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O Teeteto e a Apologia JORGE NUNES BARBOSA FILOSOFIA

Teeteto e Apologia

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Texto de apoio para alunos de filosofia do ensi

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O Teeteto e a Apologia

JORGE NUNES BARBOSA

FILOSOFIA

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Prefácio

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Este texto destina-se aos meus alunos de Filosofia.

Foi composto a partir de apontamentos meus, muitos deles sem qualquer referência, por se destinarem mais a apoiar as minhas leituras do que a serem alguma vez publicados, e a partir das obras de Platão: O Teeteto e a Apologia, em língua francesa. No meu tempo de estu-dante de Filosofia no Ensino Superior, as obras de Pla-tão não estavam acessíveis em língua portuguesa, pelo que me habituei a lê-las em francês. Mais tarde, tendo completado a minha formação superior numa Universi-dade francesa, adquiri o gosto por ler Platão e outros autores clássicos em francês. Desta circunstância, resul-ta uma leitura do Teeteto que não coincide inteiramen-te com aquela que se encontra nos manuais portugue-ses: assume-se que o tema do Teeteto é a ciência e não o conhecimento. No entanto, é mantida a terminologia, habitual nesses manuais, relativa à opinião e à opinião verdadeira, por ser irrelevante outra qualquer, se o tema considerado for o da Ciência.

Os pormenores que se referem à vida de Sócrates são sobretudo influenciados pela História da Filosofia de Magalhães Vilhena. São acrescentados mapas, retira-dos do “google maps” para ilustrar a região geográfica por onde Sócrates viajou. Algumas dessas localidades, como Mégara e Kifissia, conheci-as pessoalmente, ou-

tras são localizadas nos mapas atuais, a partir das infor-mações contidas na “Wikipedia”. O mesmo acontece com o valor do dinheiro da época que foi apurado a par-tir da conversão das minas em dracmas.

A escrita deste texto, começada há já bastante tempo, foi interrompida e interrompe, agora, a escrita de um outro texto sobre a Doutrina Social da Igreja (DSI). Na verdade, este último tem-se revelado mais complexo do que era minha intenção inicial: A DSI não se compade-ce com uma escrita esquemática, como aquela que eu pensava fazer.

Tanto Platão como a DSI concordam num ponto em ter-mos de política: a justiça é o bem maior do Estado, a justiça ou o bem comum. A liberdade individual deve subordinar-se à justiça. Numa época, em que as conce-ções políticas, por fanatismo liberal, se aproximam peri-gosamente de conceções e sobretudo de práticas anar-quistas, quer Platão, quer a DSI podem, a par das teori-as de Rawls ou de Amartya Senn, ser refrescantes e pro-missoras. A justiça de que aqui se fala não é a justiça dos tribunais, que essa tem sempre origem na injusti-ça, mas a justiça que, se existisse, dispensaria os tribu-nais.

Jorge Nunes Barbosa Julho, 2012

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CAPÍTULO 1

A Vida de Platão

A poesia enfrentava um declínio evidente em Atenas, mas a prosa estava em ascen-são. Lísias (que aparece em, pelo menos, dois diálogos de Platão) escrevia discur-sos de defesa em tribunal (parece que es-creveu mesmo um para Sócrates), e Isó-crates tinha fundado uma escola de retóri-ca.

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SUMÁRIO

1. A Vida de Platão

2. Resumo da Filosofia de Platão

3. O Teeteto

4. A Apologia de Sócrates

Vida Atribulada de PlatãoPlatão nasceu em Atenas no ano 428-427 a.C., no povo-ado de Collytos. Segundo Diógenes de Laércio, o seu pai Aríston era descendente de uma família real, a famí-lia de Codros, o último rei de Atenas. A sua mãe, Pericti-one, irmã de Carmides e prima de Crítias, o tirano, des-cendia de Drópides, que Diógenes de Laércio dizia ser irmão de Sólon, um dos sete sábios da Grécia.

A tradição mandava que a uma criança, como Platão, fosse atribuído o nome do seu avô. Portanto, Platão de-veria ter-se chamado Aristocles. Segundo Diógenes de Laércio, o nome de Platão foi-lhe dado pelo seu mestre de ginástica, em alusão à sua corpulência.

A família de Platão possuía uma propriedade em Kifis-sia, onde atualmente se situa uma estação terminal da li-nha 1 do metro de Atenas. Aí, deve ter aprendido a gos-tar da calma da vida rural, mas, muito provavelmente, deve ter passado a maior par-te da sua infância na cidade, para poder ter acesso à edu-cação própria da sua condi-ção social (o metro que liga o centro da cidade de Atenas a

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Kifissia é muito recente...). O mais certo, tendo em con-ta as suas origens de nobreza, é que tenha aprendido a honrar os deuses e a respeitar os rituais da religião, como era tradição em todas as famílias de bem. Mante-rá durante toda a sua vida este respeito pela religião e imporá esse respeito nas suas Leis. Para além da ginás-tica e da música, que eram a base da educação atenien-se, também terá sido iniciado no desenho e na pintura. Em filosofia, a sua formação terá começado com as li-ções de um discípulo de Heraclito, Crátilo, cujo nome foi dado, por Platão, a um dos seus diálogos. Eram-lhe reconhecidos talentos para a poesia. Foi testemunha dos sucessos de Eurípides e Ágaton, e ele próprio com-pôs tragédias, poemas líricos e ditirambos.

Com cerca de vinte anos de idade, Platão conheceu Só-crates. Diz-se que queimou as suas tragédias e que se dedicou completamente à filosofia. Sócrates tinha dedi-cado toda a sua vida a ensinar a virtude aos seus conci-dadãos: a reforma (a conversão à virtude) dos cidadãos era a condição necessária e indispensável para o bem-estar da cidade. Este será também o objetivo principal da vida de Platão que, tal como o seu primo Crítias e o seu tio Cármides, ambicionava dedicar-se a uma carrei-ra política; no entanto, os excessos dos Trinta (um go-verno oligárquico de Atenas composto por trinta magis-trados) acabaram por o horrorizar. Quando foi restabe-

lecida a constituição democrática em Atenas, Platão já não estava tão confiante numa carreira política. A con-denação de Sócrates pelo regime democrático desilu-diu-o de forma irrecuperável e definitiva. Ele tinha mantido a esperança de que a democracia haveria de melhorar a vida política; vendo que o mal parecia incu-rável, dedicou-se completamente a preparar, através das suas obras, alterações políticas de fundo, onde os filósofos, preceptores e governantes da humanidade, haveriam de pôr fim à maldade que ele tanto repudia-va.

Segundo consta, Platão estaria doente quando Sócrates bebeu a cicuta, e, por isso, não pôde estar presente nos seus últimos momentos. Após a morte do mestre, reti-rou-se para Mégara (atualmente um aglomerado agríco-la a 43Km de Atenas, atravessado pela auto-estrada Ate-

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nas-Corinto), para junto de Euclides e Terpsion, tal como ele, discípulos de Sócrates. Mais tarde, teve de voltar a Atenas para cumprir serviço militar na cavala-ria. Participou, segundo parece, nas campanhas de 395 e de 394 da guerra de Corinto. Na verdade, Platão nun-ca se referiu aos seus serviços militares, mas sempre preconizou os exercícios militares para desenvolver o vigor físico dos jovens.

O desejo de instrução levou Platão a viajar. Cerca de 390, dirigiu-se ao Egito, levando consigo um carrega-mento de azeite para pagar a viagem. Aí, tomou contac-to com artes e costumes com milhares de anos de tradi-ção. Há quem pense que foi graças ao espetáculo desta civilização, fiel a antigas tradições, que Platão criou a ideia de que:

os homens podem ser felizes, se respeitarem as for-mas imutáveis de vida,

a música e a poesia não necessitam de novas cria-ções, e

basta descobrir a melhor constituição e forçar os po-vos a aderir a ela para se viver numa cidade justa.

Do Egito, partiu para Cirene (colónia grega na região da Líbia atual), onde frequentou a escola do matemáti-

co Teodoro, que será um dos inter-locutores do Teeteto. De Cirene, passou para Itália, onde fez amiza-de com os pitagóricos Filolau, Ar-quitas e Timeu. Não é seguro que tenha sido com estes pitagóricos que Platão passou a acreditar na migração das almas; mas a eles deve seguramente a ideia de eterni-dade da alma, que haveria de ser a

pedra angular da sua filosofia; essa ideia de imortalida-de da alma forneceu a solução para o problema do co-nhecimento. Com esses pitagóricos, Platão aprofundou também os seus conhecimentos em aritmética, em as-tronomia e em música.

