Upload
maria-manuela-torres-paredes
View
568
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
“O presente texto é uma ferramenta de trabalho, de criação, como tal vem apoiado por uma
série de notas de encenação, a de TRANVIA - Teatro, que não é mais do que uma das muitas
possíveis. Quem quiser montar este texto considere-se livre de seguir ou ignorar, de
acrescentar e cortar, de adaptar o texto como gostarem de o de fazer para o seu próprio
espetáculo”
O autor
Cándido Pázo
O Merlo Branco
Este texto adaptado para o espetáculo da companhia Elétrico - Teatro de Vigo, estreado em
Castrelos (Vigo) a 19 de Julho de 1989, de acordo com o seguinte elenco.
ATORES
Avelino Gonzalez
Candido Pazo
Cristina D. Dapena
Ana Macineiras Veiga
Paco M. Barreiro
EQUIPA ARTÍSTICA E TÉCNICA
Cenografia e vestuário: Carlos Alonso
Máscaras e material plástico: J. Mendez
Atrezzo: J. Mendez, Miro B. Magarinos,
Carlos Alonso
Música: Paco M. Barreiro
Técnico de som: Alberto Pazo
Com a colaboração de Miguel Carrillo, Juan Diaz
e a Associação de Vizinhos de Castrelos.
Produção: TRANVIA-Teatro Direção: Cándido Pázo
2
Alegre e festiva, chega a companhia (trompeta, trombone, bombo e pratos) por entre as
crianças a fazerem barulho. Chegam ao estrado, cala-se a fanfarra, começa o espetáculo1.
1 Instrumentos de chacota de cartão. Os quatro comediantes entram de surpresa no momento
em que termina a única a música. A música pode ser ao vivo. Na nossa encenação a música
vai em «playback» para que os atores possam desenvolver mais livremente um jogo cénico
de relação direta e improvisada com o público.
Na nossa representação, o estrado faz parte da cenografia do espetáculo e contempla três
espaços principais:
— Dois andaimes laterais (1 à esquerda, 2 à direita) que, juntamente com os cenários
fecham os espaços por trás, constituindo o espaço que poderíamos chamar «aéreo». Este
espaço é complementado por mais dois andaimes (3 à direita, 4 à esquerda) entre o público.
— Uma plataforma entre os dois andaimes que forma o espaço que poderíamos chamar
«terrestre». No recanto deste espaço situa-se a bateria e instrumentos de percussão com os
quais se formarão (no local de cena) os acessórios sonoros da peça.
— Um espaço que se abre (uma cena) abaixo da plataforma, onde há (camuflada) uma cama
elástica, que forma o espaço que poderíamos chamar «marítimo».
3
4
CÓMICO A. — Senhoras e senhores, o nosso grupo de teatro tem o prazer de
estar...
CÓMICO B.— (interrompendo A.) Que se passa amigos? Estes aqui…e eu, vamos
tentar contar-vos...
CÓMICO C.— (interrompendo B.) pois o que acontece é que nós vínhamos…
CÓMICO D.— (interrompendo C.) Hoje queremos presentear-vos como uma das
nossas histórias que aconteceu...
CÓMICO A.— Que fale um!
COMICO B.— Isso!
CÓMICO C.— Claro!
CÓMICO D.— Que se não...!
IMPROVISO
Instala-se uma grande confusão para decidir quem apresenta ... até que o CÓMICO C.
perante o alvoroço, decide acabar com a confusão.
CÓMICO C.—Digo eu... que... já que não conseguimos chegar a um acordo... o
melhor será que apresente um desses...
IMPROVISO
Os cómicos convidam uma criança do público a subir ao palco. Este, como se tratasse de
um jogo, apresenta a companhia e o espetáculo, ajudado... ou incomodado pelos esfor-
çados cómicos que, finalmente, começam com esta canção:
Para este conto poder começar com a vossa ajuda queremos contar:
Isto é teatro
Isto é um jogo
Isto e uma festa
Isto é de todos.
Vós que pensais na nossa história, será certa ou será tola?
5
COMPANHIA. — Certa?
CRIANÇAS. — ..... ?
COMPANHIA. — Tola?
CRIANÇAS. — É divertida, e isso é que é importante! Estejam atentos porque começa
aqui o nosso trabalho. (Saem A e D). 2
CÓMICO B.— A coisa começou num matagal como este, numa manhã ... (Aparece
o sol. Põe uns óculos de sol) numa manhã ensolarada de maio. Cantavam os
pássaros: o pintassilgo...a rola ...o cuco ...o cartaxo-nortenho...e todos, todos
os pássaros...3
CÓMICO C.— Que eram muitos!
CÓMICO B.—...que habitavam naquele matagal. Cantavam muito, fazendo um ruído
retumbante.
CÓMICO C.— Vocês têm que me ajudar, porque sozinho não me cons igo despachar…
IMPROVISO
As crianças, como peritos no assunto, fizeram (incitados por C) uma retumbante
passarinhada. Silêncio!?
Silêncio.
CÓMICO B.— Naquele matagal havia uma árvore...
CÓMICO C.— Uma só? Que tristeza!
CÓMICO D.— (Da parte baixa do andaime 2.) Acredito que as outras tenham sido
cortadas para fazer pasta de papel…
CÓMICO A.— (Da parte baixa do andaime 1.) Ou foram destruídas por um incêndio...
CÓMICO C.— Isso, isso, o progresso, digo o progresso.
2 Com a saída de A (pela parte inferior do andaime 1) e D (pela parte inferior do andaime 2) produz -
se um corte e uma mudança forte de ritmo para dar verdadeiramente início à história. B assume o
papel de narrador e C vai para a bateria.
3 Um ator deve subir a um andaime e colocar o Sol: um guarda-chuva convenientemente pintado. A
cada pássaro que B enumera, C vai imitando (com os instrumentos ou com a boca) o canto
correspondente. Entretanto A e D vão-se vestindo para as primeiras personagens.
