123
r - .. .. -- Malba Tahan Autor de O HOMEM QUE CALCULAVA ~ l ~~ t I!n · ,. ! 11l I 115 ar-" '1fol.2 .'

Malba tahan mil histórias sem fim vol ii

Embed Size (px)

DESCRIPTION

 

Citation preview

Page 1: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

r- .. ..

--

Malba TahanAutor de O HOMEM QUE CALCULAVA

~

l ~~ tI!n · ,.! 11l I 115 ar-"

'1fol.2.'

Page 2: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Copyright @ 1985 by Nair de Mello e Souza

Ilustrações e Capa:MÁRIO PACHECO

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros.

RJ.

T136m14.ed..2v.

Tahan. Malba. 1895-1974.Mil histórias sem fim: contos

orientais / Malba Tahan; prefácio porHumberto de Campos; tradução enotas do Prof. Breno de AlencarBianco. - 14~ ed. - Rio de Janeiro:Record. 1986.

I. Ficção brasileira. I. Bianco.Breno de Alencar. 11. Titulo.

CDD 869.935

Direitos de publicação exclusiva em língua portuguesa em todo o mundoadquiridos pela

DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A.Rua Argentina 171- 20921 Rio de Janeiro, RJ - Te\.:580-3668

Impresso no Brasil

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTALCaixa Postal 23.052 - Rio de Janeiro, RJ - 20922

Impresso porGráfica Portinha Cavalcanti Ltda.

Rua Santana, 136/138 (edifício próprio)Te\.: 224.7732 (PABX)

Rio de Janeiro - RJ

Page 3: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Ir

26~ Narrativa

Aventura singular de dois pescadores árabes.O misterioso drama da "mão cortada". Comoagiu o juiz para descobrir o autor de um crimehediondo e revoltante.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM... é esta a vigési-ma sexta.

Há heróisparao bem e parao mallLidaa vigésimasexta restam, apenas, nove-

centas e setenta e quatro.

o estranho muçulmano' inclinou-se res-peitoso diante do juiz e assim começou:

- O grande e impressionante mistério quepaira sobre o enredo de minha atribulada exis-tência está ligado a um sucesso digno de serdescrito, com letras de ouro, nos livros do ar-quivo secreto de nosso glorioso Emir.2Vejo-me forçado a narrar a verdade, muito embo-ra persuadido de que ela irá, com as cores doinverossímil, deixar incrédulos os espíritos me~'

1 - Muçulmano- Nome pelo qual é designado oindivlduo que aceita a religião de Maomé. Deriva-se doárabe maslin (resignado, salvo) que tomou em persa, oplural musliman sendo esta forma adotada para o singu-lar. O muçulmano ou maometano é sectário do islamis-mo que é a doutrina de Maomé. Preferem alguns a for-ma musulman, tendo o 5 o som de z.

2 - Emir - Chefe, senhor ou prlncipe maometano.Do árabe emir ou amir. Ao califa árabe era concedido ohonroso titulo de "Emir dos crentes" ou, ainda, "Emirdos árabes".

nos afeitos à óbservação dos grandes dramasda vida.

Certa manhã de as-saleçaJ, em companhiade meu velho amigo Rahal Zaíra, deliberei va-diar algumas horas em alegre pescaria nos ar-redores de Hemud,lugarejo perdido entre ta-mareiras nas margens do Tigre. Munidos deum bom sortimento de iscas, sobraçandoduas magníficas redes, anzóis, varas e os ces-tos destinados ao pescado, partimos, ao re-pontar da alvorada, para a aldeia dosassaiadins.4 O dia vinha nascendo com umalimpidez rara; os galos afinavam suas vozespelos quintais; o céu, de um azul impecável,despejava sobre a terra, sobre o campo, e so- .

3 - As-saleça- Diada semanacorrespondenteàterça-feira. Eis a semana, em árabe, segundo a pronún-cia mais aproximada: al-içnain, as-saleça, al-arbaá, al-khamis, al-junurat, as-sa'bi, al-a-had.

4 - Assaiadins - Tribo árabe.

5

Page 4: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

bre as tamareiras de Merkeb5 inebriante dilú-vio de uma luz farta e sadia.

Mal alcançamos o rio, pouco acima da cor-redeira de Hemud, encaminhamo-nos para oponto que nos parecia mais favorável. Naque-la região, o Tigre, antes de espumar barulhen-to por entre a pedra ria que lhe embaraça ocurso, descreve a sua curva mais remansosae pachorrenta. Acomodamo-nos, pois, em re-canto seguro, preparamos com muitas cau-telas as iscas, reajustamos as redes (chama-das comumente axibequeJ e demos início àfaina costumeira. Palpitava-me que a sorte iriaabrir-nos, naquela suave manhã, as portas daboa fortuna.

Murmurei, com grande fé: Inch'Allah6 eatirei, com força, a primeira linha. Decorridos.alguns momentos senti pesar-me o caoiço nasmãos. Apetitoso samak7 fora, decerto, atraí-do. Dei um arranco ligeiro para a esquerda epuxei firme para cima. Apelei com sofregui-dão para Rahal:

5 - Merkeb- Pequena aldeia outrora existente nosarredores de Mossul. Para os nomes geográficos citadosneste livro poderá o leitor consultar o mapa.

6 - Inch'Allah - SeAlá quiser, isto é, Se Deusqui-ser! O árabe quando promete realizar alguma coisa (emfuturo próximo ou remoto) acrescenta como demonstra-ção de respeito e de fé Se Allah quiserl ou Inch'Allah (leia-se: Inchalá). Encontra-se no Alcorão (capitulo 18, versi-culo 23) uma exigência bem clara a tal respeito. O vocá-bulo oxalá do nosso idioma tem sua origem no árabeinchallah.

7 - Samak - Variedade de peixe.

6

- lá liI-ganina!8 Este está seguro! Nãoescapa!

- Fica quieto! Is-cot!9Não te mexasI -recomendou Rahallargando a rede e corren-.do em meu auxílio.

A linha resistia a um peso enorme. Não pe-queno foi o esforço para puxá-Ia. Mas que de-cepção! Não havíamos apanhado peixe al-gum. Preso ao anzol vimos, despontando, umobjeto escuro. Parecia uma pequena caixa demadeira.

Que maçada! - lamentou Rahal jáamartelado por aquele primeirofracasso. -Malvai a pescaria! Começamos a retirar su-jeira do fundo do rio. Que pouca sorte anossal

- Não digas isso, Rahal - protestei comefusão. - Repare! Parece um pequeno co-fre! Tem até chave!

Fartas vezes eu ouvirafalar de pescadoresafortunados que acharam tesouros no seiodas ondas. Lembrava-seaté o caso de um le-nhador de Basra que retirou, do fundo lodo-so de um riacho, valiosopote cheio de ouro.Quem sabe se não continha aquela caixa al-guns colares ricos e gemas preciosas?

Impunha-seuma providênciainadiável.Eraabrir a caixa. Nãofoi difícil.Comuma panca-da na pedra fizemos saltar a tampa. Eisquese nos depara, no interiordo suposto cofre,alguma coisa envolta em faixa de seda.

- Queseria?

8 - lá liI-ganina - Que sortel, grito de admiração.É expressãoda linguagem popular.

9 - Is-cot - Cala-te.

Page 5: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Desenrolamos vagarosamente a faixa queparecia úmida e pegajosa. E qual não foi anossasurpresa(é horrívelrecordarl)quandoverificamosque a faixade seda envolviao pe-daço de um corpo humano! Surgiu, aos nos-sos olhos atônitos, uma pequenina mão demulher que fora decepada pouco acima dopulsol

- Pelo nome do criador! - bradei horro-rizado. - Pela honra do Profeta'OChu lazemh'mel?1'

O velho Rahal, meio aturdido, mas sem per-der a serenidade, examinou o estranho acha-do, virando-o e revirando-o vagarosamente.Ali estava a prova clara, indubitável, de quena cidade ou nalguma povoação vizinha, se .cometera um crime hediondo. Os dedos finos,a pele de um moreno delicado, as unhas cui-dadosamente pintadas revelavam que a viti-ma devia ter sido jovem, rica, da alta socie-dade. Era fácil reconstituir o drama. A infelizmenina fora barbaramente sacrificada; o san-güinário criminoso, para fugir à justiça, achouacertado suprimir o corpo da vítima,esquartejando-a e fazendo, aqui e ali, desa-parecer os sangrentos despojos. A caixa si-nistra, em que tumulara a mão esquerda damorta, impelida pela correnteza, fora, poruma fatalidade, prender-se ao meu anzol!

10 - Profeta - Refere-secom o maior respeito aMaomé, o fundador do islamismo. Nasceu Maomé noano de 571 e morreu em 632. Pertencia à tribo dos Co-raixitas, uma das mais importantes da Arábia. Dizendo-se inspirado pelo anjo Gabriel, ditou aos árabes os pre-ceitos religiosos compendiados no Alcorão.

11 - Chu lazem h 'mel? Que devo fazer diante disto?

Disse o experiente Rahal com um ar pro-fundo e circunspecto:

- Cabe-nos agora, um grave dever. Levareste fato ao conhecimento do nosso cádi.'2Se esta mão foi por nós encontrada é porqueo Destino assim o quis. Caminhemos, pois,ao encontro do Destino.

Concordei sem a menor sombra de dúvidacom a sugestão de meu amigo. Era aquela avontade do Destino? Maktub/13 Insensato éaquele que segue os atalhos incertosdesviando-se dos caminhos retos da vidal

Ancorados nessa resolução recolhemos ospetrechos da malograda pescaria e retoma-mos à cidade. Quando atravessamos a esbu-racada praça da Mesquita, naquela hora cal-mosa do dia, os curiosos atiraram contra nósa flecha de seus olhares indagadores. De umgrupo de cameleiros, alguém. inquiriu numtom achavascado:

- Por que teriam aqueles pândegos vol-tado tão cedo do rio?

Sentia-mesob o peso de forte emoção. Ra-hal, sisudo e grave, caminhava a meu lado.De quando em vez resmungava coisas semnexo e chegou a jurar, pelas cinzas do Profe-ta, que não sossegaria enquanto não fosseobtida a elucidação do mistério.

Com passos rápidos e resolução firme, fo-

12 - Cádi - Juiz entre os maometanos, encarrega-do de julgar todas.as causas de direitocivil,criminalereligioso.Dasentença de um cádi pode haver apelaçãopara o mufti.

13 - Maktubl - Particfpiopassado do verbo Ktab,escrever. Significaescrito ou melhor "estava escrito".É a expressão caracteristica do fatalismomuçulmano.

7

Page 6: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

mos ter ao palácio em que morava o ilustree judicioso Amin Buazan, ocupante, por es-se tempo, do prestigioso cargo de cádi.

Era o velho magistrado, na sua figura de ho-mem gordo e suarento, pessoa digna e res-peitável; exercia as funções com eqüidade eesclarecida energia, e muito se empenhavaem ser justo e equilibrado. Direi que era umautêntico mochtahid.14

Algumas de suas sentenças, inspiradas noLivro da Lei e nas tradições mais notáveis doProfeta, foram incensadas pela fama e firma-ram jurisprudência no Islã. Fizera esculpir, nopórtico de sua casa, esta legenda admirável:"O rei que se mostra mais severo do que aLei, pratica a tirania."

Relatei ao digno cádi, com todos os por-menores, o que ocorrera em nossa pescariae desvendamos diante de seus olhos a miste-riosa caixa. Ao ver a mão cortada, o rosto ro-liço do juiz cobriu-se de impressionantepalidez.

- lalil-fazaát! É horrível! - exclamou 'es-gazeado, agitando os braços. - Isto é muitogravei Este achado denuncia um dos crimesmais revoltantes de que tenho notícia. Preci-samos descobrir o nome da vítima e punir,com inflexível rigor, o desalmado.

Junto ao pulso fino amontoavam-se coá-gulos escuros de sangue. A mão, ligeiramentearroxeada, já começava a denunciar os primei-ros sinais de decomposição.

14 - Mochtahid- Jurisconsulto; sábio que cultivaa jurisprudência;aquele que o mundo oficialreconhececomo douto na Ciênciado Direito.

8

A nossadenúncia, repintada com as coresdo inverossímil,desorientavao veneradoma-gistrado. Como elucidar o mistério?

Pôs-sea andar, como um possesso,de umlado para o outro, no espaçoso salão. Dequando em vez, fitava-me muito fixo e pro-curavaobter novos informes, mastigandopa-lavras e repisando dúvidas:

- Onde encontraram a caixa? Lembram-se da hora? Em Hemud?A água estava bar-renta? Para cima ou para baixo da curva? Masali não há moradores; tudo é deserto. Mas...esperem... Se não me engano há perto umcampo de melões, algumas amoreiras e duasou três cabanas de pescadores...

- Essescasebresestão abandonados -arriscou Rahal. - Conheço bem,' Sr. cádi,aquelessítios. Um pouco adiante, entre doisálamos, existe um sepulcro...

- É isso mesmo - refletia o cádi compe-netrado, piscandoos olhose passandoa mãosuarenta pelo queixo. - Os casinholos nãopassam de ruínas em completo abandono.Há, realmente,algumasárvoresdisseminadaspelos arredores. No mais, o lugar é mesmodeserto. - Bateu,de repente,na testa e pro-feriu nervoso, esboroando as palavras: - Ébem possívelque minha esposa,que é muitorelacionada, nos possa auxiliar neste caso.Está-se-mefazendo luz no espíritoI

Eencaminhando-separaumapequenapor-ta envidraçada que abria para o harém'5dacasa chamou nervoso, com voz alterada:

15 - Harém - Vocábuloque significa "proibido".Parte da casa cuja entrada é vedada a estranhos, e ondevivem as mulheres.

Page 7: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii
Page 8: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

E qual não foi a nossa surpresa (é horn'vel recordar!) quando verificamos que a faixa de sedaenvolvia o pedaço de um corpo humano! Surgiu, aos nossos olhos atônitos, uma pequenina mãode mulher que fora decepada pouco acima do pulso! Pelo nome do criador! - bradeihorrorizadoI (pág.7)

Page 9: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

- Hafizel Hafize!Momentos depois ressoaram,no cômOdo

contíguo, passoslentos e arrastados. De le-ve rangeua porta e surgiu-nos, na sala, umadama bastante gorda, muito bela nos olhos,nos lábios e nos cabelosnegros que lhe des-ciam em espirais ao largo das frontes. Sua pe-le muito alva dava a impressãode ser trans-parente. Ostentava um vestido roxo e verdede sedae exibia nos pés (que me parecerampequenose bem-feitos) scarbines16amarelasbordadas com fios de prata. Trazia o rostodescoberto e fitava-me com naturalidadeco-mo se fôssemos íntimos parentes de seumarido.17

- Que queres de mim? - perguntou aomarido, aproximando-se com o "cheque-cheque" suavedesuasdelicadaschinelinhas.

Acudiu atencioso o cádi dando à voz umainflexão de insuperávelcordura:

- Precisamosde ti, querida Hafize. Essesdois amigosquando se divertiam hoje, muitocedo, numa pescariaem Hemud, retiraram,casualmente, do fundo do rio, uma caixa.Aberta a caixaverificaram que havia dentro,enrolada em pequeno véu de seda, muito fi-no, esta delicada mão de mulherl

E com a ponta dos dedos gordos, ergueucuidadoso diante dos olhos ávidosda esposao lúgubre achado.

- lá iIé/y! Meu Deus! Que horrorl - ex-

16 - Scarbines - Chinelinhasque as damasusamnos afazeresdomésticos.

17 - Em geral a esposade um muçulmano s6 apa-rece, a homens estranhos, com o rosto coberto.

clamou a robusta senhora recuandoassusta-da e encobrindo o rosto com as mãos. Comtrejeitos (que me pareceramexagerados)ex-primiu o desprazerque lhe causaraa revela-ção do marido.

- Tachadádi! Ânimo, querida - confor-tou o cádi olhando-a na face. - Que teu es-pírito não se aflija com o drama que avultadiante de nós. É imprescindível para o casoo teu valioso auxílio. Atenta nesta mão e vêse podes, com tua argúcia, deduziralgum in-forme que ponha alguma luz nastrevas des-te mistério.Comodescobrirpor estamãocor-tada o nome da vítima?

A encorpadaHafize,reanimadacom as pa-lavrasdo marido e envaidecidapela possívelcolaboraçãoque iria prestar à justiça, exami-nou detidamente a prova do crime. Pareceu-me vê-Iaenleadae cuidadosa. Mordia o lábioinferior como quem reflete. Tive a impressãode que hesitavanão se atrevendo a exprimiro que lhe viera à mente.

- Estas unhas - começou afinal, comvoz amelaçada-,foram tratadase pintadas,com duas cores, por habilíssima hannaiét. 18

Noto que estão cobertas por um esmaltevermelho-laranja, de boa qualidade, que re-siste de dez a quinze dias. Cada hannaiét tema sua maneira especial e seu estilo próprio detrabalhar; basta, pois, descobrir qual foi a au-tora desta pintura e o nome da vítima estaráconhecido. É preciso interrogar todas as ma-

18 - Hannaiét - Mulher, geralmente idosa, que fre-qüenta os haréns onde exerce as funções de manicura,costureira, mensageira, etc.

11

Page 10: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

nicuras da cidade e ameaçá-Ias de morte senão falarem a verdade. Do contrário a autoradesta "mão", com receio de vingança ou te-mor da responsabilidade, não revelará osegredo.

Nesse mesmo dia baixou o cádi uma ordemdeterminando que todas as hannaiéts profis-sionais ou simples amadoras comparecessem,à hora certa, na sala de audiências. Vimosconfluir cerca de vinte mulheres, algumas jábastante idosas, modestamente vestidas. As-sinalei duas ou três que eu conhecia de vista;outras, porém, hirtas e engomadas, eram paramim mais estranhas do que qualquer lagarti-xa vermelha do Iraque.

Sobre o caso cruzavam-se os mais desen-contrados boatos. Muito fértil é a imaginaçãopopular. Mexericavam uns que o primeiro ma-gistrado, resolvido a combater a vaidade fe-minina, pretendia expulsar da cidade todas ashannaiéts; linguarejavam outros que ia haverconcurso entre as manicuras para a escolhada mais hábil, que seria enviada ao califa. Ouvide Ibraim, o pasteleiro, esta inverossímil no-vidade: "Foi criado novo imposto; é precisoque as hannaiéts sejam registradas." Etodasessas conjecturas errôneas foram possibilita-das pelo fato de não haver a autoridade de-clarado, em seu edital, os motivos daquelaconvocação.

- Disponhamtodas as mulheresem fila-ordenouo cádi- e façamentrar,paraa sa-Ia, uma de cada vez.

Assim fizemos.Veio a primeira. Era uma egípcia corpulen-

ta, de rosto redondo, busto desenvolto, olhos

12

verdes, maliciosos, cabelos de um castanhomeio insípido,boca fina e interrogativa. A fi-sionomiadenotava criaturasimplese com lar-ga experiência da vida. Pesava-lhe nos pu-nhos morenos meia dúzia de braceletescoloridos.

O cádi apresentou-lhe a mão cortada einterpelou-a, imprimindoàs palavras um tomsinistro e inexorávelque impressionava:

- Reconheces esta mão? Estas unhas fo-ram pintadas por ti? Pelo santo nome do En-viado!,9Não tentes ocultar a verdade, pois oa/caçar'! cairá impiedoso sobre aquela quementir.

A matronaça não deixouverqualquermos-tra de surpresa. Comostensivodesdém, maisimpassível do que um hakim2', tomou damão cortada, considerou, atentamente, asunhas, uma por uma, e declarou com vozbem timbrada e certa predisposição àloquacidade:

- Este trabalho, 6 respeitávelcádi, não émeu. Tomo Alá como fiador de minhas pala-vras. Conheço poucas hannaiéts que se sir-vam deste detestável esmalte avermelhado.Creio que s6 a nossa amiga Fetnah, vende-dora de perfumes e catnelJ22profissional, éque tem a mania de executar essas fantasias

19 - Enviado- ou "Enviadode Deus", - Maomé,fundador da religiãodos árabes.

20 - Alcaçaz - Castigo violento, impiedoso, quechegava a causar a morte.

21 - f;lakim - Médico.22 - Carneb - Agenciadorade casamentos.

Page 11: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

em duas cores! As delicadas mãos de uma jo-vem, a meu ver, exigem...

- Interroguemos logo essa tal Fetnah -cortou resoluto o cádi, com nervosa impaciên-cia, dando por encerrado o depoimento daegípcia.

Foi chamada, a nossa presença, a hannaiétFetnah que a mulher dos braceletes coloridosindicara. Surgiu-nos uma anciã muito magra,alta, de face repuxada, olhar distraído e pas-sos lentos. Interpelada de súbito pelo cádi, ena presença suspeitosa da egípcia, mostrou-se meio nervosa e confusa (o seu olhar, queme parecera distraído, tornou-se desvairado)e vibrando toda, numa convulsão aflitiva,confessou:

- Sr. cádi! Juro pela venerável Caaba!13Esta mão eu reconheço; foi feita por miml

Regozijou-se o juiz com a confissão cuja fi-delidade era assegurada pelo juramento quea precedera. O inquérito entre as pintoras deunhas fora mais rápido do que ele imaginara.Ede pé, diante da velha, com as mãos na cin-tura, insistiu com o semblante carregado:

- Equais foram as clientes que atendes-te na última semana?Terás compensadorabakchich&4 se nos ajudares a esclareceres-te mistério. Acabarás na forca se fores sur-preendida ocultando a menor sombra daverdade.

A velhaFetnahtremia. O temor estampava-se-lhe no rosto ravinhoso. Passou lentamen-

23 - Caaba - Pedra em forma de cubo, veneradaem Meca.

24 - Bakchiche - Presente, gratificação.

--

te a' mão esquelética pela testa, e baixandoa voz disse como quem invoca o céu portestemunha:

- Cuidei,há três ou quatro dias, da jovemWadad, filha do xeque25Mussa Chadi, opoeta. Atendi, depoisà noiva de Halim, o ca-meleiro. A seguir, à esposade Aziz Zeraik,plantadorde cebolas;àsduassobrinhas,Najlae Samira, de Abul-Boteyn, e a uma ricae ge-nerosaviúva, chamadaAbriza,que resideper-to do cemitério judeu, em casa de seu tio,vendedorde melões.Fiztambém, as mãosdeLeilah, síria, muito gorda, separadado mari-do, quesofre deasma,e trateiontem, duranteo dia, de Lãla lasmina,26 casada em segun-das núpcias com um peroleiro27 chamadoAkik. Foi s6.

E declinava nomes e parentescos, confes-sava tudo, com a lhaneza rústica de quempossui alma simples e ingênua.

- Muito beml - exclamou o cádi radian-te, esfregando as mãos. - Estamos agora natrilha do mistério. Essa boa hannaiét irá hojemesmo, acompanhada de dois agentes de po-lícia, visitar todas as clientes que ela acaba decitar. Se alguma delas não se apresentar, por

25 - Xeque - Termode acatamento que se aplica,em geral,aos sábiosreligiosose pessoas respeitáveispelaidade ou costumes. Chefe de tribo ou agrupamentomuçulmano.

26 - Lãlalasmina - A expressão LAIa, precedendonome feminino, significa"Senhora", "Dona". Era tra.-tamento respeitoso.

27 - Peroleiro- Indivlduoque vivedo comérciodepérolas.

13

Page 12: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

se achar em viagem ou em visita a parentes,o marido, pai, irmão ou tio, o responsável, en-fim, ficará detido, como suspeito, paraaveriguações.

O plano sugerido pelo cádi pareceu-me há-bil, infalível e rápido. A verdade surgia bemclara, insofismável. Uma das clientes da ve-lha Fetnah, a casamenteira, fora assassinadae esquartejada. Como descobrir a identidadeda vitima? S6 havia um roteiro a seguir. Visi-tar, uma por uma, as jovens cujas unhas ha-viam sido embelezadas pela hannaiét acusa-dora. Uma delas, certamente, ia ser dada co-mo ausente (viagem, fuga, rapto ou desapa-recimento) e a prisão do culpado e seus cúm-plices não seria diflcil. Ocorriam-me as per-guntas implacáveis com que os suspeitos se-riam achicotados: "Xeque, onde está tua es-posa?", "Cameleiro, que fizeste de tua noi-va?" "Mostra-nos a tua sobrinha, 6 merca-dor! "

Em poucos minutos organizamos a peque-

14

na caravana policial. De:viachefiá-Ia nas in-vestigaçõesum certo Ghanem,homem hábile valente, da confiança do cádi. Iriam, tam-bém, dois agentesde policia, eu, o Rahal, avelha Fetnahe a corpulenta egipcia de olhosverdes. A colaboração das mulheres era in-dispensável,pois teriamos de inspecionarosserralhos, entrar nos haréns, interrogar mo-ças solteiras, viúvas, divorciadase senhorascasadas,bater e rebater o embaraçosotape-te das intrigas femininas.

Do paláciodo cádi partimos em direitura àresidênciado rico e prestigioso xeque MussaChadi, o poeta, cujasobrinha,a graciosaWa-dad, tiveraas mãoscuidadosamentepintadastrês ou quatro dias antes.

Vejamosa estranhissimaaventuraque nosocorreu em casada jovem Wadad, a primei-ra a ser visitada.

Revistam-secom o largo albornoz da pa-ciência, pois é bem longo o relato que voufazer.

Page 13: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

27~ Narrativa

Continuação da trágica aventura da "mãocortada". Como o inteligente Rahal fez sur-preendente descoberta.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM...é'esta a vigési-ma sétima.

O interesse que cega uns, é luz para outros.Lidaa vigésimasétima restam, apenas, no-

vecentas e setenta e três.

Residia o xeque Mussa Chadi num velhocasarão de dois pavimentosque debruçavaosseus terraços avermelhados para a face maislarga da Serrata-AI-Kobachi.1Batemos, comsofreguidão, à porta principaljá bem suja dotempo. Do interior partiram rumores confu-sos. Alguém perguntou:

- Man-rhuna?2Destacou-se Ghanem do nosso grupo, co-

lou o rosto à porta e anunciou com autoritá-ria energia:

- Somos enviados do cádi AminBuazar.Precisamos falar ao dono da casa. Temosmuita pressa. O assunto é grave e urgente.

Seguiu-se curto silêncio. Ouvimos, a se-

1 - Serrata-AI-Kobachi- Praça das ovelhas. Con-vém observar que do árabe AI-Kobachi (ovelhas) derivou-'se o nome de Alcobaça, cidade portuguesa, famosa porseu vinho. O singular de kobachi seria kabachi.

2 - Man-rhuna?- Quem está ar?

guir,'insistentes zunzuns junto à porta e tivea impressão de que estranho vulto femininonos espionava semi-oculto no fundo domuxarabiê.3

Recebeu-nos, afinal, um homenzinho debarbicha rala, enfezado, meio calvo, a testacheia de espinhas e pequenas saliênciasavermelhadas.

- Taf-dalu!4- convidou secamente,com gesto de pouco caso e semblante car-rancudo. - O xeque já os aguarda e. vairecebê-Ias.

E o homem da testa escalavrada, comagressiva má vontade, conduziu-nos por umcorredor longo e escuro que cheirava a mo-fo. Chegamos, por fim, a ampla sala ilumina-da, as paredes adornadas de veludo, onde re-

3 - Muxarabiê- Espéciede caravana, fechada porvenezianas,construída,emgeral,na frenteda casa.

4 - Taf-dalu- Entrem.

15

Page 14: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

lampejavam pequenos rubis e esmeraldas.Sentia-se naquele interior, um luxo inteligen-te e sóbrio. Num grande escudo de prata, emletras de ouro, destacava-se esta legenda ad-mirável: "Há quatro coisas que não retomam:a pedra, quando atirada; a palavra, depois deproferida; a ocasião, depois de perdida; e otempo, depois de passado."

Ali se achavam, recostados em largas al-mofadas, com seus narguilés acesos, cincohomens de aparência distinta. Ergueu-se umdeles e veio, solícito, ao nosso encontro.Reconheci-o imediatamente. Já o vira inúme-

ras vezes na mesquita. Encontrara-os nQs c~-fés e nos jardins. Era o xeque Mussa Chadi.

Vestia-se com simplicidade e ostentava,com natural distinção, belo turbante verme-lho à mossulense. Devia ter mais de cinqüentaanos, embora robusto e bem conservado.Ti-nha os olhos cor de veludo negro. Na barba,bem aparada, repontavam fios brancos.

- Ar-lá-n-usálanif5- exclamoucom aco-lhedora simpatia. - Sejamos todos bem-vindos a esta pobre tenda do velho carava-neiro de Mossul!

A voz de timbre agradáveldenunciava le-ve sotaque sírio.

Ghanem, em poucas palavras, numa fór-

5 - Ar-Iá-n-usálani- Fórmulacorrente de saudação.Exprime a saudade de quem vê alguém que chega, al-guémcujavindaeramuito desejada.O vocábulo salã querdizer paz. Quando um maometano encontra outro, saúda-o nos seguintes termos: Salã aleikuml (A paz seja conti-gol. E, proferidas estas palavras, leva a mão direita à ai.tura do coração. Da saudação árabe originou-se o ter-mo salamaleque, introduzido em nosso idioma.

16

mula corriqueira, agradeceu por nós todos aamável saudação do distinto e gentil rab-albaiet.6 E por sua vez brindou com respeito-so salã a todos os presentes.

Os xeques (por certo amigos da casa, e vi-sitantes descerimoniososl retribuíram a cor-tesia de Ghanem na forma clássica .;:"'tremuçulmanos:

- Assalã-aleikumP

Senti que os olhares convergiram para onosso grupo, com impaciente curiosidade. Al-guns se mostraram desconfiados. A nossachegada viera, certamente, perturbar a alegriae a intimidade da reunião. Sentia-se que forainterrompida uma palestra amistosa einteressante..

O xeque Mussa, ao atentar nas duas mu-lheres que vinham conosco, acudiu,pressuroso:

- Não é-essa a prestimosa Fetnah, nossaboa amiga? Minha filha Wadad decerto gos-taria de vê-Ia! Creio mesmo que tem uma en-comenda qualquer a fazer-lhe.

E apontando para uma pequenjna porta, àesquerda, semi-oculta por dois vistosos tape-tes, inst-ou muito amável:

- Entra por ali, la-saidite8 Fetnahl é fa-vor. Leva, também, a tua amiga. Ma-aruff.9

6 - Rab-albaiet - Dono da casa. A titulo de curio-sidade assinalamos nessa expressão a palavra rab, do ára-be, que deu origem ao vocábulo rabino.

7 - Assalã-aleikum - Que a paz seja convosco. Fór-mula social corrente para retribuir uma saudação.

8 - la-saidite - Tratamento respeitoso. Significa: se-nhora, ou dona. Ex. la-saidite Fetnah. Ó senhora Fetnahl

9 - Ma-aruff - E favor!

Page 15: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

~ .

E, voltando-se para Ghanem, indagou aca-riciando lentamente a barba negra e baixan-do ligeiramente a voz:

- Em que poderei servir ao nosso honra-do cádi Amin Buazar? Terei o maior prazer emacatar as suas ordens e colaborar com a suaeficiente administração.

Tive a impressão de que Ghanem, interpe-lado de chofre, não encontrava, de pronto,uma evasiva discreta que pudesse disfarçar overdadeiro objetivo de nossa visita. Uma vezque a jovem Wadad, a filha do xeque, estavaviva e sã, a nossa presença naquela casatornar-se-ia inútil. A pessoa do opulento Mus-sa Chadi já não mais interessava à justiça.

Para o imaginoso policial não era, porém,difícil descobrir um pretexto qualquer. Medi-tou um instante e disse atencioso.

- Poderia conceder-me alguns minutos deatenção?

- Com o maior prazer! Bi-kull surur, ia-azize!10 - aquiesceu o xeque.

E, voltando-se, para os seus convidados,desculpou-se com voz persuasiva:

- Voltarei dentro de alguns minutos.Permitam-me que atenda a este enviado denosso honrado cádi.

E afastou-se com Ghanem conduzindo-opelo braço para o interior da casa.

Permaneci na luxuosa sala com Rahal e osdois agentes que nos acompanhavam.

Um xeque muito jovem ainda, de rosto pá-lido, fisionomia abatida, que ostentava na cin-

10 - B;-kullsurur, ;a-az;zel- Com o maiorprazer,6 meu amigol

tura larga faixa verde, soergueu-se um pou-co e insistiu, obsequiador, voltando-se parao nosso lado:

- Sentem-se! Acomodem-sena roda! Re-ceio muito que a conversa daqueles dois sejamais demorada do que é de permitir!

E atirou a mão num grande gesto.Seria indelicadeza recúsar aquele convite

impregnado da mais familiarcamaradagem.Sentei-me de penas cruzadas sobre uma al-mofada. Rahal, com a gravidade de um der-vixe, acomodou-sea meu lado. Os doisagen-tes de Ghanem mantiveram-se de pé juntoà porta que abria para o corredor escuro.

Rahal, inclinando ligeiramente o rosto,sussurrou-me com voz assaz misteriosa:

- Repara naquele xeque de barba ruiva,olhos fundos e narizde rapina, que está bemna.tua frente. Seria capaz de jurar que ele éo criminoso que procuramos!

Sacudi os ombros num gesto de increduli-dade. Que teria levado Rahal a lançar a fle-cha de suas suspeitas sobre aquele xeque dabarba ruiva?

- Palpite - cochichou-me Rahal. - Ti-ve agora um estranho pressentimento I Notei,há pouco, em seu rosto, um ligeiro tremorquando deu com a presença da velha Fetnah.

Sempre reconheci em Rahal aquela irritan-te e infantil mania de adivinhar as coisas e es-clarecer mistérios. Se alguém em sua presen-ça lamentava não se lembrar de determinadonome, ele acudia com ares divinatórios:"Palpita-me que esse nome começa por fime tem sete letras!" Consultado por um amigoque ignorava o paradeiro de um objeto, res-

17

Page 16: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

pondia, sem hesitar: "Deveestar atrás de umacesta de roupas usadas, por baixo de um ta-pete!" E,fazendo conjecturasfantasiosas, er-rava cem vezes para acertar uma, convenci-do de que o pressentimento é o mensageirodo Destino.

- Deixaos teus palpites para outra oca-sião - aconselhei em voz baixa. - Aquelehomem, com certeza, nada tem que ver como caso!

O xeque do nariz de rapina, que inspiravadesconfiança à imaginação de Rahal, fuma-va indolente, com o cotovelo apoiado nas al-mofadas. Observei-o me1hor. Parecia pesadoe forte como um atleta. Vestia-se de seda comlistras azuis, e exibia um turbante vistoso es-trelejado de prata e agaloado de couro. Seusolhos, debruados pelas manchas escuras dapele, irradiavam desconfiança e maldade.

Como quem retoma o fio de uma palestra,o jovem da faixa verde voltou-se para ele eadvertiu com ar de graça:

- Mas, afinal, meu amigo, creio bem quefomos esbulhados e feridos em nossa curio-sidade. No momento em que aqui chegaramos emissários do judicioso cádi, com as duasmulheres, ias dar inicio a uma narrativa quese nos afigurava muito interessante. - E, fei-ta ligeira pausa, insistiu com voz pausada eenfermiça, mas com certa afetação nas pala-vras: - Creio exprimir o desejo de todos ospresentes declarando que fazemos o maiorempenho em ouvir a aventura que nosprometestesl

- Ora, ora - desculpou-se o xeque dabarba ruiva, carranqueando um riso sem ex-

18

pressão. - Confesso que já não me lembromais do que estávamos falando nem mesmoo tema de nossas divergências quando fomosinterrompidos pela polícia.

("Pela polícia?". Então ele sabia que nóséramos da polícia?)

Acudiu com alvoroço um homenzinho gor-ducho, de olhos claros, com três papadas noqueixo, que se conservara, até então, em ab-soluto mutismo:

- Pelo céu do Haram.11 Fraca é a tuamemória, meu caro Abul-Boteyn! Discorrias,com invejável eloqüência, sobre versos e pen-samentos mais adequados para tapetes deluxo!

