Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação
PRÁTICAS DE LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NAS VOZES DE
CRIANÇAS: LER E ESCREVER ENTRE OS SENTIDOS E OS BENS
CULTURAIS NA ILHA DE CARATATEUA-PA
Belém – PA 2018
NATÁLIA PASSOS FERNANDES
PRÁTICAS DE LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NAS VOZES DE CRIANÇAS: LER E ESCREVER ENTRE OS SENTIDOS E OS BENS CULTURAIS NA ILHA DE CARATATEUA-PA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado, do CCSE, como requisito parcial para a obtenção de título de Mestre em Educação. Linha de Pesquisa: Saberes Culturais e Educação na Amazônia Orientadora: Profª. Dr. Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva
Belém-PA 2018
NATÁLIA PASSOS FERNANDES
PRÁTICAS DE LETRAMENTO E EDUCAÇÃO NAS VOZES DE CRIANÇAS: LER E ESCREVER ENTRE OS SENTIDOS E OS BENS CULTURAIS NA ILHA DE CARATATEUA-PA
BANCA EXAMINADORA ______________________________________________________ Profª. Dr. Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva Orientadora – Universidade do Estado do Pará – UEPA
______________________________________________________ Profª. Dr. Laura Maria Silva Araújo Alves Examinadora – Universidade Federal do Pará – UFPA ______________________________________________________ Profº. Dr. José Anchieta de Oliveira Bentes Examinador – Universidade do Estado do Pará – UEPA
Apresentada em: ________/________/________
Conceito: __________________________
Ao meu filho, Luiz Vicente, que me faz resgatar meus
“olhos de criança” e por meio de suas brincadeiras me
inspira a pensar pensamentos novos, e para as crianças
da Escola Bosque, que também me ensinam a ser
professora com exercícios de ser criança, com todo o meu
profundo amor!
AGRADECIMENTOS
Ao iniciar estes agradecimentos, lembro-me das sábias palavras de meu avô,
quando dizia: “Filhinha, gratidão é a única dívida que não prescreve!”.
A Deus, pela dádiva da vida e pelas dificuldades e conquistas diárias que me
ensinam a ser mais humana.
Aos meus pais, Mauro Calandrini e Rosalina Fernandes, pelos valores ensinados,
incentivo e ajuda nessa caminhada acadêmica.
Aos meus avós, Vicente (in memorian) e Valentina (in memorian), por todo amor a
mim dedicado e pelos sábios ensinamentos.
Aos meus irmãos, Paula e Marcelo, por terem tornado minha infância mais alegre e
pela amizade e cumplicidade na vida adulta.
Ao meu tio Alexandre, sua esposa Fátima e meus primos Daniel e Giovanna, pelo
incentivo e palavras acolhedoras nos momentos de dificuldades e dúvidas.
A toda minha família, pelo carinho incondicional.
Ao meu grande companheiro e marido, Luís Alberto, que esteve nos momentos da
pesquisa de campo nas casas das famílias me ajudando e compartilhando ideias
para a pesquisa e, sem medir esforços, divide comigo a grande missão de educar
nosso filho Luiz Vicente, que nasceu durante o percurso do mestrado. Muitas vezes
ele o carregou sozinho para que eu pudesse concluir esta etapa de minha vida
acadêmica. Amo-te. O amor é infinitamente mais forte!
Às minhas amigas do coração, Fernanda, Andrea, Joana e Yasmin, que trabalham
comigo na Escola Bosque e fazem meus dias mais leves na difícil tarefa de ensinar
em uma instituição pública.
À professora Joana, em especial, que contribuiu com este trabalho, dando-me todo
apoio necessário e literalmente abrindo as portas de sua sala de aula!
A todos os meus colegas de turma, a qual carinhosamente convencionamos chamar
de Rio 12. Rio de águas quentes e acolhedoras, onde navegamos e partilhamos
muitos saberes e experiências que deixaram marcas indeléveis em mim.
À minha orientadora, mais do que orientadora e, sim, amiga, Socorro Cardoso, toda
minha profunda admiração e respeito pelo incentivo e saberes partilhados. Que
acreditou em mim muitas vezes mais do que eu mesma! E, nos momentos em que
pensei em desistir, seu incentivo foi fundamental para retomar a caminhada.
Obrigada, querida!
Às professoras Denise, Josebel e Nazaré, pelas vivências e reflexões
proporcionadas na disciplina Saberes.
Ao Programa de Pós-graduação em Educação, em especial, aos secretários
Jorginho e Joaquim, por todo empenho em colaborar em todos os momentos que
precisei.
À Escola Bosque, sob a coordenação de Larina, por ter acolhido a minha pesquisa,
dando-me todo apoio necessário, e por ter concedido a licença total para cursar o
mestrado.
À UEPA, por ter concedido a licença parcial de estudo, sem a qual seria impossível
realizar este estudo.
Às crianças desta pesquisa e seus familiares, pela possibilidade de conhecer suas
práticas de letramento e por me tratarem com muito carinho e respeito, contribuindo
de forma fundamental para a execução deste trabalho.
A todos, GRATIDÃO!
“Uma reconfiguração do letramento como prática social crítica exige que levemos em conta essas perspectivas históricas e também transculturais na prática de sala de aula e que auxiliemos os alunos a situar suas práticas de letramento.”
Brian Street
“As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.”
Carlos Drummond de Andrade
RESUMO
Este estudo apresenta uma pesquisa sobre a temática do letramento como prática social. Tem-se como lócus a Ilha de Caratateua, mais conhecida como Outeiro. Esta investigação se justifica por pesquisar práticas que não foram descritas na ilha referida. A fim de responder ao questionamento: que práticas de letramento são vivenciadas pelas crianças na comunidade da Ilha de Caratateua-PA?, delimitou-se como objetivo geral analisar as práticas de letramento vivenciadas pelas crianças da referida comunidade para contribuir com as práticas pedagógicas escolares. Os objetivos específicos foram: mapear os eventos de letramento que as crianças vivenciam (nos domínios lazer, religião, escolar, comercial); identificar os gêneros e suportes presentes nas práticas de letramento das crianças; e registrar os dizeres das crianças sobre os sentidos atribuídos às suas práticas de letramento. Trata-se de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa. Os sujeitos são 4 (quatro) crianças entre oito e dez anos, três meninos e uma menina, que estudavam no 3º ano do Ensino Fundamental (Ciclo I) na Escola Bosque. Os instrumentos utilizados na coleta de dados foram: observação participante; diário de campo; entrevista semiestruturada; entrevista em aberto e diário de letramento. Na análise dos dados, foram utilizados os estudos de Street (2010, 2012 e 2014), e os fundamentos teóricos da Sociologia da Infância vieram de Corsaro (2011), Spinelli e Quinteiro (2015), entre outros. Os resultados mostram que as crianças são agentes culturais ativos que vivenciam práticas culturais, além das práticas escolares, como práticas de letramento religiosa, práticas de letramento comercial, práticas de letramento digital, práticas de letramento voltadas para o entretenimento, lazer em família, comunicação interpessoal e atividades de organização da vida diária (listas de compras, pagamento de contas). Considera-se que os dados levantados e analisados colocam os educadores diante da possibilidade de ampliar as práticas de letramento escolares a partir dos letramentos vivenciados no ambiente familiar, na comunidade e em suas implicações ideológicas.
Palavras-chave: Práticas de letramento. Eventos de letramento. Leitura e escrita. Gênero textual.
ABSTRACT
This study presents a research on the theme of literacy as a social practice. It has as a locus of research the Caratateua Island, better known as Outeiro. This research is justified by researching practices that were not described in the referred island. The dissertation problematized: what practice of literacy are experienced by the children in the community of Caratateua Island - PA? In order to answer this question, it was defined as a general objective to analyze the literacy practices experienced by the children of said community to contribute to the pedagogical practices of the school. The specific objectives were: to map the literacy events that children experience (in the different domains of leisure, religion, school, commercial); identify the genres and supports present in children's literacy practices; and record the words of children about the meanings attributed to their literacy practices. This is a field research, with a qualitative approach. The subjects are 4 (four) children between 8 and 10 years old, three boys and one girl, who studied in the 3rd year of elementary school (Cycle I) at Bosque School. The instruments used in the data collection were: participant observation; field journal; semi structured interview; open interview and literacy journal. In the analysis of the data, we used the studies of Street (2010, 2012 and 2014), and the theoretical foundations of Sociology of Childhood came from Corsaro (2011), Spinelli and Quinteiro (2015), among others. The results show that children are active cultural agents who experience cultural practices, in addition to school practices, such as religious literacy practices, commercial literacy practices, digital literacy practices, literacy practices oriented toward entertainment, family leisure, interpersonal communication and activities of organization of daily life (shopping list, payment of bills). We consider that the data collected and analyzed put educators before the possibility of expanding the school literacy practices from the literacies experienced in the family environment, in the community and in their ideological implications.
Key-words: Literacy practices. Literacy events. Reading and writing. Textual genre.