6
CÓMICO B.—Não, não, acalmem-se... naquele matagal ainda havia muitas árvores,
mas a nós só nos interessa uma. Nesta árvore havia um tronco, no tronco havia um
ramo, no ramo, um raminho, no raminho, um galho, e neste galho... um ninho. E no
ninho estava a senhora melra... procurando desesperadamente o senhor melro.4
Num tronco, MAMA MELRA faz ninho. Na outra, PAPA MELRO escuta, atento, um
jogo de futepássaro na radio.
CÓMICO C.— Avança Pardal pelo lado esquerdo, passa para Alvéola-branca que voa
para a baliza do adversário, Alvéola-branca para Poupa, Poupa para Andorinha,
Andorinha para cuco que é entrada em falta, mas o árbitro canário Sr. Paspalhás, que
está distraído, não pia nada (desgosto de Papá Melro) e aplica-se a lei da vantagem.
(Ah, bom), cuco, tudo cuco, caem dois contrários, desagrado sobre Pega que lhe
pega e…
MAMA MELRA. — Pppepeeeeee!
PAPA MELRO. - C o m o Pepe? Será golo!
MAMA MELRA. — GOOOOOOL... (Papa Merlo concorda)... go!!
PAPA MELRO. —Golfo? Pepe... golfo? Pepe golfo... Ah! Tens a certeza que sou eu!
MAMA MELRA. —Pois claro!!!
PAPA MELRO. — (Firme.) Que queres? Ehhm (Mansinho.) Que queres, meu
passarinho lindo, meu amor emplumado, me... me... me...
MAMA MELRA. — Menos parvoíces. Já estou há duas horas a chamar por ti. É o teu
turno, e se pensas que vou aninhar sozinha, estás bem enganado! O filho é dos dois,
não? Pois temos que cuidar dele os dois. Então, é bom que vás subindo…
PAPA MELRO. — Quanta dureza e sacrifício para ser um pai responsável,
colaborador e comprometido! Ainda bem que está a chegar o dia. Amanhã
receberei a recompensa por tantas e tantas horas aqui com o rabo achatado.
Amanhã nascerá o nosso melrinho. De certeza que vai sair a mim. Será a inveja de
4 Jogo de sons (feitos por C num xilofone) marcando a gradação: «árvore, tronco, etc.».
Subindo pelo andaime 1 aparece MAMA MELRA (CÓMICO A).
Subindo pelo andaime 2, com um rádio, aparece PAPA MELRO (CÓMICO D).
7
todos os melros desta fraga. Todo negro dos pés à cabeça...não , assim não é... da
cabeça aos pés... corpo emplumado, tantas penas!... pescoço negro, patas negras,
cabeça negra, peito negro e cauda negra... sim senhor, como deve ser, um melro
perfeito, como o pai...5
Enquanto o PAPA MELRO faz as contas, o tempo vai passando. Deita-se o sol, ergue-se a
lua.
CÓMICO B.— Assim, nestas reflexões, foi-se passando o dia do Papa Melro. À
tardinha cantaram os grilos... à noitinha, coaxaram as rãs…à noite... o silêncio da
noite... scchsss (o Melro ronca.) enfim, nem tanto silêncio... e de manhazinha
cantaram os galos... 6
IMPROVISO
As crianças foram fazendo o desenho sonoro do tempo.
CÓMICO B.—E para o nosso papa melro amanheceu um novo dia... (o Merlo dorme.)
Ehhmm, amanheceu um novo dia!
(Riiinnnng!! Implacável e ruidoso, com dois timbres soa o despertador7.)
PAPA MELRO. — Que se passa, não fui eu, por onde, quem?
CÓMICO B.— Chegou o dia.
PAPA MELRO. — O dia, que dia?... Ah, sim! Maria, Maria, já está aqui, já vai nascer,
5 Entretanto, MAMA MELRA baixa do andaime 1 e sai de cena. PAPA MELRO inicia o seu discurso
baixando do andaime 2 e dirigindo-se ao sítio (supostamente o ninho) onde estava MAMA MELRA. B e
D estão sentados para deixarem que as outras duas personagens se destaquem. Assinala exatamente o
contrário: quando diz “pés”, assinala com a “cabeça”, quando diz “cabeça”, assinala com os “pés”. E vice-
versa.
6 Levantando-se e ocupando o centro da cena. As crianças, incitadas por C, irão fazendo o canto dos
grilos, o coaxar das rãs, etc.
7C passa o despertador a A e este fá-lo soar. PAPA MELRO leva um grande susto.
8
corre, Maria!
Solícita e maternal MAMA MELRA ocupa o seu sítio em cima do ovo.8
MAMA MELRA. — Uma patada! Acaba de dar uma patada!9
PAPA MELRO. — Jogador de futebol, vai ser jogador de futebol! Já o estou a ver
no campo com o seu calção negro, camisola negra, meias negras, chuteiras
negras...
MAMA MELRA.— Um murro, agora deu um murro!10
PAPA MELRO. — Lutador de Boxe, então vai ser lutador de boxe! Já o estou a ver
no ringue com.…!
CÓMICO B.— (Cortando, com ar burlesco.) ...com o seu calção negro, o albornoz(robe)
negro, as meias negras, os olhos ne... os olhos lilases.
Expectativa sísmica. Espera tremulante. Redobre de tambores. O ovo escacha, nasce o
melrinho. Grande ovação.
MELRO BRANCO. — Mamã... papá...11
PAPA MERLO. — Meu filhinho querido! Mas que, como... que se passa com este
«casapo»?!12
MAMA MELRA. —Sim, he, he... é um pouco estranho. Meu filhinho.
PAPA MELRO. — Estranho... estranhíssimo? Tinha que ser negro, como eu.
MAMA MELRA. — Mas é cinzento... e do cinzento ao negro é um passo.
PAPA MELRO. — E do cinzento ao branco também.
MAMA MELRA. — Não digas barbaridades... todos os bebés são feios quando
nascem, mas vais ver quando mudar a penugem… vai ser o melrinho mais bonito
de toda a vila.
