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Livro experimentanea 10_2012

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Wanilda Borghi, Marianice Paupitz Nucera, Elaine Alencar, Hamilton Brito (org.s)

G r u p o E x p e r i m e n t a lAcademia Araçatubense de Letras

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Araçatuba 2012

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Capa: Wanilda Borghi “Xis traço” Grafite, lápis de cor e aquarela sobre papel

Revisão: Marilurdes Martins Campezi Presidente da Academia Araçatubense de Letras (AAL) Maria Apparecida de Godoy Baracat

Coordenadora do Grupo Experimental - GE Marianice Paupitz Nucera

Criação da Logomarca GE: Wanilda Maria Meira Costa Borghi - 2009 Representante do GE no CMPCA

Projeto e Editoração Gráfica: Celso Nicolete

CTP e Impressão: Editora Somos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para catálogo sistemático: 1. Antologia : Literatura brasileira 869.908

Grupo Experimental. Academia Araçatubense de Letras Experimentânea 10 / Wanilda Borghi, Marianice Paupitz Nucera, Elaine Alencar, Hamilton Brito (orgs.). -- Araçatuba, SP : Editora Somos, 2012. ISBN: 978-85-60886-53-1 1. Literatura brasileira - Coletâneas I. Borghi, Wanilda. II. Nucera, Marianice Paupitz. III. Alencar, Elaine. IV. Brito, Hamilton.

12-10845 CDD-869.908

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Índice

Prefácio .......................................................................................................07

Ana de Almeida dos Santos Zaher ...............................................................09

Anizio Canola...............................................................................................16

Antenor Rosalino .........................................................................................25

Aristheu Alves..............................................................................................31

Carmem Silvia da Costa ..............................................................................35

Elaine Cristina de Alencar ............................................................................41

Emília Goulart dos Santos ............................................................................52

Isabel Moura ...............................................................................................67

José Hamilton da Costa Brito ......................................................................73

Manuela Sant’Ana Trujilio ............................................................................86

Maria José da Silva .....................................................................................95

Marianice Paupitiz Nucera .........................................................................103

Pedro César Salves ...................................................................................114

Vicente Marcolino Rosa .............................................................................124

Wanilda Maria Meira Costa Borghi ............................................................130

Wanda Edith Meira Costa ..........................................................................146

Logomarca do GE ......................................................................................149

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PREFÁCIO

Quando recebi o convite para apresentar este livro, senti uma doce e grata emoção. Foi como anunciar que está brotando uma fon-te de água cristalina renovando a vida. Como uma luz mansa

que escapa pela fresta de uma porta entreaberta, chamando atenção.Curiosos vão se aproximando meio tímidos, espiando o lugar e sur-

presos descobrem que é ali a fonte. Fonte de ideias, onde podemos dar asas para a imaginação e luz para os pensamentos. Como o pensamento é alado, voa,viaja, vai aonde quer, transforma em palavras o que vê e sente, vai me-xendo com as emoções, cutucando a inspiração e faz nascer o poeta que em verso ou prosa vai cantando seus amores e dores. E nasce o escritor.

Bendita luz mansa que tem revelado a alma poeta, observadora, crítica, suave, objetiva ao expressar sentimentos.

Gente sensível que brinca com as palavras e as tornam adocicadas quando falam de amor, que gritam protestos quando seus direitos não são respeitados, gente que chora dores de amores desencontrados, enquanto ou-tras lamentam por aqueles que foram para nunca mais.

Amor e ódio, saudade, lamento, esperas, sonhos e pesadelos, chegada, partida, risos e lágrimas, sempre servirão de inspiração e se dermos asas, as palavras darão formas, e as ideias brotarão e deslizarão compondo poemas, versos, prosas e romances com a serenidade das águas da fonte.

Parabéns ao Grupo Experimental, fresta de luz que atraiu poetas e gerou escritores dando oportunidade a tantas pessoas que sonham um dia ter seus escritos publicados. Quando suas ideias e pensamentos se transformarem em palavras grafadas nas páginas deste livro, ficarão para a posteridade.

Esta coletânea reúne trabalhos de vários participantes, com o objetivo de expor sentimentos e dar oportunidade. As pessoas que gostam de escrever aqui se encontram acolhidas. Não há competição, há harmonia. A luz da fresta é apenas a timidez.

Hilda Dias de Oliveira

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VOAM SEM ASASAna Almeida dos Santos Zaher

A felicidade existe, mas na maioria das vezes a deixamos escor-regar feito areia nos vãos dos dedos. Voam sem asas coisas boas e más, e estamos vulneráveis e livres. Apesar dos direitos

e deveres, existem muitos valores que a sociedade coloca em primeiro plano, ainda somos donos de nossas escolhas. m algumas situações o mundo se vira contra você que depois se vê obrigado a voltar, porque nem tudo é regra, e existem inúmeros fatores que perdem o controle das mãos humanas. Exigir perfeição é algo fora do alcance, mas trabalhar para o bem de todo

é um caminho árduo, embora gratificante.É claro que seria bem melhor amar tudo e todos, mas há quem afirme

que poderia não ter graça se fosse assim. É impossível estar de acordo com tudo, mas é possível conviver em paz com as diferenças. Não é mais fácil, porque temos orgulho e muitas vezes não valorizamos as coisas e pessoas que estão sempre por perto.

Voam sem asas, o amor e ódio, e o universo traz e mostra que somente ser livre não basta; a inteligência, para definir bem seu próprio caminho, é fundamental.

O medo de abraçar e acolher a semente do bem faz defasar a colheita. Para muitos é mais fácil acomodar-se e resmungar a vida toda, do que enca-rar e tentar.

Sei que é fácil pedir coragem aos outros, e eu não peço, e nem digo que temer é errado. Acredito que o certo é dosar os sentimentos e adquirir equilíbrio.

Vale a pena se esforçar e tornar seu sonho realidade, pois mais do que querer, é preciso lutar e não desanimar na primeira queda.

Tudo serve de aprendizado, o que não deve ocorrer é perder as opor-tunidades, o ânimo e a vontade de chegar, mesmo que não seja ou aconteça

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exatamente do jeito que se planejou. O que importa é sentir-se feliz e satis-feito.

Na maioria dos casos, as pessoas se decepcionam com o rumo que suas vidas tomaram, e nem sempre admitem e aceitam um recomeço. Não entendem que temos o direito de mudar de opinião e a rota.

Voam sem asas: a natureza, os homens, todo o planeta, misturados filhos e agregados em busca do mesmo objetivo: a realização de seus anseios, cada um com sua particularidade.

Seguem sua viagem, voando sem asas e sem data marcada, em uma velocidade não controlada, porque cada piloto conduz sua nave dentro do tempo não determinado.

É evidente, o percurso é o mesmo, os sonhos e desejos são incontá-veis, mas cada um é responsável pelo que quer e a que almeja.

Voam sem asas, uns inocentes, outros com muita sede, e o mais im-portante: dentro do contexto todos vão conquistando seus méritos.

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RETARDADA FELIZAna Almeida dos Santos Zaher

Caro leitor, afirmo sempre que viver é bom demais e ser feliz é minha obrigação.Contudo, ainda choro por seres que não conseguem chegar

nesta máxima da vida. Atingi uma fase maravilhosa aos quarenta anos e liber-tei-me da cruz que pesava em meus ombros: o medo terrível das más línguas, dos olhares maliciosos que corriam sobre meu corpo e meu ser, sempre bus-cando em mim um erro ou atitude, que os covardes não tomariam nunca.

Sempre convivi com pessoas maduras, nunca desprezei seus conse-lhos e exemplos. Sempre dei valor ao quesito experiência.

Caro leitor, o sábio de fato repassa o que aprende, eu ainda não sei tudo e acredito que ainda faltam respostas para muitas coisas. Mas quanto ao saber, diante de tantos relatos e exemplos vivos, decidi buscar a felicidade, descobri uma mina de ouro, e me banhei nas águas com o melhor tesouro.

Sem planos, despida de orgulho, adormeci e acordei, pensei ser sonho e me belisquei. Tudo era real. Caminhando em delírio, externando o estado de graça, incomodando os infelizes, ouço vozes fazendo da minha vida uma novela, e desenhando meu triste fim e prevendo meu futuro. Ouvi uma boca maldita gritar: “Ela é uma retardada, retardada!”

É,meus caros, os retardados também são gente e muitas vezes mais humanos do que os bons de cabeça. Agem com autenticidade, sem fingimen-to, falam e reagem de acordo com o momento. Ao contrário dos considerados em juízo perfeito que, às vezes, jogam a perfeição no vaso e dão descarga e vomitam asneiras nos ambientes, acham-se no direito de sentar sobre seus próprios erros e defeitos, com rosto coberto de máscaras. E saem por aí desti-lando o veneno, já que fizeram suas escolhas, caíram no abismo e não houve resgate; como almas penadas se deliciam em maldizer a vida alheia.

Não julguem um livro pela capa nem uma mulher pelo sorriso, dizeres antigos que se encaixam nos dias atuais. Enquanto perdem tempo cuidando

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do jardim alheio, o próprio abriga apenas insetos indesejáveis.Eu sem flores não respiro, para veneno de cobras há muito tempo

tenho antídoto. Às vezes sinto-me perdida no espaço, ainda abala minha es-trutura quando carunchos tentam penetrar a qualquer custo meu paraíso.

Então, mergulhada em um desespero mudo, tenho fé e sinto que Deus me ama incondicionalmente. Então dou uma ‘banana’ para os invejosos e digo: “Já sofri, venha o que vier, não sofro mais.”

Lembro, então, de tantas vidas que se suicidaram por não ter tido a coragem de mudar sua rota; lembro-me também das moças que morriam virgens e solitárias com medo do sexo e da fama. E lembro-me ainda de muitas outras pessoas que escolheram a morte, de tamanho sofrimento que o preconceito causou.

Prefiro ser uma retardada feliz que ter sonhos e desejos sufocados. Ou, ainda, desistir sem ter lutado; uma retardada feliz que segue sempre tentando novos caminhos, mesmo sabendo que alguns, possivelmente, não trarão os resultados esperados.

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BAILARINAAna de Almeida dos Santos Zaher

Bailarina Bailarina... MeninaMuito bela

Um anjo bailando Algodão doce

Em torno da multidãoDistribuindo pazAlma terna mostrava a existência do amorTraz luz e graça

Bailarina...Espírito de criançaQue não morre jamaisEsperança que insiste

Bailarina...Dona das estrelasUniverso compartilha tanta belezaPoucos herdam o domínioCorajosos seguem em busca do equilíbrio.

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CARTA AOS ADOLESCENTESAna de Almeida dos Santos Zaher

A mãe carrega em seu ventre o filho por nove meses. Meses de alegria e expectativas. A criança, o filho, a benção!Há mãe que já carregou mais de vinte filhos em seu ventre,

sempre os defendendo com unhas e dentes. Mas nem sempre esses vinte foram por essa mãe.

Nos dias atuais os pais estão preferindo ter poucos filhos, para dar mais amor e conforto. E dão de tudo, até mais que o necessário. Ainda é possível encontrar filhos que dão valor e cuidam da própria mãe; é raro, mas existem.

Neste exato momento o que mais está sendo assustador, um pesadelo real, ver que tantas vidas geradas e criadas com tanto amor, estão matando, batendo, torturando aquela mulher que deixou de viver sua vida em prol da felicidade e realização de trazer ao mundo uma vida, um filho.

Uma mãe, após dar à luz, não tem mais sossego. Não dorme direito e também não se alimenta, e o pouco que come não a satisfaz. E muitas vezes são chamadas de tolas por isso. Mas é por natureza que as mudanças ocor-rem. Ouço desde criança que filho é um pedaço do coração da mãe que bate fora do peito. E isso é verídico.

Esta ‘carta aos adolescentes’ é necessária; ela também servirá aos filhos adultos e ingratos.

Todo ser humano passa por uma transição, fase de revoltas e insatis-fações, mas a maioria, ao invés de olhar para si e aprender a se conhecer, a fazer os reparos, não o fazem! A primeira culpada, condenada sem ir a júri, é a mãe. Será por quê?

As meninas vão saber o que é ser mãe quando derem à luz, e as que por um motivo ou outro for estéril, vão saber do mesmo jeito. A dor da ausên-cia falará por si só.

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Os meninos, imagino sentirem uma emoção única ao desmaiarem na sala de espera e logo pegarem ao colo o fruto e constatarem o poder que têm nas mãos de perpetuar sua espécie.

Aos adolescentes que têm coragem de sujar as mãos com o sangue da própria mãe e os filhos barbados que fazem tanto mal e chegam ao extremo da maldade interrompendo a vida do portal que os trouxe ao mundo com tanto amor, não sabem o que é ser mãe, pois não existe escola para ensinar a ser mãe, então vão morrer mesmo sem saber onde está o erro.

Uma mãe, por mais defeito que tenha perante os olhos da sociedade, não merece a punição de ser assassinada pelo ser que ela gerou e recebeu com tanto amor. Uma mãe jamais esquece um filho, muitas vezes até abre mão de criá-lo devido às suas condições financeiras. A maioria amamenta os filhos, variando de meses até anos. Sempre doando seu tempo.

Ultimamente, com tantas tragédias, fico a pensar que realmente há coisas que não valem o sacrifício. As mães estão entre a cruz e a espada, amam demais e são incorrigíveis. E os filhos, o que mais querem? Carregar na consciência o peso e na mão as marcas do sangue que corre em suas veias? Assassinam o corpo, mas não rompem o cordão umbilical.

Nada fica impune. Sinto muita pena.

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COINCIDÊNCIA FATALAnizio Canola

Um ligeiro giro no volante. Então, o possante carro, cor da moda, entra suavemente no curto aclive, de acesso ao motel. Por um instante dá para ver o luminoso feérico. Em destaque, o nome

do ninho de amor, Eros. Um pouco acima, a enorme lua cheia, que parece tão próxima. Na verdade, confunde-se com a fachada, como se fora uma estampa só. O feitiço do luar espalha-se carro a dentro, envolvendo ele e a amada que está tímida, ao lado, ocultando o rosto com um xale tricotado. Receio natural. Afinal é um encontro proibido. Mas só porque a vida quis assim. Nasceram almas gêmeas, todavia, nas voltas que a vida dá, casaram-se com outros. Neste momento, seus corações estão revoltados. Acham que deveria importar apenas o amor, puro e sincero, para ficarem juntos. Pena, as convenções têm outras regras, exigem muito mais.

Por isso estão no Eros Motel. Arriscando-se, para terem um marcante dia na vida, a que têm direito, por se amarem de verdade. Não ignoram, entre-tanto, que essa noite mágica, após 30 anos distantes um do outro, provavel-mente será o epílogo de uma história maravilhosa.

O pequeno trajeto, até chegar à recepção, é suficiente para fazer eclo-dir o passado nas mentes de ambos, como num filme dos anos 60. Não se recordam o porquê de haverem tomado rumos diferentes, posto que se ama-vam tanto. Distantes no tempo e no espaço! Recentemente, por puro acaso, seus caminhos se cruzaram de novo. A velha chama reacendeu, embora seja evidente que só noutra vida poderão ficar juntos de novo. Durante vários dias, combinaram por telefone de se encontrarem, se verem, se amarem, e... dize-rem adeus...

Eros, ponto de encontro furtivo. E da despedida, pois jamais terão paz doutra maneira. O marido dela o conhece bem, desde os tempos da juventude quando os três, solteiros, moravam longe daqui. A areia da ampulheta marcou o espantoso sucesso na vida daquele casal. Quanto a ele, continuou com

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uma conta bancária modesta. Mas feliz. Apesar da vida regalada, ela sentiu que errara na escolha desesperada. Contrariada, continuou fiel ao amor de outrora, embora na distância. Quem consegue controlar o coração insensato, perdidamente apaixonado? Em consequência, o marido passou a nutrir senti-mentos de ciúme e crueldade. Aí, o risco: se soubesse quem chegou, de longe, para tê-la...

O carro parou na portaria. Com um movimento ágil, erguendo o braço esquerdo, ele pegou a chave de um apartamento. Em seguida, rumou por uma alameda ornada de lâmpadas coloridas de cortesia. Acolhedora, a calma do ambiente. Dá para ouvir os pneus escorregando no pedrisco. Ela puxa o xale, descobrindo um pouco o rosto. No cenho, a marca da preocupação. Ele admi-ra a face dela, iluminada pelo luar. Pronto. Aí está a suíte 18. Automaticamente a porta da garagem se abre. Tempo suficiente para o carro entrar. Fechada, garante a privacidade do casal. A salvo de olhares ocasionais curiosos.

Ele veio de longe. Ninguém o conhece nesta cidade dela. A não ser o marido da sua amada. Arriscam muito. Quis tê-la de novo nos braços. Lamen-tavelmente, na mocidade não a reconhecera. A mulher da sua vida estivera ao seu alcance, mas... Agora, não tem mais jeito. Resta apenas curtir esta noite e sumir no mundo.

Ele pensa: Eros, o Deus do Amor. Muito apropriado. Quantas histórias acontecem aqui, amiúde. Porém a vida amorosa não são só rosas. Eles mes-mos são, na verdade, protagonistas de um enredo mal traçado.

Corpos ardentes. Envolvidos pela paixão. E simultaneamente pelo amor. As revelações. As angústias. Os temores, os desalentos. Um turbilhão de sen-timentos no ambiente sofisticado da suíte. Tudo acabou. Resta agora ir embo-ra dali, para nunca mais. Talvez seja difícil convencer os corações, mas...

Um último beijo. Demorado. Saboroso. Doce mel. Ele gosta do meca-nismo na parede, que facilita acertar a conta. Passa um cheque, em paga-mento. Ela arrepia:

- “Você deve estar louco. Vai se identificar”.Ele não liga: ninguém o conhece na região. Que perigo pode haver?Buscam a porta de saída, abraçados. Um olhar derradeiro para a cama

redonda, desarrumada. Ah, foi tão bom! – repetem. A banheira de espuma,

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transbordando... A suave cor rosa do aposento. Um verdadeiro cenário de amor. Para marcar a despedida de suas vidas. Separadas pelo ingrato des-tino.

O interfone toca. A moça da portaria pergunta-lhe se ele é mesmo de Araguari. Ele confirma. E se queda intrigado. Como ela descobriu? Ah, simples coincidência...

Ele vai girar a chave, quando o interfone toca novamente. A moça plan-tonista pede-lhe um favor. Um amigo da casa está em dificuldade. Necessita com urgência de carona até determinado ponto da estrada, não muito longe dali. Ele invoca a privacidade. A moça é persuasiva. A pessoa irá no banco de trás. Basta deixar a porta traseira destrancada, que entrará, sem fazer perguntas. Não falará com eles. E quando chegar ao local pretendido indicará com o braço. Ela, ouvindo aquilo, arregala os olhos. Sua intuição não admite tal absurdo. Ele argumenta que já concordou, não dá para voltar. Ela morde os lábios. Discorda, mas resolve não dizer mais nada.

Aberta a porta da garagem, o carro sai de ré. Ao passar pelo escritório, para um pouco. O luar agora é discreto, vencido paulatinamente pelas som-bras da noite. Um vulto passa pela porta de vidro. Rápido, entra no carro, atrás. Ele tenta distinguir a pessoa, espiando no retrovisor interno. Na penumbra, percebe que o homem tem o rosto coberto por um lenço enorme, talvez colo-rido. E usa chapéu atolado de peão. O carro escorrega no pedrisco. Eis a saída. Ele tem vontade de gritar: adeus, Eros Motel. Valeu o momento de felicidade. Ali, juntinhos. Dessa forma, resgatamos um dia na vida!

Ela sai do motel protegida pelo xale. Suavemente, inclina o rosto no ombro dele. No interior do carro, ninguém diz nada. A estrada está escura. Até a lua se escondeu. Uma inquietação começa a atormentá-lo. Quem será esse cara? Seus pensamentos ficam agitados. Devia estar louco, como ela disse, quando aceitou. Expor-se, e a ela, a um risco desnecessário. Para servir a quem? Atender um pedido da gerência do motel? Só um idiota, mesmo. Ela logo adormece, feliz. Em dez minutos estarão na cidade. Ele procura ordenar os pensamentos. Como fará para se livrar do sujeito? Afinal não foi definido onde desceria... O camarada tosse de vez em quando. E pigarreia. Que sufoco. Ele olha seguidamente no retrovisor. Querendo detectar qualquer movimento

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suspeito. O carro roda por aproximadamente dois quilômetros. Estrada deserta.

Firmando a vista, ele percebe ao longe uma Van, parada no acostamento. Dois vultos acenam na pista... Devem precisar de ajuda. Que sorte. É a chance de descartar o carona inconveniente. Ele diminui a marcha. Ela se mexe, quan-do ele a afasta carinhosamente do seu ombro. Nisso, surge um braço junto ao rosto dele. O dedo indicador aponta que o cara quer ficar ali. Que ótimo. Facilitou.

Estaciona bem atrás da Van. Um moço alto se aproxima do carro. Pe-de-lhe um pouco de combustível. Ele concorda. O carona desce. E acende uma lanterna à pilha. Aí foca o rosto dele, ostensivamente. Que reclama, pois a luz fere seus olhos. Perturbada, ela acorda. Sem querer, deixou o rosto des-coberto. O cara da lanterna assobia para o outro homem, gorducho, que vem devagar. Ela tenta reconhecer a silhueta do homem que está chegando, com algo nas mãos.

- “Meu Deus, parece que é...”.No momento confuso, o carona, lanterna em punho, diz:- “Eis os pombinhos, patrão!”.Ele fica aturdido. Se dá conta da gravidade da situação.O gorducho, alquebrado pelos anos, chega bem perto e esbraveja:- “Procurei tanto... e a caçada acaba assim”. A palavra “caçada” o estupora. Ela puxa o xale, instintivamente que-

rendo se proteger.Dois estampidos ecoam na noite medonha...