LISTA DE QUADROS Quadro 1 – Panorama de produções acadêmicas do PPGED-UEPA 18 Quadro 2 – Panorama de produções acadêmicas (teses) da CAPES 19 Quadro 3 – Panorama de produções acadêmicas (dissertações) da CAPES 21 Quadro 4 – Perfil dos entrevistados 66 Quadro 5 – Exemplo do quadro síntese dos primeiros sentidos mapeados 80 Quadro 6 – Exemplo do quadro síntese dos eventos de letramento no ambiente familiar
81
Quadro 7 – Exemplo do quadro síntese dos eventos mapeados nos diários 82 Quadro 8 – Sentidos mapeados nas primeiras entrevistas 105 Quadro 9 – Práticas de letramento de Caleu 111 Quadro 10 – Evento “Honra teu pai e tua mãe” 113 Quadro 11 – Evento “A bíblia das criancinhas” 117 Quadro 12 – Leitura da bíblia pela avó 123 Quadro 13 – Registro do diário de Caleu 124 Quadro 14 – Práticas de letramento de Caleu 128 Quadro 15 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Caleu 129 Quadro 16 – Quadro do diário de Amora 131 Quadro 17 – “Cartas ao pai” 134 Quadro 18 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Amora 137 Quadro 19 – Transcrição da brincadeira “adedonha” de Bernardo 140 Quadro 20 – Práticas de letramento identificadas na 4ª entrevista na casa de Bernardo
142
Quadro 21 – Transcrição do diário de letramento de Davi 143 Quadro 22 – Práticas de letramento identificadas a partir do diário de Davi 147
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Placa sinalizando Outeiro 55 Figura 2 – Ilha de Caratateua 55 Figura 3 – Foto da ponte Enéas Pinheiro 56 Figura 4 – Vista do Rio Maguari 56 Figura 5 – 1ª Escola de Iniciação Agrícola Manoel Barata, em 1952 57 Figura 6 – Parada Matinal do CEFAP, em 1986, na ilha de Caratateua 58 Figura 7 – Mapa turístico de Outeiro 59 Figura 8 – Rua Manoel Barata 61 Figura 9 – Rua Paulo Costa 61 Figura 10 – Rua das Mangueiras 62 Figura 11 – Foto da entrada da Escola Bosque 64 Figura 12 – Capas dos livros da trilogia Minecraft 108 Figura 13 – Foto de Caleu lendo o livro “De volta ao jogo” 109 Figura 14 – Foto de Amora lendo sua bíblia 113 Figura 15 – Bernardo lendo “A Bíblia das criancinhas” 116 Figura 16 – “A Bíblia das criancinhas” aberta nas histórias de Jonas e Daniel 116 Figura 17 – Bíblias da avó de Davi 121 Figura 18 – Avó de Davi fazendo a leitura da bíblia para o neto 122 Figura 19 – Bíblia aberta nos textos lidos pela avó de Davi 123 Figura 20 – Jogos utilizados por Caleu e sua família 126 Figura 21 – Caleu jogando vídeo game 126 Figura 22 – Diário de letramento de Caleu 130 Figura 23 – Diário de letramento de Amora 131 Figura 24 – Carta feita por Amora para seu pai 133 Figura 25 – Página virtual de um catálogo Tupperware 135 Figura 26 – Frases registradas por Bernardo em um caderno velho 138 Figura 27 – Desenhos feitos por Bernardo 139 Figura 28 – Escrita de Bernardo na brincadeira “Nome, objeto” 139 Figura 29 – Jogo caça palavras (imagem da tela do celular) 141 Figura 30 – Diário de letramento de Davi 142 Figura 31 – Diário de letramento de Davi (continuação) 143
LISTA DE SIGLAS FUNBOSQUE – Centro de Referência em Educação Ambiental Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira ANA – Avaliação Nacional da Alfabetização PNAIC – Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa UEPA – Universidade do Estado do Pará CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ONU – Organização das Nações Unidas ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente BRT Belém – Sistema Bus Rapid Transit Belém CFAP – Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia do Estado do Pará DAOUT – Distrito Administrativo do Outeiro EJA – Educação de Jovens e Adultos AMA – Agentes e Monitores ambientais PPGED-UEPA – Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará PPA – Projeto Pedagógico de Apoio ENCCEJA – Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos
Sumário INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 14 Seção II ................................................................................................................................... 25 LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL E O LUGAR DA CRIANÇA NAS PESQUISAS BRASILEIRAS NO ÂMBITO DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA ............. 25
2.1. ABORDAGENS SOBRE LETRAMENTO ............................................................... 25 2.2 LETRAMENTOS SOCIAIS – A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DE BRIAN STREET .............................................................................................................................. 29 2.2.1 Letramento colonial e letramento dominante ...................................................... 32 2.2.2 Práticas de letramento e eventos de letramento ................................................ 37 2.2.3 A teoria da “grande divisão” e alguns mitos sobre o letramento ...................... 40 2.2.4 A pesquisa de práticas letradas em uma perspectiva transcultural ................ 44 2.3 A CRIANÇA NA PESQUISA EDUCACIONAL BRASILEIRA ............................... 48
Seção III .................................................................................................................................. 53 PERCURSO METODOLÓGICO ......................................................................................... 53
3.1. ILHA DE CARATATEUA – BREVE HISTÓRICO ................................................. 54 3. 1. 2 Escola Bosque ....................................................................................................... 62 3.2 CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA ........................................ 64 3.3 PRODUÇÃO E ANÁLISE DE DADOS ..................................................................... 68 3.3.1 Observação participante e diário de campo ........................................................ 70 3.3.2 Entrevistas semiestruturadas com os sujeitos na escola .................................. 71 3.3.3 Entrevistas em aberto com as crianças e seus responsáveis no ambiente familiar ................................................................................................................................. 75 3.3.4 Diários de letramento: aplicação e recolhimento ................................................ 76 3.3.5 O processo de análise dos dados ......................................................................... 78
Seção VI .................................................................................................................................. 83 PRÁTICAS DE LETRAMENTO NA VOZ DE CRIANÇAS DA ILHA DE CARATATEUA-PA ................................................................................................................. 83
4.1 PRÁTICAS DE LETRAMENTO: OS SENTIDOS IDENTIFICADOS NOS PRIMEIROS ENCONTROS COM AS CRIANÇAS NA ESCOLA .............................. 83 4.1.1 Do ler e escrever ...................................................................................................... 84 4.1.2. Dos bens culturais: internet, cinema, circo e biblioteca ................................... 87 4.1.3. Do fenômeno religioso: a bíblia e as atividades na igreja ................................ 94 4.1.4 Da escola .................................................................................................................. 98 4.2 PRÁTICAS DE LETRAMENTO: EVENTOS DE LETRAMENTO REGISTRADOS NOS ENCONTROS COM AS CRIANÇAS EM SEU AMBIENTE FAMILIAR .......................................................................................................................... 105
4.2.1 Evento “De volta ao jogo” ................................................................................. 105 4.2.2 Evento “Honra teu pai e tua mãe” ................................................................... 110
4.2.3 Evento “A Bíblia das criancinhas” ....................................................................... 113 4.2.4 Evento “Leitura da bíblia pela avó” ................................................................. 117
4.3 DIÁRIOS DE LETRAMENTO .................................................................................. 123 4.3.1 Diário de Caleu ................................................................................................... 124 4.3.2 Diário de Amora ................................................................................................. 131 4.3.3 O não registro do diário de Bernardo ............................................................. 140 4.3.4 Diário de Davi ..................................................................................................... 145
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 151 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 156
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INTRODUÇÃO
Letramento não é um gancho em que se pendura cada enunciado, não é treinamento repetitivo de uma habilidade, nem um martelo quebrando blocos de gramática. Letramento é diversão é leitura à luz de vela ou lá fora, à luz do sol. São notícias sobre o presidente, o tempo, os artistas da TV e mesmo Mônica e Cebolinha nos jornais de domingo. É uma receita de biscoito, uma lista de compras, recados colados na geladeira, um bilhete de amor, telegrama de parabéns e cartas de velhos amigos. É viajar para países desconhecidos, sem deixar sua cama, é rir e chorar com personagens, heróis e grandes amigos. É um atlas do mundo, sinais de trânsito, caças ao tesouro, manuais, instruções, guias, e orientações em bulas de remédios, para que você não fique perdido. Letramento é sobretudo, um mapa do coração do homem, uma mapa de quem você é, e de tudo o que você pode ser.
(Kate M Chong)
A presente dissertação, desenvolvida no Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade do Estado do Pará (PPGED-UEPA), tem centralidade nos
temas: letramento (s), educação e criança. A investigação analisou as práticas de
letramento vivenciadas pelas crianças da Ilha de Caratateua-PA para compreender
suas lações além das práticas de letramento escolares.
O interesse pessoal pela temática remonta às memórias de infância, de minha
inserção no mundo letrado e de meus primeiros contatos com a escrita e com os
livros da literatura infantil. Está relacionado a desejar compreender meu próprio
processo de letramento. Sendo assim, não posso prescindir de minha memória
pessoal nesse assunto.
Na infância, meu avô contava as lendas da região e lia livros de história para
mim. Havia vários de capa vermelha e toda noite escolhia um para ele ler; era a
coleção “Mundo da Criança”. Ouvia atenta a leitura dele. Em sua voz e performance,
as palavras ganhavam cores, sabores e eu podia ver sentimentos. Ficava encantada
e com vontade de entender aqueles rabiscos e ler sozinha. A escrita ganhava
sentidos por meio de toda a poesia que me era proporcionada viver.
Na escola, aprendi a decodificar a escrita na cartilha A Casinha Feliz, aos quatro
anos com a professora Eliana. Lembro-me que o primeiro livro que consegui ler
sozinha tinha por título A margarida friorenta, de Fernanda Lopes de Almeida.
Depois vieram A bolsa Amarela, O sofá estampado, O Pequeno Príncipe, Fábulas
de Monteiro Lobato, gibis de Maurício de Souza, O cortiço, poesias de Cecília
Meireles e muitos outros. Algumas dessas leituras foram cobradas pela escola, mas
também foram prazerosas.