Dirigiu-se, depois, para a Sicília e, em Siracusa, assistiu às farsas populares e comprou o livro de um autor de

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farsas em prosa. Foi recebido na corte de Dionísio na qualidade de estrangeiro distinto (diríamos agora VIP)

e conquistou para a filo-sofia o cunhado do tira-no. No entanto, não du-rou muito tempo a cor-dialidade de Dionísio que o despachou num barco com destino a Egina (uma ilha a cer-ca de 27 Km de Atenas,

com a qual, na época, estava em conflito aberto), como escravo do Lacedemónio Pollis. Felizmente, um Cire-neu, que reconheceu Platão, comprou a sua liberdade pelas vinte minas que ele tinha valido no mercado de Siracusa (cerca de 128 dracmas - mal comparando, um euro equivale à conversão de 340,750 dracmas, nos tempos atuais). Platão voltou, então, a Atenas, muito provavelmente com cerca de quarenta anos.

Nesse ano (388 a.C.), Eurípides já tinha morrido e não tinha sucessor à sua altura, Aristófanes acabava de re-presentar a sua última tragédia, e o teatro cómico esta-va em decadência. A poesia enfrentava um declínio evi-dente em Atenas, mas a prosa estava em ascensão. Lí-sias (que aparece em, pelo menos, dois diálogos de Pla-tão) escrevia discursos de defesa em tribunal (parece

que escreveu mesmo um para Sócrates), e Isócrates ti-nha fundado uma escola de retórica. Dois discípulos de Sócrates, Ésquines e Antístenes, que tinham tomado a defesa do mestre, tinham uma escola e publicavam es-critos ao gosto do povo ateniense. Platão dedicou-se também ao ensino; mas, em vez de o fazer através da conversa, como Sócrates, fundou uma escola à imagem das sociedades pitagóricas. Comprou um terreno próxi-mo do ginásio do bosque de Academos, e aí mandou construir a sua escola. Daí, o nome de Academia, dado à escola de Platão. Os seus alunos formavam um grupo de amigos, cujo presidente era escolhido pelos jovens que, sem dúvida, pagariam uma espécie de cotização.

Não se sabe nada dos vinte anos da vida de Platão, que decorreram entre o seu retorno a Atenas e a sua nova deslocação à Sicília. Nem nas suas obras se encontra qualquer alusão aos acontecimentos seus contemporâ-neos:

a reconstituição do império marítimo da Atenas,

aos sucessos de Tebas com Epaminondas,

à decadência de Esparta.

Entretanto, Dionísio, o antigo, tinha morrido em 368. O seu cunhado, Deão, esperava poder influenciar o pen-

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samento de Dionísio, o jovem, sucessor de seu pai. So-nhava, ao que parece, transformar a tirania numa mo-narquia constitucional, onde a lei e a liberdade pudes-sem conviver pacificamente. Por isso, pediu ajuda a Pla-tão. Platão ainda alimentava a ambição de desempe-nhar um papel político importante, pondo em prática o seu sistema. Deixou a direção da sua escola a Eudoxo, reforçando, deste modo, a sua amizade com Arkitas, matemático filósofo que governava Tarento. Quando chegou a Siracusa, no entanto, a situação já tinha muda-do. Foi muito bem recebido por Dionísio, mas muito mal pelos partidários da tirania. Por outro lado, tendo-se apercebido de que o tio, Deão, o queria manter sob sua tutela, Dionísio expulsou-o de Siracusa. Enquanto Deão foi viver para Atenas, Platão, sob o pretexto de

ser o mestre de Dionísio, ficou retido em Siracusa du-rante todo o Inverno. Finalmente, na primavera do ano de 365, Dionísio autorizou-o a partir, sob promessa de voltar com Deão. Platão e Dionísio separaram-se, ape-sar de tudo, como amigos, graças sobretudo às diligên-cias bem sucedidas de Platão junto de Arquitas de Ta-rento para que aceitasse fazer uma aliança com Dioní-sio.

De volta a Atenas, Platão encontrou Deão que levava uma vida faustosa. Retomou o ensino. Entretanto, Dio-nísio, aparentemente, tinha ganho o gosto pela filoso-fia. Tinha chamado à sua corte dois discípulos de Sócra-tes, Ésquino e Aristipo de Cirene, e manifestou o desejo de voltar a encontrar-se com Platão. Na Primavera de 361, enviou um vaso de guerra ao Pireu. O seu coman-dante era portador de cartas de Árquitas de Tarento e de Dionísio, em que Árquitas lhe garantia a sua segu-rança pessoal, e Dionísio lhe relembrava o interesse no retorno de Deão no ano seguinte. Platão acreditou nes-tes pedidos e partiu para Siracusa com um seu sobri-nho, Speusipo. Novos contratempos o esperavam em Siracusa, na Sicília: não conseguiu convencer Dionísio a mudar de vida. Entretanto, Dionísio embargou os bens de Deão. Platão quis partir; o tirano reteve-o, e foi necessária a intervenção de Árquitas para que ele pu-

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desse deixar Siracusa, na Primavera de 360. Encon-trou, depois, Deão na cidade de Olímpia.

Sabe-se que, tendo sabido que Dionísio se tinha apro-priado da sua mulher e oferecido a outro, Deão mar-chou contra ele em 357 e apoderou-se de Siracusa. Aca-bou por ser assassinado quatro anos depois, em 353. Platão sobreviveu-lhe cinco anos.

A academia de Platão sobreviveu até 529 da nossa era, ano em que o imperador Justiniano a mandou fechar.

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CAPÍTULO 2

A Filosofia de Platão

Ninguém falou do bem e do belo com um entusiasmo tão comunicativo. A vida que vale a pena ser vivida, diz ele no Banque-te, é a do homem que se elevou do amor pelos corpos belos, ao amor pelas almas belas, e deste, ao amor pelas belas ações, depois, ao amor pelas belas ciências, até à beleza absoluta que atravessa os cora-ções com um arrebatamento inexprimí-vel.

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Nas suas primeiras obras, isto é, nos diálogos chama-dos socráticos, Platão, fiel discípulo de Sócrates, dedi-ca-se, tal como este, a definir as ideias morais. Procura saber o que é a coragem, a sabedoria, a amizade, a pie-dade, a virtude. Sócrates acreditava que basta conhecer o bem para o praticar, e que, por conseguinte, a virtude é ciência e o vício é ignorância. Platão manter-se-á fiel, durante toda a sua vida, a esta doutrina. Tal como Só-crates, honrará os deuses e defenderá que a virtude con-siste em se assemelhar a eles, tanto quanto o permita a fraqueza humana. Como Sócrates, acreditará que o bem é o fim supremo de toda a existência e que é no bem que deve ser procurada a explicação do universo.

Mas, por muito dócil que Platão tenha sido às lições de Sócrates, a sua grande ambição de saber impediu que se limitasse ao ensino puramente moral do seu mestre. Antes de conhecer Sócrates, tinha recebido lições de Crátilo que o familiarizou com a doutrina de Heraclito. Também estudou as teorias dos Eleatas (Parménides), de Anaxágoras e os escritos de Empédocles. Durante a sua viagem a Cirene, aperfeiçoou-se na geometria e, em Itália, dedicou-se ao estudo da aritmética, da astrono-mia, da música e da medicina dos pitagóricos. Tinha in-tenção de visitar a Jónia e as cidades costeiras do mar Egeu, mas a guerra com a Pérsia demoveu-o dessa ideia. Em Abdera (localidade que se situa atualmente

perto das fronteiras da Grécia com a Turquia e a Bulgária - antiga Trácia), travou conhecimento com Demócrito e com o ato-mismo, uma das mais ge-niais criações da filosofia grega antes de Platão.

De qualquer modo, o sis-tema de Platão é uma sín-tese de tudo o que se sa-bia no seu tempo, mas so-bretudo das doutrinas de Sócrates, de Heraclito, de

Parménides e dos Pitagóricos. A teoria platónica das ideias é a base e a originalidade de todo o seu sistema.