8 A melra sobe pelo andaime. Cena rápida.
9 Em resposta a um golpe de bombo.
10 Em resposta a outro golpe de bombo.
11 O MELRO BRANCO (C) acompanhado de uma música romântica, sai debaixo do andaime 1 e coloca-se entre
os pais.
12 Antiga peça de artilharia.
27
9
PAPA MERLO. — Hmmghmhgh...
CÓMICO B.— Mal começaram os dias para o nosso melrinho. Qual é o problema?
Nenhum. É estranho, simplesmente. E, assim, foi passando o tempo. O pai...
PAPA MELRO. — Hmmghlrrhhghm...
CÓMICO B. — Esquivo e desconfiado, a mãe, como todas as mães, carinhosa e
protetora. Até que chegou o dia da mudança de penugem.
MAMA MELRA. — (Esperançada.) Já?
PAPA MELRO. — (Desconfiado.) Já?
MERLO BRANCO. — (Temeroso.) Já?
CÓMICO B.— Já.13
PAPA MELRO.— Finalmente... já chegou a hora de este meu filho tomar juízo e se
deixar de grisalhadas.14
PAPA MERLO. — Mas o que é isto!? Isto é uma piada?! Onde já se viu tal coisa,
um melro branco... que indecência, que vergonha, que libertinagem, que... que...
que...
MAMA MELRA. — Que culpa tem ele? Meu coitadinho, cada um é como é...
PAPA MELRO. — Cada um é como é.…e os melros são negros, como deve ser, como
está escrito, como é devido, como sempre foi, como toda a vida foi, como...
como... como...
MAMA MELRA. — Por que não te calas!
PAPA MELRO. — Uma desonra para a minha família! Se o meu tataramelro
levantasse a cabeça! Onde vamos parar, já não se respeita nada! Um melro
branco, que dirão os vizinhos?
MAMA MELRA. — Que digam missa.
PAPA MELRO. — Esse não é o meu filho! Isso não é um melro!15
CÓMICO B.— O nosso pobre e pingado amigo não quis ouvir mais nada. Não queria
13 Os três melros baixam do tronco. O pequeno vai mudar de penugem.
O M. B. esconde-se no fundo do andaime e muda a roupa cinzenta por uma branca.
14 Mais branco do que uma folha de papel, aparece o melrinho.
Os pássaros situaram-se no centro da plataforma e B retirou-se para lhes dar destaque.
15 Continuam discutindo mimicamente.
10
os seus pais discutissem por sua culpa. Tinha de haver algum lugar onde ser
branco não fosse um crime. E foi para muito longe, muito longe, muito longe,
muito... longe... caramba... (Perdi-o de vista e tenho de o seguir)...isso muito
longe... Até que os pais... 16
MAMA MELRA. — Não berres comigo!!
PAPA MELRO. — Berro com quem me apetece!
CÓMICO B.— ...que seguiam com a sua discussão, aperceberam-se da sua
ausência. (Saem.)17
MAMA MELRA. — E o bebé?
PAPA MELRO. — Ainda há pouco aqui estava.
MAMA MELRA. — É preciso ir procurá-lo... (Gritando.) Bebé!
PAPA MELRO. — (Baixinho.) Bebé.
MAMA MERLA.— (Gritando.) Bebé!
PAPA MERLO. — (Baixinho.) Bebé.
MAMA MELRA. — Grita mais.
PAPA MELRO. — (Baixinho.) Não posso, estou rouco.
MAMA MELRA. — O quê?
PAPA MELRO. — (Gritando) Não posso, estou rouco!!
MAMA MELRA. — Estás rouco, eh! O que tu não queres é gritar!
PAPA MELRO. — Sim, claro que quero, é que...
MAMA MELRA. — Espera que o apanho! (Corre atrás dele.)
PAPA MELRO,— (Fugindo) Mas o que estás a fazer?!18
MAMA MELRA. — Fugiu por tua culpa!
PAPA MELRO. — M i n h a , porquê? (Sai.)
MAMA MELRA. — Sim, tua! (Sai.)
PAPA MELRO. — Eu não fiz nada. A culpa foi tua por gerares um melro assim!
16 O M. B. veste o típico fato de sair da casa. M. B. sai e dá uma volta por trás dos andaimes
exteriores. B. trata de seguir o M. B., entre o público e continua a narrativa.
17 A desaparece ao fundo do andaime para se preparar para a Gaivota.
18 Perseguição pelos andaimes interiores. Desaparecem pelo fundo do andaime 2 para se prepararem
para as outras personagens.
11
MAMA MELRA. — O que foi! Espera, espera!
PAPA MELRO. — Meu deus, como fica esta mulher!
Longe, muito longe (na boca de cena) o coitado põe-se a chorar a sua sorte.19
MELRO BRANCO. — Não sou um melro... não sou um melro ! Que sou eu?
GAIVOTA. — (Aparecendo no alto.) Uma gaivota!20
MELRO BRANCO. — Uma gaivota!?
GAIVOTA. — Claro, não vês que és branco como eu, tens o bico alaranjado como eu,
e as patas...enfim, as patas não as tens como eu porque ainda és pequeno…mas
quando cresceres…!
MELRO BRANCO. — Uma gaivota! Viva! Sou uma gaivota! Claro, como não me
ocorreu isso antes?! Viva, viva! Isto... é o que comem as gaivotas? É que tenho tanta
fome que não aguento!
GAIVOTA. — Peixe, as gaivotas comem peixe.
MELRO BRANCO. — Mas eu não sei pescar.
GAIVOTA. — Vem comigo, que eu ensino-te.
MELRO BRANCO. — Espera, não corras tanto!
CÓMICO D.— E o nosso amigo seguiu a gaivota até ao alto de um penedo que havia
no meio do mar.21
GAIVOTA. — Primeira lição: o olho bem aberto, e quando aparecer um peixe, zás,
atiras-te de cabeça. Compreendido?
MELRO BRANCO. — Compreendido!
GAIVOTA. — Vês alguma coisa?
MELRO BRANCO. — (Aponta para as crianças). Sim, no cimo, um monte de peixe para
ali!