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A rua também era um local de aprendizagem; era local para comprar
algodão doce, pipoca, picolés de frutas, com a “mesada” (dinheiro) que meus pais
me davam. Havia as brincadeiras de roda com as crianças vizinhas, pira-esconde,
pira-pega, cemitério, bandeirinha, amarelinha, brincar de professora e muitas outras.
Tínhamos momentos de contar histórias de assombração, lendas. São imagens,
sons e cores que foram permeando e constituindo o meu imaginário amazônico
desde minha infância e traçando minha trajetória enquanto leitora.
O mapa de meu letramento sofreu/sofre contínuos retoques à media que
passo a pertencer a novos grupos. Comecei a arriscar minhas primeiras escritas
com cartinhas de amor destinadas aos meus avós, anotando as receitas, segredos
de família, depois cartinhas às amigas, às professoras, na adolescência com um
diário. A partir da proliferação das tecnologias digitais, precisei desenvolver novas
linguagens e maneiras de me relacionar com a escrita, como ter endereço
eletrônico, aprender a redigir e-mail, utilizar correio eletrônico e redes sociais,
vinculadas à comunicação mediada por computador e outros recursos tecnológicos,
como o celular.
No ano de 1999, terminei o ensino médio e, portanto, tive que optar por um
curso para prestar vestibular. Escolhi o curso de Pedagogia, porque me chamou
atenção o fato de esta área estudar a aprendizagem humana. Mais do que isso, a
opção traduzia uma vontade despertada na tenra idade, ser professora. Considero
que meu percurso leitor foi/é o ponto de partida para formar leitores. Durante o
curso, deparei-me com uma nova forma de escrita que precisava aprender e uma
série de teorias sobre a aprendizagem que me faziam refletir cada vez mais sobre
meu percurso como estudante.
Na faculdade, as aulas permitiram meu encontro com os escritos do
educador Paulo Freire; dele marcou-me a frase “a leitura do mundo precede a leitura
da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da
leitura daquele” (FREIRE, 2001, p. 29). Passei a compreender cada vez mais minha
leitura de mundo, antes de ler a palavra, por meio de sons, gestos, olhares,
expressões, cheiro e tato nas minhas relações com os outros. Rememoro como
criava e produzia sentidos para escrita desde a infância. Isso me fez começar a
compreender a natureza política e social do letramento.
Meu interesse acadêmico em investigar letramentos sociais se deu de forma
mais precisa no início de minha carreira docente no serviço público, no ano 2008,
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como professora de séries iniciais da Fundação Centro de Referência em Educação
Ambiental Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira (FUNBOSQUE), na Ilha de
Caratateua-PA. Por meio desta experiência como alfabetizadora, percebi a
importância de conhecer e considerar os diversos letramentos das crianças e não
apenas prepará-las para a decodificação da escrita.
As dificuldades na alfabetização de crianças, com considerável habilidade
letrada, sempre me deixavam intrigada e cada vez mais eu queria entender as
experiências que as mesmas tinham com a leitura e a escrita fora da escola, ou que
estruturas sociais e culturais faziam com que obtivessem determinadas experiências
e concepções sobre a escrita.
No exercício do magistério, sempre observei crianças com diversas
habilidades letradas, por exemplo, há crianças que sabem lidar com dinheiro,
ajudam seus pais a fazer vendas, participam de coral na igreja, sabem utilizar o
ônibus como meio de transporte, contam uma história com coerência, fazem
desenhos bem elaborados sobre suas narrativas, recontam uma história
identificando o assunto principal, personagens e relacionam com seu cotidiano,
mexem no celular com muita habilidade... mas não apresentavam bom desempenho
nas avaliações oficiais.
O Pacto Nacional de Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), um compromisso
formal e solidário assumido pelos governos Federal, do Distrito Federal, dos Estados
e dos Municípios, desde 2012, para atender à Meta 5 do Plano Nacional da
Educação (PNE), estabelece a obrigatoriedade de “Alfabetizar todas as crianças, no
máximo, até o final do 3º (terceiro) ano do ensino fundamental”, ou seja, todas as
crianças devem ser alfabetizadas até os 8 anos de idade (PNAIC, 2017, p. 3). Para
exemplificar, os resultados do ano de 2015 da Avaliação Nacional da Alfabetização
(ANA), que é um instrumento de avaliação do PNAIC, revelaram que
aproximadamente 25% das crianças brasileiras aos oito anos de idade e no 3º ano
do ensino fundamental conseguem apenas ler palavras simples e isoladas, escrever
textos básicos e fazer operações matemáticas elementares.
Tal constatação gera muitas discussões a respeito da forma como são
produzidos esses dados, bem como das condições de aprendizagem das crianças.
E, principalmente, das aprendizagens e saberes das crianças que não podem ser
mensuradas pela referida avaliação, haja vista que tais índices de alfabetismo não
traduzem o fenômeno das práticas culturais, entre elas o(s) letramento(s). Pois, o
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maior esforço consiste apenas em avaliar o quê os alunos sabem sobre textos
escritos. Os números também “são fichas num jogo político sobre recursos”
(STREET, 2014, p. 34).
Outras situações também me intrigavam, por exemplo, a formação de
professores no PNAIC e a Provinha Brasil, na prática, possuem uma concepção
dominante que reduz letramento a um conjunto de capacidades cognitivas a serem
medidas nos sujeitos. Outra questão é a ausência de formação continuada de
professores, para fomentar discussões sobre letramento, promovida pela
FUNBOSQUE e voltada para sua realidade.
Essas constatações empíricas impulsionam-me cada vez mais a entender as
experiências que as crianças têm com a leitura e escrita dos diversos domínios
sociais além da escola e, para quê e em quê utilizam a escrita, mesmo sem serem
plenamente alfabetizadas.
No ano de 2010, assumi o cargo de assessora pedagógica na UEPA. Um
momento importante, porque fui lotada no curso de Letras, o que me permitiu o
contato com profissionais que estudam o Letramento, assim, pude conhecer outros
autores que não tive a oportunidade na graduação, como Rojo, Kleiman, Tfouni e,
principalmente, a teoria sobre o letramento como prática social de Brian Street.
A partir das conceituações e abordagens sobre o letramento autônomo e
ideológico, com base em Street (2014), compreendi que o campo dos estudos do
letramento adquiriu, nos últimos anos, uma perspectiva epistemológica teórica e
transcultural. E uma das teses centrais é compreendê-lo como prática social, como
as pessoas interagem com textos escritos nos diferentes contextos históricos e
culturais.
Todo letramento é ideológico. E se as crianças não tinham sucesso nas
avaliações oficiais, mesmo tendo habilidades letradas, havia um motivo ideológico
para isso. As avaliações da escola são pautadas na lógica do “letramento
autônomo”. Neste modelo, oralidade não tem nada a ver com a escrita, há uma
divisão. Por outro lado, o “modelo ideológico” rompe com o fosso epistemológico
entre essas duas modalidades, pois são duas atividades e dois discursos
entremeados, o oral e o escrito. Encontra-se escrita na oralidade e oralidade na
escrita (STREET, 2014).
Ao ingressar no Programa de Pós-graduação em Educação (PPGED) da
Universidade do Estado do Pará, tive a oportunidade de propor esse estudo com
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enfoque na natureza social do letramento. A relevância em pesquisar tal tema, no
âmbito pessoal, é motivada pelo meu trabalho como professora de educação infantil
e ensino fundamental. Academicamente, é importante compreender o letramento
como prática social e discutir sobre letramentos de crianças, contribuindo com as
práticas pedagógicas escolares. E, no âmbito social, torna-se imprescindível discutir
formas de ajudar os alunos a “se apoderarem” de práticas letradas relevantes para
seu contexto para lidar com as estruturas de poder na sociedade.
Assim, com o intuito de investigar o que está sendo discutido sobre práticas de
letramento de crianças, realizei busca no banco de dados das dissertações de
mestrado produzidas no PPGED-UEPA. Entre as dissertações concluídas e
disponibilizadas para consulta, entre os anos de 2007 até o ano de 2017, encontrei 7
(sete) trabalhos que possuem referência a “práticas de Letramento”. Conforme o
Quadro 1.
Quadro 1 – Panorama de produções acadêmicas do PPGED-UEPA
Nº TITULO AUTOR ANO
1. A formação dos professores: saberes e práticas de letramento na educação de jovens e adultos
Ioneli da Silva Bessa Ferreira
2007
2. Programa pró-letramento: a formação continuada de professores nas escolas multisseriadas do campo no planalto em Santarém
Waldenira Santos Guimarães
2011
3. Cenas de letramento e multiletramento na educação de crianças surdas em uma escola de Belém
Tatiana Cristina Vasconcelos Maia
2015
4. Letramento musical e suas repercussões no desenvolvimento da alfabetização: uma análise sobre alunos do 6º ano de duas escolas públicas de Belém-Pa
Douglas Guimarães Borges
2016
5. Práticas de alfabetização, letramento e educação: o que dizem os egressos do Mova Belém?
Jaqueline Teixeira Gomes
2017
6. Práticas de letramento de pessoas com deficiência em um bairro da Ilha de Caratateua/Pa
Josivan João Monteiro Raiol
2017
7. Letramento digital no cotidiano do bairro da Cremação Maiara Cardoso Xavier
2017
Fonte: elaboração pessoal, agosto de 2017.
