UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ
Fernanda Ribeiro dos Passos
IDEOLOGIAS NA DECISÃO JUDICIAL: CRISE, NEUTRALIDADE E LEGITIMIDADE
CURITIBA 2010
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Fernanda Ribeiro dos Passos
IDEOLOGIAS NA DECISÃO JUDICIAL: CRISE, NEUTRALIDADE E LEGITIMIDADE
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Direito da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Dr. André Peixoto de Souza.
CURITIBA 2010
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TERMO DE APROVAÇÃO Fernanda Ribeiro dos Passos
IDEOLOGIAS NA DECISÃO JUDICIAL: CRISE, NEUTRALIDADE E LEGITIMIDADE
Este trabalho de conclusão de curso (monografia) foi julgado e aprovado para a obtenção do título de Bacharel em Direito no Programa da Faculdade de Ciências Jurídicas da Universidade Tuiuti do Paraná.
Curitiba, __ de _________ de 2010.
____________________________________ Prof. Dr. Eduardo de Oliveira Leite
Universidade Tuiuti do Paraná/Núcleo de Monografias
Bacharelado em Direito/Faculdade de Ciências Jurídicas Universidade Tuiuti do Paraná
Orientador: ____________________________________ Prof. Dr. André Peixoto de Souza Universidade Tuiuti do Paraná/Curso de Direito ____________________________________ Prof. Dr. Universidade Tuiuti do Paraná/Curso de Direito ____________________________________ Prof. Dr. Universidade Tuiuti do Paraná/Curso de Direito
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Aos meus pais, Valter e Nilza, pela formação humana que a mim proporcionaram, pelo constante exemplo de perseverança e coragem e pela raiz do amor pela busca do conhecimento.
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À minha família, pelo incentivo e apoio constantes. Aos amigos queridos, de perto e de longe, que sempre ajudam a tornar a caminhada mais feliz, em todos os momentos. Ao professor André Peixoto de Souza, pelos ensinamentos e pela orientação na realização desta pesquisa.
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A venda sobre os olhos da Justiça não significa apenas que não se deve interferir no direito, mas que ele não nasceu da liberdade. Theodor Adorno e Max Horkheimer
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RESUMO
A pesquisa tem como foco central questões envolvendo o princípio da neutralidade do juiz. O tema foi vislumbrado desde seus precedentes históricos até a contemporaneidade, sendo tratado do ponto de vista filosófico. De uma visão exógena à dogmática jurídica, foi estabelecida uma crítica aos seus pressupostos - especialmente o de que o juiz é neutro em suas decisões. Buscou-se demonstrar, além da impossibilidade de um estado de neutralidade por parte do magistrado - pela influência ideológica -, a necessidade de uma superação do paradigma positivista, hermenêutico, e da legitimidade da decisão judicial, devendo o julgador, no ato decisório, estar atento à realidade social, na qual está inserido. Foi privilegiada a pesquisa bibliográfica. O estudo é relevante tendo em vista, sobretudo, os desdobramentos da decisão judicial para a sociedade. Palavras-chave: Neutralidade; Dogmática; Positivismo; Decisão judicial; Legitimidade.
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ABSTRACT
The research intends to investigate principle of neutrality of the judge. The subject was envisioned from its historical precedents to the contemporary, being treated in the philosophical point of view. A vision to exogenous legal dogmatics established a critique of its assumptions - especially for the judge to be neutral in their decisions. We tried to demonstrate, in addition to the impossibility of a neutral state by the magistrate - the ideological influence -, the need for overcoming the positivist paradigm, hermeneutic, and the legitimacy of judicial decision, the judge shall, in the act of decision, be aware of social reality in which it appears. Was privileged to literature. The study is relevant in view, especially, the ramifications of the ruling society. Keywords: Neutrality; Dogmatic; Positivism; Judicial decision; Legitimacy.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................10
2 O PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DO JUIZ........................................................12
2.1 CONCEITO ..........................................................................................................12
2.2 ANOTAÇÕES HISTÓRICAS................................................................................14
2.3 A DOGMÁTICA JURÍDICA...................................................................................17
3 A CRISE DO DIREITO ............................................................................................23
3.1 A CRISE DA HERMENÊUTICA ...........................................................................23
3.2 DECISÃO E IDEOLOGIA .....................................................................................27
3.3 A PRÉ-CONVICÇÃO E O PRÉ-JULGAMENTO...................................................32
4 A LEGITIMIDADE DA DECISÃO JUDICIAL ..........................................................35
4.1 CRÍTICA AO PARADIGMA ..................................................................................35
4.2 SUBJETIVIDADE E LEGITIMIDADE....................................................................37
4.3 NOVOS RUMOS? ................................................................................................38
5 CONCLUSÃO .........................................................................................................42
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................44
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1 INTRODUÇÃO Ao longo da história - desde os períodos mais remotos até a atualidade - a
figura do julgador no processo sempre desempenhou um papel de inquestionável
relevância. O magistrado sempre foi visto com certo ideal de perfeição, com um ideal
de isenção axiológica, como um ser que deveria despir-se de toda influência
ideológica, transcendendo sua própria natureza humana em busca da famigerada
neutralidade.
O princípio da neutralidade do juiz teve seu apogeu na fase pós-Revolução
Francesa, pari passu com o positivismo jurídico, em razão da nova ordem política e
jurídica instituídas, com base nos ideais iluministas de liberdade, tendo sido
perpetuado em nossa cultura até os presentes dias.
Convêm, entretanto, refletir criticamente acerca do dogma da neutralidade,
tendo em vista que o magistrado não está imune à realidade social, mas nela está
inserido, não sendo um sujeito isento.
A crítica ainda se faz necessária quando se trata da efetividade da decisão,
pois em oposição à base da doutrina positivista, além do Direito não ser oriundo
unicamente da fonte estatal, o juiz não pode ser um mero aplicador de leis, mas
deve sempre perquirir uma decisão calcada nos valores da sociedade, da qual
participa.
Assim, dedicamos a pesquisa a analisar o tema, conhecendo quais as
circunstâncias históricas - jurídicas, políticas e sociais - que favoreceram tal
concepção, além de seus efeitos na atuação jurisdicional. Ainda analisamos o papel
do órgão judicante na sociedade atual e a interferência do modelo positivista neste
âmbito.
Os fins do trabalho permitiram uma escolha pela metodologia da pesquisa
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bibliográfica, ressaltando a abordagem filosófica do tema.
O trabalho foi dividido em três pontos principais. No primeiro capítulo partimos
da conceituação de neutralidade, seguida pela distinção da imparcialidade do juiz.
Logo após, abordamos a visão da dogmática jurídica - para a qual o juiz deve ser
neutro -, e a necessidade de superação de tal visão.
No segundo capítulo tratamos da crise do Direito, discorrendo sobre a crise
da hermenêutica, enfatizando a necessidade de uma decisão não apenas vinculada
à letra da lei. Enfatizamos ainda a influência da ideologia (tanto aquela pessoal,
quanto aquela da classe no poder) na decisão judicial.
O capítulo final foi direcionado para a legitimidade da decisão judicial.
Criticamos o paradigma positivista de uma decisão legítima e tratamos da
ilegitimidade da decisão do juiz, nos casos em que este deveria ser imparcial e
afastado de interesses relativos à causa, porém decide de forma parcial, e
finalizamos com a nossa tese sobre o tema, criticando o dogmatismo no ensino
jurídico, e defendo a necessidade de existência de uma postura por parte do
magistrado, que seja calcada na ética e nos valores sociais do seu tempo.
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2 O PRINCÍPIO DA NEUTRALIDADE DO JUIZ 2.1 CONCEITO
Derivado de “neutro”, o vocábulo “neutralidade”, em que pese o seu sentido
etimológico, deriva do latim neutralis, que significa “indiferente”. Assim, a
neutralidade ocorre com o não envolvimento, com o afastamento, com a indiferença.
De acordo com o Dicionário Aurélio, se atribui a qualidade de neutro àquele
1. Que não toma partido nem a favor nem contra, numa discussão, contenda, etc.; [...] 2. Que julga sem paixão; imparcial, neutral.[...] 5. Indefinido, vago, indistinto, indeterminado. 6. Que se mostra indiferente, insensível; [...]. [grifo nosso] (2004, p.1405).
