativa de non facere:
O princpio da precauo entra no domnio do direito
pblico que se chama poder de polcia da administrao.
O Estado, que, tradicionalmente, se encarrega da
salubridade, da tranqilidade, da segurana, pode e deve
para este fim tomar medidas que contradigam, reduzam,
limitem, suspendam algumas das grandes liberdades do
homem e do cidado: expresso, manifestao, comrcio,
empresas. O princpio da precauo estende este poder de
polcia. Em nome desse princpio, o Estado pode suspender
uma grande liberdade, ainda mesmo que ele no possa
apoiar sua deciso em uma certeza cientfica (excerto de
Franois Ewald e Kessler, in Les noces Du risque et de La politique,
Le Dbat, Gallimard, mars/abril 2000, n. 109, citado por Paulo
Affonso Leme Machado, em Direito Ambiental Brasileiro, 13 ed.,
Malheiros Editores, So Paulo, 2005, pg. 76, sem destaque).
118- imprescindvel enfatizar, a bem da
verdade cientfica, que nem a Associao autora, qual estranha a
vocao para pesquisa cientfica, nem quaisquer dos partidrios da
ideologia do tratamento da LVC no Brasil, conseguiram demonstrar, com
aclamao e reverncia do seleto mundo cientfico, qualquer constatao, por
pesquisa metodologicamente confivel, de cura parasitolgica e de
eliminao da capacidade de infectividade do vetor pelo co tratado.
26
119- Tanto assim que nenhum dos
documentos, entranhados em fls. 70 a 123,pode reivindicar o status superior de
documento cientfico puro, assim considerado, no campo das Cincias
aplicadas e naturais, aquele que objetivamente revela um juzo categrico de constatao,
um enunciado descritivo-cientfico, como resultado de investigao por mtodo
indutivo-experimental, cujo pressuposto de aceitabilidade pela seleta
comunidade cientfica a observncia de compromisso gnosiolgico com a
rigorosa observao do objeto de cognio, formulao de hipteses e a
experimentao controlada.
120- Com efeito, o artigo, em fls. 70 a 73, de
autoria de Carlos Henrique Nery Costa e de Joo Batista Furtado Vieira,
quase todo ele de cunho crtico-sociolgico, cujas proposies
predominantemente subjetivas decorrem de esforos dos autores no exerccio de
juzos de valorao funcional (sobre o til ou intil) e de juzos de preferncia (sobre
escolha oportuna), e, por conseguinte, tal artigo no corresponde,
verdadeiramente, a um documento de revelao cientfico-experimental,
logo, nada aportando de comprovao de veracidade sobre a eficcia do
tratamento da LCV relativamente aos dois problemas mais cruciais no assunto:
cura parasitolgica e eliminao da capacidade de infectividade do vetor
pelo co tratado.
121- O documento, em fls. 76 a 77, intitulado
Controle da Leishmaniose visceral no Brasil: recomendaes do
Brasileish, de autoria conjunta de especfico grupo de resistncia do
tratamento da LVC no Brasil, cujas opinies, s quais auto-atribuem o status de
recomendao, nunca passaram pelo crivo de refutabilidade da seleta
comunidade cientfica.
122- O prprio vocbulo recomendaes j
o prenncio de que o documento no tem contedo de descritividade
cientfico-experimental, porque a funo da linguagem nele utilizada diretivo-
comportamental, ou seja, visa a mobilizar a vontade de outrem para um
determinado comportamento social; a funo da linguagem de revelao
investigatrio-cientfica bem outra: a de informar objetivamente, por isso
uma comunicao simplesmente descritiva.
123- Ocorre que o Brasileish, enquanto pessoa
jurdica de Direito Privado, no desfruta de autorizao legal para emitir
qualquer recomendao pblica que implique, intencionalmente, exortao
popular contra texto expresso de normas estatais.