Dos sete trabalhos, apenas três abordaram práticas de letramento
especificamente com crianças e, apenas esses, serão destacados. A dissertação
“Cenas de letramento e multiletramento na educação de crianças surdas em uma
escola de Belém” (MAIA, 2015) analisou as práticas educativas utilizadas na
alfabetização de crianças surdas no Instituto Felipe Smaldone pautadas nas
concepções de letramento e multiletramento.
A pesquisa “Letramento musical e suas repercussões no desenvolvimento
da alfabetização: uma análise sobre alunos do 6º ano de duas escolas públicas de
Belém-PA” (BORGES, 2016) investigou as repercussões do letramento musical
http://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/01/ioneli_da_silva_bessa_ferreira.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/01/ioneli_da_silva_bessa_ferreira.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/05/waldenira_santos_guimaraes.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/05/waldenira_santos_guimaraes.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/05/waldenira_santos_guimaraes.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/10/douglas_guimares_borges.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/10/douglas_guimares_borges.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/10/douglas_guimares_borges.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/11/jaqueline_teixeira_gomes.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/11/jaqueline_teixeira_gomes.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/11/josivan_joao_monteiro_monteiro.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/11/josivan_joao_monteiro_monteiro.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/11/maiara_cardoso_xavier.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/09/tatiana_cristina_vasconcelos_maia.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/09/tatiana_cristina_vasconcelos_maia.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/10/douglas_guimares_borges.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/10/douglas_guimares_borges.pdfhttp://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/10/douglas_guimares_borges.pdf
19
sobre o processo de alfabetização, desenvolvido com estudantes do 6º ano de duas
escolas públicas.
A pesquisa “Letramento digital no cotidiano do bairro da cremação”
(XAVIER, 2017) analisou o letramento digital no cotidiano de crianças de 06 a 09
anos de idade e investigou as tecnologias digitais que elas utilizavam; a influência
dos meios culturais infantis para o processo do letramento digital; e as finalidades
das tecnologias na vida das crianças.
Também fiz o mapeamento das produções científicas no Banco de Teses e
Dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). No que diz respeito às pesquisas desenvolvidas, relacionadas ao que foi
produzido nos últimos três anos (2014-2016), averiguei por meio do descritor
“práticas de letramento”, dentro da área de conhecimento EDUCAÇÃO (avaliação,
concentração e nome do programa), 17 (dezessete) trabalhos, compondo três teses
e quatorze dissertações. Após a leitura dos resumos, observei que as pesquisas
abordam enfoques diferentes do letramento.
Importante destacar a tese “Educação formal x educação não formal:
diferentes práticas de ensino e a construção de identidades surdas” (GARE, 2014),
que possui um enfoque antropológico e que problematizou o ensino e investigou
práticas de letramento do surdo nos contextos de educação formal e não formal,
mas os sujeitos são adolescentes e adultos. A pesquisa “Estudo da Aprendizagem
Profissional de uma Comunidade de Professoras de Matemática em um contexto de
Práticas de Letramento Docente” (CRISTOVÃO, 2015) e o estudo “Os inéditos-
viáveis na e da formação continuada de professores que ensinam matemática nos
anos iniciais da educação de jovens e adultos” (ALVES, 2016) não foram estudos
com crianças; o primeiro investigou práticas de professores e o segundo, Educação
de jovens e adultos.
http://ccse.uepa.br/mestradoeducacao/wp-content/uploads/dissertacoes/11/maiara_cardoso_xavier.pdf
20
No Quadro 2, apresento as três teses encontradas. Quadro 2 – Panorama de produções acadêmicas (teses) da CAPES
Nº TITULO AUTOR INSTITUIÇÃO ANO
1. Educação formal x educação não formal: diferentes práticas de ensino e a construção de identidades surdas
Ruth Maria Rodrigues Gare
Universidade São Francisco
2014
2. Estudo da Aprendizagem Profissional de uma Comunidade de Professoras de Matemática em um contexto de Práticas de Letramento Docente
Eliane Matesco Cristóvão
Universidade Estadual de Campinas
2015
3. Os inéditos-viáveis na e da formação continuada de professores que ensinam matemática nos anos iniciais da educação de jovens e adultos
Rejane De Oliveira Alves
Universidade de Brasília
2016
Fonte: elaboração pessoal, agosto de 2017.
A seguir, faço um resumo das quatorze dissertações encontradas. A pesquisa
“Essa mancha ficou!: memórias sobre práticas de letramento em cenário de
imigração alemã” (EDWALD, 2014) compreendeu práticas de letramento nas línguas
alemã e portuguesa em idosos. O estudo “Os gêneros jornalísticos nos livros
didáticos de 5º e 6ºano do ensino fundamental” (SILVA, 2014) investigou o ensino
dos gêneros jornalísticos nos livros didáticos de Língua Portuguesa destinados do
Ensino Fundamental I, 5º ano e 6º ano.
A pesquisa “Possibilidades, limites e contradições nas relações família e
escola (não) mediadas por política de governo” (ALVES, 2014) não teve crianças
como sujeitos. A dissertação “Formação continuada de professores alfabetizadores
na perspectiva do letramento: um (re) significar da prática docente?” (FERREIRA,
2014) também não teve crianças como sujeitos, mas abordou o alfabetizar letrando.
A dissertação “Os sentidos para as práticas de escrita em aulas de língua
portuguesa na voz de alunos do ensino fundamental” (SILVA, 2015) buscou
compreender os sentidos que alunos do 6º e 9º ano do Ensino Fundamental
constroem para as práticas de escrita nas aulas de Língua Portuguesa. A pesquisa
“Práticas de letramento matemático narradas por professoras que atuam nos anos
iniciais do ensino fundamental” (LUCIO, 2015) investigou a partir de vozes de
professoras.
O estudo “Práticas de letramento de uma turma de pré-escola em uma escola
do campo no município do Rio Grande-RS” (BUENO, 2015), pesquisa feita em
instituição formal de ensino, investigou as práticas de letramento desenvolvidas
pelas crianças e pela professora. A dissertação “Ensino Médio, Língua Portuguesa e
Portal Educacional: percepções emergentes das narrativas de alunos inseridos em
21
práticas de letramento digital” (PERICO, 2015) não teve crianças como sujeitos e
também investigou em instituição formal de educação.
O trabalho “A sala de aula de matemática de um 1° ano do ensino
fundamental: contexto de problematização e produção de significados” (MOREIRA,
2015) é pesquisa voltada para o letramento escolar e investigou como as crianças
do 1° ano do Ensino Fundamental produzem significados matemáticos quando
inseridas em práticas de letramento matemático escolar com foco em resolução de
problema. A dissertação “Biblioteca Escolar: memórias e práticas de assistentes
técnicas pedagógicas” (MINATTI, 2015) não tem crianças como sujeitos.
A pesquisa “Os gestos didáticos nos processos de sistematização dos
conhecimentos linguísticos em 4.º e 5.º anos” (VIEIRA, 2016) também é voltada para
o letramento escolar e teve como propósito fundamental compreender as práticas de
sistematização da linguagem escrita nos processos de ensino nas interações entre
professor e alunos em 4.º e 5.º anos do Ensino Fundamental. O trabalho
“Letramentos em contexto de aprendizagem ativa nas engenharias: construindo o
edifício das palavras para nele ser inquilino” (SCHLICHTING, 2016) não teve
crianças como sujeitos.
Importante destacar a dissertação “Era uma vez um man e um menino e eles
montavam um schlitten: letra(s em anda)mento em cenário de língua de imigração
alemã” (ROSENBROCK, 2016), que buscou compreender que (inter)relações se
estabelecem entre práticas de leitura e escrita em alemão e em português de
crianças do 4º e 5º ano do ensino fundamental e o contexto intercultural em que
estão inseridas e discutir as relações entre as políticas de educação linguística
locais e os letramentos das crianças. O trabalho “Projeto de letramento matemático:
indicadores para a docência” (MEDEIROS, 2016) foi voltada para o letramento
escolar e teve como sujeitos alunos do 9° ano do ensino fundamental em uma
escola pública. No Quadro 3, apresento um panorama das dissertações
encontradas.
Quadro 3 – Panorama de produções acadêmicas (dissertações) da CAPES
Nº TITULO AUTOR INSTITUIÇÃO ANO
1. “Essa mancha ficou!”: memórias sobre práticas de letramento em cenário de imigração alemã
Luana Ewald Universidade Regional de Blumenau
2014
2. Os gêneros jornalísticos nos livros didáticos de 5º e 6º ano do ensino fundamental
Juliana Gava Bissoto e Silva
Universidade São Francisco
2014
3. Possibilidades, limites e contradições nas relações família e escola (não) mediadas por política de governo
Leandro Gaspareti Alves
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
2014
22
4. Formação continuada de professores alfabetizadores na perspectiva do letramento: um (re) significar da prática docente?
Grazielle Aparecida de Oliveira Ferreira
Universidade de Brasília
2014
5. Os sentidos para as práticas de escrita em aulas de língua portuguesa na voz de alunos do ensino fundamental
Elizangela Aparecida Mattes da Silva
Universidade Regional de Blumenau
2015
6. Práticas de letramento matemático narradas por professoras que atuam nos anos iniciais do ensino fundamental
Claudia Cristiane Bredariol Lucio
Universidade São Francisco
2015
7. Práticas de letramento de uma turma de pré-escola em uma escola do campo no município do Rio Grande-RS
Leticia de Aguiar Bueno
Universidade Federal do Rio Grande
2015
8. Ensino médio, Língua Portuguesa e Portal Educacional: percepções emergentes das narrativas de alunos inseridos em práticas de letramento digital
Lucivania Antonia da Silva Perico
Universidade Metodista de São Paulo
2015
9. A sala de aula de matemática de um 1° ano do ensino fundamental: contexto de problematização e produção de significados
Katia Gabriela Moreira Universidade São Francisco
2015
10. Biblioteca Escolar: memórias e práticas de assistentes técnicas pedagógicas
Graciela Juciane Minatti.
