Ética e Deontologia na Prática Psicológica – Texto de Apoio 2
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Deontologia da prática psicológica -‐ Enquadramento
1. Introdução: origem e história do CDOPP A publicação do CDOPP tornou visível para os profissionais e para o
público em geral a dimensão deontológica inerente à prática psicológica, correspondendo aos objectivos atrás assinalados:
-‐ Indicar à sociedade que a prática profissional visa valores socialmente reconhecidos, portanto conformes à moral comum;
-‐ Sujeitar a prática profissional a um exame crítico, tanto do ponto de vista das soluções habitualmente seguidas como da falibilidade dos profissionais individualmente considerados.
Recorde-‐se, no entanto, que a profissão de psicólogo foi reconhecida em
Portugal antes da instituição da OPP e que a deontologia enquanto procedimento ético nesse âmbito profissional, é indissociável do discernimento pessoal dos psicólogos e, portanto, anterior ao CDOPP. Para além deste, existem outros documentos com relevância para esta matéria e que, embora não inteiramente concordantes, devem ser referenciados. A deontologia da prática psicológica tem vindo a constituir-‐se, por ordem cronológica, graças aos seguintes documentos:
-‐ o capítulo VI dos Estatutos da OPP (artigos 75º a 81º da Lei nº 57/2008) e demais legislação aplicável;
-‐ o CDOPP (publicado em anexo ao Regulamento nº 258/2011, Diário da República, 2.a série de 20 de Abril de 2011);
-‐ “as diversas linhas específicas de orientação (guidelines), a desenvolver ao longo do tempo, sobre áreas de aplicação ou problemáticas particulares”, à semelhança do que têm vindo a fazer organismos internacionais como a APA (American Psychological Association) ou a EFPA (European Federation of Psychologists’ Association).
Deve ainda acrescentar-‐se o Regulamento Disciplinar da Ordem dos Psicólogos Portugueses (Regulamento nº 257/2011).
Centrar-‐nos-‐emos, neste capítulo e nos seguintes, no comentário ao CDOPP, recorrendo, quando se revele útil ou necessário, aos demais documentos acima apontados.
O Código Deontológico da OPP resulta de uma proposta elaborada por um
grupo de trabalho em que participaram representantes das instituições de ensino superior que oferecem formação graduada e pós-‐graduada em Psicologia, o Sindicato dos Psicólogos e profissionais de reconhecida competência e idoneidade.
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O documento produzido por este grupo de trabalho esteve em discussão pública entre 24 de Janeiro e 24 de Fevereiro de 2011, sendo posteriormente revisto, apresentado e votado na Assembleia de Representantes de 25 de Março do mesmo ano. Veio a ser publicado em Diário da República a 20 de Abril de 2011, como anexo do Regulamento nº 258/2011, em cumprimento do estabelecido pelos Estatutos da Ordem.
O CDOPP é constituído pelo Preâmbulo, Princípios Gerais e Princípios Específicos.
O primeiro aspecto a sublinhar no Preâmbulo é a seguinte afirmação: “a
referência do exercício profissional é o máximo ético e não o mínimo aceitável”. Esta frase, ainda que não possa considerar-‐se uma declaração de princípios ou uma profissão de fé em termos filosóficos, é indiciadora de que este corpo de profissionais assume a ética como constitutiva da sua profissionalidade, não em termos abstractos ou formais, mas incarnada no seu agir profissional quotidiano. Por essa razão, o CDOPP refere-‐se directamente à prática e aos seus destinatários, estabelecendo normas e definindo boas práticas, mas também princípios e valores que as fundamentam. A mesma frase deixa também implícito que “conhecer as normas” pode não corresponder a “agir de acordo com princípios e valores” e assume a sua opção por uma prática que visa o melhor e pode, por isso, considerar-‐se de acordo com a definição de ética que atrás deixámos: “visar o bem, vivendo com e para os outros em instituições justas” (Ricoeur, 1990, 1995). Por outro lado, a própria existência do CDOPP mostra que os psicólogos não caem na crença ingénua de considerar que um código não seria necessário pelo facto de “decent mature people do not need to be told how to conduct themselves” (Hall, 1952:430, cit. Lindsay et al., p. 8).