No entendimento de Plácido e Silva, a neutralidade,
[...] em sentido genérico quer significar o estado de neutro, ou seja, a situação daquele que se coloca indiferente ou fica imparcial diante da questão ou luta ferida entre outros. Assim é a situação de quem não tem ou não mostra qualquer interesse a respeito do que outros estão fazendo [...]. (2004, p. 952).
Sob o prisma científico a neutralidade é caracterizada com o não
envolvimento do cientista com seu objeto de conhecimento, devendo se manter
isento de subjetivismos durante o processo de investigação, limitando-se apenas a
uma exposição objetiva da coisa investigada.
Transportando tal ideia para a esfera jurídica, especificamente no que tange
ao órgão julgador, a neutralidade se traduz no seu não envolvimento interior com o
caso concreto, com o objeto da lide, devendo proferir sua decisão, não com
fundamentação ética, valorativa, mas com embasamento na lei, no direito positivo,
com isenção de qualquer motivação que seja estranha aos preceitos normativos,
necessitando, para tanto, que tal fundamentação seja prévia à decisão, ou a priori.
Aponta Martins que;
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[...] definir o que seja neutralidade é algo complexo, significando dizer que o magistrado deve decidir com ausência de valores, sem prevenção contra ou a favor de pessoas envolvidas no litígio. Isso significa inferir que o juiz deve agir de forma lógica, dentro do que foi apresentado, livre de qualquer interferência ou ingerência. (2007, p. 1).
Frente a tais considerações, e diante da tendência de se considerar a
neutralidade e a imparcialidade do juiz como sinônimos - não obstante a
subjetividade semântica do termo - convêm ressaltar que a ideia de neutralidade,
embora possa ter alguma relação com a imparcialidade do magistrado, com esta
não se confunde, sendo que a imparcialidade (embora não raras vezes verificada
apenas simbolicamente), se traduz como pressuposto de validade processual,
assegurando o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, estando os
dois últimos previstos no Artigo 5°, inciso LV, da Constituição da República, segundo
o qual “aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a
ela inerentes; [...]”.
No tocante à imparcialidade, expõem Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada
Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco que,
o juiz, por força de seu dever de imparcialidade, coloca-se entre as partes, mas equidistante delas: ouvindo uma, não pode deixar de ouvir a outra; somente assim se dará a ambas a possibilidade de expor suas razões, de apresentar suas provas, de influir sobre o convencimento do juiz. Somente pela soma da parcialidade das partes (uma representando a tese e a outra, a antítese), o juiz pode corporificar a síntese, em um processo dialético. É por isso que foi dito que as partes, em relação ao juiz, não têm papel de antagonistas, mas sim de “colaboradores necessários”: cada um dos contendores age no processo tendo em vista o próprio interesse, mas a ação combinada dos dois serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve. [grifo nosso] (2007, p. 61).
Werner Goldschmidt, (1950, p. 208 apud LOPES JR., 2007, p. 129) declara
que “o termo partial expressa a condição de parte na relação jurídica processual, e
por isso, a impartialidade do julgador constitui uma consequência lógica da adoção
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da heterocomposição, por meio da qual um terceiro impartial substitui a autonomia
das partes”. Lopes Jr. segue apontando que “a imparcialidade do julgador
corresponde exatamente a essa posição de terceiro que o Estado ocupa no
processo, por meio do juiz, atuando como órgão supra-ordenado às partes ativa e
passiva [...];” é “um estar alheio aos interesses das partes na causa [...]”. (ibid, p.
129).
No que se refere à neutralidade, alude Martins que:
[...] a neutralidade é a possibilidade da manutenção da indiferença diante de um quadro que manifesta posições antagônicas; posições estas que precisam ser pacificadas no âmbito do intermediário social, que é o local privilegiado assumido pelo Direito. (2007, p. 69).
Assim, “não se deve de modo nenhum confundir a imparcialidade do juiz,
que se refere ao objeto do litígio e às pessoas nele envolvidas, com a neutralidade
em face dos valores”. (AZEVEDO, 1989, p. 76).
O princípio da imparcialidade do juiz versa sobre o seu distanciamento das
partes, no que se refere ao oferecimento de iguais possibilidades a ambas, dentro
da relação jurídico-processual, possibilitando a elas, a amplitude de defesa.
Enquanto que o princípio da neutralidade, de natureza jurídico-filosófica, diz respeito
ao não envolvimento do julgador com o litígio, relativo ao seu elemento psíquico,
emocional, motivações pessoais, ideologia1, senso de justiça, etc.
2.2 ANOTAÇÕES HISTÓRICAS
Observando o contexto histórico ao final do Século XVIII, mais precisamente
com a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea, tendo como
marco a Revolução Francesa, pode-se verificar um ambiente de profundas
1 Trataremos das questões envolvendo a decisão e a ideologia no item “3.2” da pesquisa.
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transformações, tanto de ordem social, como política, jurídica e econômica.
Época de queda do Antigo Regime, do fim do absolutismo do poder, a
Revolução se deu quando o terceiro estado, sendo liderado pela burguesia, decidiu
levar as últimas consequências os ideais iluministas, tendo como uma das grandes
transformações o nascimento de um novo paradigma de Estado: o Estado Liberal.
Com a necessidade de manter os direitos e garantias individuais, na França
pós-revolucionária é instituída uma nova ordem político-jurídica: o Estado de Direito -
com o constitucionalismo -, trazendo a separação dos poderes.
Para Montesquieu, o Estado deveria ser organizado com a divisão dos três
poderes, pois acreditava ser esta a garantia do equilíbrio estatal e da liberdade,
como afirma dizendo que “não haverá também liberdade se o poder de julgar não
estiver separado do poder legislativo e do executivo”. (1973, p. 157).
Com a nova ordem, os reflexos em âmbito jurídico foram inúmeros, como o
início da concepção positivista do Direito, sendo as leis emanadas do Estado, a
única fonte de normas jurídicas.
Marinoni, em seu “Teoria Geral do Processo”, explica que
o princípio da legalidade, assim, acabou por constituir um critério de identificação do direito; o direito estaria apenas na norma jurídica, cuja validade não dependeria de sua correspondência com a justiça, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa. (2006, p. 25).
“Tinha-se o Direito como conjunto geral, abstrato, hierarquizado, unitário,
fechado, completo, auto-suficiente e coerente de normas promulgadas pelo Estado”.
(PORTANOVA, 2003, p. 86).
Assim, houve também, uma extrema limitação à atuação do órgão judicante
no que diz respeito ao alcance da sua decisão.
Marinoni ensina que:
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o positivismo jurídico é tributário dessa concepção de direito, pois, partindo da idéia de que o direito se resume à lei, e, assim, é fruto exclusivo das casas legislativas, limita a atividade do jurista à descrição da lei e à busca da vontade do legislador. (2006, p. 29).
Montesquieu defende também a neutralidade, a adstrição do juiz à lei na
prolação da sentença, com o escopo de resguardar ao máximo as liberdades
individuais. A letra da lei era o limite. Afirma que “os juizes de uma nação não são,
como dissemos, mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres
inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor”. (1973, p. 160).
Como descreve Marinoni,
[...] essa intenção teve repercussão sobre o Estado-Juiz, uma vez que de nada adiantaria "formatar" a atividade do legislador e permitir ao juiz interpretar a lei em face da realidade social. Dizia Montesquieu, então, que o julgamento deveria ser apenas um "texto exato da lei", pois de outra maneira constituiria "uma opinião particular do juiz" e, dessa forma, "viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos nela assumidos”. (2003, p. 1).
A sentença deveria ser desprovida de qualquer carga axiológica ou
hermenêutica, tendo de ser proferida com base em um silogismo, de um modo
lógico-formal, somente com fundamento legal.
O cenário à época do absolutismo e a fase de transição para o Estado
Liberal são retratados por Foucault em seu “Vigiar e Punir” - já um clássico na
Academia -, sobretudo no contexto do sistema punitivo empregado. As penas eram
as de suplício, onde o delinquente era submetido aos mais intensos tipos de torturas
corporais, em praça pública, como forma de ostentação do ato. Foi uma “época de
grandes ‘escândalos’ para a justiça tradicional”. (FOUCAULT, 2009).