Universidade Regional de Blumenau
2015
11. Os gestos didáticos nos processos de sistematização dos conhecimentos linguísticos em 4.º e 5.º anos
Jonas Guilherme Vieira Universidade Regional de Blumenau
2016
12. Letramentos em contexto de aprendizagem ativa nas engenharias: “construindo o edifício das palavras para nele ser inquilino
Thais de Souza Schlichting
Universidade Regional de Blumenau
2016
13. “Era uma vez um man e um menino e eles montavam um schlitten”: letra(s em anda)mento em cenário de língua de imigração alemã
Emilia Rosenbrock Universidade Regional de Blumenau
2016
14. Projeto de letramento matemático: indicadores para a docência
Janio Elpidio de Medeiros
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
2016
Fonte: elaboração pessoal, agosto de 2017.
A partir do levantamento feito, identifiquei que a maioria das pesquisas é
voltada para o letramento escolar. Neste sentido, concordo com Soares (2010)
quando afirma a necessidade de estudos sob a perspectiva antropológica. Há muita
pesquisa na área da alfabetização, pois ainda são muitos os problemas sérios na
área da aquisição da tecnologia da escrita por crianças, jovens e adultos. No
entanto, há poucas pesquisas que complementariam ou elucidariam as pesquisas
sobre alfabetização, voltadas para identificar e buscar compreender as práticas de
leitura e escrita presentes desenvolvidas na escola em suas relações com as
práticas sociais de leitura e escrita para além das paredes da escola.
Diante disso, busquei responder ao seguinte problema: Que práticas de
letramento são vivenciadas pelas crianças da comunidade da Ilha de
Caratateua-PA?
23
O objetivo da pesquisa, “Práticas de letramento e educação nas vozes de
crianças: ler e escrever entre os sentidos e os bens culturais na Ilha de Caratateua-
PA”, foi analisar as práticas de letramento vivenciadas pelas crianças para
compreender suas relações além das práticas pedagógicas escolares, visto que
ainda não tinham sido descritas tais práticas na ilha referida.
Em termos mais específicos, os objetivos desmembraram-se em: mapear os
eventos de letramento que as crianças vivenciam (nos domínios lazer, religião,
escolar, comercial); identificar os gêneros e suportes presentes nas práticas de
letramento das crianças; e registrar os dizeres das crianças sobre os sentidos
atribuídos às suas práticas de letramento.
A intenção é que o resultado deste estudo contribua para a discussão acerca
dos letramentos como práticas sociais das crianças a partir de um enfoque
antropológico, no âmbito da Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na
Amazônia no PPGED-UEPA. Além disso, que contribua para o processo de
formação de professores que atuam na Educação Infantil e séries iniciais do ensino
fundamental, e para a reflexão sobre as implicações para políticas de educação e a
construção de práticas sociais e educacionais inovadoras.
Assim, esta dissertação foi organizada em quatro seções. Nesta primeira
seção, fiz a introdução do trabalho. Na segunda seção, intitulada “Letramento como
prática social e o lugar da criança nas pesquisas brasileiras no âmbito da sociologia
da infância”, foram feitas considerações teóricas acerca da teoria de letramento
social que norteia este estudo com base em Street (2010, 2012 e 2014) e Corrêa
(2010).
Fiz um breve histórico sobre algumas abordagens acerca do letramento, em
especial, a partir do momento em que o termo chega ao Brasil a partir dos autores
Soares (2010, 2012), Rojo (2009, 2012) e Kleiman (2012) e ainda relaciono as
práticas de letramento com o campo da sociologia da infância, que também norteia a
análise da pesquisa com crianças com autores como Lajolo (2016), Corsaro (2011) e
Spinelli e Quinteiro (2015).
Na terceira seção, intitulada “Percurso metodológico”, apresento o tipo de
pesquisa e abordagem; trata-se de uma pesquisa de campo com abordagem
qualitativa; o lócus, a Ilha de Caratateua; os sujeitos, quatro crianças entre 8 e 10
anos que estudam no 3º ano do ensino fundamental da Escola Bosque. Delineio os
aportes metodológicos, que deram sustentação a este estudo com base em Chizzotti
24
(2014), Minayo (2016a; 2016b), Neto (2002), Severino (2016) e Bath, Jones e Jones
(2012) e a produção e análise dos dados a partir dos instrumentos observação
participante, diário de campo, entrevista semiestruturadas, entrevista em aberto e
diário de letramento.
Na quarta seção, teci análises acerca das práticas de letramento das crianças
da Ilha de Caratateua com base nos estudos de Street (2014), Rizzini (2016),
Marcushi (2011; 2008), Munarim e Girardelo (2012) e Souza (2009; 2014), a partir
de 4 (quatro) eixos que surgiram dos enunciados das crianças: os sentidos do ler e
escrever; dos bens culturais, do fenômeno religioso e da escola. Registrei eventos
de letramento em seus ambientes familiares e em seus diários de letramento. Ao
final, trago algumas considerações e reflexões para continuar o ciclo da pesquisa.
25
Seção II
LETRAMENTO COMO PRÁTICA SOCIAL E O LUGAR DA CRIANÇA NAS
PESQUISAS BRASILEIRAS NO ÂMBITO DA SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA
É próprio do poder necessitar de um extraordinário esforço de ideologização para se legitimar; quando se despedaçarem as máscaras religiosas, construirá opulentas ideologias substitutivas. A fonte máxima das ideologias procede do esforço de legitimação do poder.
(Angel Rama)
Nesta seção, apresento um breve histórico sobre algumas abordagens acerca
do letramento, em especial, a partir do momento em que o termo chega ao Brasil
sob a perspectiva teórica esboçada por Street (2014), que norteou as análises desta
pesquisa sobre as singularidades das práticas de letramento das crianças da Escola
Bosque, na Ilha de Caratateua-PA. Tal teoria considera o letramento de um ponto de
vista antropológico, ou seja, como práticas sociais de leitura e escrita e os valores
atribuídos a estas pelos sujeitos de uma determinada cultura. Nesta seção, ainda
relaciono as práticas de letramento com o campo da sociologia da infância, que
também norteia a análise da pesquisa com crianças.
2.1. ABORDAGENS SOBRE LETRAMENTO
Há várias teorias e abordagens sobre letramento, é preciso situá-las no tempo e no
espaço. Segundo Bevilaqua (2013, p. 101),
A denominação Novos Estudos do Letramento foi cunhada por Gee (1991 apud STREET, 2003) quando da observação que emergiam, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, na América do Sul (Brasil), América no Norte (Estados Unidos) e Europa (Reino Unido), estudos que focavam muito mais o lado social do letramento do que seu lado cognitivo (STREET, 2003, p. 77). Logo, o atributo ‘novo’ está relacionado à ‘virada social’. Lankshear; Knobel (2011, p. 10-11), baseados em Gee (1996), reportam obras seminais que originaram, ou foram originadas, a partir da virada sociocultural.
Lankshear (1987) e Lankshear e Knobel (2003) desenvolveram o aparato
conceitual do que veio a se chamar os “Novos Estudos do Letramento” (NEL).
Alguns anos após o surgimento dos NEL, surgiu a abordagem sobre os múltiplos
letramentos, que foi firmada, pela primeira vez, em 1996, a partir de um colóquio do
Grupo de Nova Londres (GNL), um grupo de pesquisadores sobre letramento que
publicou um manifesto sobre a Pedagogia dos multiletramentos, termo cunhado pelo
grupo que abrange a multiculturalidade característica das sociedades globalizadas e
a multimodalidade dos textos por meio dos quais a multiculturalidade se comunica e
26
informa. Diferente do conceito de letramentos múltiplos que aponta para a
multiplicidade de práticas letradas, valorizadas ou não na sociedade,
multiletramentos aponta para multiplicidade cultural e semiótica de constituição dos
textos (ROJO, 2012).
Sendo assim, é importante refletir sobre a história e o uso do conceito de
letramento no Brasil. Durante os mais de 500 anos de existência do Brasil, segundo
Soares (2010), a palavra alfabetização designava o ato inicial de escolarização, não
existia em nosso léxico a palavra letramento. O termo surgiu nos anos 1980, há
quase 40 anos, mas só foi dicionarizado no começo do século XXI, nos anos 2000.
Para a autora, os pesquisadores brasileiros têm se ocupado com duas ações:
esclarecer o conceito de letramento, mas ainda não há um consenso; a outra ação
é, mesmo sem chegar a um consenso sobre o que é letramento, traduzir o
letramento em atividades na escola, avaliação de níveis de letramento de alunos e
da população em geral.
Desta forma, mais do que definir o que é letramento, ou como desenvolvê-lo
na escola ou no país, é importante refletir sobre os usos feitos por pesquisadores
sobre a palavra. Pois é essa diferença de conceituação que traz implicações para as
pesquisas e para as políticas educacionais. Segundo Soares (2012), letramento
origina-se do termo inglês literacy e chegou ao vocabulário da educação, das
ciências linguísticas e no discurso dos especialistas dessa área no Brasil na
segunda metade de 1980.
