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1 2 A FORMAçãO DO PROFESSOR DE GEOGRAFIA: ALGUMAS REFLEXõES PARCELARES Nídia Nacib Pontuschka Faculdade de Educação e Depto de Geografia da USP [email protected] “Achar a voz”, na opinião dos eruditos, significa descobrir um jeito de escrever que expresse de modo fiel e atraente o seu próprio modo de pensar, o seu jeito de sentir o mundo. Autor que “acha sua voz” escreve em paz consigo mesmo. Quem “acha a sua voz” não se prende ou se intimida pelo o que o povo vai pensar, do que escreve, ou pelo o que os críticos vão dizer da sua obra. (H.B. Cavalcanti, 2010) Há décadas, procuro “achar a minha voz”, estou lendo o livro de Cavalcanti em que há passagens que levam o escritor a se rever em sua trajetória. 1 A minha principal atividade profissional desde 1986 é Formar Professor, mas hoje escrever sobre este tema não é tão fácil, porque ser professor e principalmente de Geografia torna-se uma tarefa cada vez mais complexa. O que me leva a pensar sobre as mudanças ocorridas, desde o início da década de 1990, até os nossos dias. As perguntas que faço: essas mudanças promoveram melhoria na formação de professores? O que contribuiu na melhoria do ensino e aprendizagem da Geografia no ensino fundamental e médio? Ao invés de avançar houve retrocesso? Goodson, ao analisar a questão do currículo, talvez nos ajude em nossas reflexões parcelares. Com este pensamento resolvi pensar em algumas das representações dos alunos de Prática de Ensino de Geografia da Faculdade Educação da USP sobre “ser professor”, no início dos anos 1990. Os estagiários da disciplina da época, muito próximos da volta da Geografia para as 5ªs e 6ªs séries e da efervescência das discussões sobre a Geografia Crítica com a elabo- ração da Proposta Curricular para o Ensino de Geografia da CENP - Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas, da SEE São Paulo, 1986 já questionavam o vácuo existente entre os debates teóricos da Geografia relativas aos eixos temáticos apresentados para o 1. Cavalcanti, H.B. Ensaios de um Nordestino Ausente. Nashville, Tennessee, US, 2010, p. 114. ensino de 1º e 2º graus (hoje ensino fundamental e médio) e as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula. Esse questionamento que existia naquela época atravessou décadas e continua a existir e em alguns casos até mesmo mais acirrados, quando os alunos participam das aulas e observam as relações que ocorrem na escola. Ao falar que hoje os debates estão mais acirrados, lembramos que os alunos têm maior dificuldade na leitura de um texto de Geografia, embora possam falar sobre os pro- blemas do bairro, da cidade e até do mundo. Mas falam de forma fragmentária, pois esse aluno recebe informações das diferentes mídias e da internet. O Professor Idealizado A maior parte dos alunos enfatizavam as boas qualidades pessoais, individuais do professor, como profissional, e a importância da relação aluno e professor na maneira como trabalhavam com o conhecimento já produzido historicamente. No plano idealizado, os licenciandos lembravam os valores que os professores deveriam ter, sem considerá-los como um ser de carne osso com defeitos, boas qualidades e necessidades de sobrevivência. O professor, para eles, deveria ser um abnegado e não um ser humano com suas características de personalidade, sua história de vida, como um trabalhador da educação e com sua maneira própria de ensinar. Um dos alunos da época afirmou que: o bom professor era aquele que viajou muito, leu muito, foi formado em uma boa universidade, que seja humilde e que esteja sempre aprendendo mais. Este depoimento colocou o que ele almejava no bom professor, mas mesmo para os anos noventa a situação já havia se modificado muito, ele colocou as características de um educador provavelmente da classe média alta, que tem condições de vida que os professores, de modo geral, estão muito distantes de ter. Se as representações dos alunos para a época eram idealizadas, imagine o leitor, o que dizer da atualidade em que as condições salariais e de trabalho do professor se tor- naram mais precárias. Poucos são egressos de boas escolas de ensino superior e os livros não didáticos são quase um luxo para a baixa remuneração do professor que ainda ministra aulas em duas ou mais escolas para garantir a sua sobrevivência e a da família. As condições de trabalho do professor e o que se oferece nas escolas públicas e nas particulares que, em grande número, são verdadeiras empresas, onde não existe equilíbrio entre a educação e o lucro. O status de PROFESSOR sofreu uma profunda queda e muitos tentam continuar no magistério, submetendo-se a inúmeras pressões das políticas públicas implantadas pelas Secretarias da Educação e Ministério da Educação. As políticas mudam de governo para governo, mas não auxiliam a prática do professor na digna tarefa de ensinar e tampouco o aluno na tarefa de aprender e de se abrir para o mundo.