Como Foucault (2009) apresenta, ao final do Século XVIII o espetáculo
punitivo passou a ser motivo de vergonha, e visto de forma negativa. O foco da
repressão penal, paulatinamente, deixou de ser o corpo, passando a incidir sobre a
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liberdade do criminoso. Foi um período de transição e de instituição de uma nova
ordem política e jurídica, onde a punição, tal e qual era aplicada, passou a ser
entendida como que guardando com o crime profundas semelhanças, a ele se
equiparando.
Expõe Foucault que,
[...] como as funções da cerimônia penal deixavam pouco a pouco de ser compreendidas, ficou a suspeita de que tal rito que dava um fecho ao crime matinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassando-o em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a freqüência dos crimes, fazendo o carrasco se parecer como criminoso, os juizes aos assassinos, invertendo no último momento os papeis, fazendo do supliciado um objeto de piedade e de admiração. (ibid., p.14).
Como reflexo da busca pela igualdade e do princípio da legalidade na nova
ordem jurídica, a norma contida no artigo 3° do código francês de 1791, expôs que
“todo condenado à morte terá a cabeça decepada”; como afirma Foucault, delitos do
mesmo gênero seriam punidos com pena de mesmo gênero, não importando a
condição do culpado ou a sua classe. (2009, p. 17).
2.3 A DOGMÁTICA JURÍDICA
O caráter dogmático2 adentrou a figura do Direito pelo Estado, com o Direito
por ele posto. É herança do Estado Liberal Clássico, tendo lá suas raízes e sendo
(ainda) cultivada pela doutrina tradicional até a contemporaneidade.
Pelo paradigma dogmático o direito é concebido simplesmente como aquele
dos diplomas legais, positivado, dissociado dos fenômenos sociais, estático e
abstrato. No entanto, tal concepção “menospreza e falseia seu aspecto dinâmico, a
razão mesma de sua existência, que tão somente se desvela no momento em que
2 Os dogmas traduzem-se naquilo que não é passível de crítica, de discussão, de oposição. São "verdades” pressupostas e inquestionáveis.
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suas normas são aplicadas”. (AZEVEDO,1989, p. 11).
A visão tradicional na compreensão do fenômeno jurídico é (ainda) parte da
cultura jurídica em nosso país; largamente sustentada nos tribunais, pela doutrina e
por juristas. Manuais, compêndios, cursos e tratados de Direito se dedicam a uma
mera atividade dogmático-expositiva do Direito posto, enclausurada à lei e aos seus
pressupostos.
Na compreensão de Azevedo, a dogmática jurídica do direito é apontada
como a “inclinação mecanicista e o simplismo silogístico que muitos autores
enganada ou enganosamente teimam em conferir-lhe”. (ibid., p. 16).
Indispensável é a observância do fator histórico-cultural no processo criador
e hermenêutico do direito, ao passo que tal fator é que lhe confere o substrato
necessário e razão de ser, de tal modo que a dogmática deve atentar para o direito
em todas as suas dimensões, considerando as suas perspectivas históricas,
filosóficas e sociológicas, e não apenas aquela legalista e positivista.
Mas, em nome da cientificidade do Direito, o positivismo busca atingir uma
neutralidade do fenômeno jurídico, estabelecendo uma cisão “em duas partes
estanques3, uma lógica, ocupando-se da ‘ciência das normas’, e, outra, axiológica, a
que incumbiria o trato dos valores tanto subjacentes quanto buscados pela ordem
jurídica”. (ibid., p.18).
O positivismo jurídico, bem como o positivismo filosófico4, entusiasmado
com o avanço científico no Século XIX procurou atingir a cientificidade no âmbito do
Direito. Para tal concepção, o homem seria um ser perfectível alcançando um
3 Assinala Azevedo, que para o discurso positivista, a primeira parte compreende a norma positivada, suas fontes, direito objetivo e subjetivo, sujeito de direito, etc. A segunda, trata da sua conexão com o social, o que para o positivismo, são questões desconexas com a “seara propriamente jurídica” devendo ser tratada “pelos ‘filósofos’ ou ‘sociólogos’ do direito” (1989, p. 18). 4 Doutrina preconizada por Conte, que defendia o progresso da humanidade com base no positivismo da ciência.
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estágio máximo de evolução, e o Direito poderia ser dotado de caráter científico,
dominando e controlando a sociedade, alcançando a justiça e a paz social em sua
plenitude.
Destarte, se procura conferir ao direito uma cientificidade que é própria das
ciências naturais, retirando-lhe a verdadeira essência, seus valores intrínsecos, e
ignorando seu processo histórico de formação. Desconsiderando que o direito é um
produto cultural, advindo da sociedade, só em função dela existe e para ela deve
voltar-se, espelhando seus reais anseios.
Marinoni confirma;
o positivismo jurídico nada mais é do que uma tentativa de adaptação do positivismo filosófico ao domínio do direito.Imaginou-se, sob o rótulo de positivismo jurídico, que seria possível criar uma ciência jurídica a partir de métodos das ciências naturais, basicamente da objetividade da observação e da experimentação. (2006, p. 29).
Azevedo, ao reverso, aduz que:
o discurso jurídico só pode articular-se convenientemente na medida em que haja um permanente “trânsito” lógico-axiológico a dirigi-lo. Sem o que será impossível compreender e valorizar o direito ou sobre ele logicamente raciocinar. (1989, p. 18).
O direito, pela ótica tradicional, é vislumbrado como se neutro fosse, não
imbuído de índole axiológica, sendo auto-suficiente, auto-explicativo, devendo as
normas postas serem apontadas pelo julgador, compreendidas e interiorizadas pelo
sujeito jurisdicionado, não levando em conta seu verdadeiro nascedouro (das
normas): as relações intersubjetivas, os conflitos e a dinâmica sociais. Não
considerando o próprio curso da história no processo de formação do direito, por
meio de uma estagnação advinda de uma pretensa cientificidade e neutralidade.
“Uma neutralidade que não existe e nem é deste mundo”. (ibid., p. 22).
Nesta esteira, nos deparamos com o dogma da neutralidade do juiz, haja
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vista que “o berço da neutralidade é o positivismo [...]”. (MARTINS, 2007, p. 4). Para
o pensamento dogmático-positivista o juiz deve ser isento que qualquer influência
interna ou externa sobre a sua decisão, tanto de ordem pessoal, como ideológica ou
axiológica.
O paradigma dogmático do Direito prescreve que a competência do juiz deve
ser concebida simplesmente como sendo aquela de subsunção do fato à norma
estatal, tendo a sentença por resultado. Não admitindo seu necessário poder criador
frente às peculiaridades do caso concreto. Não importando quais sejam os reflexos
de sua decisão para as partes. Seu trabalho “[...] esgotar-se-ia na análise das
estruturas do direito positivo mediante um pensar circunscrito às categorias do
direito positivo”. (AZEVEDO, 1989, p. 19).
Como destaca Azevedo,
tal postura não se compadece com a índole da atividade judicante. Sua repetição, acrítica e monotonamente reiterada, importa no esvaziamento teórico da função judiciária, fazendo parte de um discurso ideológico, que não resiste a um confronto com aquilo que o judiciário efetivamente realiza e muito menos com os reclamos e aspirações populares, ou com os dados mais clamorosos da situação histórica em que nos achamos inseridos. (ibid., p. 12).
Na perspectiva do discurso positivista, o juiz é tido como neutro: um mero
aplicador das normas positivas, como um técnico, sendo obstaculizado de fazer
juízos de valor frente ao caso concreto, de aplicar a norma mais adequada às
partes, não devendo importar-se com o consequencialismo de sua decisão, seja
este qual for.
Azevedo compreende que:
cria-se assim uma forma de reflexo condicionado nos juristas, obrigando-os em nome de uma curiosa cientificidade do direito, a operar como se fossem máquinas, articulando conceitos, encadeando-os, estudando leis do ponto de vista lógico-formal, [...] conduzindo-os, afinal, em nome da “neutralidade” de seu labor “científico”, a omitir os juízos feitos a propósito de todo esse
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labor ou de qualquer uma de suas partes. (ibid, p. 19).