Segredou-me Rahal com voz emocionada:- Ouviste? O ruivo se chama Abul-

Boteyn! É o tal cujas sobrinhas tiveram asmãos pintadas pela velha Fetnah! Insisto naminha suspeita..É esse o esquartejador de mu-lheres! Veremos se ele será capaz de nos apre-sentar, vivas e intactas, as duas pupilas en-tregues a seus cuidados!

Fuiforçado a reconhecer a estranha coin-cidênciano caso. Aquelehomem (até aquelemomento), para nós inteiramente desconhe-cido, que fora focalizado pela suspeita oca-sional de Rahal, figurava na lista dos prová-veis criminosos sugeridos pela manicuraI

- É melhor prendê-Io já! - investiu Ra-hal nervoso, com voz trêmula.

- Estás louco! - discordei com energia.

11 - Haram - Territórioda cidade de Meca. t: sa-grado para os islamitas.

Page 17: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

E, recalcando-Ihe os desassossegos do es-pírito, objetei prudente:

- Não temos prova alguma contra o rui-vo! Somos hóspedesdo xeque! Querespra-ticar uma violência, melindrar o dono da ca-sa e pôr a perder o nosso trabalho?

(Eu falava tão baixo que nem o rumor deminha voz chegava aos ouvidos dosvisitantes. )

O gorducho das três papadas insistiu, comar brejeiro, dirigindo-se amistoso ao xequeAbul-Boteyn:

- Interessa-nos conhecer aquela' famosalenda do tapete turco que causou a morte deum emir.

Desculpou-se novamente o barba ruiva va-cilante, fazendo-se de rogado e forçando osorriso: .

- Não me recordo bem de todas as peri-pécias. Ando, ultimamente, com a memóriaem deplorável decadência.

Nesse momento - com espantosa surpre-sa para mim - Rahal viu no rumo da conver-sa dos xeques boa margem para intervir. E ofez em tom fidalgo, com exagerada finura:

- Naturalmente o nosso honrado amigo,o xeque Abul-Boteyn, sente-se sob o gumede graves preocupações. A alma não tem se-gredos que a conduta não revele. Nada con-corre para obliterar mais nossa memória doque as doenças, as contrariedades e as amo-finações quando alcançam pessoa de nossotrato íntimo. - E fitando o xeque, com aten-ci9S0 interesse, indagou meio grave e meiosorridente: - Vossasdelicadase encantado-ras sobrinhas gozam de perfeita saúde?

Ergueu-seAbul-Boteyn num violento arran-co como se fosse picado por um escorpião.Lia-se-Iheno rosto, quese cobriracom a más-caradapalidez,o maisimpressionanteassom-bro. A pergunta de meu companheiro tiverao dom de levá-Io a extrema exasperação.Flechou-nos com um olhar desvairado quetraduziaódio e pavor. Percebi-lhena testago-tas lívidas de suor.

- Minhassobrinhas?- arrematou, enca-randoRahalcomrancorosadesconfiança.-.Permita-me que considere estranha e imper-tinente a sua pergunta! Onde as conheceu?

O inteligente Rahal com a maior naturali-dade, fingindo não ter notado a turvação de-seu exaltado interlocutor, retorquiu enclavi-nhando as mãos sobre os joelhos:

- Quando crianças brincaram muitas ve-zes com minhas filhas. Lembro-me de que amais moça, a Samira...

- Samira! - interrompeu Abul-Boteyncom voz cada vez mais trêmula e gesto des-composto. - Foi sempre uma desmiolada.Não atendia aos meus conselhos. Era surdaàs advertências dos mais velhos. Nunca vi, atéhoje, em minha família, criatura tão teimosa ISe não fosse esse deplorável defeito seria amenina mais estimável do mundol

Suas mãos, cabeludas e grossas, fecharam-se numa crispação violenta, franjou-Ihe os lá-bios uma espuma branca de ódio. Fez peque-na pausa, remexeu na brasa do narguilé e tor-nou com voz sucumbida:

- Ecomo já era, aliás, de prever, deu-nosa tresloucada Samira um grande desgosto...

- Desgosto?- repetiu,em eco, Rahal

19

Page 18: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

afetando indiferença como se demonstrasseuma solicitude toda convencional.

- Sim, um irreparáveldesgosto - confir-mou o xeque, com a voz a estalarde cólera.- Durante um passeioque fizemos até Bas-ra, conheceua desajuizadamenina um pelo-tiqueiro que seexibiaaosmercadoresdo por-to. Apaixonou-se pelo tal. Como tutor opus-me, com a maior energia, àquelecasamentoinsultuoso para a nossafamilia. Jamais con-sentiriaque minhasobrinha,educadaem nos-sa casa, entregue aos meus cuidados, fossedesgraçar-sena companhia de um reles pa-lhaço. Quefez Samira?Há dois dias, sem sedespedir da irmã, sem se despedir de mim,desapareceude nossacasal Fugiualta noite,com o namoradoI

- Estásouvindo? - ciciou Rahalemocio-nado. - Presta bem atenção aos detalhes.A sobrinha fugiu. A encantadora Samira de-sapareceu,misteriosamente,com o namora-do! O infame assassinojá estáensaiandoummeio de ocultar o crime. Inventou essecom-plicado romance da paixão e fuga de Sami-ra. Quando a justiça o interpelar: "Xeque, oque fizeste de tua sobrinha mais moça?", obandido, com lágrimasnos olhos, contará alenda do "malabarista apaixonado".

- Cala-te, Rahal - sibilei cauteloso. -Falando assim serás capaz de despertar sus-peita no espírito dessa gente!

O cochichar de Rahal tornara-se imperti-nente. Sobre nós já incidiam os olhares des-confiados dos circunstantes.

- Deixa em paz a rapariga - aconselhoucom bom humor o gordalhão das papadas,

20

bocejando sua indiferença pelas tragédiasalheias. - A jovem quis fugir. Maktub!,deixá-Ia ir! É o destino! Louco é o que tentaprender na mão a chama de uma vela ou osímpetos da mulher apaixonada! Quem quiserviver bem neste mundo, procure não se ilu-dir. Simule, porém, que se deixa iludir sem-pre. O passado é feito de saudades, o presen-te, de desgostos, e o futuro, de inquietações.A lembrança do passado rouba-nos metadedo presente, e o cuidado do futuro leva-nosa outra metade. Que é a vida, afinal, senãouns raros momentos a que chamamos alegria;alguma resignação a que chamamos paz e al-guns laços efêmeros a que chamamos amor?Esqueçamos, para alegria de todos, a desven-turada menina! Conta-nos, ó xequel, a famo-sa lenda do tapete misteriosol

- Bem lembrado - disfarçou Rahal refor-çando, em voz alta, o pedido. - Será paranós indizível encanto ouvir essa narrativa.

E muito discreto, falando-me ao ouvido,sem que os outros percebessem, preveniu-meem tom quase inaudlvel:

- Logo que Ghanem voltar vou denunciaresse bandido! Verás que ele não chegará aconcluir a tal lenda do tapete! Essagente, queaqui está, vai se deliciar com uma nova "his-tória sem fim..."

O arrogante Abul-Boteyn ajeitou-se nervo-so nas almofadas, espraiou o olhar suspeito-so por toda a sala, e narrou o seguinte:'2

12 - A trágica aventura da "mão cortada" é aqui in-terrompida para ser reiniciada na 344~ narrativa. Todosos episódios serão. então, esclarecidos nas narrativas344~. 345~ e seguintes.

Page 19: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

28~ Narrativa

o caso do tapete azul. O que disse o dervixedas barbas brancas sobre as letras misteriosas.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM...é esta a vigési-ma oitava.

A virtude, às vezes, só vai longe com o am-paro da vaidade.

Lida a vigésima oitava restam, apenas, no-vecentas e setenta e duas.

A estranha e surpreendente aventura do ta-pete misterioso ocorreu - já lá se vão mui-tos anos - na gloriosa e sempre lembrada ci-dade de Bagdá. (Que Alá a engrandeça cadavez mais!)

Certo dia, pela manhã, o velho Hacib Bal-liam, o mercador, ao entrar, como de costu-me, em sua loja, deparou com um belissimotapete azul, de pêlo de cabra, terminando emfranjas douradas que repousava em dobras,preso a um.gancho, perto da porta que abriapara a praça.

Como teria, aquele tapete, vindo parar ali?Não se recordava de tê-Io adquirido, e pare-cia, ao primeiro relance, coisa muito fina, defabricação estrangeira, inteiramente nova!

"Isto é arranjo dos rapazes", cismou Ha-cib, procurando coordenar as idéias. "Fizeramontem, durante a minha ausência, uma tro-ca! Permutaram qualquer coisa ou um velho

narguilé por este belo tapete. Pela glória deAlifl A transação, a meu ver, não foi daspiores! Vejamosl"

Resolvidoa apurar a verdade, chamou Ha-cib seus auxiliares: Jamil e Abraão.

Jamil era seu filho; Abraão, seu sobrinho.- Quem pôs aquele tapete ali? - indagou

o chefe em tom grave e formalizado.Jamil e Abraão arregalaram os olhos. Este

esbugalharde olhos exprimiaum espanto dezou vinte vezes acima do comum.

- Nãofui eu - negou Jamil sem hesitar.- É a primeira vez que vejo esse tapete

azul - declarou logo Abraão encolhendo osombros, sem curiosidade nem interesse.

1 - Pela glória de Alil, exclamação entre os árabesmuçulmanos. Refere-se a Ali, filho de Abul Talib, 4? ca-lifa árabe. primo e ge"nrode Maomé. Foi assassinado em661 no interior de uma mesquita.

21

Page 20: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

A partir daquele momento, o caso assumiaas proporções de um verdadeiro mistério. Otapete de pêlo de cabra não era da loja; nãofora comprado; não proviera de troca, eaparecia exposto, como mercadoria, no gan-cho da terceira porta! Quem o dependurouali?

Qualquer outro mercador, nesta altura dosacontecimentos, daria o caso por encerrado.Para que indagar? Que adiantava perquirir?Venderia, naquele mesmo dia, a preciosa al-catifa a um xeque da Siria ou do Libano e te-ria, com a transação, um lucro magnifico etotalmente inesperado.

Mas, a falar a verdade, o nosso Hacib eracaprichoso. E mais ainda: era indiscreto, ta-garela e pertinaz. Tinha a incorrigível maniade pesquisar problemas e investigar situaçõesenigmáticas da vida. Quando moço, trabalha-ra, durante vários anos, nos teares turcos,convivera com tecelões persas e estava con-vencido de que a alta tecelagem não tinha se-gredos para si.

A tapeçaria é uma arte, nobre e suntuária,que apaixona os árabes. Aparece (como nosrevelam os historiadores) cultivada, com ex-traordinário engenho, desde a mais alta anti-guidade. Já os assirios e babilônios, com te-cidos feitos de fios coloridos, entrecruzados,imitavam a pintura. Os templos eram, em ge-ral, adornados com tecelagens de cores bri-lhantes que pareciam desenhos admiráveis.

O famoso Corsói I, que durante trinta e oi-to anos dominou a Pérsia, tinha em seu des-lumbrante palácio de Ctesifon, um soberbo ta-pete, tecido numa trama desconhecida, mas

22

em cuja urdidura apareciam fios de ouro e pra-ta, pedras preciosas e cristais. Sobre esse ta-pete dois mil guerreiros podiam repousar dei-tados sem que seus corpos se tocassem. Masaquele que chegasse diante dessa obra admi-rável da tecelagem persa não sentiria o me-nor desejo de dormir. O tapete do poderosoAnushirvan (Alá se compadeça dele I) apre-sentava o plano completo de um maravilho-so jardim real, com seus canteiros floridos,suas árvores opulentas e seus lagos azuladosonde nadavam centenas de peixes com bar-batanasfeitasde rubis. .

Mas afinal, o aparecimento do tapete azulno interior da loja de Hacib deveria ter umaexplicação racional e simples.

"Raciocinemos", refletiu o velho mercadorprocurando coordenar as idéias. "Façamos onosso raciocínio com calma e segurança."

"No dia anterior, tinha sido, aliás, umaterça-feira, aquele tapete estava ali, pendu-rado naquele gancho junto à porta? Respos-ta: Não! De tal negativa decorria o seguinte:O tapete tinha sido colocado, no interior daloja, durante a noite! Ora, se o tapete fossemágico, estaria tudo explicado, o mistério es-clarecido e o caso elucidado. Nada mais fácildo que explicar a origem de um tapete mági-col Não se tratava, porém, de um dos tape-tes milagrosos das lendas de Scherazade. Lo-go o tapete azul só teria chegado ao lugar on-de'foi encontrado pela manhã se para ali ohouvesse levado 'alguém'. Sim, foi alguém!Mas como? Por quê?"

Esse"alguém", esse "como", esse "por

Page 21: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

quê" deixavamo mercador bagdalPconfusoe impressionado.

Jamil teve uma lembrançaque aliás pode-ria ter ocorrido a qualquer outro:

- Examinemoso tapete, meu tio! Veja-mosse trazalgumnome,verso ou legendaque nos possa esclarecer!

- Bem lembrado - assentiu Hacib. -Procedamos a um cuidadoso exame nessetapete.

Cabe aqui um esclarecimento indispensá-vel à perfeita compreensão desta narrativa.

Há várias espécies de tapetes. Os maisapreciados são os aveludados, de alto liço, deuma só peça. Esses tapetes apresentam, em.geral, grandes dimensões. Destacam-se ain-da os ras, ou tapetes de baixo liço, cujo de-senho é feito pelo avesso com pontas de mar-ca ou de fantasia. No comércio é muito pro-

. curado o tapete de cadeia móvel - a que al-guns chamam "lagarta". Há ainda, os jaspea-dos, feitos de lã, com uma só face, com pon-tos em meia cruz. É claro que, nessa classifi-cação, não seria possível incluir os tapetesmágicos e misteriosos.

O tapete azul, encontrado na loja do velhoHacib, pertencia a uma dessas categorias.Não viera de nenhuma tecelagem de país cris-tão, pois entre as suas franjas, graciosamen-te adornadas com fios de ouro, surgiam trêsletras árabes: um hê, um dzal e um kafl

Toda a literatura do tapete azul se resumia,afinal, em três símbolos do alfabeto:

Hêl Dzall Kafl

2 - Bagdali - Indivlduo natural de Bagdâ.

Quesentido teriam aquelasnotações?Co-mo interpretá-Ias?

- Há aqui um mistério! - garantiu Hacib.- E esse mistério há de ser desvendado I

E anunciou a todos os conhecidos, fregue-ses e amigos, que daria o rico tapete azul depresente ou o valor correspondente em di-nheiro, a quem fosse capaz de explicar a sig-nificação das três letras que apareciam bor-dadas, com fios de ouro, nos quatro cantosda franja.

A notícia correu, ou melhor, voou pela ci-dade. O apelo viera despertar brios dos sábioscharadistas e dos decifradores de enigmas. Osimaginosos inventaram lendas em torno docaso.

Dezenas de curiosos quiseram apalpar, sen-tir e sondar o misterioso tapete. Alguns che-gavam, com ares de entendidos em fios detapeçaria, examinavam o tecido, corriam o de-do pelas franjas e partiam desconsolados semconcluir coisa alguma. Outros mais levianose palavrosos, faziam conjecturas, formulavamhipóteses disparatadas e fantasiosas. Nin-guém precisa semear tolices; os tolos e as to-lices nascem por toda parte e crescemespontaneamente.

Dizia um:- Este tapete, certamente, caiu do terra-

ço de uma casa próxima e foi levado pelo ven-to para o interior da loja.

Protestava outro com apaixonadaveemência:

- Não creiol O vento não teria força paraarrastar uma peça tão grande e tão pesada.Esse tapete foi, com certeza, furtado de aJ-

23

Page 22: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

gum palácio.O ladrão, com receiode ser des-coberto, atirou-o, ao cair da noite, para den-tro da loja do Hacib.

- Eas letras? - indagavao mercador. -Que indicaçãopoderão fornecer as três letrasque aparecem, bem nítidas, nos quatro can-tos da franja dourada?

Enquanto o velho Hacibassim interpelavaos mais atilados, e os peritos em tecelagemtentavam ajudá-Io a esclarecer o caso, viuaparecer, à porta da loja, um estranhodervix&já em provecta idade, de longas bar-bas brancas derramadas pelo peito. Vestiauma espécie de túnica cinzenta debruada deamarelo. Cobria-lhea fronte e as orelhas umgrosso turbante. Osseus olhosencovados pa-reciam indolentemente adormecidos.

- Que Alá lance sobre ti as bênçãos quereserva para os eleitosI - saudou Hacibinclinando-se diante do visitante.

- E sobre ti a misericórdiado Onipoten-te! - respondeuo miseráveldervixecom exa-gerado salã à maneira dos medinenses.

E deitando a vista à roda, acrescentou so-lene, numa voz imperiosae cava que pareciaecoar ao longe:

- Desejo admiraresse belo tapete que jáse tornou famoso em Bagdá.

Todos os que alise achavam afastaram-serespeitosos. Afigurado singularancião, comsua longa barba cor de neve, as faces risca-

. das de mile uma rugas, causava profunda im-

3 - Dervixe ou daroês - Individuo que cultiva a ma-gia: religioso muçulmano. Acreditavam os árabes que osdervixes possuíam o dom de adMnhar o futuro. Essa cren-dice s6 subsiste hoje nas classes ignorantes.

24

pressão e inspirava um respeito medroso.Jamil e Abraão arrastaram o tapete para o

centro da loja.O dervixe ajoelhou-se com dificuldade, pas-

sou a mão pela testa, inclinou-se para a fren-te e começou a examinar o trançado do ta-pete com meticuloso cuidado. Correu as pon-tas dos dedos pelos fios dourados, contouuma por uma, as costuras, os pontos em ca-deia solta, atentou nas letras - hê, dzal e kaf- fixando a atenção nesta última. Percebia-se-lhe no rosto pensativo e carregado um nãosei que de vago e de profundo, como quemestá prestes a arrancar o véu de um mistério.

- Kaf! - murmurou cabisbaixo.Ergueu-se, afinal, e disse com voz clara e

pausada, dirigindo-se ao mercador Hacib:- Era exatamente o que eu previa. Afian-

ço que origem deste admirável tapete está li-gada à mais suroreendente história que co-nheço. Querem ouvi-Ia?

Sentaram-se todos; alguns curiosos seaproximaram. O velho dervixe deteve-se ummomento, e proferiu, com lentidão, a prece: .

- Em nome de Alá, Clemente eMisericordioso.. .

"Louvado seja o Onipotente, criador de to-dos os mundos. A misericórdia é em Deus oatributo supremo. Nós te adoramos, Senhor,e imploramos tua divina assistência! Conduz- .nos pelo caminho certo! Pelo caminho dos es-clarecidos e abençoados por Ti/4

E, a seguir, narrou a curiosa história:

4 - Essaprece figuracomo parte inicialdo Alcorão.É o início da 1~ surata do livro religioso muçulmano.

Page 23: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

29~ Narrativa

História do vizir Anis Mufatech, o implacável.Como o destino do povo pode estar envolto

nas dobras de um tapete.Das MIL HISTORIASSEMFIM... é esta a vigési-

ma nona.

A prosperidade do tirano é sempre fatal a seupovo.

Lida a vigésima nona restam, apenas, nove-centas e setenta e uma.

Na opulenta cidade de Basra vivia, outro-ra, um vizir chamado Anis Mufatech. Teve es-se homem, durante vários anos, o governo dacidade, mas o seu gênio irascível e mesqui-nho o fizera merecedor da desestima de seupovo.

Perseguia, com requinte de maldade, todosos que lhe caíam no desagrado; não se com-padecia dos fracos; não se apiedava dosinfelizes.

E, no entanto, o implacável xeque tinha-seem conta de homem simples e piedoso.

Simples, porque só usava três punhais nacintura (nesse tempo os vaidosos xeques exi-biam, acintosamente, nove e até dez pu-nhais!), e piedoso porque não desobedecia aopreceito do Livro' que mandava o crenteorar cinco vezes por dia!

1 - Livro - Refere-se ao Alcorão, livro sagrado dosmuçulmanos, composto de 114 capítulos (ou suratas) di-vididos em versfculos. Para citar o Alcorão é preciso in-

'Cinco vezes por dia! Sim, o vizir Anis Mu-fatech repetia suas preces, com religiosa pon-tualidade, cinco vezes por dia! Mas não davaesmolas; não visitava os enfermos; não aco-lhia os desamparados; não consolava os afli-tos - mas rezava! E estava convencido deque rezando, erguendo as suas preces comostentação e orgulho, cumpria todos os seusdeveres aos olhos de Deus! Tinha fé, mas nãopraticava boas obras! Acreditava em Deus,Onipotente, mas só servIa a Cheitã, o Infernal!

Um dia, ao deixar a mesquita, o tirano deBasra avistou dois andrajosos mendigos quediscutiam, com estranha animação, junto auma fonte.

Cabe aqui advertir que o xeque Anis era de

dicar a surata e o versículo. Assim, 18-23 ou XVIII-23:o primeiro número indica a surata, e o outro o verslculodessa surata. Segundo a crença dos árabes, o Alcorãofoi revelado a Maomé (ou Mafoma) por intermédio doarcanjo Gabriel.

25

Page 24: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

uma curiosidade que ultrapassava os limitesda prudência. E o curioso - ensinava um ma-rabu de Medina - o curioso que olha muitopara o camelo é pisado pela caravana.

Preocupado em averiguar a causa daqueladiscussão entre os dois mendicantes,acercou-se, discretamente, e oculto pela som-bra de uma coluna, pôs-se a ouvi-Ios, muitoatento.

Dizia um deles com voz cheia de tristeza:- Este país, meu amigo, só endireitará no

dia em que o xeque Anis virar o tapete!- Qual! - lamentava o outro. '- Já per-

di as esperanças! Não creio que ele se lem-bre disso!

Regressou o enfatuado xeque, nesse dia,abalado por sombrias apreensões. Por orgu-lho não quis, ali mesmo, no pátio do templo,interpelar os mendigos e apurar a significaçãoexata daquele retalho de conversa que tantoo impressionara.

Aquela frase lhe ficara martelando a men-te esbraseada: "Este país, meu amigo, só en-direitará no dia em que o xeque Anis virar otapetel"

A opinião parecia, na realidade, um dispa-rate! Como poderia a posição de um simplestapete influir no destino de um povo?

Nessa tarde, como fazia, aliás, todos osdias, o tirano subiu a um amplo terraço de seupalácio. O piso desse terraço era coberto, deponta a ponta, por um magnífico tapete deduas faces, trançado com pontos de meiacruz, pelos mais hábeis tecelões de Esmirna.Sobre essa tapeçaria maravilhosa fazia, habi-

26

tualmente, o vaidoso xeque, a sua terceiraprece.2

Ia, o detestado governador pronunciar asprimeiras palavras do ritual quando se recor-dou da conversa que ouvira horas antes aodeixar o templo. Sentiu-se, naquele instante,vergastado por desencontrados pensamen-tos.

"Este país, meu amigo, só endireitará nodia em que o xeque Anis virar o tapetel"

E quem sabe se não estaria ali, estendidoa seus pés, o tapete milagroso a que se refe-rira o mendigo?

"Julguem-me louco", pensou o rancorosoditador. "Façam de mim o juízo que quiserem;não importa! Vou tentar uma experiência!"

E, acenando para os dois guardas que oacompanhavam, disse-Ihes com estranha agi-tação na voz:

- Virem já este tapete!Não poderia o xeque, por mais avisado que

estivesse, prever as conseqüências daquelaordem que em outra ocasião pareceria tão ba-nal e rotineira. Os dois guardas, mal ouviramaquela determinação, ajoelharam-se aos pésdo governador, e bradaram alucinados:

- Piedade, 6 xeque! _ PiedadeI Estamosinocentes!

O xeque insistiu com redobrada energia,

2 - Prece - A religião maometana impõe a prece,como um dos cinco deveres básicos. O árabe é obriga-do a fazer durante o dia cinco preces. A primeira ao nas-cer do dia; a segunda ao meio-dia; a terceira às quatrohoras da tarde, mais ou menos; a quarta ao pôr-da-sole a última à noite. A prece deve ser precedida de ablu-ção. Cada uma delas tem nome especial.

Page 25: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii
Page 26: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Dizia um deles com voz cheia de tristeza: - Este pafs, meu amigo, só endireitará no dia emque o xeque Anis virar o tapetel (pág.26)

Page 27: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

mas os homens não se sentiam com ânimopara obedecer e imploravam compaixão.

- Por Alá, o ExaltadoP- rugiu o gover-nador com a voz a estalarde cólera. - Que-rem zombar de mim? Quem os ameaçou decastigo?

E,agarrandoum dosguardaspelosombroslevantou-ocom violênciae gritou, atiçadoporímpeto incontido:

- Cão, filho de cão! Vai chamar o meusecretárioI

Momentos depois, subia ao terraço o dou-to e esclarecidoTufik Abdernul, secretáriodoxeque Anis e homem de sua inteira e absolu-ta confiança.

- Meu caro Tufik Abdernul - disseo xe-que, fingindo-se calmo e despreocupado -acabo de assistir surpreendido a uma cenamenos curiosa do que ridícula. Dei ordem aessesimbecis - e o xeque, fuzilando amea-ças, apontou para os guardas - que viras-semestetapete! Haverá,por essemundo, ta-refa maissimplese banal?Poisbem, os meusservos em vez de obedecerem à ordem queIhesdera, atiraram-sede joelhos e puseram-se a implorar piedade! Pelo manto do Profe-tal Não compreendo, não percebo o queocorre ou possaocorrer em relaçãoa esteta-pete. Estareisendovítima de algumaalucina-

3 - Por Alá, o Exaltado - O muçulmano, quandopronuncia o nome de Deus, acrescenta um qualificativopara glorificar a divindade, igualmente, expressões querevelam respeito e adoração. Exaltado seja o Altissimo.Com Ele a oração e a glórial O Criador pode ser designa-do (em árabe) por 99 nomes diferentes. O vocábulo Aláveio de AI-lIah. que significa a divindade.

ção ou uma onda de loucura se apoderou domeu povo?

- A razão é simples, ó xeque. - respon-deu o sisudo ulemá, correndo a mão trêmulapela testa. - No ânimo das classes incultas,segundo já me informaram, existe uma cren-dice, inventada pela ingenuidade de algum ig-norante, relacionada com a posição deste ta-pete. Segundo essa superstição grosseira,tantas vezes repetida pelos insensatos, aqueleque virar este tapete morrerá ao fim de trêsdias!

Aquela declaração, proferida em tom gra-ve e sério, pareceu até divertir o xeque.

- Que rematada tolice! - exclamou de ar-ranco, esboçando um sorriso mau e contra-feito. - Lamento que o meu povo seja tãonéscio e estúpido a ponto de acreditar em to-das essas baboseiras!

E, num tom galhofeiro, ajuntou, emperti-gando o busto, com mordente inflexão:

- Para mostrar que não dou crédito algumàs parvoíces dos supersticiosos vou, agora,mesmo, com as minhas próprias mãos, virare revirar este tapete.

E, proferidas com arrogância, tais palavras,encaminhou-se até ao extremo do terraço,abaixou-se, tomou a tapeçaria pela barra elevantou-a. Os homens o observavam com omais assombroso espanto.

O xeque Anis, em dado momento, soltouum grito de dor e largou o tapete. Sentira namão direita uma dor aguda, violentíssima. Fo-ra, naquele instante, picado por um escorpiãovenenoso!

O secretário e os guardas correram em seu

29

Page 28: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

auxílio. Os socorros foram inúteis; a ferroadatinha sido mortal. Três dias depois o xequeAnis Mufatech, governador de Basra, cerra-va os olhos para sempre.

O trágico desaparecimento do prepotentexeque impressionou profundamente o povo."Ele bem mereceu o .castigol", sentenciavaum. "Foi tudo obra da fatalidade", afirmavaoutro. Mas o fato é que a vida mudou. Foinomeado, para exercer o cargo de governa-dor, o honrado cádi Muhib, piedoso e justo.Iniciou a população de Basra um largo perlo-do de paz e prosperidade.

E decorridas duas ou três semanas o tape-te fatídico foi, por ordem do novo xeque, re-tirado do terraço e transportado para amesquita.

30

Só então os curiosos puderam ver a outraface da bela tapeçaria. Nela os hábeis tece-lões de Esmirna haviam bordado, com fios deprata, em torno de um esquisito dragão, al-guns versos e pensamentos referentes a umadas lendas mais curiosas da Arábia. Ahl Seo infeliz e tão odiado Anis Mufatech tivesseobservado o dragão, e meditado sobre essalenda não teria, certamente, praticado a te-meridade de arriscar a vida para satisfazer aosarrebatamentos da sua vaidade.

Que lenda era essa? Vale a pena recordá-Iauma vez mais, porque encerra ensinamentosúteis aos homens em muitas situações difíceisda vida.

Page 29: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

30~ Narrativa

História do rei que pretendeu consolar os qua-tro ex-namorados de sua esposa. No qual umaprincesinha romântica e namoradeira se vê emséria dificuldade para atender a cinco noivos.

Das MIL HISTÚRIASSEM FIM... é esta atrigésima.

A bondade de Deus não tem limiteILida a trigésima restam, apenas, novecentas

e setenta.

Dificil é precisar a época exata em que vi-veu o bondoso rei Eftakar Haiéti, que duran-te muitos anos governou, com serenidade eclemência, as imensas terras do Hedjaz. E aclemência - no dizer dos sábios - vale maisque a justiça.

Quando esse bondoso monarca, ao con-cluir o quinto ano de seu próspero governo,ficou viúvo, sentiu-se dominado por indizíveltristeza. Encerrou-se nos ricos aposentos doseu palácio e só atendia aos ilustres viziresqueo procuravam para despachar processos eaprovar os longos e fastidiosos relatórios deseus cádis e prefeitos. Nem mesmo a sua de-dicada filha - a formosa princesa lasmina -era permitido visitá-Io! Nada interessava ao reifora da solidão em que vivia. Ora, a solidãoé um deserto que cada um povoa à vontade.

Um dia, os ministros, os ulemás e os ho-

mens mais notáveis da corte dirigiram ao so-berano um angustioso apelo. Aquela situaçãode luto e afastamento não poderia prolongar-se indefinidamente. O isolamento em que seachava o rei, roubado ao convívio dos ami-gos, causava sérios transtornos à administra-ção do pais. Impunha-se, portanto, em bene-fício de todos, que o monarca se resolvessea recalcar as tristezas e contrair novocasamento.

Sempre inclinado a satisfazer aos ansebse interesses de seu povo - cujos menores de-sejos eram para ele sagrados - o bom Efta-kardeliberoucancelaro pesadfssimoluto quese impusera, conter as mágoas de seu cora-ção e casar-se pela segunda vez.

Fazia-se mister, antes de tudo, escolheruma noiva.

Essa tarefa foi relativamentefácil,e deseu

31

Page 30: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

feliz desempenho encarregou-se o diligenteKyriokos, ministro da Justiça.

Havia na cidade uma jovem chamada Afi-fe, filha de um escriba damasceno. A impres-siva formosura de Afife, os pQetas exaltavamem inspirados poemas com rimas cruzadas!(Esses poemas eram apreciadíssimos e os ca-ravaneiros os decoravam facilmente!)

- Caso-me com a encantadora Afife! -concordou o rei, ao ser consultado pelos seusdignos procuradores.

A famflia do escriba alegrou-se bastantecom a noticia. A noiva, porém, não recebeucom a mesma satisfação aquela resolução dorei viúvo! É que a inesperada proposta matri-monial do soberano vinha encontrá-Ia comquatro namorados! A sedutora Afife gabava-se, diante das amigas, de ser requestada porquatro jovens e apaixonados pretendentes!

Não se sabe como (há nesse episódio cer-tos detalhes que não foram devidamente es-clarecidos), não se sabe como, repito, mas ocerto é que a intranqüilidade sentimental deAfife chegou ao conhecimento do rei.

Não me recordo se já disse (se ainda não-disse, digo-o agora) que o rei Eftakar Haiétitinha a preocupação de ser justo e magnâni-mo. E magnânimo e justo em todos os senti-dos. Era incapaz de praticar uma arbitrarieda-de contra quem quer que fosse.

Informado, pois, de que a sua graciosa noi-va tinha quatro apaixonados, declarou:

- "Não quero, de modo algum, que essesjovens esperançosos se julguem ludibriadosem seus ideais com o meu segundo casamen-to. Um deles, e somente um deles, seria elei-

32

to esposo de Afife. Qual dos quatro teria afelicidade de ser escolhido? Só Alá sabe a ver-dade! Procederei de modo que nenhum de-les tenha contra mim motivo de queixa!

E aguardavam todos a estranha e surpreen-dente decisão do rei. Como iria ele, maridoda requestada jovem, consolar os quatro na-morados desiludidos? Que outro sultão, em irou califa, teria tal delicadeza em relação aosantigos apaixonados de suas esposas?

Só no final desta história é que vamos co-nhecer o plano genial do excelente monarca.Sigo, para evitar confusões, o rumo de mi-nha narrativa.

Com grande pompa realizou-se, afinal, ocasamento do rei Eftakar com a filha do es-criba damasceno. As festas (segundo a aba-lizada opinião de vários comentadores ilustres)duraram três dias e meio. Distribuíram-se pe-los pobres muitos sacos de tâmaras e mais decinco mil dinares de ouro e prata!

A princesa lasmina (filha do rei) e sua jo-vem madrasta Afife tornaram-se muito ami-

gas. Afife, de gênio alegre e expansivo, eraum ano e meio mais velha do que suaenteada.

Decorridos alguns meses, declarou o rei Ef-takar que ia oferecer uma oportunidade aosquatro antigos namorados da sua esposa. Umdestino feliz iria ao encontro deles. Inventouo rei uma situação nova: quatro homens embusca de um destino I

Vejamos o que fez o rei e quais foram asconseqüências de sua imaginosa decisão.

Mandou depositar na sala do trono quatrournas rigorosamente iguais.

Page 31: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Em cada uma delas seria encerrado o no-me de um dos pretendentes de Afife.

Em dia marcado, em presença da corte, aprincesa lasmina indicaria ao acaso, uma ur-na qualquer.

Aquele cujo nome estivesse encerrado naurna escolhida teria o direito de se casar coma princesa, isto é, seria considerado genro dorei e herdeiro do trono!

Aquele original sorteio despertou, como erade esperar, grande curiosidade em todo opaís.

Uma tormenta de desgostos e desassosse-gos apoderou-se da princesa lasmina ao ternoticia daquela estranha resolução do pai. Osorteio de um noivo, entre os quatro ex-namorados da sua madrasta, seria para ela umverdadeiro infortúnio, uma incomparável des-graçal É que a graciosa e romântica lasminajá tinha também um pretendente, o jovemRaja-Nahyb, oficial da guarda, com o qual elavinha, havia muito tempo, acumpliciada comsua governanta, mantendo secretacorrespondência.

Contrariadíssimo ficou o bondoso Eftakar,sempre penetrado de eqüidade e clemência,ao saber que sua filha já tinha definido as suaspreferências. Julgava-a livre, inteiramente li-vrei Que fazer? O sorteio já tinha sido anun-ciado por todos os recantos: a sua palavra ir-remediavelmente comprometida. Recuar eraimpossível. A palavra de um rei é sagrada.

Só havia, para o caso, uma solução. E foiessa, exatamente, que o bondoso Haiéti ado-tou. Mandou acrescentar uma quinta urnaexatamente igual às outras quatro. Essaquin-

ta urna, que entraria no sorteio juntamentecom as outras, conteria o nome do tenenteRaja-Nahyb, o namorado da princesal

A situaçãoestavaligeiramentemodificada.Viam-seagoracinco noivosem buscade umdestino.

No dia marcado o suntuoso divã realencheu-sede convidados. Ia proceder-seaomaisoriginale impressionantesorteio.A sorteiria indicar o futuro marido de lasmina, queseria o príncipe de Hedjaz! Dos cinco inscri-tos, nosegredodasurnas,qualo indicadope-lo acaso?