A perspectiva do CDOPP é realista no sentido de que se espera de todos os psicólogos um comportamento visando o máximo ético, isto é, o melhor modo possível de exercer a profissão, para os quais, idealmente, o CDOPP não seria necessário; mas em que este se apresenta como um instrumento a estudar e discutir em contexto de formação e investigação, de tal modo que os psicólogos não precisem de recorrer a ele na sua prática quotidiana, mas permanece disponível para que seja possível actuar de cada vez que não seja cumprido.
A quem se aplica o CDOPP? Ou, dito de outro modo, quem é que pode
considerar-‐se psicólogo, para que se lhe aplique o CDOPP? O Preâmbulo esclarece que “psicólogo” é
qualquer pessoa que obtenha formação específica em Psicologia concordante com as normas em vigor (...) e que exerça um papel profissional em qualquer área ou contexto da Psicologia. Para o exercício da sua prática é obrigatória a inscrição enquanto membro, ou membro-‐estagiário, no exercício da actividade profissional supervisionada, da Ordem dos Psicólogos.
Os Estatutos afirmam também, no seu artigo 51º, que
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1. Podem inscrever-‐se na Ordem: a) Os mestres em Psicologia que tenham realizado estudos superiores de 1º
e 2º ciclo em Psicologia; b) Os licenciados em Psicologia que tenham realizado uma licenciatura com
a duração de quatro ou cinco anos, anterior à data de 31 de Dezembro de 2007;
c) Os profissionais nacionais de outros Estados membros da União Europeia que sejam titulares das habilitações académicas e profissionais requeridas legalmente para o exercício da profissão no respectivo Estado de origem;
d) Os nacionais de outros Estados em condições de reciprocidade desde que obtenham a equiparação nos termos da lei em vigor.
2. A passagem a membro efetivo da Ordem depende da realização de estágio profissional.
Encontramos ainda no Preâmbulo, em concordância com os Estatutos, a seguinte definição de “cliente”:
entende-‐se por cliente qualquer pessoa, família, grupo, organização e/ou comunidade com os quais os/as psicólogos/as exerçam actividades no âmbito dos seus papéis profissionais, científicos e/ou educacionais enquanto psicólogos/as.
Trata-‐se, portanto, de uma definição que extravasa a dimensão clínica e corresponde sobretudo à natureza relacional do trabalho do psicólogo. A definição de cliente é muito relevante pois é em função do destinatário da prática psicológica que pode deduzir-‐se a deontologia, expressa de modo mais consistente e desenvolvido no CDOPP.
O corpo do CDOPP divide-‐se em duas partes: Princípios Gerais,
qualificados de “estruturais e aspiracionais” e Princípios Específicos, definidos como “regras de conduta ética”. Embora exista uma relação indissociável entre ambas as partes, dada precisamente a natureza “estrutural” dos Princípios Gerais, pode dizer-‐se que estes estão mais próximos da ética profissional, ao passo que os segundos são de natureza mais deontológica. No entanto, será na apresentação dos objectivos dos Princípios Específicos que encontramos a primeira formulação do que Hortal (1995) chama “fins ou bens intrínsecos a que tende o exercício da profissão”. São definidos nos seguintes termos:
promoção da qualidade de vida e protecção de pessoas, casais, famílias, grupos, organizações e comunidades com as quais os/as psicólogos/as trabalham.
Note-‐se que na definição dos Princípios Específicos, o adjetivo “ética”, no singular, concorda com “conduta” e não com “regras”. Os princípios específicos são pois “regras” de natureza deontológica que visam a “conduta ética” dos psicólogos. É também na análise dos princípios específicos que encontraremos a apreciação pormenorizada do que Hortal (1995) considera o específico da deontologia, isto é, “as consequências que derivam dos direitos e legítimos interesses dos usuários ou clientes da actividade profissional em causa, bem como as obrigações decorrentes de integrar o grupo profissional respectivo”. No
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entanto, tais princípios “não pretendem ser exaustivos, embora se refiram às diversas áreas e contextos onde os/as psicólogos/as exercem as suas funções profissionais e a diversas situações de dilemas éticos que poderão encontrar” (CDOPP, Preâmbulo) e procuram corresponder também a um outro objectivo de natureza deontológica: “a orientação e formação de membros efectivos e estagiários da Ordem dos Psicólogos e estudantes de Psicologia”.