Inicialmente, Platão tinha estudado a doutrina de Hera-clito que se baseava no fluir universal das coisas. “Tudo flui, dizia Heraclito, nada permanece. O mesmo ho-mem não entra duas vezes no mesmo rio”. Desta ideia, Platão retira a consequência de que os seres, que se en-contram em perpétuo devir, dificilmente merecem o nome de seres, e sobre eles só podemos formar opini-ões confusas, incapazes de se justificar a si mesmas. Não podem ser objeto de uma verdadeira ciência, pois

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não não há ciência do que está em perpétua mudança; só há ciência do que é fixo e imutável. Todavia, quando observamos atentamente esses seres em mutação per-manente, damo-nos conta de que reproduzem, dentro da mesma espécie, características constantes. Estas ca-racterísticas transmitem-se de indivíduo para indiví-duo, de geração para geração. São, portanto, cópias de modelos universais, imutáveis, eternos a que Platão dá o nome de Formas ou de Ideias. Na nossa linguagem corrente, entendemos por ideia uma modificação, um ato do espírito. Na linguagem de Platão, a Ideia expri-me, não o ato do espírito que conhece, mas o próprio objeto que é conhecido. Assim, a Ideia de homem é a forma ideal de homem, que todos os homens reprodu-zem com maior ou menor perfeição. Esta forma é pura-mente inteligível, isto é, não se apreende pelos senti-dos, mas nem por isso deixa de ser viva. É mesmo o úni-co ser verdadeiramente vivo, pois as suas cópias, estan-do sempre em mudança, são mortais. A Ideia de ho-mem é aquilo que realmente existe, que é eterno e imu-tável e, por isso, é aquilo que pode ser conhecido e ser objeto da ciência.

Platão ilustrou a sua teoria das Ideias na célebre alego-ria da caverna, onde os homens são comparados a prisi-oneiros acorrentados que não podem virar a cabeça para trás e que só vêem na parede do fundo da sua pri-

são (à sua frente) as sombras projetadas dos objetos, que desfilam por trás deles iluminados pela luz de uma fogueira. Os objetos que passam por trás dos prisionei-ros são os objetos do mundo inteligível (as Ideias), a luz que os ilumina é a ideia de Bem, origem de toda a ciência e de toda a existência. Reconhece-se aqui a dou-trina de Parménides (escola Eleata), para quem o mun-do não passa de aparência, e para quem a única realida-de é a Unidade. Mas enquanto, para Parménides, o Ser uno e imutável é uma abstração, para Platão, é o Ser por excelência, fonte de onde brota toda a vida.

A Ideia do Bem, diz Platão, está no limite do mundo in-teligível: é a última e a que ocupa o lugar mais alto; ad-mite, em todo o caso, que existe uma hierarquia de Idei-as. No livro X da República, parece aceitar que todos os objetos da natureza e as criações do homem, como um banco ou uma mesa, retiram a sua existência de uma Ideia e que as Ideias são em número indeterminado. Mas, habitualmente, só fala das Ideias do Belo, do Jus-to e do Bem.

A teoria das Ideias está estreitamente associada à dou-trina da reminiscência e da imortalidade da alma. A nossa alma, que existiu antes de nós e passará para ou-tros corpos depois de nós, já conheceu essas Ideias, mais ou menos vagamente, num outro mundo. O mito

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do Fedro mostra-nos a alma a subir as escadas para o céu, atrás do cortejo dos deuses, para ir contemplar as Ideias do outro lado da abóbada celeste. Ela traz de lá uma lembrança obscura que a filosofia se esforça por esclarecer. Este esforço de esclarecimento implica um treino inicial destinado a despertar a reflexão.

As ciências que se caracterizam pelo raciocínio puro, a aritmética, a geometria, a astronomia, são as mais indi-cadas para nos familiarizar com o mundo do inteligível. A dialética surge então como o método mais eficaz. Pla-tão parte da dialética socrática, espécie de conversa, através da qual se busca a definição de uma virtude. As-sim, no diálogo Laques, os três interlocutores, Laques, Nicias e Sócrates procuram definir coragem. Laques propõe uma primeira definição: “O homem corajoso, diz ele, é o que se mantém firme contra o inimigo”. Só-crates considera esta definição muito pobre, pois a cora-gem pode ser aplicada em muitas outras circunstânci-as. Laques propõe, então, uma nova definição: “A cora-gem é uma espécie de firmeza”. Mas se essa firmeza se basear na loucura e na ignorância, responde Sócrates, não poderá corresponder à coragem. Por seu turno, Ni-cias diz que a coragem é a ciência que nos permite dis-tinguir aquele que devemos temer daquele de quem não precisamos de ter medo. A esta definição, Sócrates apresenta outra objeção. Se a coragem é uma ciência,

então deve ser a ciência de todos os bens e de todos os males; nesse caso, essa definição aplicar-se-ia à virtude em geral e não especificamente à coragem. A partir da-qui os três interlocutores separam-se sem alcançarem a definição procurada. Mas dá para perceber o processo que, de uma proposição, passa a outra mais compreen-siva, até que se chegue à ideia geral que compreenderá todos os casos e distinguir-se-á das ideias vizinhas. Pla-tão aplica este método socrático ao domínio das Ideias, para as alcançar a elas, subindo das Ideias inferiores até à Ideia do Bem. Temos de começar por uma hipóte-se a respeito do objeto estudado. Essa hipótese é verifi-cada pelas conclusões a que conduz. Se as conclusões forem insustentáveis, a hipótese é rejeitada. Uma outra hipótese toma o seu lugar, sujeitando-se ao mesmo pro-cedimento, até que se encontre uma que resista ao exa-me da sua sustentabilidade. Cada hipótese é um degrau que nos conduz à Ideia. Quando tivermos examinado deste modo todos os objetos de conhecimento, alcança-remos todos os princípios (arkai) incontestáveis, não somente em si mesmos, mas também na sua mútua de-pendência e na relação que têm com o princípio superi-or e absoluto que é a Ideia de Bem. O diálogo Parméni-des fornece-nos um exemplo deste procedimento. Este procedimento exige uma inteligência superior e um tra-balho incansável, de que só o filósofo é capaz.

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Mas a dialética não é suficiente para compreendermos todas as coisas. Há segredos impenetráveis para a ra-zão, cuja posse os deuses reservaram para si mesmos. Podem, é verdade, deixar que alguns homens privilegia-dos tenham uma visão desses segredos, sem lhes dar o privilégio de os alcançar plenamente. Os deuses permi-tem, por exemplo, que os adivinhos conheçam, embora imperfeitamente, o futuro e que os artistas tenham ins-pirações; é o caso de Sócrates, a quem os deuses favore-ceram, com informações privilegiadas. Assim, talvez se verifiquem, nos poetas e nas crenças populares, traços de uma revelação divina, que lançariam alguma luz so-bre as nossas origens e o nosso destino após a morte. Os Egípcios acreditavam que os homens são julgados pelos seus atos após a morte, e os Pitagóricos acredita-vam que a alma passa do corpo de um animal para o de um outro. Platão não desprezou a recolha destas cren-ças, mas recusou-se a dá-las como certas. Para ele, são esperanças ou sonhos que ele expõe em mitos de uma poesia sublime. A sua imaginação transmite-lhes um brilho mágico e sugere pormenores tão precisos, que se diria que Platão assistiu aos mistérios do Além. Encon-trou nesse Além limbos, um purgatório e um inferno eterno reservado à almas incorrigíveis. Estas visões ex-traordinárias impressionaram de tal modo os espíritos do seu tempo e dos tempos seguintes que os cristãos,

modificando-as um pouco, fizeram delas dogmas religi-osos.

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A Psicologia

A psicologia de Platão é marcada por características profundamente espiritualistas. A alma é eterna. Antes de se unir ao corpo, contemplou as Ideias e, graças à re-miniscência, pode reconhecê-las depois de ter incarna-do num corpo. Devido à coabitação com a matéria, a alma perde a sua pureza e adquire três componentes di-ferentes:

uma componente superior, ou a razão, faculdade contemplativa, destinada a governar e manter a har-monia entre ela e as duas componentes inferiores,

a coragem, faculdade nobre e generosa que inclui ao mesmo tempo desejos elevados da nossa natureza e a vontade,

o instinto e o desejo que atraem os homens para ob-jetos sensíveis e para desejos grosseiros.

O ponto mais fraco desta conceção é a reduzida valori-zação da vontade livre. Platão defende, tal como Sócra-tes, que o conhecimento do bem implica a adesão da vontade, o que dificilmente se compagina com a experi-ência. Platão tentou estabelecer os princípios que re-gem a sobrevivência da alma através de demonstrações dialéticas, e expôs no Górgias, na República e no Fé-don as migrações e as purificações a que alma é subme-tida, antes de voltar à terra e entrar num novo corpo. O detalhe destas descrições varia, no entanto, de obra para obra.