Essapergunta, paraum árabe-muçulmano,só admiteuma resposta.Éa célebrefrasequejá ouvimos proferida, com judiciosa seguran-ça, pelo generoso rei Eftakar.

"SÓ Alá sabe da verdadel"Sim; é isso mesmo! Diante de um segre-

do, em presença de um mistério, paraconsolar-se da insolubilidade de um proble-ma, o islamita só tem uma fórmula, resumi-da nessadeclaração ortodoxa e sublime:

"A verdade absoluta, só Deus a pode al-cançarl"

Retomemos, porém, o fio de nossanarrÇltiva.

Pouco antes dacerimônia, a desventuradalasmina, presa de grande ansiedade,foi teraosaposentosdesuajovem madrasta.Atirou-se aos pés de Afife, e com frases que a an-gústia tornava comoventes, implorou que aauxiliasse.A esposado reideveriaestara parde todos os segredos. Qual da.scinco urnasencerravao nome de Raja-Nahyb?A primei-ra?A segunda?Seria a do meio? A penúlti-

33

Page 32: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

ma? Estaria o nome de seu apaixonado naúltima?

Confiarna sorte é um perigo:o destino temcaprichos alucinantes. O mais seguro é agircom conhecimento de causa.

- Vamos, queridaAfife!Não me abando-ne nesta dúvidatorturantel Qualdas cinco ur-nas encerra o nome daquele que meu cora-ção elegeu?

Algemadapor umjuramento, a rainhaAfi-fe achava-se impossibilitadade auxiliara en-teada com a revelaçãodo segredo. Diantedosrogos e das lágrimasde lasminaa esposa dorei manteve-se inflexlvel,em absoluto silên-cio. Nemuma palavra;nem um gesto. Osde-sesperados apelos de lasminaforam em vão.

Compreendendo, afinal, que sua madras-ta não se sentia capaz de quebrar um jura-mento parasalvá-Ia,a princesaergueu-se ata-rantada e dirigiu-seresolutaparaa salado tro-no. Parecia tomada de indizivelansiedade.

- Maktub! (Estava escrito!) Seja feita avontade de AláI

Ao atravessar o amplo salão das audiên-cias, que se achava, naquele momento, intei-ramente deserto, sentiu que a puxavamde le-ve pelo braço.

A princesaparou e voltou-sesurpreendida.Achava-sediantedelaumaanciãdesconhe-

cida, de rosto descoberto, que a fitava comum sorriso bondoso e triste.

- Então, princesa? Já sabes qual dascinco urnas deve ter a tua preferência e en-cerra o único nome que interessa ao teu co-ração? .

Como poderei saber? - respondeu tas-

34

mina magoadamente. - As urnas são todasiguais e não tenho a menor indicação!

- Ingênua que és, minhafilha - replicoudesembaraçadamente a anciã, olhando em re-dor. - Vejo-te, se não me engano, sair ago-ra mesmo dos aposentos de tua madrasta, arainha Afife. Sei que a rainha é bondosa e es-tou certa de que não te deixaria seguir paraa sala do trono sem uma informação seguralNada de hesitações! Obedece cegamente à in-dicação da rainha!

Tornou lasmina pesarosa com um risinhoamargo:

- Minha bondosa madrasta está presa porum juramento! Pedi! Implorei! Ajoelhei-me aseus pés; chorei e ela se obstinou em seu in-vencivel mutismo!

- Sim, eu sei - acudiu, sem a menor tur-bação, a desconhecida. - Masdize-meumacoisa: Quantas pulseirasde ouro traziaa nos-sa rainha Afife no braço esquerdo?

- Confesso que não repareil - retorquiulasmina assombrada, num tom choroso. -Sentia-me tão desorientada naquele momen-tol Não tive calma para observar essasminúciasl

- Poisfizestemuitomal - censurou comveemência a anciã - fizeste muito mal! O nú-mero de pulseiras no braço esquerdo de Afi-fe indicava precisamente a posição da urnaque contém o nome de teu namorado. Umamulher inteligente, por mais desesperada queesteja, repara sempre nas jóias e adornos dasoutras mulheres! Se fores, minha filha, infe-liz na escolha, lembra-te do que aconteceu à

Page 33: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

jovem Mozna, que desapareceu, sem querer,de um palanquim amarelo.

- Que caso foi esse? - perguntou lasmi-na mal reprimindo o assombro.

- Voucontar...E a anciã, em voz baixa, contou à formosa

princesa a seguinte e curiosa história:

35

Page 34: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

31 ~ Narrativa

História de um hakim ciumento que vigiavaa esposa dia e noite. No qual ocorre um estra-nho rapto no meio de uma rua movimentada.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM... é esta a trigési-ma primeira.

Só os desprez(veis temem ser desprezados!Lida a trigésima primeira restam, apenas, no-

vecentas e sessenta e nove.

Na cidade de Cairo vivia um hakim' cha-mado Hormuz Amana. Muitos egipcios o ad-miravam; alguns o temiam; mas bem poucoso estimavam.

A razão dessa anomalia pode ser dada empoucas palavras.

O velho Hormuz era reconhecidamente há-bil em sua profissão de médico. Realizava cu-ras assombrosas. Conhecia os remédios maisraros e aplicava, com invejável pericia, san-grias e ventosas. Filtros e xaropes não tinhamsegredos para ele. Especializou-se no trata-mento de doenças do rim, das articulares, docoração e da pele. Chegou, mesmo, a inven-tar um tratamento especial para a variola -moléstia perigosa que dizimava, no vale do Ni-10, populações inteiras.

1 - Hakim - Médico. Veja nota 21 da 26~ narrativa.

36

Cabe aqui advertir que o.doutor Hormuz ti-nha, porém, um defeito gravissimo. Era ga-nancioso e avarento. Só atendia aos doentesque podiam retribuir generosamente suas vi-sitas e gratificá-Io por suas sábias receitas.Aos pobres, aos indigentes, era incapaz dedispensar a menor atenção!

Que adiantava aquela ciência escravizadaao interesse que não servia à caridade!

Há um provérbio árabe que diz:"O castigo de Deus vem, às vezes, num ca-

melo tonto e cego, mas alcança sempre o pe-cadorl"

Em outras palavras:"A justiça de Deus não falhal É imutável,

eterna e infallvell"E o impiedoso Hormuz, com todo o peso

de sua ciência médica, recebeu, afinal, me-recido castigo.

Page 35: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Narremos o caso:O hakim Hormuz Amana era casado. Mo-

vido, porém, por ciúme torturante, mantinhasua esposa como prisioneira no sombrio ha-rém de seu palácio. A jovem Mozna (assimse chamava a esposa do sábio) raramente per-corria a cidade, e só podia realizar tais excur-sões cuidadosamente fechada num palan-quim amarelo e sob a vigilância atenta do seuzeloso marido!

Sabiam todos que Mozna era de origemturca. Mas ninguém a conhecia. Um vende-dor de limonada, que a vira, certa manhã, derelance, ao esvoaçar do jasmac,2 afirmavaque ela era jovem, morena, de rosto cheio,lábios grossos, queixo redondo, cabelos ne-gros e olhos babilônicos. Em resumo: umacriatura formoslssimal (Louvado seja Alá, oEterno!)

Hormuz, marido ciumento, na tormentados desassossegos em que vivia, achava umatemeridade deixar tão sedutora criatura ex-posta aos olhares dos aventureiros eglpciose dos inescrupulosos bedulnos.

Um dia, pela manhã, a divinal Mozna pe-diu ao marido que a levasse.até a casa de suascunhadas (irmãs de Hormuz, é claro!), ondeela queria passar a tarde tagarelando um pou-

2 - Jasmac - Peça formada por dois grandes véusbrancos,umdos quais,apertadoem tomo da cabeçacomuma venda, cobre a testa até as sobrancelhas, ata-seatrás, no cabelo, por cimada nuca, e vaicair nas costasem duas tiras até a cintura; o outro cobre toda a parteinferiordo rosto, e vaiatar-se com o primeiro,de formaque parece tudo um s6 véu.

co, ouvindo novidades e combinando dois outrês novos vestidos.

Essa visita às cunhadas era de raras diver-sões de Mozna e parecia não desagradar aociumento hakim.

Preparou-se o luxuoso palanquim amareloque seria conduzido por quatro possantesescravos.

Alguns vizinhos bisbilhoteiros viram o pa-lanquim deixar o palácio do médico e dirigir-se, lentamente, para o centro da cidade.

Ao cruzar a praça dos Soddaq, a jovemMozna, entreabrindo de leve as peças de ve-ludo que vedavam o palanquim, avistou umvelho peixeiro, de turbante escuro, que ofe-recia, num grande cesto, magníficos bayadesdo Nilol O bayad é um peixe de carne brancae muito saboroso. A formosa turca fez pararo palanquim e disse ao esposo com inflexõesde ternura quase angelical:

- Gostaria, querido esposo, de levar al-guns daqueles lindos bayades para as minhascunhadas!

O velho Hormuz desceu do palanquim eaproximou-se do peixeiro.

Tendo escolhido três belos salmões eglp-cios, não concordou com o preço exigido quereputava extorsivo.

O peixeiro pedia oito dinares e o rico Hor-muz só se dispunha a pagar r.incol

- É barato! É quase de graça I - obtem-perava o peixeiro. - Esses bayades valemmais de dez dinaresl Foram pescados antesdo nascer do sol e têm os olhos da mesmacorI

Pelo nome de Profeta! - protestavao

37

Page 36: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

avarento. - Que me importam a mim osolhosdo peixeou a horaexataem quefoi Res-cadol ÉcaríssimolJulgas, então, ó islamital,que eu sou ladriJodo meu dinheiro?

O avarento é assim. Priva-sede tudo comreceio de se privar de alguma coisa. Preocu-pado em morrer na opulência, arrastaa vidana miséria.Constitui, peloseutorpe egoísmo,elemento altamente nocivo à sociedade.

Retomemos, porém, o fio de nossanarrativa:

Entreo vendedor e o ganancioso compra-dor acendeu-se violenta discussão.Sucederam-seas pragas e ds doestos. Nãohaviameiode seestabeleceracordo razoável!

Afinal, o velho Hormuz, com um gesto derancor e protesto, desistiu da compra e ati-rou osbayadesescolhidosparadentro do ces-to. Isso de pagar oito dinares por um capri-cho da esposa era arrematada loucuraI E,dando as costas ao peixeiro, voltou para opalanquim.. Dolorosa surpresa o aguardaval

A esposanãoestavaali. Desaparecera,co-mo por encanto.

Osquatro condutores,preocupadosem ob-servar a contenda entre o amo e o peixeiro,não a tinham visto sairl

Fugiral Fora raptada?O hakim ficou desorientado.Abalavaa praçacom seusgritos insofridos:- Moznal Querida Moznal Onde estás,

meu amor?Mas seuschamados, os seus apelosaluci-

nados, ecoavamao longe, perdiam-seno es-

38

paço e ficavam sem resposta. Dezenasdetran~euntes e curiosos aproximaram-se:

- Que foi? Que sucedeu?S,,!rgiramexplicações e ditos irônicos mal

cobertos por um falso respeito:- Roubaram a esposa desse ilustre e ve-

nerável hakiml- A bela, levada pelo vento, deixou o

palanquiml- A jovem MQznavoltou para a Turquia.E não havia ali, entre os espectadores da-.

quela tragédia, quem de leve se apiedasse datriste situação do marido .abandonado.

- Bem feito I Bem feito I Teve ele, algumdia, atenção para os pobres que sofriam? Dassuas mãos. nunca saiu uma esmola; de seuslábios jamais desceu uma palavra de pieda-dei .

O hakim não se conformava com o de-saparecimentodaquelaque era a luz de seusolhos, encanto de sua vidal

Um dos carregadores, interpelado peloamo, declarou que na ocasiãoem que o pa-lanquim estivera parado, avistara dois ho-mens,em atitude misteriosa,que observavama praçacolados a um muro próximo. Um de-les era velho, tinha as barbas brancas;.0ou-tro, muito jovem, usavaum albornoz riscadoe turbante com barras verdes.

Teriam aquelesdois indivíduos alguma re-lação com o rapto ou fuga da esposa dohakim?

Forambaldadasas pesquisase indagaçõesfeitas elo hakim. Não havia, em toda a cida-de do Cairo, desde a mesquita de Amru atéàs primeirasaldeiasdo deserto,quemsoubes-

Page 37: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

se dar a menor informação sobre o paradeiroda jovem Mozna. .

Mas o hakim não perdia a esperançadereencontraro seutesouro. Etodas astardes,punha-se a deambular pelasvielas mais po-bresde Makzttan naesperançade colher, porinspiraçãodo acaso,umaindicaçãoque o pu-sessena trilha do raptor de sua amada.

Uma tarde, quando pervagavapela praçade Eksbiê,o velho Hormuz viu acercar-sede-le uma rapariga velada por um longoferédgIPavermelhado.As suas maneirasde~nunciavam mistério.

- Siga-mel - ordenou ela em voz baixaao médico.

- Que queres de mim? - indagou Hor-muz intrigado.

- Alguém deseja ajudá-Io - sussurrougravemente a desconhecida com .um movi-mento quase imperceptível de lábios. - Ve-nha comigo, e conhecerá, hoje mesmo, o pa-radeiro de sua esposa.

E, sem mais palavras, a turca pôs-se a ca-minhar, a passos ligeiros, pela extensa rua quelevava ao bairro de Ahmad. Hormuzacompanhou-a a pequena distância.. Começava a ventar forte. Para os lados da

velha mesquita as rajadas varriam o chão eerguiam nuvens de pó. Mulheres embuçadascorriam ao longo do rio puxando pela mãocrianças maltrapilhas. Os barqueiros reco-lhiam seus escaleres e procuravam refúgio.

Chegaram, afinal, diante de uma grande ca-

3 - Ferédgé.- Peça com que as turcas se disfarçamquando saem a passeio.

sa de pedra que ostentava, na fachada prin-cipal, dois imensos mucharabiehs com gradesescuras. A rapariga bateu de leve à porta eacenou para o hakim.

- Vamos entrar. É aqui.Entraram.Uma escadaestreita, toda forra-

da de esteiraschinesas,conduzia parao pisosuperior do edifício.

A raparigaque servirade guiadesapareceucomo por encanto, e o velho Hormuz achou-'se sozinho diante de um amplo aposento ri-camente decorado.

Ao longo dasparedeshavialargose repou-santes divãs, adornados com almofadas deseda; o chão estavacoberto de soberbosta-petes com incrustaçõesturcas. Vasosde flo-res alegravamas janelas. Gaiolas, onde sal-tavam pequeninos pássaroscoloridos, osci-lavam presas ao teto cheio de caprichososarabescosazuis.

O médico acercou-se de uma janela,entreabriu-a de leve e olhou para fora.

A tarde tornava-se mais ameaçadora esombria. Na parte alta do céu amontoavam-se nuvens cor de chumbo. Na linha do hori-zonte anovelavam-seoutras agrisalhadas.Ovento, cadavezmaisforte, fazia rugir, ao lon-ge, as tamareiras.

Mais inquieto do que o céu, estavao espl-rito do velho hakim.

Quem seria o dono daquele palácio?Como poderia ele obter, em tal lugar, es-

clarecimentos sobre o rapto de sua esposa?Que interesseteria em auxiliá-Io a pessoa

que o chamaraaté ali?Seriaposslvelque hou-

39

Page 38: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

vesse, na cidade,alguémcapazde se condoerdele?

Essas e muitas outras interrogações coris-cavam no pensamento de Hormuz.

Abriu-se, afinal, uma pequena porta late-.ral (porta secreta, de cuja existêncianenhumvisitante seria capaz de suspeitar) e o hakimviu surgiruma mulherricamente trajada e derosto descoberto. Era uma turca de impres-sionante beleza. O rosto alvíssimode.um.ovalperfeito, iluminado pelo verde-claro de doisolhos languidíssimos, tinha uma indefinívelexpressãode doçura. Narizum pouco arquea-do e o queixo pequeno encovado no centrodavam-lhe uma esquisita sedução à fisiono-mia. Trazia um vestido de damasco branco,bordado com fios de ouro, o qual, aberto nafrente, não ocultava as encantadoras calçascor-de-rosa que desciam, em milpregas gra-ciosas, até dois lindossapatinhos vermelhos.A inesperada aparição daquela criatura ex-traordináriadeixouo velho Hormuzmaiscon-fuso do .que um beduíno cego perdido nomeio do simum.

- Agradeço a tua vinda, meu caro ulemá- disse ela em tom sereno e amável. -Senta-te neste acolhedordivã,poiso teu ros-to denunciafadigae os teus olhoscintilamdú-vida e inquietação!

Hormuz sentou-se. A sombra da dúvidaobscurecia-lhe o espírito agitado.

Tornou a jovem com um sorriso que maisenternecia a doçura dos olhos verdes-claros.

- Quero hoje resgatar uma dívida degratidão.

Gratidão?

40

- Sim - confirmoua encantadora turcacompondo um rosto compungido. - Vouavi-var a tua memória que me parece um tantocombalida. Umavez, no caravançará de Ka-lem, perto de Damasco, socorreste a um pe-regrino,aindamuitomoço, que um druso ciu-mento tentara envenenar. Lembras-tedesseepisódio? Se não fossem os teus preciososantídotos e os teus cuidados, o peregrino te-riaperecido. Recordas-teagora? Poisesse jo-vem, a quem salvaste a vida, é meu irmão.Escuta, portanto, o que te vou dizer. - E, de-pois de um momento de silêncio, prosseguiu:- Fui informada de que tua esposa Moznacorrespondia-se com um jovem mercador deAlexandria, e que nas vésperas do rapto re-cebeu uma mensagem de seu namoradol

- Isso não é possível! - protestou o ha-kim com veemência. - Minha esposa não sa-bia escrever; não recebia visitas; estava sem-pre sob a vigilância de guardas de minha in-teira confiança.

- Vejamos, então - ponderou a outracom um rislnhoastuto. - Tua esposa Moz-na não tinha a mania de comprar perfumes,espelhos, chinelascoloridase almofadas?Poisem cada um desses objetos iasempre um re-cado, um avisoou um conselho do mercadoralexandrino. Queadquiriuela no dia que pre-cedeu o rapto?

Informouo hakim, abaladíssimo,correndoa mão trêmula pela testa:

- Comprou duas almofadas damascenasde veludo!

- Fica, pois, sabendo, meu caro ulemá,que nessas soberbasalmofadas,que pareciam

Page 39: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

tão inocentes e inexpressivas, iam sob a for-ma de bordados todos os planos do rapto: olugar onde se achava o peixeiro, que foi umdos cúmplices, a maneira de deixar o palan-quim, a pessoa que iriabuscá-Iae o lugar on-de ficariaoculta!Tudo issofoi bem claramen-te escrito na almofada!Oinstinto, na mulher,equivaleà perspicácia dos grandes homens.

E, dizendo essas coisas, tinha os olhos fi-tos em seu desventurado interlocutor.

- E como soube a senhora disso? - in-dagou de novo 'Ohakim, com o coração avi-nagrado. - Como tão grave segredo de mi-nha vida chegou ao seu conhecimento?

- Para responder às indagações que aca-bas de formular- retorquiua jovemcom vozcondoída - vejo-me obrigada a narrar-te ahistória de minha vida. Verás como fui, semquerer, envolvidano estranho desaparecimen-to de tua esposa.

Lá fora o temporal rugia como um chacale desabava das alturas do céu.

Com voz tranqüila, numa linguagem sim-ples e desataviada, a formosa islamita, intei-ramente alheia à inverniaque abalava tudo,narrou o seguinte:

41

Page 40: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

32~ Narrativa

Históriade uma jovem turca que servia de "is-ca" para noivos. O poeta Sakkil faz surpreen-dente revelação.

Das MIL HISTORIASSEMFIM... é esta a trigési-ma segunda.

Menos podem.as mulheres dominar a facei-rice do que a paixão.

Lida a trigésima segunda restam, apenas, no-vecentas e sessenta e oito.

Meu nome é Salma. Nasci na bela e glorio-sa cidade de Damasco (na Siria), mas sou deorigem turca. Meu pai, que gozava de mereci-do prestigio entre os ricos damascenos mor-reu, repentinamente, ao regressar de uma ca-çada, deixando a familia em penúria extrema.Diante daquele infortúnio, resolve minha mãeabandonar a cidade e voltar para a companhiade meus avós, donos de uma pequena casade campo no vila rejo de Dereia, a meio cami-nho para Jerusalém. Farid (era este o nomede meu irmão) associou-se a um grupo demercadores de peles e foi tentar a vida emAlexandria.

Iniciamos os preparativos para abandonarDamasco, e já estavam combinados os pIa-nos de nossa viagem, quando fomos sur-preendidos pela inesperada visita de meu tioLakdar EI-Chediak, irmão de meu pai. Tio Lak-dar residia no Cairo e vivia no comércio de ta-petes e móveis de luxo. Era um homem bai-

42

xote, já entrado em anos, de rosto largo, bar-ba grisalha e olhos pequeninos cor dechumbo.

Informadodenossasituação(aliás,bemdi-ficiIJ, ofereceu-nos tio lakdar Oouro de suabolsae a segurançade suaamizade, insistin-do, com cativante interesse,para que fôsse-mos viver no Cairo em sua companhia ondenada nos faltaria. Esquivou-seminha mãe aaceitar tão bondoso oferecimento alegandovários motivos, que me pareceramfantasio-sos e quase ingênuos. Alguma coisa ela re-ceava. Queteria, afinal, conjecturado em re-laçãoao nossofuturo no Egito?Até hoje nãocheguei a compreender.

De minha parteconfessoque não me agra-dava viver em Dereiaentre judeus fanáticose pastoresandrajosos, esquecidanum luga-rejo triste, sem recursos, isoladado mundo,ondea vidasearrastavaao compassode umatorturante monotonia.

Page 41: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

A meus olhos, portanto, tio Lakdarsurgiracomo um anjo protetor que descessedo céu,em meu auxilio, por um milagre de Alál

- Essalinda menina - eraa mim que el~assimse referia - essalinda meninanão me-recetão ingratasortel Foraum crimeenterrá-Ia numa aldeolabátbara, onde os homens semostram mais perigosos que as víborasafricanas.

E tio Lakdar, com seus blandiciososargu-mentos, com mil engodostentadores,soube,afinal, insinuar-seem nossaconfiança e de-mover os receiose escrúpulosde minha mãe,assegurandoque eu viveria feliz em compa-nhiade suasfilhas que eram,maisou menos,da minha idade. Falou-noscom entusiasmo,do Egito, terra das mil maravilhas, onde ha-via abundância, paz e alegria.

Concordou, afinal, minha mãeem separar-se de mim, e também com a minha partidaparao PaísdasPirâmides.Liquidamosa nossacasa, vendemosnossosmóveis, resgatamostodas as dividas e tomamos os novos rumospelos caminhos de AláP Seguiu minha mãeparaa pequeninaDereia,na orla do deserto.Sob a proteção de meu tio, em grande e lu-xuosa caravana, rumei para as terras férteisdo Egito. . .

Durante a jornada, longa e não isenta defadiga, váriasvezesmeditei sobre o meu fu-turo - que semeafigurava.incertoe obscuro.

"Que interessetinha meu tio em levar-me

1 - Caminhos de Alá - Essa expressão é aqui em-pregada para exprimir a vida, isto é, um novo destino.

para o Cairo? Como seria eu recebida pela suafamília?"

Não ocultava meu tio a sua simpatia e ad-miração por mim. Quando nos achávamosasós, lamentava, por vezes,o haic que me ve-lavao rosto e, fitando-me carinhoso,murmu-rava embevecido:

- Comoés linda, Salmal Como és lindaILouvado seja Alál O teu semblante irradiauma simpatia inconfundível! Má-ás-malakif2Como és lindal

E, dizendoisso, encarava-memuito direitonos olhos. (Aquele homeminspiravaem mimum respeito medroso.)

A residênciado tio Lakdar, no Cairo, eraconstituida por um decrépito casarãoamare-lo, com quatro portas, triste e sombrio, abrin-do cinco mucharabiesh carunchosos para omercado de EI-Sehdeh.

O acolhimentoquetive por partede minhasprimas não foi dos mais lisonjeiros.Receberam-mede má sombra, com palavrassecase pouco amáveis. Detestei-asdesde oprimeiro momento e estou certa de que elasretribuíram na mesmamoeda o imenso des-prezo que Ihesvotei.

Casosingularl Eramambasligeiramentepa-recidascomigo, principalmente nos olhos. Overde-claro dos meus, como traço caracterís- .

tico de família, reaparecia, no mesmo tom,nos olhos de ambas. Mas (por Alá) como es-tavam longe e bem longe de qualquer tipo co-mum de beleza I

2 - Má-ás-malakil - Como és formosaI

43

Page 42: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Norah, a mais velha, era pálida e de cabe-los castanhos; pintava-se muito; vermelhãonas faces; negro de antimônio por baixo dosolhos; alvaiade no pescoço e no colo; hennenas unhas. Tinha as maçãs do rosto salien-tes e era malfeita de corpo. Preguiçosa ao ex-tremo, passava o dia inteiro entre bocejos elassidões de tédio. Mabruka, a segunda, os-tentava um nariz arqueado, lábios grossos,olhos pestanudos empastados de khol e duasfaces consteladas de sardas. Parecia vaidosade seus cabelos lisos, corredios e sempre ne-gros. Usava um corpete de veludo aberto aopeito e trazia sempre grossas argolas de pra-ta nos tornozelos. O tom de sua voz era me-tálico e quase agressivo, e a cintura nada ti-nha de sedutora.

Não alimentei ilusões sobre a minha situa-ção naquela casa. Aos olhos de minhas pri-mas eu não passava de uma intrusa (perdoai-me a imodéstia que ressalta desta declara-ção), eu não passava de uma intrusa, repito,bem mais bonita do que qualquer delas, ca-paz de vencê-Ias aos olhos do noivo ou pre-tendente que aparecesse!

Além de Norah e Mabruka viviam na casaoutras pessoas que merecem especialreferência.

Falarei em primeiro lugar de Nayla, esposado tio Lakdar, mulher gordíssima, de um mo-reno cor de terra, de cabelos negros (já pin-tados), de gênio rebentadiço, eternamentepreocupada com manjares, doces e gulodices.Parecia ter o cérebro no estômago e comia,várias vezes por dia, com a voracidade de umnúbio. Depois de ingerir cinco ou seis pratos

44

pesadíssimos, desandava a queixar-sede do-res de estômago, calor na cabeça e pontadasnas costas!

- Estou desgraçada! - Ana-bé-issatl -lamentava batendo no peito. - Já não pos-so comer este ensopadinho de carneiro comcebola, pimentão, alho e creme de leiteI Tu-do me faz mal! Abilat-al-raztf3

E seus soluços eram tão fortes que lhe fa-ziam tremer as banhas do rosto redondo echeio de espinhas.

A incrível e rabujenta Nayla (com essa mu-lher eu fugia de conversar) tinha um irmão,criaturà estranha, que ocupava um aposentoisolado no fundo do corredor. O seu nome eraMahommed Zeraik, mas as pessoas da casas6 lhe chamavam pelo apelido Sakkil que,aliás, não parecia desgostá-Io.

Sakkil era alto, magro, de cara amarfanha-da, com uma barbicha rala na ponta do quei-xo. Dotado de gênio bom e alegre, poderiafigurar entre os faladores mais perigosos doCairo. Arrastava, a seu bel-prazer, o dia intei-ro em completa ociosidade e cantarolar pe-los corredores e a interferir com importuna-ções irritat"ltes no trabalho dos servos.

Sua distração predileta era escrever versos,ou melhor, poemas intermináveis, que elemesmo lia em voz alta, com ridícula soleni-dade, sentado numa almofada no meio da sa-Ia. E parecia feliz. O homem, aliás, é feliz ouinfeliz por uma série de coisas que não se

J vêem, que não se conhecem e que nãose po-

3 - Abilat-al-razt! - Que infeliz sou eul

Page 43: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

dem dizer. Era esseo caso do irmão de mi-nha tia.

Recordo-meainda de uma canção delica-dissima,acentuadamentetriste, com que elenos deleitavatodas as tardes, ao som de umalaúde antes da prece do mogreb:

Das dores todas da vida,Não pode haver maior dorQue passar a vida inteiraSem dor alguma de amorl

Tristeza, fiel tristeza,Esposa doce e querida,Minha única certeza,Nas incertezas da vida,

A esperança... velha mentiraQue a vida prega na gentelPassa a vida... e todo diaA gente cré novamente/4

Uma escrava cristã contou-me que o velhoSakkil vivia do alugu~1 de um magnifico oá-sis onde floresciam mais de sete miltamareirasl

A mim não interessavam as sete mil tama-reiras do simplório Sakkil. Ouvia resignãda osseus imaginosos improvisos, alguns dos quais(outra vez a imodéstia vem enodoar esta nar-rativa) pareciam ter sido inspirados unicamen-te por mim. Tive sempre o cuidado de não darexcessiva atenção às lisonjas. Entregar-se às

4 - Vejao livro de trovas intitulado Maria, de Soa-res da Cunha, poeta mineiro contemporaneo.

suaspérfidas insinuaçõesseriabebervenenonuma taça de ouro cravejadade rubis.

longos e melancólicosrolavam os dias deminha insipida e inútil existência.

Tio lakdar EI-Chediakapareceu-me,certamanhã,em meuquarto, com um ar tanto mis-terioso, e pediu-me (seria para ele um favortodo especial) que eu me apresentasse,dequando em vez, com o rosto descoberto, navaranda que abria para a rua. Achei insólitoo pedido. Uma damaturca (segundoa velhis-simatradiçãode nossaterra)nãoseapresentaem públicode rostodescoberto.Diantedees-tranhos, procura ocultar o rosto com um véu(haic), disfarçar-sesob o clássicoferédgéou,quandoobrigadaasair,envolver-seem espés-sojasmac. Epretendiao irmãodemeupaiqueuma jovem distinta, de sua própria famflia,violasseaquelapraxeseculare religiosamen-te respeitada?Gravedeveriasero motivo quea tanto o impelia. Com hesitações na voz,confessou-me tio lakdar que era seu desejodesmentir certas perfidias inventadas por al-guns vizinhos maldosos. Constavano bairro(confidenciou-meaindatio Lakdar)que elere-cebera,como hóspede,uma sobrinhade Da-masco, corcunda, de olhos esbugalhados,mui semelhante a uma feiticeira fefalna5,dessasque se ocultam por entre ruinas paraalém das pirâmides.

Aquela infâmia revoltou-me. Ana mas-fumat! A inexatidão do que me dizia respeitoassumia as dimensões de uma calúnia. Eu,

5 - FelaFna - Feminino de fe/á. Os felás constituema baixa classe dos operários e agricultores do Egito.

45

Page 44: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

corcunda! Eu, uma fe/ainalSenti-me anava-Ihada em meu amor-próprio. A calúnia é co-mo a moeda falsa; poucos a fabricam, mui-tos a fazem circular. E a partir deste dia tiveo cuidado de aparecer com freqüência à va-randa alpendrada de nossa casa, ostensiva-mente, sem o clássico ferédgé das turcas,sem véu, sem o menor disfarce. Queria quetodos vissem e reconhecessem que eu não eracorcunda, que meus olhos eram perfeitos eclara a minha pele. Era mister desmentir a in-juriosa suposição. Cura-se a ferida que a es-pada faz; mas é difícilapagar os golpes da ma-ledicência. A minha atitude escandalizou a vi-zinhança. lembro-me de que, uma tarde, umjovem xeque esmeradamente trajado que cru-zava a rua ao avistar-me na varanda de nos-sa casa, parou surpreendido e sorriu paramim. Julguei-me no dever de corresponderàquele sorriso, e o fiz acenando e sorrindocom viva satisfação.

No dia seguinte correu pela casa a noticiade que minha prima Norah havia sido pedidaem casamento I

A novidade deixou-me perplexa."Quem é o noivo? Quem teria combinado

esse casamento?"O caso para mim era surpreendente. No-

rah não se correspondia com pessoa alguma; .jamais tivera a vida abalada pela menor aven-tura sentimental. O nosso harém não receberanenhuma catneb (agenciadora de casamen-tos). Como explicar que pudesse a desgracio-sa prima, de um momento para o outro, sema colaboração alheia, conquistar um noivo?

E que noivol As indicações pormenorizadas

46

eram realmente de assombrar. Eu, que sem-pre fuiexigente nas minhaspredileções,acei-tariaa proposta sem hesitar.Tratava-sede umjovemegipciomuçulmano, ricoe de boa apa-rência. O apaixonado pretendente, ao assen- .

tar com tio lakdar as condições das núpcias,teve a generosidade de oferecer à noiv::lfeis-sima um dote magnificol

Havia,em torno desse repentino e extraor-dinário noivado de Norah, um segredo quepouco me custou desvendar. Na casa todaferviammexericos.O poeta Sakkil,vendo-mecom ansioso interesse pelo caso, entre risa-dinhas pequenas e cruas, contou-me tudo.

- Que coisa curiosa, meninaI O românti-co xeque Baha Eddin - era esse o nome donoivo de Norah - ouviu alguém dizer que omercador lakdar tinha uma filha lindissima.- Por Alál Que mentiral - Desejou conhecê-Ia. Que fez Lakdar? Com receio de que No-rah, com a sua cara de tartaruga sonâmbula,não impressionasse satisfatoriamente o rapaz,usou de um estratagema. Inventou uma in-triga de vizinhança e fez com que você apa-recesse na varanda, várias vezes, de rostodescoberto. O garboso Baha Eddin, que pas-sava constantemente em observação pela rua,apaixonou-se loucamente ao ver aquela jovemque sorria para ele, uma tarde, do alto do ter-raço. Procurou nesse mesmo dia o astuciosolakdar e indagou. Quem era aquela formosamenina que parecia mais linda do que a quartalua de Ramadã~ "É minha filha Norah",mentiu lakdar. E pespegou-Ihe esta fantasio-

6 - Ramad6 - Mês da quaresma muçulmana.

Page 45: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

sa comparação: "De longe é uma estrela; deperto, uma flori" O rico xeque não hesitou.Homem simples, honesto e de boa fé, pediua suposta Norah em casamento. O pedido foilogo aceito, e tudo combinado para os espon-sais com a verdadeira Norahl Dentro de al-guns dias estarão casados. Na ocasião da ce-rimônia a noiva, é claro, aparecerá ao jovemdiscretamente oculta por sete véus, e cober-ta por dois ferédgés, e disfarçada por umjas-mac mais grosso do que dez tapetes persaslDa verdadeira Norah o xeque só verá osolhos, aqueles olhinhos verdes-claros que separecem muito com os seusl O logro será per-feito. Quando, nos aposentos de seu palácio,a sós com sua noivinha, quiser admirar a per-feição daquele semblante que tanto o deslum-brava, terá a maior desilusão de sua vidal Pu-deral O rapaz namora uma e obrigam-no a ca-sar com outra I "Anti-gâchaitiazzubun"P

- Mas isso não ficará assimI - protesteirevoltada. - O xeque, ao perceber o ludíbrio,reclamará, fará um escândalo tremendo. Che-gará, talvez, a exigir a anulação do casa-mento.

- Nada disso - explicou o velho Sakkilcom um sorriso de estúpida malícia. - Ao xe-que será quase impossível provar que o so-gro agiu de má fé... E para não cair no ridícu-lo, diante dos parentes e amigos, não fará es-cândalol O divórcio, aliás, nos termos do con-trato, não seria admissível! Renunciar à feli-cidade é, às vezes, um meio seguro de evitara desgraça.

7 - Anti-gOchaitiazzubun- Vocêenganou o freguês.

E rompeu numa risadaque lhe inchava asveias.

Só então compreendi o plano interesseirode meutio ao trazer-meda longínquaDamas-co para a sua casa no Egito. Pretendiafazerde mim uma espécie de "isca" para pescarbons maridos para suas desajeitadasfilhas.