Assim como o direito, o juiz não só não é neutro, como não deve ser neutro
e nunca será.
Jamais poderão os juízes, enquanto seres humanos que são, atuarem de
forma isenta, neutra e automática - como pretende o positivismo - sendo impossível
para o homem libertar-se de todos os seus valores, crenças e convicções, tal
pretensão beirando à alienação.
Ainda além: não se pode admitir, um juiz restrito a cláusula da legalidade,
antes deve atentar-se para o mundo no qual está inserido e para a realidade social
que está à sua volta. A compactuação com tal postura importa em um
desvirtuamento de sua atividade, que é essencialmente valorativa.
Diante das constantes transformações sociais, a decisão judicial, nunca terá
um caráter universalmente válido, visto que o direito não tem o condão de prever de
forma exata e absoluta todos os acontecimentos e normatizá-los, visto a infinidade
de fatos possíveis de ocorrer na dinâmica social.
A suposta isenção do julgador, pretendida pelo positivismo jurídico, na
realidade se manifesta em omissão, sob codinome “neutralidade”. Tal
posicionamento - de ocultamento e negligência - à margem da função judicante lhes
confere um estado de acomodação, em um lavar-de-mãos, que em nada se
coaduna com a sua função social, e com as aspirações daqueles que batem à porta
do judiciário, porém a “[...] postura de aparente neutralidade lhes confere lugar
seguro no condomínio do poder”. (AZEVEDO, 1989, p. 21).
A visão dogmática deve ser sobrepujada do meio jurídico, de modo que o
direito não seja interiorizado como uma ingênua redução ao legalismo, nascido do
Estado e isolado dos valores sociais.
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3 A CRISE DO DIREITO 3.1. A CRISE DA HERMENÊUTICA
O direito está em crise! O paradigma hermenêutico existente no Século XVIII
não mais se ajusta as necessidades contemporâneas!
Frente às necessidades emergenciais, diante das constantes mutações na
dinâmica social, o processo hermenêutico não deve ser reduzido a orientar a
interpretação fria dos artigos de lei, em uma constante busca por satisfazer a
vontade do legislador, sendo que esta nem sempre (leia-se: quase nunca), reflete os
reclamos das partes e o imperativo social, “pois não há lugar onde a concepção
positivista do direito se mostre mais insuficiente do que na interpretação das normas
jurídicas”. (AZEVEDO, 1989, p. 23).
Diante da velocidade das transformações pelas quais passa a sociedade, a
lei não é passível de prever de forma absoluta e com plenitude de certeza, os
acontecimentos da vida em coletividade - o que resta claro aos olhos se for
observada a quantidade de normas que são editadas, especialmente no Brasil, e as
lacunas existentes nos diplomas legais. Sendo assim, é inimaginável uma prestação
jurisdicional adequada sem que o julgador se valha de um adequado processo
interpretativo diante da especificidade dos fatos.
Então, o magistrado precisa estar atento a tais circunstâncias ao proferir a
sentença, pois, “[...] é, então, que se mostram as potencialidades do processo
hermenêutico, em que se insere o poder criativo dos juízes, adaptando a lei à
concretude dos fatos, precisando-as, modificando-as, suprindo-lhe as lacunas [...]”.
(AZEVEDO, 1989, p. 69).
É preciso que o juiz do Século XXI faça uso de seu poder criador, permitindo
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com que o Direito se concretize e se renove nas decisões proferidas. Além disto, o
próprio sistema precisa de mudanças: além do desapego ao Código, precisa haver
um desapego à hermenêutica calcada em súmulas e na jurisprudência5. O juiz
precisa ser juiz. Precisa, de fato, executar a sua função jurisdicional, e não apenas
repetir o que já foi previamente dito em casos “semelhantes”, pois de “semelhante”
só mesmo a decisão, haja vista que o caso concreto reclama por uma resposta que
seja dada atentando para as suas conjunturas.
Não bastasse o apego à lei no momento decisório, os juízes também se
submetem às súmulas (vinculantes!) e à jurisprudência, como já dito. Muitos
abandonaram o dogma da lei para se vincularem ao entendimento proferido nos
acórdãos e ao que foi convencionado pelos Tribunais em forma de súmulas. Na
busca por uma aparente segurança jurídica, juízes limitam-se a decidir em
conformidade com os órgãos judiciários de instância superior, fato que se agrava
com o advento das súmulas vinculantes.
Conforme a Emenda n° 45/2004, a Constituição da República passou a viger
acrescida do Artigo 103-A6, segundo o qual o Supremo Tribunal Federal poderá criar
súmulas vinculantes, quando houver reiteradas decisões sobre matéria
constitucional, criando uma espécie de engessamento dos Tribunais inferiores e
juízos de primeiro grau. Em consonância com o referido dispositivo, quando houver
5 Não equivale a dizer que não constituem fonte do Direito, apenas a dizer que não se pode simplesmente repeti-los sem levar em conta os aspectos particulares de cada caso concreto. 6 Artigo 103-A, CF: O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário [...]; § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários [...] que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica; § 3º [...] da decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, [...] cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
24
grave “insegurança jurídica” derivada de decisões divergentes entre os Tribunais, e
que acarrete multiplicidade de decisões sobre “questões idênticas”, e o mais grave
de tudo: caberá reclamação perante o Supremo Tribunal Federal quando a decisão
judicial contrariar as súmulas vinculantes, sendo que tal decisão poderá ser cassada
e ser substituída por outra, com a aplicação da súmula não observada pela decisão
a quo [!].
Está caracterizado um verdadeiro retrocesso em termos de emancipação da
decisão judicial.
Como enfatiza Lopes Jr.
de nada adianta independência se o juiz é totalmente dependente do pai-tribunal, sendo incapaz de pensar ou ir além do que ele diz. É preocupante o nível de dependência que alguns juizes criam em relação ao ‘entendimento’ deste ou daquele Tribunal, e, o que é pior, a sujeição de alguns Tribunais ao que dizem outros Tribunais Superiores. Quando uma decisão vale porque proferida por este ou aquele tribunal, e não porque é uma boa decisão, passa-se a ser um mero repetidor acrítico e autofágico, impedindo qualquer espécie de evolução. [grifo do autor] (2007, p. 120).
Em nome de uma suposta segurança jurídica mais uma vez se apregoa e se
busca uma pseudo-neutralidade do magistrado, pela ótica da hermenêutica
tradicional. Como já visto “[...] não se pode falar em neutralidade do juiz, mas pode-
se falar que o objeto de alguns magistrados, [...] não é o ser humano, antes é a
própria lei em si. O cidadão, nesta estrutura, não é a causa do sistema, mas é um
ser contingente”. (MARTINS, 2007, p. 107).
Tais fatos denotam a crise pela qual passa o Direito, tão entranhada no meio
jurídico e a postura retrógrada no processo hermenêutico-interpretativo. E não é
preciso nenhum esforço para que se verifique tal postura, bastando apenas que, em
teoria, se questione “se o juiz dispõe ou não de alguma forma de poder criativo [...]
para que se juntem, em clamorosa negativa, expressivo número de advogados,
25
órgãos do Ministério Público, [...] não faltando mesmo juízes a vir engrossar-lhe [...]
a censura”. (AZEVEDO, 1989, p. 12).
Bem se sabe que não haverá segurança jurídica se as partes não puderem
ter a convicção de que a decisão será pautada em critérios, com o firme propósito de
lhe dar o máximo de efetividade (à sentença), visando, de fato, sempre a melhor
solução do caso concreto.
Neste mesmo sentido, Azevedo ressalta que:
é em nome da segurança jurídica que se quer assim manietar o juiz e minimizar a função judicial. Sucede que esse juiz-computador, esse aplicador mecânico de normas, cujo sentido não lhe é dado aferir, e cujos resultados na solução dos casos concretos lhe é defeso indagar, este juiz assim minimizado e desumanizado, não é, de forma alguma, capaz de realizar a segurança jurídica. Preso a uma camisa-de-força teórica que o impede de descer a singularidade dos casos concretos e de sentir o pulsar da vida que neles se exprime, esse juiz, servo da legalidade e ignorante da vida, o mais que poderá fazer é semear é semear a perplexidade social e a descrença na função que deveria encarnar e que, por essa forma, nega. Negando-a, abre caminho para o desassossego social e a insegurança jurídica. [!] [grifo nosso] (ibid., p. 25).