27
124- Nem a Constituio nem a Lei reconhecem-
lhe vontade institucional para emitir, maneira e com foros de autoridade pblica,
recomendao de comportamento social populao. Com boa dose de
soberba, arroga-se poderes semelhantes ou maiores que os legalmente
delegados ao prprio Conselho Federal de Medicina Veterinria.
125- Inabilitada e ilegtima para tal, pois que sem
autoridade pblica (competncia) para faz-lo, essa carncia de especial
qualificao jurdica pe essa entidade privada em rota de coliso com a
Ordem Pblica, e, por esse motivo, na iminncia, assim como a Associao
autora, de ser assestada por medidas processuais para dissolv-las.
126- Com efeito, embora no se empreguem,
explicitamente, os termos norma, normao, recomendaes normativas
ou recomendaes obrigatrias, mas estando claro o propsito de
direcionamento de comportamento social pelo eufemismo recomendao,
o documento do Brasileish capaz de infundir publicamente um grave e
enorme malefcio social: o de fomentar a populao a opor resistncia
medida de sade pblica da eutansia do co infectado.
127- A funo da mensagem, constante do
documento recomendao do Brasileish, a de mobilizar (dirigir), em tom de
ordem, ou determinativo (deve ser), o comportamento social dos
proprietrios de ces infectados: Aos proprietrios de ces infectados deve
ser garantido o direito de escolha entre a eutansia ou o tratamento
responsvel do seu animal (cf. in fl. 77, sem destaque).
128- Para isso, a entidade privada ostenta-se, ou
exibe-se publicamente, pela escolha (intencional) de um comportamento
comunicacional de superioridade em relao aos destinatrios da mensagem
recomendada, bem maneira das prerrogativas de um paralelo Conselho
corporativo da profisso.
129- Sem embargo, um documento em que se
confessam seis verdades fundamentais sobre o tratamento da LVC:
1) se se fazem recomendaes especificamente para o controle da LV
no Brasil, porque a situao epidemiolgica do pas singular e
incomparvel com a de pases da Europa continental;
28
2) a ideologia neoliberal do tratamento canino da LV tem como pilar de
sustentao o decisionismo individualista: o proprietrio escolhe entre
trat-lo ou eutanasi-lo: Aos proprietrios de ces infectados deve
ser garantido o direito de escolha entre a eutansia ou o tratamento
responsvel do seu animal (cf. in fl. 77);
3) preconizao do tratamento, no h a especificao de um
rigoroso protocolo teraputico aclamado pela comunidade cientfica,
mas, sim, protocolos arbitrrios, experimentveis ao talante de cada
clnico veterinrio: Quando a opo for o tratamento, deve ser
realizado com protocolos que confiram melhora ou cura clnica do
animal e reduo da carga parasitria, as quais devem ser
avaliadas por meio de exames clnicos e laboratoriais (cf. in fl. 77,
sem destaque);
4) tais protocolos enigmticos visam, no mximo, a conferir boa
aparncia fsico-orgnica ao animal vitaliciamente infectado, o que
resultado paliativo a que se refere pela terminologia cura clnica;
5) o tratamento no elimina a carga parasitria, podendo apenas
diminu-la, logo, o co continua com capacidade para infectar o vetor:
Quando a opo for o tratamento, deve ser realizado com
protocolos que confiram melhora ou cura clnica do animal e
reduo da carga parasitria, as quais devem ser avaliadas por
meio de exames clnicos e laboratoriais (cf. in fl. 77, sem destaque);
6) e, por fim, os exames laboratoriais e clnicos somente se prestam para a
avaliao da denominada cura clnica, ou seja, da boa aparncia fsico-
orgnica, sem nenhum alcance para provar a ausncia de capacidade
canina de infectividade em relao ao vetor: Quando a opo for o
tratamento, deve ser realizado com protocolos que confiram
melhora ou cura clnica do animal e reduo da carga parasitria,
as quais devem ser avaliadas por meio de exames clnicos e
laboratoriais (cf. in fl. 77, sem destaque).