A minha custa casou (como já contei) afelssimaNorah;mesesdepois,graçasaomes-mo ardil, arranjoumagníficopartido paraMa-bruka. E as coisas iam correndo a feição deseu desejo. Eu aparecia sem disfarce, semvéu, de rosto descoberto,navaranda;eravis-ta assimpelo provávelpretendente. Namora-va; seduzia,enfim. Mas elasé que casavaml

. Revoltava-meaquelasituação.Pensei,vá-rias vezes, em fugir, desaparecer.

A intercorrência de um acidente alterou,porém, profundamente, o roteiro de minhavida.

Cinco ou seisdiasdepoisdo casamentodeMabruka, a velha Nayla (que em minha pre-sençasedesmanchavaem agradinhose sefa-zia muito simpática e bondosa) preveniu-mede que viriam fazer-mecompanhia, no velhocasarão,duasdesuassobrinhasaté então re-sidentesem Alexandria.Uma delasse chama-va Sofia, e a outra tinha o nome de Zahira.E a gordíssima senhora piscava os olhinhoscom intenção.

Adivinhei logo o plano da esposade meutio. Pretendia,certamente,arranjarcasamen-tos vantajosos para Sofia e Zahira, usandoomesmo indigno artiffcio de lançar-me como"isca" para o noivo.

"Não", pensei profundamente enojada,

47

Page 46: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

"de hoje em diante não me sujeitarei mais afazer esse indigno papel de 'isca"'.

Nessetempo, (cabe aqui advertir!! graçasao auxilio de uma escravamuito discreta, eumantinha correspondênciadiária com um jo-vem egípcio que se apaixonara loucamentepor mim. Esserapaz - que trabalhava comum rico perfumista do Cairo - eramuito po-bre e não tinha recursos para pedir-me emcasamento.

Formulei, então, sem mais delongas, umplano que me pareceu bastante acertado.

Mandeidizera Tuffy (esseo nome de meunamorado) que me enviasseduasalmofadasbem ricas, cobertas de cetim. Bordei-ascui-dadosamente, adornando-as com desenhosde flores e figuras entrelaçadas.

O poeta Sakkil, indo aos meus aposentose atentando no empenho que eu punha na-queletrabalho,perguntou-mecom penetrantecuriosidade,os olhoscravadosno meu rosto:

- A quem pretendesofereceressaslindasalmofadas?

- Ao Sultão - tornei com a maiornaturalidade.

- Não faças issoI La-Tafa-ali, rezam! -aconselhou com alvoroço o velho Sakkil,fitando-me com ar repreensivo. - Seria im-

48

prudência. Ao reparar nesses desenhos o sul-tão, que é mais desconfiado do que uma ca-ravana de maridos ciumentos, quererá saber,imediatamente, a significação exata de cadaum deles. Que exprimem essas estrelas? Qualé o símbolo traduzido por essa flor? Como in-terpretar as rosas que aparecem nos cantos?Terás que inventar histórias, lendas, fábulase parábolas. E se não o fizeres, com desem-baraço, eloqüência e imaginação, serás acu-sada de feitiçaria e atirada, sem piedade, nomais negro calabouço do palácio. Ignoras, porcerto, o que aconteceu ao jovem emir de Sid-jistã que quis descobrir a significação de umdesenho?

- Que caso foi esse, ó Sakkil? -indaguei.

Respondeu Sakkil em tom jovial:- Ébem possívelque os episódiosqueen-

volvem a vida estranhade Tahir ben Moham-med tenham grande influência em teu desti-no, querida Salma. Aprenderásestaverdadeindestrutível: "O amor acaba; só a amizadepode ser eterna."

E o velho poeta, com solene exaltaçãocontou-me uma históriatão curiosae impres-sionante que me deixou profundamentesurpreendida.

Page 47: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

33~ Narrativa

A singular inscrição que surpreendeu o rei Ta-hir. Como se explica o caso de uma legenda queia morrer.

Das MIL HISTÓRIASSEMFIM... é esta a trigési-ma terceira.

O desejo de parecer hábil é, muitas vezes,uma inabilidade.

Lida a trigésima terceira restam, apenas, no-vecentas e sessenta e sete.

Conta-se que Tahir ben Mohammed, o ju-dicioso governador de Sidjistã, ao regressar,certa vez, de uma excursão às suas tão fa-mosas minas de prata, viu-se obrigado a re-pousar, com sua numerosa comitiva, à som-bra de um caravançará que ele próprio man-dara construir entre as tamareiras do oásis deBedi-Ezzemã.

Nas vizinhanças desse caravançará, existiauma pedra negra e lisa, cuja face era varrida,dia e noite, pelos ventos do deserto.

Observou o poderoso emir que alguém (umsábio ou um viajante misterioso) havia grava-do na tal pedra estranhas figuras. Dois círcu-los desiguais ligados por uma curva termina-da em laço. Dentro do círculo maior um triân-gulo com três ângulos agudos e tendo o vér-tice para cima. No centro desse triângulo,uma pequena cruz. O círculo menor era cor-tado, bem ao centro, por uma flecha cuja ex-

tremidade ia tocar num quadrilátero irregularque envolvia duas letras e um algarismo.

Ao reparar naquela singular inscrição deforma geométrica, o governador Tahir ficouintrigadíssimo. Alguma coisa aquela figuracomplicada deveriasignificar. A pessoaquea fixara ali na face negrada pedranão o fize-ra, de certo, por mero capricho. Algum intui-to nobre e elevado o inspirara a realizar aquelaobra.

O homem (todos nós bem o sabemos)vi-ve rodeado de mistérios. A luz é um misté-rio; o magnetismoenvolveuma infinidade demistérios;o caloré, também, um mistério; to-da a ciência é um amontoado de mistérios.Sim, mas há mistérios que podem e devemser esclarecidos.Assim, uma legendagrava-da numapedradeveter umaorigem, deveserpassívelde uma explicação, ou melhor, deuma interpretação.

49

Page 48: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Foi,exatamente, a conclusãoa que chegouo governador Tahir. A legenda de BediEzze-mã deveria ser esclarecida. Como apareceraali? Quem fora o seu autor?

Integravam a comitiva do poderoso emirdois homens que gozavam de justa fama desábios. Sempre que algum problema gravedesafiava a argúcia dos islamitas,o governa-dor Tahirben Mohammedapelava para o es-clarecido auxíliodos dois ilustres conselhei-ros. Chamou-os, pois, e pediu-Ihesque des-cobrissem a origem e a significação da mis-teriosa legenda que se destacava, entre cír-culos e triângulos, na pedra do caravançará.

O maisvelho dos sábios foi o primeiroa fa-lar. Era homem de uma tranqüilidadeinvejável.

Examinou detidamente a legenda,analisando-atraço por traço. Edisse, porfim,com uma convicção delicada:

- Essa figura, 6 Xeque do Islã1,não meparece original.Foi,a meuver, copiadade umdocumento ou de outra inscrição.Nota-se,nocírculoprincipal,certa hesitação no traçado,e, à direita, um losango incompleto eviden-cia a imperíciado gravador.

Convidadoa emitiro seu juízo, o segundosábio assim falou:

- A tradução perfeita dessa legenda iria

1 - Islã - Conjunto de palses que adotam a religiãomuçulmana ou maometana, fundada por Maomé no ano622. Forma derivada do árabe As-lã que significa confiarcegamente, resignar-se. A doutrina religiosa dos árabesera chamada islã (resignação à vontade de Deus). O islãcompreende atualmente: Turquia, Arábia Saudita, Irã,Afeganistão, Iraque, lêmen, Marrocos, Albânia, etc.

50

exigir muitos anos de estudo e meditação. Oseu autor usou de símbolos e convenções es-peciais, sem o conhecimento dos quais seriaminúteis todos os nossos esforços de interpre-tação. Contudo, há uma particularidade quedeve ser destacada. Essa inscrição é obra re-lativamente recente. Pela cor que apresenta,nos sulcos da pedra, deve ter doze ou, quan-to muito, quinze anos!

O governador não se satisfez com os es-clarecimentos formulados por seus dignosconselheiros, e determinou que se processas-sem cuidadosas averiguações entre os beduí-nos dos arredores.

Informado de que o emir estava interessa-do em apurar a origem de tal inscrição,apresentou-se, naquele mesmo dia, no cara-vançará, um jovem pastor.

Tahir ben Mohammed o interrogou:- Que sabes a respeito daquelas figuras

gravadas na face negra da pedra?Respondeu o pastor com o rosto a translu-

zir interior alegria:- Senhor! Aquelas figuras foram feitas

por mim! Tratava-se de uma legenda que iamorrer e desaparecer para sempre. S6 haviaum meio para salvá-Ia: era gravá-Ia numa pe-dra. Foi exatamente o que fiz.

- A legenda ia morrer? - estranhou o go-vernador. - E como morre uma legenda?

~etorquiuo jovempastor, com serenidade,alongando o braço:

- Essa legenda achava-se inscrita no tron-co de uma árvore. Com o decorrer do tem-po, a árvore foi definhando; caíram-lhe as fo-lhas, os galhos secaram. Um dia meu pai

Page 49: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

chamou-me e disse: "Meu filho! Em breveaquelaárvore, outrora tão majestosae sober-ba, vai ser pelo vento arrojada ao chão e re-duzidaa pó. Emseutronco existe, como sa-bes, uma curiosa legendaformada por váriasfiguras. Com a morte da árvore a legendamorrerá também. Precisamos, meu filho,salvá-Ia.Se eladesaparecer,muitos tesourosficarão perdidos para sempre." Paraatenderao desejode meu pai procurei salvara legen-da copiando-a nessapedra, onde poderá re-sistir até ao açoite do vento.

- E que motivo levou teu pai a assiminteressar-sepor essalegenda?- indagou ogovernador.

Tornou o pastor:- Meu pai, melhor do que eu, poderáex-

plicaro mistérioquea envolve.Vou chamá-Io.Momentos depois, o camponês voltou

acompanhado de um ancião de soberbacatadura.

Esseancião era seu pai.O poderosoemir recebeucom carinhoo ve-

nerando xeque, convidou-o a sentar-se emsuatenda, ofereceu-lhepão, sal, frutas secase, por fim, o interrogou sobrea origem da le-genda que tanto o intrigava.

O velho islamita, que conheciaa fundo ossegredosda magia, tirou desob a túnica umapequena esferade cristal, colocou-a defron-te do emir e disse-lhe em tom profético:

- Olhai, senhor, olhai com atenção paraessa bola de cristal! Que podem os vossosolhos distinguir no mundo dos invisiveis?

O emirbaixouo rostoe olhoufixamentepa-ra a bola mágica. Pareciatomado de umaes-tranha intranqüilidade.

Decorridosalguns instantes, ergueuo ros-to e declarou:

- Vejo um homem a correr por uma es-trada que parecenão ter fim. Essehomemle-va na mão direita um facho que espalhaumaluz avermelhada.Essaluzsobeao céutoman-do uma coloração arroxeada...

- Por Alá! - interrompeu o velho, numgesto burlescodecredulidade.- A visãoqueacaba de vos impressionar recorda, em suasimplicidade, a singular história que deu ori-gema essalegendanotávelquemeufilho gra-vou na pedra.

- Quehistóriaé essa?- indagou o emir.Acudiu logo o ancião:E, depois de alguns minutos de reflexão,

narrou o seguinte:

51

Page 50: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

34~ Narrativa

Históriade Zend,o homem que corria paranão se esquecer de uma lenda. É possível queuma lenda esquecida possa dar origem a outralenda.

Das MIL HISTORIASSEMFIM... é esta a trigési-ma quarta.

Tudo é de esperar e de temer do tempo e doshomens.

Lida a trigésima quarta, restam, apenas, no-vecentas e sessenta e seis.

Encontrava-me, certa vez, ao pardejar dodia, sentado à porta de minha tenda, sabo-reando tranqüilo o meu narguilé. Nuvens cin-zentas, em caravanas disformes, enovelavam-se pelo céu.

Ouvia-se, de quando em vez, o pipilar deum pássaro ou o blaterar rouco de um came-lo. A estrada, diante de meus olhos, batidapelo sol da tarde, alongava-se deserta e tris-te. Ao longe, as tamareiras sacudidas pelovento pareciam acenar para mim com seus al-bornozes verdes.

Vi, de repente, aproximar-se um viajante.Vinha dos lados de EI-Ausate caminhava mui-to apressado, quase a correr. Ergui-me len-tamente e aproximei-me da margem daestrada.

- Olá, meu amigoI - gritei, amistosa-mente, ao homem que passava. - Ondevaisassim apressado? Vai salvar o teu filho maismoço das garras de algum dragão?

52

E segurei-"opelo ombro detendo-o, por ummomento, junto a mim. S6 então pudereconhecê-Ia. Era Zend Rochaid, massagistade fama, meu velho companheiro de peregri-nação a Meca.

- Larga-me!- protestouZendRochaidesbaforido,tentando escapar-sede minhasmãos. - Deixa-meseguir.

- Escuta,meucaro massagista- repli-quei prendendo-ocom firmeza - queroconvidar-te agora, para uma ligeirarefeição.Algumas tâmaras, uma boa fatia de carneiroassaqo, um ensopado de filhote de camelo eum suculento pedaço de torta de nozes commel não farão mal a ninguém. Estou s6 eagrada-me a tua companhia.

- Agradeço-te - retorquiu o bom mas-sagista - mas não posso anuir ao teu amá-vel oferecimento. Adoro o carneiro assado;o bolo de nozes é o meu favorito. Mas nãotenho tempo a perder. Voujá pàra o palácio

Page 51: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

do xeque Malik Balbud, onde sou ansiosa-mente esperado por dezenas de pessoas damais alta nobreza.

- Um minuto que seja - insisti. - Che-garás um pouco tarde e essa ligeira demoraem nada prejudicará o honrado xeque MalikBalbud e os seus dignos convidados.

Tornou o massagista com voz ainda meioofegante, fixando-me no rosto seus olhosembaciados:

- Não é bem esse o motivo. A razão é ou-tra. O xeque Malik Balbud oferece hoje umabrilhante reunião em seu rico palácio. Ontem,depois da massagem habitual que lhe aplico,ele chamou-me e disse: "Bem sei, meu caroZend, que és vivo e inteligente. Precisareiamanhã de um valioso serviço teu." O xequeé muito bom e já me tem socorrido muitas ve-zes. Disse-lhe, pois, que estava a seu inteirodispor e que faria o que ele quisesse e deter-minasse. Respondeu-me: "Pretendo realizaramanhã, se Alá quiserl, uma grande festa emmeu palácio. A essa festa virão muitas pes-soas, inclusive o príncipe Abul-Zeid que o po-vo apelidou 'O Magnífico'. O meu contadorde histórias foi visitar a família e só voltará nofim de semana. Preciso de alguém que o subs-titua. Quero que inventes uma história bembonita, inteiramente nova, para ser narradaaos meus hóspedes. Conto contigo." Res-pondi: "Escuto e obedeço." Retomei a casapreocupado com aquela delicada incumbên-cia: imaginar e conceber uma história, bembonita e digna de ser ouvida pelos nobres mu-çulmanos. A mínha responsabilidade era mui-to séria. Era preciso atender ao xeque. Quan-

do obedecemos aos nossos superiores ensi-namos obediência aos nossos inferiores. Pus-me a meditar. Concentrei-me. Procureirecordar-me de todas as lendas que ouvira.Lendas da Pérsia; contos da China; parábo-las dos cristãos. Tomei de cada uma das his-tórias uma parte, um pedaço, fiz, com essesretalhos de lendas, uma nova lenda I Ao ca-bo de algumas horas, estava resolvido o pro-blema. A lenda que eu forjara era inteiramentenova, de enredo atraente e cheia de belos en-sinamentos. Resolvi correr imediatamente pa-ra a residência do xeque Malik. Quero che-gar lá o mais depressa possível.

- Mas por que essa pressa? - recriminei..- A lenda poderá ser narrada agora, ou logomais, depois da prece. Não importa. A horaretardada não sacrificará a beleza da narrati-va. Ao contrário. Uma boa refeição fará comque fiques mais alegre e bem disposto. Va-mos saborear, em paz, o carneiro assado quedeve estar saboroso.

Zend, com mal disfarçada inquietação, vol-tou a desculpar-se:

- Sinto dizer-te, meu caro, que a minhamemória é muito fraca. Comigo sucedelembrar-me, em dado momento, de um fatopara esquecê-Io dois ou três segundos depois.Não posso corrigir-me desse defeito. Um dia,depois de uma jornada, esquecí-me do lugaronde havia escondido as chaves de minha ca-sa. Aquele esquecimento deixou-me confu-so. Fizum esforço sobre-humano e, de repen-te, me voltou à lembrança o lugar onde seachavam as preciosas chaves. Fiquei satisfei-tíssimo. Exultei de alegria. Resolvi, como tes-

53

Page 52: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

temunho de minha gratidão, erguer uma pre-ce a Alá, o Altíssimo. Ajoelhei-me e comeceia orar. Finda a prece, ergui-me. Ohl Que des-graçal Havia me esquecido, outra vez, do lu-gar onde deixara as famigeradas chaves! Es-se fato vem provar que não posso confiar.naminha memória, incerta e traiçoeira. Antes,portanto, que eu me esqueça por complet0da história que imaginei, quero narrá-Ia ao xe-que Malik e a seus convidados. Se demorarpelo caminho; se me distrair com ceia ou vi-sita, corro o perigo de ver fugir o enredo dalenda e desaparecer tudo, tudo, nas sombrasdo esquecimento I

- Não haverá perigo algum - insisti comfirmeza. - Basta que te acauteles contra orisco do esquecimento. E para isso conheçoum recurso antigo. Gravarás ali, no tronco da-quela árvore, alguns sinais, letras ou palavrasque te façam recordar, em qualquer momen-to, a lenda que tanto te interessa. Gravadosos sinais indispensáveis poderás sem receioaceitar o meu convite. Que achas da minhaidéia?

- Magnífica! - condescendeu o massa-gista, depois de breve cisma. - Vou aprovei-tar a tua original sugestão. Aquele que apren-de as regras da prudência e da sabedoria, masnão as aplica, é comparável ao que lavrasseo campo sem o semear.. O meu amigo tirou do punhal e pôs-se a de-

senhar, com toda cautela, no tronco da ár-vore, várias figuras estranhas. Traçou dois cír-culos, uma pequena seta e acrescentou vá-rios outros sinais e letras. Ocupou-se nessadelicada tarefa com paciência e capricho. Ter-

54

minadoo trabalhoafastou-seda árvore,olhouatentamente para o desenho, e murmurou:

- Perfeito! Pareceincrívelque uma lendatão grande possa resumir-seem tão poucossinaisl - declareicom desbordanteorgulho.- Estásagora livre do fantasma do esqueci-mento! A qualquer momento a lenda por tiinventadavoltará a brilhar em teu pensamen-to. Vamos aos nossos deliciosos petiscos!Uma pequena parte da vida é formada debonsmomentos;convém, pois, aproveitá-losl

Chameio meu habilidoso cozinheiro e dis-se:

- Prepara,ó Hayyan!, um kibe deliciosoITenho, hoje, a meu lado, honrando-me nes-ta tarde,um convidadoespecial,o maior mas-sagista da Pérsia.

Zend Rochaid foi pródigo em elogios aospratos que Hayyan temperava. Achou tudoótimo, desdea fritada depalmito e cebolaatéo saborosofilhote de camelofervido em sorode leiteI

Findoo repasto,agradeceu-meo deliciosoconvite, a ceia, os doces; limpou os beiçoscom a manga da blusa e preparou-se parapartir.

A lendaque ele imaginarae que deveriasernarrada, ao cair da noite, no palácio de Ma-lik, estava para sempre fixada no tronco daárvore.

- Vou recordá-Ia,do princípioao fim, an-tes de partir - declarou Zend - pois, comojá disse, não confio na memóriaI

O massagista aproximou-se da árvore epôs-se a observar a legenda. Lá estavam oscírculos, as letras, os riscos retorcidos para

Page 53: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

cima e para baixo. Decorridos alguns instan-tes começou a andar agitado com largas pas-sadas, de um lado para outro, apertando a ca-beça entre as mãos como se quisesse cravaras unhas na fronte. Parecia presa de insaná-vel decepção. Esgazeou-se-Ihe o olhar.

- Que aconteceu? - perguntei-lhe jápreocupado com as maneiras espantadiças demeu hóspede.

- Uma desgraça, meu amigo! Esqueci-meinteiramente da tal lenda: não me recordomais de seu enredo, de sua forma, nem deseus personagens. E, por não me lembrar dalenda, não consigo compreender a significa-ção desses sinais que eu mesmo tracei pararecordá-Ia!

O massagista encarou-me fito, e, após umgesto de vencido. pôs a cabeça nas mãos.

A situação era grave.- Vamos! - bradei com energia, procu-

rando reanimá-Io! - Tem calma. Procura re-lembrar um dos episódios da lenda!

- É inútil tentar - lamentava Zend já su-cumbido, desatinado, vergando ao peso dadesdita. - Todo o esforço será inútil. O meuesquecimento é completo, absoluto I Nadamais resta da lenda que eu havia cuidadosa-mente inventado. E agora, que farei?

Vi seus olhos esgazearem-se de horror. Amáscara da palidez cobriu-lhe o rosto.

Fiquei constrangido com a torturante situa-ção de desespero do meu amigo. Sentia-meum tanto culpado daquele desastre. Fora euquem interrompera a sua marcha e insistirapara que ele aceitasse a ceia. De mim parti-ra, igualmente, aquela deplorável lembrança

de gravar a lenda, em resumo, no tronco daárvorel Tudo fizera com a melhor das inten-ções, é verdade, mas as conseqüências domeu alvitre haviam sido deploráveis.

Ali estava, pois, o meu amigo em situaçãodifícil por minha culpa. minha máxima culpal

Pesava-mesobre os ombros um dever sa-grado. Achar uma solução para o caso. Nãohavia tempo a perder. O tempo chega sem-pre - dizem - mas, às vezes, não chega atempo.

Abracei o conturbado amigo e deciditranqüilizá-Io.

- Não te desesperespor tão pouco -aquietei-o. - Alá é grandel Paratodas as di-ficuldades há sempre um remédio.

- Qual! - lamentou, em tom desolado,inculpando-se.- Parao meucasonão háso-lução. Não podereiatender ao pedido do xe-que Malik Balbude ficarei em falta, paracomaquele que é o meu maior protetor!

- Nadamaissimples- retorquiu. - Irás,agora mesmo, ao palácio do xeque Malik.Quando lá chegares,o xeque, ao ver-te, per-guntará, decerto: "Qual é a história maravi-lhosa, ó Zend, que inventaste paradivertir osmeus ilustresconvidados?" Contarás,então,aogenerosoMalik, a tua aventuradestatarde.

- Queaventura?- indagou num tom re-ceoso.

- Ora - repliqueí - isso tudo que aca-bou agora mesmo de ocorrer contigo. Fala-rás da lenda imaginada; de tua corrida pelaestrada;do nossoencontro; do receioque ti-nhas de esquecera lenda; da lembrançadegravá-Iano tronco da árvore; descreverása

55

Page 54: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

nova lenda que fizeste; a seguir, a ceia quesaboreaste, e por fim o inacreditável desas-tre: o esquecimento fatal, irremediável!Garanto-te que a narrativa desses sucessosagradará não s6 ao xeque Malik como a to-dos os príncipes e ulemás da Pérsia.

Zend Rochaid fitou-me cheio de espanto.Parecia vencido à minha argumentação. Aidéia brilhava no espirito; os seus olhos lu-ziam de prazer. Despediu-se de mim apertan-do ao coração a minha mão esquerda e saiua correr, como um louco, pela estrada em di-reit~ra à cidade.

Receava, decerto, esquecer a nova soluçãopor mim idealizada.

Fiquei satisfeito ao vê-Io partir. A históriaque ele inventara (e que por minha causa es-quecera) não seria mais interessante do quea outra que eu sugerira. Uma era fantástica,vivida no mundo da fantasia; a outra, real, au-têntica, e por esse motivo, de valorindiscutlvel.

Mas uma dúvida ficara a preocupar-me. Se-ria o meu amigo coroado de êxito, com a suanarrativa no palácio do xeque? Que desfechoiria ter aquela aventura da lenda esquecida?Aguardei, no dia seguinte, a volta do massa-gista. Ele, porém, não regressou.

Nunca mais o encontrei pela estrada deBedi-Ezzman. Três ou quatro anos depois, aopercorrer o mercado de Basra, avistei o nos-so bom Zend Rochaid. Reconheci-o logo ape-sar de seus trajes principescos. Trazia na cin-tura uma larga faixa de seda azul; ostentavaum garboso turbante de três voltas com bar-ras verdes!

56

Compreendi que ele fora, a partir daquelacélebre aventura da lenda esquecida, gene-rosamente recompensado pelo nobre Malik,ganhara, com certeza, riquíssimospresentes.Estava rico.

Tomado de viva curiosidade, interpelei-o:- Por Alá, ó massagistaI Vejo-te nadan-

do em prosperidade!Louvadoseja o DonodoCéul Lembras-teainda daquele nosso encon-tro em Bedi-Ezzman?O xeque Malike seusamigos aplaudiram, naquela noite, a tua sin-gular narrativa da lenda esquecida?

Respondeu Zend abraçando-me comalegria:

- Devodizer-te,meu amigo,que não che-gueiao paláciodo xeque Malik!Aindanão meavistei, desde aquele dia, com esse nobre Js-lamita! Há vários anos que não sei notíciasdele.

- Como assim? Não partiste naquela tar-de, a correr, de minhatenda, diretamente pa-ra a residência de Malik?

- Averdade é a seguinte - tornou Zend.- Ao sair de tua tenda, depois daquele nos-so célebre encontro, parti a correr pela estra-da e vi-me envolvidonuma aventura curiosae inesperada. Essa aventura alterou os meus'projetos, modificouo rumo de minha vida edeixou-me inteiramente desorientado.

- Que caso foi esse? - perguntei.O massagista levou-mecom cativante gen-

tileza para a sua bela vivenda, junto ao rio,ofereceu-me deliciosos petiscos e, por fim,apontando para um divã coberto de almofa-das, disse-me com docilidade:

Page 55: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii
Page 56: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Despediu-se de mim apertando ao coração a minha mão esquerda e saiu a correr, como umlouco, pela estrada em direção à cidade. (pág.56)

Page 57: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

- Senta-te, meu amigo! Senta-te alie es-cuta a singular história que te vou contar.

E, olhando-me com sorridente agrado,narrou-me o seguinte:

59

Page 58: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

35~ Narrativa

História da lenda roubada. Na qual perigosoaventureiro, ao agredir um viajante, presta ines-timáveis serviços.

Das MILHISTORIASSEMFIM...é esta a trigési-ma quinta.

A misericórdiade Deus é infinita!lida a trigésimaquinta restam, apenas, no-

vecentas e sessenta e cinco.

Ia eu, naquela tarde, quase a correr, em de-manda do palácio do xequeMalikBalbud.umdos homens mais generosos da Pérsia. Era ahora do pôr-do-sol. O céu, para os lados dopoente, aparecia abaçanado por nuvens corde chumbo. Camponeses com foices e ces-tos ao ombro iamtornando, vagarosos, paraos seus casebres. Pastores e cameleirosdeambulavam em busca de rebanhos. Aopassar pela fonte de Ziyadat divisei dois vian-dantes sentados à margem da estrada. Nãome pareceram beduinos de baixa classe;pareceram-se, antes, pessoas da mais fina eculta sociedade. Um deles trazia, presa aoombro, uma capa ricamente bordada. Osolhos eram muito vivos e a expressão do ros-to trigueiro infundia simpatia. Quanto ao ou-tro pareceu-me um tipo mal-encarado. Osten-tava uma barba de um vermelho escuro, qua-se roxo. Era alto, corpulento e mantinha a seu

60

ladouma pesada malade couro. Desagradou-me o seu olhar obliquo e mau. Observeiqueestavam ambos prevenidos com magnificaslanternas de 6leo.

O homem da barba cor de vinhoergueu-sepesadamente e veiobamboleante ~o meu en-contro. O outro (que me pareceu mais mo-ço) deixou-se ficar sentado, as pernas cruza-das e o corpo reclinado sobre o muro dafonte.

- Amigol - disse o barba roxainclinando-se num rápido salã - poderásdizer-nos onde fica a soberba residência doxeque MalikBalbud?

- Estás com muita sorte, 6 irmão dos ára-besl - respondi com bom humor. - É paralá exatamente que eu vou. Posso conduzir-vos sem dificuldadesao paláciode Malik.Se-guiremos por esta estrada até a porta de Iklil;ai chegando tomaremos para a esquerda. A

Page 59: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

casa do generoso xeque Malik,com seu pa-vilhão torreado, é a terceira depois da mes-quita de Otmã.

O tipo que me interpelaravoltou-se para ocompanheiro, respirou fortemente e, depoisde um silêncio, comentou num gestoadmirativo:

- Estásouvindo?Eraprecisamente o queeu supunha: à esquerda de Iklil,a terceira vi-venda depois da mesquitaI ConfereI

E acrescentou, com sobranceira, imperti-nente, destilando as palavras:

- Maso que iráfazeresse sevandija,comseu barbante sujo e mal-arranjado,à casa doxeque Malik?Sempre julgueique o nobre is-lamita selecionasse, com certo cuidado e fi-nura aqueles que deveriam compartilhar desua mesa e amizadeI

Confessoque não gostei. A insinuaçãoeragrosseira. Repliquei,pois, rijamente,com umacento amargo de despeito:

- Vouao paláciode Iklila convitedo pró-prio xeque MalikBalbud. Esse príncipedese-ja que eu proporcione alguns momentos dealegriaa seus convidados narrando-Ihesumalenda original, de enredo emocionanteI

Ao ouvir aquelas palavras, o homem debarba roxa expandiu-se numa casquinada.

- Pelo túmulo de Mafomal - chalaceoufitando-me com ar de soberano desprezo. -Pelo nome de Alál Que ingenuidadeI

- Ingenuidade? - estranhei asperamen-te. - Por quê?

- Ora - tornou o desconhecido com umriso de escarninho - não sabes então queaquelejovem - e apontou para o companhei-

ro que ficara recostado ao muro - é um dosmais notáveis contadores de histórias do mun-do? Já ouviste falar no célebre Abul-Isak IbnEI-Hassina, apelidado o Eloqüente? Ei-lol Aliestá modestamente sentado, emprestandosua celebridade a este lugar, um dos vultosmais gloriosos do Islã, o famoso e tão elogia-do Abul-Isak Ibn EI-Hassinal

Ecom as mãos na cintura, numa atitude pe-tulante, o grosseirão interpelou-me, com vozpastosa e grossa, olhando-me de mau cenhoda cabeça aos pés.

- E pretendes tu ainda, ó mísero came-leiro fanfarrão, competir em lendas, fábulas,contos e fantasias com Abul-Isak Ibn EI-

. Hassina, a maiornotabilidadeda Pérsia? De-siste dessa insensatez! Volta para tua choça,põe-te a roer a tua rosca, pois uma verdadei-ra glória, um autêntico xeque el-Medah, * oinigualável Abul-Isak Ibn EI-Hassina, surgiudiante de ti! Hoje, no palácio do generoso Ma-lik, só ele - e apontou outra vez para o jo-vem - só ele, o talento$o Abul-Isak Ibn EI-Hassina, repito, é que irá deliciar os presen-tes com suas maravilhosas e surpreendentesnarrativas!

Aquelas arrogantes palavras e a insistênciaatrevida com que repetia o nome do compa-nheiro, deixaram-me estarrecido.

- Em r;>artetens razão, meu caro Tarik -observou o jovem EI-Hassina intervindo no ca-so com displicência - até certo ponto as tuasconsiderações são justas, oportunas e acei-

. - Xeque el-Medah.- Chefe dos contadores dehistórias.

61

Page 60: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

táveis. Esse bom caravaneiro - e torceu pa-ra o meu lado, o polegar da mão esquerda -não poderá competir com um profissional deminha força, do meu talento e prestígio. Eleserá o primeiro a reconhecer as múltiplas eponderáveis razões que o impossibilitam defigurar, a meu lado, num torneio de narrati-vas. Conheço milhares de lendas, histórias en-cantadas em prosa e verso; fábulas edifican-tes, com desfechos e ensinamentos admirá-veis; alegorias prodigiosas; parábolas impres-sionantes; jogos; enigmas; poemas comove-dores. Sou capaz de distrair um auditório depríncipes; tenho recursos para prender a aten-ção de uma assembléia de sábios; disponhode artifícios e anedotas que farão rir uma mul-tidão de cameleiros ignorantes e entorpeci-dos. Já tenho tomado parte em dezenas detorneios concorrendo com os maiores narra-dores do mundo e não topei, até hoje, comum só que fosse capaz de me igualar e, mui-to mesmo, me sobrepujar. Todos os prêmios,nesses memoráveis torneios, foram conquis-tados, sem dificuldade, por mim!

O vaidoso xeque fez, nesse ponto, uma pe-quena pausa. Ergueu, depois, ligeiramente,o busto e prosseguiu sentencioso, entufadode vaidade:

- Tudo isso, ó Tarikl, é pura expressão daverdade. Mas o mundo é cheio de surpresasque 'afrontam a evidência. O que o homemsabe é pouco; o que deseja saber é muito, eo que nunca chegará a saber é infinitol Umaformiguinha tonta, arrastada pela correnteza,é capaz de vencer um elefante bravio. Inocen-te criancinha, a brincar na praia, saltando na

62

areia, seriacapazde acordar uma baleiasur-da que estivessea dormir no fundo do marlHá casosverídicosque se inscrevemna His-tória com astintas do inacreditável.Quemsa-be se um desses episódios incríveis não sepreparaagora, nesta curva da estrada,ao la-do destatranqüilafonte, diantede nós?Quemsabeseestemodestocaravaneiro- outravezindicou-me com o polegar - que o caprichodo Destino trouxe ao nosso encontro, não ésabedor de uma história, assombrosamenteperfeita,capazde ofuscar,com seubrilho, to-dasas lendasque formam o meu vasto e pre-cioso repertórioI

Sorri orgulhoso para o jovem EI-Hassinaeaventurei compenetrado, afetando grandefraqueza: .

- Possogarantir, ó xeque EI-Medahlquea históriaque pretendocontar, estanoite, aosconvidadosdo nobre Malik envolve os episó-dios mais curiosos de minha vida. Resumeanarrativa de caso verídico, ocorrido, há pou-co, na tenda de um mercador.

- Eque título dariasa essahistória?- in-dagou EI-Hassinafitando-me com curiosida-de efazendoum ligeirotrejeito com a cabeça.

Senti-me envaidecidopor merecera aten-ção daquele homem ilustre e respondi semhesitar:

- A LENDA ESQUECIDAI- Comotítulo - desdenhouo jovem com

a desenvolturade uma criança - como títu-lo, repito, não é dos piores.Uma pessoapou-co avisada, ou inculta, poderá chegar ao ex-tremo de julgá-Iooriginal. Poisbem, façamosuma combinação. Contarás, agora mesmo,

Page 61: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

diante de mim e de meu fiel ajudante Tarik,a tua singular LENDA ESQUECIDA.Se essalenda, pela forma, idéia e ensinamentosqueenvolve, for, realmente,digna de um prínci-pe, eu me darei por vencido. Desistirei decomparecer, esta noite, ao palácio de MalikBalbud. Tenho tanto mérito que não ponhoem dúvida reconhecere proclamar o méritoalheio. Irássozinhoe todos os ambicionadosprêmiosserãoteus. Se, ao contrário, tua len-da for fraca, cediça, pueril e seminteressein-capazde emocionarum auditório seleto, pre-ferível será que voltes para a tua mansarda.Receberásde mim, a título de auxílio,a quan-tia de dez dinares. Aceitas esta proposta?

- Aceito - confirmei embaçado por in-vencível timidez.