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FLORES E AMORESAnizio Canola

Oh, Musa.Tu gostas, percebe-se, de margaridas.Eu também gosto de flores

Identifico-me mais, com rosas vermelhas!São a minha cara.Mas, na realidade da vida, sou um cravo vermelho.Perfumado, de cor nítida, mas menor.Sem a terna suavidade de rosas e margaridas.Quedo-me em dúvida, ó Musa.Algum dia tua margarida gostará de ser envolvida pelo carinho do meu cravo?Felicidade que nem orquídeas ou gerânios saberão proporcionar igual.

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TIO (A) É A...Anizio Canola

A rede social Facebook traz, vez ou outra, mensagens de gran-de valia. Outro dia compartilhei uma que achei oportuna. Dizia: “Moro em um país onde treinador de futebol é chamado de pro-

fessor e professor é chamado de tio!”. Entendo como ignomínia tratar mestres dessa maneira. Pior que grande parte deles aceita passivamente tal desaforo. Mormente nas escolas de educação infantil. Aí, como diria um mineiro, “vira um queijo!”. Eu, quando criança, morava num recanto caipira do Estado, em Cerqueira César, e falava “fêssora”, mas jamais, “tia”.

A professora Maria Tereza Marçal Cardoso, minha querida amiga mi-neira da gema, em razão do providencial texto, encetou campanha no próprio Face. Escreveu, a poetisa: “Cabe a todos nós, educadores, profissionais de educação e toda a comunidade escolar e sociedade cultural organizada, aca-bar com essa inversão de papéis e valores: professor não é parente, é autori-dade competente (ou pelo menos deveria lutar para ser)”.

Quem primeiro barrou essa forma desrespeitosa de tratamento foi Ruth Cardoso, conforme manchete de primeira página do Estadão. O então Presidente Fernando Henrique Cardoso e ela estiveram em um teatro, em São Paulo, para verem uma encenação famosa. Na saída, um grupo de estudantes interpelou o casal sobre o espetáculo. Uma adolescente perguntou à Ruth: “Tia, o que você achou da peça?”. A ex-ativista, que se transformara numa mulher culta e admirável, demonstrou espírito empedernido, respondendo na lata: “NÃO SOU SUA TIA!”.

Na escolinha onde minha neta está matriculada percebi, com muita satisfação, que ali só se fala “professora”, nunca “tia”. Bom, senão como os petizes irão aprender essa noção de respeito? Mas é difícil. Na porta alguns pais dão recados aos seus baixinhos assim: “Fala pra tia...”.

Esse modo de tratar, porém, não está circunscrito ao âmbito escolar; já

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contaminou a sociedade. Muita gente fala “tio” ou “tia” sem critério. Por achar bonito, ou estar na moda, ou .. sei lá! Quando um flanelinha aproxima-se do meu carro e fala “Tio, posso tomar conta?”, já fica queimado comigo. Digo-lhe, nunca lhe ensinaram a falar senhor ou senhora?

Certo dia, no Fórum estadual, eu controlava o acesso à sala de audi-ência, quando apareceu um vereador famoso para depor. Logo depois surgiu o assessor dele. Jeitão estabanado, perguntou-me: “Tio, vai demorar muito?” Pensei. A gente rala na faculdade, bacharela-se em Direito, recebe um di-ploma da conceituada Toledo, em cuja capa está escrito “Doutor”. Passa no exame da Ordem. Aí aparece um desrespeitoso desses, que não tem noção nenhuma de sociabilidade, e me chama de “tio”? Ninguém merece!

Imaginei o cara acompanhando o vereador no palácio do Governo. É capaz de chamar o governador de “tio”. Será o caos da educação? Senhores edis, selecionem melhor seus auxiliares de gabinete. Poucos meses depois soube que aquele assessor bronco fora remanejado. Passou a ser zelador de um cemitério.

Como diria meu grande amigo Brito, do Grupo Experimental, que tem maneira peculiar e objetiva de dizer as coisas: - Vai, tonto. Vai chamar algum finado de “tio”. Arriscar-se-á a ver com quantos ossos se faz um esqueleto...

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UM DIA LINDO DEMAISAnizio Canola

Tenho algo muito importante para lhe contar, meu bem.Ontem foi um dia extraordinário. Você precisava estar aqui para admirá-lo comigo.

Nossos amigos sentiram o mesmo. Tudo nos conformes. Direitinho. Satisfação total.

Manhã ensolarada de céu azul, do jeitinho que você aprecia (ideal para conseguir aquele bronzeado). Como se a natureza houvesse renovado a pintu-ra da paisagem, tornando-a mais atraente, colorida, deslumbrante...

O ar estava impregnado de felicidade. Nesse dia incomum, a todo ins-tante você surgia no meu pensamento. Cada gesto, cada detalhe, cada lugar, tudo enfim lembrava você.

Naquela praça sombreada pelo imenso arvoredo, onde você adorava namorar-me, quase pedi a um casal apaixonado para desocupar o nosso ban-co predileto. Mas a tempo lembrei-me de que você não estava mais na cidade. De que adiantaria? Contemplei embevecido o idílio digno do nosso amor de outrora. Ah, que saudade...

Um dia imperdível. Só coisas boas acontecendo. O nosso número de sorte, 36, foi premiado. E eu aqui sozinho, sem ter você para compartilhar tamanha emoção. Achei que nem valeu a pena.

No vaivém agitado do calçadão, suas palavras – “Já compomos uma cidade grande!” – se confirmavam. Mas por ironia do destino, faltava uma pessoa muito especial na multidão. Você.

À noite, na avenida, recordei nossos passeios de mãos dadas, aprecian-do o movimento. Ninguém quis ficar em casa. O pessoal todo estava ali, em peso. Curtindo o burburinho, na suave ladeira iluminada pelo luar maravilhoso. Nossa turminha, na mesma lanchonete, esbanjava alegria na maior animação. Porquanto ontem tudo era convidativo, romântico, barulhento, festivo, ao agra-

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do de todos os sentimentos. Rebatia-se o forte calor com as cervejas espertas de costume. Olha, tiravam o chope exatamente como você gosta. Senti sua presença ao meu lado, sorrindo. Pura ilusão. O loirinho levou o violão e a Meire cantou coisas lindíssimas. Aliás, gostaria de ouvir você de novo cantar músicas da Elba. Seu modo de ser, sua voz, seu porte elegante em qualquer traje sempre nos trinques... Transbordava entusiasmo e você distante, Não me conformo. Eles nem me viram. Fiquei alongado e logo retornei para casa.

Por isso quero lhe contar desse dia certinho, repleto de passagens gostosas. Um dia como poucos, lindo demais, arrebatador... para os outros! Porque para mim, longe de você, estava desbotado, sem graça, profundamen-te melancólico.

Hesito ao teclar seu telefone para lhe dizer que, com seu brilho pessoal, tudo isso, tão lindo para os demais, seria mais radiante ainda para nós. Basta-ria você estar comigo, numa boa, entende?

Nem sei se você continua no mesmo endereço ou se vai me atender. É difícil crer que tudo terminou, se havia tanto amor. Não percebi que nosso filme estava acabando, quando você dizia que ia sair da minha vida. Meu bem, essa impressão incontida de perda que restou, tem me magoado muito. Com absoluta certeza, eu nunca mais vou esquecê-la.

Mas, que culpa tenho eu de pensar assim? Se os dias lindos continuam acontecendo e tornam mais fortes as recordações daqueles nossos momen-tos felizes, aumentando a amargura que me consome a alma?

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FASCINAÇÃOAntenor Rosalino

Borboleta amarela, tão bela!Repousa quieta no meu pensar.Crisálida dos meus sonhos etéreos

Fetiche do meu olhar!

Não se vá antes da aurora,Não lhe toca o meu penar?Sob um céu de noite clara,Não deixe o vento a levar...

Sedutora beleza que fascinaEsses meus olhos que orvalhamFormando cisalhas de prataAlucinados com seu voejar!

Deixe o alvor do dia chegarCom olores de carmimE só então, abra suas asas laminadasE deixe o nada que se fez em mim.

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AMOR ETERNOAntenor Rosalino

Revivo em sublimes sonhos,A trajetória da nossa união, Feita de espinhos e flores,

Num misto de alegriasE lágrimas de solidão!

As muralhas invisíveis, adversasDo tempo veloz e incertoNão conseguiram ceifarA chama azul da esperançaPresente em nosso olhar!

Sonho lindo que superaSoturnas realidadesNo alvor de cada diaE sob a luz de estrelas rútilasMais aumenta essa verdade.

Surpreende-me a intensidadeTranslúcida e serenaDesse amor eterno que emanaNas noites onde os candelabrosFagulham orquídeas que encantam!Como andarilho dos sonhos seus,Esboço lágrimas ardentes,Peroladas pelo amor e a saudadeNum tempo infinito onde a espera Tem sabor de noites estreladas.

3º lugar – poesia - I Concurso do GE – 08/05/2012.

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SÓCRATES DE ATENASAntenor Rosalino

Com o pensamento envoltopela bruma da ética e da filosofia moral, fundamentou sua existência

no memorável lema:“conhece-te a ti mesmo”.

A pureza de sua alma liberta,desconhecia preconceitos ignóbeis;dialogava com pobres, ricos, mulheres,escravos... Daí a razão de ser taxadopelos detentores do poder“perversor da juventude”, custando-lhe isso,o holocausto da própria vida.

Buscava ao raiar de cada dia,o aprimoramento da virtude...Viveu com humildade,notadamente reconhecidaem sua imorredoura frase:“Tudo o que sei é que nada sei”.

Nada deixou escrito...Talvez, em sua sapiência,desejasse trazer à luz que, mais do que as letras,os atos e os exemplos ficam!

Perece assim, o grande sábio,serenamente, sem recusar a taçado amargo e cruel veneno; mas o seuexemplo de vida e sua doutrina ficarãocomo obra imortal na galeria dos eternosque o tempo jamais ruirá.

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O SERESTEIRO(Homenagem ao “Grupo Amigos da Seresta” de Araçatuba)

Antenor Rosalino

Com o olhar complacenteEm miríades de estrelas,O seresteiro se entranha

Na poesia plena presenteDo plenilúnio que abrigaAs suas canções dolentes!

Predestinado por mãos divinas,Encanta multidões...Energiza-se a luz do pradoNas serestas que arrebatamCorações esmaecidosDe saudades incrustadas!

Sob o prisma do luar afável,O seu coração nostálgicoBusca revelar o beloE os acordes acontecemNas canções que fazem ecoNo altar dos campanáriosE nas montanhas em prece!

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LAÇOS AFETIVOSAntenor Rosalino

Lá pelas bandas do sul mato-grossense, onde as grandes e visto-sas fazendas se descortinavam num carrossel encantador, duas fazendas não muito próximas sobressaíam das demais pela vas-

tidão de suas terras verdejantes e incontáveis cabeças de gado. Eram elas: a Fazenda Camarinhas pertencente ao senhor Anastácio e a Fazenda Santa Te-reza, de propriedade do senhor Virgílio, um coronel de exército, aposentado.

Os fazendeiros eram amigos de infância, conhecidos pelo progresso sempre crescente de seus negócios e pela invejável extensão territorial de suas terras. Ambos possuíam habilidades extraordinárias para os negócios, razão pela qual, sempre se sobressaiam sobre os demais fazendeiros, e pos-suíam, sobretudo, um grau de escolaridade superior aos outros.

Tanto o senhor Anastácio, quanto o coronel amigo, embora fossem pessoas de boa índole, e bom caráter, eram muito vaidosos, e gostavam de se vangloriar sempre que concretizavam suas negociatas, comumente regadas a muita lucratividade, mas não havia rivalidade pessoal entre ambos, afinal foram criados juntos e a amizade que os unia era de verdadeiros irmãos.

Os negócios atinentes à compra e venda de gados eram constantes entre os latifundiários. Assim, o senhor Anastácio que possuía uma vaca dife-renciada pelo seu porte extremamente belo, da qual, o leite parecia jorrar com mais abundância, acabou despertando a atenção do coronel Virgílio que resol-veu fazer uma proposta de compra pela vaca Indiana. Sim, era este o nome dela, cuja proposta depois de longamente analisada, foi finalmente aceita pelo senhor Anastácio.

Tendo sido definida a negociação, no dia seguinte, quando o canto dos galos e as estrelas matutinas davam adeus à madrugada, o coronel Virgílio encarregou o seu filho, Gervásio, de buscá-la. Com muito custo – pois Indiana aparentemente não desejava deixar a sua fazenda de origem -, o rapaz a levou para a nova moradia.

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Entretanto, o animal estava muito habituado com a fazenda onde nas-cera, o apego era forte demais pelo local amplo e aconchegante, pelo carinho como era por todos tratado e também pela companhia dos outros animais. Sendo assim, todos os dias a ladainha se repetia: Indiana sempre fugia para a sua antiga fazenda e lá ia Gervásio buscá-la com enormes dificuldades.

Num certo dia, porém, ao sair à procura da famosa vaca que mais uma vez havia fugido, Gervásio a avistou atolando-se num pântano e, para resgatá-la, o filho do fazendeiro teria que fazer a travessia de um rio pequeno, porém, profundo. Ao fazer o trajeto, inesperada e inexplicavelmente – pois se tratava de um exímio nadador-, o rapaz veio a falecer, vitimado que fora por um mal súbito. Assim, com a lamentável e triste morte do rapaz, a vaca In-diana também morreu tristemente, atolada no pântano nefasto que agora, tal como o caudaloso rio, guarda essa história que ficará tristemente na memória de todos, como mais uma lição dos laços afetivos que transcendem entre as pessoas, mas também entre os animais.

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UM HOMEM DE OUTRO MUNDOAristheu Alves

Sempre tive curiosidade de conhecer as pessoas consideradas fenômeno devido possuírem um avançado índice de inteligên-cia. Meus parentes, que conheceram Mateus na sua infância,

afirmavam que o menino com apenas cinco anos de idade era uma verdadeira atração considerando que o garoto era filho de pai e mãe caipiras, semianal-fabetos e viviam numa fazenda de café no Estado de Minas Gerais. Não era normal uma criança, naquela idade, saber tanta coisa sem nunca ter ido à escola. O menino falava com tal desenvoltura como se fosse um adulto. Ele se divertia tocando um cavaquinho que ganhara de seu padrinho no Natal.

A noticia sobre a sua sabedoria já havia se espalhado por toda a região do Triângulo Mineiro. Seus pais por várias vezes ficaram assustados com os procedimentos do filho. Dona Leonilda ao atender os curiosos não se cansava de repetir:

- Meu filho já nasceu sabendo!Quando finalmente tive a sorte de conhecer Mateus, ele já era um ho-

mem de trinta anos de idade, sua fama corria o mundo e eu pude constatar o seu sucesso ao verificar que o rapaz falava corretamente mais de dez idiomas, tocava vários instrumentos dos mais complicados a começar pela viola, harpa e até acordeão.

Morando sozinho, a sua casa era um ponto de atração. Ali, aos domin-gos, reuniam-se os vizinhos, os amigos e seus admiradores em gera, quando trocavam idéias, contavam piadas, cantavam modas de viola e tomavam ca-chaça.

Eu não tinha capacidade mental para compreender como poderia um homem ser tão inteligente, ter tanta evolução a ponto de inventar e fabricar variados tipos de máquinas agrícolas de que os colonos usufruíam com an-siedade. Ele sentia prazer em consertar veículos, rádios, relógios, televisores,

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computadores e tantos outros aparelhos. Fiquei surpreso quando alguns ca-boclos me confessaram que muitos de seus animais de estimação entre os quais, cachorros, cavalos e vacas, foram por ele salvos da morte com remé-dios que ele preparava com sucos de plantas extraídas da mata. Soube que alguns trabalhadores atacados por cobras venenosas, tais como cascavel e urutu-cruzeiro, foram socorridos por ele e assim conseguiram sobreviver. Po-rém, um dos casos que mais me comoveu foi contado por uma senhora idosa cujo neto de doze anos de idade sofreu câimbras nas pernas enquanto nadava numa lagoa. Foi retirado das águas pelos colegas que o consideraram morto por afogamento, quando recebeu o socorro milagroso de Mateus que o salvou da morte. Tantas coisas aconteceram e quantas intervenções foram feitas por aquele homem misterioso.

As notícias chegaram aos ouvidos das autoridades religiosas e o Con-selho de Medicina já investigava suas façanhas procurando saber se ele exer-cia ilegalmente a medicina para então processá-lo. Constantemente a fazenda era visitada por repórteres que queriam entrevistá-lo, mas, nada conseguiam porque Mateus, não gostando de dar entrevistas ou de ser fotografado, se escondia no meio do cafezal até que os profissionais da notícia desistissem e fossem embora. Na verdade ele era sem dúvida um homem de outro mun-do. Tinha perfeito raciocínio e fazia complicados cálculos matemáticos em poucos segundos; além de ser apaixonado por ufologia, conhecia tudo sobre astronomia, meteorologia e tinha facilidade para fazer projetos arquitetônicos e de engenharia. Ainda, com seu canivete, produzia esculturas e brinquedos de madeira. As paredes da sua sala de estudos eram cobertas por telas com desenhos de estranhas máquinas que despertavam a curiosidade de todos, e por uma estante repleta de livros técnicos e biográficos de Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonarroti.

Certa vez eu e Mateus seguíamos em direção ao córrego que atraves-sava a fazenda, local costumeiro de nossas pescarias, quando caiu na nossa frente um bem-te-vi, vítima de uma pedra que um menino atirou com seu es-tilingue. O passarinho se debatia no chão, sangrando porque uma das pernas estava quebrada. Mateus tomando-o nas mãos, curou a sua perna e soltou-o

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para o voo da liberdade. Fiquei deslumbrado com aquela demonstração de poder. Seria ele um ser superior ou um homem santo? Não era possível! Ele era um homem comum, pois namorava, gostava de dançar, bebia cerveja e até cachaça. Não me contive e perguntei-lhe:

- Como você consegue curar em poucos minutos, a perna quebrada de um pequeno pássaro?

- É muito simples, basta usar o pensamento positivo, o desejo de que-rer ajudar e o milagre acontece.

Então eu me lembrei de que em certo domingo, quando Mateus estava fazendo ilustrações nas paredes internas da escola da fazenda, notei que ao chegar de manhã para trabalhar, havia esquecido em sua casa as chaves da escola. Ele não se perturbou. Fixou os olhos na fechadura e em seguida empurrou a porta e ela abriu normalmente.

Percebi que Mateus lia a mente das pessoas e meu próprio pensa-mento foi por ele devassado por várias vezes e, assim, alguns de meus se-gredos foram descobertos. Ele costumava dizer que no futuro os aviões não mais usariam a gasolina como combustível porque uma nova energia seria descoberta e captada no espaço, assim, terminaria o perigo da fumaça, das explosões e do excesso de peso. Alguns colonos de pouca leitura, ao ouvi-rem as suas previsões, acreditavam que Mateus fosse simplesmente um débil mental.

E assim foi até que, numa noite de verão, alguns moradores da fazenda avistaram um enorme clarão formado por luzes de diversas cores, sobre a nova plantação de café. No dia seguinte descobriram que algo de estranho havia acontecido ali, porquanto ficara no cafezal um grande círculo mostrando as plantas amassadas dentro daquela circunferência. Isso ninguém soube ex-plicar porque era assombrosa a extensão daquele circulo maravilhosamente perfeito. As noticias se espalharam rapidamente. Em poucas horas a fazenda foi invadida por curiosos. A imprensa escrita, falada e televisionada lá estava presente e dentro de três dias chegaram cientistas e ufólogos de várias partes do mundo, inclusive da Ucrânia, que desejavam pesquisar o fato.

A fazenda tornou-se um verdadeiro formigueiro humano. Era gente

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que chegava, era gente que saía e, com aquela confusão, a ausência de Ma-teus passou despercebida; mas depois de uma semana, quando o pesadelo passou e tudo já voltava para a normalidade, percebi que Mateus realmente não estava na fazenda. Procurei-o por todos os lugares possíveis e nada; o homem tinha desaparecido como por encanto.

Todos ficaram assombrados com aquela situação de mistério. Como poderia um homem de tanto poder e sabedoria desaparecer assim sem deixar vestígios?

1º lugar – prosa – I Concurso do GE – 08/05/2012.

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A ROÇACarmem Silvia da Costa

É a roça.

Moço da roça mudou de prosa, não fala mais uai.

Vai para a cidade estudar, volta e não quer capinar.

Moço da roça mudou de roupa, calo nas mãos nem pensar.

Óculos escuros, celulares e até a Chiquinha e os amigos quer influenciar.

Os pais começam a parolar:

- Daqui a vinte anos, quem é que vai plantar?

Moço da roça, com jeito meigo tenta explicar:

- Pai, mãe, mais máquinas vão inventar.

O pai confuso indaga:

- Quem é que vai o milho rarear?

Até você virar doutor, quem é que vai bancar?

É a roça!

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ALÍVIOCarmem Silvia da Costa

Quero correr livrementePelos campos sem receioDo que possa estar oculto

Perder as ataduras e nem perceberE tampouco alguém a dizer:- Moça, dona, ei! você perdeu!Quero colher as flores do campoEstar entre borboletas e colibrisIr ao encontro da brisaE de braços abertosDesvendar na natureza O que há de mais secreto.Quero olhar para o céuE ver uma janela feita de nuvensE nelas querubins e serafinsA jorrarem o bálsamo que cura.Quero colher a última lágrimaEmocionada,Jogar pro alto, respirarEnfim aliviada.

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SUGAR DA VIDACarmem Silvia da Costa

Enigmática vida À qual viemos a nadoE no verbo ser ou estar

Sugo-a como ser alucinado.

Pelo hoje e o amanhãRespiro o puro arO que alimenta a fome e sacia a sedeDela faz parte esse ciclo inesgotável.

Há! Suguei a vida Como um cantar de um fado No delírio da paixãoDebati pela razão e dei um tempo ao coraçãoA exemplo do poeta que fumou a vida na incertezaTambém na vida fumei tapeação.

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CONTO DE NATALCarmem Silvia da Costa

Os efeitos de luzes detalhavam as nuanças contidas nas orna-mentações natalinas. E quem quando criança não sentiu o en-volvimento descrito da época? As cores vibrantes das vestes do

velhinho Papai Noel de barbas longas e brancas parecendo se envolver mais no papel de Vovô Noel, carregando o saco de presentes, oscilando o brilho dos olhares infantis. E quem por ventura não fora o anjo natalino, ao menos uma vez na vida de alguém?