130- Um dos aspectos sem qualquer carter
cientfico e que denuncia bem a subjetividade das tais recomendaes,
propaladas pelo documento em fls. 76 a 77, a seguinte proposio jurdica:
Aos proprietrios de ces infectados deve ser garantido o direito de
escolha entre a eutansia ou o tratamento responsvel do seu animal
(cf. in fl. 77); dizer: um grupo de mdicos veterinrios arrogando-se a
supremacia de posio ex professo para recomendar populao brasileira seu
entendimento jurdico-normativa, e, o que pior e preocupante, fazendo-o
equivocadamente e induzindo o cidado a obstaculizar a auto-
executoriedade dos atos administrativos de Poder de polcia.
29
131- Fazem-no equivocadamente, porque partem da falsa premissa de tratar-se de relao jurdico-privada entre o proprietrio do co infectado e a Administrao Pblica, sob a qual o consenso, o acordo de vontades entre as partes (contrato), seria imprescindvel, haja vista a pressuposio de que tais partes estariam em nvel de paridade (igualdade jurdica); a tpica recomendao ideolgica do liberalismo clssico (do sculo XIX), do laissez faire, laissez passer.
132- Ocorre que, ao Estado brasileiro, que se
quer social e democrtico de Direito, a Constituio lhe impe, em matria de sade pblica e meio ambiente, incumbncias de prestao social positiva, proibindo-o de omitir-se diante da livre iniciativa privada e do interesse individual, principalmente quando as liberdades pblicas individuais deixam de normalmente s-lo e passam a impedir ou comprometer a tarefa estatal de realizao dos interesses pblicos primrios da sade humana e do ambiente.
133- A mensagem imperativa (normativa) da
Constituio, sobretudo a que vem pelos textos dos arts. 196, 200 (I e VII) e 225 (caput e incisos I, V e VI), ao tempo em que impe tarefas sociais ao Estado, instrumentaliza-o com o que se denomina potestade pblica (o puissance publique da doutrina francesa), um conjunto de prerrogativas para efetivar, socialmente, o interesse maior da sociedade.
134- Reorganizada a matria sobre essas
premissas corretas, o regime jurdico de Direito Pblico e a relao
intersubjetiva, entre o proprietrio do co infectado e a Administrao Pblica,
uma relao jurdico-administrativa decorrente do exerccio de Poder de
Polcia administrativa, logo, no h cogitar de liberdade particular de adeso
ao jus imperium, ou de se poder afast-lo pelo livre-arbtrio, porque a
submisso individual inerente ao prprio conceito de cidadania,
resultando do fato mesmo de se integrar uma sociedade politicamente
organizada, cuja vontade social, expressada na Constituio e nas Leis,
predetermina quais os valores concretizveis e quais os interesses que devem ser
assegurados e satisfeitos pelo governo.
135- vista disso, o conceito exatamente jurdico
da controvertida matria relacional intersubjetiva (proprietrio do co infectado Estado) no subsumvel ao de nenhuma categoria do Direito Privado, onde a autonomia da vontade particular e a relao de coordenao entre partes so categorias axiomticas; a matria relacional sub judice, enfatiza-se, prpria de Direito Pblico, cujo axioma a supremacia do interesse pblico primrio, assegurado por normas de ordem pblica, insuscetveis de derrogao pela vontade privada.