- Conta-nos, pois, a LENDA ESQUECI-DA. Antes de ouvi-Ia, não me será possíveljulgá-IaI

Tarik, o homem da barba roxa, bateu comforça os isqueirose acendeu uma das lanter-nas. Sentei-me na pedra, junto à fonte e ini-ciei a narrativa. Contei minuciosamente, aosdois viajantes, o episódioda lendaesquecidasem nada ocultar. Recordei, de início, a mi-nha corrida pelaestrada; o amistoso convitepara a ceia; o receiode ser traído pela minhadesbotada memória: descrevi as figuras queeu mesmogravarana árvoreparaque pudes-se, em qualquer momento, recordar-me doenredoque inventara.Falei-Ihesda minhaan-gústia pOverificar que não podia mais inter-pretara legendae dasingular lembrançaque,logo depois, os símbolos intraduzíveissuge-

riam, dando origem a uma nova lenda em tor-no da lenda esquecida!

EI-Hassina e seu companheiro de barba ro-xa ouviram em silêncio a minha narrativa. Ti-ve a certeza de que a lenda esquecida Ihescausara ótima impressão. Aguardei com se-renidade a decisão do contador de histórias.Teria o pretensioso xeque encontrado algummérito na lenda que ele próprio fizera empe-nho de ouvir?

Para arrancá-Io do silêncio, interpelei-o comum leve tom de ironia:

- lallah! Qual é a sua notável e definitiva

opinião sobre a LENDA ESQUECIDA?Respondeu-me com sua irritante displicên-

cia estirando as pernas:- Com algumas modificaçÕes, um colo-

rido mais perfeito na forma, ampliada na suatrama e melhorada no seu desfecho, acresci-da de cinco ou seis peripécias, suavizada porpequenas poesias, enriquecida com quinze ouvinte provérbios e algumas citações eruditas,ficará mais ou menos razoável. Cerceada e ex-pungida das nódoas, plebeísmos e lamentá-veis senões que a empanam, passará para orol das "toleráveis". Assim, como está, se-minua e abobalhada, pouco vale, é fraca, anê-mica e inexpressiva. Posso, no entanto,comprá-Ia para incluí-Ia, depois de retocada,em meu repertório! Quanto queres pela idéia?

E tendo proferido tais palavras, o xeque EI-Hassina tomou de sua bolsa. Ouvi um suavetilintar de moedas.

Pus-me a pensar. Que fazer? Não estavahabituado a vender lendas e negociar comidéias. Aquela proposta deixara-me surpreso.

63

Page 62: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

A noite vinha chegando, devagarinho comsua caravana de sombras; no céu lucilavamas primeiras estrelas. A lâmpada de Tarik lam-pejava a poucos passos de mim.

Vendo-me indeciso, o xeque EI-Hassina ar-vorou um rosto mau e insistiu impaciente, tor-cendo, entre os dedos, a ponta do haic:

- Vamosl Resolve logo! Quanto querespor essa idéia da lenda esquecida? Estás emdúvida sobre o valor da tua lenda? Esperas al-gum conselho de tua trôpega inteligência?Convence-te de que ninguém é bastante com-petente e sensato para se aconselhar a simesmo.

Já me dispunha a explicar que a LENDAESQUECIDA eu destinara ao xeque Malik,meu amigo e protetor. e que" não pretendianegociá-Ia, quando uma violenta pancada nacabeça atirou-me por terra. O golpe foi tãoforte que perdi os sentidos.

Quanto tempo estive ali desacordado jun-to à fonte de Ziyadat? Não sei. Não chego acalcular.

Quando dei acordo de mim achava-me dei-tado sobre um largo divã, no meio de umaconfortável tenda.

A meu lado, com o rosto inclinado, um an-cião fitava-me risonho. Tinha os olhos clarose expressivos, e longas barbas que se derra-mavam pela brancura da seda.

- Até que enfim abriu os olhos! - excla-mou dirigindo-sea um jovem que o acompa-nhava - louvado seja Alá!O nosso protegi-do está salvo.

Contou-me o bondoso ancião que ao re-gressar de madrugada de uma viagem, em

64

companhia dos filhos, parara junto à fonte deZiyadat, onde pretendia fazer suas abluções.Ao aproximar-se do muro viu o corpo de umhomem caído numa vala. "Está ferido", dis-se um dos rapazes. "Pois é nosso deversocorrê-Io imediatamente", declarou o velho."Vamos levá-Io para a nossa tendal"

Puseram-me num camelo, prenderam-mecom cordas, e levaram-me, na mesma hora,para a tenda do ancião. Fui ar socorrido e ca-rinhosamente tratado.

O bondoso Soraidj (ássim se chamava o do-no da tenda) interrogou-me sobre os motivosque me levaram a envolver-me numa rixa comcaravaneiros do deserto.

- Não me envolvi em rixa alguma -expliquei.

E contei-lhe, com todos os pormenores, aminha aventura com os dois sacripantas jun-to à fonte de Ziyadat..

- Foi, então, um roubol Um verdadeirosaquei - comentou o sábio.

- Roubo, nãol - protestei levantando avoz. - Foi, apenas, uma agressão estúpida!De mim não roubaram nadal Não trazia co-migo um único dinarl

- Estásenganado - contraveioo judicio-so Soraidj. - Roubaram-te coisa mais pre-ciosa do que o ouro. Roubaram-teuma idéialAquele miserávelTarik,cúmplicedo indignoEI-Hassina, abateu-te, naquele momento,com intenção criminosal Ficaste abandona-do na estrada enquanto os dois ladrões iamoferecer ao xeque a tua LENDAESQUECIDA.Mas esse crime não ficará impune. Farei comque o nosso governador seja informadodes-

Page 63: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

se atentado e castigue os dois infames saltea-dores de estrada. Atacam covardemente umpobre viajante para roubar uma lenda I Quetorpeza I

E, depois de meditar alguns instantes, odigno ulemá ajuntou austeramente:

- Não te preocupes, meu amigo, com es-se caso. A tua LENDA ESQUECIDA mudouapenas de título. Passou agora, a ser A LEN-DA ROUBADAIE os culpados serão punidos.

- Sinto discordar de vossa opinião - re-pliquei. - Não quero que EI-Hassina e o tipode barba roxa sofram a menor contrariedade.Deve-se ser inexorável com o pecado, porémhumano com o pecador. Sou muito grato aesses homens pelos três grandes e inolvidá-veis serviços que me prestaram.

- Comoassim?- estranhouo sábio. -Que serviços foram esses?

Respondi:- Primeiro: por causa da pancada brutal

que sofri, tive a honra de ser recebido em vos-sa tenda e ser vosso hóspede. Segundo: re-

sultou da referida agressão um capítulo trá-gico que veio tornar viva e emocionante umalenda que era apenas curiosa. Terceiro: emconseqüência do golpe na cabeça, desferidocom violência, recuperei a memória perdida.Sinto-me, portanto, capaz de narrar do prin-cípio ao fim, a famosa LENDA ESQUECIDA.

- Que maravilha - exclamou o anciãocom um sorriso largo e reconfortante. -Conta-nos essa história assombrosa, poiselas, decerto, encerra episódios emocionan-tes que educam pelo exemplo e instruem pe-la experiência I Vou chamar meus filhos e ami-gos. Todos nós ouviremos com prazer essabela narrativa.

E, para atender ao pedido daquele homembondoso que mé havia salvo a vida, contei amais prodigiosa lenda até hoje aparecida pe-los mundos sem fim da fantasia.

Essa lenda, bem digna de ser escrita com.letras de rubi nas sagradas colunas de Omm-el-Quora, é a seguinte:

65

Page 64: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

36~ Narrativa

A prodigiosa lenda da princesinha San-ga-Iu.Como pode uma jovem de coração meigo e sim-ples sofrer a tortura de incontáveis segredos.

Das MILHISTORIASSEMFIM...é esta a trigési-ma sexta.

"Osgrandespensamentos v~mdo coração."Lidaa trigésimasexta restam, apenas, nove-

centas e sessenta e quatro.

Até hoje, os árabes se referem, com admi-ração e orgulho ao nome de AI-Mansur, o fa-moso califa de Bagdá. Foi um monarca ge-neroso e justo. e, mais ainda, tolerante ebondoso.

O grande AI-Mansur, pai extremoso, tinhauma filha que era todo o encanto de sua vida.

Halina (assim se chamava a princesinha)morava num suntuoso palácio que um arqui-teto cristão fizera para o seu serviço. Possuíamuitas jóias e os mais belos e ricos vestidos.Em seu toucador se enfileiravam os mais ra-rqs perfumes do Oriente. Mas apesar do con-forto em que vivia, atendida sempre em seusmenores caprichos, rodeada de serviçais aten-tos e solicitas em agradá-Ia, a princesa nãose sentia feliz.

Uma tarde, depois da terceira prece, o ca-lifa AI-Mansur, ao regressar da fatigante au-

66

diência com seus vizires,atravessou casual-mente o jardim. O dia estava quente e abafa-do. No céu, cor de pérola, granizavaum ban-do de gaivotas. Pequenas borboletas de asasamarelas volitavam por entre os canteiros.Ouvia-seo rumor doce e cantante do repuxono meio dos rosais. De repente, o monarcaviua filha,sozinha, sentada na grama, de ca-beça baixa, numa atitude denunciadora degrande tristeza, fitando, atenta, as sombrasque se desenhavam no chão. Cabe aqui umesclarecimento assaz necessário: Halina,poresse tempo, contava pouco mais de dezoitoanos.

AI-Mansurficou apreensivo. Faziajá mui-tos dias, vinha observando na filhaqualquercoisa de anormal. Estariaela doente? Teriaal-gum desgosto recalcado a afligir-lheo co-ração?

Page 65: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Preocupado com o bem-estar da filha, odesvelado pai interrogou-a com muitabrandura:

- Que tens, minha querida? Por que' fo-ges constantemente ao corwfvio de tuas ami-gas e vens em busca da solidão? Queres quete mande buscar novas bailarinas? Desejas ou-vir os músicos cegos que tocam cftara e can-tam ao som dos alaúdes? Interessa-te uma ex-cursão às montanhas ou uma peregrinação àsruínas de Querbela? Vamos; conta-me o quesentes, que eu me empenharei em descobrirum meio de atenuar as tuas tristezas. Quero,para a minha perfeita felicidade, que a alegriavolte a brilhar em teus olhosl

- Vivo torturada por um profundo des-gosto, meu pai! E não acredito que haja re-médio para o estranho mal que me oprime aalma e dilacera o coraçãol

Interpelada desse modo, a bondosa prince-sa respondeu com um sorriso triste.

- Que mal é esse, minha filha? Será pos-sível que estejas apaixonada por algum prín-cipe encantado?

Halina, depois de alguns momentos de me-ditativo silêncio, contou ao pai o trágico mis-tério de sua vida:

- Uma noite, meu pai, achava-me no pa-vilhão das MilVioletas, e já me preparava pa-r.aum bom repouso, quando veio da escuri-dão do parque o ladrar furioso dos cães deguarda. Seguiu-me estranho rumorejo de vo-zes e gritos angustiosos que se perdiam nastrevas espessas. Teria algum ladrão audacio-so escalado o muro e saltado para o jardimdo palácio? Mandei que uma das escravas fos-

se indagar do que ocorrera. Passado algumtempo a escrava regressou com certa infor-mação que me impressionou. Uma cigana, aofugir de dois beduínos que a perseguiam, gal-gara o portão do palácio e fora atacada peloscães bravios. Se os vigilantes não houvessemacorrido com presteza, a infeliz fugitiva teriasido estraçalhada pelos molossos. Penalizou-me a situação da pobre mulher. Quisconhecê-Ia, Determinei, pois, que a trouxes-sem à minha presença. Era meu desejointerrogá-Ia, Com grande surpresa, diante demim, uma rapariga morena, robusta, de ca-belos negros e simpática. As vestes estavamem frangalhos, sujas e ensangüentadas. A fa-ce direita lanhada, de alto a baixo, por golpefundo, inspirava compaixão. A figura da jo-vem era trágica, impressionante. Por minhaordem as escravas pensaram-lhe os ferimen-tos e deram-lhe alimento. Falei-lhe com man-sidão e simpatia. Pareceu-me, a princfpio,desconfiada e talvez receosa. Vencida, po-rém, pe'la brandura com que lhe falávamos,tornou-se viva e loquaz. Contou-nos que sechamava Suraia, e que pertencia a uma tribode nômades do deserto. Com alguns paren-tes viera a Bagdá em busca de remédios evíveres.

"E que pretendiam de ti os beduínos?,perguntei-lhe.

'Queriam matar-me', denunciou, arrebata-da pela revolta. Compreendi que em torno da-quela tragédia pairava algum penoso segre-do, Para evitar o punhal de seus perseguido-res não hesitara em atirar-se aos dentes deuma matilha de cães ferozes. Bem dizem os

67

Page 66: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

árabes: 'Só sabe fugir, com verdadeira cora-gem, da morte, aquele que não tem nenhumamor à vida.' A curiosidade apoderou-se demim. Resolvi desvendar o mistério. Fiz comque as aias e escravas se retirassem e fiqueia sós, no aposento, com a cigana. Quero sa-ber a verdade!, declarei com firmeza. Exijoque me contes tudo o que ocorreu. A bedui-na arrancou da barra do vestido um pequeni-no frasco escuro e disse-me impulsiva: 'Eisaqui, princesa! Eisaqui o que os bandidos pre-tendiam: Este frasco de perfume! Equeres sa-ber que perfume é este? É o célebre San-ga-lu, descoberto por um sábio da Armênia.'

Depois de curto silêncio, a princesa reto-mou o fio da narrativa, erguendo a bela e no-bre cabeça com movimento encantador.

- Eu ouvira, realmente, de uma escravanegra, quando ainda era menina, uma histó-ria complicada na qual aparecia esse perfu-me, o San-ga-Iu. Jamais acreditei em suaexistência. Para mim, tudo não não passavade lenda, fantasia louca. Aquele que aspiras-se o San-ga-Iu, afirmava os supersticiosos,adquiria um dom extraordinário. Ficava como poder de atrair, como se fosse um Imã en-cantado, os segredos de todas as pessoas quedele se aproximassem. Eali estava, nas mãosda cigana, o perigoso San-ga-Iul Disse a Su-raia: "Dá-me, por um instante, esse frasco!Quero certificar-me da verdade." A ciganacom o olhar desvairado, obedeceu-me.Ajoelhou-se, porém, a meus pés e suplicou-me alucinada que não aspirasse aquele infer-nal perfume. Seria para mim uma desgraça.Não lhe dei ouvidos. Repugnavam-me as

68

crendices e superstições grosseiras da ciga-na. Abri o frasco e aspirei demoradamente oSan-ga-Iu. O aroma que exalava pareceu-meum misto de jasmim e bekum. Derramei umagota na palma da mão e, a seguir, fechei no-vamente o frasco, e devolvi-o à rapariga.Aquele frasco, de acordo com a tradição dosárabes, tornara-se inútil: perdera todo o seupoder. Suraia afastou-se de mim, bradando,com quanta força tinha, em seu arrevesadodialeto: "Bacrun fir Halina bissirl" Não dei,ao caso, a menor importância. No dia seguin-te pela manhã, recomendei fosse entregue àcigana uma bolsa com cem dinares e deixei-a partir. Logo pela manhã verifiquei que a mi-nha vida ia sofrer profunda alteração. Izzat,a bondosa escrava que me veio pentear, comuma vivacidade muito fora da sua habitual pla-cidez, revelou-me dois gravissimos segredosda sua vida. Fiquei impressionada. Izzat erade gênio retraído, muito calada, raramente fa-lava. Seria aquilo influência do San-ga-Iu? Jáestaria eu, sem querer, atraindo os segredosalheios? Não. Fora aquilo simples coincidên-cia e nada mais. Recebo, porém, na terceirahora, a visita de Nacibe, esposa de um vizir,que vinha todos os dias bordar em minhacompanhia. Essa dama, que sempre se mos-trava discreta, levou-me para um canto da sa-Ia e revelou-me nervosa, atropelando as pa-lavras, várias particularidades espantosas desua vida íntima. E, desse momento em dian-te, nunca mais tive sossego. Qualquer mulherque se acerca de mim, entra, sem o menorrecato, a desfiar-me um rosário de confidên-cias. São casos tenebrosos de maridos, dos

Page 67: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

filhos e amigos. Algumas segredam-me coma maior simplicidade: "Quando chego juntoa ti, princesinha, sinto logo um desejo incon-tido de contar tudo o que sei; de confessaros meus pecados, de revelar os pensamen-tos mais secretos e as coisas mais íntimas deminha vida. Eu que sou tão discreta diante demeu marido, de minha mãe, ou de meu pai,não posso me conter diante de ti, princesi-nha!" E entram logo a falar... Vejo-me inva-dida por uma verdadeira onda de segredosque jamais poderei revelar. Tornou-se paramim torturante obsessão ouvir, a todo instan-te, queixas, ignomínias, mexericos, indiscri-ções. Sou, como diz o povo, uma San-ga-Iu.É horrível! Temo, por vezes, enlouquecer!Afasto-me de todos, pois cada novo segre-do, com seu cortejo de torpezas e misérias,envenena-me a vida e enegrece-me ocoração!

Ao ouvir aquela surpreendente narrativa dafilha, o califa pôs-se a fitá-Ia grandemente in-quieto. Era preciso resolver, urgentemente,aquele caso. Como livrar Halina daquela per-seguição diabólica? Como impedir que escra-vas, aias e damas da corte se aproximassemda cândida princesinha e lhe abrissem as tor-neiras venenosas de suas incomparáveis con-fidências?

Disse, por fim, o velho monarca, fitando-acom uma fixidez que chegava a incomodar:

- Escuta, flor de minha vida! Fácil será,para mim, um meio que ponha termo às tuasaflições. Quero, entretanto, prevenir-te deuma coisa. Ontem, conversando com o vizirLabid...

- Não, meu pai! Não! - bradou a jovem,e saiu a correr.

A desditosa princesinha percebera que ovelho monarca, sob a influência mágica doSan-ga-Iu,esquecidode que falava à própriafilha, ia contar-lhe, também, um segredo.

E não seria para ela uma desgraçater co-nhecimento dos segredosque negrejavamavida do pai?

O califa não fez o menor gesto para detera filha. Deixou-a afastar-se. Viu-a entrar nopavilhão das Mil Violetas, e encaminhou-separaos seusaposentos,situadosno outro ex-tremo do parque, emboscadona manchaes-pessa do arvoredo.

.Mandou, no memso instante, viesseà suapresença, o esclarecidoAbu-Mussa, seu vi-zir conselheiro, já em provecta idade.

Pretendiaconsultá-Ia sobreo estranho ca-so de Halina. Era-lheinsuportávelver a filha,fadada a uma existência feliz e tranqüila,transformadainopinadamentenuma San-ga-lu, para viver amortalhada pelos segredoseconfidênciasalheias.Abu-Mussa eraum ule-má, istoé, um sábiocapazde resolveros maisobscuros problemas da vida.

Eo califa disse, com voz grave e pausada,ao douto e sisudo vizir:

- Recebi,meucaro Abu-Mussa, umade-núnciasecretaque me deixou impressionado.Fui avisadode que vive em nossacorte umapessoa que possui o dom misterioso deSan-ga-Iu!

Respondeuo sábio, esteado em conside-rações luminosas:

Não creio, 6 Emirdos árabesl, sejaver-

69

Page 68: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

dadeira essa denúncia. Não há segredo queresista ao poder da essência de San-ga-Iu.Ora, uma pessoa dotada dessa mágica in-fluência, isto é, um verdadeiro San-ga-Iu, en-traria na posse dos segredos mais graves, fi-caria a par de todas as intrigas, de todos osplanos, negócios e combinações. O San-ga-lu seria capaz de revolucionar o país. Imagi-nai, ó Príncipe dos Crentes!, o poder extraor-dinário de um homem que tivesse conheci-mento de segredos recônditos de todos osnossos generais. De que não seria capaz es-se San-ga-Iu, tendo o exército, a polícia, amagistratura e os sacerdotes inteiramente en-tregues a seus caprichos? Muitos homens, ti-dos como honrados, seriam presos e decapi-tados; centenas de funcionários seriam demi-tidos; alguns ministros, que agora vivem noluxo e na opulência, teriam os seus bens con-fiscados pelo Estado; veríamos a ruína de mui-tos lares; anulações de casamentos; suicídios;assassínios; uma calamidade, enfim!

O califa AI-Mansur encarava, com infinitoassombro, o seu honrado vizir. Este, depoisde breve pausa, prosseguiu com a mesmaentonação:

- Tudo leva a crer, portanto, ser falsa adenúncia que chegou ao vosso conhecimen-to. E quereis uma prova segura da veracida-de do que afirmol Se houvesse na corte umapessoa, homem ou mulher, não importa!,com o poder de San-ga-Iu, o trono de Bagdájá não estaria em vosso poder. Essa pessoa,com a força invencível dos segredos alheios,já teria provocado uma revolução e tomadoconta do governo I Tal hipótese só não ocor-

70

reria se o dom de San-ga-Iu tivesse recaídosobre pessoa dotada de bondade infinita e deuma força de caráter excepcional. Direi, en-fim, que o San-ga-Iu s6 não seria nocivo à co-letividade, como dizem os cristãos, fosse umverdadeiro santo, digno de ser posto num al-tar, e venerado por todos os crentes! Nãoacredito na existência de criatura capaz deapoderar-se de todos os segredos e fechá-Ios,para sempre, no cofre do coração. Penso,pois, que para tranqüilidade do povo e segu-rança do Estado, qualquer pessoa, seja quemfor, suspeita de San-ga-Iu deve ser presa eexecutada inexoravelmente!

Eo ancião acrescentou com impressionanteserenidade esforçando-se por ser claro edecidido:

- Alguém poderá objetar que seria clamo-rosa injustiça, crime odioso, verdadeira infâ-mia, condenar-se à morte um San-ga-Iu ino-cente. Sim, mas diante dos interesses sagra-dos do Estado anulam-se e desaparecem, porcompleto, os interesses individuais. Se uminocente põe em perigo o Estado, se a suaexistência é séria ameaça à coletividade,elimine-se o inocenteI Há segredos, 6 Prínci-pe dos Crentes!, que quando chegam ao co-nhecimento do povo, aniquilam coroas e ar-ruínam os troncos mais poderosos.

As gravíssimas considerações aduzidas pelovelho ulemá deixaram o califa AI-Mansur mer-gulhado numa verdadeira tormenta de desas-sossego e perplexidade.

"Este vizir", pensou o rei, "obcecado pelanefanda procupação de defender o Estado,não hesitará em praticar a infâmia de mandar

Page 69: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

para as mãos impiedosas do carrasco a mi-nha meiga e bondosa Halina. Aqui só há umasolução. Não me ocorre outra. Vou apunha-lar este velho intolerante e mandá-Io para otúmulo com todas as suas teorias ign6beis erevoltantes. O laço que não se pode desta-car, corta-se. Este fanático será, de um mo-mento para o outro, o algoz de minha filha;amanhã, convencido de que tem carradas derazão, exigirá do povo o sacrifício de Halina?"

Desatinado pelos pensamentos que lhe tur-bavam o espíríto, o califa de Bagdá, habitual-mente tão sereno, chegou a levar a mão aocabo do punhal.

Conteve-se, porém. Fez-se lívido.Flamejavam-lhe os olhos num brilho febril; asmãos tremiam. Sentia-se fortemente solicita-do por duas paixões opostas; críspava os pu-nhos num frenesi incontido.

Por Alá. Um segredo apenas (a certeza, portodos ignorados, de que sua filha era San-ga-lu) já o impelia, naquele trágico instante, apraticar um crime covarde - o assassínio de

um ancião I Imagine-se, agora, se ele fosse umSan-ga-Iu, com o coração enegrecido por mile um segredos tenebrosos?

E o califa, dominando o ímpeto sangüiná-rio, simulando tranqüilidade e indiferença, co-mo um homem que teme e deseja saber, in-terpelou o vizir Abu-Mussa no tom mais na-tural deste mundo, anediando as barbas:

- E esse mal de San-ga-Iu é incurável?- Incurávelnãoé - afirmouo vizir,incli-

nandoa frontecalva. - Já chegouao meuconhecimentoo estranho caso de um homemque se livroudo mal de San-ga-Iu.

- Conta-me essa história, ó esclarecidotaleb - acudiu pressuroso o rei. E pensou:

. "Enquantoele narradecidireise devomatá-10agora ou mais tarde. Punirsem necessida-de.é atentar contra a clemência de Deus."

- Escuto e obedeço, ó Comendador dosCrentes - retorquiu o vizir com profundavênia.

E, impenetrável e sombrio, narrou oseguinte:

71

Page 70: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

37~ Narrativa

Hist~ria singular de um hóspede misterioso.Na qual ouvimos a prece e a revelação prodi-giosa da baraka.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM:..é esta a trigési-ma sétima.

A boa consciência é um tesouro.Lidaa trigésimasétima restam, apenas, no-

vecentas e sessenta e três.

Uma tarde, lembro-memuito bem - cor-ria sobre as terras quentes do Iraque' o mêsdo BabilelavaP- uma tarde, achava-me afumar descuidado à porta de minhacasa, ob-servando as andorinhas que diagonavam océu, quando de mim se acercou um viajantedesconhecido. Suas vestes modestas não de-nunciavam desmazelo; do rosto, manchadopelo pó das estradas, transparecia certa no-breza. Pesava-lhe sobre o ombro esquerdoum fardo escuro apertado por uma correiaamarelada, e pendente da cintura um punhalrecurvo.

Estacou, respeitoso, a pequena distância,inclinouligeiramenteo busto e proferiu(a suavoz deixava filtrarum ligeirosotaque africa-no) o salã dos peregrinos cairotas:

1 - Iraque - IrakRabi - Regiãoda Ásia, na baciainferior do Tigre e do Eufrates.

2 - Babilelaval - Um dos per(odos (meses) em quese dividia o ano muçulmano.

72

- Seja Alã o teu guia e o teu amparol Quea alegria brilhe sempre nos ol,",osde teus fi-lhos e a paz resida perene em teu coração I

Encantou-me a delicadeza daquele forastei-ro. Suas palavras tinham a harmonia de umafonte sussurrante. "É pessoa finamente edu-cada", pensei. E tudo nele pareceu-me dis-tinto e sóbrio, desde o turbante desbotado atéas babuchas enegrecidas pela lama docaminho.

E emprestando à minha voz todas as cam-biantes da simpatia, retribuí a sua saudação:

- Allah yimessikum bil-kheirP Precisasde meu auxílio?Imensoserã o meu prazeremajudar-tel

E num gesto largo, sob o escudo da mo-déstia, aditei risonho:

- A minha desvaliaé grande, mas o meudesejo de servir é muito maiorl

3 -AI/ah yimessikum bil-kheirl- Que Deus te pro-porcione uma boa noiteI

Page 71: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

o viajante descerrou os lábios num sorrisode intenso júbilo. Lia-se-Iheno semblante aba-tido o drama da fadiga insofrlvel.

- Alá sobre ti e ao redor de ti! - respon-deu com certa cerimônia. - Aceito, de bomgrado, o teu generoso acolhimento. Sinto-me, realmente, exausto e desejaria repousaraqui algumas horas, antes de prosseguirjornada!

- Esta casa é tua, 6 irmão dos árabesl -confirmei, sem hesitar. - Aqui terás, Alá se-ja louvado!, um pouco de pão, água frescae tâmaras doces.

O cairota (devia ser um cairota!l com sin-cero suspiro de alívio, com bagas de suor acair do rosto, arriou o fardo, infletiu os bra-ços e agitou o ombro dormente, como fariaum carregador na feira ao dar por findo o es-falfante carreto.

Tomei-o com simplicidade pelo braço 'econduzi-o para o interior de minha casa.Convidei-o a sentar-se e obsequiei-o com re-confortante merenda - pão, bife de carnei-ro e coalhada fresca.

- Estás s6? - perguntou-me circunva-gando o olhar por todos os recantos da salanuma observação muda, mas certamente in-discreta e intencional. Percebi que toda a suaatenção convergia para um narguilé de prata

, que rebrilhavaperto da porta entre um peque-no alaúde e dois escudos persas. Aquele nar-guilé era o adorno mais precioso de minha ca-sa. Recebera-o, seis meses antes, do gene-roso xeque Husseyn, em troca de belo e ins-pirado poema dedicado especialmente aosguerreiros de sua Kabila. Um turco, amigo e

s6cio de meu irmão, dissera-me que a peçadevia valer mais de mildinares-ouro. Erafa-cetado na base e...

- Estás s6? - instou o h6spede vendo-me distraldo, e interrompendo o rumo incer-to de meus pensamentos.

Sim, eu estava só. Inteiramente s6. Minhaesposa, na véspera, havia seguido - junta-mente com os filhose duas servas - para ooásis de Beni-Soadonde moravamalguns pa-rentes nossos. Eu ficara, naquele isolamen-to, retidopor alguns afazeres inadiáveis.Den-tro de uma semana, conclulda a tarefa queme prendia, deixaria, também, a casa e iriarepousar nas montanhas, longe da vida tu-multuosa e do calor de Bagdá.

E, enquanto desfiava aqueles informes, ti-nha a minha atenção presa à pessoa de meuhóspede inesperado.

Emdado momento, num gesto vagaroso,arrancou do turbante, estirou indolente aspernas, acomodou o busto forte sobre lar-ga almofada e decaiu em silêncio.

Pude, então, observá-Io melhor.Era um homem relativamente moço, mas

já cruelmente maltratado pelos reveses da vi-da. Ligeiramentecalvo, tinha olhos claros efisionomiainteligentee expressiva.Enegrecia-lhe a mão esquerda, até a altura do punho,estranha tatuagem, cuja forma, ao primeiroolhar, não pude distinguir.

Deixou-seficar algum tempo em silêncio,os olhos semicerrados, em completo alhea-mento, absorto num cismar sem fim.

Decorrido largo espaço ergueu-se, de sú-

73

Page 72: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

bito, como se despertasse de um sonho, einterpelou-me com insofrida vivacidade.

- Não ouves, meu amigo? É a voz domuezim! Vamos à prece!

Pus-me à escuta. O hóspede não desper-tara enganado. Era, realmente, chegada a ho-ra do mogreb.4 Que imperdoável distração aminha! O apelo melancólico do almohaden ro-lava pelo ar e se perdia ao longe entre as ta-mareiras sem dono que orlam o deserto:

- Vinde à prece, ó muçulmano! Vinde àprece I Alá é Deus e Maomé, o enviado deDeusl Lembrai-vos de que tudo é pó, excetoAlá!

Fizemos, em dois instantes, as abluções doritual. Lavamos ligeiramente as mãos (até àaltura dos cotovelos), os pés, o rosto, as ore-lhas e o pescoço.

O almohaden, muito ao longe, clamava pe-los fiéis. Eas suas santas palavras chegavam-nos aos ouvidos com a suavidade de um eco:

- Vinde à prece, Ómuçulmano! Lembrai-vos de que tudo é pó, exceto Alá!

O dia declinava na serenidade e na paz. Anoite se anunciava batendo as palmas do cre-púsculo. O sol, como um garoto travesso, es-pionava a terra por cima do muro sombrio dasmontanhas.

- Façamos a prece lá fora - sugeri aomeu hóspede desconhecido.

- Não, não - recusoucom uma veemên-cia que me surpreendeu. - Oremos aquimesmo, nesta sala! Tu, que és o dono da ca-

4 - Mogreb - Prece proferidaao cair da tarde.

74

sa, orienta-nos! De que lado fica a CidadeSanta ?5

Respondi estendendo o braço em direçãoà segunda janela, à esquerda:

- É exatamente neste rumor- Julguei que ficasse para ali - tornou,

com seriedade, o egípcio - na direção da-quele narguilé.

("Até na hora da prece esse homem estácom o pensamento no meu narguilé", pen-sei. E uma onda de desconfiança negrejou-me o coração.)

O cairota (eu insistia, até aquele momen-to, em supô-Io cariota) apanhou uma lançae colocou-a recostada à parede, com a pon-ta voltada para baixo, junto à janela que euindicara. A linha ideal, passando pela pontada lança, iria até Meca, a cidade de Deus.

- Vamos à prece! - disse, dando por fín-dos os preparativos.

Ajoelhamo-nose erguemos os braços pa-ra o alto:

- Alá, Clementee MisericordiosolLouva-do seja o Onipotente criador de todos osmundos!

5 - Cidade Santa - Refere-se a Meca, a capital re-ligiosa do Islã, a mais célebre e importante cidade da Ará-bia, situada no Hedjaz.Todo muçulmano é obrigado air a Meca, em peregrinação, pelo menos uma vez na vi-da. Meca, pátria de Maomé, possui uma mesquita famosa(Caaba), e pelos maometanos é denominada "Cidade deDeus", "Pérola do Islã", "Templo de Alá", etc. Popula-ção, 300.000 habitantes; essa população fica quadrupli-cada na época das grandes peregrinações de fiéis. Quan-do um muçulmano profere a sua prece, deve ter o rostovoltado para Meca.

Page 73: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

E o estranho viajante, a meu lado, com avoz repassada de impressionantee comoven-te unção, pôs-se a orar:

- Quero, Senhor, ser como sou, vossocrente fiel e submisso, no sofrimentoe na dor,no tédio e na alegria, na doença e na saúde,na miséria e na fartura, na vida e na mortelNão me enjeiteis, Senhor, ainda que vos te-nha enjeitado e ofendido; não me lanceis devós, Senhor, ainda que vos tenha repelido enegado; não me deixeis de todo sem o vossomisericordioso amparo, endurecer em meuserros e em meus pecadosl

"Tirai, Senhor, de nossos corações todasuspeita maldosa, toda ira injusta, toda am-bição reprovável, toda desconfiança insultuo-sal Apiedai-vos, Senhor, de todos os que im-ploram a vossa misericórdia. Apiedai-vos e so-correi, socorrei, Senhor, aqueles que nas an-gústias da vida e nos desesperos da dor ne-cessitam de vosso indizfvel amparo e de vos-sa bondade infinita!

"Alá, Clemente e Misericordioso...Ergueu-se. Estava finda a prece. A noite

pousara lentamente na terra como uma águiafatigada. Acendi dois lampiões de azeite.

O viajante aproximou-se de mim, olhou-memuito fixo, abraçou-me com vivo transportede alegria e, a seguir, pôs-se a pular pela salasacudindo os braços e gritando:

- A baraka! A barakal6

6 - Baraka - Bênção especial de um santo. Boa sor-te. Sortilégio feito para evitar mau agouro. Na tenda, soba proteção de uma perfeita baraka, deye reinar afelicidade.

Ao vê-Io naquela atitude tomei-o por umdesassisado, ou melhor, por um loucoI

Segurei-o com energia pelo ombro:- Queé isso?Que aconteceucontigo?Respondeu-me com estranha agitação no

rosto:- Poisnão sabes?A baraka!Tensagora

a barakal- Vamos! Explica-te. Onde está a baraka?Afastou-sealgunspassosde mim,cruzou

com solenidade os braços, e interpelou-mecom grave entono:

- Quero que me respondas: sou ou não,em tua presença, um desconhecido?

- Sim - confirmei - para mim não pas-sas, realmente,de um estranho. Nãoseio teunome; desconheço o teu passado; ignoro osteus planos de vida, as tuas inclinaçõese osteus predicados.

- Poisbem - prosseguiu tranqüiloo cai-rota, retomando o fio de sua explicação -sempre que um homem, estando sozinhoemsua casa, recebe um hóspede desconhecidoe faz em companhia desse estranho, sob oseu teto, a prece do mogreb, adquire umaproteção especial de Deus. Essa proteçãoconstitui a barakamais valiosa que um cren-te poderia desejar. E é esse precisamente oteu caso. A baraka atuará sobre o teu desti-no e fará com que a tua vida seja inteiramen-te transformada. Vais entrar em largo perlo-do de prosperidade, paz e grandes aventuras.Verás satisfeitos os teus sonhos; realizadosserão todos os teus desejos. Só um pedidoquero formular agora: quando estiveres noapogeu de tua glória, com a força e o poder

75

Page 74: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

nas mãos, atira-me a corda de tua proteçãopara que eu possa também subir e prosperar.Preciso do teu amparol Imploro-odesde já!