Tudo isso faz presente o menino Jesus em cada coração,num renovar de esperança e paz.

E foi nesse clima que uma senhora sentou-se na soleira da porta sem disfarçar a tristeza,desejando não dar importância a nada, pensando numa maneira de desviar a atenção da filha no que diz respeito ao presente que pedira ao papai Noel. Pinta, então, a figura do velhinho como personagem de riso que assusta as crianças, e que seu trenó passa velozmente e não per-cebe todas as casas. Achou melhor dizer que papai Noel não existe e que na verdade não tem dinheiro. Com os olhos lacrimejando, ficou surpresa quando a menina entrou muito feliz dizendo que papai Noel lhe trouxe de presente um lindo gatinho e o deixara no portão.

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ENCONTRO CASUALCarmem Silvia da Costa

As conversas ou fofocas estavam sendo “colocadas em dia”, como nós, mulheres, ás vezes usamos dizer. Enquan-to elas apreendiam a coser vários tipos de roupas, a tagare-

lice era geral. Os traçados de mangas, golas e ornamentos espalhados sobre a mesa deveriam atingir um objetivo específico: a montagem da roupa que surgia basicamente sob as medidas do desenho de um retângulo. Revistas de moda eram analisadas página por página e os comentários sobre os artistas eram indispensáveis, sem contar os atributos da culinária. E sob a coordenação da professora, o tempo ia passando entre um assunto e outro. Após uma pequena pausa:

- Mudando de pato para ganso, souberam da última? Sabe quem vai se casar?

Frase por frase até descobrirem o pretérito e o presente de um de côn-juges. Nesse associar de assuntos, por motivo de fidelidade, uma das alunas nos contou que ao estar em São Paulo, dentro de um ônibus, e antes de che-gar ao lugar destinado, conhecera um senhor alto, de cabelos grisalhos, que lhe fez algumas indagações sobre sua vida e acabaram por trocar algumas confidências. Ele, tomando um pedaço de papel, passou-lhe o endereço para um enlace de amizade. Despediram- se, e o referido papel fora parar em um canto da bolsa da tal senhora. Após alguns meses, ao remexê-la, encontrou-o e pensou sobre a importância que aquele encontro teria, sendo ela casada e com suas atenções e sentimentos voltados para o esposo. Refletiu, concluindo que aquele momento representou apenas um encontro casual.

Ah! Se houvesse aparecido uma fada madrinha com sua varinha má-gica e tocasse em suas mãos e dissesse “não jogue esse papel”, teria sido a esperança em nova fase de sua vida. O seu esposo falecera e a tristeza e a solidão tomara conta de seus momentos. No entanto, o lamento de não ter sequer decorado o endereço e então chamado a pessoa do encontro casual, significou algo especial para aquela senhora que terá recordações enquanto estiver numa cadeira, talvez fazendo crochê ou a descascar batatas, à espera do carinho dos netos.

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PARA ILUDIR A VIDACarmem Silvia da Costa

Para iludir a vida, fingi cantar.Cantei o canto dos que gememCantei o canto dos que choram

Cantei o canto dos que sonhamCantei o canto dos que amam.

Para iludir a vida, fingi poetizar.Poetizei o poema dos que são realistasPoetizei o poema dos que têm remida esperançaPoetizei o poema dos que propagam a paz.

Para iludir a vida, fingi pintar.Pintei a pintura dos que expressam nos muros a sua iraPintei a pintura dos que põem sua almaNa janela de um sorrisoPintei a pintura dos que vão além do marco de um limitePintei a pintura dos que respeitam ao criador da vida.

Para iludir a vida, sonhei:Cantar, poetizar, pintar.Cantei o poema,Poetizei o pintar,Pintei o cantar.

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SINTONIAElaine Cristina de Alencar

Na noite calada, surge ora um eco, ora um tinir de alguma coisa.Penso numa leitura, porém nada me agrada.Procuro o sono para livrar dos pensamentos, e tudo revela ser uma sintonia.

Constante, o pensamento requer a ação, sinto um combate entre o sim e o não.Creio no mais íntimo que há de bom no ser, e até mesmo em que uma inocente criança um dia possa ser: um adulto atrás das grades ou um fabricante do vício, para sobreviver.Um policial atrás do culpado e, quem sabe, uma vítima em silêncio.Todos estão em sintonia, contra ou a favor de duas forças que se impulsionam.E distante, a criança inocente, se pudesse, sussurraria: “sou eu em você, que brincava de bola ou de amarelinha, que jogava pedra para ver até onde ia, e da maldade esquecia.Ficar de cara virada, nem pensar! Lembro que minha mãe dizia: Criança não tem vergonha...Desta criança sentimos saudade libertada num sonho oculto adormecido.

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A ORIGEMElaine Alencar

Eu nasci!!!Ah! Quanta coisa a se ver, tocar, sentir...Me diga em sua essência:

A pigmentação dá o toque no cotidiano? Então ...O seu sorriso foi tingido?O amanhã está desbotando?O verde está morrendo?O negro está cobrindo o céu?O vermelho corre pela sarjeta?Então existe mesmo um colorido no caminho?Eu vejo meu crescer, na essência de meu semelhante, Que tinge sua vida em tons sombrios, muito próximos da noite.E no momento em que o sol nasce, prefere estar no leito da preguiça,Sonhando com seus fatos reais de crescimento, Não se importando se com seu pincel tenha sombreado as nuvens, para aquele temporal, Ou amarelado o verde das plantas para que amanhã ela padeça.É... acho que a visão, o toque, o sentimento estejam sendo esquecidos...Quem sabe amanhã “eles” acordem...E permita Deus que não seja tarde!

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ELEElaine Alencar

Uma grande mansidão,Alinhado em seu terno branco,Parado como sempre, ali na esquina...

Com seu pé esquerdo apoiado na parede,Dava as baforadas em forma de anéis que iam se dissipando no ar...Tinha um semblante enigmático...Aquela imagem se formava todas as tardes,Nos deixando inebriados...Primeiro eram as baforadas de um autêntico cubano. Depois...Vinha a surpresa, a qual todos aguardavam ansiosamente...Sacava de seu estojo o saxofone...e preenchia o ar com suas notas musicais.Melodias inteiras destiladas em um alinho sublime...Eram horas a fio dedilhando o instrumento com leveza,Até parecia que seus dedos brincavam nos acordes...Os transeuntes, paravam para ouvir tão belas notas sendo esculpidas por aquele ser brando; muitos deles esperavam ansiosamente o show vespertino... Sumertime, New York New York, Hotel Califórnia ..., Um vasto repertório o acompanhava.Sua feição traduzia um sentimento contido...Pudemos notar que seus dias eram de puro prazer E observamos que seu show recôndito brotava d’alma, enfim!.

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ETÉREOElaine Alencar

Em momentos dispersos,Me vejo despontar no décimo andar de uma “atração fatal”.Ganho a lua de presente!

E percebo que em tempos de transformação, O cálice alheio supre o desinteresse e comanda momentos de prazer, Sem se pensar, o que importa é sentir.As cores opacas, Em instantes se tornam reluzentes em um carinho eterno, Em toques macios e sensações supraemocionais.O pensar vai na constância do bem Que solicita espaço e acaba se perdendo no vácuo dos acontecimentos E caminha...Que sistema mais impassível vivemos, De certo, algum dia alcançaremos a estrela patente de nossa caminhada,Na terra descalça...Simplesmente nos resta imaginar e crer,Que o adeus é uma metáfora ,Do conhecimento inesgotável e irreversível!

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MEU ERRO...Elaine Alencar

Eu sinto meu corpo bailar, parado.O som da música adentra minha lembrança e logo os poros de meu corpo eclodem em euforia...

“Não me abandone jamais...”O som ecoa alto nas minhas entranhas...Vejo erigir a pele como um vulcão em plena erupção...Uma sensação algoz...Um misto de saudade e arrependimento...Ah! o arrependimento pela indigestão da saudade,De querer estar lá e não poder, Uma quimera de sensações pitorescas do que poderia ter sido e ...Lai’vem a realidade com seu balde de água fria...Existe algo indecifrável neste momento que açambarca meu espírito e me remete a um termo de colisão com o trans-posto...Tento rasgá-lo da mente, mas ao contrário a sensação é mais forte a cada momento do notar...Me embriago nas histórias e me sinto emudecer...O som alto na vitrola, a dança incontida e uma verdade sendo dita no LP...De repente, meu corpo para no espaço e não ouve mais a música,E então, daquela emoção emoldurada no passado,Fica somente um resquício no pensarDa saudade cravada no peito e o lamentar!

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O PROIBIDO EM AURORAElaine Alencar

Este amor, contato impossível,Não sabe mais por onde se enveredar...Por mais que os corpos se juntem...

A mente alarde a voracidade da situação!Até que ponto sermos proibidos, é um limite?Não nos demos conta que o mundo conspira contra nós.E esta cegueira soturna não nos aturde,Até o momento da rebelião,Invade certeiramente a razão de quem não quer ver.A vida insiste em nos pregar peças...Em contrapartida nós desprezamos o habitual, contextual... E partimos para o que é imoral (às vistas grossas).Até que ponto poderemos digladiar?Suponho que nem iremos ao “front”!Pelo descuido da ideia ter mesmo certo fim.Estaremos sim, eternamente ligados,Por uma memória incansável dos belos diasDe outrora, ou seria de uma Aurora?

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VOCÊElaine Alencar

Hoje acordei pensando em você...Minha mente fez uma trajetória bem remota, para tentar reconhecer sua face...

Vejo nitidamente o delinear do seu rosto sendo esculpido na minha mente,Viajo nos momentos de pura euforia que juntos vivemos e me vejo em crescimento contínuo...Percebo seu semblante ir se modificando com o tempo, mas não tenho o reconhecimento de seu movimento...Como será que os dias foram marcados em sua face e quais serão suas balizas?Tenho em memória as preciosidades do som da sua voz, me fazendo sorrir das coisas mais banais da vida...O jeito gostoso de me afagar e me iludir...Hoje, na saudade, a expressão do seu rosto continua a mesma.O sabor da sua saliva me embriaga só de pensar...E eu não tenho mais o que pensar...O meu sentir reflete a ausência e sua face faz agradecer pelo conhecer...Deus soube deixá-lo como presente na minha memória. Indescritível!

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VIDAElaine Alencar

No meu cotidiano camaleônico,Já tentei traduzir os sentimentos alheios e muito me perdi no caminho,Pela aleatoriedade de cada um,

Pela saudade que deixam nessa via, Pelo instinto banal com o qual cada ser pensa ser o certo.Me encontro em pedaços, tentando construir algo que seja sólido, natural.Mas pergunto: - O que é natural, o que é sensível, o que é? o que é? ...E me perco!...Em propostas nos concluímos, sempre em situações de decisão.Tudo nos parece tão tentador,Mas quantas armadilhas estarão prontas no pomar do conhecimento,Para nos prenderem e nos torturarem em horas de solidão?Bah! Como é triste, ser ou sentir-se triste.Me reparto em sinopses dos acontecimentos:Cada instante (de alegria) agradável, não cobre por mais que somem dez, Um único momento de dor, angústia, pesar...Colho na estrada a cada dia um pouco de conhecimento,Um pouco do saudável e dos confrontos que se esboçam ao menor impacto De se abrir os olhos numa nova manhã.Ah! Como é tardia a esperança de conhecer e sentir o humano Como algo comum, sensível e sem retoques. E ... (mas...)Todos se pintam de amarelo, azul, Lee, Kalvin Klein, Staroup E saem após terem escovado os seus dentes com Close-up.Como é ridículo, Mas não posso fugir deste óbvio, pois ele é presente e faz parte do merchandising,Do puro marketing que invade nossos olhosEm cada segundo que permaneça aberto e atento.

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A primazia é distante e a cobiça realça os olhos,E com feitiço próprio lá vai o ente em busca do maior. E vai em disputa.Quando menos percebe leva um tropeção e rala o joelho.Aí dói! E sua dor se estanca em ter de se reerguer e seguir a luta.Tudo se move na sensação da criação, de querer saber qual é o destino.Mas o contexto se esboça no querer e é muito simples,Temos todo o tempo para reconhecer que a estrada é de passagem,Que a história é verídicaE que não há muita explicação a se dar.Só nos resta sentir e guardar, compondo assim o grande quebra-cabeças.A Vida!

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BRIGAElaine Alencar

Um momento,O nosso tempo é tão escasso,A gente briga com a gente, a cada toque de carinho errado...

E sonha com um caminho retilíneo, sensato e agradável.E por vezes, nos vemos em “encruzilhadas, acendendo vela e rogando praga”.Passa-se um tempo e a gente esquece e recomeça a busca.Às vezes o caminho se torna hipercolorido, iluminado e parecendo autêntico.Numa sequência de acontecimentos saudáveis e que criam saudades, mas...Creio que a monotonia é tão dispersiva na nossa mente,Que a gente se sente como marionete em tempo de estreia,E na sensação da atrocidade, o corpo atropela a mente e cria sua própria sensação.Ah!!! A saudade se revolta em momentos contínuos,Os sonhos vagueiam na solidão e se sentem autótrofos, na carência do dia.A gente se pinta, dá um toque no visual e sai para a batalhaE o momento é proeminente em cada ensaio de palavra.Ah!!! Aqueles tons agudos de uma gama ardente em desejosE aqueles tons graves dos goles a mais da Brahma Solicitada.Pois sim, a gente se embriaga e sonha, percebe o tempo se esvairE se consumir a cada noite quando se fecham os olhos...No outro dia a briga continua...A sensação de perda se consuma.E por mais que se queira, o passado se torna eterno e não retorna.

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AMORElaine Alencar

A noite passa...E meu pensamento é um só,A natureza infinita que nos rodeia...

As estrelas que brilham no céu, ConstantementeMe dando forças para poder sobreviver,Em meio a tantas controvérsias existentes...E você também faz presença,Em meu pensamento...Você que me faz feliz,Você que me eleva o astral...E que me faz ser “eu”!Sim, é você que me acompanha,A cada passo,Me dando conforto e paz...Obrigado a você:Óh! sentimento profundo e louco:Obrigado, AMOR!!!

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A ESCADAEmília Goulart

A escada estava ali, na minha frente, contei mentalmente os de-graus que se afunilavam em direção ao vazio lugar nenhum. Minhas pernas bambeavam, me aproximei, olhei para um lado,

para o outro, à minha volta se espraiava um campo, planície seca com peque-nas áreas verdejantes. Um vento forte anunciando tempestade.

Nas laterais da imensa escada surgiu um corrimão, de arame farpado. Iniciei a difícil escalada ao lugar nenhum, não fui movida pela curiosidade, não. Em mim também se estabeleceu o mesmo vazio, árido, seco da paisagem.

Lá em cima não tinha nada, mas por algum motivo uma escada estava ali, e eu senti uma necessidade de chegar ao topo.

Topo de quê? Não sei.Livrando-me das pontas agudas do arame, ia eu em busca do nada.

Um furinho aqui, outro ali, coisas sem importância até o sangue começar a fluir e esbanjar um pouco de cor pelo corrimão cinzento.

As pernas começavam a dar sinais de estafa, dobravam, os pés come-çavam a se arrastar, mas soberbamente chegavam ao próximo degrau.

O corrimão de arame farpado deixado para trás indicava que mais da metade da escada eu já havia alcançado. Não era mais possível voltar e ape-nas olhar para trás provocava vertigens.

A escada quanto mais escalada, maior se apresentava. Não tinha fim. Os braços também já davam sinais de esgotamento. Ao deitar-me em um dos degraus para descansar da árdua subida, senti minha roupa se romper e um vento frio percorrer meu corpo.

O esgotamento tomou posse dos meus sentidos e o cérebro começou a debochar de mim espalhando um odor nauseabundo.

Braços enormes surgiam e ora lá em cima, ora lá embaixo, acenavam me convidando-me a descer ou a subir.

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Seminua, exausta e ferida. Fica difícil escolher um caminho seguro. Descer é sempre mais fácil, não fosse o orgulho a me impulsionar eu despen-caria da escada.

Coloquei-me de pé, agarrei-me ao arame farpado, corrimão da minha escada me fazendo sangrar, pensei em Jesus no calvário, me ajoelhei e re-zei.

A escada que hoje subo não é a mesma pela qual desci. Contudo a conheço bem, cada degrau é igual, tem a mesma altura, as mesmas dificul-dades que encontrei, estão ali em cada centímetro registradas.

Mas, não é mais um sonho, é a doce realidade que é viver, embora às vezes a vida nos faça sangrar.

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RUA TREZEEmília Goulart

Ainda há muito da rua Treze de Maio, não basta mudar o nome. Para apagar da memória a alegre triste vida desta rua, levará muito tempo. As histórias passam de geração a geração. Pe-

daços daquela rua se espalharam pela cidade e as meninas debruçadas nas janelas da vida, deslumbradas, acreditam que a vida mudou. O falso brilho da mais velha das profissões continua fazendo vítimas. Ninguém aboliu da escra-vidão as garotas de programa e fingir prazer fica bem distante da felicidade.

Aquela rua ainda guarda seus fantasmas, e ao se passar por ela, ve-em-se os becos onde a vida era mais sórdida. O grito de socorro era abafado, os carinhos vendidos, a proteção subornada. Quem tem curiosidade e um dia se interessar por ouvir sua história, vai ouvir os lamentos que escapam pelas rachaduras das paredes da rua dos prazeres poucos e sofrimentos múltiplos revelados vendidos.

O som das guarânias, boleros e tangos que ainda machucam o cotove-lo da Rua Quinze de Novembro abrem o arquivo morto da Rua Treze de Maio.

Assim como a rua, nada mudou da vida suada, misturada a Cashimire Bouquet, perfume Tabu e muito álcool,: a danada vida expulsa da Rua Treze se espalhou pela cidade distribuindo seus ais.

O nome realmente pouco importa, e suas casas são velhas lembranças que Araçatuba não quer apagar. O apogeu da agropecuária foi registrado ali sobre os sujos lençóis da poeira que a boiada levantava.

O preço combinado do prazer poderia ser por minutos, mas quase sempre a prostituta pagava. Com a vida.

Ainda há os saudosos que olham pelos buracos das fechaduras à pro-cura dos prazeres ali envelhecidos. Outros reviram o lixo, na busca do DNA dos pais. Boiadeiros, era a bola da vez, hoje são os jogadores de futebol.

Uma revelação importante sobre a prostituição eu ouvi certa vez de um

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delegado já falecido. Havia uma carteirinha e caso a mulher fosse encontrada duas vezes se prostituindo ela era fichada.

Indignada contestei: - Então poderia ocorrer de transformarem uma mulher em prostituta

independentemente da vontade dela.Era lei, acreditavam, com esta medida, diminuir a propagação da sífilis.Hoje está tudo muito livre ao ponto de experiência de vida ser confun-

dida com experiência da vida.Mudaram o nome da Rua Treze de Maio para 15 de Novembro. A pros-

tituta está sem rua, sem rumo e sem destino. O salário é a droga, e assim como a saudosa Rua Treze, ela continua na mesma, perambulando por toda a cidade.

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DEVOLVA O CONTROLEEmília Goulart

Se alguém encontrar o controle remoto deste planeta, por favor, devolva com urgência ao seu legítimo dono. Está mais do que provado que perdemos o controle. Por favor, atendam ao meu

pedido, antes que Ele descubra como somos indignos de um planeta tão belo.

Cheguei até aqui e foram me ensinando coisas novas. Andar com mi-nhas pernas foi uma. Alguém me queria aqui, mas não estava disposto a me carregar a vida inteira. Até ai, tudo bem! Fui bem cuidada não me queixo. Recebi boa educação, ensino religioso e muito amor. Depois acreditei que, as-sim como os pássaros, eu poderia voar. Triste engano, que me deixou muitas cicatrizes. Depois de algumas quedas aprendi a cair em pé, mas não desisti de voar. Andei por vários caminhos. Em alguns, encontrei pessoas desiludidas que voltavam procurando saída, pois os belos caminhos escolhidos ocultavam armadilhas e as saídas fechadas pelas drogas não tinham a sinalização de pare. Outros, sem a mesma sensibilidade, simplesmente não voltaram.

Galileu disse que a Terra é redonda, que caminhando em linha reta chegaremos ao ponto de partida. Não quero esse! Eu quero é encontrar uma saída para uma sociedade mal resolvida, origem principal de crimes e decep-ções.

Mas cadê a saída? Há certas situações que não têm saída. Qual cami-nho, então, Senhor? Se voltarmos no tempo encontramos Abel e Caim, triste exemplo para a humanidade. Se continuo Te encontro pregado na cruz. O que prova que o homem, realmente, não sabe o que faz. Caminhar ou ficar parada?

Vem até mim, Senhor, e guia-me! Não me sinto um habitante na Terra, me sinto posse. Estou perdida no meio do nada. Meu planeta é redondo... não tem fim, nem começo. Esta terra é movediça, suga o meu âmago com a sua

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gravidade. Sei que deve haver um caminho. Será que o escondeu sob a geleira e que iremos encontrá-lo quando ela se desfizer totalmente?

Nasce um novo ano e nele adentro sem saber o caminho. Além da li-nha do horizonte há um abismo. Uma força estranha me conduz e eu sigo com meus disfarces para escapar das armadilhas preparadas pelo ser humano. Pelos caminhos onde piso o perigo me espreita. Então Senhor, uma metamor-fose acontece e me torno permissiva e tolerante com a sociedade. Todas as minhas certezas são dúvidas. Afinal, para quê livre arbítrio se não sou dona das minhas vontades, circunstâncias me levam, eu apenas me engano?

Sou tua serva, Senhor! Faça em mim segundo a Tua vontade! Não dou um passo sem que Tu queiras, então não me soltes, pois não me seguro. Sem Ti cometo muitos erros, pois não encontro o caminho.