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A Política

A política de Platão é modelada pela sua psicologia, pois, no seu entender, os costumes do Estado são neces-sariamente modelados pelos dos indivíduos. A base fun-damental do Estado é a justiça: o Estado não pode exis-tir sem justiça. Platão entende a justiça de uma forma mais ampla do que aquela que é habitual para a maior parte das pessoas. Para um grande número de pessoas, a justiça consiste em dar a cada um o que é seu. Sócra-tes rejeita esta definição no primeiro livro da Repúbli-ca. Para ele, ao nível individual, a justiça consiste em que cada componente da alma cumpra a função que lhe é própria: que o desejo se submeta à coragem e que a coragem se submeta à razão. O mesmo se passa ao ní-

vel da cidade. Esta é constituída por três tipos de cida-dãos que correspondem às três componentes da alma:

os magistrados filósofos que representam a razão;

os guerreiros que representam a coragem e que são encarregados de proteger o Estado dos inimigos ex-ternos e de fazer os cidadão obedecer às leis do Esta-do;

finalmente, os trabalhadores, os artesãos e os co-merciantes que representam o instinto e o desejo.

Para estes três tipos de cidadãos, a justiça consiste, tal como para os indivíduos, em cumprir a sua função espe-cífica. Os magistrados governam, os guerreiros obede-cem aos magistrados, e os outros obedecem aos dois; deste modo, reinará a harmonia, isto é, a justiça entre as três categorias de cidadãos. A educação deve prepa-rar os magistrados, os guerreiros e os auxiliares para o exercício das suas futuras funções, sendo também um meio para determinar as características que definem, em cada um, a categoria social a que deve pertencer. Tal como os homens, as mulheres também devem bene-ficiar dessa educação, uma vez que, segundo Platão, elas são tão aptas como os homens. Assim, as mulheres devem poder aceder aos mesmos cargos dos homens in-cluindo a função de guerreiro. Os magistrados devem

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ser escolhidos de entre os mais dotados, que tenham evidenciado uma maior dedicação ao bem público. De-vem ser formados na dialética, para que possam con-templar as Ideias e governar o Estado de acordo com a Ideia de Bem. Importa esclarecer que estas três catego-rias, ou classes, não correspondem a castas ou a privilé-gios transmitidos de geração em geração; pelo contrá-rio, as crianças são encaminhadas para uma ou para ou-tra categoria, de acordo com as aptidões que revelem possuir durante o processo de formação, e não de acor-do com os recursos ou estatuto social da sua família.

Por outro lado, o Estado deve ser de dimensão reduzi-da. Na verdade, Platão considerava que o pior perigo para o Estado seria a sua divisão interna. Por isso, não acredita na viabilidade da justiça em Estados de grande dimensão, do tipo do império Persa, como defendia Xe-nofonte. O seu modelo de Estado eram as cidades gre-gas. Um Estado pequeno não corre o risco de se dividir com a mesma facilidade de um grande Estado, forma-do por povos diferentes, e facilita também a supervisão dos magistrados. Para evitar a divisão, o pior dos males de que sofriam as cidades gregas, deveriam ser suprimi-dos os inimigos mais temíveis da unidade:

o interesse pessoal, e

o espírito de família.

O interesse pessoal seria suprimido através do estabele-cimento da comunidade de bens, e o espírito de família através da comunidade das mulheres e das crianças, que deveriam ser educadas pelo Estado. No entanto, esta comunidade de bens, de mulheres e de crianças não deveria abranger todo o povo; só seria regra para as duas ordens superiores, as únicas capazes de com-preender o valor dessa comunidade e submeter-se a ela em nome do bem público. Por outro lado, os casamen-tos não poderiam ser deixados ao critério dos jovens: sendo efémeros como a experiência dizia que eram, se-ria da competência dos magistrados regulá-los oficial e solenemente.

Platão não tinha quaisquer dúvidas a respeito da difi-culdade em pôr em prática o seu sistema. Ele sabia que a doutrina das Ideias, em que ele se baseava, era incom-preensível para a multidão e que, por conseguinte, a sua Constituição teria de ser imposta à maioria do povo, mesmo que fosse contra a sua vontade, e que essa imposição só seria eficiente se fosse conduzida por um rei filósofo, e filósofo à maneira de Platão. Houve um momento em que parece que ele acreditou encon-trar esse rei filósofo em Dionísio de Siracusa, o jovem, e no seu amigo Deão. O seu fracasso junto do primeiro, e o assassinato do segundo, depois de ter usurpado o poder a Dionísio, retiraram-lhe todas as ilusões. Mas a

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política tinha sido sempre uma das preocupações domi-nantes de Platão. Já velho, volta a pegar na pena para redigir uma nova Constituição, que expôs em As Leis. Esta nova Constituição baseia-se nos mesmos princípi-os, mas é mais prática e abdica da comunidade dos bens, das mulheres e das crianças.

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A Moral

A Moral

A moral de Platão tem um caráter, ao mesmo tempo, as-cético e intelectual. Platão reconhece, tal como Sócra-tes, que a felicidade é o fim natural da vida; mas, ao ní-vel dos prazeres, de que depende a felicidade, há a mes-ma hierarquia que caracteriza as componentes da alma. Cada componente da alma dá-nos um prazer es-pecífico:

a razão, o prazer de conhecer;

a coragem, as satisfações da ambição;

o desejo, os prazeres grosseiros a que Platão cha-mou o prazer do lucro.

Para determinar qual destes três prazeres é superior, basta consultar aqueles que têm experiência deles. Ora, o artesão, que procura o lucro, não conhece os outros dois prazeres; o ambicioso, por seu turno, não conhece o prazer da ciência; só o filósofo tem a experiência dos três tipos de prazer e, por isso, é o único capaz de ter opinião fundamentada sobre todos. Nesta linha de pen-samento, aos seus olhos, o maior e o mais puro de to-dos os prazeres é o prazer de conhecer próprio do filóso-fo.

Por outro lado, uma vez que ele considera que o corpo é um empecilho da alma, que é como um objeto de chumbo que dificulta e impede mesmo que a alma voe para as regiões superiores da Ideia, é necessário mortifi-cá-lo e libertar a alma, tanto quanto possível, das neces-sidades grosseiras que têm origem no corpo. Assim, a virtude consiste na submissão dos desejos inferiores ao desejo de conhecer, ao gosto ou amor pela sabedoria (fi-losofia). Conhecendo o bem, o homem é naturalmente virtuoso, pois não é possível vê-lo sem o desejar; o vício tem sempre origem na ignorância. Embora Platão redu-za a ignorância a um erro de cálculo, ou a um erro de dialética, nem por isso deixa de a considerar suscetível de ser punida. O mau, segundo ele, deveria submeter-se, a si mesmo, a expiar a sua ignorância. Em todo o

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caso, se escapar neste mundo, não escapará no outro, pensava Platão.

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A Estética

A estética de Platão depende da teoria das Ideias e, tam-bém, da moral e da política, elas igualmente modeladas pela doutrina das Ideias. Com efeito, as Ideias são imu-táveis e eternas. Uma vez que é nosso dever regularmo-nos por elas, as artes serão, tal como as Ideias, imutá-veis e estabelecidas para sempre. Platão não prevê a ne-cessidade de qualquer tipo de inovação, nem na poesia, nem nas artes em geral. Uma vez alcançado o ideal, de-veremos fixar-nos nele ou recopiá-lo permanentemen-te. Por outro lado, a única função da arte é servir a mo-ral e a política. “Nós obrigaremos os poetas, diz Platão, a só oferecer nos seus poemas modelos de bons costu-mes, e, do mesmo modo, controlaremos os outros artis-tas e impedi-los-emos de imitar o vício, a intemperan-ça, a baixeza, seja na pintura de seres vivos, seja em qualquer outro tipo de imagem, ou, se não consegui-

rem proceder de outro modo, proibi-los-emos de traba-lhar na nossa cidade.” Em resultado destes princípios, Platão proíbe todos os tipos musicais que não respei-tem os estilos dório e frígio, os únicos que convêm à se-riedade dos guerreiros. Proíbe a tragédia, cuja tendên-cia para o queixume poderia amolecer o coração; proí-be a comédia humorística (a bobice) e até o riso, que condiz mal com a seriedade. Critica o próprio Homero, de quem ele tanto gosta, cujos poemas conhece de cor e que cita vezes sem conta, por não achar graça à descri-ção que faz dos deuses como se fossem tão imorais como os homens. Depois de o ter “coroado com flores”, Platão acaba por condenar Homero ao silêncio na sua República. Em todo o caso, os mais desprezíveis para ele são os pintores e os escultores. Como as suas obras não passam de cópias incompletas dos objetos sensí-veis, e estes são cópias imperfeitas das Ideias, segundo Platão, elas distanciam-se, em três degraus, da verda-de; esses artistas são, portanto, ignorantes, inferiores mesmo aos artesãos que fabricam os objetos reais, cuja distância à verdade é de dois degraus. Por outras pala-vras, quem pudesse ser Aquiles não quereria ser Home-ro: mais vale ser herói do que ser relator da heroicida-de de quem quer que seja. Portanto, os poemas de Ho-mero situam-se a um nível inferior ao da vida real de Aquiles que eles relatam. É este o tipo de raciocínio, co-

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erente, que Platão utiliza para a sua conceção de estéti-ca. Levando este raciocínio ao limite, seria legítimo di-zer que um sapateiro que criticasse Fídias seria superi-or a este grande escultor, ou a Apeles, um dos mais im-portantes pintores da Grécia clássica.