Ao ouviraquelaexplicação,que a surpreen-dente solicitação rematava, sorri incrédulo.Não sou muito inclinadoa aceitar essas su-perstições pueris; seria, porém, indelicadocontrariaro meu hóspede. Fingi,pois, que ad-mitia como certas todas as suas previsões edisse-lhe com ar agradecido:

76

- Estábem, meu amigo. Asseguro-tequeterás a minha proteção. Imponho, apenas,uma condição. Quero que me contes a tuavida.

O viajante não se fez de rogado. Sentou-se diante de mim, cruzou as pernas e depoisde rápido instante de meditativosilêncio, as-sim começou:

Page 75: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

38:- Narrativa

Continuação da singular história do hóspedemisterioso.

Na qual Zualil narra os episódios de sua vidaaventurosa.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM...é esta a trigési-ma oitava.

Para reconhecer um beneficio é necessáriomerec§-Io.

Lida a trigésima oitava restam, apenas, no-vecentas e sessenta e duas.

Não creio que exista, sob o céu de Alá, ho-mém que tenha tido vida mais enliçada e in-certa. O infortúnio, várias vezes, com seusgolpes imprevisíveis, fez-me rolar ferido pelochão, mas o desânimo jamais pisou-me so-bre o corpo. Lutei pela vida; lutei sempre comdestemor e constância. Começo por dizer queo meu nome é Zualil Delach. Nasci em Re-yâk, pequena aldeia do Líbano. Nessa terraadmirável, onde os sonhos vão buscar inspi-ração na realidade, passei os primeiros anosde minha infância. As reminiscências dessetempo enchem-me de saudades o coração.Por tristes imposições do destino viu-se meupai obrigado a abandonar o torrão natal emudar-se com a família para o Egito, país queperlustrei durante trinta e dois anos. Logo quedeixei a escola dos ulemás do Cairo, com meucurso completo, dediquei-me ao comércio dejóias e especiarias. A vida errante, entretan-

to, exercia profunda atração sobre mim.Empreguei-mecomo guiade caravanase che-guei a traficar com régulos negros que tirani-zavam grandes tribos no interior do Sudão.Com os lucros auferidos de minhas longas earriscadasexcursõespelointeriorafricano,ad-quiri extenso e fértil lanço de terra e fiz-mecriadorde carneiros. Uma peste, que assoloua região,dizimoupor completotodos os meusrebanhos. Achei-me, de um momento paraoutro, reduzidoa extrema pobreza. Forçadoa angariar a minha subsistência, aceitei umemprego modesto: zelador de um marabu.'Mas o fanatismodos muçulmanosortodoxos,

1 - Marabu - Pequena capela coberta por uma cú-pula semi-esférica, sob a qual se acha supultado um Ma-rabu. O mesmo nome é dado (no norte da Africa) ao re-ligioso que procura, numa vida cheia de mortificações

. e preces, vencer os pecados e as paixões. Correspondeao árabe mudja hid.

77

Page 76: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

as lutas intermináveis entre as seitas rivais,as discussões e intrigas dos tolbas2 exacer-baram-me. Afastei-me da vida religiosa efui viver em Alexandria onde exerci a pro-fissão de escriba e intérprete. Instigad~ poralguns amigos, que percebiam em mim qua-lidades excepcionais, arvorei-me em médico.Exerci com habilidade e eficiência a medici-na; realizei curas assombrosas que mara\(ilha-ram menos os outros do que a mim próprio.A minha forma de agir, no combate às enfer-midades, em muito diferia da adotada peloscharlatões e nigromantes. Aconselhava cer-tos sucos de ervas; aplicava a sangria; recei-tava a salsaparrilha e o chá de alface e nuncaobriguei um doente a ingerir carne-seca de co-bra ou pó de camaleão para curá-Io das fe-bres intermitentes. Sempre condenei a apli-cação do ferro em brasa no tratamento dasferidas. Bem sabia que os médicos marroqui-nos receitavam versí.culos do Alcorão que odoente era obrigadÇ>a mastigar e a engolir.De tais recursos jamais me servi.

Neste ponto fez uma ligeira pausa, passoulentamente a mão tatuada pela nuca e pros-seguiu:

- Ali Messud, grande chefe marroquino,curado de grave enfermidade, concedeu-mesua filha, a formosa princesa Zobeyden, emcasamento. Ao fim de alguns anos senti-medesiludido da profissão de médico. As doresfísicas para as quais eu não encontrava alívio,os males sem remédio e as angústias inexpri-míveis dos que apelavam para o auxílio de mi-

2 - Tolba- Religiosodas seitas muçulmanas.

78

nha limitadíssima ciência deixaram-me a almaretalhada e cheia de tormentos o coração.Nesse tempo eu possuía valiosíssima coleçãode pedras preciosas. Achavam-se em meu co-fre cento e três rubis e trinta e dois brilhantesde alto quilate. "Vou tentar outra forma devida", pensei levado pelo meu intransitiv~ de-sejo de correr mundo. Deixei a mulher e osfilhos em companhia de meu sogro e parti pa-ra a cidade do Cairo levando todas as minhasvaliosas gemas. Tinha intenção de vender, porbom preço as jóias e com o lucro adquirir ter-ras para o plantio de algodão. O meu ideal foisempre esse: viver da riqueza, mas produzin-do riqueza. Ao chegar ao grande empório doNiloencontrei o povo agitado por intensas lu-tas políticas. Mal aconselhado por dois cunha-dos, irmãos de minha ~sposa, inimigos irre-conciliáveis dos turcos, tomei parte numaconspiração contra o vice-governador do Egi-to, o perverso Ayad-Ben-Mohamed, que pra-ticava as maiores arbitrariedades no poder. Onosso plano, para derrubar o governo e to-mar conta da cidade, foi muito bem elabora-do. A traição de um copta pôs tudo a perder.Fui preso, juntamente com vários cúmplices,e condenado à morte. Auxiliado pela dedica-ção de alguns amigos logrei fugir do presídiodisfarçado em dervixe, e, depois de mil peri-pécias incríveis, será longo relatá-Ias todas,fui encontrar refúgio seguro, na cidade de Da-masco. Ocultei-me, com Mustafá Nachid, umservo dedicado que viera comigo do Cairo, noquintal de uma pequena carvoaria. Receosode ser apanhado pelos agentes do vice-governador, pois vários espiões andavam dia

Page 77: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

e noite à minha procura, escondi todas as pe-dras preciosas, que consegui trazer do Egito,cosidas por dentro das dobras de meu cinto.Esse cinto encerrava, em suas costuras, umverdadeiro tesouro. Eram noventa rubis e vin-te e cinco brilhantes. As outras pedras haviamsido vendidas ou oferecidas àqueles que mehaviam ajudado a fugir. Depois de refletir lon-gamente sobre os perigos e incertezas do des-tino, tomei uma resolução firme e decisiva.Entreguei o precioso cinto ao fiel Mustafá edisse-lhe: "Seguirás, meu Garo, com estecinto oculto sob a túnica, para Bagdá. Nin-guém desconfiará de ti. Quem poderia suporque um modesto servo transporta todos oshaveres de um xeque? Poderás, portanto, via-ojar tranqüilo. A cobiça dos rapinantes não te-rá olhos suspeitosos para ti. Dentro de seismeses, no terceiro dia de Nissan esperarei porti na bela Cidade dos Califas,3 junto ao tú-

. mulo do venerável Abu-Hafiné. Uassa/ã/4Aqui o meu estranho hóspede levantou-se,

chegou à janela e olhou para o céu como seestivesse em busca de uma estrela. Decorri-dos alguns minutos, voltou outra vez para olugar onde se achava e retomou tranqüilo ofio de sua narrativa.

- Doisdias depois, ao cair da tarde, par-tiu o valente Mustafá para a tumultuosa Bag-dá, alistado em imponente caravana de pere-grinos damascenos. Era minha intenção per-manecer mais duas ou três semanas na Síria,despistar os meus implacáveis perseguidores,

3 - Bagdá.4 - Fórmula usual de despedida.

e seguir, depois, ao encontro do meu servono local e hora já aprazados. Tais planos fra-cassaram por completo. Grave enfermidadeprendeu-me ao leito durante mais de seis me-ses. Várias vezes a morte pisou em minhasombra.5 Quando recuperei o dom preciosoqa saúde, era deplorável a minha situação: só,sem recursos e perseguido, dia e noite, pelosespias do tirano egípcio. O carvoeiro EI-Hakim, em cuja casa eu me acoitara, ajudou-me com admirável dedicação, nesse transeperigoso. Disfarcei-me em cameleiro armênioe alistei-me numa caravana que levava parao Iraque dois sacerdotes cristãos. Depois devárias peripécias, que eu jamais desejarei re-cordar, cheguei a essa bela e famosa cidade.E isso oito meses depois do prazo combina-do com o fiel e abnegado Mustafá. Comoencontrá-Io? Certo estou de que ele procuroupor mim; esperou uma, duas, cinco semanaslVendo que eu não aparecia, presumiu que amorte houvesse encerrado o meu desordena-do viver. É bem possível até que tivesse deli-berado voltar, à minha procura, para Damas-co. Fui informado de que para além de Am-rã, entre duas colinas pitorescas, existe umoásis onde residiam alguns parentes de Mus-tafá. Convinha pesquisar. Fui até lá, interro-guei os velhos caravaneiros, visitei as tendase nada encontrei. E hoje quando, triste e fati-gado, retomava dessa inútil peregrinação, pa-rei à porta de tua casa e fui por ti recebido.Sou forçado a concluir que o meu fiel Mus-

5 - Essa expressão equivale à seguinte: "Estive muitotempoentrea vidae a morte."

79

Page 78: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

tafá não se acha mais nesta cidade. Qualquerpesquisa será inútil.

"Seja feita a vontade de Alá!"E ficou a pensar imóvel, os olhos fitos na

luz.A figurado aventureiroeglpciopareceu-me

profundamente romântica e estranha diantedas duras realidades da vida. Confiara, comingenuidade de uma criança, todos os seushaveres a um servo e ajustara, com o porta-dor do fulgurante tesouro, uma entrevista in-certa, à sombra de um túmulo,na opulentaBagdá! Quem seria capaz de nos assegurarda lealdadedo servo? Mustafáera pobre. Per-corria, em sua vida trabalhosa, a estrada dasprivaçõesinacabáveis:Derepente, sem espe-rar, vê-se inteiramente livre,tendo, a seu dis-por, um amontoado de jóias de alto preço! Eiria (uma vez dono e senhor de seu destino)devolver toda aquela fortuna ao amo?Palpitava-meque o ativo Mustafá jamais co-gitara de encontrar-se com o xeque. Abalou,com a primeiracaravana para a Indiaou paraalguma remota cidade da Pérsia e foi gozara existência de um prJncipe,dissipando emfestas e banquetes, os rubis cintilantes doeglpcio.

Silencieias minhasdesconfianças.Paraquelevar a dúvida e a inquietação ao esplrito demeu hóspede?

Limitei-me,apenas, a interrogá-Io,demons-trando interesse de bom amigo.

- E agora? - perguntei. - Que preten-des fazer?

Decorrida breve pausa, respondeu-medesconsolado:

80

- Seguireiamanhã para Mossule lá fica-rei aguardando o teu chamado. Estou certode que brevementeprecisarásde mimpara al-gum cargo de prestlgio! - Ejá reanimado,erguendo o rosto: - Permites que eu canteaqui algumas canções de minha terra?

- la/Jah!- acudi radiante. - CC:'YIomaiorprazer. Adoro a música; a poesia exer-ce sobre mim grande fascinação.

Zualilergueu-se, tomou do pequeno alaú-de que repousava ao lado do narguilé, dedi-lhou suavemente as cordas e pôs-se a cantarcom profunda melancolia:

Saudade, flor que despertaTristeza no coração;Saudade dos que se foram,Dos que não voltam mais, nãol

"Quem tudo quer tudo perde"Há muito reza o rifão;Quis a rosa dos teus lábios,Espinho feriu-me a mão!

Não choro por me deixares,Que o jardim mais rosas tem,Choro por não encontrares,Quem te queira tanto bem. 8

E ali ficamos sentados, na maior camara-dagem, recordando episódios do passado.

De quando em vez a flecha da suspeitacortava-me o pensamento.

6 - Essas trovas são citadas por Meira Pena em seulivroBotAnicaPitoresca.

Page 79: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

"Aquele singular aventureiro que eu rece-bera e hospedavaem minha casa seria real-mente digno de confiança? Qual fora o seuintuito ao prometer-me a baraka?"

Em dado momento fitou-me risonho:- A fadiga pesa-me nos olhos. O sono

convida-me ao descanso. Permitirás que eupassea noite em tua casa?

Senti-me sem ânimo para contrariá-Io.Respondi com uma solicitude um tanto

forçada:

- Com o maior prazerlDespedi-medo hóspede,desejei-lheum so-

no tranqüiloe reconfortantee subi parao meuquarto que ficava no pavimento superior dacasa. Erauma noite amenfssima.O céu, semlua, polvilhado de estrelas,deslumbravacomos diamantesde suasconstelações.Ouvia-seao longe o ganir de um cão de guarda.

Pela manhã, ao despertar, tive uma dasmaiores surpresasde minha vida.

Vou contar...

81

Page 80: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

39~ Narrativa

Continuação da história do hóspede miste-rioso. Na qual o dono da casa faz um jufzote-merário, para arrepender-se logo depois.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM... é esta a trigési-ma nona.

"O Perdão virá para aquele cujo arrependi-mento, posto que tardio, foi sincero. "1

Lida a trigésima nona restam, apenas, nove-centas e sessenta e uma.

Quando acordei, depois de um sono cheiode inquietação, já bem longe ia a hora do EI-fedsjer.2 Acerquei-me da janela e pus-me aadmirar, embevecido, a estrada de Bagdá, astamareiras floridas e, ao longe, a curva pra-teada do rio. Homens do campo, com seustrajes grosseiros, dirigiam-se para o trabalho:mercadores de melancia e cebola, puxandomagríssimos camelos de sela, seguiam o ru-mo do velho suque. O ar andava impregnado

1 - Esse pensamento é do Alcorão.

2 - E/-fedsjer- Horaassinaladapelocomeçoda au-rora.Nessaocasiãoé anunciadaa terceiraprece,que seriaa primeirapara os cristãos.Convémobservarque na tra-dição muçulmana, a noite precede o dia, isto é, a noitedo dia 9, por exemplo, é aquela que se segue ao dia 8.O momento em que o sol se põe (mogrebJé o iniciodo dia muçulmano; duas horas mais tarde éo E/asch;duas horas antes domogreb marcao E/-marta.A meia-noiteé chamada a Nusfa/-/ei/.

82

de um frescor de orvalho; cantavam aves ale-gres em todas as árvores.

Sentia-me, naquele começo de dia, de es-pírito leve e bem-disposto. A claridade suaveda manhã era como uma tâmara doce paraos meus olhos. O vento trazia-me o perfumede várias ervas.

lembrei-me de Zualil, o viajante misterio-so, o surpreendente aventureiro que eu aco-lhera como hóspede naquela noite. Teria eledespertado mais cedo para a prece?

Cumpria-me o delicado dever de chamá-Iono mesmo instante e oferecer-lhe ligeirarefeição.

Desci. A sala, em que deixara o egípcio, es-clarecida por duas das três amplas janelas, es-tava vazia. A porta que abria para o jardim,apenas encostada, com a tranca fora do lu-gar, fizera-me compreender que o hóspede jáhavia partido. Aproveitara-se, decerto, do si-

Page 81: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

lêncio da madrugada para retomar sua jorna-da interrompida.

"Negra, bem negra é a ingratidão dos ho-mens", disse de mim para'mim, tendo o co-ração oprimido por veemente tristeza. "Aque-le forasteiro, de aparência simpática, por mimacolhido com tanta cordialidade e que de mi-nhas mãos recebera o pão e o sal da hospita-lidade, fugira de minha casa como um beduf-no criminoso, sem palavra de despedida, semgesto de agradecimento. Que velhacada! Quemau impulso o teria levado a proceder daquelemodo deselegante e censtlrávell"

Estranho pressentimento assaltou-me bn,.ls-camente. Olhei para o canto da sala em quehabitualmente colocava o valioso narguilé deprata. A peça não se achava mais ali.

Fui roubado IApoderou-se de mim, desorientando-me,

violenta e incontida onda de rancor. O viajanteque eu recebera e agasalhara não passava deum rapinante vulgar, chacal imundo, sem es-crúpulos, que não hesitara em violar os sa-grados deveres da hospitalidade.

Iludido em minha boa fé eu o supusera ho-mem de bem. Chegara mesmo (como fora in-gênuo!) a acreditar em todas as peripécias queele fantasiara para ilaquear-me com sua lábia.As incriveis aventuras do Egito, e os perigosa que se sujeitara, o casamento com a tal prin-cesa marroquina, a conspiração fracassada,a fuga para Damasco, o tesouro entregue aum servo. Mimoseava-me, afinal, com seusversos cheios de doçura e encantamento e,por fim (com todos os mistérios e cantarias),

não passava de um ladrão ignóbil que prome-te a barakaJ e acaba roubando um.narguilé.

Estava eu absorto em tão sombrias cogita-ções, quando ouvi alguém cantarolar alegre-mente no jardim:

Se me levasses, um dia,Ao oásis do teu amor,Ver-me-ias tamareiraDando sombra, fruto e f/orl4

Acerquei-merápidodaporta, abria-ae olheipara fora.

Sentado no chão, ao lado da fonte, sob osol tranqüilo da manhã, avistei Zualil, o via-jante. Estavadescalço e com a cabeça des-coberta. Sustentava na mão esquerda,apoiado- no joelho, o precioso narguilé eocupava-secom um pedaçodepano.Tão ab-sorvido estavanaqueletrabalho que não deupela minha chegada.

- Olál - chamei-o. - Já estásai há mui-to tempo?

Ergueuparamim o rosto risonhoe colocoudiante de si, com gestos cautelosos, o nar-guilé que rebrilhava ao sol.

- Estássurpreendido por me veres aqui?- perguntou-me. - Reconheço que nãopassode um hóspedeimportuno, pois já de-veria ter prosseguido a minha jornada.Penalizou-me,porém, acordar-te ao romper

3 - Baraka- Veja nota 6 da :r7~ narrativa.

4 - Estaquadra é criada por Meira Penaem seu li-vro BotOnic8Pitoresca.

83

Page 82: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

do dia. Notei que estavas sob o peso de gran-de fadiga. Levantei-me ao primeiro chamadodo muezim. Ao preparar-me para a prece vique o teu depósito de água estava quase va-zio. Tratei de enchê-I o e, nesse trabalho,ocupei-me algum tempo. Finda a prece resolvidar pequeno arranjo à sala em que havia per-noitado. Chamou-me a atenção este belissi-mo narguilé de prata. Não posso ver uma pe-ça de grande valor artístico coberta de pó echeia de manchas. Resolvi, pois, deixá-Io bemlimpo e em condições de ser admirado. - E,apontando para o narguilé, observou anima-do pelo meu silêncio: É uma jóial Já leu comatenção as legendas que nele aparecem?

Não respondi. Fiquei ~é, os braços cru-zados, a fitar aquele hOri.~'TIsingular. Masquem seria ele, afinal?

- Escuta, meu amigo - disse-lhe em tomdecidido e sério - quero pedir-te perdão poruma falta gravíssima que acabo de praticar.Fiz de ti, há poucos momentos, um juízo fal-so e calunioso. Ao notar a tua ausência e nãoencontrando mais esse narguilé no lugar emque o havia deixado, concluí que havias fugi-do de minha casa, ao raiar da madrugada,roubando-me o narguilé. Fui leviano e injus-to. Arrependo-me agora de ter sido tão pre-cipitado em meu julgamento.

- Ora, ora - tornou Zualil, com sorrisomeio forçado, sem se mostrar ofendido. -Não é caso para arrependimento e peço-teque não te preocupes e não te amofines comtão pouco. Todas as aparências eram contramim e as aparências enganam ao mais avisa-

84

do dos homens. O mundo anda cheio de mi-ragens e mentiras. A vida é. uma escola emque a desconfiança é o mestre-escola e a mávontade para com o próximo é o Alcorão.Admira-me a tua sinceridade e a forma leale delicada de teu proceder. Raras, bem raras,são as pessoas que se arrependem e confes-sam os falsos conceitos que formulam em re-lação aos outros. A tua atitude é o bastantepara te redimir do erro.

E depois desse desafogo, como se quises-se desviar o rumo de nossa palestra, apon-tou para a base do narguilé e interpelou-mesem o menc;>razedume:

- Já havias reparado na legenda que aquiestá?

Fui forçado a confessar que jamais tiveraa minha atenção voltada para os versos queserviam de adorno ao narguilé.

Correndo lentamente o dedo da esquer-da para a direita Zualil, sem hesitações, pro-feriu:

- "Aprende a escrever na areia."Eajuntouplacidamentecom um sorrisodis-

simulado: - Eis um sábio conselho que oshomens de sentimento deveriam acatar emtodas as circunstâncias da vida: "Aprende aescrever na areia." Para que essa frase admi-rável possa ser compreendida faz-se neces-sário recordar a lenda dos dois viajantes quealtercaram à sombra de um rochedo.

- Que lendaé essa? - indagueiimpulsio-

Page 83: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

nado por viva curiosidade. - Prometoconservá-Iapara sempre na lembrançaI

- Vou contá-Ia - acudiu Zualil.5

'\.

5 - Zualil - Este personagem vai reaparecer na 41~narrativa.

E muito sereno, com uma sombra no olhar,narrou-me a seguinte história:

85

Page 84: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

40~ Narrativa

Continuação da singular narrativa do hóspe-de misterioso. Na qual Zualil,o aventureiro, con-ta a história de um homem que sabia gravar napedra e escrever na areia.

Das MIL HISTORIASSEM FIM... é esta aquadragésima.

"Tenhas tu boa consciência que Deus bemte defenderá."

Lida a quadragésima restam, apenas, nove-centas e sessenta.

Dois amigos, Mussa e Nagib, viajavam pe-las extensas estradas que circundam as tris-tes e sombrias montanhas da Pérsia. Ambosse faziam acompanhar de seus ajudantes, ser-vos e caravaneiros. .

Chegaram, certa manhã, às margens de umgrande rio barrento e impetuoso, em cujo seioa morte espreitava os mais afoitos etemerários.

Era preciso transpor a corrente amea-çadora.

Ao saltar, porém, a uma pedra, o jovemMussa foi infeliz. Falseando-lhe o pé,precipitou-se no torvelinho espumejante daságuas em revolta.

Teria ali perecido, arrastado para o abismo,se não fosse Nagib.

Este, sem um instante de hesitação, atirou-se à correnteza e lutando furiosamente con-seguiu trazer a salvo Q companheirodejornada.

86

Que fez Mussa?Chamou, no mesmo instante, os seus mais

hábeis servos, ordenou-Ihes gravassem na fa-ce mais lisa de uma grande pedra, que pertose erguia, esta legenda admirável:

"Viandantel Neste lugar,durante uma jornada,Nagib salvou heroicamenteo seu amigo Mussa."

Isto feito, prosseguiram, com suas carava-nas, pelos intérminos caminhos de Alá.'

Alguns meses depois, de regresso às suasterras, novamente se viram forçados a atra-vessar o mesmo rio, naquele mesmo lugar pe-rigoso e trágico.

1 - Caminhos de Alá - Expressão que significa "pelavidaafora".

Page 85: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii
Page 86: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Era preciso transpor a corrente ameaçadora. Ao saltar, porém, a uma pedra, o jovem

Mussa foi infeliz. Falseando-lhe o ptJ, precipitou-se no torvelinho espumejante das águas em

revolta. (pág. 86)

Page 87: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

E,como sesentissemfatigados, resolveramrepousaralgumas horas à sombra acolhedo-ra do lajeado que' ostentava bem no alto ahonrosa inscrição.

Sentados, pois, naareiaclara, puseram-sea conversar.

Eisque, por motivo fútil, surge, de repen-te, grave desavença entre os doiscompanheiros.

Discordaram. Discutiam. Nagib, exaltado,num ímpeto de cólera, esbofeteou, brutal-mente, o amigo.

Quefez Mussa?Quefariastu em seulugar?Mussa não revidou a ofensa. Ergueu-see

tomando tranqüilo o seu bastãoescreveunaareia clara, ao pé do negro rochedo:

''Viandantel Neste lugar duranteuma jornada, Nagib, por um moti-vo fútil, injuriou gravemente o seu

amigo Mussa./I

Surpreendido com o estranho proceder, umdos ajudantes de Mussa observou respeitoso:

- SenhorI Daprimeiravez, paraexaltar aabnegaçãode Nagib, mandastegravar, para

sempre, na pedra, o feito heróico. E agora,que eleacaba de ofender-vos tão gravemen-te, vós vos limitais a escrever,na areia incer-ta, o ato de covardial A primeira legenda, óxeque,ficará parasempre.Todos os quetran-sitem por estesitio delaterão notícia. Estaou-tra, porém, riscadano tapete de areia, antesdo cair da tarde terá desaparecido,como umtraço deespumasentreasondasbuliçosasdomar.

Respondeu Mussa:- É que o benefício que recebi de Nagib

permanecerá,pÇlrasempre,em meu coração.Mas a injúria, essanegra injúria... escrevo-ana areiacomo um voto, para que se depres-sa daqui se apagar e se apague de minhalembrança!

- Assimé, meuamigol Aprendea gravar,na pedra, os favoresque receberes,os bene-ficios que te fizerem, as palavrasde carinho,simpatia e estímulo que ouvires.

"Aprende, porém, a escreverna areia, asinjúrias, as ingratidões, as perfídias e as iro-nias que te ferirem pela estrada agreste davida.

"Aprende a gravar,assim,na pedra;apren-de a escrever,assim, naareia... e serásfelizl

89

Page 88: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

41~ Narrativa

Continuação da singular história do hóspedemisterioso. Surge um mestre-escola que des-creve o paraiso dos muçulmanos. O egipcio ofe-rece uma lenda, um conselho ou um segredo.

Das MILHISTORIASSEMFIM...é esta a quadra-gésima primeira.

Não chames a ti o que diz respeito aos ou-tros, nem te metas nos negócios dos superiores.

Lida a quadragésima primeira restam, apenas,novecentas e cinqüenta e nove.

Terminada a narrativa da lenda persa, omeu hóspede levantou-se vagaroso, reajus-tou a faixaque lhe apertava a cintura e disse-me sem a menor sombra de afetação:

- Quero, meu amigo, aproveitaro temporegando os canteiros deste belo jardim! Ve-jal As plantas estão secas, e definhando. Pre-cisam de muita águal

Em seus olhos claros brilhava uma grandealegria.

- Não faltava mais nada! - discordei comveemência. - Onde estaria eu no dia em quepermitisse, em minha própria casa, o traba-lho de um hóspede? Falemos linguagem sin-gela e nua. Já não basta o que fizeste hoje?A jardinagem ficará para depois; dela encar-regarei o meu ajudante. Vamos saborear, ago-

90

ra, qualquer gulodice, que já anda bem altoo sol e o Ramadã' ainda não começou.

Convidei-oa voltarcomigoà sala; abria ter-ceira janela e encostei a porta. No centro dotapete deixei o vistoso narguilé de prata querefulgia como uma jóia.

Voltando-me para o meu hóspede, numtom não isento de cerimônia, disse-lhe:

- Tem paciência, meu amigo. Ficarásso-zinho por algum tempo. Voupreparar nossosmanjares.

Eencaminhei-mepara o compartimento,naala esquerda da casa, onde se achavam o ar-

1 - Durante esse mês, que corresponde à quaresmados muçulmanos, os crentes não podem comer coisa al-guma entre o nascer e o pôr-do-sol.

Page 89: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

mário com os comestlveis, os cestos com fru-tas e as caixas de farinha e cebola.

Retireium prato com peixe frito, bolos denozes, pão fresco, limões e tâmaras cristali-zadas. Acendio fogo e pus água para ferver.Nesses pequenos afazeres e indispensáveis ar-ranjos demorei-me algum tempo.

Quando cheguei de volta à sala, trazendouma bandeja com licor, tive a imensa surpre-sa de encontrar o meu hóspede em compa-nhia de um desconhecido. Achavam-se am-bos refestelados aconchegadamente, de per-nas cruzadas,e conversavamcomo velhosamigos, gesticulandoe bracejandocom reme-tidas fantasiosas. O recém-chegado era ma-gro, de cabelos grisalhos,olhos mortiçose fi-sionomia abatida. Trajava-se com extremamodéstia. Em sua túnica esfiapadamultiplicavam-seremendos de vários feitios.

Vendo-o aparecer, Zualil,sempre atencio-so, disse ao companheiro:

- Eisai, o respeitáveltaleb, o nosso bome generoso amigo, dono desta hospitaleiravivenda!

E, a seguir, voltando-se para mim, acres-centou com meio sorriso, inculpando-se dapresença do intruso:

- Esperoque não te aborreças com estenovo hóspede I Chamei-o para servir-nos decompanhia na refeição. Ele ia passando e euo convidei. Fiz mal? Aprovas o meu gesto?

E procurava ler no meu rosto a impressãode suas palavras.

Fiquei estarrecido na escada com a bande-ja de licor na mão. O egfpcio pusera para den-

tro de minha casa, sem me consultar, o pri-meiro bedulno que avistara da janela, cruzan-do a estrada. A continuar daquela maneira,dentro de poucas horas a minha casa estariatransformada numa turbulenta hospedaria ounum caravançará enxameado de forasteiros.

Cumpria-me o dever de homologar o con-vite feito. Não vi, no momento, solução maisoportuna para o caso. Disse, pois, com ur-banidade convencional, encarando-o com tê-nue sombra de dissabor:

- O convidado do meu hóspede é sem-pre bem-vindo I

E, a seguir, com expressões corriqueiras,saudei o desconhecido a quem Zualil conce-

. dera o tratamento de "respeitável taleb":- A paz sobre ti, ó forasteiroI Aqui parti-

Ih.arásdo sal de minha toalhaIRetribuindoa amistosa saudação, que eu

proferiria meio constrangido, o recém-chegado respondeu (a sua voz era metálica,mas não me pareceu desagradável):

- Queira Alá cobrir com suas inestimáveisbênçãos os dignos moradores desta casalQuea misericórdiado Onipotenteafaste destelar acolhedor as tentações e errosl - Eà guisade apresentação ajuntou risonho e mesurei-ro: - Chamo-me lezid Chakalide exerço aárdua profissão de mestre-escola. Tenho porhábito não recusar os convites atenciosos eas ceias apetitosas.

- Pois confirmo e reitero o convite formu-lado pelo meu amigo Zualil - declarei. -Consentes, ó taleb!, em tomar parte em nos-so repasto?

Com o maior prazerl - anuiu sem ceri-

91

Page 90: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

mônia o mestre-escola- sinto-me profunda-mente honrado com o vosso convite.

Momentos depois distribuí sobre rica toa-lha os diversos pratos que havia cuidadosa-mente preparado, desdeos bifes de carneirocom cebola até as pastas açucaradasfeitasde amêndoas e canela.

O mestre-escolanão sefez de rogado. De-vorou, com invejávelapetite, todos os acepi-pesque lhe foram oferecidose, durante o lar-go tempo que durou a refeição, não cessou,um só instante, de tagarelar, declamare dis-cutir.

Lamentou o destino do sobnnho mais ve-lho que se casaracom uma dançarina; aren-gou sobre as plantas que afirmara conhecerem seus menores segredos; discorreu porconceitos religiosos e remédios capazesdecurar, em dois dias, a sarna de um camelo;dissertou sobre pedras preciosase tambémsobre a maneiramais segurade se empregara bússola no deserto. Falou, com extraordi-nátiaeloqüência,do maravilhosotanque exis-tente no Paraíso, segundo a crença dosmuçulmanos:

- Afirmam os sábios - disse-me omestre-escola- que os justos, antes de en-trarem no Paraíso,se desalteramno Tanquedo Profeta. Essereservatório,segundoa des-crição mais perfeita e verídica, é um quadra-do tão extensoque a maisativa caravanagas-taria dois anospara contorná-Io andando diae noite sem parar.2A água, doce como omel e fresca como a neve, exalandoum per-

2 - Exemplodedistancia medida pelo tempo.

92

fume mais intenso do que o almíscar,é con-duzida ao tanque por dois canaisque partemdo prodigioso Cawathar.3 Aquele que seaproximado tanque, cujasbordassãode âm-bar, tropeça em finíssimastaças de ouro queali estão atiradas aos milhares. Tendo, umasó vez, provado da água maravilhosado Ca-wathar, o justo nunca mais sofrerá as tortu-ras da sede, ou melhor, ficará para sempresaciado.4

O egípcio que meditava, coçando o quei-xo, perguntou ao mestre-escolase o Paraísodos muçulmanos, tantas vezes mencionadono Alcorão, era o mesmo Édendo qual foraexpulso Adão.

O taleb inspirado, como se discursassenamesquita, prosseguiu:

- Pretendem os metazalitaSSe outrossectáriosque essafeliz morada, o jardim dasternas delícias,foi criado muito tempo depoisda humanidadee, por conseguínte, não é omesmo que serviu de morada a Adão e suaesposa,a nossamãe Eva. Mas os ortodoxoscontrariam essa doutrina e admitem que overdadeiro Paraíso,que serve de abrigo aoscrentes,foi criadoantesdo mundo, posto aci-ma dos céus, logo abaixo do trono de Deus.

3 - Cawathar - Rio do paralso muçulmano. O vo-cábulo Cawathar significa abundência.

4 - É perfeita a analogia entre o Tanque (citado pe-los teólogos muçulmanos) e o rio puro d'água viva, res-plandecente como cristal, que saia do trono de Deus edo Cordeiro, de que nos fala São João no Apocalipse,e aquela Agua de que nos fala Jesus: "Quem dela bebernunca mais sofrerá sede. "

5 - Metaza/itas - Seita muçulmana cujos adeptossão tidos como hereges pelos ortodoxos.

Page 91: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Ensinaporém o Alcorão, na sua eterna e in-criada sabedoria,6que o Jardim Celeste re-pousa na tranqüila mansão do Sétimo Céu,entre flores inebriantese sombrasdeliciosas.

"A terra dessaregião celestial, é, segundoalguns, da maisfina flor de trigo, ou do maispuro almrscar, ou, como asseguram certoscomentadores, deaçafrão: as pedrasque ro-Iam em suas ensombradasalamedassão pé-rolas e jacintos; as paredesdos palácios re-brilham marchetadasdeouro e prata; mais ri-cos e deslumbrantes,pelaspedrariasque en-cerram, são os troncos de todas as árvoresdentre asquaisse destacaa Tuba, ou Árvoreda fortuna, eternamentecarregadade frutosmadurose saborosos,e que estendeseusra-mos deliciosos até a morada dos muçul-manos.

"0 Pararsoé todo entrecortado por inúme-ros regatos. Nem todos são de água frescae cristalina. Em muitos só corre leite, e queleite deliciosoI Em outros circula vinho puroe gelado que não embriaga. Os córregos deágua cristalina deslizam marulhentos sobreum chãode rubis; os de leiteserpenteiamporfinrssimasesmeraldase, finalmente, os de vi-nho têm seus leitos escavados no ouromaciço.

"0 ar que ali se respira é uma espéciedebálsamoformado com o aroma de mil floresdiferentes.

"Havia um ponto, dentro das crençasmu-çulmanas, que seria interessanteesclarecer.

6 - Segundo um dos dogmas mais discutidos do Is-lã, o Alcorãosempreexistiu,é umaobraincriada.

Que aconteceria a um justo que conquistas-se a glória de ser conduzido ao Pararso?