19 O M. B. deu uma volta completa e está de novo no meio das crianças.
20 A gaivota (Ator B), com barbatanas, surge do andaime 3 e fala do alto.
21 A e D fazem agora de narradores e «ruidosos». Primeiro levantam a armadilha (onde está desenhado
um cenário marítimo) onde está a cama elástica. Em cima do andaime 1. O MB está acima do
andaime 2.
12
GAIVOTA. —Sim, mas esses são uma espécie protegida.
MELRO BRANCO.— Ali está um!22
GAIVOTA. — Então apanha-o!
MELRO BRANCO. — (Com medo.) Quem, eu?
GAIVOTA.— Claro, tu és o aluno, e tens de praticar.23
Numa magnífica brincadeira, o Melro luta com o peixe (uma pobre bota 43) até que por
fim o pesca. Sobe contente, disposto a fazer um banquete.
GAIVOTA. — Para quieto, não vês que é uma bota!
MELRO BRANCO. — Uma bota?! E isso não se come?
GAIVOTA. — Pois claro que não, isso deita-se fora! (Atira a bota.)
MELRO BRANCO. — Outro, outro! Atira-te. Agora sim é que é um peixe. Já está cá em
cima. E isto o que é?
GAIVOTA. — Isto?... Ehmmn, nunca viste um peixe?
MELRO BRANCO. — Não.
GAIVOTA. — Pois isto é... outra bota.
MELRO BRANCO. — O quê! Que bota estranha!
GAIVOTA. — A moda, meu amigo, a moda... trá-la que eu deito-a fora. Olha ali, ali,
ali!24
Enquanto o MELRO se deita ao mar a GAIVOTA engole o peixe. O MELRO sobe triste,
pescou... outra “bota”.
MELRO BRANCO. — (Traz um peixe como o anterior) Bah, outra bota. (Atira-a.)
GAIVOTA. — (Apanha-o no voo.) Que estás a fazer, este é um peixe? (Come-o.)
MELRO BRANCO. — U m peixe?! Pois, era idêntico à outra bota!
GAIVOTA. — Eh? Hmmhm, isto, sim... homem, claro, porque era um peixe bota!
22 Tira os peixes. Pendurados por uma cana e uma cesta para que possa m pôr os peixes que apanhem.
23 M. B. salta na cama elástica e brinca até apanhar o peixe. O mesmo jogo com cada novo peixe.
24 A gaivota tem um sistema para que lhe inche a barriga cada vez que come um peixe.
13
MELRO BRANCO. — Um peixe bota?! Que estranho, eu nunca ouvi falar desse
peixe!
GAIVOTA. — Não há peixe-espada?25
MELRO BRANCO. — Sim.
GAIVOTA. — Peixe-martelo?
MELRO BRANCO. — Sim.
GAIVOTA. — Então o que tem de estranho haver peixe bota?
MELRO BRANCO. — Não, nada.
GAIVOTA — Pois então vamos a estar atento que o professor sou eu.
MELRO BRANCO. — Ali, outro peixe bota! (Satisfeito, sobe com a presa).
GAIVOTA. — Quieto! Esse peixe bota não é dos bons, e se é dos venenosos? É
preciso confirmar. (Come-o.) Mmmh, pois era dos bons, sim senhor.
MELRO BRANCO. — Outro! Este é para mim!
GAIVOTA. — Alto! A tua licença de pesca só te permite pescar dois peixes por dia.
Fica confiscado. (Come-o.) São normas comunitárias, compreendes?
MELRO BRANCO. — (Zangado.) Não, não compreendo nada! A única coisa que
compreendo é que aqui só tu é que comes! Eu não jogo mais!
GAIVOTA. — (Esticando-se, bocejando e afastando-se.) Nem eu, porque já não
posso com a barriga. Sabes o que te digo... que tu não és uma gaivota.26
MELRO BRANCO. — Por que não?
GAIVOTA. — Porque pescas muito mal!
MELRO BRANCO. — Eu pesquei muito bem, mas tu roubaste-me a pesca!
GAIVOTA. — Outra coisa a meu favor: quando uma gaivota não pesca, rouba o
peixe... então tu não és uma gaivota! (Sai.)27
MELRO BRANCO. — Espera, dá-me outra oportunidade...
CÓMICO A.— Pobre amigo, depois de tanto trabalho... continua como antes.
25 Pode perguntar às crianças.
26 Nestes momentos D depois de um diálogo mímico com A sai para se transformar em CATURRA.
27 De fora e depois por trás da plataforma principal.
14
MELRO BRANCO. — (Espirra.) Como antes não, agora estou pior. Com tanto mergulho
e tanto banho de mar... (Espirro.) acabei apanhando uma constipação.
CATURRA — (Aparecendo.) Caturra, quem disse caturra? Eu sou a Caturra Pacorra,
anda comigo e verás o que é vida boa. Quem disse caturra?28
MELRO BRANCO. — Perdão, mas eu não disse caturra, disse (Espirro) constipação.
CATURRA. — Constipação? Constipação rima com canção, com cachorrão, com
coração, com canção, e também com contrafação, cantarrão. (Espirra.) E falando de
catarrão, não vai com carão…(Espirra.)
MELRO BRANCO. —Por que fala assim, senhora caturra Pacorra?
CATURRA. — Porque sou uma poeta.
MELRO BRANCO. —Uma poeta?!
CATURRA. —Uma poeta tola do capacete e faço os meus poemas como me apetece.
Ou é que não se neta... ehhm, quero dizer, se nota?
MELRO BRANCO.— E você é branca!
CATURRA.— Branca imaculada, como está mandada.
MELRO BRANCO. – Como eu! Decerto sou uma caturra! Claro, só pode ser!
CATURRA.— Tu, uma caturra? Com essa careta de cateto analfabeto?
MELRO BRANCO.— Não me diga que para fazer esses... versos, é preciso ser muito
esperto?
CATURRA.— Esperto não, espertíssimo, espertérrimo. Far-te-ei um teste para ver se
te qualificas para entrares na escola das caturras jovens.