Esta conceção de estética mostra bem até onde o espíri-to de sistema, ou a busca de coerência a todo o custo, conduz um homem, como Platão, que foi, ele próprio, um dos maiores artistas da humanidade, pela beleza dos seus escritos.

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A Física e o Demiurgo

No Timeu, Platão fornece a sua explicação do Universo em geral e do Homem em particular. Nessa obra con-densou os conhecimentos da sua escola sobre a nature-za.

Segundo ele, existe um Deus muito bom que criou o mundo à sua imagem. Não o criou do nada, como o Deus dos judeus e dos cristãos, pois sempre coexisti-ram ao seu lado duas substâncias (a alma incorpórea e indivisível e a outra material e divisível), a que a filoso-fia grega chama O Uno ou O Mesmo, e O Outro. O De-miurgo (o Deus) criou, em primeiro lugar o mundo sen-sível. A partir da substância indivisível e da substância divisível compôs, misturando-as, uma terceira substân-cia intermédia que inclui a natureza do Uno e a nature-za do Outro: a alma do mundo é formada por estas três

substâncias (as duas originais e a terceira criada por Deus). Com o mundo nasceu também o tempo que é a medida do movimento dos astros. Para povoar o mun-do, o Demiurgo criou, em primeiro lugar, os deuses (as-tros ou deuses mitológicos) e encarregou-os a eles de criar os animais, para não ser responsável pelas suas imperfeições. Os deuses formaram o corpo dos seres, tendo em vista o maior bem; aplicaram na formação desses corpos leis geométricas muito complexas. No corpo do homem colocaram também uma alma, que, tendo em conta a forma como conduza a sua vida, se bem, após a morte voltará para o astro de onde é origi-nária, se mal, passará para outros corpos até que seja purificada. Platão só se interessa pelo destino do ho-mem, e é por se interessar pelo homem que ele estuda o Universo. Por conseguinte, a fisiologia e a higiene do homem são o principal objeto do Timeu: a estrutura do corpo, os órgãos, a origem das impressões sensíveis, as causas das doenças do corpo e da alma, a geração, a me-tempsicose. Platão tratou de todos estes assuntos, utili-zando os ensinamentos de Empédocles e do médico Alc-méon, acrescentando as descobertas realizadas na sua escola.

Sendo o Timeu uma das últimas obras de Platão, acon-tece que nem sempre está de acordo com obras anterio-res. A diferença mais importante tem a ver com o facto

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de o Deus do Timeu ser distinto do mundo das Ideias que lhe servem de modelos para a formação do mundo sensível. Na República, pelo contrário, é a Ideia de Bem que é a fonte, não só de todo o conhecimento, mas também de toda a existência. É a Ideia de Bem que cor-responde a Deus. Segundo Teofrasto, Platão tinha ten-dência para identificar a Ideia de Bem com o Deus su-premo; mas parece claro que Platão não levou ao limite esta sua tendência, e o seu pensamento sobre Deus aca-ba por ser flutuante.

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Influência do Platonismo

A teoria essencial em que se baseia toda a filosofia de Platão, a teoria das Ideias, foi rejeitada pelo seu discípu-lo Aristóteles; o simples bom senso bastaria, aliás, para a refutar. Discípulo dos Eleatas, para quem só o Uno existia, e dos Pitagóricos, que viam no número o princí-pio das coisas, Platão concedeu uma existência real a conceitos abstratos que só existem no nosso espírito. Formado nos raciocínios matemáticos, aplicou-os intre-pidamente às noções morais, ao Uno, ao Ser, ao Bem, à Causa. Acreditou estar a dar sentido à realidade através dos seus raciocínios, mas na verdade só dava sentido a abstrações. Mas mesmo que as ideias não tenham uma existência independente, basta que estejam no nosso espírito como um ideal, para que nos possamos orien-tar por elas. É por isso que Platão, separando-nos do mundo sensível para nos elevar ao ideal inteligível, ain-

da nos dias de hoje exerce um poderoso fascínio sobre os seus leitores. Ninguém falou do bem e do belo com um entusiasmo tão comunicativo. A vida que vale a pena ser vivida, diz ele no Banquete, é a do homem que se elevou do amor aos corpos belos, ao amor às almas belas, e deste, ao amor às belas ações, e depois, ao amor das belas ciências, até à beleza absoluta que atra-vessa os corações com um arrebatamento inexprimível.

Uma multidão de ideias platónicas exerce ainda uma influência muito considerável no mundo moderno. Pla-tão é um autor espiritualista: concebeu a alma como o essencial do homem. Segundo ele, o homem deve esfor-çar-se por devolver à sua alma o estado de pureza que ela perdeu ao unir-se com o corpo. É deste esforço que depende a sua vida futura. A vida deve, portanto, ser uma preparação para a morte. A existência de uma Pro-vidência que governa o mundo, a necessidade de expia-ção de toda a maldade cometida, a recompensa dos bons, a punição dos maus num outro mundo e muitas outras ideias foram incorporadas na filosofia cristã e continuam a comandar a nossa conduta. Por este moti-vo, podemos dizer que nenhum outro filósofo marcou tão profundamente o pensamento dos antigos e o pen-samento dos modernos.

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CAPÍTULO 3

O Teeteto

É, pois, uma resposta tonta dizer que a ci-ência é uma opinião correta (ortodoxa) acompanhada de ciência, seja da ciência da diferença, seja da ciência de qualquer outra coisa.

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Argumento

O debate que é travado no Teeteto é precedido de uma espécie de prólogo. É uma conversa entre dois megaria-nos (habitantes de Mégara), antigos discípulos de Só-

crates, Euclides e Terpsion. Euclides, tendo ido ao por-to de Mégara, encontrou lá Teeteto, que estava a ser

transportado, doente e ferido, do campo de batalha de Corinto para Atenas. Que perda - exclama Terpsion - se este grande sábio e valente soldado vier a morrer! Ele justificou, diz Euclides, o augúrio de Sócrates, que lhe tinha predito um futuro glorioso. Com efeito, Sócrates, pouco antes de ter sido condenado, tinha conhecido Teeteto e tinha tido com ele uma conversa, onde a pre-coce inteligência do ainda jovem Teeteto o tinha surpre-endido. Será que podes, pergunta Terpsion, relatar-me essa conversa?. - Não, mas redigi um relato que Sócra-tes me fez dela. Só que, em vez de conservar a forma de narrativa, construí um diálogo entre Sócrates e os seus dois interlocutores, Teodoro e Teeteto. Voltemos para casa que o meu escravo far-nos-á a leitura desse diálo-go.

Sócrates abre a conversa. Diz-me Teodoro, tu que ensi-nas aqui geometria, se distinguiste, de entre os teus alu-nos atenienses, alguns jovens que prometam tornar-se homens de mérito. - Sim, Sócrates, um em particular. Ele é fisicamente parecido contigo e é maravilhosamen-te dotado de inteligência e de qualidades morais. Ali vem ele, com aqueles jovens que se aproximam de nós. Chama-se Teeteto. - Queres dizer-lhe que venha aqui? Chamado por Teodoro, Teeteto aproxima-se. - Uma vez que aprendes as ciências na escola de Teodoro, diz-lhe Sócrates, poderias dizer-me em que consiste a ciência?