O erudito lezid abordou, com segurança,esse ponto tão debatido num estirado dis-curso:

- Vejamos, segundo a crença dos mao-metanos, o que acontece ao justo que é le-vado à mansãode Alál Com ele a prece e aglóriaI

"Depois dese haverdessedentadonoTan-que de Maomé, será o Justo conduzido porum anjo a duas fontes, cujas águas brotam,como por encanto, das rarzesda prodigiosaárvore Tuba que verdeja à porta do Paraíso.Ar chegando, o Eleitode Deusbeberáda pri-meira fonte para purificar o corpo e para selibertar de todos os malese impurezasinter-nas,e lavar-se-ánaoutra parareadquirira be-lezae a mocidadeeternas. Logo que se apre-sente à porta do Paraíso,encontrará, à suaespera,dois belos mancebos, de origem ce-leste, destacadosdas infindáveis hostes ce-lestiais para servirem ao novo bem-aventurado. A seguir virão ao encontro doJusto três anjos trazendo os presentes queDeus oferece àquele que ingressana Glorio-sa Mansão. Depoisde agradeceras dádivas,e erguer louvores ao Onipotente, terá o Jus-to permissãode permanecerno Paraíso.NoGrandeJardim a felicidade de cada um serácondicionadaaosatos meritóriosque praticoudurante a vida terrena e haverá,portanto, di-ferentes graus de bem-aventuranças.O pri-meiro, e certamenteo maissublime, é reser-vado aos profetas que glorificam a vida e oCriador; o segundo, aos sábiose aos prega-

93

Page 92: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

dores do culto de Deus; o terceiro, aos már-tires da fé muçulmana; e o último, a todos osoutros fiéis de acordo com o valor moral e re-ligioso de cada um. Maomé, como sentenciouo Livro Incriado, será o primeiro a entrar noParaíso e, em seguida, os pobres que ali se-rão recebidos quinhentos anos antes dos ri-cos. Viverão também no céu, ocultas em de-liciosos pavilhões, as encantadoras huris, degrandes olhos negros e sedutores. Essas hu-ris jamais perderão a beleza e não sentirão ocontato da mão mirradora do Tempo; são do-tadas de tal beleza que se uma delas apare-cesse, durante alguns instantes, entre as nu-vens, todos os habitantes da terra cairiam des-maiados ao contemplar-lhe o rostodeslumbrante.

Seria longo e fastidioso repetir aqui as in-dicações que o mestre-escola nos forneceu,naquela manhã, quando descreveu, com to-dos os pormenoresr o céu de Alá. Era tal oímpeto de sua loquacidade que não nos ofe-recia brecha para interrompê-Io.

Finda a refeição preparou-se Zualilpara par-tir. Vestiu a túnica, ajeitou o turbante, pren-deu ao ombro o albornoze ocultou o punhalsob a faixa.

- Aindaé cedol - declareimedianamen-te cortês, vendo-o pronto para seguir viagem.

- A jornada que empreendo é longa -respondeu-me com certa melancolia. - Lon-ga e fatigante. Preciso partir. Quero, porém,retribuir de qualquer forma, a generosa hos-pitalidade que recebi nesta casa. Ofereço-te,meu amigo, três coisas igualmente preciosas.Mas, dessas três coisas, s6 poderás escolher

94

umal As três coisas que te ofereço são: umsegredo, um conselho e uma lenda I VamoslDize-me: que preferes ouvir?

Fitei-o cheio de assombro. Aquele homemsingular pretendia pagar as gentilezas e aten-ções que recebera em minha casa com a moe-da mais desvalorizada do mundo: segredos,lendas e conselhosl

Qualquer outro, em minha situação, diriaao forasteiro: "Que me importam as tuas len-das, os teus segredos ou os teus conselhos.Mal-avisado vai quem se preocupa com taisbaboseiras. Dispenso o teu pagamento. Po-des seguir o teu caminho que eu nada maisdesejo de ti."

Julguei, entretanto, indelicado de minhaparte tratá-Io assim. Disse-lhe, pois, meio sé-rio e meio risonho:

- Não há motivo algum para hesitar na es-colha. Acabas de pôr à minha disposição umsegredo, um conselho ou uma lenda. Que fa-ria eu com o segredo? Nada. Tenho em meupoder centenas de outros que não me propor-cionam a menor vantagem e deles não colhoum dinar de juros. Guarda, pois, contigo o teusegredo. Não o aceito. Quanto ao conselho,julgo-o mais despiciendo ainda. É a mais co-mum e a menos valiosa das moedas corren-tes. Qualquer pasteleiro ignorante, em trocade uma fava seca, oferece-nos uma infinida-de de juízos edificantes. Os livros que seamontoam pelas bibliotecas estão repletos deadvertências que ninguém segue e recomen-dações que ninguém ouve. Ora, que faria eucom um conselho a mais a perder-se no tu-

Page 93: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

multo de meus pensares?Prefiro, portanto alenda. Aceito-a e desejo ouvi-Ia.

- Julgo muito acertadaa escolha - opi-nou com entusiasmoo mestre-escola.A jus-tificaçãoquea precedeufoi magnífica.Vamosouvir a lenda adorável e profunda que essenobre amigo vai narrar!

E ajuntou pesaroso:- Que penanão termos aqui dois ou três

músicos para acompanhá-Io!- lallah! - acudíu risonhamente o meu

hóspede. - Que pressaé essa?A lenda quepretendo contar-te, como retribuição pelqsboashorasque aquipassei,intitula-seAs SetePontas do Quadrado e é uma das históriasmais assombrosas do mundo. Deveria ser nar-rada para uma multidão que compreendesse,no mínimo, cinco mil quatrocentas e trinta enove pessoas I Repara bem: Essa lenda notá-vel, o maior tesouro literário do mundo, de-veria ser ouvida, repito, por cinco mil quatro-centos e trinta e nove pessoas I Sei, porém,que esta casa não comporta os cinco mil qua-trocentos e trinta e nove ouvintes. Por essemotivo, estou disposto a fazer uma conces-são toda especial. Contarei a lenda logo quepossas reunir aqui, nesta sala, cinco ouvintesl

lezid, o mestre-escola, riu gostosamente:- Pelaglória de Salomão! Queextraordi-

nária condescendência! O nosso ilustre e elo-qüente amigo Zualil concede o privilégio ex-cepcional de narrar aqui, para cinco convida-dos, a lenda que deveria ser ouvida por cincomil quatrocentos e trinta e nove pessoas! Foinotável a redução feita no total exigido.

- Torna-se, pois, necessário convidarmaistrês pessoas?- insisti com bom humor.

- Decerto que sim - confirmou Zualil -vai procurar, pelosarredores,ao longo daes-trada, no caravançarájunto à ponte, nas ca-sasvizinhas, três conhecidos teus e traze-osaqui. Logo que os cinco estiverem reunidosdarei início à lenda.

Pelasegundavez assaltou-meo desejodedespedir o hóspede sem lenda e sem maisconversa.

Quecaprichotolol Exigirque o dono daca-sa saíssea procurar pelavizinhança três pes-soasque estivessem,naquelahorada manhã,dispostasa ouvir uma narrativafantasiosa. Omelhor seria optar pelo conselho e abando-nar a lenda.

- Reunir cinco pessoas? - acudiu omestre-escolaolhando fito no egípcio. - Éfacilimo. Conheço muita gente neste bairro.

E puxando-mepelo braço animou-mesibi-lante:

- Vamos, meu amigo! Estou interessadoem ouvir a lendadasSete Pontasdo Quadra-do. Deve ser muito curiosaI E digo-te, comquanta seriedadeem mim me cabe, até hojeninguém conseguiu traçar essafigura que atal lendanospromete:Um quadradocomsetepontas! Deixaos ouvintes por minha contaITrago aqui uma legião de curiososl

Aquelas considerações do taleb con-venceram-me. Resolvi atender à exigênciado egípcio e saí, acompanhado do mestre-escola, em buscados ouvintes que deveriamcompletar o total exigido.

Eis o que sucedeu:

95

Page 94: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

42~ Narrativa

Continuação da história do hóspede miste-rioso. O burriqueiro impassível e a noiva domestre-escola.

Das Mil HISTÓRIASSEMFIM...é esta a quadra-gésima segunda.

Não te alegres senão quando praticares obem.

Lida a quadragésima segunda restam, ape-nas, novecentas e cinqüenta e oito.

Tomada a resolução não mais refleti sobrea exigência frívola e infantil formulada pelosingular egípcio. Vesti-me num abrir e fecharde olhos, enrolei na cabeça um turbante qual-quer, à cintura prendi minha bolsa de passeioe, seguido pelo talebl lezid. deixei a casa efui para a estrada de Bagdá. Que pretendía-mos naquela manhã de sol? Realizar tarefa ur-gente? Concluir rendoso trabalho? Nada deútil; nada de aproveitável. A nossa intençãoera encontrar três pessoas que se dispuses-sem, naquela hora, a ouvir em nossa compa-nhia a lenda intitulada As Sete Pontas doQuadrado, que o extraordinário Zualilme ofe-receu como retribuição pelas atenções rece-bidas.

Não muito longe, antes de passarmos peloprimeiro grupo de casas, paramos sob uma

- Taleb - Professor. Mestre. Homem de cultura.

96

esplêndidafigueiraque estendia, em redor deseu tronco nodoso, um largo tapete de som-bras. O sol já ia quase a pino.

A pequena distância surgiu um modernoburriqueiro levando pela rédea o seu muarnum toque-toque cadenciado de homem fe-liz que não se preocupa com o desenvolverdo tempo.

- Chama-o - sugeri, sem hesitar, aomestre-escola.- É bem possível que aquelecamarada esteja agora de folga e não se re-cuse a servir-nos.

- Olá! OláI - chamou o taleb com vivainsistência. - Pára aí! Escuta, vem cá,burriqueiro!

Mas o rústico não alterou a marcha de seucaminhar.Inteiramentealheioaos apelos con-tinuou, impassível,no mesmo rumo. Aqueladisplicênciasurpreendia-nos.É lápossívelquepossa ocorrer tal coisa?O taleb foi-lheao en-

Page 95: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

calço. Defrontaram-se, afinal. Fiquei de lon-ge como simples espectador da cena, aobservá-Ios. Percebi que ambos discutiamcom gestos estabanados. Pelo que pude per-ceber, o mestre-escola insistia no convite; oburriqueiro recusava com decisão, ora apon-tando para o céu, ora abrindo os braços, emdesalento, como um caravaneiro fatigado.Decorrido algum tempo, o burriqueiro pros-seguiu em seu caminho e o taleb voltou a pas-so lento e de cabeça baixa como quem se sen-te irremediavelmente arrasado por um fracas-so deplorável.

- Que houve, afinal? - perguntei-lhe. -O homem recusou?

O taleb parou diante de mim e encolheutristemente os ombros sem nada dizer. Emseus olhos, transparecia um mau humor irre-primível. Por fim, respondeu-me:

- Achei-me, sem querer, envolto em gra-ve equívoco. Percebendo que o beduíno in-sistia em não atender aos meus chamados,segurei-o pelo ombro, fi-Io parar e gritei-lhede cara a cara: "Preciso agora de ti, ó irmãodos árabesl" Arregalou os olhos, mediu-memuito sério da cabeça aos pés e respondeu-me num tom de lástima: "As melancias ain-da estão verdes. Dentro de quinze dias pas-sarei aqui." Aquela resposta, sem nenhumarelação com o meu pedido, pareceu-me gra-cejo de mau gosto. Repliquei com azedume:"Não me interessam as tuas melancias.Guarda-as para a tua sogra. Estás com muitapressa? Queres prestar-me um pequeno ser-viço? Será de meia hora no máximo e rece-berás generosa recompensal" Tornou o bur-

riqueiro com ar estúpido, erguendo os braços:"Não o vi ainda, mas o ímã2 da mesquita éirmão de meu cunhado!" Surpreendeu-me,de novo, tão disparatada réplica. Estaria dian-te de um demente? Pretenderia o imbecil zom-bar de mim? Isso não pode ficar assim, dissede mim para mim C0m inabalável firmeza. Epela terceira vez, já meio nervoso e irritado,interpelei, aos berros, o burriqueiro: "Deixaem paz o ímã da mesquita! Nada pretendo doirmão de teu cunhado! Preciso de ti, agora.Ganharás cinco dinares e terás direito à ceia.É só para ouvir uma lenda! Ouvir uma lenda.Nada maisl" Fitou-me muito sério, com a

. máscara de rancor no rosto pálido edesculpou-seabrindo os braços: "Adoeci emMossul e acordeidoisdiasdepoiscom as bo-tas vermelhas do joalheirol" Aquela frasesugeriu-mea única explicaçãoaceitávelparao desentendimento. O burriqueiro era surdolDeploravelmentesurdol Suasrespostas,apa-rentementesemnexoe sempropósito,só po-deriam satisfazera certas perguntas que eleimaginavaou admitia que eu tivesse proferi-do. É claro que um surdo não pode servir deouvinte. O egípcio não o aceitaria. Deixei-o,pois, seguir tranqüilo.

- Meu caro mestre-escola - observei ar-rastando as palavras com grave entono. -Tudo isso que acabasde contar, em teu sin-gular encontro com o burriqueiro, merecia o

2 - Im6 - Desempenhao imã, no Islã, o papel dezelador da mesquita. Sem ser propriamente um sacer-dote no sentido católico, é encarregado de ler a precena mesquita.

97

Page 96: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

qualificativo de "espantoso". Procura anali-sar com atenção o episódio. Interpelas umburriqueiro surdo e ouves frases sem nexo,respostas incongruentes. Parece-me que se-ria altamente interessante esclarecer, à luz darealidade, o seguinte: Haverá pergunta à qualo burriqueiro responderia: "Não o vi ainda,mas o imã da mesquita é irmão de meu cu.nhado?" Que pergunta seria essa? Para a ter-ceira frase não encontro justificativa alguma:"Adoeci em Mossul e acordei, dois dias de-pois, com as botas vermelhas do joalheiro."Não seria curioso apurar a que indagações po-deriam satisfazer esses informes tão extrava-gantes?

Ia o mestre-escola gaguejar uma explicaçãofantasiosa para o enigma do burriqueiro sur-do, quando vimos surgir, a pequena distân-cia, caminhando para o nosso lado, com pas-sos leves e rápidos, duas mulheres. Velavam-se ambas com os seus espessos haics. Umadelas, a mais alta, arrastava pela mão utnacriança morena e quase nua. Trazia a outra,no braço, um grande cesto a transbordar defrutas, peixes e verduras.

- Convidemosaquelas mulheres - reco-mendei em voz baixa ao mestre-escola. - É

bem possivel que elas não sejam surdas e pos-sam atender ao nosso apelo. O pequeno com-pletará o número de ouvintes exigido peloegipcio.

- BemlembradoI - anuiu o taleb - umauditóriocom duas jovens beduinase um ino-cente garotinho será muito agradável aoegipciol

98

Isto dito, caminhou decidido, em linha re-ta, ao encontro das embuçadas.

Ocorreu, porém, um acidente lastimável.Ao atravessar a estrada, o mestre-escola, naprecipitaçãocom que se dirigiapara as bedui-nas, tropeçou num galho seco e foi ao chão.A jovem que conduzia o pequenino, ao vero meu amigo estatelado na areia, riu gosto-samente. A outra levou as mãos aos olhos,num gesto que denotavasusto e aflição.Een-quanto o mestre-escola se levantava do de-sastroso trambolhão e sacudia os braços pa-ra se livrarda terra, as filhas-de-evaapressa-ram o passo e afastaram-se de nós.

- Nãopoderemosdetê-Iasmais - lamen-tei. - Já vão "longe.Que pena!

E indaguei solicito ao companheiro:- Machucou-se?- Nada - explicou o taleb com expres-

são que demonstrava certa alegria e altivez.- A queda foi proposital. Ao me aproximardas duas jovens embuçadas reconheci-as. Amais alta, a que trazia o garotinho, chama-seSamira3 e é casada com um malabarista; e aoutra... - Fez uma ligeirapausa e concluiucomo se revelasse grave segredo de sua vi-da: - A outra, pretendo pedir em casamen-to dentro de uma semanal Chama-se Edna.É minha futura noiva! Se Alá quiserl

Aqueladeclaraçãodeixou-meno simumdaconfusão. Se o mestre-escolareconhecera asduas jovens, por que não as convidara? Co-mo explicare justificara queda diante de suaamada, em plena estrada?

3 - Samira - Veja a 21~ narrativa.

Page 97: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii
Page 98: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Ao atravessar a estrada, o mestre-escola tropeçou num galho seco e foi ao chão. A jovem queconduzia o pequenino, ao ver o meu amigo estatelado na areia, riu gostosamente. A outra levouas mãos aos olhos, num gesto que denotava susto e aflição. (pág.98)

Page 99: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

- Seria indelicado convidar moças de mi-nha amizade para ouvir lendas contadas porestrangeiro desconhecido. Aproveitei a opor-tunidade para certificar-me do amor de minhaeleita. Atirei-me ao chão simulando uma que-da. Se Edna risse de mim é porque eu teriaparecido ridículo diante de seus olhos. Ora,o verdadeiro amor é cego para o ridículo e pa-ra os defeitos. Só tem olhos para as atitudesnobres, para os gestos dignos, para as quali-dades que exaltam. E Edna não riu. Com ges-to natural lamentou a minha queda. Posso,pois, confiar em seu amor.

Achei que não seria oportuno discutir, na-quela ocasião, com o mestre-escola. Percebique nele latejava o ardor imaginativo dos apaí-xonados. Admiti como verdadeira a teoria deque o namorado, rolando por terra de pernaspara cima, diante de sua amada, poderia co-lher' prova segura do verdadeiro amor.

Vendo-me pensativo, o mestre-escola, queera um incorrigível palrador, pôs-se a discor-rer sobre o amor:

- Grande coisa é o amor, grande e abso-luto bem para a vida e para a morte! Tornaleve o que é pesado; esclarece o que nos pa-rece sombrio e apaga as tristezas de nossoscorações. Aligeira os sofrimentos que nos tor-

turam e faz desapareceremas mágoas quenos entenebrecema existência. Oamor querser livre e alheio a todos os interessesmate-riais. Paradominar a vida procura colocar-seacima da própria vida. Nadamaisdoce, nadamaisforte, nadamaissublimedo que o amor.O amoré o acabamentocom que Deusachouacertado dar por finda a perfeição de Suaobra!

Cortei as considerações sentimentais donoivo de Edna dizendo:

- Tratemos, sem perdade tempo, de ob-ter os três ouvintes para a lenda. Deixemospara mais tarde essas digressões sobre oamor. Nãote esqueçasde que o egípcioestáem minha casa à nossa espera. Em vez deapelarmosparaos passantesdesconhecidos,que a esta hora escasseiam,~ais eficiente emais seguro, a meu ver, seria convidarmospessoasde nossaamizade. Aqui perto morao corretor Chafid Bechara.Émeu amigo. Va-mos procurá-Io. Será o nosso primeiroouvinte.

O talebaceitou, maisuma vez,a minha su-gestão e seguimos para a casa do corretorBechara.

Vou contar o que deestranhonos ocorreu.

101

Page 100: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

43~ Narrativa

Ainda a aventura do hóspede misterioso. Obotânico fala das flores e um jovem foge comoum louco ao ouvir uma canção.

Das MILHISTORIASSEMFIM...é esta a quadra-gésima terceira.

Fazer sempre o bem e ter-se em pouco é si-nal de alma humilde.

Lida a quadragésima terceira restam, apenas,novecentas e cinqüenta e sete.

Não muito longe, numa pequena casasemi-oculta entre viçosos limoeiros, residiaocorretor Chafid Bechara. Erahomem corpu-lento, alto e direito de tronco, de um morenocor de barro, rosto redondo e olhos vivos.Recebeu-nos em. sua sala de trabalho.Amontoavam-sepelo chão amostrasde mer-cadorias, sacos de cereaise caixas a trans-bordar de sementes.

Mais de uma vez eu tivera a oportunidadede oferecera Becharatransaçõesbemvanta-josas.

- Que negócio temos para hoje? -perguntou-me com indisfarçável bom humor.- Algum terreno para vender? Uma boa ca-sa para alugar?

Apressei-me em responder:- Não cogito, no momento, de negócio

algum. A nossa visita tem objetivo inteiramen-te diverso.

102

E sem mais preâmbulos, pois o tempo meparecia escasso, contei-lhe, tintim por tintim,tudo o que ocorrera em minha casa desde achegada do egípcio, as singularidades de meuhóspede e a promessa da lenda surpreendente(As Sete Pontas do Quadrado) que mereciaser ouvida por cinco .mil quatrocentas e trin-ta e nove pessoas I

E rematei a parlenda com o convite:- Precisamos de ti, meu caro Becharal

Serás um dos cinco ouvintes. Vamos para ca-sa. O eloqüente Zualil aguarda a nossa che-gada para iniciar a narrativa. .

Surpreendeu-nos o corretor com uma es-trepitosa risada.

- Que ingenuidade atual - proclamou,em tom de menosprezo, sacudindo os om-bros. - Andas pelas ruas, importunas os ami-gos, perdes um tempo precioso, e tudo parasatisfazer o capricho de um hóspede imbecil.

Page 101: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

E querem, ainda, que eu colabore nessa ga-Ihofa ridícula? Que fantasia I Tenho mais quefazer. Julgas então que eu deixaria minha ca-sa, abandonaria meus interesses, para ir ou-vir sandices e baboseiras de um aventureiroque pretende falar sobrte As Sete Pontas doQuadrado?

Fez pequena pausa. O mestre-escola, comimpaciência mal reprimida, ouvia, impassível,as arrogantes e indelicadas palavras docorretor.

Aquela recusa desatenciosa do Becharairritou-me. Sem conter as expansões de mi-nha revolta, revidei com energia:

- Surpreende-me a tua maneira sórdidae material de encarar a vida. Triste daqueleque só se preocupa em garrhar dinheiro, quese torna escravo do ouro. Precisamos, dequando em vez, abrir uma janela para o So-nho e para a Fantasia. Ignoras o valor das len-das? Há lendas que encerram profundos en-sinamentos, sábios conselhos e judiciosas ad-vertências. O povo árabe tornou-se notávelpor seus contos maravilhosos que o mundointeiro lê e admira. Só mesmo os espíritos ta-canhos, envenenados pelo mais ignóbil utili-tarismo, seriam capazes de negar o relevantepapel que as lendas têm desempenhado noaperfeiçoamento da humanidade. Aquele,pois, que exalta as lendas edificantes e as di-vulga, realiza obra altamente meritória. Vimosaqui solicitar um diminuto auxilio, um peque-no obséquio de tua parte. E somos repelidospor ti com agressiva má vontade.

A minha réplica, pronunciada com decidi-da energia, calou fundo no espírito do corre-

tor. Ficou a meditar em silêncio durante al-gum tempo. Reconheceu, decerto, a levian-dade que praticara e tornou benevolente:

- Não tomes por grosseria ou desatençãoa minha recusa. Os graves deveres de minhaárdua profissão prendem-me aqui. Não pas-so de mísero escravo de minhas obrigações.Respondo, como bem sabes, não unicamen-te por mim, mas por todos aqueles que con-fiam em mim. Afastar-me do trabalho seriadescuidar-me dos interesses alheios. Dessafalta jamais serei acusado. Não quero, porém,que tu e o teu amigo - e apontou para omestre-escola - me tomem por imprestável.Vouchamar doisauxiliaresde minhaconfian-ça que irão, com o maior prazer, ouvira len-da do egípcio.

E Bechara saiu de uma pequena porta quemalse distinguiano fundo da sala. Passadosrápidos instantes, reapareceu acompanhadode dois homens de aparência distinta e cor-retamente trajados.

Umdeles, alto e esguio, era um tipo, real-mente, digno de atenção. Fisionomiasimpá-tica, sorridente, picado de bexigas, tinha atesta larga e olhos muito azuis. O outro, bai-xinho, já outoniço, carão sobre o comprido,era completamente calvo e tinha a pele dorosto encarquilhadapor uma infinidadede ru-gas que subiam e desciam em todos ossentidos.

Proferidas as saudações de praxe (salãalei-kuml Aleikum asalãl) Bechara informou:

- Este aqui - e apontou para o cavalhei-ro alto de olhos azuis - é o meu calculistaDerak. Faz contas e resolve.problemascom

103

Page 102: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

extraordináriarapidez.Sepretendovenderoucomprar alguma coisa assaltam-mesempredúvidas e incertezas. Qual será o preço jus-to? Que lucro podereiobter nesta ou naquelatransação? Recorro, em tais circunstâncias,ao talentoso Derak, o matemático, que tudoesclarece, calcula e elucida com absolutaprecisão.

O matemático, lisonjeado pelos honrososelogios do chefe, inclinou ligeiramenteo ros-to em sinal de agradecimento.

Feitaligeirapausa,o corretorachouque lhecompetia apresentar-noso outro, o tipo bai-xinho:

- Esteoutro que aquiestáé o notávelbo-tânico EsbemKetum. As plantasque crescempeloscantosdo mundo nãotêm segredospa-ra ele. Paraesta raiz retorcida, ou paraaque-la semente sem cor, é capaz de apontar aspropriedadesmedicinais, a idade, a maneirade aproveitar e os atributos mágicos. Éautorde quinzevolumessobrea linguagemdasflo-res, assunto em que é eminentissimo.

- Eessesvossosilustresauxiliares- acu-diu, com sofreguidão, o mestre-escola- es-tarãodispostosa ouvir a lendaque vaiser nar-rada pelo misterioso egípcio?O xeque exigiucinco ouvintes, masdeclarouque a lendade-veria ser ouvida por cinco mil quatrocentas etrinta e nove pessoasI

- Teremos nissoo maior prazer - retor-quiu prontamente o calculista. - Se no de-correrda narrativasurgir algum problemaem-penhareitodos os meus esforços no sentidode resolvê-Io. Ouço, por exemplo, aludir aonúmero de cinco mil quatrocentos e trinta e

104

nove! Exprimeessenúmero um produto no-tável. Se multiplicarmos setecentos e seten-ta esete por setevamosobter essetotal indi-cado: cinco mil quatrocentos e trinta e no-ve.1Para os cristãos o número sete goza devirtudes e atributos especiais.Perguntaram,certa vez, a Jesus, filho de Maria: "Senhor,quantas vezespoderá pecar meu irmão con-tra mim que eu lhe perdoe?Serásetevezes?"RespondeuJesus, com suasabedoria: "Nãote digo que até sete vezes, mas que até se-tenta vezes sete vezesl"

Vendo que aquelapalestrase alongava in-terminavelmente com cálculos e contas queeu não compreendia, achei mais prudentecortá-Ia, e disse nervoso:

- Voltemos sem perdade tempo paraca-sa. Não devemos abusar da paciência dequem aguarda o nosso regresso.

Deixamosa residênciado corretor Becha-ra. Éramosquatro: o mestre-escola,o mate-mático, o botânico e eu. Faltavaapenasumpara completar o total exigido pelo narrador.

Não foi difícil encontrá-Io.Ao passarmosjunto de um muro coberto

de hera, que se erguia um pouco depois dacasado corretor, demos com um jovem ma-gro, pobremente vestido, que descansava,sentado numa pedra, com o rosto apoiadonas mãos. Vestia uma blusa, mais esfranga-Ihadado que a túnica de um mendigo. Pelabarba de quinze dias, pelas mãos calosasepelos pésdeformados pareciapessoade bai-xa extração.

1 - Parao número5439temos:5439= 7 x m.

Page 103: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Saudei-o atenciosamente e perguntei-lhe:- Queres ir, agora, em nossa companhia,

ouvir uma lenda?O rapazarrancoualgumasfolhinhasde hera

e esmagou-as entre os dedos. Quedou-se aolhar para mim numa expressão aflitiva, erespondeu-me:

- Só ireiouvira lenda se me'deres, antesde mais nada, duas fatias de pãol

- Terás o pão que quiseres - declareicomar risonhopara incutirânimoao faminto.

Epuxando pelas vestes esfarrapadas apon-tei:

- Vem, meu amigo!Levantou-seo jovemda túnica esfrangalha-

da e anexou-se ao nosso grupo. Éramos, na-quele momento, em número de cinco. Nãohaviatempo a perder. Seguimosa passos lar-gos pela estrada.

Durante a caminhada o ilustre Esber Ke-tum, o botânico, prendeu-nos a atençãodeliciando-nos com preciosas informaçõesalusivas a todas as plantas e árvores que en-contrávamos. Encantou-nos ao discorrerso-bre as flores. Algumas indicações conserveiem minha desbotada memória:

- Nãoé só peloexpressivoarranjode suaspétalas, pelo inebriante perfume que exalame pelo coloridocom que se enfeitam que asflores nos atraem. Apresentam-nos outros-atributoscom que se impõemao nosso estu-do e à nossa admiração. Umatem proprieda-des medicinais;outra recorda o episódio fa-moso da história. Muitas apresentam certasfunções misteriosasdignasda atenção dos sá-bios. Há flores que simbolizamvirtudes; há

as que traduzem legendas e exprimem pen-samentos e anseios do coração. Os antigospagãos, queira Alá esclarecer esses infiéisl,consagravam a seus deuses e honravamseusheróis com diferentes flores. Os ídolos eramenfeitados com flores. Nasflores \1ãoos poe-tas buscar inspiração. Têm sido elas canta-das pelagente simplesdo povo. Cantaré, pa-ra as almas bem formadas, a maneira gentilde axaltar, aplaudir, elogiar, enaltecer esonhar.

o teu sorriso é uma flor,Vivo com ele no peito;Sorriso de amor-perfeito,Se n60 de perfeito amorl

- "N60 me esqueçasl N60 me esqueçasl"Clamaa rosa em meu jardim.- Eu é que n60 digo nadaA quem se esquece de mim.2

Ao ouvir essesversostão delicadoslembrei-me das trovas que o egípcio cantara em mi-nha casa. E pus-me a recordá-Ias:

Saudade, flor que despertaTristeza no coraç60;Saudades dos que se foramDos que n60 voltam mais, n60!

N60 choro por me deixaresQue o jardim mais rosas tem;Choro por n60 encontrares,Quem te queira tanto bem!

2 - Meira Pena, BotOnicaPitoresca.

105

Page 104: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Ocorreu, nessemomento, um episódioquenos causou profunda surpresa. O jovem datúnica esfrangalhada,quese conservavanummutismo de manfaco,abeirou-sede mim co-mo um ébrio,.passou-meos olhos dos pés àcabeça, segurou-mepelo braço e ganiu comindizfvel aflição:

- Com quem aprendeste esta canção?Onde a ouviste?

- Oraessal - exclameitomado de indis-farçável espanto. - Quevês de estranho ousurpreendente nessa canção?

Econtei-lhe (poisnãovia motivo paraocul-tar a verdade) que ouvira aquelesversos deum egfpcio, chamadoZualil; meu hóspede.Eacrescentei, fitando-o meio grave e meioalegre:

- Eleestá em minha casa e logo que láchegarmosvai nosdeliciarcom a narrativadeuma prodigiosa lendal

Ouvidasessaspalavraso rapazdeu um sal-to para o lado, arrancou o turbante, atirou-oao chão e sem pronunciar palavra ou o me-nor gesto de despedida,desatoua correr co-mo um bedufnoperseguidopor um bando depanteras negras do deserto.

Ficamosestupefatos. Paraa estranha ati-tude do jovem não achávamos explicaçãosatisfatória.

- Éummanfacol- opinou o mestre-es-cola com ar compungido.

- Na vida dessemoço - arriscou o ma-temático - existe um dramal Resta desco-brir a relaçãoentre a tragédia que o envene-na e a canção que o perturbal

106

Depois de um minuto de circunspecçãoopinou o velho botânico:

- Nãoadiantacomentaro caso.Todasasconjecturas feitas a tal respeitosairão inúteise talvez erradas.O que se apuraé, em suma,o seguinte: Um jovem, de aparênciasimplese humilde, é convidado a tomar parte numareunião.Aceita o convite e dirige-se,com umgTupode amigos, para o local marcado. Emcaminhoouve, casualmente,umacanção.Ar-rancao turbante e foge de nós numacarreiraalucinadal

- Que faremos agora? - ponderou omestre-escola.- Lásefoi o nossoquinto ou-vintel Estamosnovamente reduzidosa qua-tro e o egfpcio.exigiu cinco.

- Nãonos preocupemoscom isso- acu-diu o matemático. - De cinco para quatroa diferença é só de uma unidade. E não serádificil obter o quinto ouvinteI

Seguimos, rapidamente,paracasa. Recos-tado ao portão avistei um homem modesta-mente vestido.

Eraum cego que eu costumava encontraresmolando no mercado ou no pátio da mes-quita. Saudei-ocom simpatiae perguntei-lhe:

- Esperasalguém, meu amigo?Respondeu-meo cego:- A pessoaque se achavanesta casafoi

obrigada a partir e pediu-meque aqui ficassede vigia, até o dono regressar.

A inesperadadeclaração do cego deixou-me estupidificado. Caiu-me a alma aos pés.O meu hóspedepartira e deixaraum cegovi-giando a minha casa. Um fmpeto de cóleraapoderou-sede mim. Paraatender a um de-

Page 105: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

sejo do aventureiroeu andara, como um pa-lhaço, a procurar "ouvintes" para a tal len-da. Durante a minha ausência ele desapare-cera e deixara-me em situação ridícula diantede pessoas que haviam confiado em mim.

- O tal egípcio não passa de um tratantel

- repisei revoltado. - As minhas descon-fianças não eram, afinal, infundadasl

- Lá vem elelEtinha razão. EraZualil,o eglpcio, que ca-

minhavaapressado como se viesse a algumaimportante missão.

107

Page 106: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

44~ Narrativa

Ainda o hóspede misterioso. Na qual o egíp-cio exalta e reabilita os cegos.

Das MILHISTCRIASSEMFIM...é esta a quadra-gésima quarta.

Não há no mundo ninguém sem alguma atri-bulação da angústia, seja ele rei ou califa.

Lida a quadragésima quarta restam, apenas,novecentas e cinqüenta e seis.

Quando Zualil se aproximou do portão, on-de eu me achava em companhia dos quatrohomens, não pude dominar a minha exaspe-ração. Exprobrei-Ihe a forma incorreta e levia-na com que procedera durante a minhaausência. .

- Para atender à tua exigência descabida- disse-lhe com desagrado - fui com omestre-escolaem busca de três ouvintes pa-ra a tal lendaque pretendiasnarrar;trouxe co-migo dois sábios famosos - e apontei paraos auxiliaresdo corretor Bechara- assegurei-Ihesque estavasà nossa espera. Equalnãofoi o meuespantoao verificar que haviasido,como um cameleiroem dia de folga, vaguearpelosarredores. Eo mais grave, ainda, é queesta casa, entregue aos teus cuidados, dei-xaste inteiramente abandonada, ou melhor,sob avigilânciainútil de um cego. Nãome pa-receque este homem - e apontei parao ce-go - que vive mergulhado nastrevas da ce-

108

gueira, seja o.vigia mais indicado para zelarpela moradia e pelos bens de um amigo.

O egípcio ouviu impassívelas acres invec-tivas que eu proferia com estouvadodesabri-mento. Edisse,arrastandoa voz com a sere-nidade de um dervixe:

- Sinto discordarde ti maisumavez. Nãopratiqueileviandadealgumanemaceitoaacu-sação de imprudência ou descaso. Increpasum amigo antesde ouviresasrazõese os mo-tivos que o levarama procederda forma quete pareceerradaou censurável.Vou contar-te o que sucedeue verás se devo ou não serinteiramente absolvido da falta por que mecondenas.

