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Texto em memória a Florestan Fernandes.
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Florestan Fernandes após 19 anos e o pensar sobre o Brasil
Sérgio Botton Barcellos*
Passou-se um mês que mais três importantes pensadores brasileiros da atualidade, Rubem
Alves, Ariano Suassuna e Plínio de Arruda Sampaio, partiram dessa vida. Todos deixaram, à sua
maneira, um legado importantíssimo, seja na literatura, na área da educação e na política. Ao
constantemente revisitar eles e lembrar de tantos outros, dias atrás me intriguei e relembrei que no
dia 10 de agosto em 1995, há 19 anos, havia partido outro desses tipos que encantam e motivam a
muitos, que foi Florestan Fernandes.
Não se trata de querer, com essa reflexão, ser porta voz de algo, mas a partir de um ponto de
vista bem particular relembrar de alguma forma a importância da obra de Florestan Fernandes. Uma
pessoa de biografia interessante e comum a muitos brasileiros que batalham dia a dia pela vida, mas
ao mesmo tempo com uma trajetória incomum pelo nível de reflexão e dos debates que propôs ao
Brasil como sociólogo e militante. Ele foi dessas figuras que, assistindo uma entrevista sua pela
internet ou lendo alguns dos seus livros, não nos deixa esquecer que vivemos em sociedade e como
não existimos um sem o outro e somos todos responsáveis de alguma maneira pela vida que temos
em conjunto. O Documentário “Florestan Fernandes, o mestre”, por exemplo, mostra a sua
trajetória pessoal, intelectual e política de forma mais detalhada.
Engraxate, garçom, vendedor de medicamentos, estudante de ciências sociais na USP,
professor assistente e professor titular da USP, teve uma importante e destacada atuação na
consolidação das ciências sociais e do campo de conhecimento da sociologia crítica no Brasil. Em
meio a essa trajetória acadêmica reconhecida e de destaque, Florestan, em abril de 1969, com a
intensificação da ditadura militar no Brasil com o Ato Institucional nº 5, é forçado a deixar a cátedra
de Sociologia na USP, sendo aposentado compulsoriamente, e se exila fora do Brasil. Nesse período
ele não podia mais aparecer em público, escrever para jornais, manifestar sua oposição à ditadura
no país. Segundo ele, esse acontecimento foi “um processo de desabamento de sua relação com o
mundo intelectual”. Logo em seguida foi lecionar na Universidade de Toronto, Yale e Columbia.
O período de exílio durou até 1972, mas mesmo de volta, ele relatou que se viu “[...] isolado,
eu vi amigos e companheiros que sequer se lembravam de mim, eu fiquei prisioneiro da família. […]
De repente, me vejo diante de um curso e da necessidade de engolir a condição de professor, que eu não
queria engolir de novo. Realmente o que eu queria era exatamente voltar a uma atividade militante e só
militante. Daí essa tensão, essa frustração.” Na época, Florestan declarou em uma carta que:
A colonização externa da vida intelectual brasileira, através da universidade, não só
se restabeleceu, como se institucionalizou. Hoje, fazer carreira aí vai junto com
lavagem de cérebro, aqui ou aí. Ele deve saber disso, pois está tão em contacto com
essa realidade quanto eu. Não lutei tanto para ver essa regressão. E, para mim, o
sentido do trabalho que pretendíamos fazer se perdeu. O pior é que não se perceba
porque... Uma regressão neocolonial institucionalizada nas duas pontas, é uma
realidade concreta e palpável. Se você mostrar isto para a Heloísa e o Paulo, eles
poderão explicar ao Carlos Guilherme o porquê do meu título. Não se trata apenas
de um „endurecimento interno‟. Trata-se, também, do fato que o made in Brazil é
determinado a partir de fora, com intensidade que não poderemos controlar dadas
as proporções do fenômeno. (carta à Myriam, 25 de abril de 1977).
Florestan, como disse certa vez, foi para o exílio como “sociólogo e socialista” e retornou
“socialista e sociólogo”. E é nesse período que publica uma de suas obras cruciais, “A Revolução
Burguesa no Brasil”, que havia começado a escrever em 1966. O objetivo, segundo ele, era dar uma
“[...] resposta intelectual à situação política que se criara com o regime instaurado em 31 de março
de 1964”. Incompleto devido à sua aposentadoria, ele retomou o trabalho, redigindo a terceira parte
do livro no segundo semestre de 1973.