A bússola que me deste enlouqueceu ou este planeta saiu do eixo?Já não me queixo, apenas questiono. Será que Tu perdeste a autorida-

de? O controle da gravidade te caiu das mãos?Senhor, encontra-me, pois diante de tantos caminhos, me perdi de Ti.

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A ROSAEmília Goulart

1Rosa, poderia ser diferente esta amizade entre a gente.Mas que nome triste, o seu.Uma flor tão delicada, Mas foi uma mulher malvada, que teu nome recebeu.2Rosa partiu, que maldade.E para matar a saudade,nem seu perfume ficou.Deixou foi triste lembrança.Gravada na minha infância. Rosa, maldita vilã. Eu ouvi desde criança3Não consigo ver uma rosaTão somente como flor.Pois a rosa desta história, Foi pimenta malagueta Personagem de um dramaQue causou enorme dor.4Num lindo frasco de amorA rosa escondia espinhos. Reclamava todo dia,Que a vida andava sem graçaE uma mudança pedia.A Rosa fazia pirraça.

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5Logo depois exigia:— Se você não for eu vou.Nem mais comida fazia.O marido concordou,vendendo tudo que tinham. Fazenda e todos os bois,6Dinheiro foi pro colchão,E só a Rosa que sabia.A Rosa estava contenteMatou galinha, fez farofa.Tudo estava preparadoPra mudança inesperada.7Não se sabe certo a hora,em que a Rosa foi embora,deixando o marido pra trás,Montados no alazão,foi-se a Rosa o peão,E o dinheiro do colchão.

8No berço, duas criançasSem nenhuma esperança De que como iriam viver.Foram pra casa dos parentes Que não ficaram contentesMas que se há de fazer9Não gosto de rosa não,Nelas nunca boto a mão.Tenho sempre a impressãoDe que posso sair ferida.Rosas são muito bonitas?Ou é pura pretensão.

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10Esta história é verdadeira.Não saiu assim, de bobeira.Desde o berço eu a ouvia, contada por um peão.O filho desta rameira,Meu querido tio irmão.

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O CASO DO PADREEmília Goulart

O caso que o padre nos contou foi de arrepiar, hoje sei que ele queria apenas nos fazer acreditar que o inferno e purgatório de fato existem. Mas o que nos passou foi a ideia de que espíritos

voltavam e isto fugia do que acabávamos de aprender.È triste quando o caso contado foge da lógica pré-determinada. Crian-

ças viajam, o melhor é que as informações sejam bem claras.O sobrenatural povoa suas mentes sem nenhum esforço. Depois o que

fica na memória não desaparece tão facilmente. O que nos foi ensinado como certo, já não nos parece tão certo.

O padre era um bom padre, mas, nos aterrorizava com seus casos. Seus discursos eram longos e ricos em detalhes.

Éramos apenas crianças se preparando para a vida religiosa.Os dez mandamentos estavam na ponta da língua, já sabíamos todos

os atos que nos preparam da confissão a comunhão. Restava algum tempo até o dia da Primeira Comunhão e ele se empenhava para nos manter longe dos pecados que rodeiam os jovens, ilustrando o paraíso, o inferno e o purga-tório. Dante Alighieri perdia para o padre em requinte e ousadia.

Certo dia ele contou-nos um caso.“Dois estudantes muito amigos vieram do interior para a capital a fim

de estudarem e trabalharem. Inseparáveis, mas cada qual tinha seu modo de vida. Um religioso demais e o outro farrista: gostava de aproveitar a vida e er-rava nas doses, mentia para os pais, pois seu dinheiro nunca era suficiente.

O jovem religioso observava os ensinamentos cristãos que o exaltado padre repetia com ênfase: — Segue os ensinamentos cristãos!

Enquanto um estudava fazendo jus a confiança dos pais, o outro, bem, farreava e escarnecia do colega dizendo que ele não passava de um tolo; quando o primeiro mencionava o inferno ou purgatório, ele se consumia em

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gargalhadas. Até que uma noite, ao voltar para o quarto que dividiam, ele não chegou.

As horas se passaram, o seu companheiro acordava rezava e voltava a dormir. Estava inquieto e angustiado, o amigo deveria ter voltado, e apesar das diferenças, ele queria bem ao amigo e estava preocupado.

De repente o vento escancarou a janela e para dentro salta o amigo em chamas.

Desesperado ele joga sobre o outro um cobertor para apagar o foga-réu, o cobertor caiu no vazio e ele ouviu a voz do amigo a implorar:

— O inferno existe, reze para que eu vá para o purgatório, você disse que lá ainda se tem uma chance.

Por estar embriagado o rapaz acabara atropelado e morto.” O padre era maluco, mas até hoje eu tenho comigo que o inferno e o

purgatório existem.

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UMA GAROTA ESPECIALEmília Goulart

Ela apareceu e, no começo, era apenas um vulto que vinha em minha direção parecendo flutuar pelo sombrio corredor. Sua sala era a última, mas ela se atrasava na arrumação do seu material

e como sempre naquela noite não foi diferente. Como foi a última a deixar a sala, depois de serem dispensados, apagou a luz. Era miúda, tinha o cabelo preso em rabo de cavalo, seu sorriso desafiava o mundo, e seus olhos... esses, era um convite ao escândalo. Ainda trazia no corpo a candura e a inocência da infância. Ela era a síntese do devaneio que tirava o sono daquele rapazinho.

Paulo estava chegando como sempre atrasado, e alheio à suspensão das aulas, caminhava em sentido oposto, trazendo no canto da boca um cigar-ro que insultava a direção da escola. O mocinho de pose cinematográfica caiu no ridículo quando o cigarro, diante daquela aparição, escapou-lhe da boca e caiu transformando-o em um cômico atorzinho de quinta categoria. Felizmen-te só os dois estavam naquele corredor solitário, para assistirem ao triste final do mocinho que tropeçava em busca do seu único cigarro que a corrente de ar insistia em roubar, ou talvez a um castigo ao rebelde que sempre transgredia regulamentos disciplinares da escola.

Ela ria... ria muito da cena, quando ele se pôs de pé pressionando-a contra a parede. Seu sorriso foi ficando sério, o medo foi se espalhando pelo rosto corado e ingênuo.

—Assustou-se gatinha? Por que não continua com sua risadinha irri-tante? Não me diga agora que vai gritar.— continuava ele forçando-a contra a parede.—não vai mesmo gritar?—ele a provocava com ares de bandido.

—Não, ninguém me ouviria, todos foram embora.—Quer dizer que estamos sozinhos...o colégio é todo nosso.A informação que ela passara sem querer, a assusta mais e ela pede:—Por favor deixe-me ir.As luzes do corredor se apagaram, e ele ainda segurava entre as suas,

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aquelas delicadas mãos. Ela saiu correndo, e ao chegar à porta de saída, as últimas luzes foram desligadas. O prédio todo mergulhou na escuridão. Toda agressividade também foi desligada, havia desaparecido e o moço rebelde, sem saber o que dizer, ficou ali parado sentindo a delicadeza daquelas mãos se soltando das suas num suave deslizar.

—Perdi meu único cigarro por culpa sua. – estaria ele delirando? Tratando-a assim ou sonhando um lindo sonho, se fosse sonho ele não queria acordar. Ouviu os passos rápidos que desciam a escada, um passo, outro, mais outro que iam pisoteando o coração do pobre rapaz, enquanto ele se consumia em ardentes desejos.

—Ei, você não vai ao velório?–perguntou ela.—Que velório?—Você não sabe por que fomos dispensados?—Não faço a menor ideia. Fomos dispensados?—Onde você anda cara? No mundo da lua?—Sim, chegava da lua quando perdi meu único cigarro. Foi assim, ao

vê-la meu queixo caiu e meu cigarro também.—Vou recompensá-lo, representou bem o papel de bandido. Cheguei

a ter medo. —Não tenha medo doçura, sou terno e carinhoso, —Escolha um cigarro, ou um beijo?—Enquanto ele se preparava para

receber o beijo, ela apertou o fecho de uma caixinha mágica: — Demorou muito para responder, mocinho inseguro, não vai ganhar, nem um, nem ou-tro.

Sentindo que perdera o beijo, adiantou-se para o estojo, mas com uma rapidez espantosa, dessas que só acontecem em sonhos ou filmes, ela já o havia fechado.

—Não, não faça isso eu imploro, não negue um cigarro a um idiota, deixe ele se matar, não transgrida meu destino de morrer canceroso, tubercu-loso ou sei lá. Me d logo um cigarro antes que eu o tome à força.

Ela ria, ria muito, e o sorriso dela tinha o brilho e a brancura de anún-cios de creme dental. Se o cigarro já estivesse em sua boca novamente cairia,

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era a visão mais linda do mundo.—Sirva-se. —disse, estendendo-lhe o maço de cigarros.Serviu-se logo de três: acendeu um e guardou dois no bolso. Na se-

quência, tomado pelo cavalheirismo, retira um e oferece outro para ela, que o recusa.

—Obrigada não fumo, apenas faço pose e ajudo alguns suicidas.— Quer ser minha namorada?Antes que ela respondesse, um senhor, jovem ainda, aproximou-se do

casal.—Papai, que bom ter passado por aqui, assim não terei que levar meu

material escolar ao velório.A cidade não era grande, e o acidente com o professor já chegara ao

conhecimento de todos. Isto é, de quase todos.—Vá filha, porém não chegue muito tarde. Quer que eu vá buscá-la?—Não se preocupe, voltarei com minhas amigas.—Você está com sarna?—perguntou ela assim que seu pai se afas-

tou.—Sarna? Que sarna ,eu apenas tentava te lembrar dos cigarros, mas

agora já era, com certeza levará a maior bronca quando voltar.—Vou tentar alcançar a turma, tchau. Ah, caso queira agradecer os

cigarros, meu nome é...Ele não queria saber o nome dela, passou a mão pelo queixo ainda

imberbe e fez pose.Ela ainda esperou que ele dissesse o nome, e como nada ouviu, dis-

se:—Tchau Dean.—referia-se ao ator do filme “Juventude Transviada”

James Dean, e acertou, pois ele adorava essa comparação. Apressou o passo para alcançá-la.

—Espere, vou com você.—Aonde?—perguntou ela sorrindo.—Ao inferno, ao velório, aonde você quiser?—Velório ? De quem? —Não, chega de brincadeira, morte é assunto sério, você não disse

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que o professor morreu?Como era bom estar com ela, dizer e ouvir um monte de bobagens.

Apressaram o passo, ele antegozava a expectativa de que os vissem chegan-do juntos.

—Você ainda não me disse seu nome.—Para quê? Adorei o apelido.—Para não te decepcionar, direi que há sim, uma leve semelhança.

Uma leve.Flávio, amigo dele, passa por eles, assobia, segue adiante, e a uma

certa distância vira-se e grita:—Depois a gente se encontra no bilhar.—Pronto, agora você já sabe: além do cigarro tem também o bilhar.

—de repente ele parou, estavam em frente à capela funerária. —Olha, agora, acabou mesmo, porque não vou entrar aí.—Tem medo?—Não.— disse ele detestando ver de novo aquele sorriso. Para ele

era como se ela falasse com o sorriso, e neste momento ela criticava seu medo.

—Sabe, eu também tenho, não é medo do morto , mas da morte.Ela desapareceu se misturando às outras pessoas que entravam. Ál-

varo ficou em silêncio, mas se fosse sincero diria que também tinha medo do morto. Ficou ali remoendo sua covardia, torcendo para que ninguém o con-vidasse para entrar. Quase todos estavam fora da capela, cada qual exibindo coragem, e apenas ele se sentia como um idiota.

Alguém toca lhe o ombro:—Chegou cedo hoje ou dormiu aí? Ninguém te viu no velório ontem.—É... parece que morreu um professor, quem foi?—Que professor, cara, foi aquela menina linda da oitava série, a Nely

.— Nossa, ontem quando cheguei a mina estava aqui, depois a luz

apagou...Espera aí, quando que ela morreu? — Iiii...se situa bicho! Sai do pesadelo.

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MENINA SORRISOIsabel Moura

Naquela noite que te conheci, foi uma noite especial para min. Foi numa terça-feira dia treze de maio de dois mil e oito. Era reunião do Grupo Experimental, vim pela primeira vez e te vi.

Você estava tão cheia de sorrisos. Me cativou, começou nossa amizade.Foi tão bom te conhecer. Como o sorriso traz felicidade... Parece que

somos amigas de longo tempo. Com você aprendi muitas coisas boas.Meiga carinhosa no seu jeito de ser, de falar, espalha encanto. Onde

você está, está presente a alegria, o calor que deslumbra a alma.Menina sorriso, você sabe sorrir.Sorrisos que vêm de dentro do coração, sorriso perfeito colorido de

afeição. Sorriso que faz sorrir.Menina sorriso WANILDA BORGHI.

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MEU NOMEIsabel Moura

Interessada procureiSaber de você, seAche por

Bem seu nome serEscrito em meu coração, comLetras de saudade

Mas optei peloOuro que brilha como solUltrapassando asRegiões e fronteirasA descambar no arrebol.

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PORTAIS DE OUROIsabel Moura

Na oração eu pedi ao senhorPara ver a cidade no céuA bíblia diz que é muito linda

E de refulgente esplendor

Numa noite sem luarEstava indo para a igrejaQuando de repente no céuUma luz vi a brilhar.

Era o céu que ali se abriaComo um relâmpago no espaçoOs portais de ouro se abriramA linda cidade eu via.

A JESUS, no momento, clamei:SENHOR, meus olhos contemplamA gloria do teu poderMeu JESUS, meu eterno REI

Vi as ruas de ouro luzenteOs muros de jaspe e cristalO rio da água da vidaCristalina e transparenteOuvindo o coral eu choreiDo trono vinha o louvorQue encheu minha alma.Do sonho, feliz acordei

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ROSA DE CROCHÊIsabel Moura

O sono era demais. Olhos pesados como vagão de pensamento.Lá vai a locomotiva deslizando pelos trilhos na curva da soli-dão.

No sobe e desce na montanha da imaginação, soluço embargado, cho-ro, Ah, minha rosa de crochê. Me fere. Me machuca sem espinhos. Tão longe. Mas perto seu perfume, como nada.

Sem vida. Mãos delicadas na agulha trabalharam.No vai e vem das correntinhas, amarrou meu coração. Até formar pé-

tala por pétala.Tão formosa me traz inquietação. Teus olhos, ligeiros colibris a furtar a

seiva das flores, desaparecem no espaço anil. O tempo de repente passou. Só resta a saudade afogada na taça de um passado que ficou tão distante.

Ah, minha rosa de crochê.

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SERRANAIsabel Moura

Em barra bocarra do Arroio, marralheiros de farra amarraram o burrinho marrom no barraco do Marreco.Marreco arrufadiço morreu irresistível no morro Corrido no bairro

do Parreira em meio a uma borrasca.Parreira, arruaçado, com a guitarra de Parra Ferrara surrou-a no ter-

raço numa tarraga.Farrapo carrasco e sorrateiro subiu a serra no serrado. Achou nas ser-

ralhas Serrana carraça a derramar, correu ao barraco e aferrolhou. Serrana, estarrecida, agarrou o burrinho marrom que zurrava amarrado no barraco, arretado.

Arreminado, esbarrou na jarra de barro de Serrazina, correu ao ar-rais de uma marroaz. Derruído à terra torrada de Terríola Serril. Num terroso escorregou. As tarrachas desamarraram na corredeira. Farrapo irredento é arrastado pela correnteza a arrúgia do horror. Urro de terror o arruinou.

Naquela guerra do morre não morre, arrochado numa arrancada ao barranco, sentiu um arrojão a terra.

Arrepiado deu na carreira. Arribou a Marroco.E todo bizarro, agarradinho com Serrana na carruagem arruivada, es-

banja arrogantes sorrisos. Irradiante percorre o arruado em meio aos carros-séis, arrualhando.

Derretendo-se no sabor de uma tarraçada de jinjibirra com arrivismo. De repente ferroadas na barriga vêm horrorizar. Irreconciliavelmente interrom-pe. Irreal encerra. Irreclamável. Arregalou. Cirroteiro e hemorraidoso. Soterra-do por carrapichos e carrapatos a ferruar. Horropila.

Erros aterrorizam como carrego a atarracar o arrependimento. Mirrado morria um farroupa esfarrapado. Derrotado numa vida arrasada pela miséria terrorida.

3º lugar – prosa – I Concurso do GE – 08/05/2012.

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VOZ DOS ANJOSIsabel Moura

São lindas as vozesOuço bem as vozesVozes vozes vozes vozes

Infinidade de vozesNum coro as vozesTrazem aos ouvidos meusOs louvores no céuDos anjos de DEUS.

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PÁGINA EM BRANCOHamilton Brito

Estou recebendo do Senhor uma página em branco onde deverei escrever uma história. Nela colocarei aquilo que produzir, com os acertos e erros que a constituirão.

Estou acordando para um novo dia. Deverei vivê-lo e ao seu final algo estará escrito; bom ou ruim, serei eu o responsável, o autor.

Meu propósito é preencher a página com palavras nobres, sentimentos puros, conclamando à paz.

Creio que durante a minha vida desenvolvi o sentimento de humilda-de, de tolerância e compreensão para com os meus semelhantes e quantas vezes, nas páginas anteriores, ao fechar a história, algo aconteceu e a poesia que eu consegui manter até o momento, foi nas asas do vento ou na garupa do capeta.

Não faço com a frequência que deveria um exercício simples que po-deria ajudar na estruturação da minha história diária: fazer a mim mesmo a recomendação “descubra o que há de melhor em você e potencialize a vivên-cia diária do seu melhor para que possa crescer um pouco a cada dia.”

Outro dia vi na tevê um programa ensinando a conseguir harmonização entre pessoas e ambientes, pregando que problemas existenciais podem estar ligados à sua casa, aos seus ambientes.

Pode ser que sim. Mas se não houver a arrumação do seu ambiente anterior até onde irão os resultados conseguidos com o novo design da sua sala ou quarto?

A gente não lava o rosto todos os dias ao levantar? Lavemos também a alma. Aqueles sentimentos nobres que temos a cada final de ano, sentimento maior de solidariedade, de amor ao próximo podemos tê-los a cada início de dia. Estimular o otimismo, a confiança em Deus e em nós mesmos, de que va-mos escrever uma bela história. Que aquela página diária enriquecerá aquele que será o livro da nossa vida.

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Assim como para escrever bem é preciso conhecer toda a estrutura necessária, ou seja, aprender o papel do artigo, do verbo, da preposição, do sujeito, do complemento, da pontuação, o que é crônica, conto, poesia ou poema e demais, para viver bem é preciso conhecer os meios para fazê-lo.

O ser humano precisa estar em harmonia consigo e com o universo e para tanto precisará alimentar os melhores sentimentos que conseguir.

Para conseguir melhorar um pouquinho mais hoje, eu preciso lutar.Inicialmente pode ser difícil, mas cada conquista, por pequena que

seja, vai nos empurrar para um novo desafio.É preciso ter em mente que a natureza canta e que não seremos nós

que ficaremos chorando sobre possíveis leites derramados, e que a mudança do mundo passa pela nossa e tem que ser para melhor.

Mas só podemos ser melhores se a nossa mudança nos aproximar de Deus.

Os filósofos costumam dizer que a primeira pergunta que devemos fazer é: quem sou eu?

Quem sou eu... uai! Eu sei quem eu sou, o Estado sabe quem sou eu, no computador da prefeitura está quem sou eu, onde moro. Não falta enxerido para saber quem sou eu.

A primeira pergunta que devemos fazer ao acordar é: como tem sido a minha relação com Deus?

Para nós que não somos políticos, ministros, secretários, fica mais fácil responder à pergunta...

Concorda?Voltando à filosofia, ela prega que somos um ser substantivo, um ser

único, fonte de tudo, ser infinito, eterno.Então, tome cuidado para não ir para o além sendo um ser

de...”merde”.A cada página em branco recebida de presente todos os dias, com

clareza e uma boa caligrafia escreva a sua história. Ela poderá não receber um Pulitzer, mas quando Deus ler o que estiver escrito, certamente dirá:

-Pedro, estenda um novo tapete vermelho. Está chegando um dileto filho.

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DUAS LÁGRIMAS Hamilton Brito

Marcos já beirava os quarenta anos e ainda não tinha suspira-do por ninguém. Quantas “conheceu” nem sabe responder. Exigente? Até que não.

Sua profissão fazia dele um andarilho. Quer dizer,.andarilho...era mais “ carrilho” ou “ aviaõzilho”.

Ora um contato em Porto Alegre na terça-feira, ora um em Belém , no Pará., na quarta.

A permanência nestes lugares era sempre pequena e assim não dava tempo de conhecer alguém mais profundamente. E olha que tinha encontrado uns “ alguéns “ de tirar pica pau do oco.

De certa feita conheceu uma morena muito bonita em Itaúna, Minas gerais e ficou encantado. Sentado em um restaurante, notou-a mais à frente com uma colega. Percebeu que ela comia, olhando maliciosamente para ele, uma coxa de galinha de um modo estranho, como se a chupasse...esquisi-to!

Como não houve o fechamento do negócio naquele dia, não deu baixa no hotel e voltou ao mesmo restaurante para o jantar.

Olha a morena lá e desta feita, sozinha. Pediu licença e sentou._ Oi, você pede o que comer e eu escolho o vinho.- Está certo, mas antes vamos combinar o meu preço. Meu nome é

Maria.Assim, na lata, na cara dura. Uma das mulheres mais lindas que já

tinha visto na vida.-Ave! Esta Maria.... Santa Maria, pensou.-Olha, vou ao meu carro, pois esqueci a carteira e volto já. Enquanto

espera, aproveite e faça a encomenda para mim. Peça um Gravas Del Maipo, da Concha y Toros Já volto.

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Saiu, foi ao carro e se mandou dali.-Desgraçada, vais pagar setecentos mangos pelo vinho e quem sabe

para acompanhar um miojo alho e óleo.E assim as coisas iam acontecendo e ele nunca se decidia por nin-

guém; umas mais assim, outras mais assadas e o seu coração continuava livre, por menos que estivesse gostando.