"Achava-me aqui, neste portão, à tua es-pera, quando vi passarum velho marceneiroque eu conhecera.Eraum homembom e díg-no que me auxiliaraem viagem. Pareceu-meaflito. Chamei-oe perguntei-lhe se precisava

Page 107: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

de alguma coisa. Com voz angustiadarespondeu-meque saírade casaem buscaderemédios para o filho mais moço que adoe-cera de repente. Disse-lheentão: 'Conheçoa medicina; tenho grande prática na cura demoléstiascrônicase agudas. Irei socorrerteufilho.' Alegrou-se o pobre pai. Havia, porém,uma dificuldade. Comodeixar abandonadaÇIcasade meu amigo?Nessemomento avista-mos este cego que passavaapalpandoo chãocom o seu pesado bastão. 'Aquele homem,pensei, poderá substituir-me enquanto vousocorrero enfermo!' Abordado por mim e in-formado de tudo, o cego prontificou-se aservir-me. 'Podes partir tranqüilo', disse-me,'e nãote preocupescom a casaqueficarásobmeucuidado.' Não tive, pois, dúvidaalgumaem deixartua casavigiada pelo cego. Era pes-soa que me inspiravaconfiança. Ninguémde-sempenharia melhor tão delicado encargo. Ocego, apesar das trevas que o rodeiam, per-cebe a vida, ouve o que se passa em redor.Faltando-lhe os sentidos da vista, apura e de-senvolve todos os outros. Reconhece as pes-soas que dele se aproximam; os lugares poronde passa; as coisas mais simples que o ro-deiam. Tem por norma a prudência, aliadaàcordura e à moderação. É cauteloso no agire no falar. Sabe como se defender; orienta-se com segurança, pois a sua bússola é a in-teligência esclarecida pela luz do raciocínio.Na incertezado terreno evita pisaremfalso.Há cegos mais cautelosos do que o videntemais precavido.

E como eu o fitasse com obstinada descon-fiança ele prosseguiu:

- Queres a prova de que este cego mere-cia a confiançaque neledepositei?Elenos vaidizer quais foram as pessoas, que durante anossa ausência, passaram por esta rua.

Respondeu o cego baixando o rosto e fa-lando pausadamente:

- Notei que cruzaram esta rua um burri-queiro surdo, duas mulheres, uma delas con-duzia uma criança, um pescador e dois mú-sicos.

Acudiu Zualil com entusiasmo:- Aí está a proval Nada lhe passou des-

percebido! Estava sempreatento e vigilante.Quem melhor poderia zelar pela segurança detua casa? Afastei-me daqui, é verdade; masassim o fiz para socorrer uma criança em pe-rigo de vida. Salvei-a. Estou satisfeito. Quejuiz seria capaz de me condenar?

Nesse ponto Derak, o matemático, ob$er-vou dirigindo-se ao egípcio:

- A tua forma nobre e correta de proce-der S9pode merecerelogios de nossaparte..Dirão os irrefletidos que confiaste num cego.A pior cegueira, a meu ver, não é aquela queanuvia os olhos, mas sim a outra - a queobscurece a alma!

E voltando-se para o mestre-escola (que seachava a seu lado) interpelou-o:

- Conhece a história do burro amarelo eos cegos de Bagdá? - E a seguir, numa con-sulta aos presentes, indagou: - Queremouvi-Ia?

- Sim, sim - respondemos em"coro.E, na verdade, Quemnão gostaria de ouvir

a história do burro amarelo e os cegos deBagdá?

109

Page 108: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

- Entremosprimeiro- disse eu logo. -Nada de cerimônias.

levei todos os amigos (inclusiveo cego)para a minhasala. Convidei-osa sentarem-se.

11ü

Ebem acomodadosem maciostapetes, pu-deram ouvir a narrativa do matemático.

O ilustre calculista assim começou:

Page 109: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

45~ Narrativa

História do vizir Dahriman e de seu curiososistema de contar populações.

Das MILHISTORIASSEMFIM...é esta a quadra-gésima quinta.

Suavemente descansarás se o teu coraçãonão te repreender.

Lida a quadragésima quinta restam, apenas,nowcentas e cinqüenta e cinco.

Ao repousar, como de costume, na sober-'ba varanda de seu palácio, em Bagdá, o cali-fa Harun AI-Raschid' foi assaltado por umsonho impressionante.

Sonhou o bom monarca que se achava a. deambular,sozinho,por umaregiãodesertae sombria. De súbito, surgiram três 'panterasnegras que investiram ameaçadoras. Seus ui-vos ferozes abriam sombras no silêncio datarde.

O monarca, vivendo a agitação do estranhosonho, pensou em fugir daquela regiãosinistra.

Era impossfvel. A seus pés abria-se, esca-vado nas pedras, um abismo trevoso onde aMorte implacável espreitava o viandante in-

1 - HarunAI-Raschid- Tornou-sefamosoporapa-recer citado em muitas passagens das "Mile uma noi-tes", Foiamigode CartosMagno.dispensavagrandesim-patia aos cristãos, Protegeu os sábios e os artistas. Erageneroso e valente.

cauto. Já as feras se aproximavam arquejan-tes do rei quando um cavalheiro, poderosa-mente armado, veio, destemido, em seuauxilio.

O temerário guerreiro tomou o rei em seusbraços possantes e o arrebatou dali. Com in:..dizfvel assombro, observou o rei que as ves-tes e as pesadas armaduras do djinr salva-dor apareciam cheias de inscrições e figurasmatemáticas.

Ao despertar, na manhã seguinte, o Emirdos árabes, sentindo a nitidez marcante deseu sonho, recordava-se muito bem do cava-lheiro que o livrara das panteras; revia-o comsua túnica cheia de números, com seu escu-do prateado, onde rebrilhavam arabescos fei-tos de letras e algarismos.

2 - Djim- Gêniobondoso. dotado de poderes so-brenaturais.A existênciados djinss6 é aceita pelas clas-ses incultas.

111

Page 110: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

A inquietação, com o bater aflitivo de suasasas negras, invadiu o espírito do rei.

S6 um sábio, divinamente inspirado no Li-vro do Saber Sem Limites:' seria capaz deelucidar aquela dúvida e desvendar o mistério.

Mandou, pois, o rei viesse à sua presençao esclarecido taleb Farid Ben-Farid, que sedestacava entre os grandes ulemás (Alá, po-rém, é mais sábiol).4

Interrogado pelo monarca, assim falou oeminentíssimo xeque:

- Esse sonho, 6 Rei do Tempol, apresen-ta, a meu ver, explicação clara e simples. Maissimples do que o riso da inocência e mais clarado que a água da fonte do Zemzém.5 As trêspanteras negras que investiram ameaçadorassimbolizavam, sem dúvida, os inimigos da-quele que administra o Estado: a Imprevisão,a Desorganização e a Dissipação. Se o admi-nistrador é incapaz de prever, incapaz será,também, de organizar, com eficiência, os ser-viços públicos. Não poderá, portanto, agir,com segurança, a fim de evitar as despesasinúteis, os gastos improdutivos, os desvioscriminosos - as dissipações, enfim.

- E como poderá o rei supervisionar osmúltiplose complexosproblemasadministra-tivos?

3 - Livrodo Saber Sem Limites- Alcorão.4 - O muçulmano não alude ao nome de um sábio

sem acrescentar: "Alâporém, é maissábio (doque essedo qual estou falando)1Reconheceo islamitaa precarie-dade da ciência humana.

5 - Zemzém- Fontesituadaem Meca,veneradape-los muçulmanos. Suas âguas foram abençoadas peloProfeta.

112

Cumpria ao ulemá esclarecer o soberano.E fê-Io em tom claro e em termos bem pre-cisos:

- É fácil. Basta conhecer os recursos bá-sicos do país, suas riquezas, suas possibilida-des, suas populações. Todos esses elemen-tos importantíssimos são expressos, em últi-ma análise, por meio de números. Um númerodirá quantos estrangeiros vivem nesta ou na-quela cidade; indicará outro número qual aprodução máxima do trigo e das tâmaras; ou-tros números mostrarão, por meio de certoscálculos, que relação poderá existir entre opreço do camelo e a massa de peregrinos quese dirigem à Cidade Santa. Os valiosos dados,que tanto interessam ao bom administrador,nada mais são do que números inteiros ouquebrados, medindo grandezas ou exprimin-do relações. Já houve, em longínquo país, umfil6sofo que disse: "Os números governam omundo."6 Poderíamos imitar esse pensadore concluir esta belíssima legenda: "Sem osnúmeros não é possível prosperar o Estado."O singular djim, com o seu albornoz enfeita-do de números e f6rmulas matemáticas, en-frentando com destemor as feras e galgandoos abismos, queria apenas exaltar essa gran-díssima verdade. A salvação e a segurança dorei estão unicamente nos números.

"Encantado com as eloqüentes palavras dojudicioso ulemá, mandou o rei reunir todos osseus vizires (que eram em número de sete) eemitiu em tom sério esta resolução: - "De-termino que sejam contratados os mais há-

6 - Esse aforismoé de Pitágoras.

Page 111: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii
Page 112: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Já as feras se aproximavam arquejantes do rei quando um cavalheiro, poderosamente armado,veio, destemido, em seu aux/1io. O temerário guerreiro tomou o rei em seus braços possantes e oarrebatou dali. (pág. 111)

Page 113: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

beis calculistas, escribas e talebs. Precisamos,com a maior urgência, calcular tudo, medirtudo, avaliartudo. Antes de maisnada é mis-ter contar, um a um, todos os habitantes,crentes e infiéis,que vivemno Pais dos Ára-bes. "

"0 ilustree estimado vizirAmilAmin, ho-mem pesado e já grisalho,ao ouviraquela de-cisão do rei, ponderou com irrepreenslvelcompostura:

- Rei magnânimo e justo! Queira Alá pro-longar por muitos e muitos anos a vossa pre-ciosa existência! Posso assegurar que seriaquase imposslvel fazer um arrolamento de to-dos os habitantes do nosso belo pais. Essa ta-refa está muito acima de nossas possibilida-des e iria exigir grande sacriflcio de tempo ede dinheiro.

Acudiu com voz grave o jovem Dahriman,outro vizir da corte, que era apontado comoum dos homens mais inteligentes do pais:

- Peço perdão, 6 Emir dos crentes!, masdevo observar que o meu ilustre colega AmilAmin deixou-se envenenar por deplorável pes-simismo. Labora em equivoco ao inventar di-ficuldades e ao criar tropeços que s6 existemna imaginação dos incapazes. Conheço umartiflcio muito simples que permitirá calcular,em dois ou três dias, a população de Bagdál

- Como farás isso, 6 vizir? - indagou orei, abrindo os lábios num riso de intensojúbilo.

- É muito simples, 6 Sucessor do Profe-tal - explicousem titubear o digno ministro.- Conto primeiroos cegos; no dia seguinte,se Alá quiser!, contarei os que não são ce-

gos. A soma desses dois números será a po-pulação total exata, sem errO e semincertezas!

- Pelagl6riade Maomé! - exultouo mo-narca. - Quero que apliques, sem demora,o teu admirávelprocesso. Estás autorizado ainiciarhoje mesmo o recenseamento de nos-sa gloriosa capital.

No dia seguinte o poderoso califamandouvir a sua presença o vizir Dahriman einterrogou-o em presença de sua corte.

- Alá sobre ti e ao redor de ti, 6 vizirlQuantos cegos vivem à sombra de nossasmesquitas?

O digno secretário do rei compreendendoque era alvo de todas as atenções, meditoudurante alguns instantes, e respondeusolene:

- São precisamente mile duzentos e qua-renta e sete!

Interpelou-o novamente o rei:- E como chegaste a esse resultado tão

perfeito?Exigiao Emiruma explicação. Eessa expli-

cação formulou-a o vizir Dahriman nos se-guintes termos:

- Foi muito simples. Mandei pintar umburro de amarelo. Esse burro, pelas mãos deum bedulno,7foi conduzido lentamente pe-

7 - Bedufno- Denominaçãodada, em geral, aosárabesnômadesque vivemnaÁfricaSetentrional,naArá-bia e na Slria. Emcertas regiõesda Arábiaos bedulnoschegama constituirumaquartaparte da população.Ado-tam a mesma religiãoe os mesmos costumes dos ára-bes e, comoconservamumvivoamor pelaliberdade,sãopastores e guerreiros. São de uma valentia que chegaà temeridade e, apesar da profunda ignoranciaem quevivem, amam a poesia e a música.

115

Page 114: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Ias ruas da cidade. O beduíno era precedidopor um guardado palácioque batiafortemen-te, sem cessar, num grande tambor. Acom-panheio burrinho revestidoda pintura cor deovo levando, a meu lado, um escriba. Logona primeira rua, antes da mesquita, um mer-cadorde tapetes, que estavajunto à porta desua casa, exclamou alvoroçado: "Por AlálQue seráaquilo?" Voltei-me para o escribaeordenei: "Toma nota: Essehomem é cego.Pois será possívelque ele não veja que esteanimal é um burro, bem burro, pintado deamarelo, bem amarelo?" Um pouco adiante,pertodo suJ<8 umavelhaquevendiamaçãsbradou assustada:"Pelas barbasde MaomélQueseráaquilo?" Disse, outra vez, ao escri-ba: "Assinala maisessa.A infelizé cega. Poisnão tem olhos para ver que esse pobre ani-mal, que vai tranqüilo diante de n6s, é umburro, bem burro, pintado de amarelo, bemamarelo?" Eassim, um por um, foi contandotodos os cegosde Bagdá. Eo total foi exata-mente esse: Mil duzentos e quarenta e setel

Ao ouvir aquela estranha narratíva, o cali-fa HarunAI-Raschidfez-seescarlatede indig-nação; cruzou lentamente os braços e, numtom que denunciava contrariedade e nervo-sismo, proferiu com impetuosa energia:

- O teu suposto artifício, 6 vizir, não pas-sa de uma leviandadeinsultuosa ou de umapilhéria ridículaI O cálculo feito pelo sistemaque adotasseafronta a evidência. A pilhériaexige resposta; a leviandade não deve ficar

8 - Suk - Mercado.Conjuntodas tendas dosmercadores.

116

impune. Vou, pois, mandar reunir todos oscegosque vivem nestacidadee determinareique os infelizessejam contados como as tâ-marasde uma tamareira. Seo teu cálculo es-tiver certo, isto é, se o total for aquele mes-mo, mil duzentos e quarenta e sete, recebe-rás uma boa recompensa;masse a prova forcontra ti, serás impiedosamente castigadoI

O ilustre e judicioso Farid Ben-Farid, queacompanharacom atençãoo relatodeseuco-lega e o desagrado que causara ao califa,compreendeuquea situaçãoeragrave. Ovai-doso monarca sentira-se melindrado com ogracejo do vizir Dahrimane estava, com cer-teza, no firme propósito de puni-Io impiedo-samente. Era,pois, urgente achar uma saída,ou melhor, uma solução qualquer para o caso.

E o velho ulemá, assumindo uma atitudeprudente e conciliadora, dirigiu-se respeitosoao monarca. e assim falou:

- Não creio, 6 Príncipedos crentesl, quemeu nobre e distinto colega Dahriman tenhatido a intenção leviana de gracejar sobre as-sunto tão sério. Os atos do governo não po-dem servir de alvo às facécias dos humoris-tas. S6 um mau patriota seria capaz de atirara lama do ridículo sobre a face da autorida-de. Posso, pois, assegurar que o jovem e ta-lentoso vizir Dahriman, com o seu esquisitosistema, quis apenasproporcionar uma sábiae profunda lição de moral aosnobres, xequese ulemás.

- Lição de moral? Pela sagrada face daCaabal

Se uma caravanade loucos tivesse entra-do, com estrondo, no salão real, não teria,

Page 115: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

certamente, causado maior surpresa ao rei eaos vizires. A declaração do sábio era assom-brosa. Os vizires da corte entreolharam-se es-pantados. Como descobrir ensinamentos mo-rais no estranho sistema do burro bemamarelo?

O respeitável Farid Ben-Farid, depois de rá-pido momento de madura reflexão, prosse-guiu solene:

- Que pretendia o vizir Dahriman ao pôr"em prática o seu prodigioso artifício do burropintado? Combater, sem intenção suspeito-sa, o pessimismo de um colega. O pior cego,ó Rei dos árabesl, é aquele que não quer ver.Quase todos os homens sofrem os males ter-ríveis da cegueira. Um é cego para a Justiça;outro é cego para a Bondade; outros, enfim,são cegos para o Trabalho, para a Virtude oupara o Amor. O derrotista é cego; o vingati-vo é cego; o covarde é cego também. Comocontar e calcular os cegos num mundo em.que há tantas consciências que se arrastamnas trevas de uma eterna cegueira? Fala-nosJesus,9 filho de Maria, de um pobre cegoque ia, por perigosa estrada, guiando outrocego. O que guiava era cego, o que ia guia-do, cego era também. Mas qual dos dois vosparece que era mais cego: o guia ou o guia-do? Muito mais cego era o guia. Porque o ce-go que se deixava guiar via e conhecia que

9 - Jesus é citadodezenovevezes no Alcorão.Umadas cinco preces diárias do muçulmano é dedicada aJesus.

era cego, mas o que se fez guia do outro tãofora estava de perceber e conhecer que eracego, que cuidava poder emprestar olhos. Oprimeiro era cego uma vez; o segundo, duasvezes cego; uma vez porque o era, outra vezporque o ignorava, isto é, não via a própriacegueira I E a cada momento encontramos,pelas estradas da vida, homens que são ce-gos duas, três, vinte vezes! Cegos pela faltade caráter; cegos pela ignorância; cegos pe-lo coração I - Eo venerando ulemá, na mes-ma ordem de idéias, perorou, com lentidão,num tom de iluminado: - O vizir Dahriman,usando de engenhoso artifício, mostrou queos cegos são mais numerosos do que imagi-n<!mose que bem deplorável é a cegueira dosintolerantes que não desejam conhecer a rea-lidade e fecham os olhos para todas as bele-zas da Vida.

Impressionado com as sábias palavras deseu bom conselheiro, o generoso califa Ha-run AI-Raschid mostrou-se penetrado de eqüi-dade e clemência. Determinou que fosse con-ferido ao jovem Dahriman valioso prêmio -um cofre de bronze repleto de ouro e pedra-rias. Diz a lenda, e nessa parte não há traçode exagero, que esse cofre era tão pesado queo tal burro amarelo (bem amarelo!) não o po-dia carregar.

117

Page 116: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

46~ Narrativa

Continuação da singular aventura do egipcioque prometera as "Sete Pontas do Quadrado".Reaparece Mustafá, o servo fiel, com o prodi-gioso tesouro.

Das MILHISTÓRIASSEMFIM...é esta a quadra-gésima sexta.

Melhor é ser humilde de esp{rito com os man-sos, do que repartir os despojos com os sober-bos. "

Lidaa quadragésima sexta restam, apenas,novecentas e cinqüenta e quatro.

Allahur Akbar!' Retomo, agora, a minhanarrativajá maisde uma vez interrompida. Alenda do "Burro amarelo, bem amarelo" re-ferida com tanta eloqüência e oportunidadepelo erudito calculista Zoraik, foi ouvida emmeio do maior silêncio. Duas ou três vezesassaltou~meo desejode interpelaro narradore issoaconteciasempreque suaspalavrasfe-riam pontos delicados de nossa doutrina.Contive-me, porém, e conservei-meimóvel esilencioso,como um túmulo, entre o bom ce-go e o mestre-escola.

Coube a Zualil, o egrpcio, que era, na ver-dade, o caid-el-markahn2a grata incumbên-cia de fazer o elogio do narrador. O nossoamigo, pondo-se de pé rapidamente, ajeitouo turbante, meditou alguns instantes e de

1 - AllahurAkbarl - Deusé grandel2 - Caid-el-markahn - Dono da festa.

118

mãos. na cintura, com desembaraço e simpli-cidade,. assim falou:

- É fácil coroar com rutilantes elogios asnarrativas que nos divertem, educam e encan-tam. Tal é o caso dá lenda do "Burro Amare-lo" que acabamos de ouvir. Envolve sábiosconceitos, inesqueciveis ensinamentos e ju-diciosas conclusões. Leva-nos a meditar so-bre terrrveis malefícios da cegueira espiritualque, embora não atinja os olhos, fecha, parasempre, o coração. Aquele que não enxerga,por ter cegado para o mundo, tropeça pelasestradas; aquele que é obliterado pela ceguei-ra espiritual, e repele a Lei Divina, não podeter paz na vida, e rola pelos abismos do de-sespero. Guiemos os cegos de esprrito pelasveredas do Bem e da Verdade. O Guia paraeles será a salvação. Quero finalizar esta rá-pida apreciação recordando os versos de umcego - versos nos quais o poeta exalta o po-der do amor materno:

Page 117: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Não choro a minha cegueirachoro a falta do meu guia;Minha mãe, quando era viva,Eu era um cego que viaf3

E as palavrasde Zualil tinham aquela con-sonânciaagradávelque o levesotaque egíp-cio tornara mais sugestivaI

- Que lindos versos! - comentei alçan-do a voz para que todos me ouvissem. - Eterão como as encantadorastrovas da "Florda Saudade", a força mágicaque perturbaoshoméns?

- Forçamágica?- estranhouZualil arre-galando os olhos. - Quahyat en-nébi/4Co-mo descobriste força mágica em meusversos?

Era meu dever esclarecera dúvida. Reca-pitulei, portanto, aoegípcio,com todas asmi-núcias, o singular episódio que me ocorreraquando voltávamos da casa do corretor Se-. .chara. Contei que um jovem, pobrementevestido, aceitara o convite para ouvir a lendadas Sete Pontas do Quadrado. Exigira, ape-nas, como pagamento, duas fatias de pão. Evinha o mendigo muito tranqüilo a meu lado,quando me ouviu declamar os versos da "Florda Saudade":

Saudade, flor que despertaTristeza no coração;

3 - Essa trova admirável é de Tito de Barros, poetabrasileiro, falecido em 1945.

4 - Quahyaten-nébil - Pela vida do ProfetaI

Saudades dos que se foram,Dos que não voltam mais, não/5

Com palavrasmal articuladasindagouo ra-pazqualerao autor daquelesversos.Respon-di como devia. (Não me pareceu justo ocul-tar a verdade.) Operou-se, nesseinstante, aforça mágicados versos.O desconhecidoati-rou por terra o turbante e fugiu a correr co-mo um louco. Etal foi o ímpeto de sua fugaque julgamos impossível tentar evitá-Ia!

A revelaçãodaquelecaso - que para nósnão passava de um banal acidente de rua -causou em Zualil um abalo indescritível.Cobriu-se-Iheo rosto de impressionantepali-dez: Chispavamseus olhos intensa alegria.Todo seu corpo tremia. Tive a impressãodeque atatuagemque lhecobriao dorsodamãoesquerda tornara-se mais azulada.

Sacudiu-me pelo ombro com convulsivaenergia e interpelou-me febricitante, numaagitação que só um ataque de loucura pode-ria justificar:

- Querapazfoi esse?Émesmocerto quefugiu aoouvir o meunome?Ondeestava?Ua-lalu/6 Quero saber a verdadeI O rapaz eramoreno?Trazia um punhal nacintura? Comoestava vestido?

Assediadopelasaflitivasperguntasdo egrp-cio.senti-meconfusoe estonteante.Omestre-escolaveioem meuauxilio,e com a maiorcal-

5 - Essatrova é citada no livro BotAnica Pitoresca,de Meira Pena.

6 - Ualalul- Pela glória de Deusl

119

Page 118: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

ma, como se estivesse diante de um discípu-lo, forneceu ao conturbado egípcio todos osinformes exigidos.

Ocorreu, nesse momento, uma cena ines-perada que nos deixou no espírito indelévellembrança.

Zualil, com a face iluminada de intensa ale-gria, perdeu a compostura e pôs-se a pularno meio da sala e a gritar como um possessoagitando os braços:

- Estamos ricos! Louvado seja o Sapien-tíssimoP Estamos ricos I

Havia no estupendo homem o que quer queo arrebatava da realidade para o mundo fictí-cio das alegrias estonteantes.

- Infeliz amigol - deplorei com sinceralástima. - Assaltou-o o perigoso ataque dedemência! Ouve falar da fuga de um m.endi-go e conclui que vai receber todas as rique-zas do gênio de Aladim!8

Olhei para o mestre-escola, para o calcu-lista e para o botânico. Linas fisionomias quetodos eles compartilhavam da minha opiniãoem relação ao estado mental do egípcio. Ocego não se moveu. Permaneceu como es-tava, sentado no tapete, com a cabeça baixaapoiada nas mãos.

Ao notar a estranheza com que recebíamosas suas exaltadas manifestações de alegria,achou Zualil que era seu dever esclarecer

7 - Sapientfss;mo - Deus.a - Aladim- Na famosa lenda A f~mpadade Ala-

dim aparece umgênioque põe nas mãos de um protegi-do incalculáveistesouros.

120

aquela cena que tivera por origem a "Flor daSaudade". Passeou a mão pela fronte, pelosolhos e impando de satisfação, contou-nos oseguinte:

- As informações que ouvi dos amigostrouxeram-me a convicção de que esse jovemque fugiu desatinadamente ao ouvir o meunome, revelado por causa dos versos, é o meuservo Mustafá. Como já tive ocasião de con-tar, em Damasco, sob a ameaça de morte,confiei todos os meus haveres a Mustafá e or-denei que seguisse para o Iraque. Combina-mos.um encontro em certo recanto desta ci-dade; não nos foi possível, porém, compare-cer no dia marcado, e desencontrei-me do ho-mem que conduzia o meu tesouro. Passaram-se muitos meses. Nunca mais o encontrei.Julguei-o morto ou desaparecido. Já haviaperdido a esperança de recuperar toda a mi-nha fortuna quando sou avisado de que Mus-tafá se acha nesta cidade e que foi informa-do de meu paradeiro. É certo que, dentro empouco virá procurar-mel

- Deixemos de sonhos e devaneios - ob-jetei com um gesto incrédulo. - Não creioque Mustafá apareça nesta casal Admitamosque era ele, precisamente, o mendigo que vi-mos fugir pela estrada. Pela situação miseran-da em que o encontramos, faminto e andra-joso, implorando fatias de pão, não deveriatrazer consigo tesouro algum I É lá admissívelque um homem que tem em seu poder váriasdezenas de rubis e mancheias de brilhantes,passe privações pelas estradas de Bagdá I Averdade é outra. Mustafá fugiu porque nãodesejava avistar-se com o seuamo. Não pre-

Page 119: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

tende prestar contas do tesouro que lhe foiconfiado.

Zualil franziu o rosto numa negação e re-criminou semtitubear, esforçando-sepor serclaro e decidido:

- Duvidas da integridade e das boas in-tençõesde Mustafá?Nãoacreditasna lealda--dedo humilde servo?A fuga é perfeitamentejustificável. No momento em que recebeu anotícia de minha presença, nesta casa, nãotrazia em seu poder o cinto que contém asgemaspreciosas.Sem revelaro segredocor-reu parair buscá-Io.Paramaiorsegurançadei-xara o tesouro bem oculto em lugar secreto.Fiquem certos de que dentro de alguns mo-mentos ele apareceráaqui!

Ejá mais calmo, sempreconfiante, o egíp-cio prosseguiu com gesto bem composto:

- Grandesmalesadvêmparao mundo dafalta de mútua confiança entre os homens.Esforcemo-nos por acreditar naqueles quenunca fizeram por desmerecerde nossacon-fiança. Evitemosos juizos temerários; as su-posiçõescaluniosase infundadas. Arranque-mos de nossoscoraçõestodas as suspeítas,inveja e rancor e tudo mais que possaabalara caridade e diminuir o amor fraterno.

Edepoisde ligeirapausa,acrescentousemse dirigir a nenhum de nós:

- Logo que Mustafá chegue entrarei napossede todo meutesouroe sereium dosho-mens mais ricos desta cidade. Quero, pois,demonstrar que sou generoso com os amigos.

Dirigindo-se ao matemático Derak declaroujubiloso com um clarão de simpatia na face:

- Vais receber, meu amigo, quinze mil di-

nares de ouro e vinte camelos de boa raça IO mesmo presente darei ao mestre-escola, aopreclaro botânico e ao cego que nosacompanhou!

E a seguir, voltou-se para mim e disse avi-gorando a frase com intencional demora:

- Ao dono desta casa, que tão gentilmen-te me acolheu, oferecerei, como prova de mi-nha gratidão, trinta mil dinares de ouro e qua-renta camelos de boa raça! O dobro, precisa-mentel Lembras-te do que te disse? Estáscom a baraka! A fortuna veio ao teu encontrol

Aquele homem singular, que na realidadenada tinha de seu, imaginava-se riquissimo edistribuía promessas de ouro por todos nós.Era.de arruinar a delicadeza de sua sensibili-dade e o incomparável primor de seu idea-lismo.

Fez-se largo silêncio.De repente o cego ergueu-se às apalpade-

las e declarou, num gesto de espanto, comvoz trêmula:

- Atenção, meus amigos1 Alguém acabade chegarl Ouço passos no jardiml

Corri alvoroçado para a porta que tinha ser-ventia para o jardim, descerrei-a e olhei parafora.

O quadro que caiu sob meus olhos deixou-me estarrecido.

Junto à escada, com sua dja/aba9 esfran-galhada, de joelhos, com o busto inclinado eapoiando as palmas das mãos na terra, esta-va o jovem que fugira de nós pela estrada. EraMustafá, o servo fiel! Magro, andrajoso, ros-

9 - Djalaba- Túnica.

121

Page 120: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

to maceradopor grandessofrimentos, a suafigura inspirava piedade. A cair de fome,exaustode fadiga, vierarestituiro tesouroqueo xeque o havia encarregado de guardar. Oolhardesuaspupilasfundaserao únicopontoanimado de suafisionomia quaseenegrecidapelo sol do deserto.

Não me ocorrem aqui palavras com quepossa descrever a alegria de Zualil. Vimo-Ioatirar-seaos braços de Mustafá e chorar co-mo uma criança.

Aquela cena deixou-nos emocionados.O mestre-escola,sempreserenoe judicio-

so, ponderou que seriamaisacertado limitar,naquelemomento, as expansõesnaturaisdealegria. Fazia-semister, no primeiro momen-to, socorrer o famélico Mustafá antes que okeifo da jornada o abatesse para sempre.

E assimfizemos. Merecia o dedicado ser-vo as nossasatenções. Procurei cercá-Iodetodas ashonras,pois pesava-menaconsciên-cia o feio crime de ter duvidadode sua inque-brantável lealdade.

Aquele jovem era, para mim, uma autênti-ca figura de lenda.Atravessarao deserto,en-frentara os tremendosgasus,l1livrara-sedosbeduínose aventureiros,sofrera inenarráveisprivações, masnão esmorecerae não claudi-cara, um só momento, no cumprimento dodever.

Depois de reconfortado com fina e abun-dante merenda retirou Mustafá o cinto que

10 - Keif - Desmaio.

11 - Gasu - Assalto contra as caravanas,seguidode saque e latroclnio.

122

trazia oculto sob a túnica. Continha o prodi-gioso cinto, pelasuaparte interna, lindíssimacoleçãode rubise brilhantes.Aquelasgemas,vendidas em Bagdá, dariam mais de duzen-tos mil dinares.

Como eram lindas aquelas pedrinhas ver-melhas! Pareciamgotas de sanguecristaliza-das. Eraum prazer segurá-Iase senti-Iaspe-sar na concha da mão.

O único que nãodesejousopesaras pedraspreciosas foi o cego.

Disse afinal Mustafá dirigindo-se placida-mente a seu amo, o xeque Zualil:

- Infelizmente não me foi possiveltrazera coleção completa. Fui obrigado a desfazer-me de um rubi. Trago aqui oitenta e nove,quando na realidade, ao partir de Damasco,havia recebido noventa!

- Não importaI - sobreveioatencioso oegípcio. - Seria irrisório tomar-se em consi-deração tão insignificante perda. É possívelque até tenha se desprendido durante aviagem.

Depois de um sorriso cansado e lento re-torquiu Mustafá num tom grave:

- Bem diferente foi o caso, ó Xequel Vi-me forçado a deixar cair a pedraa fim de sal-var a caravanaem que ial A perdadesserubiestá ligada a uma das aventuras mais singu-laresocorridasdurante a minhajornada. Voucontá-Ia...

E com sua voz pausada e clara, narrou-meo seguinte:

NOTA - Aqui termina o 2? volume'das MILHISTÓRIAS SEM FIM...

Page 121: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

Carta de MonteiroLobato

Acusando o recebimento de O Homem queCalculava, Monteiro Lobato dirigiu a seguin-te carta a Malba Tahan:

Malba Tahan:

O Homem que Calculava já me encantouduas vezes e ocupa lugar de honra entre oslivros que conservo. Falta nele um problema- o cálculoda soma de engenho necessáriopara a transformação do deserto da abstra-ção matemática em tão repousante oásis. 56Malba Tahan faria obra assim, encarnaçãoque ele é da sabedoria oriental - obra alta,das mais altas, e s6 necessita de um paIs que

5~ Paulo, 14-01-1939

devidamente a admire; obra que ficará a sal-vo das vassouradas do Tempo como a me-lhor expressão do binômio "ciência-imagi-nação" .

QueAlá nunca cesse de chover sobre Mal-ba Tahan a luz que reserva para os eleitos.

Monteiro Lobato

123

Page 122: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

SUMARIO

26~ NARRATIVA - Aventura singular de dois pescadores árabes. O misterioso dra-ma da "mão cortada". Como agiu o juiz para descobrir o autor de um crimehediondo e revoltante , , 5

27? NARRATIVA - Continuação da trágica aventura da "mão cortada", Como o in-teligente Rahal fez surpreendente descoberta 15

28~ NARRATIVA - O caso do tapete azul. O que disse o dervixe das barbas brancassobre as letras misteriosas , , 21

29? NARRATIVA - História do vizir Anis Mufeitech, o implacável. Como t>destino dopovo pode estar envolto nas dobras de um tapete 25

30? NARRATIVA- História do rei que pretendeu consolar os quatro ex-namorados desua esposa. Na qual uma princesinha romântica e namoradeira se vê em séria di-ficuldade para atender a cinco noivos , ".., ,. 31

31~ NARRATIVA - História de um hakim ciumento que vigiava a esposa dia e noite.Na qual ocorre um estranho rapto no meio de uma rua movimentada 36

32? NARRATIVA- Históriade uma jovemturca que servia de "isca" para noivos. Opoeta Sakkil faz surpreendente revelação 42

33? NARRATIVA - História da singular inscrição que surpreendeu o rei Tahir. Comose explica o caso de uma legenda que ia morrer.:., 49

34? NARRATIVA- Históriade Zend, o homemque corriapara não esquecer uma len-da. É possível que uma lenda esquecida possa dar origem a outra lenda 52

35? NARRATIVA- Históriada lenda roubada. Naqualperigosoaventureiro,ao agredirum viajante, presta inestimáveis serviços 60

36~NARRATIVA- A prodigiosalenda da princesinhaSan-ga-Iu. Como pode umajo-vem de coração meigo e simples sofrer a tortura de incontáveis segredos... 66

Page 123: Malba tahan   mil histórias sem fim vol ii

37~ NARRATIVA - História singular de um hóspede misterioso. Na qual ouvimos aprece e a revelaçãoprodigiosa da baraka 72

38~NARRATIVA - Continuaçãoda singular história do hóspedemisterioso. NaqualZualil narra os episódios de sua vida aventurosa 77

39~ NARRATIVA - Continuação da história do hóspedemisterioso. Na qual o donoda casa faz um juízo temerário para arrepender-selogo depois 82

40~NARRATIVA - Continuaçãoda singularnarrativado hóspedemisterioso.Na qualZualil, o aventureiro, conta a história de um homem que sabiagravar na pedrae escrever na areia 86

41~NARRATIVA - Continuaçãodasingularhistóriado hóspedemisterioso.Surgeummestre-escolaque descreveo paraísodos muçulmanos. O egípcioofereceumalenda, um conselho ou um segredo 90

42~NARRATIVA - Continuaçãoda históriado hóspedemisterioso. O burriqueiro im-passívele a noiva do mestre-escola 96

43~NARRATIVA - Ainda a aventurado hóspedemisterioso. Obotânico fala dasflo-res e um jovem foge como um louco ao ouvir certa canção 102

44~ NARRATIVA - Ainda o hóspedemisterioso. Na qual o egípcio exalta e reabilitaos cegos.. 108

45~NARRATIVA - História do vizir Dahrimane de seucurioso sistemade contar po-pulações 111

46~ NARRATIVA - Continuação da singular aventura do egípcio que prometera as"Sete Pontasdo Quadrado". ReapareceMustafá, o servofiel, com o prodigiosotesouro .".. 118