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- A ciência é aquilo que Teodoro ensina, a geometria, a astronomia, a harmonia, o cálculo e as artes em geral. - Desse modo, não estás a definir a ciência, mas os seus objetos. Se eu te perguntasse o que é o barro e tu me respondesses: há barro dos oleiros, o barro dos tijolos e outros, eu não ficaria a saber nada sobre a natureza do barro. O que era preciso que me dissesses é que o barro é um certo tipo de terra misturada com água. - Compre-endo, diz Teeteto: o que tu me perguntas, foi o que nós fizemos há uns dias atrás, o jovem Sócrates e eu, a pro-pósito das raízes. Sendo as raízes infinitas em número, tentámos juntá-las todas num termo único, e reconhe-cemos assim duas classes de números, a que chamá-mos comprimentos e raízes. - Perfeito, diz Sócrates. E agora, uma vez que englobaste todas as raízes numa for-ma única, tenta fazer o mesmo com as numerosas for-mas de ciência. - Já tentei várias vezes, mas sem suces-so. No entanto, não consigo desinteressar-me da ques-tão. - É porque tens uma alma grande, Teeteto. Bom, não ouviste dizer que sou filho de uma parteira, e que tenho a arte de fazer dar à luz os espíritos, como a par-teira de fazer dar à luz as mulheres? Sei ainda discernir se o espírito de um jovem está a dar à luz uma quimera, ou um fruto real e verdadeiro. Confia, portanto, em mim e não te aflijas se, ao examinar aquilo que dizes, o julgar como um fantasma sem realidade.

A partir daqui, entramos no tema central do Teeteto: o que é a ciência? Teeteto vai propor sucessivamente três definições que serão examinadas e recusadas por Sócra-tes uma após outra:

1. A ciência é a sensação;

2. A ciência é a opinião verdadeira;

3. A ciência é a opinião verdadeira, acompanhada de razão.

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A Ciência é a Sensação

A primeira definição, sozinha, ocupa mais tempo de conversa do que as outras duas juntas. A razão é mais simples do que possa parecer: é que esta definição rela-ciona-se com doutrinas célebres que Sócrates expõe com todo o seu vigor antes de as refutar. A doutrina, se-gundo a qual a ciência é sensação, é precisamente a teo-ria de Protágoras, que diz que o homem é a medida de todas as coisas, isto é, que se algo me aparece, ele é exa-tamente esse algo para mim, e se algo aparece a outro, ele é exatamente esse algo para o outro. Como aparecer é ser sentido por alguém, então a sensação é a ciência.

Em que é que se apoia esta teoria de Protágoras? Na doutrina de Heraclito de que tudo está em movimento, de que nada é fixo, de que tudo flui. As bases desta teo-ria remontam a Homero e é seguida por todos os sá-

bios, à exceção de Parménides e da sua escola (Eleata). É a partir do movimento e da mistura (ou fusão) recí-proca que se formam todos os seres que afirmamos existirem; por seu turno, a ausência de movimento (o repouso) destrói-os. Os seres não existem por si mes-mos: a cor não é algo que exista à parte de tudo o resto; com efeito, não é nem uma característica que se aplica ao objeto, nem o objeto ao qual essa característica é aplicada, mas um produto intermédio específico a cada coisa ou indivíduo; esse produto varia não só de indiví-duo para indivíduo, mas também no mesmo indivíduo, porque este está em permanente mudança.

Como é costume em Sócrates, ele não vai limitar-se a expor a teoria que critica; pelo contrário, aprofunda e completa essa mesma teoria, assumindo completamen-te a perspetiva do adversário. Sócrates empenha-se, portanto, em demonstrar que só o movimento existe. Vejamos a sua explicação. Há dois tipos de movimento, sendo cada um em número infinito. Um deles consiste numa força ativa, o outro é uma força passiva. Da sua união e fricção mútuas nascem proles em número infi-nito, mas em pares gémeos que estão sempre unidos: um é o objeto da sensação, e o outro a sensação. Tudo está em movimento; mas este movimento pode ser rápi-do ou lento. Tudo o que é lento move-se no mesmo lu-gar ou em direção a objetos vizinhos, e é assim que esse

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movimento é gerador da realidade. Quando os olhos e algum objeto, suscetível de ser visto, geram a brancura e a sensação que lhe é específica por natureza, acontece que a visão que vem dos olhos e a brancura que vem do objeto (que se concertaram para gerar a cor branca) se movem no espaço intermédio (e intermediário); deste modo, o olho preenche-se de visão e transforma-se, não numa visão, mas em olho vidente (olho que vê). Do mesmo modo, o objeto que concorreu com o olho para a produção da cor, enche-se de brancura e transforma-se, não em brancura, mas em objeto branco, seja madei-ra branca, ou pedra branca, por exemplo. O mesmo se passa com o frio e o quente e com outras qualidades. Nada é isto ou aquilo em si e por si: é a partir das suas aproximações mútuas que todas as coisas nascem do movimento sob formas de todo o género. É assim im-possível conceber o elemento ativo e o elemento passi-vo como existindo separadamente, pois não existe ele-mento ativo antes de se associar ao elemento passivo, nem elemento passivo antes de se unir ao elemento ati-vo; por outro lado aquilo que, numa certa união, é agen-te, numa outra poderá ser paciente (passivo). Desta conceção resulta que nada é em si e que devemos extin-guir a palavra ser.

As objeções a este sistema usam, frequentemente, o ar-gumento dos sonhos, das doenças, da loucura e das ilu-

sões dos sentidos. Mantendo a sua postura de defender convictamente aquilo que quer criticar, Sócrates conti-nua, contestando inicialmente esses argumentos. Com efeito, pode responder-se que a sensação, durante o so-nho, existe tanto para aquele que sonha, quanto existe a sensação para aquele que está acordado; que a sensa-ção de Sócrates doente continua a ser tão verdadeira para ele quanto o é quando está de boa saúde. O único juiz da sensação é aquele que a experiencia. É por isso, precisamente, que a sensação é a ciência.

Após um curto intervalo na exposição e defesa da dou-trina da sensação, em que anuncia que vai examinar com cuidado o recém-nascido de Teeteto (a doutrina da sensação), e em que Teodoro o exorta a dizer o que realmente pensa dela, Sócrates desfere duas críticas ful-minantes a Protágoras: “Porque é que Protágoras consi-dera o homem a medida de todas as coisas, de preferên-cia ao porco ou ao macaco, que são, eles também, seres com sensações? E se cada um é a medida da sua pró-pria sabedoria, em que é que Protágoras se pode consi-derar mais sábio do que os outros?” Incomodado por ver assim maltratado o seu amigo Protágoras, Teodoro pede que seja Teeteto a responder a Sócrates.

- Vejamos, Teeteto, diz Sócrates, não te surpreende ve-res-te igual em sabedoria a qualquer homem ou a qual-

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quer deus? - Sim, responde Teeteto. - Vejamos então a que consequência nos conduz a tese de que a ciência é a sensação. Sentir através da visão ou da audição é sa-ber. Ora, aquele que vê e que tomou conhecimento do que viu, se fechar os olhos, lembra-se da coisa, mesmo sem a ver. Ora, dizer que não vê é dizer que não sabe, pois ver é saber. Segue-se que, quando um homem ad-quiriu o conhecimento de uma coisa de que ainda se lembra, mas não vê, não a sabe: consequência monstru-osa!

Mas, se Protágoras estivesse presente para se defender, poderia alegar que, de facto, é possível que o mesmo ho-mem que sabe uma coisa, não a saiba. Supõe que al-guém te tapa com a mão um dos olhos e que te pergun-ta se vês a sua roupa com esse olho fechado; serás força-do a dizer que vês e que não vês ao mesmo tempo. E de-pois, a memória que conservamos das coisas que senti-mos não é da mesma natureza da sensação que tínha-mos e já não temos. Já não somos o mesmo homem, porque estamos sempre em mudança. Finalmente, Pro-tágoras poderia sustentar que as sensações diferem, não na sua qualidade de verdadeiras ou falsas, pois são todas reais, mas na sua qualidade de melhores ou pio-res. Longe de não reconhecer nem sabedoria, nem sá-bio, ele diria, pelo contrário, que somos sábios, quan-do, mudando a face (ou aspeto) dos objetos, consegui-

mos fazer com que pareçam bons àquele a quem eles pareciam, e para quem eram, maus.

O debate é, de novo, interrompido por um curto inter-valo. Receando que Protágoras o criticasse por só discu-tir com gente nova, Sócrates pede que seja Teodoro a responder-lhe. Teodoro bem tenta, mas acaba por resi-gnar. Sócrates continua: Protágoras diz que aquilo que parece a cada um existe realmente para aquele a quem isso parece. Ora, é opinião generalizada de que, entre os homens, há uns que são sábios e outros que são igno-rantes, e sabes tu de experiência própria que não há opi-nião que não encontre quem a contradiga. Se Protágo-ras acredita que o homem é a medida de todas as coi-sas, mas que a multidão se recusa a acreditar nele, de modo que o número daqueles que discordam supera o daqueles que concordam, então há razões para que o seu princípio seja mais falso do que verdadeiro. Reco-nhecendo que só podemos ter opiniões verdadeiras, Protágoras reconhece que os seus opositores têm uma opinião verdadeira, ao julgar a sua falsa.