MELRO BRANCO.— Faça, faça, estou preparado.
CATURRA.— Com que rima camião?
MELRO BRANCO.— Camião rima com...
CATURRA. — Para além de parvalhão.
28 A CATURRA (Ator D) aparece pelo andaime 1
Os versos da CATURRA são acompanhados de jogos rítmicos.
15
IMPROVISO
Apelo às crianças para que ajudem o MELRO procurando as rimas que a Caturra quer.
CATURRA.— Com que rima cabelo? Com que rima pinha? Com que rima peito? E
com que rima mundo? Com as rimas podes passar. Vamos ver como te sais com o
trava-línguas como estes: " Esta casa está ladrilhada, quem a desenladrilhará? O
desenladrilhador. O desenladrilhador que a desenladrilhar, bom desenladrilhador
será!" Vamos ver, vamos ver, diz tu ...
MELRO BRANCO.—Isto... Esta casa está ladri...
IMPROVISO
De novo apelo às crianças que, dizendo eles os trava-línguas, ajudam o pobre melrinho.
CATURRA.— «A Iara agarra e amarra a rara arara de Araraquara.». " O que é que
Cacá quer? Cacá quer caqui. Qual caqui que Cacá quer? Cacá quer qualquer caqui. ».
« A aranha arranha a rã. A rã arranha a aranha. Nem a aranha arranha a rã. Nem a
rã arranha a aranha.», «Compre-me coco, compadre, compadre compre-me coco.
Não compro coco, compadre, porque como pouco coco, pouco coco compro».29
CATURRA.— Em trava-línguas também não estás mal, vamos ver como te sais a cantar.
Dona Matigula
cortou um degulo
com coitegula
de zapategulo.
jogava sangulo
pela ferigula
pegou todulo
e fez morcigulas.30
29 Na realidade os trava-línguas foram ditos pelas crianças, pois o MELRO BRANCO não acertava nada.
30 Canta com a música de «La donna e mobile». A caturra, em cima do andaime B, continua a cantar
em mímica.
16
COMICO A.— E aquele concerto ensurdecedor e caturril nunca mais acabava. Durou uma
hora, hora e meia, três horas ... até que o nosso pobre amigo não pôde mais.
MELRO BRANCO.— Isso não há quem o suporte, vou embora antes que me expludam os
ouvidos! Eu não quero ser uma Caturra!!31
CATURRA.— Espera, espera, não vás embora! Conheço outra música que te vai agradar,
vais alucinar! Espera um pouco que eu canto! Não, isto não rima... espera um pouco que
eu quento... ou melhor, espera um pouco, que eu canto! Espera! Para onde foi! Pois, por
onde vou? (Sai.) 32
CÓMICO A.— Não há direito, que tenha de aturar tudo isto apenas por ser diferente. Não
há direito! Ou há? Bem, enfim, a história continua...
MELRO BRANCO.— (Aparecendo do seu esconderijo) Acho que a despistei. Que forma
de cantar... uaggh, de cantar não, de cacarejar, ainda estou a rebentar! Está visto que não
há pior desgraça que a de ser branco!
Absorto nos seus pensamentos o nosso melro dá de caras, quer dizer, de bico, com um
flamingo, pernalta, arrogante e triunfante!33
FLAMINGO.— O problema não está em seres branco, querido anão, mas em seres
pequeno. É preciso ser grande, alto, forte, agressivo e poderoso! Aprende comigo:
Flamingo Ro-Dríguez. Tu és um anão, uma criança, uma insignificância. Assim não vais a
lugar nenhum! Não poderás enfrentar os grandes desafios da vida ... o mercado único, a
modernidade, as novas tecnologias, a era atómica, o ano dois mil e duzentos. O teu
tamanho não é competitivo, não estás a nível europeu!
MELRO BRANCO.— E que posso fazer?
FLAMINGO.— Quatro coisas: crescer, crescer, crescer e crescer.
MELRO BRANCO.— Mas como.
FLAMINGO.— O como não importa, querido anão, o caso é crescer! Deixa comigo! Serei o
31 O melro foge.
32 Pergunta-lhes as crianças.
33 CÓMICO B em andas. Atrás da plataforma.
45
17
teu assessor de imagem! Vou-te transformar!
IMPROVISO
Com a participação das crianças e a animação de um ator fazem todo o tipo de estruturas
mecânicas para que o Melro cresça. O Melro, que não é de borracha, fica extenuado... mas
continua pequeno.34
FLAMINGO.— Cheguei à conclusão de que não há remédio para ti. O teu problema é
estritamente estrutural, estás completamente obsoleto.
MELRO BRANCO.— Estou o quê?
FLAMINGO.— Fracassado. Competir ou morrer! (Sai.)
MELRO BRANCO.— Morrer… eu prefiro morrer. É menos cansativo.
O MELRO deixa-se cair. Oportuno e aproveitador, com cara de coveiro ou de inspetor do
fisco, aparece o ABUTRE.35
ABUTRE.— Morrer?! Quem disse morrer? Quem pronunciou essa saborosa e suculenta
palavra? (Olha por um binóculo.) Ali! Mmmh! Já tenho comida para hoje!
O ABUTRE desce até ao lugar onde o MELRO se encontra. Armado de pano de mesa, garfo
e faca, disposto a meter-lhe o dente.36
ABUTRE.—iMmmhh, (com música da marcha fúnebre ) ham , ham , ham , ham ... ham ,
ham , ham , ham , ham , ham , ham , ham ! De aperitivo, comerei uma sanduíche de finas
e falecidas tripas! Que nojo tão delicioso! Para prato principal um pouco de fiambre de
carcaça! Llghghghfgh… já estou a saboreá-lo, já sinto a carícia fúnebre das fibras
filtrando-se-me por entre os meus fanados dentes! Depois (aproxima os pés) um bocado
34 Jogo com corda. Braços estendidos. Escadas. Etc.
35 Actor A pelo andaime 4.
36 Pode levar os seus instrumentos num saco em forma de caixão .
18
de cadavérico queijo...Mmmmh… «sandes de coveiro»! E de sobremesa ... ffhhfh , olhos
em xarope mortuário ! É de morrer de prazer!37
O ABUTRE decide-se por fim a começar a comer e espeta o garfo no cu do MELRO.