Férias de final de ano,passou a mão na mala e foi para a Europa. A crise estava bem acentuada, a moeda em baixa com o real em alta, oferecia ótimas possibilidades.

Ficou zanzando à procura de bons programas, freqüentando bons restaurantes, bons teatros, até que viu na tevê um anúncio: André Rieu live at Acropolis.

-Ué, Yanni at Acrópolis até ta. Mas o “ cumpadi” André? Vou ver.A passagem aérea na Europa é mais em conta do que a que permite

ir de São Paulo ao Rio pela Reunidas. Mas a Reunidas tem que manter o Vôlei Futuro e só para ver a Paula Pequeno parada em quadra isto se justifica plenamente.

Casa cheia, conseguiu um lugar frontal bem perto do palco; como se diz no futebol: na zona do agrião. Não porque fosse um sujeito de sorte ou lindão e sim porque deixou metade do salário de um ano na bilheteria.

Que classe, que luxo. Quase igual aos shows do Chitãozinho e Xororó no Credicard Hall...

Sed libero nos a malo.Platéia em alvoroço até que começou a apresentação e as músicas

famosas da orquestra foram se sucedendo. Ora silêncio, ora ovação estron-dosa.

Até que se apresenta Carmem Monarca, uma brasileira que é conside-rada pelo próprio André como a mais bela voz do mundo. O maestro a anuncia cantando Ave Maria, de Johann Sebastian Back.

-Vote meu, este cara tá doido. È de Gounod.Silêncio profundo. Emoção intensa. Quando se dá conta uma lágrima

surge em sua face. Pega o lenço discretamente, mas olha de lado e vê uma

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loira, holandesa veio saber depois, aqueles cabelos , aquele...aquele...Meu Deus! Nela, uma lágrima também.

- Você sabia que a Carmem é brasileira?-E você , sabia que o André é holandês?-Mas ele disse que a Ave Maria é de Bach.-Ele disse e é.Como a holding da sua empresa ficava na Holanda, uma transferência

foi arrumada e as duas lágrimas foi o preço que pagaram para ocuparem um espaço ali onde as terras são baixas.

O que uma Ave Maria separou, uma Ave Maria uniu.

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TIÃOZINHO Hamilton Brito

-Bom dia, senhor, esperamos que se sinta bem a bordo da Lufthansa. Meu nome é Cristina Rotchild e ficarei contente em servi-lo .

- Você pertence a que ramo dessa família. Dos vinicultores famosos?-Sim mas é um parentesco bem distante. Com licença.Assim dizendo foi se afastando com um caminhar elegante, mas mos-

trando um “derrière” maravilhoso, ornamentando um par de pernas escultu-rais. Ele olhava embevecido e baixinho resmungou:

- Bem , este cálice o Senhor pode aproximar de mim. Engenheiro , proprietário de uma firma especializada em construção de

barragens para usinas elétricas, Sebastião, que na intimidade era conhecido por Tião, dirigia-se à Europa para fechar contrato.

Ele não tinha problema em ser chamado Tião...Era rico. A desgraça é ser chamado Tião e ser pobre....Tiãozinho, que ridículo!.

-Aceita algo para beber, senhor?Quando ia responder sim, notou que não era ela. Nada quis.Não demorou e ela passou ao seu lado.-Cristina, você poderia trazer-me um Bourbon?Quando ela foi entregar o copo com a bebida, ele, de propósito, deixou

cair o líquido em seu próprio colo, provocando na moça imenso constrangi-mento.

Ela o convidou para o lavabo onde providenciou a limpeza da calça. Enquanto ela o atendia, o danado se fazia de vítima. Ela ficou inconsolável.

- Bem, para compensar você pode indicar-me um bom hotel em Pa-ris.

Alcançar o que desejamos só depende das nossas escolhas e atitudes, só depende dos caminhos que escolhemos percorrer. “Vou percorrer o dela”, pensou.

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- Vocês, das companhias aéreas, costumam ficar em bons hotéis. Em qual estão hospedados?

Ela sorriu e se afastou, sem responder. Todavia, Tião que se preza não desiste assim fácil. No balcão, mediante um substancial mimo, ficou sabendo: Hirondelle Inn.

Naquela tarde, após alguns contatos preliminares com corresponden-tes da sua empresa, voltou correndo para o hotel, colocou-se no prumo e encostado ao balcão do piano bar, ficou à espera.

- Olá madame de Rotchild, que feliz coincidência! -Olá, você sabe o meu nome, mas eu não sei o seu.-Sabe sim, está na lista dos passageiros. Sebastião, “enchanté”!Por mais que ela se esquivasse não conseguiu recusar o convite para

um jantar no Chardenoux, que apresenta uma cozinha leve, onde produtos frescos da mais alta qualidade são oferecidos.

- Desde que você não faça questão de tomar um Montrachet Domaine de La Romanée Conti 1978, pois a minha empresa iria à falência, podemos pedir, por exemplo, um Hermitage La Chapelle de safra mais recente, que tem ainda muita qualidade.

-Tiãozinho, quer dizer, senhor Sebastião, você é um bom conhecedor de vinhos....Que prato pediremos para acompanhá-lo?

- Ah! Um de porcelana chinesa, quem sabe da dinastia Ming.- Seu fi...Só mesmo um Tiaozinho para uma tirada indecente como

esta. Tenha uma boa noite.De Paris ela iria para a Itália, depois Alemanha e retornaria a Paris, pois

era a sua escala de trabalho. Uma semana ausente.O nosso herói terminou o seu compromisso, mas não retornou ao Bra-

sil. Esperou, e numa tarde de sexta feira ela entra gloriosamente pelo hall do hotel.

-Ora, Tião, você por aqui ainda?-Sei que amanhã e domingo você estará de folga e estou pedindo,

melhor, implorando para que me acompanhe a um passeio pela cidade. Quero conhecê-la.

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-Conhecer Paris?-Paris!?-Quero conhecer você. A cidade eu conheço.De bateau-mouche navegaram pelo Sena, fizeram o que se chama de

passeio óbvio pela cidade, indo até a Torre Eifell, depois Louvre, Notre-Dame, Praça do Trocadero, Palácio de Versalhes.

Ela foi descobrindo nele uma rara sensibilidade, um jeito meigo e poé-tico ao referir-se aos lugares mais bonitos e famosos da cidade. E o jeito que ele a olhava. Ah! Tião desgraçado...

- Será possível , meu Deus, que eu possa casar-me com um Tiãozinho destes?

Casou.Na viagem de núpcias, acomodaram-se nas poltronas que os levariam

para um resort nas Filipinas e, ao receberem as taças de champagne da ae-romoça, Cristina disse:

- Preciso tomar cuidado para não derramá-la em você novamente.- Querida, eu derramei...- Só mesmo um Tiãozinho muito do filho da puta como você faria

isto.....Foram felizes para sempre. Um Tiãozinho e uma Rotchild....Roths-

cild?Não, só Rotchild.

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UM CONJUNTO EM SEPARADOHamilton Brito

Inshalah!Lorena era uma mulher bonita, alta, graciosa, já profissional ex-periente, com uma situação definida. Como tantas mulheres que

existem, felizmente, por aí.Seu grupo social era da melhor qualidade. Gente jovem, esportiva, in-

telectualizada. Enfim, neste canteiro da vida, era uma flor bem cuidada e no esplendor da sua beleza.

Como sói acontecer em tais casos, tinha um namorado, melhor, tinha um amor...Tinha e terá para o resto da vida. Só o amor, pois o namorado...

Formavam um belo casal, alegre, divertido, davam luz a qualquer roda de que participassem. Era boca corrente:

- Cara, tenho inveja dos dois. Luto feito um desgraçado pra encontrar uma mulher assim.

- Menina, que homem é este Bruno. De que ostra a Lorena tirou esta pérola? Em que mar mergulhou?

E la nave....Ia.O namoro já se estendia por alguns anos e resolveram que tinha che-

gado a hora de colocarem outra pessoa entre eles.Seguiram as recomendações ditadas pela natureza para estes casos

e patrocinaram aquela famosa corrida na qual o ente vitorioso ou sai com a cara de um ou com a cara de outro....Quando não sai com a cara do avô ou da avó.

É bem verdade que em alguns casos sai com a cara do vizinho...Abso-lutamente não seria este.

Rubem Alves: “ A vida é assim mesmo. É sempre possível deixar o bar-co atracado ou só navegar nas baias mansas. Aí não há perigo de naufrágio. Mas não há o prazer do calafrio e do desconhecido”

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Não havia baia no mundo mais mansa do que a que eles tinham atra-cado o barco das suas vidas. Por um destes fenômenos inexplicáveis e ines-perados, um verdadeiro tsunami veio na figura de uma outra mulher e um dos remos se desgarrou.

Ultrapassado o percalço da primeira e violenta onda, Lorena encontrou forças para aproveitar-se do remo restante e usá-lo sozinha.

Logo não estaria mais, questão de meses...Sentiu no mais profundo da sua alma a dor da separação, mas em

nenhum momento fez qualquer comentário desairoso sobre o homem, que segundo palavras suas, ainda era o seu amor.

Não se poderia esperar outra coisa de uma mente clara como o sol da manhã, de uma alma pura como aquele florzinha lá no meio da pradaria..

Mas um bom observador sabe avaliar quando vale a pena lutar para conseguir algo ou alguém que seja raro e valioso.

Uma das características do grupo social é a interação; diz-se que há dinamismo nele porque, vulgarmente falando, a fila anda. Pela lei da impe-netrabilidade, dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. Naquele espaço havia um lugar vazio.

Naquele espaço físico havia sim. Mas naquele do coração, aquele que se foi ainda estava lá.

Sempre, por mais que seja homogêneo um grupo, há alguém diferente...O alguém, no caso, chama-se Lauro.

Homem já na fase das regalias, tais como, lugar privilegiado nas filas de bancos e supermercados, bailes às quartas-feiras porque nas quintas po-deria dormir até ao meio dia e com a sensibilidade própria dos da sua raça – era muçulmano - começou a se insinuar e as suas intenções eram realmente o desejo de dar o seu amor àquela mulher e ao filho dela.

Mas nada fazia ou dizia. Apenas olhava e sorria para ela, quando se encontravam.

Uma verdadeira mulher sabe diferenciar o joio do trigo e percebeu que aquele homem a amava de verdade, não era um aproveitador de momento,

Um dia ele lhe disse:

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- Sabe Lorena , um homem na minha idade não espera mais pela chegada do amor. Nós sabemos como construí-lo. Temos todos os elementos necessários para estabelecermos uma relação de amor com uma mulher que o mereça. Invertemos a mão e sabemos como fazê-lo. Diz-se que um amor se mantém quando tudo funciona na horizontal. Nós sabemos construir uma relação sólida a partir da vertical. Sabemos todas as alternativas, os diversos caminhos para solidificar e tornar prazerosa uma relação a dois e...

-Fico feliz por você, Lauro.Inshalah!

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DO COMEÇO PARA O FIMHamilton Brito

Era uma tarde de outono, folhas amarelas pelo chão e Bernardo caminhando naquele lugar. Os pingos da chuva, como não havia sol, eram apenas pingos de chuva e não pérolas pendentes dos

galhos. Sentou ali na relva molhada, entre aqueles canteiros retangulares e leu um nome.

- Luizinho, cadê você, moleque?- O meu irmão não está, saiu para jogar bola lá no campo do Salesiano.- Ah! Filho...Ficou de passar em casa, com a bicicleta e me deixou na

mão. Agora tenho que correr, senão me deixam de fora.Das peladas das ruas às pescarias de bagre lá no chiqueirão perto do

rio, passaram a infância. Mariana, irmã do amigo, continuava envolvida com suas brincadeiras de meninota e nem ligava para o que o irmão e seus amigos faziam.

O tempo foi passando, os primeiros fios de barba aparecendo e Ma-riana já não mais com as suas brincadeiras de meninota. A lua e o sol se revezavam no céu, mas a beleza de Mariana era crescente e constante.

- Moleque desgraçado, não respeita a irmã do melhor amigo?Lembra-se perfeitamente. Um dia estava brincando de médico e pa-

ciente com ela. Estava fazendo um exame no corpo dela, quando o tapa na orelha veio sem avisar.

Levaria todas as surras do mundo dadas pelo pai dela, mas a surra que a vida lhe dera, estava impossível de suportar.

No começo a aproximação foi difícil. Mariana o via como aquele mole-que de outrora, eterno bebê Johnson, como o chamava e nenhuma esperança lhe dava.

Um dia, fazendo o curso clássico na mesma sala, arrumou uma en-crenca com um colega que estava dando em cima de Mariana.

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- Você não é nada meu, seu chato. Não sou sua namorada!-Ainda não, magrela.Então é que ficava tudo danado. Quando a chamava de magrela, o que

ela tinha na mão jogava. Um dia jogou o apagador da lousa. Ele levou três pontos na cabeça.

Bernardo foi fazer medicina na capital; Mariana, direito...na capital.Escolas próximas, as respectivas pensões não eram longe uma da ou-

tra e os encontros foram se tornando frequentes. Como só tinham um ao outro da mesma cidade, amparavam-se nas horas de saudade de casa, mas depois perceberam que não era bem por isso.

- Eu amo você, Mariana.- Bernardo, não consigo entender o porquê, mas eu amo você tam-

bém...Você não presta, amor.Embasados nas respectivas culturas específicas, estudavam-se à luz

da medicina e do direito. Como não chegavam a uma conclusão...- Vou avisar ao seu pai que vamos casar.- Está vendo como você não presta? Você não vai avisar, vai é pedir

minha mão em casamento.- Tá, eu peço a sua mão então. Já tenho o resto.- Cachorro.- Mariana, se for homem, como vai se chamar nosso filho.- Será mulher e vai se chamar Lorena.Casaram-se...Adveio um câncer de cólon. Não deu tempo de Lorena

chegar.-Papai, o que mamãe está fazendo aí?

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O CAUSO DE UM DOTÔManuela Sant’ana Trujilio

Belinha era uma caboclinha do Sertão, linda como um botão de rosa, rosto corado. Seus zóio parecia duas jabuticaba. Era fia de um casar lá das bandas da Fazenda Primavera.

Eu e minha muié, fumo nóis que batizemo ela, no arraia de Vila Formo-sa! Eis tocava roça perto da fazenda que eu tomava conta...nóis era vizinho.

O cumpadi Tonico, mais a cumadi Tiana, era famia de gente muito boa, mais boa memo! Eis ainda tinha mais treis fio: o Tico, o Chico e o Tonho. Belinha era a caçula, nossa fiada.

Só que as coisas num ia muito bem prô meu cumpadi não. Cuitado tra-baiava, trabaiva, ele, a muié e us fio. Nunca sobrava nada! O cuitado passava o ano inteiro prantano, mais quando cuáa arguma coisa, ia vendê prôs home da cidade, mais falavam prêle que num tinha preço. Mais cumo eies precisava di dinheiro prá pagá os fiançado, entregava pur carqué preço memo.

Um dia, cumpadi se emburreceu i falo que ia s’imbora prá cidade, i foi memo. Juntô tudo as tranquera dele, pois em cima dum caminhão i foi s’imbora.

Eu dei conseio prá ele, qui num fosse, mai ele era temoso i num quis iscuitá.

Ah! Meu cumpadi. Se ocê tivesse iscuitado, tarveis hoje fosse tudo diferente...

Quanto eis foro imbora, ainda levaro arguma coisinha qui tinha so-brado: levaro banha de porco, sabão feito em casa, arguma carne seca dos bichinho que nóis matava quando ia caçá.

Chegaro na cidade, mais ficaro tudo sem serviço. Também eis num sabia fazê nada, só sabia carpi e cuidá de prantação.

Sem tê u qui fazê, meu cumpadi começo a bebê mais ainda.O Tuca, fio mais veio, foi simbora prá Mato Grosso junto cum pião de

boiadero; Tonho foi pra Goiás, esse ninguém nunca mais fico sabendo do paradero dele; o Chico sabia cantá e tocá viola e foi só um circo aparecê na

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cidade, contratô ele e levo ele emboraA Belinha, coitada, num guentô ficá co pai, que só chegava bebo em

casa; fugiu cum cabra safado; prumeteu casá cum ela, mais qui nada!...o infeliz já era casado i ela num sabia e só prestô mermo prá dexá ela barriguda e depois abandoná. Aí ela cumeçô a trabaiá numa pensão, mais quano ela fico pesadona a muié mando ela imbora.

A cuitada num tinha prá onde i, e foi Pará lá im casa inté ganhá a criança.

Depois qui nasceu o menino, ela pediu prá nóis cuidá dele, pois ela ia vortá a trabaiá na pensão, mas qui pensão qui nada...

Sho...ela caiu memo foi na vida; isqueceu inté do fio, que tinha dexado conóis.

Eu e minha muié, cuidava dele, cum todo gosto. Nóis num tinha fio mermo!

Eu era capatais da fazenda; Um dia meu patrão pediu que eu fosse cuns pião buscá uma boiada em Mato Grosso. Arriei meu cavalo, dei um abra-ço na muié e no minino e piquei chão junto cá comitiva. Quando nóis tava de vorta por uma estrada, cheia de barranco dos lado, já mai ou meno perto da cidade, eu vi um vurto caído na bera da estrada. Tinha chuvido munto naquela noite; aí mandei Pará a boiada e cheguei perto pra vê quem era. Era meu cumpadi, ali morto; tinha morrido afogado no meio da enxorrada.

Óia, vô contá uma coisa proceis: eu fui um home que chorei bem poco na minha vida, mais o meu sentimento foi tão grande, que as água num parava de caí dos meus zóio, quando vi a enxada do lado dele e o borná cum calderão di cumida, um pedaço de fumo, umas paia de cigarro, o canivete e a garrafa de pinga vazia, cum certeza ele tinha ido trabaiá por dia ali nos arredor.

Despois que eu tomei todas providência prô enterro dele, eu vortei prá casa, e o tempo foi se passando.

O meu patrão gostava muito de mim. Nóis fumo criado junto; o pai dele queria que eu estudasse, mais eu nunca quis não. O que eu gostava mesmo era de amansá cavalo bravo, laçá bezerro... Eu era pião de boiadeiro e me orguiava munto disso; tocá berrante, quando ia buscá boiada era a coisa que eu mais gostava de fazê.

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Agora meu fio tava crescendo e precisava estudá. Um dia meu patrão me falô: Já que ocê num quis estudá, pelo menos dexa u minino!

O Seu Humberto tinha um fio, que era mai ou meno da idade do meu e ia manda ele estudá no Rio de Janeiro, prá sê um Dotô; foi aí que eu arresorvi dexá o meu i junto co dele.

Ficaro por lá durante munto tempo inté que um dia arrecebi uma carta do meu fio, dizeno:

- Pai, venha assistir àminha formatura, pois, graças ao Senhor e ao Sr. Humberto, daqui mais uns dias serei um Advogado e vou honrar muito esse título, pois, se Deus quiser, serei muito famoso...

Quando cabei de lê a carta, mais uma veis as água caíro dos meus zóio, só que agora era de alegria. Abracei minha muié e nóis dois choremo junto.

Nóis pensava nunca tê um fio, mais agora nóis tinha um; num tinha nosso sangue, mais era mesma coisa que fosse um pedaço da gente.

Meu fio era agora um home, Dotô Adevogado!...Agora Vila Formosa tinha virado cidade, e cum arguma economia,

muntei um consurtório prô meu fio, prêle ficá mais perto di nóis. Toda veiz que eu ia buscá uma boiada, fazia questão di passá na rua e mostrá prôs meus companhero, onde meu fio trabaiava.

Lá tava escrito:‘’Dr. José – Advogado’’O nome dele era iguar do meu, só que meu apelido era Zezão; agora,

meu fio fazia questão que chamasse ele de Dr. José.E eu continuei na fazenda, sempre viajando com a boiada, poi isso era

minha razão e Belinha continuava na cidade...era dona de um Cabaré e nada mais existia daquela menina que conheci, que peguei no colo; jamais pensei tê uma sina dessa, pesar dela tê um poco de dinheiro dava prá vê no seu zóio fundo e no seu rosto enrugado, as marca do que o distino feis com ela.

Quando eu fiquei co menino, ela prometeu guardá segredo, e isso ela cumpriu; José pensava que era nosso fio!

Numa noite, eu não sei pruquê, num sentia sono e aí escuitei um tropé de cavalo, chegando na portera e us cachorro não parava de lati. Peguei a espingarda e a capa e fui vê o que era. Vi uma muié apiá do cavalo e corrê ao meu encontro me pedindo socorro. Era Belinha!...

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No disispero, ela falô que tinha matado um home; aí eu preguntei préla: Cumo aconteceu uma coisa dessa?

Ela falô qui num sabia. Esqueceu a janela aberta e um ladrão entro prá robá, mais ele tava di costa e ela atirô sem rumo, mais a bala pegô em cheio; Tava meio escuro e num deu préla vê quem era. Naquele desespero todo, saiu correndo e foi pará lá em casa.

Aí eu falei préla dexá u dia manhecê e nóis vamo vê o que fazê. Aí falei préla: Ocê tem que se entregá prô Delegado, mais prá isso, tinha de arranjá um advogado...

Eu falei préla do José, mais ela num quis de jeito nenhum, e nem que-ria que ele soubesse que ela era sua mãe, inda mais nessa condição.

Prometi préla que um dia ia revelá o segredo, ela disse: - De jeito nium! e de tanto eu insisti ela cabo concordando.

Quando o dia manheceu, arriei meu cavalo e fui conversá com José, meu fio, um home bão!...nem parecia sê Dotô. Na mesma hora atendeu o pedido.

Eu temia munto o incontro dos dois, mãe e fio, mais intreguei tudo nas mãos de Deus.

Quando Belinha fico na frente do fio, pensei que num fosse guentá, tava branca que nem um pano. Percebi que José também sentiu arguma coisa, mai ficô calado... E fumo prá Delegacia!

Quando nóis chegamo lá e o Delegado começo fazê pergunta, e lê uns paper, foi aí que falô o nome do morto: Belinha desmaiô, puis ela tinha matado o home qui enganô ela e o pai do José.