30
136- Ora, a relao jurdico-administrativa uma
relao de subordinao do privado ao pblico, de verticalidade ou
desnivelamento intersubjetivo, implicando que, para a efetivao do interesse
pblico primrio pelo Poder constitudo, nem a Constituio e nem a Lei o
subordinam aquiescncia do particular, ao prvio consenso:
A Administrao ficaria inerte, paralisada, se cada vez
que pretendesse movimentar-se, efetivando os atos
administrativos editados, precisasse consultar os
interesses privados atingidos. Por isso, o Estado dotou os
rgos administrativos de um poder ou potestade para
vencer a injustificada resistncia do particular
recalcitrante. As decises administrativas, tomadas com
vistas ao interesse pblico, impem-se sem prvia
consulta ao administrado e, muitas vezes, sem o ttulo
hbil expedido pelo Judicirio, como ocorre no mbito do
processo civil comum. Pode a Administrao, diante da
resistncia privada, fazer prevalecer, inclusive pelo
emprego da fora, sua deciso, recorrendo a meios
coativos e sufocando os esforos do particular,
impeditivos consecuo dos fins de interesse pblico.
Mediante atos unilaterais auto-executveis, sem o
correspondente ttulo judicirio, a Administrao
interfere no cenrio jurdico-administrativo, restringindo
a esfera de direitos e interesses do cidado, sempre que o
interesse coletivo esteja afetado (cf. Jos Cretella Jnior, Prerrogativas e Sujeies da Administrao Pblica, in RDA, n103, pg. 20, 1971).
137- Sobre, portanto, equivocada, assaz
preocupante aquela pssima recomendao do documento do Brasileish, na medida em que desinforma a populao brasileira sobre a necessidade scio-ambiental do manejo eutansico, o qual, reitere-se, um dos pontos fundamentais da paralela ao estatal de educao social prevista pelo Programa nacional de Controle e Vigilncia da LV.
138- Naquele documento, a inteno imediata
semear a discrdia popular, a contrariedade coletiva autoridade administrativa e fomentar a litigiosidade, e a inteno mediata lucrar com a vontade do cliente-proprietrio que quer e pode custear um enigmtico e caro tratamento canino, mas, paradoxalmente, ao proprietrio que no o quer, a recomendao uma s e coincidente com a do programa nacional: a eutansia do co infectado. Note-se, ento, como um simples raciocnio crtico-filosfico desmascara o mvel econmico e o interesse lucrativo.
31
139- Alm dessa verdade inconfessa, o documento habilmente insinua uma proposta de financiamento pblico de campanha de vacinao canina antileishmaniose (fls. 76 e 77); ocorre que nenhuma das duas vacinas comercializadas no Brasil (as marcas leishmune e leishtec) adimpliram, at o momento, todos os requisitos exigidos pela Instruo Normativa n31/2007:
O desenvolvimento de vacinas antileishmaniose visceral
canina deve contemplar a realizao de testes para
determinar a segurana, a eficcia, a inocuidade, a
proteo, a infeco e a imunogenicidade das vacinas,
conduzidas por meio de ensaios de Fase I, Fase II e Fase
III (art. 1 do anexo da IN n31/2007). 140- Ademais, ambas no curam a doena (a
leishmaniose visceral canina) e, tampouco, destinam-se a eliminar a carga parasitria do co infectado, tanto assim que somente podem ser ministradas em co concomitantemente no infectado e sadio; vejam-se estas observaes da bula da vacina leishmune:
Introduo:
(...) O co, como hospedeiro domstico, considerado o
principal reservatrio da infeco para o homem. Os ces
infectam-se atravs da picada de insetos flebotomneos,
conhecidos como mosquito-palha. (...) A vacinao de ces com leishmune auxilia na
preveno da doena, reduzindo a incidncia e,
consequentemente, a disseminao da Leishmaniose
Visceral Canina Leishmune indicada como auxiliar na
preveno da Leishmaniose Visceral Canina (Calazar
Canino), para a vacinao de ces a partir de 4 meses de
idade, saudveis e soronegativos para Leishmaniose
Visceral Canina.
(...)
Vacinao primria: iniciar a vacinao em ces
soronegativos para Leishmaniose Visceral Canina a partir
dos 4 meses de idade. O protocolo completo de vacinao
deve ser feito com 3 (trs) doses, respeitando um intervalo
de 21 dias entre as aplicaes.