2. Os princípios gerais do CDOPP A introdução aos princípios gerais do CDOPP permite-‐nos identificar a
orientação filosófica deste documento e dá-‐nos indicações para o que deve ser o discernimento do profissional em situação de conflito ético.
A primeira afirmação é, reiterando o dito no Preâmbulo e seguindo o código da APA, que “os princípios gerais são, por natureza, aspiracionais”, esclarecendo que, com estas palavras, se propõem
orientações para os profissionais no sentido de os guiar e inspirar para uma atuação centrada nos ideais da intervenção psicológica.
Entende-‐se, por conseguinte, que 1. existe um modo ideal de realizar a intervenção psicológica, que corresponde
a uma perfeição, desejável e desejada, embora nem sempre conseguida; 2. esta perfeição não está definida de um modo absoluto e definitivo, não tem
um carácter apodítico e, coerentemente, os princípios gerais são apresentados como “obrigações prima facie”1, isto é, devem cumprir-se, a menos que, numa situação particular, entrem em conflito com outro dever de importância igual ou superior.
3. os princípios gerais derivam de uma “moral comum da Psicologia” ou “moral compartilhada”2 por este grupo de profissionais, resultando a sua validade de serem “sentidos como intuitivamente corretos”, “construídos e inspirados nas características naturais da pessoa” e confirmados tanto por “um raciocínio filosófico secular”, quanto “na natureza da intervenção psicológica”; note-‐se que o consenso entre os profissionais não é critério da bondade destes princípios, embora possa ser indício da intuição generalizada (cada um intui que determinado princípio é correto e, ao encontrar nos demais idêntico ponto de vista, é confirmado na sua intuição primeira; não se trata de uma obediência, nem de uma dedução, mas de um encontro de intuições que afasta também a hipótese de coincidência fortuita);
4. a atuação profissional dos psicólogos e a “moral compartilhada” que a suporta não são perfeitas, mas são perfectíveis;
1 A noção de obrigação ou dever prima facie é apresentada por Ross no seu livro “The Right and
the Good”. Corresponde a uma obrigação que se deve cumprir, a menos que, numa situação particular, entre em conflito com um outro dever de igual ou maior importância. Os dilemas éticos resultam, por isso, do conflito entre dois deveres prima facie.
2 Não parece existir no CDOPP uma distinção clara entre os termos ética e moral. Abordámos este tema no capítulo anterior.
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5. este aperfeiçoamento progressivo é susceptível de ser buscado e descoberto na atuação concreta, razão por que se diz que é função dos princípios gerais guiar e inspirar os psicólogos.
Esta orientação diverge da que encontramos no artigo 75º dos Estatutos da OPP. Com efeito, na lista que dele consta encontramos lado a lado princípios gerais e princípios específicos do Código Deontológico, sem uma enumeração exaustiva de nenhuma das categorias. A diferença mais evidente corresponde à omissão da referência ao princípio de respeito pela dignidade e direitos da pessoa (Princípio A do CDOPP). Considerando que os Estatutos foram elaborados antes do Código Deontológico, é, até certo ponto, compreensível a divergência, sendo, no entanto, desejável que a OPP promova um trabalho sobre ambos os documentos que os torne coerentes entre si. Apresentamos no Quadro 1 a correspondência entre os princípios gerais enunciados nos Estatutos e o Código Deontológico. Como veremos adiante, a formulação do CDOPP é mais abrangente tanto para os princípios gerais como para os específicos.
Quadro 1 Estatutos da OPP
Artigo 75º -‐ Princípios Gerais Correspondência no Código Deontológico
a) Actuar com independência e isenção profissional;
Princípio específico 3 -‐ Relações Profissionais Princípio específico 5.4 -‐ Prática e Intervenção Psicológicas: Preocupações de isenção e objectividade na intervenção
b) Prestigiar e dignificar a profissão; Princípio B – Competência
c) Colocar a sua capacidade ao serviço do interesse público;
Princípio C – Responsabilidade
d) Empenhar-‐se no estabelecimento de uma dinâmica de cooperação social com o objectivo de melhorar o bem-‐estar individual e colectivo;
Princípio C – Responsabilidade Princípio E – Beneficência e não maleficência
e) Defender e fazer defender o sigilo profissional; Princípio específico 2 -‐ Privacidade e Confidencialidade
f) Exigir aos seus membros e colaboradores o respeito pela confidencialidade;
Princípio específico 2 -‐ Privacidade e Confidencialidade
g) Utilizar os instrumentos científicos adequados ao rigor exigido na prática da sua profissão;
Princípio específico 5 – Prática e Intervenção Psicológicas
Princípio específico 6 – Ensino, Formação e Supervisão Psicológicas
h) Conhecer e agir com respeito pelos preceitos legais e regulamentares;
Princípio C – Responsabilidade Princípio D – Integridade
i) Respeitar as normas de incompatibilidade que decorram da lei.