Juízes precisam adotar uma postura crítica diante da causa, e não apenas
se limitarem à escolha do caminho que lhes é mais cômodo, conveniente e simples
de ser seguido, apenas com a repetição mimética do que já foi decidido em casos
outros. Um juiz comprometido com o “humano” não se limitará a tanto, mas proferirá
uma decisão calcada nos valores do seu tempo.
Calamandrei, nesta direção, questiona;
como pode ser resolvido o angustiante dilema entre o cômodo conformismo, apegado ao que sempre foi decidido (stare decisis), e a consciência inquieta, que cada vez quer refazer seus cálculos? Tudo depende do juiz em que se produz esse embate. O risco das causas costuma estar neste antagonismo: entre o juiz lógico e o juiz sensível; entre o juiz conseqüencial e o juiz precursor; entre o juiz que, para não cometer uma injustiça está disposto a se rebelar contra a tirania da jurisprudência e o juiz que, para salvar a jurisprudência, está disposto a deixar esmagar nas inexoráveis engrenagens da sua lógica um homem vivo. (2006, p. 185).
Deve ser consenso que não vale mais o cumpra-se o direito pereça o
26
mundo. É preciso que os juízes ultrapassem o reducionismo exegético de
interpretação e aplicação do direito segundo o paradigma tradicional - oriundo de
uma concepção positivista e obsoleta - para dar espaço a uma nova postura,
perquirindo uma hermenêutica baseada na concretização de resposta mais
adequada e justa para os litigantes.
3.2 DECISÃO E IDEOLOGIA
Ao tratarmos da decisão judicial, inevitavelmente deparamo-nos com o seu
teor ideológico: razão pela qual o juiz não é neutro. Não se pode negar o caráter
ideológico da decisão. Notório é o seu viés ideológico. A ideologia está presente
ciência, no Direito, na cultura... E como não poderia deixar de ser, a encontramos
também na deliberação do julgador.
O poder ideológico, que é capaz de fazer-nos agir sem perceber que agimos
da forma que agimos7, em sentido lato, é possível devido à “luta de classes, a
dominação de uma classe sobre as outras. Porém o que faz da ideologia uma força
quase impossível de ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente
aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar”. (CHAUÍ, 2008, p. 83).
Para que a classe dominante mantenha o poder de exploração econômica é
preciso que tenha o poder político. Para que continue a usufruir da classe dominada
é preciso que se cerque de instrumentos que lhe garantam esta possibilidade, e tais
instrumentos, como Chauí assinala, “são dois: o Estado e a ideologia”. (ibid., p. 86).
Azevedo assevera que:
a redução gnoseológica resultou na elaboração de um discurso jurídico flagrantemente ideológico, que termina por desembocar no formalismo lógico-jurídico, cuja premissa fundamental consiste justamente na pretensão
7 Não por acaso, Chauí a definiu como um mascaramento da realidade social que nos faz tomar o errado por certo e o falso por verdadeiro. (2008, prefácio).
27
de conhecimento do direito separado de toda e qualquer ideologia. (1989, p. 21).
Embora o Direito, a priori, tivesse sido pensado para ser livre de qualquer
interferência externa, é evidente a influência da ideologia capitalista na ordem
jurídica então estabelecida.
A concepção positivista do Direito é ela toda, ideologia: a ideologia
capitalista, para manter os interesses da classe no poder, desvelando-se como um
idealismo de igualdade de todos perante a lei, liberdade dos cidadãos, certeza e
segurança jurídica, neutralidade do juiz...
O Estado, então, se vale das leis e a utiliza em proveito dos dominantes,
para legitimar tal dominação da classe no poder, e ao mesmo tempo ocultar o que
de fato ocorre, tendo em vista uma cultura positivista do direito pela sociedade,
aparecendo a lei, assim, como justa, correta e legítima, devendo apenas ser
cumprida.
Chauí entende que desta forma,
a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia do Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia do interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do direito pela idéia do Direito – ou seja, a dominação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos. (2008, p. 87).
A lei é a lei do interesse de classes, da classe no poder, contudo, o que se
pretende veicular é uma visão idealista e o ocultamento da realidade. Embora se
procure passar a ideia de neutralidade do Direito, da lei e da decisão judicial,
afastando o conhecimento do real, isso tudo nada mais é do que imagem – criada
pela ideologia.
Também é este o pensamento de Portanova, ao declarar que:
28
na verdade a função do Estado é a de proteger os interesses dominantes contra o movimento dos dominados (ordenando os antagonismos). Contudo, e contraditoriamente, a idéia de Estado necessita passar certa representação da unidade da sociedade ou do homem que vive em sociedade. Cada um de nós está convencido da necessidade do Estado, daí se impõe na prática as noções de interesse geral, soberania, razão do Estado, direitos e deveres do cidadão. Por outro lado, o funcionamento do Estado tem suas raízes no fato de acreditarmos num bem comum distinto dos nossos interesses particulares e superiores a eles, por ser ele (o Estado) representação da unidade social. Mas o idealismo faz crer que este funcionamento do Estado tem suas raízes nas expressões soberania, razão do Estado, direitos e deveres dos cidadãos, etc. (2003, p. 54).
Também o juiz, em sua função jurisdicional sofre influências de diversas
ordens e já traz consigo uma flagrante carga ideológica8. “[...] Todo homem, e assim
também o juiz é levado a dar significado e alcance universal e até transcendente
àquela ordem de valores imprimida em sua consciência individual. Depois vê tais
valores nas regras jurídicas”. (ibid., p. 16). É o que Portanova chama de “motivação
ideológica da sentença”. (ibid., p. 16).
Não tratamos aqui da motivação ideológica da decisão como má-fé, mas sim
como uma série de representações, valores e convicções, tão disseminada nas mais
variadas escalas e segmentos da nossa vida e “[...] emanada do contexto
socioeconômico”. (ibid, p. 17).
O juiz também está sujeito, bem como a lei, à ideologia tão disseminada pela
visão tradicional do Direito. Equivale a dizer que ele não é neutro. Talvez em muitos
casos nem o próprio magistrado se dê conta de tal influência a que está submetido.
Trata-se de “’falácias ideológicas’ que costumam cegar muitos juristas [...]”. (FARIA,
1989, p. 10 apud PORTANOVA, 2003, p. 57), que “por sua tradição dogmática
quase sempre têm um conhecimento meramente formal das questões concernentes
à complexidade da vida socioeconômica contemporânea”. (ibid, p. 10, apud ibid, p.
57).
8 Segundo Rui Portanova “pelo menos três ideologias resistem ao tempo e influenciam mais ou menos o juiz: o capitalismo, o machismo e o racismo”. (2003, p. 16).
29
A decisão judicial é eminentemente valorativa. Não há como compreender
uma outra forma de prestação jurisdicional (coerente) que não essencialmente esta,
e a ideologia está inevitavelmente embutida nestes valores. A visão tradicional,
entretanto, tenta transmitir a falsa imagem de neutralidade, ocultando a realidade e a
crise, que desemboca em uma falsa aparência de ordem. É com a interferência do
poder ideológico sobre o juiz impresso que se formara sua decisão.
Calamandrei faz menção a um estudioso alemão que escreveu sobre as
motivações da sentença e entendia que “[...] com muita freqüência, a
fundamentação oficial nada mais é que um biombo dialético para ocultar os móbeis
verdadeiros, de caráter sentimental ou político, que levaram o juiz a julgar assim”.
(2006, p. 191).
Resta demonstrado que o juiz não é neutro, mas que sua decisão sofre os
efeitos da ideologia que carrega. Nas palavras de Lyra Filho (1981, p. 17 apud
AZEVEDO, 1989, p. 76), “toda ‘neutralidade’ é filha do statu quo, pois lhe dá campo
livre, enquanto se recusa a tomar atitude”.
Marques faz referência a Zimerman, entendendo que:
a ideologia pessoal é um dos fatores muito importantes que, somados aos atrás mencionados, participa significativamente para os acertos e/ou erros, na eficiência da difícil ciência e arte da função de interpretar, julgar e aplicar os códigos da lei. (2002, p. 112 apud 2004, p. 34).