(...) A vacina leishmune para uso exclusivo em ces. A
vacina dever ser usada somente em ces assintomticos
com resultados sorolgicos negativos para a leishmaniose
visceral. Por no terem sido conduzidos estudos da
aplicao da vacina em fmeas prenhes, no se recomenda
a vacinao desses animais.
32
A resposta adequada vacinao diretamente
relacionada competncia imunolgica de cada animal. A
vacinao dever ser precedida de um minucioso exame
clnico realizado por um Mdico Veterinrio. O uso
concomitante de antinflamatrios ou antibiticos, nos dias
que antecedem ou sucedem a vacinao, pode interferir
com o desenvolvimento e manuteno da resposta imune
aps a vacinao (cf. bula in anexo 32).
141- Assim, a prpria bula da vacina leishmune reconhece a inevitabilidade de janelas abertas transmisso parasitria entre co e vetor:
1) A vacinao de ces com leishmune auxilia na preveno da
doena, reduzindo a incidncia e, consequentemente, a disseminao
da Leishmaniose Visceral Canina: ela no absoluta na preveno,
mas apenas auxiliar, e s indicada para prevenir, no para curar,
desse modo predispe-se a reduzir, e no a erradicar a zoonose;
2) Leishmune indicada como auxiliar na preveno da
Leishmaniose Visceral Canina (Calazar Canino), para a vacinao de
ces a partir de 4 meses de idade, saudveis e soronegativos para
Leishmaniose Visceral Canina: em ces menores de 4 anos, em ces
maiores infectados por leishmania, em ces doentes por outras zoonoses
(no saudveis), a vacina ineficaz, havendo, portanto, enorme essa
poro da populao canina servindo de reservatrio para transmisso e
disseminao parasitrias;
3) Por no terem sido conduzidos estudos da aplicao da vacina em
fmeas prenhes, no se recomenda a vacinao desses animais:
assim, tambm as fmeas prenhes no se beneficiam da relativa eficcia
preventivo-vacinal e so, destarte, indivduos a descoberto da
preventividade e potenciais reservatrios de leishmania.
4) A resposta adequada vacinao diretamente relacionada
competncia imunolgica de cada animal: essa condicionante
individual (imunocompetncia de cada animal) outro aspecto ineliminvel
de relatividade da eficcia vacinal;
5) O uso concomitante de antinflamatrios ou antibiticos, nos dias
que antecedem ou sucedem a vacinao, pode interferir com o
desenvolvimento e manuteno da resposta imune aps a vacinao:
mais uma aspecto individual de relatividade da eficcia vacina e
extremamente provvel de ocorrer, implicando falha preventiva e
abertura infectividade canina e disseminao parasitria.
33
142- Se nesse mbito da tecnologia aplicada (da
inveno industrial) subsistem lacunas e imprecises, tal estado de coisas
reflexo da atual impotncia de o mundo cientfico apresentar-lhe um nvel de
probabilidade aceitvel de segurana na matria, ainda que, no dizer de
Bochnski, a Cincia nunca venha a oferecer verdades absolutamente
certas:
(...) as teorias cientficas nunca so verdades
absolutamente certas. Tudo o que a cincia pode alcanar
neste domnio a probabilidade (cf. Jsef Maria Bochnski,
in Diretrizes do Pensamento Filosfico, 4 ed., So Paulo, Editora
Herder, 1971, pg. 62).
143- A entusiasmada recomendao de
financiamento pblico da vacinao canina, sutilmente insinuada no documento
em fls. 76 e 77, oculta uma relao econmica questionvel eticamente: dois
dos membros do Brasileish, co-autores do aludido documento (fl. 76),
tiveram ou ainda tm, em alguma sorte de grau, vnculo de interesse
econmico com o laboratrio FORT DODGE, a empresa privada
proprietria da marca Leishmune.