Uma das primeiras ocorrências está no livro de Mary Kato, de 1986, No
mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, que afirma que a língua falada
culta é consequência do letramento. Depois, em 1988, Leda Verdiani Tfouni, no livro
“Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso”, distingue alfabetização de
letramento. Possivelmente, esse é o momento em que o letramento ganha estatuto
de termo técnico no léxico dos campos da Educação e das Ciências Linguísticas.
Assim, a palavra letramento surgiu nos campos da Linguística Aplicada e da
Educação, a partir dos estudos de autoras como Magda Soares, Mary Kato, Leda
Verdiani Tfouni que atribuem significados a letramento nem sempre concordantes.
Soares (2012, p. 18), na perspectiva da alfabetização linguística, define que
letramento é “o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o
estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como
consequência de ter-se apropriado da escrita”. A autora considera que o letramento
27
traz repercussões políticas, econômicas, culturais, dentre outras, para indivíduos e
grupos que se apropriam da escrita, fazendo com que esta se torne parte de suas
vidas como meio de expressão e comunicação.
O conceito de letramento, segundo Kleiman (2012), passou a ser utilizado na
academia para distinguir os estudos sobre o impacto social da escrita dos estudos
sobre alfabetização. Na perspectiva dos letramentos críticos, a autora afirma que a
escola, a mais importante das “agências de letramento”, não se preocupa com o
letramento como prática social, mas apenas com um tipo de prática de letramento, a
alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico). Entretanto,
outras “agências” que os alunos frequentam, como a família, a igreja, a rua, mostram
outras orientações de letramento. Importante destacar que a autora apresentou os
dois modelos de letramento, autônomo e ideológico de Brian Street no cenário
brasileiro.
Na perspectiva da dicotomização entre alfabetização e letramento, Tfouni
(2010, p. 22) afirma: “a alfabetização se ocupa da aquisição da escrita por um
indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio-históricos
da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade”. Assim, abrange
alfabetizados e não alfabetizados, investiga as consequências da escrita a nível
individual e social e as influências da estrutura social nesse processo. A autora
destaca que fatores como poder, dominação, participação e resistência devem ser
considerados quando se procura entender a escrita e seus decorrentes,
alfabetização e letramento.
Compreende-se que o traço em comum nos estudos das autoras supracitadas
é que os significados do letramento a princípio foram “contextualizados no campo do
ensino da língua escrita”, voltados para as instituições formais de ensino (SOARES,
2010, p. 60). Outra peculiaridade na introdução do conceito de letramento no Brasil
foi a estreita relação com o conceito de alfabetização.
Sobre a abordagem dos multiletramentos, no Brasil, tem-se como
representante Rojo (2009, p. 98), que conceitua letramento como “os usos e práticas
sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra maneira, sejam
eles valorizados ou não valorizados, locais ou globais, recobrindo contextos sociais
diversos (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.)”. Partindo desse enfoque, a
autora argumenta que um dos objetivos da escola é possibilitar que os alunos
28
participem das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita, de
maneira ética, crítica e democrática.
Assim, é preciso levar em conta hoje os multiletramentos que incluem outros
meios semióticos no uso da linguagem como cores, imagens, sons, design,
disponíveis no computador e em materiais impressos que tornam “o letramento
tradicional (da letra/livro) em um tipo de letramento insuficiente para dar conta dos
letramentos necessários para agir na vida contemporânea” (ROJO, 2009, p. 107).
Essa exigência, que a contemporaneidade impõe, requer multiplicar as práticas e
textos que circulam e são estudados na escola. Assim,
O letramento escolar tal como o conhecemos, voltado principalmente para as práticas de leitura e escritas de textos em gêneros escolares (anotações, resumos, resenhas, ensaios, dissertações, descrições, narrações e relatos, exercícios, instruções, questionários, dentre outros) e para alguns poucos gêneros escolarizados advindos de outros contextos (literário, jornalístico, publicitário) não será suficiente [...]. Será necessário ampliar e democratizar tanto as práticas e eventos de letramento que têm lugar na escola como o universo e a natureza dos textos que nela circulam (ROJO, 2009, 108).
É possível citar diferentes pontos de vista, sem esgotar possibilidades, sob os
quais o letramento tem sido considerado. De um ponto de vista antropológico,
letramento são as práticas sociais de leitura e escrita e os valores atribuídos a essas
práticas. Do ponto de vista linguístico, são os aspectos da língua escrita que a
diferenciam da língua oral. De um ponto de vista psicológico, são as habilidades
cognitivas necessárias para compreender e produzir textos escritos. E do ponto de
vista educacional ou pedagógico, são as habilidades de leitura e escrita dos sujeitos
em práticas sociais que envolvem a língua escrita (SOARES, 2010).
É a partir do ponto de vista antropológico, que tem como principal
representante Brian Street, que se define o quadro teórico que fundamenta as
análises desta pesquisa. Os estudos do autor são contemporâneos aos NEL, mais
precisamente em 1984, a partir de sua obra Literacy in Theory and Practice.
Importante ressaltar que, embora seja uma permanente referência nos estudos e
pesquisas no Brasil, o conceito utilizado não é idêntico ao que o autor considera
como “letramentos”.
Diga-se também que não foram as perspectivas antropológicas e históricas
que introduziram a palavra letramento e o conceito de letramento em nosso país. Ao
contrário, segundo Soares (2010), essas perspectivas, antropológicas e históricas,
são incipientes no Brasil e começaram a ser assumidas em decorrência da questão
29
recente sobre a introdução da escrita em grupos indígenas remanescentes no
território brasileiro.
2.2 LETRAMENTOS SOCIAIS – A ABORDAGEM ANTROPOLÓGICA DE
BRIAN STREET
Brian Vincent Street atualmente é professor emérito do King’s College
London, vinculado ao setor de linguagem em educação, e professor visitante da
University of Pennsylvania. É formado em Letras, em um curso que envolveu
basicamente o estudo de obras literárias e a análise de estruturas linguísticas. Street
estava insatisfeito ao final do curso, que enfatizou mais o texto escrito do que as
práticas. Ele justifica que ao se fazer um curso de letras, lida-se com material
literário apresentado sob a forma de textos escritos e o estudo das obras envolve a
produção de inferências de diferentes naturezas. Para ele, deveria haver outras
formas de se chegar ao significado que as pessoas dão a tais textos (STREET,
2010).
Foi quando Street começou a trabalhar no Departamento de Antropologia
em Oxford e estava interessado em estudar, em vez do texto, as práticas. Assim, ele
começou a fazer investigações na área da etnografia e, em função da pesquisa de
campo que desenvolveu, centrou-se na área do letramento e posteriormente na
educação. Seus trabalhos são desenvolvidos em uma dimensão etnográfica, a partir
da tríade Linguagem, Antropologia e Educação. Essa trajetória contribuiu para que o
autor construísse “ideias e conceitos que têm a ver com a compreensão de
letramentos - no plural - através de contextos culturais” (STREET, 2010, p. 34).
Na década de 1970, Street desenvolveu trabalho de campo antropológico
em aldeias iranianas. A princípio, ele foi para pesquisar o processo de migração.
Entretanto, ao aprender a língua local, farsi, e acompanhar o movimento das
pessoas e a comercialização de seus produtos, ele começou a prestar atenção nas
práticas que envolviam a escrita. O pesquisador buscou suporte na literatura de
pesquisa para entender a complexidade dos usos e significados do letramento no
Irã. Entretanto, a literatura antropológica era ainda dominada pelo trabalho de
Goody, cujo livro Literacy in Tradicional Societies, de 1968, fortalece a noção da
“grande divisão” entre letramento e oralidade (STREET, 2010; 2014).
Foi na literatura dos “estudos culturais” que Street encontrou uma forma de
dar “um tratamento culturalmente mais sensível e afinado de como as pessoas usam
30
o letramento e o que ele significava para elas em suas vidas diárias e suas relações
sociais” (STREET, 2014, p. 69), a partir da obra de Richard Hoggart, The Uses of
Literacy, de 1957, que se concentrava na vida operária britânica; o autor examinou
alguns princípios desse estudo e fez um elo transcultural aplicando-os no contexto
cultural do Irã, onde processos semelhantes estavam acontecendo.
Street esboça uma distinção entre modelo “autônomo” de letramento e
modelo “ideológico” de letramento e defende este último como abordagem
alternativa e já empregada por pesquisadores contemporâneos, cuja preocupação
tem sido ver as práticas letradas como inextrincavelmente ligadas a estruturas
culturais e de poder em uma sociedade (SREET, 2014).
A concepção autônoma abrange o letramento em termos técnicos,
independente do contexto social, como uma variável autônoma. De acordo com essa
visão, apenas o contato escolar com a escrita, por exemplo, faria com que o
indivíduo aprendesse gradualmente outras habilidades para alcançar níveis mais
elevados de desenvolvimento. As práticas de letramento que a escola oferece são
pautadas neste primeiro modelo que é o mais promovido e validado, em cuja
concepção a aprendizagem da escrita é vista como algo essencialmente escolar,
universal e neutro.
Para acrescentar à discussão, Corrêa (2010, p. 627) assevera que a escrita
não é autônoma em relação à oralidade, há diversos letramentos e a escrita também
é heterogênea e “a escrita pensada como autônoma, descontextualizada e pura na
sua relação com as práticas orais/faladas é fonte de numerosos equívocos no
ensino”.