O juiz, ainda que não admita ou perceba9, ainda que se procure ocultar com
ideologias, ainda mesmo que seja omisso, não será neutro. Não poderá despir-se da
couraça ideológica que lhe acompanha até mesmo no momento culminante de sua
atividade decisória: a sentença.
9 Afinal, “[...] quantas vezes a fundamentação é uma reprodução fiel do caminho que levou o juiz até aquele ponto de chegada? Quantas vezes o juiz está em condições de perceber com exatidão, ele mesmo, os motivos que o induziram a decidir assim?”. (CALAMANDREI, 2006, p. 175).
30
Como Martins preleciona,
alguns juízes podem realmente ser tão indiferentes em frente ao ente humano que diante deles se encontra a ponto de poder se afirmar que eles são “neutros” ao lidar com tal figura, mas esta “neutralidade” não se manifesta quando estes mesmos juízes estão diante das frias páginas de um processo. Nesse momento a ideologia permeia suas veias e irriga seu cérebro judicante. O cidadão diante desse legalismo é apenas um joguete. (2007, p. 107).
É, portanto, de suma importância esse desvendamento ideológico do direito
e da decisão judicial para que se possa entender de forma crítica a real origem dos
institutos e a que(m) serve(m). Não pode o juiz ingenuamente continuar “as escuras”
acreditando em “imagens” projetadas a si de um modo tão distorcido, a respeito da
real atuação estatal, do Direito e das motivações da sentença.
Na concepção de Herkenhoff, trazida por Portanova,
o juiz que não tem valores e diz que o seu julgamento é neutro, na verdade está assumindo valores de conservação. O juiz sempre tem valores. Toda sentença é marcada por valores. O juiz tem que ter a sinceridade de reconhecer a impossibilidade de sentença neutra. (1986, p. 157 apud 2003, p. 74).
O julgador não pode e nem deve atingir um estado de neutralidade, antes
deverá atentar-se para o alcance e a efetividade de sua decisão no plano material.
Porém, deverá sempre atentar-se para a aplicação do direito sob a égide da moral
coletiva de sua época, e não de suas convicções pessoais. O limite de sua atuação,
por certo, é a margem/fronteira com a arbitrariedade.
A libertação da concepção tradicional - com sua explicação partindo apenas
de pressupostos e sem orientação sobre as suas verdadeiras raízes -, a causa dos
institutos e uma visão ampliada da concepção crítica, é, seguramente, o caminho a
ser trilhado.
31
3.3 A PRÉ-CONVICÇÃO E O PRÉ-JULGAMENTO
O juiz, como já exposto, não é um sujeito neutro, mas sofre a influência de
seus valores e convicções (filosóficas, religiosas e políticas...) a todo o tempo,
estando aí incluso, o ato decisório. Ainda que o positivismo indique o reverso, o
julgador já traz sua carga de conceitos e pré-conceitos para o processo. Assim,
muitos magistrados estabelecem uma pré-convicção. Partem de determinados
pressupostos, de um modo rígido e inflexível, depositando aí todos os seus traumas,
desilusões, complexos, experiências negativas, visão de mundo, etc.
O julgador, além das experiências pessoais, pode ainda se deixar levar por
casos lhe trazidos anteriormente. Com uma visão generalista, ignora a multiplicidade
humana e o que ocorre em um momento posterior, é que busca a todo o tempo se
cercar de subsídios para que venha a confirmar e justificar a sua pré-convicção com
a lei.
Falsas impressões também podem influenciar o órgão judicante. Mais uma
vez com a interferência de seus pré-conceitos, dá margem a uma pré-convicção do
caso sub judice, direcionando para caso concreto, toda sua bagagem emocional.
Na decisão estará posta a sua marca, sua personalidade, e até um
sentimento de vingança por algo desagradável que tenha lhe ocorrido no passado.
Ocorrendo o pré-convencimento, tende a pré-julgar a causa: tira suas pré-
conclusões e a posteriori, busca a lei que a justifique, a lei que conforme sua pré-
convicção10. Não raras vezes o juiz se antecipa em decidir o mérito.
Conforme o juízo de Calamandrei, ”[...] as vezes acontece que o juiz ao
formar a sentença, inverta a ordem normal do silogismo; isto é, encontre antes a
10 Calamandei diz que “algumas vezes, o juiz também se desdobra para conceber a posteriori os argumentos lógicos mais aptos a sustentar uma conclusão já sugerida antecipadamente pelo sentimento”. (2006, p. 177).
32
conclusão e, depois, as premissas que servem para justificá-la”. (2006, p. 176). O
mesmo autor ainda entende que os próprios procedimentos impostos ao juiz,
parecem permitir a inversão do silogismo.
Calamandrei declara que tal inversão:
parece ser oficialmente aconselhada ao juiz por certos procedimentos judiciários, como aqueles que, enquanto lhe impõem tornar público, no fim da audiência, o dispositivo da sentença (isto é, a conclusão), consentem que retarde por alguns dias a formulação dos fundamentos (isto é, das premissas). A própria lei, portanto, parece reconhecer que a dificuldade de julgar não consiste tanto em achar a conclusão, que pode ser coisa a se resolver no mesmo dia, quanto em achar depois, com mais longa meditação, as premissas de que essa conclusão deveria ser, segundo o vulgo, a conseqüência. (ibid, p. 176).
Há ainda os juízes que sofrem interferência da intuição em um momento
preliminar do processo.
Neste aspecto, Marques expõe que:
a intuição, precisamente devido a esta sua origem, pode às vezes dar resultados preciosos, outras vezes criar um uniformismo perigoso para o juiz. A intuição é, certamente, uma voz que nasce do inconsciente, no qual se acumulou a nossa experiência e também a da raça, que, precedendo qualquer processo analítico de raciocínio, nos faz sentir como deve ter ocorrido um facto. Às vezes este juízo antecipado cristaliza-se tão potentemente na consciência do juiz, que não só as conclusões processuais não conseguirão modificá-lo, mas até ele, inconscientemente, se esforçará por adaptar esses resultados à sua convicção. (2004, p. 15).
É a pré-convicção, que desencadeia um pré-julgamento. É a sentença já
formada no plano psicológico do julgador, muito antes da instrução de um processo,
resultando em uma decisão maculada. “As premissas, não obstante seu nome,
freqüentemente são elaboradas depois – em matéria judiciária, o teto pode ser
construído antes das paredes”. (CALAMANDREI, 2006, p. 177).
Marques ainda traz o pensamento de Silva, entendendo que:
ao julgar, o juiz que sempre só julga em causa alheia, não tem como escapar da sua própria causa, da sua própria história de vida, de suas questões particulares, da ética do inconsciente como texto. Em cada juiz,
33
como em cada um de nós, um Édipo é convocado perante o enigma de uma esfinge. Daí a neutralidade, decantado o ideal, será um ideal impossível. (2003, 84 apud 2004, p. 22).
Destarte, se verifica que o juiz não atua em um estado de isenção, tanto
referente a fatores de ordem externa ou interna, de modo que podemos entender
descartado o ideal de neutralidade do juiz. Consciente ou não, é ele acometido pela
influência de sua psiquê, e enxerga os seus anseios no caso posto diante de si, ao
ponto de pré-julgar a lide e buscar em um momento posterior apenas uma
conformidade de seus pré-conceitos com a lei positivada.
34
4 A LEGITIMIDADE DA DECISÃO JUDICIAL 4.1 CRÍTICA AO PARADIGMA
Em uma cultura positivista, para a grande massa da sociedade e (ainda)
para grande parte da comunidade jurídica, uma decisão justa e legítima é uma
decisão proferida de acordo com os moldes legais. A decisão legítima seria aquela
em obediência a lei. É a chamada legitimidade derivada (da legislativa). Assim
seria legítima a decisão resultante da aplicação do princípio da legalidade.
Na ótica de Marinoni,
o princípio da legalidade, assim, acabou por constituir um critério de identificação do direito; o direito estaria apenas na norma jurídica, cuja validade não dependeria da sua correspondência com a justiça, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de competência normativa. (2006, p. 25).