144- Com efeito, Vitor Mrcio Ribeiro e
Ingred Menz, co-autores do documento de recomendao do Brasileish,
compuseram a equipe que desenvolveu a vacina Leishmune, o que se
comprova pelo anexo 33.
145- Nesse contexto, o princpio da precauo
tem um importante efeito probatrio no mbito do processo administrativo e
judicial: o interessado na tutela estatal da conduta social de risco ambiental tem
o nus de provar, peremptoriamente, a inocuidade ofensiva sadia
qualidade de vida humana.
146- Assim, no se fazendo convincentemente
comprovada a segurana scio-ambiental de uma substncia, mtodo ou
procedimento, foroso que o Poder Pblico imponha, por precauo, o
abster-se de agir.
147- O Decreto presidencial n 2.519/1998, ao
promulgar a Conveno sobre diversidade biolgica (RIO 92), incorporou ao
ordenamento jurdico a frmula textual do princpio 15 da Declarao do Rio
sobre meio ambiente e desenvolvimento:
34
Princpio 15: com a finalidade de proteger o meio
ambiente, os Estados devero aplicar amplamente o
critrio de precauo conforme suas capacidades. Quando
houver perigo de dano grave ou irreversvel, a falta de
certeza cientfica absoluta no dever ser utilizada para
que seja adiada adoo de medidas eficazes em funo dos
custos para impedir a degradao ambiental (destacou-se).
148- Ora, se o perigo de dano, suscitado pelo experimentalismo individual do tratamento canino da LV, tanto sade humana como sade de outras espcies do ecossistema urbano, o postulado da precauo est duplamente justificado, ao que vale ser acrescida esta sntese irretocvel de um dos mais expressivos jusfilsofos contemporneos:
O ltimo valor que emerge do processo histrico com a
fora de uma invariante o valor ecolgico, no se
devendo, porm, olvidar que se protege o meio ambiente
tanto pelo que a natureza de per si como pelo que ela
significa para o valor da vida humana (Miguel Reale, Introduo Filosofia, 4 ed., Editora Saraiva, 2002, pg. 182).
149- Com certa dose de audcia, pilhria e
muita inconseqncia, adeptos da seita do tratamento canino da LV se acostumaram a propalar que a infeco humana, por leishmania chagasi, , por si s, irrelevante, desde que a doena (leishmaniose visceral) no se manifeste; ou seja, como se todos pudessem manter-se indiferentes notcia da tragdia pessoal da infeco por leishmania, e reagissem a ela mais alegres ou contentes porque ainda somente esto infectados!
150- Certamente tambm nisso mal instrudos,
no se aperceberam de que a Constituio federal, no texto do art. 196, positiva uma mensagem compulsria para que o Poder Pblico formule poltica de sade pblica, no somente para evitar o risco de doena, mas tambm de quaisquer agravos integridade fsica e mental humana, e o processo infeccioso , para o sentido constitucional, um fato jurdico (stricto sensu) de agravo.
151- Conquanto o estado de infeco
humana no requeira, por si s, nenhuma teraputica, ele tem, sim, muita relevncia para a sade pblica, bastando lembrar que a supervenincia de uma causa de imunossupresso, ou ainda de imunodepresso (co-infeco HIV, v.g.), ser suficiente para a irrupo do quadro de sintomatologia patolgica da LV; um sucessivo agravo de co-infeco viral grave, por exemplo, o bastante:
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No existe diferena de susceptibilidade entre idade, sexo e raa. Entretanto, crianas e idosos so mais susceptveis.