MELRO BRANCO.— Ahhaaahhhhaaaiii!
Assustado, o ABUTRE recua de imediato.
ABUTRE.— Eh, isso não vale, ti tinhas de estar morto!!
MELRO BRANCO.— Isso pensava eu, mas, como vês, não estou...quem és?
ABUTRE.— Eu sou um ABUTRE disposto a fazer um banquete de um corpo insepulto. E tu?
MELRO BRANCO.— Eu? Isso queria eu saber! Quando nasci pensei que era um melro. Era
normal já que era filho de melros... (O abutre concorda.) Mas o meu pai meteu na cabeça
que não podia ser, porque era branco. Os melros são negros, as gaivotas são brancas...
Então, pensei eu, talvez seja uma gaivota... (O abutre concorda.) Mas também não sou.
Também as caturras são brancas... Podia ser eu uma delas... (Concorda o abutre.) Pois
nada. Depois chegou um flamingo, arrogante e vencedor, e quis mudar-me... Mas disse
que eu estava obsoleto...
ABUTRE.— Obso…quê?
MELRO BRANCO.— Como morto.
ABUTRE.— Morto! Isso já o dizia eu... (vai em direção ao melro)
MELRO BRANCO.— (Parando-o.) Como morto, mas não morto.
ABUTRE.— Pois quando estiveres totalmente morto avisa, que eu estou com tanta
fome que já nem vejo bem. Até logo.
MELRO BRANCO.— Espera, não me podes deixar assim! Não posso viver sem saber
quem sou!
ABUTRE.— Viver? E para que queres viver... Delicioso é morrer!
37 Cada vez que acaba com um prato vira-se ao melro. Mas para e começa com outro.
19
MELRO BRANCO.— (Berrando.) Quero saber quem sou! Quem sou! Quem sou!
Quem sou! Quem sou! Quem sou! (...) Quem sou!
ABUTRE.— Acalma-te, não berres... Eu tenho uma maneira de descobrir.
MELRO BRANCO.— Sim, qual é?!
ABUTRE.— Eu conheço os sabores de todas as aves e bichos mortais deste mundo.
Deixa que prove um pouco da tua carne e dir-te-ei a que espécie pertences...38
Garfo e faca em riste, o ABUTRE atira-se ao MELRO para uma degustação. O MELRO escapa
por pelos, perdão, por penas, e foge espavorido.
ABUTRE.— Espera, espera, homem... não vês que o faço pelo teu bem, para se resolver o
teu problema de identidade!
MELRO BRANCO.— Já, obrigado, mas esse sistema não me convence...
ABUTRE.— Anda, homem... só uma provinha...
MELRO BRANCO. — Nada.
ABUTRE.—Um pé, só um pé.
MELRO BRANCO.— Não.
ABUTRE.— O dedo gordo do pé, pelo menos.
MELRO BRANCO.— Não sou tolo.
ABUTRE.—A pontinha do dedo gordo do pé.
MERLO BRANCO.— Desaparece.
ABUTRE.— A unha da ponta do dedo gordo do pé.
MERLO BRANCO.— Nem pensar.
Perseguição a rachar. O melro consegue esconder-se (Sai). O abutre tenta agarrá-lo e
escorrega.39
ABUTRE.— Pois eu sem comer não fico!
38 Perseguição por toda a estrutura.
39 O MERLO esconde-se num andaime interior.
20
IMPROVISO
O ABUTRE tenta convencer as crianças a deixarem-se comer. Como as crianças não se
deixam comer, o ABUTRE... também não come. (Sai).40
MELRO BRANCO.— (Aparecendo.) Foi-se embora? E r a s ó o que me faltava! Queria
comer-me! Comer-me! Está visto que isto de ser branco é muito perigoso... Espero que por
hoje acabem os sobressaltos.
Nessa preciso momento... aboucando , saltando, pisando , arrasando, afugentando , gás a
fundo ...macaco , botas , luvas , capacete , casaco de couro ... Aparece a Pomba MENSAGEIRA
MELRO BRANCO.-- (Assustadíssimo.) E tu quem és?!
POMBA.— Eu?! Uuunn ... uun ... uuun ... uma ... uma pomba mensageira! As pombas
mensageiras andam sempre de um lado para o outro. De aldeia em aldeia, de vila em vila,
de cidade em cidade, de nação em nação, de continente em continente, de planeta em
planeta, de sistema solar em sistema solar, galáxia...
CÓMICO B.— Chega, chega. Nem tanto exagero…
POMBA.— Levamos notícias, mensagens, recados, despachos, cartas,
encomendas, certificados, avisos...
MELRO BRANCO.— Tanto... e você pode com tudo?
POMBA.— Não há problema, metade perde-se pelo caminho... Mmmh, mmmh?
mmhhh!Mmmhh?! Oh! Que tipo de pássaro és tu?
MELRO BRANCO.— Isso gostava eu de saber. Decerto sou uma pomba mensageira
como tu, porque também sou branco.
POMBA.— Uma pomba mensageira como eu?! Ha, ha, ha, ha! Por favor, titi, por
favor... tu seres... como eu!... Ehhh... espera um pouco... pode ser que tenhas
razão! É preciso confirmar isso!
MELRO BRANCO.—Confirmá-lo... como?
40 Faz que sai para fora da sala ou por um andaime exterior.
53
21
POMBA.— Hoje fazes tu o meu trabalho. Toma!
Coloca a carteira no MELRO que, coitado, entusiasmado, se dispõe a fazer o trabalho da
POMBA.
MELRO BRANCO.— Estou pronto.
POMBA.— Em marcha! Tranquilo, que eu vou a seguir-te.