No entanto a legitimidade da decisão ocorre em cada decisão, com a
fundamentação de cada concreto e não a priori, baseada em preceitos legais
somente, como para o positivismo. Para que haja uma decisão legítima o juiz
precisa estar apoiado nos valores de sua época.
Ainda conforme Marinoni,
[...] o princípio da legalidade obviamente não pode mais ser visto como à época do positivismo clássico. Recorde-se que o princípio da legalidade, no Estado legislativo, implicou na redução do direito à lei, cuja legitimidade dependia apenas da autoridade que a emanava. (ibid, p. 45).
Assim, em tempos atuais é impensável a existência de uma decisão legítima
sem levar em conta o que o caso concreto reclama, pois “diante do atual contexto de
formação da lei e das novas fontes de produção do direito, não há mais como
pensar em norma geral, abstrata, coerente e fruto da vontade homogênea do
parlamento”. (ibid, p. 43).
35
O juiz, segundo uma visão neopositivista deve atuar sempre tendo em mente
esta preocupação. Uma decisão legítima deve atender aos anseios sociais, deve
estar em sintonia com as necessidades e particularidades de cada caso concreto,
pois o tecnicismo, unicamente, não é capaz de atingir tais escopos.
Como observa Martins
o verdadeiro homem do Direito, em oposição ao pensamento do senso comum, não é aquele que busca pura e simplesmente a técnica jurídica para a solução mais imediata de problemas singulares. Antes, o verdadeiro homem do Direito é aquele que – não sendo erudito, mas intelectual – filtra os problemas sociais de sua época através do fino crivo do verdadeiro Direito, pois as ações daquele estão pautadas nas teorias deste. (2007, p. 99).
Percebemos então, que ao contrário do que preceitua o positivismo, a
legalidade não se confunde com a legitimidade da decisão. Segundo uma visão
crítica do direito a legitimidade da decisão judicial decorre da sua fundamentação;
fundamentação esta, calcada nos valores sociais do seu tempo, enquanto que a
legalidade da decisão seria sua simples adequação com a lei positiva.
Cademartori (1999, p. 175 apud MARTINS 2007. p. 106), indica que “[...]
legitimidade e legalidade perdem sua identificação no momento em que se admite
que um ordenamento pode ser legal, mas injusto”.
Já Plácido e Silva, traz a ideia de que a legitimidade,
exprime, em qualquer aspecto, a qualidade ou o caráter do que é legítimo ou se apresenta apoiado em lei. A legitimidade, pois, pode referir-se às pessoas, às coisas ou aos atos, em virtude da qual se apresentam todos segundo as prestações ou consoante requisitos impostos legalmente, para que consigam os objetivos desejados ou obtenham os efeitos, que se assinalam em lei. [grifo do autor] (2004, p. 826).
A partir de tal conceituação, denota-se uma postura tradicional e
conservadora.
Conforme salienta Martins,
36
pode-se observar que a legitimidade transcende a simples legalidade. A legitimidade, e não a legalidade, deve ser a base do Direito. Não será necessário abordar a questão de possibilidade de existência de leis injustas para se colocar a legalidade circunscrita a seu devido lugar no regaço do povo. (2007, p. 102).
Para a legalidade o conteúdo de uma decisão não importa, mas apenas se
está de acordo com a Constituição. Já para a legitimidade, o que importa é o seu
conteúdo, “[...] mas o Direito deve se preocupar com legitimação [...], com o risco de
assim não agindo perder seu status de existente. Deve-se combater o legalismo,
porque apresenta a legalidade como a verdade”. (MARTINS, 2007, p. 103).
Para tanto, “a obrigação do jurista não é mais apenas a de revelar as
palavras da lei, mas sim a de projetar uma imagem, corrigindo-a e adequando-a aos
princípios de justiça [...]”. (MARINONI, 2006, p. 45). Para que a decisão alcance tais
fins, sendo dotada de legitimidade e não apenas de sua conformidade legal, não há
como conceber um juiz neutro, mas somente aquele comprometido a realização da
justiça.
4.2. SUBJETIVIDADE E LEGITIMIDADE
Em muitos casos podemos verificar que o juiz profere sua decisão com certo
grau de subjetividade. Nestes casos também é possível verificar a ilegitimidade da
sua decisão. Não raras vezes o juiz se depara com situações em que leva em conta
interesses pessoais na prolação da sentença, tendo por resultado, uma sentença
ilegítima, ou ainda beneficia uma partes por questões de afinidade.
Nesta direção, Martins aponta que:
aceita-se que juiz amigo ou inimigo é aquele que deixa de lado a sua imparcialidade, afastando, o seu dever de fazer Justiça em razão de sentimentos profundos que todos os homens têm e, como tal comportamento, beneficia as partes que estão submetidas ao seu
37
julgamento”. (2007, p. 55).
Mais uma vez, atestamos que ele não é neutro, e de fato, como observa
Martins,
não há que se pensar que deva o juiz viver enclausurado, afastado da convivência diária porque, se assim for, não terá ele – juiz – a sensibilidade para julgar, posto que estará afastado dos conflitos sociais e anseios de uma sociedade que nele deposita todas as suas esperanças. (ibid, p. 55).
Mas como garantir a legitimidade da decisão? Como as partes terão a
confiança de que tiveram uma decisão justa e desvinculada de interesses
particulares?
Uma das maiores garantias é a fundamentação da decisão. Daí decorre sua
legitimidade. O dever do juiz de fundamentar sua sentença está previsto na
Constituição da República, em seu art. 93, XVIII, que preceitua que deverão ser “[...]
fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”.
Martins confirma;
a fundamentação das decisões judiciais é uma das formas de preservar e assegurar a imparcialidade judicial. É na fundamentação que o juiz intenta demonstrar sua imparcialidade já que às partes fica a transparência de que o julgamento do conflito atendeu ao Direito material invocado, e não a outros fatores. (2007, p. 62).
Assim, temos a garantia de que o juiz não agiu de modo arbitrário, levando
em conta interesses pessoais ou favorecendo uma das partes do processo. Até
porque “a Justiça somente é respeitada e confiável se os juízes forem imparciais. Os
instrumentos processuais de que os códigos dispõem servem para garantir ao
cidadão um julgamento justo, isento de qualquer pressão ou ingerência [...].” (ibid, p.
61).
O artigo 135, também do Código de Processo Civil preceitua que:
38
Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: I – amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes; II – alguma das partes for credora ou devedora do juiz, do seu cônjuge ou de parentes destes, em linha reta ou na colateral até o terceiro grau; III – herdeiro presuntivo, donatário ou empregador de uma das partes; IV – receber dádivas antes ou depois de iniciado o processo; aconselhar alguma das partes acerca do objeto da causa, ou subministrar meios para atender às despesas do litígio; V – interessado no julgamento da causa em favor de uma das partes. Parágrafo único. Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo.
Martins ressalta que:
não se pode exigir que o juiz não seja suspeito, até porque, como todo ser humano está sujeito a influências e ingerências; daí porque não se pode esperar um comportamento totalmente isento, mas deve-se esperar que mesmo motivado por sentimentos esteja apto e em condições de presidir os atos processuais e proferir julgamento com a maior isenção possível. (ibid, 2007, p. 55).
A fundamentação da decisão difere da motivação...
A decisão precisa aproximar o Direito do mundo, precisa refletir os anseios
da sociedade, que espera por justiça. Não pode estar marcada por interesses
particulares. Assim a fundamentação vem como uma garantia contra possíveis
subjetividades da decisão, a fim de torná-la dotada de legitimidade, recriando o
direito em cada nova decisão proferida.
4.3. NOVOS RUMOS?
Ainda hoje, após toda evolução social, vemos o conservadorismo imperando
na cultura, e no pensamento de grande parcela dos juristas. O positivismo é ainda a
escolha de muitos e não somente de juízes mais tradicionais. Relutam em adotar
uma postura criadora frente à função judicante. Relutam em abrir mão de um
pensamento ultrapassado, retrógrado, limitando-se a produzir algo mecânico, sem
preocupação com o consequencialismo de suas decisões.