A formação do professor de geografia questões parcelares

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Teorias e práticas de ensino

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A formAção do professor de geogrAfiA: AlgumAs reflexões pArcelAres

Nídia Nacib PontuschkaFaculdade de Educação e Depto de Geografia da USP

[email protected]

“Achar a voz”, na opinião dos eruditos, significa descobrir um jeito de escrever que expresse de modo fiel e atraente o seu próprio modo de pensar, o seu jeito de sentir o mundo. Autor que “acha sua voz” escreve em paz consigo mesmo. Quem “acha a sua voz” não se prende ou se intimida pelo o que o povo vai pensar, do que escreve, ou pelo o que os críticos vão dizer da sua obra. (H.B. Cavalcanti, 2010)

Há décadas, procuro “achar a minha voz”, estou lendo o livro de Cavalcanti em que há passagens que levam o escritor a se rever em sua trajetória.1

A minha principal atividade profissional desde 1986 é Formar Professor, mas hoje escrever sobre este tema não é tão fácil, porque ser professor e principalmente de Geografia torna-se uma tarefa cada vez mais complexa. O que me leva a pensar sobre as mudanças ocorridas, desde o início da década de 1990, até os nossos dias.

As perguntas que faço: essas mudanças promoveram melhoria na formação de professores? O que contribuiu na melhoria do ensino e aprendizagem da Geografia no ensino fundamental e médio? Ao invés de avançar houve retrocesso? Goodson, ao analisar a questão do currículo, talvez nos ajude em nossas reflexões parcelares.

Com este pensamento resolvi pensar em algumas das representações dos alunos de Prática de Ensino de Geografia da Faculdade Educação da USP sobre “ser professor”, no início dos anos 1990.

Os estagiários da disciplina da época, muito próximos da volta da Geografia para as 5ªs e 6ªs séries e da efervescência das discussões sobre a Geografia Crítica com a elabo-ração da Proposta Curricular para o Ensino de Geografia da CENP - Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas, da SEE São Paulo, 1986 já questionavam o vácuo existente entre os debates teóricos da Geografia relativas aos eixos temáticos apresentados para o

1. Cavalcanti, H.B. Ensaios de um Nordestino Ausente. Nashville, Tennessee, US, 2010, p. 114.

ensino de 1º e 2º graus (hoje ensino fundamental e médio) e as práticas pedagógicas dos professores em sala de aula. Esse questionamento que existia naquela época atravessou décadas e continua a existir e em alguns casos até mesmo mais acirrados, quando os alunos participam das aulas e observam as relações que ocorrem na escola.

Ao falar que hoje os debates estão mais acirrados, lembramos que os alunos têm maior dificuldade na leitura de um texto de Geografia, embora possam falar sobre os pro-blemas do bairro, da cidade e até do mundo. Mas falam de forma fragmentária, pois esse aluno recebe informações das diferentes mídias e da internet.

O Professor Idealizado

A maior parte dos alunos enfatizavam as boas qualidades pessoais, individuais do professor, como profissional, e a importância da relação aluno e professor na maneira como trabalhavam com o conhecimento já produzido historicamente.

No plano idealizado, os licenciandos lembravam os valores que os professores deveriam ter, sem considerá-los como um ser de carne osso com defeitos, boas qualidades e necessidades de sobrevivência. O professor, para eles, deveria ser um abnegado e não um ser humano com suas características de personalidade, sua história de vida, como um trabalhador da educação e com sua maneira própria de ensinar.

Um dos alunos da época afirmou que: o bom professor era aquele que viajou muito, leu muito, foi formado em uma boa universidade, que seja humilde e que esteja sempre aprendendo mais. Este depoimento colocou o que ele almejava no bom professor, mas mesmo para os anos noventa a situação já havia se modificado muito, ele colocou as características de um educador provavelmente da classe média alta, que tem condições de vida que os professores, de modo geral, estão muito distantes de ter.

Se as representações dos alunos para a época eram idealizadas, imagine o leitor, o que dizer da atualidade em que as condições salariais e de trabalho do professor se tor-naram mais precárias. Poucos são egressos de boas escolas de ensino superior e os livros não didáticos são quase um luxo para a baixa remuneração do professor que ainda ministra aulas em duas ou mais escolas para garantir a sua sobrevivência e a da família.