CÓMICO B.— E lá vai o pobre MELRO BRANCO, carteiro honoris-causa, por entre
antenas e cheminés, esquivando-se de edifícios e campanários, atravessando vilas
e aldeias seguido... (com a vista)...pela POMBA, que se deixa cair de cansaço... até
que…
MELRO BRANCO.— (Parando arqueado.) Ouve... Se estás cansada paramos, eh... Por
mim não fiques aqui.
POMBA.— Uma pomba mensageira nunca cansa! Aprende comigo... Olha que
descansada que estou!
MELRO BRANCO.— (Extenuado.) Não, não, nunca se cansa...
POMBA.— Vamos lá!
COMICO B.— Mas o pobre Melro Branco sim, estava cansado e já não podia mais,
começava a estar farto de ser uma pomba mensageira, e ainda por cima…
POMBA.— Ouve, eu não sei se serás ou não uma pomba mensageira, mas o que é
certo é que eu nunca fiz uma entrega tão descansada. Assim dá gosto, titi!
MELRO BRANCO.— (Pousado no alto de uma cheminé.) O quê?!? Que se passa! Já
caio! iAaaahh!
Entre o cansaço e o mau humor por sujar o cabelo (perdão, as penas) o MELRO
BRANCO perde o equilíbrio e cai no fundo da cheminé... de onde sai fungando ... e
tossindo.
MELRO BRANCO.— Já caí! (Tosse.) E no fundo de uma cheminé! (Tosse.) Tu o que
queres é aproveitar-te de mim e que eu faça o teu trabalho! Está visto que isto
de ser Branco é a escravatura total! Mas já estou farto... e vou resolver o problema
22
rapidamente!
Forte e confiante, o MELRO BRANCO devolve a carteira à POMBA e deixa -se cair
no fundo da cheminé.
POMBA.— Eh! Onde vais? Espera! Espera, que ainda falta entregar uma carta! Es-
pera!
CÓMICO B.— Mas o Melro Branco não quis esperar e desapareceu no fundo da
cheminé.
POMBA.— Bah, que te maltratem! Toma! (dá a carta ao cómico B.)
CÓMICO B.— Que é isto?
POMBA.— E a mim que me interessa? A correspondência é inviolável…
bbbmmmhmmh... eu vou embora! (Sai.)
CÓMICO B.— (Desenrola o pergaminho.) «Aos habitantes das fragas e bouças deste
país: aquele que souber da existência de um merlo branco será convidado, com
familiares e amigos, a uma festa de arromba e grande banquete que o perdedor
desta aposta terá de pagar. A tantos do tal de miltantoscentos." Um melro branco...
Procuram um melro branco... Esta sim é boa! Tenho de o avisar! Para onde foi!
IMPROVISO
B deixa-se guiar pelas crianças até à boca da cheminé onde o MELRO BRANCO caíra.
CÓMICO B.— Onde estás?
MELRO BRANCO.— Aqui em baixo.
CÓMICO B.— Espera que vou ter contigo. (Desce.)
Rompendo o silêncio que se apoderou da cena aparece PAPA MELRO, rádio na mão, rindo
muito.
PAPA MELRO.— Ai a burrice que acabo de ouvir pela rádio. Que louco anda o mundo!
Um melro branco... Procuram um melro branco... E oferecem uma festa e um
banquete de prémio! Que trapalhada, todos sabem que os melros brancos não
existem! Mmmmhhmm... Eh... o meu filho é merlo, e para além disso é branco!
23
Claro, esta é a minha oportunidade, tenho de encontrá-lo! Filho...Filho! Onde
estás? (Sai.)
Entre tosses e poeiras, e com muito trabalho, B sobe pela cheminé trazendo a reboque o
melro branco.
IMPROVISO
B é ajudado pelos ânimos sonoros das crianças.
CÓMICO B.— Temos o melro branco!
MERLO BRANCO.— Branco não, negro!41
CÓMICO B.— Negro ? !
CÓMICO A.— (Aparecendo.). Sim, o melro branco, cansado das falcatruadas que lhe
fizeram por ser branco, decidiu enfarruscar-se todo enfarruscado com farrusco da
cheminé até ficar totalmente negro.
MELRO BRANCO.— É isso, uma passagenzinha pelo farrusquinho fresco da cheminé
e já está: sou negro! Negro! Acabou-se o andar por aí à procura de pássaros
parecidos comigo…já sabem o que sou. Sou um melro, um melro normal... Como
todos os merlos... Um merlo negro! Viva!
CÓMICO A.—E o nosso amigo empreendeu viagem de regresso a casa. O seu pai não
poderia queixar-se, agora sim que era negro —ou isso era o que ele pensava—. Seu
pai... (Aparece o pai.) falando de Roma...
PAPA MELRO.— Filho... filho, vem para a casa! Sentimos tanto a tua falta... anda,
que aqui todos te amamos!
MELRO BRANCO.— (Aproximando-se.) Assim dá gosto... ainda nem há cinco
minutos sou negro e as coisas já mudaram. Agora todos me amam!
PAPA MELRO. - F i lho!
MELRO BRANCO.— Aqui estou!
41 O ator que encarna o MELRO BRANCO vestiu um traje negro por cima do que tinha.
24
PAPA MELRO.— (Surpresa.) Eh? Mas…mas o que fizeste? Estás negro?!
MELRO BRANCO.— Eu...?...nada... Agora sou negro, como tu querias. Não estás
contente?
PAPA MELRO.— É claro que não! Se eras branco, branco tinhas de continuar a sê-
lo... Os pássaros jovens nunca estão satisfeitos. Não sabeis o que quereis...!
MELRO BRANCO.— Mas tu dizias que um melro que se prezasse tinha de ser negro.
PAPA MELRO.— Sim, mas isso era antes de saber da existência do prémio.
MELRO BRANCO.— Prémio, que prémio?