Para tal classe de juízes é mais simples e cômodo emitir uma decisão em
conformidade com a letra da lei. Não estão preocupados com o resultado da
39
sentença no plano prático. A decisão foi justa? A resposta nem sempre é afirmativa;
simplesmente a lei foi aplicada. Quais os motivos que os levam a decidir desta
forma? Os motivos são muitos, como o comodismo, por exemplo, mas a lei foi
aplicada. A despreocupação com o plano prático e a omissão dos magistrados é
algo evidente dentre os adeptos da corrente positivista do Direito.
A busca por uma ilusória neutralidade, da mesma forma, também acaba
cegando a visão dos juízes, que insistem em afirmar que não há interferência interna
ou externa na decisão, no entanto não se pode falar em atividade humana isenta de
valores, de ideologia.
Em contrapartida, vemos uma pequena parcela de juízes já preocupados
com o alcance da sentença e sua real repercussão. A postura neo-positivista,
lentamente já mostra vestígios, como é o que ocorreu em nossa Corte Suprema, em
julgamento de Mandado de Injunção. No Supremo Tribunal Federal, um recurso de
Mandado de Injunção foi julgado ignorando o mero silogismo. Os Ministros decidiram
por criar o direito para o caso concreto, tornado a decisão dotada de efetividade.
A decisão a seguir, da qual foi relator o Ministro Eros Grau, retrata essa nova
postura frente ao Direito:
MANDADO DE INJUNÇÃO. ART. 5º, LXXI DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. CONCESSÃO DE EFETIVIDADE À NORMA VEICULADA PELO ARTIGO 37, INCISO VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEGITIMIDADE ATIVA DE ENTIDADE SINDICAL. GREVE DOS TRABALHADORES EM GERAL [ART. 9º DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL N. 7.783/89 À GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO ATÉ QUE SOBREVENHA LEI REGULAMENTADORA. PARÂMETROS CONCERNENTES AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE GREVE PELOS SERVIDORES PÚBLICOS DEFINIDOS POR ESTA CORTE. CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO. ALTERAÇÃO DE ENTENDIMENTO ANTERIOR QUANTO À SUBSTÂNCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO. PREVALÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL. INSUBSSISTÊNCIA DO ARGUMENTO SEGUNDO O QUAL DAR-SE-IA OFENSA À INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS PODERES [ART. 2O DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL] E À SEPARAÇÃO DOS PODERES [art. 60, § 4o, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. INCUMBE AO PODER JUDICIÁRIO PRODUZIR A NORMA SUFICIENTE PARA TORNAR VIÁVEL O EXERCÍCIO DO DIREITO DE
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GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS, CONSAGRADO NO ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. [...] Ato normativo de início inaplicável aos servidores públicos civis. 3. O preceito veiculado pelo artigo 37, inciso VII, da CB/88 exige a edição de ato normativo que integre sua eficácia. Reclama-se, para fins de plena incidência do preceito, atuação legislativa que dê concreção ao comando positivado no texto da Constituição. 4. Reconhecimento, por esta Corte, em diversas oportunidades, de omissão do Congresso Nacional no que respeita ao dever, que lhe incumbe, de dar concreção ao preceito constitucional. Precedentes. 5. Diante de mora legislativa, cumpre ao Supremo Tribunal Federal decidir no sentido de suprir omissão dessa ordem. Esta Corte não se presta, quando se trate da apreciação de mandados de injunção, a emitir decisões desnutridas de eficácia. [...] 7. A Constituição, ao dispor sobre os trabalhadores em geral, não prevê limitação do direito de greve: a eles compete decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dela defender. [...] O argumento de que a Corte estaria então a legislar --- o que se afiguraria inconcebível, por ferir a independência e harmonia entre os poderes [art. 2o da Constituição do Brasil] e a separação dos poderes [art. 60, § 4o, III] --- é insubsistente. 14. O Poder Judiciário está vinculado pelo dever-poder de, no mandado de injunção, formular supletivamente a norma regulamentadora de que carece o ordenamento jurídico. 15. No mandado de injunção o Poder Judiciário não define norma de decisão, mas enuncia o texto normativo que faltava para, no caso, tornar viável o exercício do direito de greve dos servidores públicos. 16. Mandado de injunção julgado procedente, para remover o obstáculo decorrente da omissão legislativa e, supletivamente, tornar viável o exercício do direito consagrado no artigo 37, VII, da Constituição do Brasil. [grifo nosso] (STF, 2008, p. 384).
Verifica-se, assim, uma nova atitude frente ao caso concreto, onde a
preocupação da Justiça é a efetividade da decisão no plano prático/material, sua
legitimidade, e não apenas sua adequação com o texto legal. Os Ministros, assim,
reconheceram o poder criador que possuem.
Uma mudança significativa, que também deve ocorrer na superação de
modelo tradicional, é em relação ao ensino jurídico. O paradigma dogmático neste
âmbito também precisa ser contido. O ensino do Direito é (ainda) marcado pelo
conservadorismo dogmático, pelo legalismo, pelo ensino codificado, apesar de todos
os reclames que o cenário social, decorrente de toda a transformação no em âmbito
global, apresenta.
Os currículos são basicamente formados por disciplinas dogmáticas e não
raras vezes, aulas são dedicadas à leitura e comentário de artigos de lei. As
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matérias correlatas ao direito, são postas em segundo plano e por vezes. O saber-
fazer se tornou mais importante do que o porque-fazer de determinada forma.
Não vemos senso crítico por grande parte do corpo discente (que serão os
profissionais do futuro, inclusive juízes), mas simplesmente seguem o modelo
exegético apresentado, como o correto, porque lhes foi transmitida esta visão. Os
moldes adotados servem à manutenção do status quo e da ideologia da classe no
poder.
Quantas vezes não ouvimos que juiz deve ser neutro e atuar de acordo com
o previsto na lei?
Uma mudança da política de ensino se faz necessária a fim de formar
profissionais comprometidos com a realidade à sua volta. É preciso também que
perspectivas de mercado não sejam postas antes da nobre missão de um operador
do Direito, de atuar como verdadeiro agente transformador da realidade.
É claro que a universidade não forma juízes, porém é desde então que
passam a absorver conhecimento, conhecimento este, que lhes acompanhará a
priori, ao longo de sua carreira judicante.
Aos juízes tradicionais resta a missão de entender que a sua atividade deve
ser pautada na justiça e na ética. E é essencial que a ética seja repensada, para que
haja uma superação na postura dos juízes frente ao caso concreto. Antes do juiz
apegado à lei, à doutrina ou à jurisprudência, é preciso que esteja preocupado com
o teor de justiça que está contido nas suas decisões.
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5 CONCLUSÃO
Verificamos que o positivismo jurídico, surgido no Século XVIII, contribui para
um conservadorismo e a manutenção de uma postura ultrapassada em relação ao
direito. Concluímos que a pretendida neutralidade do juiz é algo humanamente
impossível de ser atingido, pela questão da ideologia que o magistrado traz consigo,
não sendo isento de seus valores no momento da sentença.
Constatamos que este posicionamento tradicional desemboca em uma crise
do direito, onde o juiz se vale de um processo hermenêutico inadequado às
necessidades das partes e ao que a sociedade espera ao fim do processo,
limitando-se a aplicar a vontade do legislador, quando deveria se valer dos valores
para o processo de interpretação.
O juiz, além da ideologia pessoal sofre influência da ideologia da classe no
poder, não sendo possível emitir um julgamento afastado de tais influências, que
estão presentes também no direito.
O magistrado muitas vezes, também faz uma pré-convicção culminando em
um pré-julgamento dos fatos apresentados, levando em conta casos que lhe foram
apresentado anteriormente, entre outros, e só então posteriormente realiza sua
adequação com o dispositivo legal.
Por fim criticamos o paradigma de que uma decisão legítima é aquela de
acordo com a lei positiva, pois uma decisão legítima é aquela que está em
conformidade com os valores da sociedade, sendo o direito recriado em cada
decisão. Assim a legitimidade vem da sua fundamentação.
O juiz assim, não deve ser um sujeito neutro, mas deve aproximar o direito do
mundo. Não deve limitar-se a repetir artigos ou decisões de Tribunais. Em cada
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decisão o juiz deve recriar o direito adequando ao caso concreto, e visando sempre
a realização da justiça.
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