Existe resposta humoral detectada atravs de anticorpos
circulantes, que parecem ter pouca importncia como
defesa. A Leishmania um parasito intracelular
obrigatrio de clulas do sistema fagocitrio mononuclear
e sua presena determina uma supresso reversvel e
especfica da imunidade mediada por clulas, o que
permite a disseminao e multiplicao incontrolada do
parasito. S uma pequena parcela de indivduos infectados
desenvolve sinais e sintomas da doena. Aps a infeco,
caso o indivduo no desenvolva a doena, observa-se que
os exames que pesquisam imunidade celular ou humoral
permanecem reativos por longo perodo; isso requer a
presena de antgenos, podendo-se concluir que a
Leishmania ou alguns de seus antgenos esto presentes no
organismo infectado durante longo tempo de sua vida,
depois da infeco inicial. Esta hiptese est apoiada no
fato de que indivduos que desenvolvem alguma
imunossupresso podem apresentar quadro de LV muito
alm do perodo habitual de incubao (cf. in anexo 1, sem destaque).
152- Ademais, a infeco humana por leishmania
chagasi inabilita o infectado a ser doador de sangue; imagine-se, ento, uma epidemia de LVH e seu impacto para os hemocentros!
153- Outro ponto extremamente relevante em
relao ao agravo da infeco humana por leishmania chagasi: em razo de estar inabilitado doao sangunea, estar tambm, por corolrio natural, inabilitado doao de rgos; assim, por exemplo, se a criana necessita urgentemente de transplante de rim e o pai o nico doador compatvel, mas infectado por leishmania chagasi, a salvao do filho no poder operar-se pela doao paterna.
154- Portanto, o estado de infeco humana
um fato jurdico de agravo sade, uma vez que, para a Constituio, A
sade dos seres humanos no existe somente numa contraposio a no
ter doenas diagnosticadas no presente. Leva-se em conta o estado dos
elementos da natureza guas, solo, ar, flora, fauna e paisagem para aquilatar se esses elementos esto em estado de sanidade e se de seu uso
advm sade de vida ou doenas e incmodos para os seres humanos (Paulo Affonso Leme Machado, in Direito Ambiental Brasileiro, 13 ed., Malheiros Editores, So Paulo, 2005, pg. 121, sem destaque).
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155- por isso que o Poder Pblico tambm
deve preocupar-se e ocupar-se com condutas sociais perigosas, tendentes a
suscitar graves atentados sadia qualidade de vida humana, e das quais podem
resultar, mais cedo ou mais tarde, no mnimo o transtorno de privar uma
pessoa do gozo de seu domiclio, de sua vida privada e familiar, para
submeter-se, no meio hospitalar, recuperao da sade.
156- Da tambm porque o caput do art. 225 da
CF no se contentar apenas com o direito vida humana no meio urbano,
mas, principalmente, como direito fundamental sadia qualidade de vida
humana na cidade:
Portanto, no podemos desvincular o meio ambiente artificial do conceito de direito sadia qualidade vida, bem
como aos valores da dignidade humana e da prpria vida,
conforme fizemos questo de explicitar. Todavia, podemos
dizer que o meio ambiente artificial est mediata e
imediatamente tutelado pela CF. Mediatamente, como
vimos, a sua tutela expressa-se na proteo geral do meio
ambiente, quando refere-se ao direito vida no art. 5
caput, quando especifica no art. 225 que no basta apenas o
direito de viver, mas tambm o direito de viver com
qualidade; no art. 1, quando diz respeito dignidade
humana como um dos fundamentos da Repblica; (...) (cf. Celso Antnio Pacheco Fiorillo & Marcelo Abelha Rodrigues, in Manual de Direito Ambiental e Legislao Aplicvel, So Paulo, Editora Max Limonad, 1997, p. 60).
157- Sopesados os perigos sociais e ambientais com prudncia e cientificidade, resta claro que se interpe um tremendo paradoxo insolvel entre o acolhimento associativo da ideologia do tratamento canino da LV e aquelas diretrizes de Bom senso, estabelecidas no art. 3, item II, do estatuto da Associao autora (cf. fl. 60):
II- Bom Senso: o princpio que traa nossos limites sem esquecer nossa meta.
(...)
o que nos avisa do perigo das doenas infecto-contagiosas que podero vitimar a ns ou aos
animais que temos sadios em casa ou nos abrigos.