..........................- E assim, eu ouvi tudo o que meu pai tinha para falar.Disse para ele, que, para mim, nada tinha mudado, pois o pai que co-

nheci, foi ele. Ele fez de mim um homem de verdade e quanto a Isabel, ela foi apenas uma vítima do destino que não tinha culpa de nada.

Após algum tempo, tornei-me um Promotor e lidei com muitas causas.Jamais irei me esquecer dessa, pois ela faz parte da minha vida...’’

Dr. José

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É MENTIRA, NÉ?Manuela Sant’Ana Trujilio

Diz que as coisa anda ruimÉ mentira, né?Tá tudo é muito bão

Tô bebeno de montãoE tô comeno atéEu andava de chineloAgora é sapato e meiaNo meu barracoA dispensa lá tá cheiaTem limpa guélaChurrasquinho de filéTô bebeno de montãoE tô comeno atéEu como, eu como, eu comoEu como, que só venoA barriga tá crescenoDe tanto churrasco, né?Eu não agacho, né?Eu não acho muito chatoO diacho é que agoraNão dá pra amarrá o sapato.

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HOMENAGEM Santa Cecília & Cecília Vidigal Ferreira

Manuela Sant’Ana Trujilio

Santa Cecília é...Da música a padroeiraSendo assim ela é também

Dos músicos a companheiraQue história tão bonita!Dessa Santa musicistaQue inspirou grandes poetasDurante a vida inteiraNa Academia A de LetrasNesse lugar respeitadoTem uma linda acadêmicaDe traços tão delicadosUma escritora de fibraDas letras ela é amanteSemeando as letrinhasNasce um lindo romanceCecília VidigalCom palavras bem formadasTraça várias nuancesFlorida é a sua estradaSó mesmo sendo uma DivaCom dotes de sabedoriaPara escrever as riquezasQue na alma traz guardadaCecília entre metáforas

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Rica de alta nobrezaContinue nos premiandoCom a sua arte e grandezaDeus lhe deu bonito domAbrace, ele é todo seu Poetisa de talentoQue escrita mereceuSanta Cecília é...Arco celeste da féSimboliza harmoniaCântico do amor e poesiaCecília Maria Vidigal FerreiraPoeta inspiradoraTrabalhando com as letrasSua obra é encantadora

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O QUE O ESPELHO NÃO REVELA:

QUEM SOU EU?Manuela Sant’Ana Trujilio

Hoje aos sessenta e seis anos, olho no espelho: vejo rugas e cabelos brancos. As marcas do tempo são ponteiros que determinam tudo, sem-

pre ali no controle, não dão chances.Fugir para onde? Se, delas, ninguém escapa!Todos têm que aceitar, a prova aí está.Dá para disfarçar ? Dá, mas até quando?Eu que passo parte de minha vida perguntando quem sou eu para este

espelho silencioso que nada me responde, tenho medo das picadas veneno-sas enquanto, ao mesmo tempo, me ajoelho diante do altar da natureza, co-nhecendo bem as belas manhãs, o calor do meio dia, e o suave entardecer.

Quem sou eu, que você, espelho, não me revela? E nem o porquê destas rugas? Destas linhas profundas num constante embaraçar que não consigo entender?

Se você não responder acharei que é o culpado. Que bobagem pensar assim. É que ultimamente não o tenho olhado tanto quanto antes. São os afazeres do dia a dia. A responsabilidade com a família, o trabalho, você sabe como é este corre-corre.

Você sabe de tudo, mas não sai de dentro de casa, pendurado na pare-de da sala, na porta do guarda-roupa, no banheiro, até dentro de minha bolsa está! E não quer sair desse aconchego, mesmo que eu de vez em quando o olho para descobrir quem afinal sou eu. E você é mudo.

Será que é porque não me mostra mais aquele rosto tão angelical de outrora? E os cabelos que perderam a cor? Creio eu que o fio branco de hoje é a brancura do saber. Ele revela a beleza

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das experiências de um longo caminho traçado, alegre e feliz por ter recebido as bênçãos de Deus e a graça do entendimento. Mesmo porque ninguém vem a este mundo por acaso. Todos nós temos nossa missão . Se eu a cumpri , não sei, choro à toa, só vou saber quando passar para o lado de lá, levando a bagagem do que o espelho não quis me revelar

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NOS CAMPOS QUE PLANTAM FLORESMaria José da Silva

O cultivo de flores é chamariz dos beija-flores e atração de borboletas de todas as cores.Quem tem mais valor? - a flor, o beija-flor

ou as borboletas com as suas variadas cores? Todos são importantes: as borboletas, deslumbrantes, e as flores, aconchegantes.

Os beija-flores transmitem amor na casa de qualquer senhor.Ave pequena de grande beleza,Dela precisa a natureza que passeia E, de repente, atrai o olhar da gente.

Diziam os grandes poetas: as borboletas são enfeites da terracom os pássaros do horizonte, não são de agora, nem foram de ontem,serão de hoje, amanhã e sempre.

Uma pergunta oculta: quanto custa um beija-flor?Muito milhões de amores?Quanto valem as borboletas?Não dá para pagarNão há dinheiro na sua maleta.

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OS SONHOS QUE AINDA VIVEMMaria José da Silva

Nas touceiras de plantas, por mais velhas que estejam,Brotos lindos surgirão e lindos botões nascerão,São flores que se abrem e seus perfumes exalam.

E vêm as borboletas e as abelhas, então.

Com elas conversar e poder negociar, vai ser bom pra todos nós.É melhor para vocês, essa é a proposta da abelha:- Seu açúcar, em mel vou transformar,Meu pólen os vai alimentar.Em troca lhes prometemos na terra semear.

Os sonhos ainda tenho, E quando acordo nos camposnascem lírios e onze-horas,as flores de são João, cipó que tem tanto mel.Nas próprias flores também. E as flores de maio, cipós,que se enchem de flor branca de aromas que vão e vêm.

Isso sem falar das ervas tão daninhas:a flor perpétua roxa,e também o arranha-gato,Espinheiro co flores de grande cacho.Cheirosas, atraem abelhas demais.

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E as begônias da beira dos riachos e rios?Dão cada cacho de flores que parecem sonhos.Mas as orquídeas não podem ser esquecidas, nem também as samambaias.Tudo é meu sonho do meio ambiente.

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SAUDADE FAZ PARTE DO PRESENTEMaria José da Silva

Há! Se hoje fosse como ontem, Aquele monte de gente brincando e cantando. Enquanto os outros conversavam, piadas contavam,

Risos eram que não faltavam, e a noite passava.

Histórias pitorescas de meninadas travessas, Choro de um menino arteiro que caiu no terreiro, Os boiadeiros contando as belezas do mundo inteiro, Mulher faceira é o feitio da natureza.

As plantas bem zeladas dão flores duráveis,As terras férteis dão frutos bem granados,O dinheiro tem gotas de suor do trabalhador,A terra brota, o valor do amor é só cultivar

Saudade não se planta, ela faz moradaNuma caixa humana, Saudade manda Me deixa andar, Se faz presente em todo momentoTu és que nem o vento: chegas de repente.

Que saudade de rodinhas, com as meninasQuem não tem saudade de uma boa viagem?Faz parte da saudade uma boa amizade,Quanta liberdade, sem o luxo da cidade.

Caminhando, e flores do campo catando,As mãos de ramalhete se enchendo,O dia está começando e ainda tem orvalho,Já estou com saudade de ontem.

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O AMARELO SÍMBOLO DA COR DO OUROMaria José da Silva

O amarelo é a cor da riqueza, barra de ouro Ou seja: joias nos dedos, orelhas e pescoço das rainhas, E princesas e de quem pode comprar

E tem bom gosto. É cor de ouro lapidado.

Portanto, o amarelo é compromisso de união, Nos dedos de cidadãos e cidadãs. Olha-se o rosto, parece ainda uma criança, Mas quando se olha o dedo, vê-se uma aliança.

O amarelo faz parte do correspondente, cor conhecida,Vem vindo um sedex é carta importante, Será que é de alguém distante?Mas o amarelo está presente No momento, indicando o trânsito.

O amarelo dá o toque final nas flores E parte do clarear do dia, com seus barrados dourados, Nos dias de sol amarelinho bem clarinho Dá para ver o esplendor da claridade.

O amarelo faz parte do arco-íris,Dando brilho às outras cores,Que ficam mais fortes: fica o lilás, O azul e o colorido com o amarelo misturado. Quem é que olha e não fica encantado?

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MAMÃO JARACATIÁMaria José da Silva

Mamão jaracatiá, ou mamão, ou que seja mamão das selvas, que dá nas grandes matas, se era bom para a saúde não importava. O bom é que tinha achado um pé de fruta, que

desde o pé novo até o pé velho não ficam tão grandes.E que mamãozinho azedo! Pois assava a boca inteira! Eu tenho a impressão de que os grandes estudiosos aproveitaram para

fazer algumas experiências para modificar a semente do jaracatiá e gerar a do mamão papaia, pois pelo que eu me lembro são idênticos. O que os diferencia é que um é tão acido e o outro é tão doce.

Eu já tinha até me esquecido do tal jaracatiá, mas comparando-o com o mamão papaia, observei que poderiam ser da mesma família. Um é das selvas e o outro da cidade.

Os homens têm o direito de aprender mais e mais e de se modernizar para quando eles se forem, deixar trilhas para os outros andarem sem muitos tropeços, porque essas trilhas vão ser necessárias para disputarem o alimento com os pássaros.

Este é o meu modo de pensar.

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O MAR E O CÉUMaria José da Silva

Mar. Estou calmo, sossegado levando os importadosNão sou apressado, levo navio pesado, e tenho peixes salgados.Vejo tantos homens preparados. Eu mesmo, um consagrado.Veja quantos cartões postais à minha volta.

Céu Cubro todo o universo, esse é um dos meus préstimosSeguro as nuvens pesadas quando estão carregadasE nas noites escuras ponho as estrelasPara clarear as estradas de quem estiver precisando.

Mar Tenho tantas praias... e se alguma se acabar, outras vão chegarVeja como são belas as ondas se levantandoE na praia se deitandoPode aproveitar, isso é para desfrutar, Mas cuidado para não se afogar.

Céu Seguro o vento que tem tanto talento e o frio que dói.E o calor que até apavora, a lua que dá pra fazer poesia.Que aparece um tempo e outro de noite.

Mar Pescador pode pescar, mas não pode facilitarTenho tanto peixe que dá pra você se saciar, só não pode abusarMuita gente na praia a passear e se banhar, pode crer.Tem hora pra chegar e para voltar, eu sou o mar.

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Céu Continuo a te segurar, olha para lá, veja o ar.É para eu cuidar, pode me ajudar? É só começarFaça sua parte, sou imenso como o mar que ajuda a completarE juntos vamos estar a andar.

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A CANETA DA PENA DE OUROMarianice Paupitz Nucera

No pátio da escola está a garota em prantos. Ninguém percebe, exceto um amiguinho de sala, que enxerga o sofrimento dela e se aproxima, perguntando:

-Beatriz, por que chora tanto?- Você nem imagina...- Então conte.A menina tenta, mas seus soluços são mais fortes, encosta no ombro

do coleguinha e mais e mais se devaneia em lágrimas. O garoto se assusta, mas insiste:

- Fala Bi. É melhor dizer logo, assim você desabafa.- Tá tão difícil lhe contar... E chora cada vez mais.- Fala menina já estou ficando vexado, diga logo!- Tá bem. Vou falar. Meu pai é muito bravo, nos leva nas rédeas curtas,

nos castiga se cometemos falhas, é um verdadeiro ditador. Sabe, Pedro, ele me deu uma caneta compacta último tipo, pena de ouro, muito cara, e prome-teu me castigar muito se a perdesse. Menino, estou apavorada. Sabe o que aconteceu? Eu a perdi, e acho que não dá nem prá voltar para casa.

O menino, em sua tenra idade, fica preocupado e pensa: “Será que existe um pai assim tão cheio de torturar os filhos? Fazer este terrorismo com uma filha? É inacreditável”.

O rapazinho a consola e garante que o pai dela não a maltratará. Os dias passam e os dois conversam mais uma vez:

- E aí, Bia, tudo bem?- Tudo bem nada, meu pai perguntou por minha caneta e eu disse que

estava em outro estojo em meu quarto. Ele acreditou, mas se a pedir nova-mente vai descobrir que a perdi e eu não terei saída.

-Bi, calma, seu pai não é nenhum monstro.

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- Eu sei lá! Para ele não pode existir nada errado, tudo o que acontece no mundo ele critica, nunca dá apoio a quem erra. Errar, para ele, não é huma-no, é burrice. Então o meu medo é muito maior que a sua estupidez.

Pedro sai dali pensativo. Anda prá lá e pra cá dentro da escola. Gosta muito de Bia e resolve comprar lá mesmo, na livraria da escola, uma caneta idêntica à que ela perdeu e dá-la para ela. Pelo menos assim não a verá mais chorando. No outro dia, os dois se encontram alegres. Pedro tem uma surpresa para Bia e Bia uma pra Pedro. Olham-se e abraçam-se. Feliz, Pedro conta:

- Comprei uma caneta para você, igualzinha à que perdeu. Não precisa mais chorar.

Beatriz olha carinhosamente para o colega e pensa: ”Que amigo eu tenho. Achei a caneta. Como vou desfazer a alegria de ele me fazer feliz? Esta era minha surpresa! O que fazer agora?

Muito pensativamente, ela olha para ele e, num abraço, agradece aquela tão rara amizade. E se cala.

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A PROCURA... OU... O ENCONTRO?Marianice Paupitz Nucera

Já não há esperança. Está na hora de perder a vaidade.Ela, Dona Ernestina foi envolvida por uma onda dolorida, desde o sumiço de seu único filho. Daquele dia em diante sua tez só

foi tensão, seus lábios cerraram-se como porta de cofre do qual se perdeu o segredo, nunca mais se abriu. A senha para ter o sorriso de volta seria seu filho, se aparecesse.

Seus olhos tornaram-se leito de um rio seco. No primeiro momento chorou todas as lágrimas a que tinha direito.

No instante seguinte, nenhum oásis, naquele olhar de um verde-esmeralda,surgiu.

Suas mãos se portam como gelatina: trêmulas desde o primeiro mo-mento do fato em si.

Muitas vezes saiu a peregrinar por várias cidades, devido a telefone-mas, que depois concluíam-se como trotes.

Lá estava ela, o olhar perdido no infinito, os ouvidos à espera de uma notícia. Seu corpo via –se agora, numa posição tétrica, esquelética, sempre em alerta.

Passaram-se anos, desde quando seu rebento embrenhou-se pelo mundo: tinha apenas catorze anos, hoje já se foram cinco. O que aconteceu com sua criança? A que aventura se jogou?

O filho, que nunca lhe dera uma gota de preocupação, de repente sumiu a galope.

Depois de muita procura Dona Ernestina hibernou como um urso no inverno. Para ela tanto faz noite ou dia, chuva ou seca, sol ou lua, amor ou ódio.

Ela está como uma baleia encalhada na beira da praia. Se a morte a levar, sentir-se-á melhor, quem sabe na outra dimensão encontrará seu tão querido filho!

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A noite mais uma vez surge, e o sono toma conta desta sofrida senhora que muito intimamente pensa: “Pelo menos dormindo posso ver em sonhos meu doce fruto.”

Embalada pelo sono, seu espírito se afasta à procura de um lenitivo, quando de repente, lá no fim do túnel, vê luzir a última estrela.

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A TEMPESTADEMarianice Paupitz Nucera

O mundo lá fora parece calmo, o olhar que reflete sua tristeza atravessa a vidraça, e numa fração de segundo, sua visão vê a tarde se tornar um breu.

É o espelho de sua alma, naquele momento; seu interior está como aquelas nuvens negras que se formam num piscar de olhos.

Como querendo amenizar a alma, relâmpagos pintam a atmosfera, iluminando aquela escuridão, e dentro dela seus reflexos a acariciam. Mas o tempo do brilho é curto, pois em seguida, os trovões num estrondo ritmado com as batidas do seu coração, formam uma verdadeira orquestra, da qual o maestro é a solidão.

A ventania, numa velocidade incomensurável arranca os galhos, jogan-do-os sobre carros estacionados, assim como seu espírito se joga à procura de um lenitivo.

Os olhos continuam a ver gota a gota a água que cai, pessoas que se acotovelam, tentando se abrigar, fugindo daquela tormenta.

A tempestade sem previsão veio, assim como o tormento que assola a sua mente, transtornando-a sem aparente razão.

A água, como braços da tempestade, agride todo e qualquer ser ou prédio que surge a sua frente, assim como a grande lágrima que desliza na-quela face, tentando lavar sua alma.

Tudo na tempestade retrata sua vida.Aquela tarde se transformou numa tormenta, tanto externa quanto in-

terna: é a sintonia da vida.No íntimo de seu ser, consegue ver que os galhos que despencam são

suas amarguras que teima em jogar fora, que aquela gente caminhante é a sua persistência que já s cansa na curva rotineira da vida

Ela, então, num ato de humildade, entrelaça as mãos num gesto de prece ao Senhor da vida. O bálsamo acontece, a chuva passa e vem a bo-nança!

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O CONTA GOTASMarianice Paupitz Nucera

Para ela, em nada havia graça: nem o púrpuro da rosa e muito menos a alvura do lírio.O amarelo da margarida que sempre lhe trouxera alegria, não

mais a atraía. Sua tez era de uma palidez mortal, seu sorriso não existia mais, só pensava:

“Eu era feliz, e, realmente não sabia.”Nem ousava olhar pra frente, pois ali, só via o cinza que representava

a morte.Cada consulta era um golpe mortal na esperança.Até que um dia, após uma junta médica, veio o diagnóstico final.Disse o médico ao marido:-Em vários pontos está se desenvolvendo a doença, e digo ao senhor

que existe um laboratório nos Estados Unidos, onde se fabrica uma droga, de preço muito alto, que matará a doença.

O marido pergunta ao médico:- É tão caro assim?- Sim, responde o especialista, laconicamente.A filha do casal, ao tomar conhecimento do fato, diz ao pai:- Por favor, vamos vender todos nossos bens, mamãe precisa ser salva.

Se o remédio para curá-la é muito caro, vivamos sem bens, mas com um bem maior: minha mãe, sua mulher.

Ao ouvir a filha, o pai, já estava cansado de tanto sofrimento, pois um dia também sofrera de uma dor maior que feriu sua vaidade masculina: ope-rou a próstata, e a partir daí sentiu-se inferiorizado e não mais esteve presente na família, vivendo apenas por viver, sem a participação efetiva no dia a dia.

Não que não os amasse, mas se tornou complexado, e lá no âmago de sua alma, sofria de uma rejeição imaginária, fruto de sua insegurança.

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Entre idas e vindas a vários médicos, um deles, uma médica, lhe disse que havia uma maneira dele conseguir o remédio que daria o alívio a mulher. Ele teria que pedi-lo ao governo, por meio de um requerimento.

A filha não concordou, pois achava que não daria tempo, que seria melhor a venda dos poucos bens que tinham: uma casa, um carro, uma moto. O pai não discordou da filha, apenas falou que faria as duas coisas ao mesmo tempo: colocaria os bens a venda tendo em vista que as transações comer-cias, principalmente de imóveis demoram cerca de no mínimo três meses, e o remédio, devido à urgência, naturalmente chegaria antes. Seria uma maneira de não perder nenhuma das possibilidades.

O conta-gotas da vida, que carrega o tempo, bálsamo das mazelas mundanas, ia pingando devagar, para quem estava na ansiedade da espera, até que um dia o pai chega em casa a gritar:

-Filha, mulher, meus amores, chegou o tão caro remédio. Está no Fó-rum. Agora é ir lá retirá-lo e seguir os procedimentos.

Os três se debulham em lágrimas.Após os trâmites, seguem até a unidade médica mais próxima, onde o

tratamento se inicia.O alívio do pai é visível, sua mulher é salva, sente-se como um herói,

pois antes sentia-se um zero à esquerda, devido aos acontecimentos anterio-res: uma vida de boemia sem a dedicação natural a tão amada família.

A vida lhe pregara uma peça, cobrou-lhe a ausência, e ele, com todo empenho, esmerou-se correndo atrás do prejuízo.

Hoje, na rotina diária, sente-se um homem feliz, pois com sua perspi-cácia, conseguiu a tão desejada harmonia familiar.

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O DETALHEMarianice Paupitz Nucera

A nossa vida é cercada por detalhes, nem precisamos apontar os mesmos. Mas sem eles não se consegue viver, pois fazem a nossa rotina. Um dia, num gesto de cavalheirismo, percebemos

o quanto o detalhe, nos dias de hoje, é inexistente. Se alguém, com berço nos trata com tal delicadeza vem alguém e diz: - “Ele é à moda antiga”.

Eu cá com meus botões penso que até a educação ficou no passado. O que vem a ser um bom dia, um muito obrigada, um aperto de mãos, na era da tecnologia que está a jato? A pergunta nos fere a alma, houve tempo em que a força de nossa voz prevalecia diante de um fato que estivesse prejudicando algum ser. Hoje nem que tenhamos que gritar dentro da lei, já não existem o respeito, nem valores, nem considerações. Tudo é muito rápido e não se tem tempo para os mínimos detalhes que assolam a vida do dia a dia.

Vem um, vai outro e a vida continua, tudo acontece num zás trás. Tudo pode ser apenas um detalhe.

Em época que já distante vai, conheci uma senhora, que me fez prestar atenção a um detalhe que ela deixou após sua morte. Morava na minha rua, e se vivesse agora seria uma mulher de meia idade. Mas na infância, para a mi-nha pessoa, criança, ela era uma idosa já se preparando para a eternidade.

Já disse alguém que a esperança não é a ultima que morre, e sim a vaidade. Mas neste caso, ela insistiu na hipótese de ser a vaidade eterna.

O sonho de estar bonita, mesmo após o passamento, era o seu projeto. A vida é uma passagem para muitos, mas para outros ela é eterna, sem ponto de parada, dá-se continuidade mesmo depois do último suspiro.