Corrêa (2010), em contraposição às teorias de Olson (1977) – para quem o
surgimento da imprensa historicamente teria constituído uma modalidade escrita
inteiramente autônoma em relação à língua oral – e, também, à teoria de Ong (1998)
– autor da tese da “grande divisão” entre letramento e oralidade, teoria que ainda
tem seguidores –, discute sobre a falta de autonomia da escrita em relação à fala no
próprio processo de escrita:
O aspecto visual da escrita é mobilizado, a característica da íntima relação escrita/fala, presente em sua gênese, vem frequentemente à tona, fazendo intervir, além disso, outras vinculações entre diferentes práticas orais e letradas. Esse tipo de emergência da gênese da escrita, rotineiramente flagrado pelos professores e identificado como “interferência da fala na escrita”, mostra que, no processo de escrita, são retomados, com frequência, aspectos de sua gênese, marcando seu estatuto não autônomo em relação à fala e às práticas sociais em que a oralidade é requisitada. Ao
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evidenciar que sua estabilidade é contingencial, a consideração do processo de escrita põe, portanto, em xeque, a ideia de autonomia da escrita tal como defendem Ong e seus seguidores (CORRÊA, 2010, p. 628).
Em contrapartida, o “modelo ideológico” compreende o letramento em
termos de práticas concretas e sociais, ou seja, as práticas letradas são produtos da
cultura, da história e dos discursos. As discussões propostas pelo autor revelam que
os sujeitos estão mergulhados em um mundo de conceitos, convenções e práticas,
que são influenciadas por diversas ideologias e relações de poder, especialmente se
considerarmos as culturas locais, questões de identidade e as relações entre os
grupos sociais (STREET, 2014).
O enfoque ideológico do letramento considera as práticas de letramento
ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de
práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos que os
alunos vivenciam e geralmente estão à margem da escola. Esse modelo
compreende a escrita não apenas do ponto de vista psico(linguístico), mas tem um
olhar histórico, antropológico e cultural mais abrangente. Street (2014) usa o termo
ideológico, em vez de cultural ou sociológico, para indicar que as práticas letradas
são aspectos não apenas da cultura, mas das estruturas de poder. E a ênfase da
neutralidade e autonomia dentro do “modelo autônomo” mascara essa dimensão do
poder.
Segundo (STREET, 2014, p. 150), textos escolares para crianças, questões
de interpretação de texto, a ênfase na escrita “correta”, têm um conteúdo ideológico:
Aprender distinções fonêmicas precisas não é somente um pré-requisito técnico de leitura e escrita, mas um modo fundamental de ensinar novos membros da pólis a como aprender e discernir outras distinções, a fazer discriminações culturais adequadas em sociedades cada vez mais heterogêneas. Esses discursos secundários, como Gee denomina os letramentos fornecidos por instituições oficiais, permitem a um estado centralizador afirmar a homogeneidade contra a heterogeneidade evidente na variedade de discursos primários dentro da qual as comunidades socializam seus membros (Gee, 1990). Ensinar a conscientização desses conflitos e os modos como as práticas letradas são lugares de disputas ideológicas já é em si um desafio ao modelo autônomo de dominante que mascara esses processos.
É direito de todo cidadão que frequenta a escola ter acesso a uma educação
linguística crítica, pois as práticas letradas estão situadas em lugares de disputas
ideológicas. Neste sentido, o modelo ideológico não nega a habilidade técnica ou os
aspectos cognitivos da leitura e da escrita, mas considera que estão “encapsulados
em todos culturais e em estruturas de poder” (STREET, 2014, p. 172). Deste modo,
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Street utiliza o termo ideológico no sentido empregado na antropologia, na
sociolinguística e nos estudos culturais contemporâneos, em que a ideologia é o
lugar de tensão entre autoridade/poder e resistência/criatividade individual. Essa
tensão ocorre por meio de práticas culturais, uma delas é o letramento.
2.2.1 Letramento colonial e letramento dominante
Há muitas maneiras pelas quais a aquisição do letramento afeta uma
sociedade. Para explicitar os modos como essa aquisição se vincula a questões
mais profundas de ideologia, cultura e epistemologia, Street (2014) traz para o
debate dois aspectos de aquisição: o letramento colonial e o letramento dominante.
O letramento “colonial” acontece quando uma determinada cultura transfere
seu letramento para outra cultura; o aspecto dominante da aquisição é o impacto da
cultura sobre os portadores desse letramento: aqueles que o recebem terão mais
consciência na natureza e do poder da outra cultura e não apenas dos aspectos
técnicos da leitura e da escrita. Assim, de certa forma, muitos valores “ocidentais”
têm sido transferidos para sociedades não ocidentais. Para exemplificar, Street
(2014) traz o exemplo de como os normandos introduziram o letramento na
Inglaterra medieval e como os missionários de Londres ensinaram os fijianos a ler
em Madagascar no contexto colonial.
Na Inglaterra medieval, houve uma mudança rumo à “mentalidade letrada”,
maneira de pensar, panorama cultural, ideologia e não apenas mudança de
procedimentos técnicos. Os membros da cultura passaram a compartilhar novas
opiniões sobre o status da palavra escrita. Por exemplo, no século XI, o direito à
terra e alegações de veracidade eram por meio de exibição de espada, uso de selo
ou testemunho oral. No século XIV, já havia cavaleiros e o patriarcado já se referiam
ao pipe rolls, documento validado por um tabelião ou cartas datadas (STREET,
2014, p. 46). Assim, é possível perceber profundas transformações no senso de
identidade e no que consideravam a base do conhecimento.
A difusão da documentação comercial exigiu sistema de datação, houve
choque contra crenças religiosas, pois na Inglaterra medieval a divisão do tempo era
fornecida pela teologia cristã. Isso era uma questão sacramental e não algo a ser
aplicado a matérias comerciais. Assim, “a datação secular foi organizada com
referências a eventos como coroação de um rei, enquanto o calendário religioso
permaneceu independente da prática comercial” (STREET, 2014, p. 47). A fronteira
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entre sagrado e profano ficou nítida entre as novas práticas letradas que se
acomodaram dentro do sistema de crenças da sociedade em que estavam sendo
introduzidas gradualmente.
No período pré-normando, o que conferia legitimidade a textos escritos era
sua associação à verdade cristã. A bíblia era objeto sagrado não apenas pelo
conteúdo, mas em sua forma e contexto material. “Algumas bíblias, ricamente
iluminadas e preservadas em mosteiros, eram objeto de estima na qualidade de
reflexos da glória de Deus, a requintada obra era apreciada não só em termos
estéticos, mas como prova da Beleza e da Bondade do Criador” (STREET, 2014, p.
47). Quando começaram a circular documentos comerciais, eles também foram
adornados como marcas de veracidade e status. Assim, o ornamento mostrava-se
tão importante quanto as palavras escritas.
Em Madagascar, Street (2014) aponta estudos que analisam quando os
missionários levaram prensas de Londres para ensinarem os fijianos somente a ler.
Houve a introdução do alfabeto latino e a imprensa, suplantando a escrita árabe. A
bíblia foi traduzida para o malgaxe. Quando a sociedade missionária de Londres foi
expulsa, o cristianismo foi banido, mas o letramento floresceu. Na cultura merina, os
anciãos passavam de forma oral o conhecimento aos mais jovens; isso afirmava
autoridade política, representava reinvindicação de poder dentro da estrutura de
poder através de sua genealogia e narrativas locais. O conhecimento era validado
por meio da transmissão de uma geração para outra.
Desta forma, os missionários com a bíblia, com relatos da história e dos
costumes dos ancestrais e genealogia dos missionários, eram visto como
reivindicando sua própria autoridade. Isso foi visto pelos merinas como um desafio e
uma forma mais poderosa, impressionante e eficiente do mesmo tipo de
conhecimento. Uma nova tecnologia fora empregada para um propósito antigo para
fazer reivindicações concorrentes. Depreendendo isso, os merinas “reagiram à bíblia
dos missionários escrevendo sua própria bíblia, com suas próprias narrativas,
genealogia e relatos de importantes eventos legitimadores (STREET, 2014, p. 50).
A adoção da forma escrita representou uma continuação da prática oral
tradicional por meio do letramento, um modo de revidar o ataque dos recém-
chegados com os recursos trazidos por eles mesmos. Eles “adotaram aspectos da
cultura forasteira em suas próprias convenções, ao mesmo tempo em que rejeitavam
a posição de superioridade implícita dos europeus em sua estrutura de poder”
34
(STREET, 2014, p. 50). Usaram a escrita com propósitos administrativos e
ideológicos. Para reafirmar sua história e seus costumes contra a ameaça política
representada pelos missionários.
Os malgaxes acomodaram formas letradas dentro de seu um sistema de
relações sociais e foi em termos desse sistema que o letramento foi importante e
sua relação com o conhecimento ocorreu a partir dos novos usos. Tanto o uso da
bíblia cristã, como o uso da bíblia malgaxe “serviram para manter convenções
sociais relativas à afirmação de poder e à validação do conhecimento” (STREET,
2014, p. 51).
Portanto, o letramento colonial ocorre quando uma cultura estrangeira
introduz uma forma particular de letramento em meio a um povo colonizado como
parte de um processo mais amplo de dominação. Conforme os exemplos citados,
em Madagascar, foi para difundir religião e estabelecer estrutura burocrática para
governar, e, na Inglaterra medieval, foi para centralizar autoridade e transferir o
direito à terra para longe das fontes locais.
Importante ressaltar que as populações locais não foram passivas. Ao
contrário, adotaram elementos da nova ideologia ou das formas de letramento à
crenças e práticas nativas. Sempre há letramento local anterior a qualquer
colonização. A “novidade” são as formas particulares dos usos e não simplesmente
da presença do letramento. Nos processos de aprendizagem do letramento sempre
há adaptação, resistência e encapsulação em relação aos seus usos na cultura
subjugada.