A doutrina de Protágoras encontra um bom ponto de apoio nas sensações do tipo das do quente e do frio, do doce e do amargo e de outras do mesmo género. Mas essa doutrina encontra dificuldades sérias quando se refere à saúde, ao justo, à piedade, onde fica claro que

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há homens que têm mais razão do que outros. Aqui, Só-crates pára e faz a reflexão de que um argumento con-duz a outro e que o debate não tem fim. - Bom, diz Teo-doro, não temos tempo livre? Esta réplica de Teodoro serve de pretexto para uma digressão sobre a vida do filósofo, que tem sempre tempo livre, ao contrário do orador ou do advogado que andam sempre atarefados. O filósofo, afastado dos negócios públicos, só está pre-sente de corpo na cidade; a sua alma plana sobre o em-pírico. Como Tales que caiu num poço enquanto obser-vava os astros, o filósofo ignora o que se passa debaixo dos seus pés e dá motivos para que os outros se riam dele. Ele não se preocupa com o poder, com a riqueza ou com a nobreza. Só se interessa pela virtude e dedi-ca-se a assemelhar-se a Deus. Este retrato do filósofo, onde são agrupados alguns traços dispersos na Repúbli-ca, é o contraponto da imagem que Cálicles traçou no Górgias do filósofo que perde tempo com discussões in-fantis e que, afastado da ágora (praça pública), se torna incapaz de se defender contra o primeiro patife que o acuse.

Voltemos ao assunto. Vejamos o exemplo de um Esta-do que promulga as suas leis. Ele concebe-as tendo em vista a sua utilidade futura. Ora, a sensação não tem nada a ver com o futuro, e só o homem competente me-

rece ser ouvido a respeito do futuro das leis ou de qual-quer outro futuro.

Mas, também no que diz respeito às sensações imedia-tas do quente e do frio e de outras semelhantes, não po-demos garantir que sejam verdadeiras, baseando-nos na doutrina do movimento. Existem dois tipos de movi-mento, um de translação e outro de alteração. Como tudo se move destas duas formas, a perceção e a quali-dade, que se move entre o sujeito e o objeto, têm de mu-dar de natureza no momento exato da sensação e, por isso, essa perceção e qualidade não podem sequer ser nomeadas. Nenhuma coisa existe, mais do que já não existe: Nenhuma coisa deixa de ser “assim”, mais do que não é “assim”, pois ambas as expressões se referem ao repouso. A sensação sempre em mudança não é, por-tanto, a ciência, e a doutrina de Heraclito, pelo contrá-rio, é a negação da ciência.

Teeteto gostaria também de ouvir discutir a doutrina dos adversários de Heraclito, que pretendem que tudo está em repouso. Mas Sócrates recusa-se a fazê-lo para não alongar o debate até ao infinito.

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A Ciência é a Opinião Verdadeira

Sócrates pergunta a Teeteto: dado que o que se sente por um dos sentidos, não pode ser sentido por outro, através de quê poderemos conceber uma ideia que diz respeito aos dois sentidos ao mesmo tempo, e a que ór-gãos podemos atribuir a perceção do que é comum a to-das as coisas, como o ser e o não ser? - Só podemos, res-ponde Teeteto, atribuí-la à alma. É através da alma que apreendemos não somente o ser, mas também o seme-lhante e o diferente, o belo e o feio, e outras ideias do mesmo género. A sensação não pode alcançar o ser, nem por conseguinte a ciência. Temos de a procurar na-quilo, qualquer que seja o nome que lhe damos, a que chamamos alma, quando ela própria, por si só, se dedi-ca ao estudo dos seres. A essa procura chama-se julgar e é o juízo ou opinião verdadeira que constitui a ciên-cia. Seja. Diz Sócrates; mas se há uma opinião verdadei-

ra, também tem de haver uma opinião falsa. Como é que esta se forma? Parece impossível não se saber o que se sabe e saber o que não se sabe. Quando fazemos um juízo falso, será que tomamos as coisas que sabe-mos por outras que também sabemos, ou desconhece-mos ambas? - É impossível. - Então, tomamos as coisas que não sabemos por outras que também não sabe-mos? - Também impossível. - Também não tomamos as coisas que sabemos por aquelas que não sabemos, nem aquelas que não sabemos por outras que sabe-mos? - Não. - Então, como explicar a origem da opinião falsa? Consideremos o ser e o não ser no lugar do saber e da ignorância. Aquele, que pensa o que não é, só pode ter uma opinião falsa. Mas julgar o que não é, é não jul-gar nada. Fazer um juízo falso não é mais do que julgar o que não é.

Não seria desprezível que confundíssemos no nosso pensamento duas coisas igualmente reais, afirmando que uma é a outra? Mas quando o pensamento faz esta confusão, não seria necessário que represente os dois objetos ao mesmo tempo, ou um dos dois? - Sim. - Ora, sendo o juízo um discurso que a alma tem consigo mes-ma, quando tomamos uma coisa por outra, dizemos a nós próprios que uma é outra: será isso possível? Não, pois é impossível que, ao pensarmos nos dois objetos ao mesmo tempo, julguemos que um é o outro e, se só

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pensarmos num dos dois, nunca poderemos julgar que um é o outro (em que não estamos a pensar). Em todo o caso, é indispensável que exista uma via, pela qual seja possível tomar o que se sabe por aquilo que não se sabe. Imaginemos na nossa alma um bloco de cera, onde se gravam as nossas sensações, e que aquilo que assim foi impresso será recordado e conhecido por nós, enquanto que o que se apagou ou não pôde ser gravado será esquecido ou desconhecido. Ora, um homem não pode ter uma opinião falsa, pensando que as coisas que conhece são, ora aquelas que ele sabe, ora aquelas que ele não sabe? Após passar em revista todos os casos a que esta hipótese dá lugar, Sócrates retém três, em que a confusão lhe parece possível: um, em que se confun-de uma coisa que se sabe com uma outra que também se sabe e que se perceciona, outra, em que se confunde uma coisa que se sabe com uma outra que não se sabe e que se perceciona, e uma terceira, em que se confunde o que se sabe e se perceciona com uma outra que se sabe e se perceciona igualmente. Por exemplo, diz Só-crates, eu conheço-te, Teeteto, e conheço também Teo-doro, e tenho no meu bloco de cera as impressões de ambos. Vendo-vos, esforço-me por aplicar a marca pró-pria de cada um de vós à visão que lhe é própria, e por fazer entrar e ajustar esta visão à sua própria impres-são. Mas posso trocar as coisas, e a minha opinião será

falsa. A opinião falsa só pode existir a respeito de coi-sas que sabemos: quando ajustamos direta e exatamen-te a cada objeto as impressões e as marcas que lhe são próprias, a nossa opinião é verdadeira; se as ajustar-mos obliquamente e erradamente, a nossa opinião será falsa.

Neste ponto, apresenta-se uma objeção grave: se a opi-nião falsa não está nem nas sensações, nem nas suas re-lações mútuas, nem nos pensamentos, mas no ajusta-mento da sensação ao pensamento, não deveríamos confundir dois objetos conhecidos somente pelo pensa-mento. É, todavia, o que fazemos quando nos engana-mos nos números, por exemplo, quando acreditamos que 5+7=11 e não 12. Para explicar a possibilidade de erro neste caso, Sócrates compara o nosso espírito a um pombal, onde vivem aves, umas em bando, outras em famílias e outras solitárias, mas esvoaçando mistu-radas todas umas com as outras. Temos todas as aves no nosso espírito, mas quando queremos agarrar uma, pode acontecer que agarremos uma outra que não que-ríamos, trocamos uma rola por um pombo, por exem-plo; isto é uma opinião falsa. Mas refletindo melhor, Só-crates não fica nada satisfeito com esta explicação. É ab-surdo, diz ele, pretender que, tendo nós a ciência de um objeto, ignoremos esse objeto, não por ignorância, mas devido à própria ciência, e que tomemos esse obje-

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to por outro. - Talvez, diz Teeteto, tenhamos incluído ignorâncias nas ciências. - Mas, nesse caso, teríamos ecolhido um caminho sem fim: essas ciências e essas ig-norâncias terão de ser objeto de novas ciências que se-ria necessário apanhar em novos pombais. Teeteto in-siste mesmo assim em definir a ciência como opinião verdadeira. Mas a experiência do dia a dia mostra que a opinião verdadeira pode ser encontrada nos juízes sem a ciência.