As condições de trabalho do professor e o que se oferece nas escolas públicas e nas particulares que, em grande número, são verdadeiras empresas, onde não existe equilíbrio entre a educação e o lucro. O status de PROFESSOR sofreu uma profunda queda e muitos tentam continuar no magistério, submetendo-se a inúmeras pressões das políticas públicas implantadas pelas Secretarias da Educação e Ministério da Educação. As políticas mudam de governo para governo, mas não auxiliam a prática do professor na digna tarefa de ensinar e tampouco o aluno na tarefa de aprender e de se abrir para o mundo.

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O Diálogo e a Relação Democrática

Os licenciandos valorizavam o professor que estabelecia na classe um diálogo inteligente com os alunos de Geografia e mantinham relação democrática, onde havia trocas de ideias e experiências sempre facilitadoras da aprendizagem e simultaneamente do trabalho pedagógico do mestre.

A questão do diálogo ou da dialogicidade, resgatando Paulo Freire ainda persiste na universidade, nos discursos de governos e em alguns documentos oficiais, mas pergunto: será que está incorporado na ação de educar?

Segundo depoimentos de estagiários e alunos da Licenciatura presentes nas escolas públicas, isso está muito longe de se realizar. São muitos os fatores que podem explicar esta situação, mas nos atrevemos a dizer que o aluno mudou, o professor mudou e a sociedade capitalista neoliberal tem um poder maior na dinâmica social e na relação com as institui-ções públicas, priorizando o privado e o mercado em detrimento do público.

Livros Didáticos e Apostilas

Nos anos de 1990, já se fazia a crítica ao livro didático, quando era o único ins-trumento de trabalho do aluno; no entanto, cada professor era livre para escolher o autor que melhor se adequasse aos seus alunos, mesmo que, muitas vezes, a escolha não se mostrasse como a melhor.

As críticas dos docentes às apostilas para a preparação ao vestibular, implementadas pelos cursinhos, ainda não haviam penetrado no âmbito das escolas públicas, mas isso vai acontecer com maior intensidade na década de 2000.

Os modelos aplicados à educação eram motivo de crítica pelos estagiários, pois eles se colocavam contra os modelos que todos os alunos deviam perseguir passo a passo. Consideramos que no movimento da vida deve haver espaço para o inesperado e o inusi-tado. Cito alguns exemplos, se houver um eclipse em São Paulo, alunos e professores não poderão assistir porque quem determina a pseudo formação do aluno são as apostilas e não o professor e a prática construída com muito esforço durante anos de estudo e de trabalho.

O mesmo pode-se afirmar para as catástrofes recentemente acontecidas em São Luís do Paraitinga – SP e nas áreas serranas do Rio de Janeiro ou para os alagamentos que têm assolado as cidades nas regiões Sudeste e Sul. Os alunos e a população em geral não podem compreender as ocorrências, bastante tristes, pelos noticiários televisivos e jornais. As catástrofes resultaram de um profundo desconhecimento da Geografia pelos poderes públicos e pela a população em geral que não sabe ou não têm informações mais precisas para escolher o seu local de moradia e não podem prever os riscos que correm com determinadas escolhas pouco pensadas. A discussão sobre esses fatos tinha que penetrar nas salas de aula e ser geograficamente estudados, uma vez que o objetivo da educação é preparar os jovens para uma vida melhor.

Negação do Ensino Tradicional de Geografia

De modo geral, os alunos da Prática de Ensino negavam o ensino da Geografia Tra-dicional, mas não explicavam as razões. Eles afirmavam que não deviam ensinar a Geografia Tradicional, mas não declaravam como a Geografia colaboraria com o desenvolvimento do raciocínio espacial: a Geografia Crítica com suas diferentes linhas e versões, a Geografia baseada na fenomenologia, a Geografia Cultural? Enfim, qual Geografia?

No entanto, alguns deles consideravam que a Geografia tinha o papel de contribuir para que o jovem entendesse a sua posição e o seu papel no interior da sociedade e que o professor devia mais instigar o aluno a pensar do que a reproduzir.

Saberes dos alunos

Houve também a preocupação de que o professor considerasse o saber ou os sabe-res preexistentes dos alunos, fossem eles adquiridos informalmente ou fruto de conteúdos trabalhados na própria escola em outras situações, e que esses saberes fossem tomados como pontos de partida para o desenvolvimento de temáticas de grande significado para a compreensão do espaço geográfico e de seus conceitos estruturantes.