Princípio D – Integridade
Os princípios gerais enunciados no CDOPP são os seguintes: 1. Respeito pela dignidade e direitos da pessoa; 2. Competência; 3. Responsabilidade; 4. Integridade;
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5. Beneficência e não-‐maleficência. Podem comprovar-‐se semelhanças, quer com o Metacódigo de Ética da
EFPA3 (coincidindo os primeiros quatro), quer com o código de ética da APA (são comuns os princípios de Beneficência e Não-‐maleficência, Integridade e Responsabilidade).
No CDOPP, os princípios gerais articulam-‐se entre si de tal modo que a partir da análise de cada um deles podemos encontrar os demais. Apesar disso, a sua complexidade não é idêntica, sendo igualmente diversa a respectiva origem histórica.
Encontramos ainda na introdução aos Princípios Gerais do CDOPP um conjunto de orientações a seguir para lograr uma decisão ética e deontologicamente fundamentada em caso de conflito ético. O pressuposto base é o seguinte:
quando os princípios estabelecidos entram em conflito, cabe ao profissional, em última análise, decidir sobre como resolver o dilema ético surgido, a partir do seu raciocínio ético.
Esta afirmação pressupõe que: − a decisão ética é sempre pessoal e intransmissível; − deve ser racional e expressa-‐se pelo raciocínio ético. Além disso, a decisão ética pode e deve ser esclarecida, tanto pelo
conhecimento do Código Deontológico e da legislação, como pelo saber e experiência de profissionais seniores, como se diz adiante:
Devem informar-‐se sobre os procedimentos usuais em circunstâncias idênticas, consultar a Comissão de Ética da instituição onde trabalham, colegas e superiores hierárquicos.
3. Os princípios específicos do CDOPP Os princípios específicos do CDOPP não se confundem com leis nem com
normas disciplinares. Apresentam linhas orientadoras de boas práticas e permitem identificar práticas incorrectas a sujeitar à apreciação do conselho jurisdicional (cf. capítulo V dos Estatutos). Por outro lado, sem que esteja em causa a importância de qualquer deles, verificamos que têm desenvolvimentos diferentes que se coadunam com a respectiva finalidade.
Os princípios específicos podem dividir-‐se em três grupos:
3 A EFPA é a European Federation of Psychologists’ Associations. No âmbito desta federação foi
elaborado o Metacódigo de Ética com o objectivo de servir de promover entre os seus membros uma maior consciência ética em todos os campos de estudo da Psicologia. o Metacódigo foi aprovado na Assembleia Geral da EFPA de 1995 em Atenas e revisto na Assembleia Geral de 2005 em Granada (Cf. http://ethics.efpa.eu/meta-‐code/ ).
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1. Condições da relação profissional – correspondem aos dois primeiros princípios específicos (1. consentimento informado; 2. privacidade e confidencialidade);
2. Exercício da Profissão -‐ Funções específicas dos psicólogos – definidas e caracterizadas nos princípios específicos 4 a 7 (avaliação; prática e intervenção; ensino, formação e supervisão; investigação);
3. Relações dos psicólogos com outras entidades, para além dos clientes, a saber, com os colegas e outros profissionais (princípio específico 3) e com a sociedade em geral (princípio específico 8).
Questões para auto-‐avaliação dos seus conhecimentos:
1. Quais as finalidades do Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses?
2. Em que documentos se encontra consignada a deontologia dos Psicólogos Portugueses?
3. Quais as condições necessárias para aceder à profissão de Psicólogo? 4. O que distingue os princípios gerais dos princípios específicos do CDOPP? 5. Quais são os princípios gerais do Código Deontológico da Ordem dos
Psicólogos Portugueses? 6. Por que se diz que os princípios gerais do CDOPP são “aspiracionais”? 7. Quais os objectivos dos princípios específicos do CDOPP?