Durante a vida terrena, jamais alguém a viu desarrumada, era um pri-mor, brincos, pulseiras, colares, unhas dos pés e das mãos bem feitas. Sem-pre com batom, lavando ou passando roupas, no maior aprumo.

Os mais velhos diziam que ela sempre fora uma princesa naquele bair-

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ro, nunca ninguém a viu um dia sequer sem sua bem posta figura.Às vezes quando precisava ir ao médico, ou fazer alguma compra, ia

com uma sombrinha para não queimar aquela alva pele que contrastava com os negros cabelos ondulados.

Não se casara, cuidou dos pais durante muitos anos, com a maior dedicação.

Um tempo depois, após a morte dos pais, ficara sozinha, até o dia que o Senhor de todos a chamou para sua companhia.

Uma manhã, quando mal nascia o sol, sua sobrinha entrou na casa e a encontrou desfalecida, naquela cama sobre um alvo lençol. E na cômoda, a sobrinha prestou atenção a um detalhe:

O BILHETE:”Sei que a morte me chama. Não quero ser enterrada com meus ca-

belos em desalinhos, antes de me colocarem no féretro, por favor, enrolem e soltem meus cabelos com bobs, pintem meus lábios, para que quando eu chegar na presença de Deus não o assuste com a minha pálida feição”.

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PAISAGEM : A ESTAÇÃO FERROVIÁRIAMarianice Paupitz Nucera

No ir e vir do dia a dia, o tempo não pede licença para passar.Em meio a uma caminhada, parei e me pus a observar a Esta-ção Ferroviária, que orla a Avenida dos Araçás.

Ela é como um pingente, que ornamenta o lugar. Foi há um tempo que a mãe dos trilhos onde viajantes, como ondas marítimas, a acariciavam com as suas presenças, abrilhantando a nossa tão jovem cidade.

É um ornamento da nossa cidade, falo isto com olhos de Araçatuben-se.

Foi construída para substituir outra estação antiga, que já não tinha condições estruturais de ali permanecer. Em minhas preces peço a Deus que não deixem as autoridades derrubarem-na um dia, como já fizeram com mui-tas construções nesta cidade.

O pessoal mais jovem nem imagina que há bem pouco tempo, negros trilhos atravessavam a cidade, e por eles, trens deslizavam, levando em seu interior, viajantes, turistas que chegavam até ao pantanal e muitas vezes até fora do país.

E pensar que antes da bela avenida um emaranhado de trilhos enca-minhava muitos seres humanos para vários destinos.

Quantas vezes vi-me brincando nos dormentes colocados sobre o solo, perpendicularmente

à via, e sobre os quais os trilhos eram instalados.A saudade envolve minh’alma, e me vem uma doce lembrança da in-

fância, quando íamos à Igreja matriz, na praça Rui Barbosa, e atravessávamos a linha, para chegar até aquele templo que hoje infelizmente não existe mais. Sei que a derrubaram, muitas explicações deram, mas nenhuma delas me convenceu.

Agora, muito distraidamente, quase em alfa, observo o movimento dos

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carros e, sem entender, avisto nos lugares dos carros em movimentos, loco-motivas, vagões, trabalhadores uniformizados.

Melancolicamente, volto ao passado, vendo-me entrar em um dos va-gões, marrom com janelas douradas: íamos meus pais, meus irmãos e eu, em viagem a uma cidade próxima. Era a nossa alegria nas férias escolares.

Nunca me esqueci de que um dia, numa destas viagens, almoçamos no restaurante do trem. Não me esqueço do sabor daquele bife à cavalo, que ali comemos. Procurei depois de anos fazer o mesmo prato, mas jamais con-segui alcançar aquela delícia.

Hoje vejo a Estação Ferroviária e a saudade nasce, mas tenho cá em meus pensamentos mais íntimos de que o sabor que um dia senti em um restaurante de trem era simplesmente o sabor da felicidade.

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SINTO SAUDADEPedro César Alves

Sinto saudade

Do meu amor que se foi.

Sinto saudade

Da alegria que não tenho mais.

Sinto saudade

De tudo e de todos que não tenho mais.

Só não sinto saudades

Da tristeza que tenho.

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A CONSTANTE PROCURA DA

ALMA GÊMEAPedro César Alves

A situação nos dias de hoje – aliás, desde tempos atrás, é proble-mática. Cada vez mais o ser humano procura o outro – e, às ve-zes, depara-se com o que costuma chamar de alma gêmea. Mas

nem sempre pode ser visto assim, pois o que pode parecer nem sempre o é.E assim começa: no olhar, o brilho – talvez a procura de alguma lem-

brança. Quem sabe um encontro que há muito tempo era desejado: possíveis almas gêmeas. No momento – o coração – cobrava decisão. Necessitava ur-gente de uma escolha – mesmo que mais tarde o arrependimento batesse.

Via-se um no outro. Via-se – mesmo sabendo que a separação poderia ser inevitável. O proteger-se (ou, a outro a proteção dar) levava ao ato de não enxergar, ou – ao que pode ser dito: faltava coragem para viver! E viver no mais amplo sentido da vida. Vivia apenas de lembranças – felicidade à distân-cia, vigiada, fragilizada.

Dorme. Acrescenta-se, ainda, um vulto a seguir; tentava esconder; passos, desespero. Portas são fechadas. Espia – sombra! Põe-se a gritar – ninguém ouve. Olha pela janela: desesperadamente tenta fugir nos pensa-mentos confusos. Desperta – o suor escorre-lhe pelas faces; volta a dormir. Volta a sonhar: quer ser amante – quer ter um coração farto de amor; brincar com fogo; sufoco – pouca saída à paixão que queima e une os amantes na arriscada caminhada entre os mais ocultos e obscuros segredos. Desespero novamente, loucura; medos e incertezas; pactos; magia, emoção; vontade de viver: felicidade intransferível – mesmo que momentânea.

O dia amanhece e com ele muitas incertezas continuarão a existir. As mudanças ocorrerão – talvez golpes inesperados, indesejados; provocados. Talvez seja a hora do ‘recomeçar’. Do despertar para a vida, ressurgir das cinzas, do encarar-se de frente e de forma corajosa – tirando forças de onde,

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possivelmente, pareciam esgotadas, mas possível ao que crê. E, no palco da vida, embora o espetáculo já tenha começado, apesar do riso ou do pranto, mesmo que a dor se apresente – talvez até de certo modo passageira, há alegria em viver. Flores na janela – sorrir, cantar, escrever. Viver!

Homem. Mulher. Na indecisão: ama! Teme, treme! Teme pelo presente; treme pelo que pode vir a acontecer. Mas ergue-se sempre – e desde os tempos mais antigos que se pode imaginar. Muda, mas não perde a essência do ser humano. Por isso é humano.

Na ânsia de voar, de sentir-se livre, de possuir o vento – voa longe na contramão do tempo: aparelha-se ao outro, depois aos outros, e mais outros, pois só assim o vôo fica mais leve – cansa menos, assim como os pássaros em forma de ‘v’. Deixa, momentaneamente, de ser livre – e encontra no outro uma parte de si, de felicidade – algo incomum, inexplicável! Duradouro, ou não, talvez seja a maior questão a se pensar.

As horas passam, e com elas os dias, os meses, os anos – a vida! E passa velozmente que poucos perceberam que ela passou – mas passou! Em alguns as marcas foram deixadas visivelmente – pois alguns legados aos homens das futuras gerações deixaram. Outros, porém, apenas passaram. Apenas passaram.

E a situação continua de forma problemática, pois o ser humano anda sempre a procura da sua alma gêmea – e que muitas vezes encontra-se tão perto, mas tão distante ao mesmo tempo, principalmente de se enxergar.

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A MORTE DA BORBOLETAPedro César Alves

Muitas vezes pensamos na morte como um ato triste, fúnebre – mas na verdade, pelo menos para nossa cultura, é (para outras culturas nem tanto). Outro dia pensei na morte da bor-

boleta – claro que a partir de um simples fato.Caminhava eu pelas ruas da cidade quando, ao cruzar uma avenida, a

pobre da borboleta não desviou – entrou na contramão e eu também não con-segui desviar da mesma. Apesar dos pesares: borboleta laranja, com pintas pretas saltitantes, fatal!

Fato simples, mas que leva a pensar – não pelo simples fato de pensar, mas pelo simples fato da vida não passar de segundos – claro que ao pé des-sa eternidade que se consta aos olhos dos estudiosos do planeta.

A mesma – mesmo eu tentando desviar – chocou-se contra o meu automóvel e caiu a poucos metros. Caiu já sem vida. Doeu-me o fato de ela cair. Olhei pelo retrovisor: lá estava ela estendida ao chão: asas juntinhas e o corpo tombado, sem vida. Somos assim também – e em muitas situações.

Somos insolentes: nem voltei para dar assistência, não fui enterrá-la, ou pelo menos avisar os parentes – consolar os amigos... – como somos! E isso acontece com todos os humanos.

A dor alheia não pesa tanto – ou pesa? Ou escondemos os sentimen-tos para tentarmos sobreviver nesse mundo ‘quase sem porteira’? A reflexão nem sempre evidencia a razão, mas por vezes a emoção também aflora. E quando uma ou outra aflora, sempre temos os problemas à tona. Esse vir à tona é o fator complicador.

A morte da borboleta é apenas um fato gerador – simples, mas é. A vida em si deve ser repensada, desfrutada com valor. Usar a razão, mas tam-bém dar evasão a emoção – afinal, como diz o cantor: “somos humanos!”

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SEU TOQUEPedro César Alves

Quando seu toque ardente me alcançouA noite já se fazia altaE o tempo solitário e longo

Lentamente passava.

Segurar o tempo foi impossívelVocê, naquele momento, era minha.Precisava (e preciso) do seu amor,Sem ele nada sou.

Naquele momento o tempo era lento,Amei-o e amei-te.Sentindo fielmente esse ardente corpoProstrei-me diante de ti como um vencido.

Preciso, agora, do seu amor.O tempo lentamente passaE eu solitário e ardendoEm febre (de amor), amor, te espero.

O tempo passa,Você não vê,Você não vem.

Espero por você,Amor ardente,Ardente amor.

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Como rios de braços abertos,Amor ardente,Ainda espero você.

Espero você,Amor,Ardente amor.

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ANJO E DEMÔNIOPedro César Alves

Outro dia fiquei a pensar sobre anjo e demônio – e, às vezes, nos depa-ramos com eles bem ao nosso lado, aqui nesta Terra de bênção e de maldade – mas não é por isso que vamos desanimar. Estamos, afinal, aqui para isso: para vencer sempre; fracos são aqueles que, durante a caminhada, desistem e ceifam a própria vida – será que, pelo menos nos momentos que antecedem ao ato, não pensam na angústia que deixarão aos entes queridos?

Uma proposta difícil: escrever sobre anjo e demônio, mais anjo que demônio; fiz algumas reflexões – que você, caro leitor, pode também fazer e tirar as suas próprias conclusões. E, nas minhas reflexões de pensador de-socupado (pelo menos neste momento), somos nós mesmos os anjos e os demônios. Às vezes fazemos o bem, às vezes – e sem querer, fazemos o mal: por quê? Por quê?

Nós, humanos, entramos constantemente em contradições: às vezes queremos certas coisas, logo depois queremos outras coisas – e ‘assim cami-nha a humanidade’, como diz a canção. Mas, afinal, caminhamos; progredi-mos. E, progredindo, poderemos alcançar a Terra prometida.

Pense num anjo; pense num demônio. A imagem ilustrativa que lhe vem à cabeça já diz tudo e é melhor que a minha escolha, se eu a colocasse aqui. Disse-me certa vez um amigo que nos meus textos seria melhor eu co-locar uma imagem ilustrativa (e não a minha imagem). Acredito que sim!

E creio, ainda, que nascemos anjos – ou como disse Cícero, uma das mentes mais versáteis que Roma teve: ‘Não sabermos o que aconteceu antes de termos nascidos é permanecermos eternamente crianças’. Alguns, com o correr da vida, desviam – tornam-se instrumentos do mal. Por quê? Ou, como disse Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço: ‘Todos nós nascemos originais e morremos cópias’ – bem interessante esta colocação que leva a muitas reflexões.

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E muitas vezes me pego escrevendo sobre o anjo chamado mulher – que, e ao mesmo tempo, também não o é. Como são, em determinados momentos, terríveis! Mas, apesar do adjetivo citado, são ao mesmo tempo adoráveis (quando querem). Por quê? Será que algum dia alguma ‘anjinha’ me responderá o porquê de tantas contradições na alma feminina? (Cito a alma feminina porque é mais fácil falar da alma oposta, e não da alma de quem está escrevendo – a alma masculina, e sem machismo algum.)

Às vezes penso que uma anja ‘torta’, loira, de olhos claros fora indicada pelo Criador para estar ao meu lado – mas, como eu recusei – não tenho certeza disso (pois deve ter sido inconscientemente), sempre acabo me dando mal. Creio que a minha preferência difere do Criador.

E, lembro-me neste momento de alguns versos do poeta: ’Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida’ – este belíssimo texto, o ‘Poema de Sete Faces’, foi publicado em 1930, no primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, intitulado Algu-ma Poesia. Gostaria de acrescentar em minhas reflexões: como será a alma feminina: anjo ou demônio?

Apesar de tudo, ainda continuarei a buscar uma resposta – e não so-mente na alma feminina: somos nós anjos ou demônios? Somente para um dia ter a certeza de, ou pelo menos em parte, entender e afirmar com mais convicção. Afinal, tenho que pesquisar – e muito, estou muito bem vivo, não é mesmo?

Ou, como muitas vezes ouvimos: entre anjos e demônios, a grande maioria procura a sua alma gêmea – e acaba se pervertendo para o outro lado (e de ambos os lados). Mas, refletimos sobre as palavras do filósofo ilu-minista Rousseau: ‘Todo Homem nasce livre e, por toda parte, encontra-se acorrentado’.

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MULHERES ESPECIAISPedro César Alves

Já dizia a Canção da América que ‘Amigo é coisa para se guardar / Debaixo de sete chaves / Dentro do coração / Assim falava a canção que na América ouvi / Mas quem cantava chorou / Ao ver

o seu amigo partir’ – e há amiga melhor que as mulheres especiais que são chamadas de mãe?

Elas são assim, pois são testemunhas vivas das vidas dos filhos, são fragmentos das histórias de vida de cada filho, de cada filha. Ainda: esta amiga é a pessoa especial que conhece a música de coração do filho, da filha, e pode cantá-la quando este filho, esta filha, tiver esquecido a letra.

Acrescentando: estas amigas são a família que permitiram escolher. E, pensando em amigas, amizades, ao longo da existência do filho, da filha – estão sempre ao lado. E, em sua quase totalidade estão para o que der, e vier. São mulheres especiais, de fibra!

Mulheres guerreiras, de sentimentos, de coração. Sabem falar – e tam-bém ficam caladas, mas sabem acima de tudo ouvir. Muitas gostam de poe-sias, de belas canções, do amanhecer, do anoitecer, da madrugada; gostam do vôo dos pássaros ao alvorecer – do sol, da lua, dos ventos e das canções da brisa – como dizia o poeta! Possuidoras de um grande amor – principal-mente pelos filhos! Amam, respeitam e, quando a dor os toma, querem-na para si. Em seu íntimo guardam os mais profundos segredos.

Por excelência, são de primeira mão! Já foram – por diversas vezes – enganadas em sua vida, mas não querem enganos para os filhos. São pu-ras, são anjos protetores – e são feras em defesa da prole! Possuem ideais, possuem medo de perdê-lo: são humanas – querem ser amigas próximas dos filhos quando estes deixam o ninho! Sentem pena das tristezas que os filhos enfrentam; desejam felicidades aos filhos e aos filhos destes.

São mulheres de fino gosto, que se comovem quando chamadas de

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mãe, de mamãe! Sabem conversar coisas simples, mas também são requin-tadas. Falam de orvalhos, de grandes chuvas, das recordações de infância. Contam coisas belas e tristes, falam dos anseios e de realizações, de sonhos e de realidade. Gostam – muitas vezes, do silêncio. Gostam – muitas vezes, de se deitarem no capim depois da chuva e retomar o tempo de criança.

São mulheres-amigas que dizem sempre que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem uma amiga! Mulheres-amigas que fazem os filhos pararem de chorar; são mulheres-amigas que fazem viver e não ficar estes debruçados no passado em busca de memórias perdidas; amigas que batem nos ombros sorrindo, ou chorando, mas que chamam o filho de amigo, a filha de amiga, pois têm a consciência de que ainda se deve viver – e muito!

E ‘Amigo é coisa pra se guardar / No lado esquerdo do peito / Mesmo que o tempo e a distância digam não / Mesmo esquecendo a canção / O que importa é ouvir / A voz que vem do coração’ – completa o poeta.

E a estas mulheres especiais é dedicado este texto (que foi espelhado em tantos outros). Mulheres fortes, batalhadoras, que enfrentam a lida no correr dos dias sem quase nunca desanimar. Mulheres que vivem e amam; mulheres de força, de raça, de gana, de dor, de alegria; que tem manha, graça, sonho, que têm fé na vida – como interpreta perfeitamente Milton Nascimento. Mulher: mãe!

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ANIMAL EM CATIVEIROVicente Marcolino Rosa

Belo é o animal quando está livre no espaçoDa vastidão do nosso aturdido planeta,Onde deve lutar mesmo sem haver braço

Contra crime brutal que predador cometa.

Aves que vêm pousar no arejado terraço,Saem de mata verde e buscam lajem preta;O bando chega calmo e famélico, lasso,Para absorver ração deposta na mureta.

É insensato quem amarra ser silvestre!Tolher a liberdade a inocente é delito,Seja ente nadador volitante ou pedestre.

A ave presa imagina a flor anexa à planta;O anelo de revê-la é, por certo, inaudito,Em tempo de chorar, a prisioneira canta.

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BEBIDA A QUEM QUISESSEVicente Marcolino Rosa

“Hoje tudo será por minha conta!“Bradou o cavalheiro e ergueu os braços.A soma de dinheiro estava pronta.

No bolso e, na patrona, quantos maços! ...

Foi ante os presenciais do bar da pontaDa rua e, no salão, viam-se os laçosDa amizade que expulsa, quando afronta,A discórdia e os hábitos devassos.

Beberam e mataram o desejoSem a preocupação com o alto preço;O melhor vinho esteve nesse ensejo!

Sobraram as bebidas branda e acerba.E, por razão que ainda desconheço,O tal fidalgo vai gastar mais verba!

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INCANSÁVEL CORAÇÃOVicente Marcolino Rosa

Pulsas há tanto tempo, jamais cessas!Nem falas dos segredos contumazesE enquanto me dedico a escrever frases

Ou labuto, comandas, não tropeças.

Possuis cadência e não ages às pressas!A vida tem em ti as suas bases,Percebes o rancor de homens falazes,Prontos para lutarem às avessas.

Ouço-te pelo quedo travesseiroEm que repousa a mais pobre cabeçaSensível aos ruídos do orbe inteiro.

Teu ritmo é tão monótono e me cansa,Dormito antes que a insônia permaneça.De manhã terei lida e à noite, dança!

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NOIVA EMBRIAGADAVicente Marcolino Rosa

Quase tudo está pronto! Os amigos na igreja...Em frente ao altar-mor, pais, mães e o noivo, juntos.É o instante que a moça imagina e deseja.

Todos dizem da festa e não há mais assuntos.

No teclado, o organista hábil até se arqueja!Na sala popular, vinhos serão consumptos,Este opimo jantar terá muita cerveja.Do cardápio também constam tenros presuntos.

A noiva chega após duas horas de atraso,O noivo, devagar, sai da fosca poltrona;Alguns dizem não ter presenciado igual caso.

O reverendo põe sanção fácil e austera:Adia o enlace e ordena à nubente mandonaE ébria que volte ao fim de cem dias de espera.

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SURPRESAS DA DESCOBERTAVicente Marcolino Rosa

Imagino ao chegar à imensidão da TerraA frota de Cabral com seus hábeis marujos,Preparados também para o embate na guerra,

Vistos com os bornais e os uniformes sujos.

Admiraram floresta, índio, lagoa, serra,Ananás, jatobá, anta, onça, caramujos;Conheceram o cervo e ouviram como berra;Foram ver o pajé, os sílex e os arujos.

Invadiram a mata e tiveram algumasSurpresas incomuns causadas pelas aves,Cujas vestes triviais eram as belas plumas.

O cacique mostrou que não tinha talheres,Exibiu singeleza e faces sempre graves,Não expôs a beleza agreste das mulheres!

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VILA DISTANTEVicente Marcolino Rosa

Contornada por bosques e montanhas,Afastada de centros citadinos,Seus habitantes têm frases estranhas

E sabem da hora quando ouvem os sinos.

É lá onde se contam as façanhasDos vaqueiros na pega de bovinosNas undosas e tépidas campanhas,Que influem no viver dos campesinos.

Moradores não deixam paraíso!A comunidade é o parentescoDa amizade, do amor e do sorriso.

São pessoas cordiais e têm costumeBarroco, milenar ou romanesco,Mas, sempre ordeiras, logo se presume.

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PREITOWanilda Borghi

- Estão verdes, diria a raposa.Ele, porém, limitou-se a um olhar entristecido, pois já sabia que era o

vento. Aquela que habita suas reflexões, não mais adentraria por esta, nem por nenhuma outra porta.

Num dia onze, ela, adivinhando-lhe o aniversário, estreiou na vida dele, e, de pronto decifrou-o: arredio, esquivo, desconfiado e, sobretudo, duro, re-sistente, imbatível e indomável. Mas tinha um quê de luminoso. Era tanspa-rente. Por isso, instantaneamente elegeu-o seu rei. Seu diamante. Por serem opostos?

O fato é que ao ver aquele cômodo no fundo do quintal, abarrotado de móveis, roupas, objetos sem função, papéis e mais papéis, caixas e mais caixas; ela entendeu tudo: além da casa do agora, ele tentava manter, aprisionada, a vida de outrora. Para ele, era lá o lugar da tristeza. Trancada. Trancafiada. Obscura. Para ela, era nítido o engano dele: energia estagnada, efeitos repercutidos além das paredes.