Fernandes (1975) discutiu que após a “independência” do Brasil, isto é, com a implantação
de um Estado nacional, foram lançadas as bases para a formação do chamado “Brasil moderno”,
ainda marcado por contrastes sociais e econômicos agudos que configuraram a sua dualidade
estrutural. A formação do aparelho de Estado no Brasil se apresentou como garantidor da
dominação política dos estamentos senhoriais e revelou novas conexões funcionais com a
organização econômica, orientando-se a proteger e a fortalecer a iniciativa privada e assumindo
encargos que buscavam garantir certos privilégios, como a continuidade da mão de obra escrava e a
criação de serviços públicos (FERNANDES, 1975).
Nesse processo, evidentemente, coube aos (às) negros (as) a exclusão social, pois o processo
imigratório colocado em prática pelo governo brasileiro no início do século passado priorizou a
utilização de força de trabalho originária da Europa (FERNANDES, 1978) 1
. Desenvolve-se, então,
o modelo de capitalismo dependente, na conceituação dada por Florestan Fernandes (1973; 1975),
pois a industrialização teria sido realizada sem rompimento com a dependência econômica aos
países capitalistas centrais, considerados desenvolvidos, e sem o rompimento com a oligarquia rural
e a emergência das novas elites dominantes. A partir da tipificação de “possuidores de bens” e
“não-possuidores de bens”, ele mapeou o que ele considerava classes sociais no Brasil e colocou em
evidência que as elites possuíam interesses de classe semelhantes e a mesma situação de classe.
Nesse sentido, Heloísa Fernandes (2005) explicou que o pai
[...] manteve a ideia de que a sociologia clássica, que ele denominava sociologia da
ordem, detinha e expressava potencialidades criadoras, vinculadas à história e à
1Por outro lado, com a “Independência”, o excedente econômico, obtido essencialmente com as atividades primário-
exportadoras, passou a ser gerido livremente e os efeitos histórico-sociais dinamizadores desse processo ficaram mesmo
assim marcados pela lógica da grande lavoura, centralizada no trabalho escravo e na dominação patrimonialista, ainda
que não tenha tolhido a reorganização do fluxo de renda, a diferenciação do sistema econômico e o processo de
urbanização o que alterou a formação do sistema econômico (FERNANDES, 1975).
inquietação intelectual, diferentemente da nova sociologia da ordem, aquela da fase
monopolista do capitalismo, que perde a dimensão histórica e que ele denomina de
“sociologia de defesa ativa da ordem”; quando o sociólogo tende a se tornar mero
“paladino da ordem”, que ele concebe como um “problema técnico” e não mais
histórico.
Florestan Fernandes (1976; 1977) de diversas formas deixou registrada essa tensão
constante entre a disciplina científica e a atividade política, tendo o desenvolvimento do saber como
uma ferramenta de luta por igualdade social e comprometida com alternativas científicas e políticas
não vinculadas a uma forma de reflexão restrita, absolutista e sectária.
Com essas e outras tantas leituras das obras de Florestan é possível refletir sobre a nossa
atualidade e a captar as nuances ao longo da história de como as elites e governos atuam na
consolidação do sistema e ao mesmo tempo na repressão das lutas sociais. Ele trouxe à tona ao
longo da sua produção intelectual a necessidade de pensar um país com caminho próprio e que se
desenvolvesse (e não fosse desenvolvido) a partir dos seus equívocos e acertos próprios. Do mesmo
modo, a preocupação em pensar o Brasil e a elaboração de outra experiência além da experiência
eurocêntrica no Brasil se faz necessária atualmente e a leitura das obras de Florestan Fernandes se
mostram atuais para refletirmos sobre a colonização do pensamento que segue nos impactando, seja
na produção de conhecimento, seja na formação de cultura política.