Considerar o saber do aluno é uma postura do educador que se abriu para a edu-cação desde que os estudos de Jean Piaget chegaram ao Brasil, na década de 1960 e foram sendo inseridos na prática pedagógica de diferentes escolas superiores da educação e de outras disciplinas, assim como na Geografia. Isto ocorreu quando ainda a preocupação central era o conteúdo e não a criança ou o adolescente. Com o conhecimento da psicoge-nética, o aluno passou a ser o centro do processo educacional e o conteúdo tornou-se um meio para educar e não mais o fim. À medida que os conteúdos deixam de ser fins em si mesmo e passam a ser meios, eles podem promover a interação com a realidade dos alunos articulada às contradições da sociedade e a deter instrumentos para a construção de uma visão articulada e crítica do mundo.

Os licenciandos com diferentes formas de expressão referiam-se sempre ao termo realidade relacionada à sociedade e natureza. Sobre a natureza não falavam explicitamente, mas usavam termos como ambiente, meio ambiente, acontecimentos f ísicos, Geografia Física. É preciso lembrar que a Geografia Crítica, com fundamentos teóricos de Marx, colocavam a Geografia Humana superando a Geografia Física.

O acervo acadêmico da Geografia cresce, mas as dúvidas permanecem

No entanto, a dualidade Geografia Humana e Geografia Física persistia e ainda persiste até hoje, embora alguns geógrafos afirmem que só existe a Geografia Humana, pois os aspectos f ísicos estão nela inseridos. Mas na prática o que se observa é a separa-ção em áreas distintas; isto pode ser constatado na Pós Graduação e na organização dos

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departamentos. A posição da cartografia na Geografia é dúbia, pois está inserida na área da Geografia Física, porém a linguagem cartográfica é necessária e utilizada tanto no tra-tamento geográfico de fenômenos f ísicos como nos humanos.

Um dos alunos se pronunciou sobre o professor de Geografia da seguinte forma: é aquele que se preocupa em relacionar o que ele leciona com o que acontece no dia a dia de cada um, não se prendendo apenas ao livro didático (...) preocupa-se em desenvolver em seus alunos o espírito crítico e não permitir que decorem coisas que não contribuirão em nada para o seu crescimento intelectual.

Ao lembrar esses depoimentos, notamos que muitas preocupações continuam a existir e que o tempo de duas décadas não conseguiu melhorar a educação, embora tenha havido o aumento significativo de pesquisas tanto educacionais como eminentemente geográficas. As questões detectadas nos anos 90 continuam na pauta.

Modelos educacionais

Houve alunos que se puseram contra modelos educacionais, pois a vida é extrema-mente dinâmica e contraditória e não daria conta da formação do professor e nem do aluno. Mas na primeira década do século 21, os modelos apareceram haja vista a implementação do Currículo que inicialmente apareceu como proposta para logo ser considerada como o Currículo Oficial da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para todas as disci-plinas, incluindo a Geografia.

Em 1996, fazia-se uma crítica ao livro didático, quando era a única bibliografia do aluno em sala de aula (em muitas partes do Brasil ainda é a única). No entanto, cada professor tinha liberdade para escolher o autor que melhor se adequasse às características de seus alunos e aos objetivos gerais da escola, mesmo que muitas vezes a escolha não tenha sido a melhor.

Em relação às apostilas de Geografia também havia críticas. No entanto, elas eram utilizadas apenas nas aulas de cursinhos de preparação aos vestibulares. Este uso infelizmente expandiu-se na última década. Passou a ser utilizada nas escolas do ensino básico com a anuência e aquisição do material pelas prefeituras do País. O Estado de São Paulo fez um currículo baseado em um conjunto de apostilas para o Ensino Fundamental e Médio, no qual está a essência para a avaliação dos alunos, via SARESP, ENEM e para os concursos de ingresso ao magistério.

O aluno afirmava não acreditar em um modelo para a educação, porém em nossos dias, temos modelos implantados para todos obedecerem passo a passo. Se houver um eclipse em São Paulo, alunos e professores não poderão assistir porque quem determina a pseudo formação do aluno são as apostilas e não o professor. A prática pedagógica cons-truída com muito esforço durante anos de estudo e de trabalho foi deixada de lado. Os acontecimentos inusitados e inesperados, que dizem respeito à vida de todos nós, não podem fazer parte do currículo ativo. Esses acontecimentos não poderão ser vistos e analisados

porque o que educa são as apostilas prontas, embora não avaliadas, em contraste com os os livros didáticos avaliados pelo PNLD – Plano Nacional do Livro Didático.