- o que preserva nossa integridade
fsica e a de nossos animais quando vamos prestar o
socorro ou adotar. (...).
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158- Ora, quando a Constituio Federal
assegura a liberdade de associao (art. 5, XVII), est implcita a tutela jurdica
da confiana nos limites consentneos com as diretrizes e objetivos lcitos
formalmente compromissados em estatuto, do que lgica ilao que essas
expectativas estatutrias, compromissadas pelo ente social, no devem ser
quebradas ou fraudadas pelo prprio comportamento contraditrio, incoerente,
ou a elas antagnico; o postulado proibitrio venire contra factum proprium.
159- A finalizar esta quadra de consideraes,
tambm importante desfazer outra grande impropriedade largamente difundida
pelo discurso do tratamento canino da LV: a de que a eutansia do co
infectado seria crueldade inconstitucional (art. 225, 1, VII).
160- A priori, o senso crtico interpela por esta
questo de ordem: e o abate bovino dirio e em larga escala para a alimentao
humana, por acaso tambm crueldade inconstitucional? conquanto melindre,
a reflexo tem, todavia, a profcua fora de desentocar interesses subjacentes e
abrir de maneira sincera a questo da eutansia.
161- O manual de vigilncia e controle da
Leishmaniose Visceral (in anexo 1) explicito em ditar que a eutansia do co
infectado dever observar as normas tcnicas da Resoluo n714, de 20 de
junho de 2002, expedida pelo Conselho Federal de Medicina Veterinria:
Para a realizao da eutansia, deve-se ter como base a
Resoluo n714, de 20 de junho de 2002, do Conselho
Federal de Medicina Veterinria, que dispe sobre os
procedimentos e mtodos de eutansia em animais e d
outras providncias, dentre as quais merecem destaque:
- Os procedimentos de eutansia so de exclusiva
responsabilidade do mdico veterinrio, que dependendo
da necessidade pode delegar esta prtica a terceiros, que
realizar sob sua superviso. Na localidade ou municpio
onde no existir mdico veterinrio, a responsabilidade
ser da autoridade sanitria local;
- Os animais devero ser submetidos eutansia em
ambiente tranquilo e adequado, longe de outros animais e
do alojamento dos mesmos;
- A eutansia dever ser realizada segundo a legislao
municipal, estadual e federal, no que se refere compra e
armazenamento de drogas, sade ocupacional e a
eliminao de cadveres e carcaas;
38
- Como mtodos de eutansia so recomendados os
barbitricos, anestsicos inalveis, dixido de carbono CO2, monxido de carbono CO e cloreto de potssio KCL, para este ltimo ser necessria a anestesia geral
prvia.
- Os procedimentos de eutansia, se mal empregados, esto
sujeitos legislao federal de crimes ambientais (cf. in anexo 1).
162- Juridicamente, o procedimento de eliminao do co infectado s se considerar procedimento de eutansia enquanto for e na medida em que for obediente s regras tcnicas da Resoluo n714/2002 do CFMV, caracterizando-se, desse modo e nessa exata proporo, como tipo especfico de ato lcito.
163- Ora, se a Lei federal delega ao Conselho
profissional (CFMV) competncia normativa para expedir normas tcnicas sobre determinado procedimento (eutansia) da profisso, e esse delegatrio o faz, embasando-se em critrios cientficos, operou-se, ento, a juridicizao, no campo das condutas sociais lcitas, do procedimento normado, sendo, pois, arremato contra-senso acus-lo, tout court, de crueldade ilcita, de infrao normativa:
Num ordenamento jurdico no devem existir antinomias (cf. Norberto Bobbio, Teoria do Ordenamento Jurdico, Unb., 9 edio, pg. 110, n8).
164- As normas tcnicas, como espcies de
normas sociais, so frmulas de fazer e de criar, que traduzem aperfeioamento, com base cientfica, de meios ou instrumentais para desenvolvimento de determinado trabalho, c
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