Em 1975, Florestan passou por uma cirurgia de próstata e, ao receber uma transfusão de
sangue, contraiu o vírus da hepatite C, responsável por um processo contínuo de debilitação da sua
saúde. Nesse mesmo período ele adotou uma postura mais publicista produzindo artigos para jornal
e textos. Em 1977, ele deu uma entrevista à Folha de São Paulo, no qual declarou algo que também
ajuda a pensar os dias atuais:
[...] Em 68 existiam movimentos de contestação cuja posição política era radical e
que o governo qualificava de terroristas. Ou seja, o radicalismo de ambas as partes
era muito grande. Os movimentos se qualificavam, se identificavam como
revolucionários, ao mesmo tempo em que não procuravam se concentrar na cidade
mas se alastrar pelo campo. Atualmente, os processos de protestos se conformam
muito mais em termos de soluções dentro da ordem, quer dizer, de aceitar a idéia
ditada pelo governo de que a contestação deve ser legal por um lado e não ser
revanchista, por outro. Este aspecto do governo determinar os limites do protesto é
uma diferença profunda [...]. Porque era muito difícil obter adesões, principalmente
nos setores de classe média e alta - que, afinal, apoiavam firmemente o governo,
condicionados pelo chamado "milagre econômico" que naquele instante dava
condições de repartir o bolo, cada grupo recebendo sua fatia.
Alguns anos mais tarde, em maio de 1986, ocorreu mais uma mudança na trajetória de
Florestan e ele ingressa no Partido dos Trabalhadores (PT). Em seguida, concorreu a Deputado
Federal por São Paulo e se elegeu com 50.024 votos, a quarta maior votação do Partido perdendo
apenas para Lula, Plínio de Arruda Sampaio e Luiz Gushiken. Na Assembléia Constituinte, ocupou
a subcomissão de Educação, Cultura e Esportes, tendo apresentado diversas emendas as quais foram
integradas ao texto final, dentre elas a que garante a autonomia das universidades.
No segundo mandato, em 1993, apesar de o PT ter decidido não participar da revisão
constitucional, ele participou. Um dos exemplos do destaque de Florestan nos debates foi sua
proposta de emenda constitucional, que na época não entrou na pauta de votação, mas que
atualmente é realidade, a saber, a inclusão das medidas afirmativas para população negra na
Constituição. Segundo ele, essa era a forma de “corrigir uma injustiça que desgraça as pessoas e as
comunidades negras”. Notadamente dedicou seu trabalho no parlamento à educação. Isso o levou a
diversos embates, em seu segundo mandato, com o senador e antropólogo Darcy Ribeiro (PDT),
durante as discussões e disputa pela tomada de rumos na elaboração da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB).
No fim do segundo mandato, a condição de saúde de Florestan Fernandes estava delicada e
o fato de ter conhecido o Legislativo “por dentro” o desanimou de tentar mais uma eleição. Em uma
entrevista em 1994 ao Programa Roda Viva ele falou sobre esse processo e a sua pouca empolgação
em concorrer novamente. Sobre a sua condição socialista no PT e sobre as contradições e limitações
que o Partido já apresentava naquela época, ele foi enfático: “Não que eu seja um peixe fora da
água, mas qual a alternativa que me resta? Ou eu volto a minha condição de militante solitário ou eu
fico no PT tentando acompanhar a marcha do partido. Se essa marcha se revelar deficiente ou
indesejável, aí eu volto a minha condição de militante solitário e eu sempre me dei bem com ela,
pois eu sempre consegui falar para platéias grandes, agitar idéias”.
No dia 10 de agosto de 1995, Florestan Fernandes faleceu no Hospital do Servidor Público
em SP, onde quis ser atendido, pois para ele “esse hospital que tem que cuidar de mim”. Não
resistiu a uma segunda cirurgia acompanhada de falha médica e faleceu. O “socialista e sociólogo”
descansou.
Além de uma biografia inspiradora e de uma vasta obra, Florestan Fernandes deixou
reflexões e debates registrados que auxiliam a pensar o Brasil na atualidade e a compreender o
nosso país ao longo da história. Lembrar, mesmo que de forma limitada nesse breve escrito, que no
dia 10 de agosto fez 19 anos que ele partiu, não é apenas relembrar alguém de história singular, é
manter acesa a utopia de que é necessário seguir lutando por um Brasil mais justo e com igualdade
social e que a universidade pode e deve estar mais engajada nos debates e lutas sociais do seu tempo
histórico.
*Pesquisador.