Nos discursos de hoje muitas das preocupações das décadas passadas continuam a ser analisadas em dissertações e teses de pós graduandos sobre a Formação do Professor de Geografia. No entanto, outras aspirações dos alunos praticamente foram abortadas no momento em que apostilas foram introduzidas nas escolas públicas do Estado de São Paulo e em Secretarias de Educação de prefeituras que assumiram as apostilas de cursinhos ou de empresas milionárias que se propuseram a pensar pelos professores, tirando a autonomia da reflexão necessária para a elaboração dos planos de aula nas diferentes modalidades de cursos, onde a geografia esteja incluída.

Nota-se que em escolas do Estado e em certas escolas municipais, em decorrência das reformas educacionais, houve verdadeiro retrocesso na formação de alunos e profes-sores. Por outro lado, os programas de Mestrado e Doutorado das Universidades não se deram por vencidos e continuaram a realizar investigações científicas sobre as diferentes dimensões da Formação do Professor. Para reconhecer este avanço, basta tomar os Anais dos Encontros da AGB – ENG, o Encontro de Didática e Prática de Ensino – ENDIPE, o Encontro de Prática de Ensino de Geografia – ENPEG e os encontros do Fala Professor, para se ter conhecimento do que se produz neste País do ponto de vista da Geografia como Ciência e como Geografia Escolar. Essa produção não mais se restringe a São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre; hoje atinge as capitais e cidades maiores de todas as regiões brasileiras.

Interdisciplinaridade

Na atualidade são analisadas temáticas significativas que emergem de pesquisas acadêmicas, tais como a interdisciplinaridade, a relação entre as escolas públicas e as uni-versidades que tratam da formação de professores; relação entre a geografia, a literatura e as artes atualmente estão valorizadas e disponibilizadas para o grande público. Na ficção, o tempo, o espaço, o lugar, a paisagem, o território e o movimento da sociedade estão presentes. O uso de diferentes tipos de linguagem precisa ser utilizado de forma compro-metida, mostrando o valor da Geografia e o valor das artes nas práticas pedagógicas. As artes têm valor por elas próprias. Essa relação entre as disciplinas pode também ocorrer nas escolas públicas não atreladas a currículos fechados feitos por órgãos autoritários que não acreditam, ou fazem que não acreditam na capacidade do professor de pensar, ensinar e de aprender.

Aqui a título de exemplo, lembro o filme Central do Brasil, de Walter Sales, que apesar de ficção pode ser o norteador de um trabalho interdisciplinar de vários professores, porque essa ficção se fundamenta na realidade vivida por muitos brasileiros, principalmente nordestinos que vivem em cidades grandes, nos sertões semi áridos ou na zona da mata.

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O filme por si só não é suficiente para conhecer o Brasil do ponto de vista geográfico diante da diversidade cultural, f ísica, paisagística e econômica existente nos 8,5 milhões de km2, mas permite a discussão de tempo espaço; de condições socioeconômicas vividas no país, da religiosidade do povo nordestino, das estratégias que o povo cria para sobreviver. Deve ser dada oportunidade aos alunos para que compreendam a linguagem cinemato-gráfica como a interação de diferentes artes combinadas para chegar ao belo, ao estético e à crítica social. Pode ser o ponto de partida e o de motivação para conhecer o nosso País.

Inúmeras vezes já afirmei que a escola, sobretudo a pública, é o lugar do conhe-cimento multidisciplinar e interdisciplinar. Ela é apenas multidisciplinar quando 7 ou 8 professores de disciplinas específicas trabalham isoladamente com os mesmos alunos sem que se saiba a relação de sua disciplina com as demais. Porém, se dois ou mais professores se reunirem para descobrir juntos sobre quem são seus alunos e o que eles necessitam para crescer do ponto de vista do conhecimento da Geografia, da História e das demais Ciências e Artes, poderão chegar a identificar o objetivo da construção do conhecimento com os alunos, abrindo o caminho da interdisciplinaridade.

Pesquisa como princípio educativo

Alguns poderão dizer que isso é impossível na escola de hoje, mas não se pode saber antes de tentar. Um professor aprende com o outro, amplia o relacionamento com os colegas de profissão e minimiza o medo que se pode ter da crítica.