PAPA MELRO.— Nada... nada... Coisas minhas… pois eu não fico sem o banquete…
tenho de encontrar uma solução!42
CÓMICO A.—E lá foi Papa Melro, à procura de alguma astúcia que lhe permitisse
ganhar o prémio…entretanto, o pobre Melro Branco fica espantado e confuso…
MELRO BRANCO.— Não há direito! Quando era branco, era um problema ser
branco... Agora que sou negro, é um problema ser negro. Vamos lá ver em que
ficamos: branco ou negro?! Certinho mesmo é que ninguém entende o que querem
os pássaros adultos... Ninguém os entende. (Sai.)
CÓMICO A.— Então Papa Melro...
PAPA MELRO.— Um moinho, cá vou eu!43
CÓMICO A.— O Papa Melro encheu-se de farinha de trigo. Enfarinhou-se todo
enfarinhado dos pés à cabeça até ficar completamente branco. 44
PAPA MELRO.— Já está. Para grandes males, grandes remédios… agora o branco sou
eu…o prémio já está no papo! Arroz com chicharros, batatas...
CÓMICO A.—E assim, cantando de alegria, Papa Melro foi pedir o seu prémio por
ser o melro branco…
PAPA MELRO.—...repolho de Betanzos, e mais cebolas... (Sai.)
42 Papa Melro sai pelos andaimes exteriores.
43 No alto de um andaime.
44 No fundo do andaime o ator que encarna o PAPA MELRO veste um fato branco por cima do que
levava.
25
CÓMICO A.— Mas cantava tão mal, tão mal, tão mal, tal mal, que começou a
chover...45 A soprar o vento, a abanar os troncos... E foi tão grande, tão grande
aquela chuvada, que...sabeis o que passou?
PAPA MELRO.— (Aparecendo.) Que grande chatice , foi tudo por água abaixo…sou
negro outra vez, adeus ao prémio, adeus à paparoca...46
COMICO B.— Pois a chuva lavara toda a farinha de trigo com que o Papa Melro se
branqueara, mas ao mesmo tempo...
MELRO BRANCO.— (Aparecendo.) Pronto, sou outra vez branco, outra vez nas
mesmas...
COMICO B.— Ao mesmo tempo também lavara todo o farrusco da cheminé com
que o Melro Branco se pintara de negro... Não ficou muita coisa, como acontece
com a chuva…
PAPA MELRO.— Não há, não... tu és como és... como tens de ser...
CÓMICO B. — A chuva amolecera-lhe a dura cabeçota ao papa melro, e o Papa Melro
aprendera a lição e caiu em si.
PAPA MELRO. — Não filho não.. tu és como és... como tens de ser...Pensas como
um merlo?
MELRO BRANCO.— Sim.
PAPA MELRO.— Jantas como um merlo?
MELRO BRANCO.— Sim.
PAPA MELRO.— Comes como um merlo?
MELRO BRANCO.— Sim.
PAPA MELRO.— Voas como um merlo?
MELRO BRANCO.— Sim.
PAPA MELRO. — Pois então és um melro!
MELRO BRANCO.— Mas sou branco.
45 A chuva (máquina de sulfatar) vai molhando as crianças. Os ventos são feitos pelas crianças para
que não se molhem. Os trovões são feitos pela bateria
46 Aparecendo outra vez vestindo de negro.
26
PAPA MELRO.— Que interessa se és branco ou negro, verde ou azul, amarelo ou
vermelho. Para eu ser eu tenho de ser negro, para tu seres tu tens de ser branco. E
somos os dois melros, não somos? Pois dá-me um abraço!
O MELRO BRANCO atira-se aos braços do pai, mas este está mais interessado na paparoca e
esquece rapidamente as ternas cenas familiares. Exultante, dirige-se ao público.
PAPA MELRO.— Ganhamos o prémio!
MELRO BRANCO.— (Do chão.) Vamos lá à comidinha.47
CÓMICO B.— Todos os pássaros da bouça se dirigem à festa...
CÓMICO A.— Os altos e os baixos...
CÓMICO B.— Os maiores e os mais pequenos.
CÓMICO C.— Os negros e os brancos...
CÓMICO D.— E todos comeram!
CÓMICO C.— E todos brincaram!
CÓMICO A.— E todos cantaram!
CÓMICO B.— Música!
(Cantam.)
Vamos todos à festa dos pássaros, venham rapidamente, pois isto acaba depressa,
aquele que não for rápido, nada terá para comer…
IMPROVISO
Os cómicos convidam as crianças a porem-se de pé.
Já que vamos à festa dos pássaros
O mais lógico será irmos a voar
O primeiro que temos que fazer
É ver como podemos saltar.
47 Sobem por cada um dos andaimes. Tiram os trajes de melro à frente do público. D distribui os
instrumentos.
27
IMPROVISO
Os cómicos convidam as crianças a saltar.
O problema é que nós não temos asas
Para irmos à festa dos pássaros;
No teatro nada é impossível,
Voaremos mexendo os braços.
IMPROVISO
Os cómicos convidam as crianças a voar movendo os braços.
Se continuardes assim durante um ano
Podereis sair daqui a voar
Mas o nosso tempo não dá para tanto;
Preferimos sair daqui a andar.
E saímos por fim, que já são horas,
Pois aqui acabou o Melro L....?
NENOS.—...48
COMPANHIA.— Porque aqui acabou o Melro Branco.
Música, a companhia dá uma volta pelo estrado. Param para se despedir... ou pelo menos
tentam. 49
CÓMICO A.---Até logo, o TEX despede-se de todos vós e...
CÓMICO B.— (Corta.) Foi muito bom estar convosco, mas temos que ir...
CÓMICO C.— (Cortando.) Adeus amigos, Despedimo-nos com música e vamos para
48 Supõe-se que dirão «branco» e se não o disserem não importa.
49 Despedida muito alegre, com muito ritmo.
28
outro lugar e...
CÓMICO C.— (Corta.) E assim, por esta ocasião concluímos a função...
TODOS.— Mas...é sempre a mesma coisa... que fale um... isto assim não pode ser!
A companhia marcha alegre e festiva, (trompeta, trombone, bombo e pratos) por entre as
crianças fazendo barulho. Descem do estrado com a sua fanfarra. Termina o espetáculo.
FIM