Outro aspecto da aquisição é o letramento dominante, que acontece quando
há “um grupo dominante dentro de uma sociedade que se responsabiliza por difundir
o letramento a outros membros dessa sociedade e a subculturas dentro dela,
exercendo sua ‘dominação interna’” (STREET, 2014, p. 45). Um exemplo são as
campanhas de alfabetização no Irã durante os anos de 1960 a 1970.
Street (2014) explica que as campanhas foram dirigidas a mães e seus
filhos, meninos e meninas. Pois os pais trabalhavam e ficavam muito tempo fora de
casa. Eram as mães que passavam os valores às crianças. Portanto, entenderam
ser necessário educar as mães como o caminho para remover barreiras sociais,
culturais e psicológicas e avanço da nação. Ao terminar as últimas séries da escola
rural local, a meninas relutavam em se mudar para se formar como professoras.
Foram instaladas faculdades de formação de professores em comunidades locais
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para moradores da zona rural para voltarem às aldeias para ensinar seus
conterrâneos aldeões.
Mas as mulheres prosseguirem na educação era possibilidade remota,
porque precisavam de parentes na cidade para ficar e isso significa romper a
tradição de a mulher casar e cuidar dos filhos. O emprego mais provável seria o de
professora, mas não tinha status, “devido ao baixo salário e aos padrões de vida
medíocre das professoras que conheciam” (STREET, 2014, p. 55).
Para os meninos,
a principal imagem do novo emprego ao qual essa educação poderia conduzir era a que representava trabalho em grandes mesas de escritórios limpos e modernos, com altos salários e seguridade, em aberto contraste coma dependência rural dos caprichos do clima e com o desconforto geral de trabalhar na lavoura” (STREET, 2014, p, 55).
Entretanto, muitos ainda permaneceram na aldeia após cursar a escola rural
e não prosseguiram nas escolas urbanas. O autor ainda mostra “a importância de
compreender as crenças locais e as percepções locais de letramento, em vez de
impô-los de fora” (STREET, 2014, p. 56). Na aldeia onde ocorreu a pesquisa, muitos
garotos que tiveram “sucesso” no sistema educacional ficaram sem emprego do tipo
que almejaram com o declínio da economia em 1970. Assim, acharam melhor voltar
para os pomares e vendas de frutas que geravam lucro, mas sua educação não os
preparou para isso. Os que permaneceram na aldeia consideravam que sua
educação na maktab, escola corânica local, os preparava melhor para o novo
letramento comercial exigido pelos empresários na aldeia. Quem ficou na aldeia teve
a chance de permanecer mais rico e seguro do que os formados no letramento
moderno do sistema educacional do Estado.
Existiam formas de educação e letramento no Irã rural, as maktabs e grupos
de leituras nas casas para ler o alcorão com certa discussão, interpretação e crítica.
Esses eram os fundamentos do letramento local antes das intervenções estatais
ocidentais. Os alunos das maktab não eram iletrados, embora eram vistos assim nos
testes formais das escolas e do governo.
As habilidades e processos desenvolvidos dentro do letramento da maktab eram, em termos de pedagogia ocidental, mais “ocultos” do que explícitos, mas forneciam a base importante para que alguns aldeões construíssem, a partir dela, uma forma de letramento comercial (STREET, 2014, p. 57).
Não se pode comparar, segundo Street (2014), letramento da aldeia com
conservadorismo atrasado (estereótipo) e escolarização moderna com progresso e
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pensamento crítico. Foi o letramento da maktab a base para que os aldeões
construíssem o letramento “comercial” que lhes permitisse lucrar com a alta do
petróleo em 1970. Criaram infraestrutura para produção e distribuição das frutas da
aldeia para as áreas urbanas. Adaptaram seu letramento na maktab a novas
exigências: assinar cheque, emitir nota fiscal, catalogar clientes e contratos em livro-
caixa, calcular estoque de frutas. Surgiram habilidades elaboradas de novas
maneiras e adotaram novas convenções, específicas às empresas em expansão.
As percepções e usos locais do letramento podem diferir dos da cultura
dominante e devem ser levados em conta. Entretanto, os educadores só viram
atraso e ignorância na aldeia e por isso deixaram de identificar as características da
cultura e do letramento local capazes de facilitar a nova organização econômica.
Poderiam ter examinado a forma como os aldeões percebiam os diferentes
letramentos e como faziam adaptações de acordo com seus interesses. A realidade
é uma mescla de convenções orais e letradas, e a introdução de formas específicas
de letramento representa uma mudança nessas convenções e não um processo
inteiramente novo (STREET, 2014).
Alguns especialistas argumentam que as campanhas de alfabetização
devem considerar as pesquisas dos antropólogos sobre uma variedade de práticas
letradas em culturas diferentes e não impor valores culturais dos próprios
planejadores. Isso foi contestado e considerado como “relativismo cultural”, no qual
os letrados dizem ao terceiro mundo que seus iletrados são sábios, não ignorantes e
que é digno ser iletrado. Isso é visto como uma tentativa de congelar valores e
técnicas locais em detrimento de ensinar novas competências comunicativas que o
letramento proporciona. Mas essa contestação também é paternalista, já que
despreza as competências comunicativas e a formas de letramento já existentes.
Não se trata de congelar ou modernizar. Mas a questão “é a sensibilidade para com
as culturas locais e do reconhecimento do processo dinâmico de sua interação com
culturas e letramentos dominantes” (STREET, 2014, p. 59).
Para Street (2014), os exemplos da Inglaterra medieval, de Madagascar e do
Irã mostram que sempre há mescla de convenções novas e antigas nos processos
de letramento. Há interação e mudanças contínuas. Pessoas conservam diferentes
letramentos usando-os para diferentes propósitos. Assim, os letramentos locais não
podem ser acomodados em um único modelo autônomo. O letramento é parte da
prática ideológica e o modo como as “variações locais” se “acomodam” ao caráter
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hegemônico das campanhas levantará as questões do futuro do letramento que só
poderão ser respondidas em termos de um modelo ideológico.
2.2.2 Práticas de letramento e eventos de letramento
Street (2014) afirma que o modelo autônomo de letramento tem sido um
aspecto dominante no campo da educação; ele o chama de “autônomo”, porque é
uma postura que representa a si mesma como natural e que traz consequências
para o desenvolvimento pessoal e não ideologicamente situada. O autor estabelece
o modelo ideológico como contrapartida, que inclui os aspectos do processo escrito
e oral, mas estão encaixados em relações de poder. Existe uma variação de
letramento em diferentes práticas e Street define dois conceitos operacionais que
têm permitido aos pesquisadores aplicar este princípio geral a dados específicos:
eventos de letramento e práticas de letramento.
A autora Shirley Heath cunhou a expressão “eventos de letramento”,
baseada na teoria que analisa eventos de fala e é usada como ferramenta de
pesquisa para ter a noção de evento de letramento no qual se pode dizer que há ali
uma atividade, um evento (STREET, 2010, p. 38). Street utiliza o conceito de
práticas de letramento para se referir a aspectos que possibilitem ver padrões em
eventos de letramento. É essa padronização que carrega significado para os
participantes.
Para Heath, a expressão evento de letramento se refere “a qualquer ocasião
em que a escrita é essencial à natureza das interações dos participantes e a seus
processos interpretativos” (STREET, 2014, p. 18). Por exemplo, “palestra” é um
clássico evento de letramento: há escrita integrada na interação entre os
participantes, o palestrante tem anotações, pode haver projetores em que se
mostram informações, as pessoas podem fazer anotações sobre o que está sendo
dito, que podem ser arquivadas posteriormente ou utilizadas em outro momento ou
até jogadas fora. Esses são aspectos que fazem parte da descrição do evento
(STREET, 2014, p. 146).
No entanto, cada participante possui internalizadas convenções a respeito
de um evento de letramento. Uma palestra dentro de uma universidade faz parte de
práticas acadêmicas de letramento, pois as falas, os discursos, a escrita e os tipos
de texto e seus conteúdos que circulam neste evento sinalizam e atribuem o
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significado a natureza do evento acadêmico. É o padrão que permite comparar
conjuntos de práticas, por exemplo, diferenciar eventos de letramento dentro de
práticas acadêmicas de letramento de outras práticas como religiosas ou comerciais
(STREET, 2010).
O conceito de práticas de letramento é mais abstrato e se refere ao
comportamento e às conceitualizações sociais e culturais que conferem sentido aos
usos da leitura e/ou escrita. As práticas de letramento incorporam os eventos de
letramento, que são ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, e os
modelos populares desses eventos e suas preconcepções ideológicas (STREET,
2014, p. 18). Todos têm em suas mentes “modelos culturalmente construídos de
eventos de letramento” e a prática de letramento indica esse nível dos “usos e
significados culturais da leitura e da escrita”, envolve as concepções do processo de
leitura e escrita que as pessoas sustem quando estão engajadas no evento
(STREET, 2014, p. 147).
Entretanto, Street evita, ao examinar o aspecto cultural do letramento, criar
uma lista reificada: “aqui está um cultura, aqui está seu letramento; aqui está outra
cultura, aqui está seu letramento” (STREET, 2014, p. 147). A noção de
multiletramentos é crucial para contestar o modelo autônomo, entretanto requer
alguns cuidados. Pois, “quando se tem práticas de letramento soc