Dispôs-se, então, a ajudá-lo. Queria remover as camadas que oculta-vam a beleza de seu mineral rei. E percebeu que cada necessidade dele só teria um bom formato geométrico se, antes, ela, com a máxima precisão e simetria, adequasse, o desenho das facetas, ao quilate.

Com o passar do tempo ele deu início a um lento processo de desova, e, no mesmo ritmo, sentiu que se lhe irrompia um sentimento muito bom para com ela. Já a chamava, carinhosamente, de “caracolzinho”, “cabritinho” e “cavalinho”.

Mas o divisor de águas foi um acontecimento indesejável, perigoso, porém bendito: catalizou a viagem dele ao presente e permitiu-lhe externar toda gratidão e reconhecimento a ela, sua fiel e atenta guardiã, alarme vivo e especificado.

Conquistou-o para a vida e os compartimentos obscuros da mente dele

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passaram a odorizar em dissonância com a detergência da claridade, o que lhe conferiu um brilho inesquecível.

O jeito especial com que ela o tratava remetia-o à sua infância. Ela parecia ser baiana, como seus progenitores.

De requintadíssima estirpe alemã, não o contrariava, jamais. Pelo con-trário, só lhe dedicava atenção, cordialidade, ternura e compreensão. Era a metalinguagem do amor, pois, embora exercendo a função de lapidário, ela sim era a mais importante flor do reino mineral.

Tiffany.Tifânia. Diamante da mais pura luz. Que já não late.

Conto vencedor do Mapa Cultural Paulista 2011 – fase local.Dedicado à Elisa Borghi Frascino.

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ACERTOWanilda Borghi

À beira do rio, no barranco, descansavam dois compadres:- Vês, pois, a lua, Manoel?- Sim.

- É meu preferido queijo branco.- Pois.- Então, responde pra mim: quando está o queijo inteiro, há São Jorge

embutido. Para onde ele vai, quando o queijo está partido?- Ele já mora no céu. A lua é que o emoldura, feito quadro na parede.Nesse instante, um estalido.- Compadre, ouviste o ruído? Há um peixe em minha rede.- Pois bem, que a brasa cá espera.E enquanto o peixe assa...- O transporte do doente é a maca. E a lua, quando partida, onde é que

esconde a faca?- Ralhos, compadre! Se pensas que estás a me pregares peça, te ad-

virto com esta: A maca está na ambulância, que gira em quatro redondos. O compa-

dre me responde: quem foi que inventou a roda?- Olha, compadre... de certo modo, até confesso: não sei! - Pois então, o compadre abre os ouvidos: confidenciou-me um amigo,

que certo rei, curioso, mandou abrir um aro, para que, caminhando sobre ele, descobrisse a origem de suas pontas. Mas, conforme ele ia andando, o aro foi se ajeitando ao formato inicial. E quanto mais ele pisava, a solda, entre as duas pontas, se solidificava.

A primeira ponta veio do nada, que é pra onde a outra vai. Quer dizer que tanto faz.

Por isso, não tem importância, se é começo, ou se é fim. Importa o que está no meio: se for um bolo, o recheio; se sanduíche, o presunto, ou a

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manteiga de amendoim.Mas tem coisa que importa: é o tal comportamento.Um homem tem que ter porte, senão se assemelha a jumento.O compadre, por exemplo, ao adentrar um aposento, segue a norma:

fecha a porta.E ao balançar o mento, lembra-te que todo assunto tem começo, meio

e fim. Chama as pessoas pelo nome certo. E, só pra lembrar o compadre: Eu me chamo Joaquim!

Menção Honrosa no 24º Concurso Internacional de Contos da Cidade de Araçatuba.Dedicado a Pedro Borghi Guimarães.

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AMAMENTAÇÃOWanilda Borghi

AMA! Sugo de ti meu sustentoEm momento sublime.Protegido em teu seio santo

Manto vital.Feito Momo em carnavalReino absoluto.

MENTA! Qual bala refrescanteApós o desembrulhar do papelColoco meu mento em movimento.

AÇÃO! Saciado, parto refeito.Em disparada vou, qual motoNa estrada, na vida, moço ou moça feitaSua cria. Cetro em punhoMeta. Com alegria proclamo à nação:

MÃE: “ÔME a sua!

Epígrafe da Dissertação de Mestrado de Lívia Guimarães Zina – Unesp -2005.

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BABA FRESCAWanilda Borghi

Indo por uma rua, encontrou um índio lindo.Voltando, viu que uma amiga também estava vindo, e, ao contar a ela o que havia visto, confundiu-se e disse que se tratava de um

ídio “líndio”. O nome dele era Lídio Ene. O “N” que faltou no índio.Lídio Ene era moderno, gostava de macarrão pene e queria ser pajé. O

atual (pajé), chama-se Denis.Dona Xota, a princesa da ilha indígena, havia sido babá. Enxotada, foi

acolhida na tribo. Aprendeu a dançar como nativa e Denis babou por ela. Alimentam-se mais de raízes. Não gostam de ovo. Mascam ervas medicinais comuns, como arruda e erva-cidreira.

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ÍCONEWanilda Borghi

Uma pessoa carinhosa lembra uma estrada montanhosa:Tem vales, tem lagos,Homem livre e escravo.

Uma pessoa carinhosa lembra uma estrada montanhosaPorque alisa em curvasE descansa na relva.

Uma pessoa carinhosaDevolve-nos o olhar.

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PRAIAWanilda Borghi

No guarda-sol tristonhoPassarinho foi pousarE seu canto picante

Acordou a insignificante maioria.

Sob o arco-íris cinzentoDa praia vizinhaAlguém caminhaAo peso do calcanhar.

Aquilo não é um sujeito.É um jeito sujo de andar.

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VELADOWanilda Borghi

Entre o sim e o não,mais que talvez: preto,branco ou cinzento de vergonha.

Roubou a batina, porque saia.E cobriu a escamosa cegonha.Mulher-luz.

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ARTEIRO ARTISTAWanilda Borghi

Um saci passeava pela cidade, quando viu um garotinho choran-do. E, enquanto fazia mesuras, disse-lhe: - Bom-Dia, Guilherme!

-Quem é você? Como sabe meu nome?-Não me conhece mais? Olhe bem! Boné vermelho, cachimbo...- Você é parecido com um amigo que eu tinha: o Saci Pererê. Mas ele

era tão brincalhão. Vivia assobiando e criando confusão por aí.-Pois é. Sou eu mesmo. Um pouco mudado, confesso.- Que aconteceu?-Lembra quando me prenderam naquela garrafa? Então, aproveitei

aquele tempo para meditar bastante, e revendo meus valores, decidi passar um pouco da sabedoria dos sacis para os humanos. Veja, só o que aprende-mos in loco sobre ervas medicinais, em anos e anos de floresta... Mas agora, não sei se porque trabalho e leio bastante, fui transformando toda aquela von-tade de fazer estrepolias, em alguma coisa muito boa. E com isso, estou me sentindo bem melhor. Mas, Guilherme, agora me conte, por que você estava triste?

-Porque eu queria ser mais útil em casa, mas, por exemplo, se me ofereço para separar o lixo, faço confusão, porque a mamãe colocou aqueles recipientes coloridos, mas não os identificou, entende?

- Não seja por isso, menino Guilherme. Basta que cante juntinho co-migo:

-Embrulhei em papel azul / meu anel de metal amarelo / coloquei no vidro verde /plastifiquei em vermelho. / Resíduo orgânico, no marrom.

E assim, o saci já ia se despedindo, quando Guilherme abraçando-o falou:

-Volte sempre, Solsi P Ré Ré. Você é meu amigo artista.

Publicado à pág. 3 do Suplemento “Coisas de Saci” (concurso SESC) - Folha da Região- Araçatuba, 31/10/2010.

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O ENCONTROWanilda Borghi

Dizem que as idades do homem são três: a que tem, a que apa-renta, e a que gostaria de ter. E também que o homem nasce, cresce, reproduz-se, envelhece e morre. Até aí, beleza. Só que

você vem “cumprindo os anos” certinho: vida amanhecendo, tudo é bonito: não ter dentes, não ser alfabetizado... Mas quando o sol começa a se pôr, ser desdentado já não é tão estético, quanto mais a idéia de dar de cara com “os dentes da finitude”.

Quando o sol está a pino, é hora de crescer, de lescere, de adolescer: faixa etária dos 10 aos 20 anos, segundo a Organização Mundial de Saúde. E dá-lhe conflitos, expectativas, fantasias. É hora de buscar uma identidade, com o intelecto acelerado e a sexualidade a mil. Aí o homem crescido é cha-mado adulto. E vamos que vamos! Como disse mamãe: “A gente vai indo, vai indo, vai indo, até o dia em que começa a voltar!” E nessa volta, ou melhor, meia-volta, atinge-se a meia-idade: 45-60 anos; depois, a senescência gra-dual (60-70), a velhice conclamada (70-90) e o longevo: acima dos 90. Quem viver, verá!

Acontece que, se por um lado o adolescente está pronto para subir, o “idoso” nem sempre está preparado para descer. Vai daí que, se imaginarmos uma curva com distribuição normal, estarão, os dois, equidistantes da abscis-sa, em metades opostas do “sino”. Penso ser esta a razão de tanta afinidade entre o comportamento dos jovens adolescentes e dos adolescentes “depe-nados”, que constroem novas asas e voam despreocupados e desobedientes, perto do sol e do mar, esquecendo-se que cera derrete. Idade de Dédalo. Comportamento de Ícaro.

O jovem e o idoso são pontes: este, entre passado e presente. E aquele, entre presente e futuro. Esse presente é o ponto de encontro entre os dois.

Ser idoso é bem diferente de ser velho. Ainda que com a mesma idade na certidão, velha é a pessoa que perdeu a jovialidade. Idoso se exercita, velho

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descansa. Idoso sonha, velho apenas dorme. E por aí vai. Se nossa cultura valorizasse mais a sabedoria do idoso, nossos “pajés” agradeceriam.

Amigo meu, quando se viu com os filhos criados, e, por razão desco-nhecida, “solteiro” de novo, quase entrou em parafuso: aposentado, continuou no mesmo serviço, embora careca de provar para ele mesmo o quanto en-tendia disso. Mas um dia pensou: que mesmice! Ainda se a gente soubesse o tempo que resta... E depois de muito se olhar no espelho, deu o veredicto: “La vejez: una edad para vivir!”

Passou a driblar o “alemão”, correndo de costas feito toureiro, olhando as horas de ponta cabeça e se alimentando de jeito legal: muito verde, muita fruta, muito grão. Nada fermentado. E ia confirmando o ditado “alegria vem da tripa”. Afinal, não é à toa que o cérebro também é enrugadinho. Pra que ficar enfezado? Saiu também em busca de nova tribo, seguindo à risca o manual do jovem que voltaria a ser: confiante como quando ainda não tinha sido engana-do; intenso, por ainda não ter experimentado fracassos e principalmente cheio de esperança, que remete ao futuro. Memória é coisa de computador.

Hoje ele é o que aparenta e gosta de ser: um homem feliz.

Soletrando, pág. D3. Caderno Vida, Folha da Região. Araçatuba, 18/10/2007.

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BALAIO DE GATOWanilda Borghi

Naquela quinta, como programara, fui à feira-tabuleira da baiana Joana, que era mãe. Não sozinha: aquela menina que brincava com a palha, atrás da porta, fez-me companhia.

- Tem jambo, sinhá, bem doce.- Olha o pastel!Ninguém gritava. Não carecia, tamanho o movimento das três barra-

cas, na rua que descia. O mais barato, dois e cinquenta, o mais gostoso, não sei. Dois sabores foram o máximo que aguentei: um de bacalhau, até barato. Nada mau. Por sobremesa, o de banana com canela. Povo sem noção. Dava pra rechear bengala inteira. Mas era bom. Entre eles, na subida, a barraca do poncã, a trinta centavos cada. Quanto brilho na casca! Será banho de quê? Comprei duas e, ali, saboreando, parada, fui analisada por um homem que, confiante, roubou uma e descia realizado, quando o dono recuperou a fruta seminua, resmungando:

- Vá fazer isso no mercado, seu safado! Palhaço!Tanto ouvi:- Jogue essa casca bem pra baixo da tenda!- Deixe livre o chão!Mas não testemunhei, na ladeira abaixo, nenhum escorregão.Na barraca do pastel, merece ser imitado o ritual do papel de pão

picado: uns cinco pedacinhos daquele papel grosso, logo em cima do recheio, para proteger a mão do freguês e absorver bem a gordura. Do lado magro, “pura massa”, apenas o guardanapo de papel.

O quitandeiro cara-de-pau, malcriado, que berrava, fazia solo no coro de zum-zum:

- Madame preguiçosa, não tem coragem de descer a rua pra comprar verdura, milho, mandioca, cará! Madame preguiçosa!

O garapeiro era bem sofisticado, e a maioria queria garapa pura, ou-

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tros, com sabores. Ah! Que show a de hortelã. A de limão, então! Foi brinde. Menina com avó às compras, a turma-tribo, civilizada, chegando em absoluto silêncio, trazia acessórios que gritavam, e o vai-e-vem do paulistano que tra-balha no arredor: a moça que fugia do cheiro de fritura, por não poder ir se trocar; homens de terno, crachá, deixando o papo solto no recreio. Solto?

- Um caldo-de-cana, por favor!Você viu? Já pesquisaram, meu! Garapa repõe energia, glicogênio. E não é só pra atleta, qualquer pessoa bem ativa. Sacarose: C12 H22 O11. Dissacarídio. Carboidrato.

- Me esquece, cara. Dá um refrigerante! Sossega e come. Na minha terra, tem em cada esquina. Com cartaz pra explicar e tudo.

Na barraca do peixe, o atrativo era a receita do tempo que ainda não havia leite de coco pronto: “Ralam-se quatro cocos e tira-se o leite grosso. Põe-se no bagaço um litro de água fervendo e espreme-se, pondo esse se-gundo leite em uma panela com os pães de forma... O primeiro leite deverá ficar reservado para o refogado de camarões e para o pirão de arroz”. Enquan-to distribuía a receita de moqueca, o moço falava: “Dê um peixe pro seu gato, moleca bonita. Ó o peixe fresco!”.

No mais, a distração que abasteceu o andar com a bolsa aberta. O susto. Alerta. E a ação de fechá-la, que exigiu deixar o celular ditando a lista do mercado ao vento. A compra errada. A insatisfação verbalizada pela fome do que trabalhava sonhando com o saciar. E a fita voltando feliz ao formigueiro-colméia. Porque é doce lembrar. Beijinho.

Soletrando, pág. D3. Caderno Vida, Folha da Região. Araçatuba, 19/08/2008.

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ALFA E ÔMEGAWanilda Borghi

Na festa da realeza, conversavam os ingredientes da salada, so-bre a mesa.Dizia assim o Jasmim:

-Não sei se fui rebaixado ou se subi de posto, senão vejam: nem bem estamos em agosto, e eu aqui, misturado a alimentos. Antes era escalado para adorno. Sem falar no perfume que tenho.

-Quem disse que você é comestível? completou o Ibisco.De lado, cabisbaixo, estava o azeite. Alguém com ele listara as folhas

da travessa. Alguém, não sei se com raiva ou pressa. Fato é que ele, o azeite, estava tristonho.

-Acho que presenciei boa parte da conversa, disse o Tomate.-Estava ele de amores com a Senhorita Alface. Mas, creio, se desen-

tenderam. Ela, calma, em suas nuances de verde, recitava poemas narcisos, enquanto ele, apaixonado, se desmanchava em sorrisos.

-Mas eis que ela viu o agrião. E passou a alfinetar seu antigo enamo-rado:

-Sou o princípio, a origem, a primeira da fila. Nada existiria sem mim.Ele, azeite, Ômega, sequer murmurava. Em seu silêncio, sua reflexão

ecoava: fim da linha, fim da linha. Até que rodopiou e com esse impulso a fila empurrou.

Revigorado e fortalecido, pode então responder-lhe: -Eu, como fico na rasteira, não tenho essa sua pose altaneira, mas

exerço muito bem minhas funções: sou eu quem dá brilho à salada e quem lhe tonifica o coração.

Mas ela, ali, encimesmada, - afinal era dia de festa-, escondia a lisura de sua fala do dia a dia a sós, com ele, enquanto lhe interessou conquistar-lhe a companhia. E continuou com seus insultos:

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-Só lhe resta segurar, literalmente, as pontas. A ponta última, porque eu enfeito a primeira, a principal.

No auge da discussão, eis que alguém, desastrado, derruba na salada, um pouquinho de feijão; o suficiente para enfeiar o prato, que rapidamente foi levado para os fundos.

Veio pra mesa, outro tipo de salada que exigia diferente tempero.Moral da história? Deu zebra: venceu a coluna do meio.

Soletrando, pág. C2 – Caderno Vida, Folha da Região. Araçatuba, 21/06/2011.

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OSÓRIO MEIRA COSTA – meu pai.Wanda Edith Meira Costa

No dia 30 de dezembro de 1905, para ele, e 1904 na certidão de nascimento, vinha à luz o segundo filho de Onofre Ribeiro da Costa e Maria Meira Costa, na cidade de Chique Chique de

Andaraí, na Bahia. Registraram-no Osório Meira Costa e no futuro seria meu tão amado pai. Um ser único e inesgotável de histórias!

Muito cedo fica órfão de mãe, alguns anos mais também de pai; por-tanto, não conheci meus avós paternos.

Quando a família de mamãe, também baiana, que na época era pré-adolescente, veio para o Estado de São Paulo, ele, Osório, que era amigo da família e adepto do ditado “Cachorro bom vem de raça”, não querendo perder de vista a que pretendia por esposa no futuro, mudou-se também com eles.

Em uma das muitas vezes que conversamos sobre sua vida, contou-me como virou cartorário -Serventuário da Justiça. Para não ficar parado, e não achando emprego melhor, aceitou a picareta para abrir ruas em Marília, cidade para onde tinham ido. O agrimensor necessitou de alguém que fizesse as anotações enquanto ele fazia as medições para a devida abertura da rua e perguntou aos rapazes:

-Algum de vocês sabe escrever? Logo papai levantou a mão ao que o chefe disse:-Qual o seu nome rapaz? Ele olhou para trás e viu que realmente era com ele, pois ninguém

levantara a mão. Também contava que ficou perplexo, pois na cidadezinha da Bahia, de onde ele viera, todo mundo lia, escrevia, fazia poesias, sabia matemática etc.Após fazer todas as medições, continuava ele, no final, o en-genheiro chamou-o e disse:

-O que um homem com esta letra linda e este conhecimento, está fazendo aqui com uma picareta na mão?

Respondeu ele:

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- Sobrevivência, doutor. - Venha amanhã, se for do seu interesse, ao meu escritório, com outro

tipo de roupa. Tenho algo a lhe propor. Na manhã seguinte o doutor ofereceu-lhe o Cartório do Distribuidor

de Novo Cravinhos e ao aceitar, papai viu sua vida mudar da noite para o dia, tornando-se Serventuário da Justiça. Sempre fez jus a nomeação. “Mak Tub”, dizia ele.

Anos depois pediu a mão da nossa amada mãe em casamento e ensi-nou-lhe o mesmo ofício. Viveram felizes por 52 anos.

Papai era um homem bom, sério, responsável, cumpridor dos seus deveres; muito culto, paciente ao ensinar, mas ao mesmo tempo era machista e tradicional. Mamãe nunca entrou em um bar, um açougue ou similares. Nós sim, afinal éramos solteiras!

Nós o tratávamos por “você” e não por “senhor”. Perguntei-lhe por quê. Antes de responder, ele abriu a gaveta e pegou uma foto de um garotinho de três a quatro anos, vestindo um camisolão de dormir e um senhor de barba muito bem aparada, com pence-nez, terno, gravata, relógio com corrente de ouro pendurado, preso no bolsinho do lado direito do colete. Disse-me ele:

-Sou eu e meu pai na foto, filha. Desde que me entendo por gente ele me tratava por senhor Osório.

Eu então perguntei:- Ele era bravo, por isso chamava até os bebês de senhor? - Não minha filha, ele sempre foi um bom homem, apenas era o cos-

tume da época. Então, por isso, quando vocês nasceram eu não quis ser chamado também de “senhor” pelos filhos!.

Outro dia, escutando as músicas de um long play, a letra de uma delas dizia: “Acredita na esperança”. E eu lhe perguntei o porquê desta frase.

- Todo mundo não acredita pra sempre? E ele respondeu:- Minha filha, há certas perguntas que uma pessoa não deve fazer aos

outros. É necessário deixar o tempo passar para poder entender o significado; não é uma questão de dicionário e sim de vida

Mesmo sendo um homem culto, inteligente, metódico, chefe absoluto da família, nunca deixou de ser um cavalheiro com sua esposa Edith Oliveira

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Costa, a quem ele chamava de “patroa”. Quanto aos filhos, mesmo os adoti-vos, dedicou-se muito a todos nós. Estudou e formou seis filhos sendo quatro do casal: Webster Osório Meira Costa, Wilton Osório Meira Costa, Wanda Edith Meira Costa e Wanilda Maria Meira Costa e duas sobrinhas: Helena Meira Cambuy e Marilia Meiback de Oliveira; os filhos no Colégio Salesiano, as fi-lhas no Colégio Nossa Senhora Aparecida, pois achava importante a formação religiosa.Todos nós estudamos também música, trabalhos manuais e fizemos auto-escola entre outras coisas. Visitamos várias vezes os familiares deles que moram na Bahia. Plantou diversas árvores e tentou escrever um livro.

Parabéns papai, você cumpriu nobremente sua missão, sempre foi motivo de orgulho. Hoje seu nome fica em dois canteiros em frente ao Fórum da Justiça Federal na Avenida Joaquim Pompeu de Toledo com a Avenida da Saudade

Obrigada papai. Obrigada meu DEUS pela linda família que me deu.

Publicação de José Hamilton da Costa Brito em homenagem às amigas Wanda e Wanilda.

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Este Livro apóia a preservação do meio ambiente.

Papel Reciclado.

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