Outra dimensão ausente, tanto nas reflexões da formação inicial como no cotidiano da escola básica, é a inclusão da pesquisa como princípio educativo. Aqui lembramos de Pedro Demo e de outros pesquisadores que se preocupam com a formação de professores e consideram que a pesquisa educa e forma.

Há algum tempo, discute-se a necessidade de incorporar a pesquisa e os proces-sos de investigação nos cursos de formação docente. A bibliografia hoje (2011) está mais ampla e apoia a pesquisa como princípio educativo e formativo de professores e de alunos da escola básica. A pesquisa precisa ser concebida como dimensão privilegiada da relação entre a teoria e a prática sendo, portanto, necessário redimensionar seu papel na formação do professor. A ideia é ressaltar a sua importância na construção de uma atitude cotidiana de compreensão dos processos educativos. A pesquisa pode ser um processo aglutinador da reflexão crítica, facilitadora da aprendizagem e do desenvolvimento dos alunos, na busca de autonomia na interpretação mais consistente de aspectos da realidade.

Apesar da importância dessa questão, persiste ainda a ideia de que o professor da escola básica não precisa pesquisar, ou pior ainda, que nas escolas formadoras de profes-sores a investigação científica pode estar ausente. Tal posição reforça a concepção de que o professor seria um simples transmissor ou repassador de informações, mero usuário do produto do conhecimento científico construído por outros e que somente um bacharel ou equivalente teria condições de fazer investigações científicas.

Se a docência é uma atividade intelectual e prática, o professor precisa ter fami-liaridade com os processos investigativos, uma vez que os conteúdos são construções teó-ricas, frutos de pesquisas. A prática pedagógica requer reflexão crítica, constante criação e recriação do conhecimento e das metodologias de ensino.

Espaço e Poder

Um outro aspecto da pesquisa a ser considerado na Geografia é a relação existente ente espaço e poder. Muitas pessoas e até mesmo grupos de profissionais ou de famílias sentem e sofrem as pressões que o poder ou os poderes têm sobre eles, mas não conseguem entender que os processos produzidos historicamente são responsáveis pela dominação.

Aí a pesquisa tem o poder de revelar fatos até então escondidos ou escamoteados, ou seja, a capacidade que as pessoas ou grupos têm de se aproximar do real.

Na Geografia, assim como na escola, o espaço é palco de profundas interações. É imprescindível a busca das relações entre espaço e poder. Essa relação somente pode ser encontrada no interior de um contexto onde as complexas relações precisam ser entendidas para desvelar o poder presente e exercido no espaço geográfico. A pesquisa, ao exigir a problematização de seu objeto, a fundamentação teórica e a aplicação de metodologias que apontem os melhores caminhos para responder as questões, também se constitui como um valioso instrumento de poder, que permite detectar como ele é exercido em determinadas instituições, a exemplo, do espaço social escola.

Para não concluir

Apesar de as políticas públicas de educação impostas ignorarem as investigações educacionais realizadas nas universidades com trabalhos que duram de 2 a 4 anos ou até mais, as pesquisas continuam, os intercâmbios com pesquisadores e geógrafos de outros países se realizam e o retorno de professores sobretudo da escola pública para a universi-dade para cursos e atividades acadêmicas acontecem. Assim são colocadas em discussão: a formação do professor, os currículos manifestos, o currículo real que se concretiza co-tidianamente na prática pedagógica do professor e os melhores caminhos metodológicos para ensinar e aprender a Geografia.

Perguntamos ainda porque o acervo produzido cientificamente sobre a Formação do Professor e o Ensino de Geografia e de outras disciplinas curriculares, disponibilizados em livros, teses e dissertações, muitos já digitalizados, não são incorporados nas Políticas Públicas de Educação dos diferentes governos estaduais ou municipais? Essas políticas mudam, mas não mexem na essência, ou seja, na melhor maneira de formar nossos pro-fessores, crianças e jovens para enfrentar os desafios que a vida, a profissão, a história e as políticas partidárias sempre nos impõem.

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O fortalecimento da formação inicial e continuada do professor, a relação cada vez mais forte entre a universidade e as escolas públicas do ensino fundamental e médio constituem a esperança de mudanças no cenário educacional do país. No entanto, é es-sencial que o professor tenha condições de analisar o que existe por trás dessas políticas implementadas.

Para finalizar posso afirmar que: ainda não encontrei a minha voz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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