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A Ciência é a Opinião Verdadeira Acompanhada de Razão

Teeteto propõe, então, uma terceira definição, que ou-viu ser dada por alguém: a ciência é a opinião verdadei-ra acompanhada de razão, isto é, de uma explicação analítica ou definição. As coisas que podemos sujeitar ao crivo da razão são conhecíveis; aquelas, que não po-dem, são inconhecíveis. - O que eu ouvi dizer a alguém, replica Sócrates, foi que os elementos primeiros de que somos compostos são inconhecíveis e só podem ser no-meados (não analisados ou definidos), e que, pelo con-trário, os objetos que são compostos por eles são conhe-cíveis, pois a combinação com que são formados é a es-sência da sua definição. Mas será possível que, haven-do elementos inconhecíveis, o composto formado por eles seja conhecível? Se, por exemplo, as letras não são conhecíveis, como podem sê-lo as sílabas? Se a sílaba consiste nos elementos combinados, como poderemos

ignorar os elementos separados e conhecê-los juntos? Se, pelo contrário, a sílaba é uma entidade única, sem partes, então é indivisível e, por conseguinte, não é mais conhecível do que os elementos. Por outro lado, a experiência prova que os elementos se prestam a um co-nhecimento mais claro do que as sílabas. Quando aprendemos a ler, o que fazemos é aprender a distin-guir os elementos; quando aprendemos música, come-çamos pelas notas; é que o elemento é mais conhecível do que o composto.

Mas voltemos à tua definição, e diz-me, Teeteto, o que é que devemos entender por essa razão que acompanha a opinião verdadeira. Na minha opinião, creio que a po-demos definir de três maneiras:

a primeira é tornar o pensamento sensível à voz, através dos nomes e dos verbos, como se penteásse-mos o pensamento na fala, como se esta fosse um espelho ou uma superfície de água. Neste sentido, o juízo verdadeiro será sempre acompanhado de defi-nição, em todos aqueles que pensam corretamente sobre algum objeto; nestas condições, o juízo verda-deiro nunca será encontrado sem a ciência.

a segunda consiste na enumeração das partes ou ele-mentos; mas podemos enumerar todas as partes de

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um objeto, tendo delas só uma opinião verdadeira, mas não a ciência.

a terceira consiste na definição através da diferença característica. Mas o conhecimento desta diferença característica é justamente o que faz da opinião uma opinião verdadeira; não precisamos portanto de acrescentar a razão à opinião verdadeira, pois ela já lá está.

É, pois, uma resposta tonta dizer que a ciência é uma opinião correta (ortodoxa) acompanhada de ciência, seja da ciência da diferença, seja da ciência de qualquer outra coisa.

Assim, a ciência não é, nem a sensação, nem a opinião verdadeira, nem a opinião verdadeira acompanhada de razão. Mas mesmo não sendo o debate conclusivo, no mínimo ensinou Teeteto a não acreditar que sabe o que não sabe.

Sócrates marca, então, encontro para o dia seguinte com Teeteto e Teodoro, e deixa-os para ir responder à acusação de Meleto, pela qual haveria de ser condena-do à morte.

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Objeto e Composição do Teeteto

O Teeteto tem por objeto a natureza da ciência. Platão já tinha tratado desta questão no Ménon, onde defende que aprender é lembrar-se, que a alma viu toda a verda-de nas suas existências anteriores e que ela pode reen-contrar os seus conhecimentos esquecidos, desde que não desista de os procurar. Apesar da dúvida que ele (no Ménon) confessa ter a respeito da verdade desta te-oria, Platão reafirma-a peremtóriamente no Fédon e ba-seia nela uma das suas provas da imortalidade da alma. Mas era difícil fazê-la aceitar pelo público em geral e até pelo público filosófico muito influenciado por ou-tras doutrinas, nomeadamente as de Protágoras, de He-raclito e de Parménides. Podemos pensar que ele acre-ditou ser necessário combatê-las e limpar o terreno para mais facilmente fazer vingar a sua teoria. É verda-de que Platão deixa Parménides de fora, com o funda-

mento de que a sua doutrina abstrusa exigiria desenvol-vimentos que abafariam a questão central. Na verdade, a razão parece ser a de ter reservado uma obra comple-ta para discutir a doutrina eleata, O Sofista. No Teete-to, Platão limita-se aos sensualistas, cujas ideias, por se-rem mais acessíveis, eram, sem dúvida, as mais divulga-das. Já tinha, na primeira parte do Crátilo, exposto o sistema do movimento universal dos sensualistas, asso-ciando-o, para explicar a doutrina da linguagem, às cos-mogonias primitivas e aos poetas Homero e Hesíodo. Faz o mesmo no Teeteto, onde atribui a teoria do fluir universal a Homero. Expõe, depois, num tríptico magis-tral:

a doutrina do homem medida de Protágoras

a doutrina de Heraclito, onde tem origem a de Protá-goras

a doutrina dos seguidores fanáticos de Heraclito, que reduzem tudo ao movimento perpétuo, chegan-do mesmo a negar a possibilidade de ciência.

A estes universais destruidores, Platão opõe o verdadei-ro filósofo que, elevando-se acima do mundo das apa-rências, se dedica a descobrir a essência das verdadei-ras realidades.

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Depois de ter refutado aqueles que reduzem a ciência à sensação, Platão ataca aqueles que vêem na ciência uma opinião verdadeira e, como a opinião verdadeira supõe que haja uma opinião falsa, é sobre a possibilida-de de uma opinião falsa que ele conduz a sua pesquisa. Ele já tinha abordado este assunto no Eutidemo, onde Dionisiodoro pretende demonstrar que é impossível mentir e contradizer, ao que Sócrates responde: “Essa tese, tenho-a ouvido da boca de muitas pessoas, e fico sempre surpreendido com ela. Ela estava muito em voga no tempo de Protágoras (...). Quanto a mim, acho-a sempre surpreendente: parece-me que destrói as ou-tras (doutrinas) e destrói-se a si mesma.”

No Teeteto, Sócrates tenta mostrar a possibilidade de erro, através de duas imagens:

a do bloco de cera, onde as nossas sensações se im-primem, e, neste caso, o erro nasce do mau ajusta-mento da sensação com o pensamento;

a do pombal, onde esvoaçam aves diversas que po-demos tomar umas pelas outras.

Não é fácil determinar o que nestas duas imagens é ori-ginal de Platão. Aquilo que se sabe é que a imagem do bloco de cera também se encontra em Demócrito e que a explicação das diferentes qualidades da memória devi-

do à natureza da cera onde se gravam as nossas sensa-ções se encontra no tratado de Hipócrates sobre o Regi-me nas doenças agudas. Também se sabe que Platão foi iniciado em Itália nas doutrinas médicas dos pitagó-ricos.

Encontra-se também na terceira definição, que a ciên-cia é a opinião verdadeira acompanhada da razão, um eco dos debates seus contemporâneos. Sócrates diz que ouviu dizer que os elementos ou sílabas são inconhecí-veis, enquanto os compostos que são formados por eles são conhecíveis. Baseando-nos no testemunho de Aris-tóteles, é muito provável que esta tese de que Sócrates ouviu falar seja de Antístenes.

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CAPÍTULO 4

A Apologia de Sócrates

Quais foram, então, as verdadeiras cau-sas da sua condenação? Sócrates, que já contava com ela, responde a esta pergun-ta. Foram os ódios que atraiu, ao desmas-carar a ignorância de personagens impor-tantes na presença de gente jovem, que, ainda por cima, obtinha grande prazer em ver essas pessoas importantes sem sa-ber o que dizer.

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SUMÁRIO

1. Enquadramento

2. Primeira Parte

3. Segunda parte

4. Terceira Parte

EnquadramentoSócrates tinha setenta anos quando foi acusado por Me-leto, Anito e Lícon de não reconhecer os deuses do Esta-do, de introduzir novas divindades e de corromper a ju-ventude. A pena que lhe foi aplicada foi a pena de mor-te.

O principal acusador, Meleto, era um mau poeta que, influenciado por Anitos, se encarregou de apresentar a queixa junto do arconte-rei. Anitos e Lícon subscreve-ram-na. Anitos, um rico curtidor de peles, que tinha sido estratega em 409 e que tinha combatido os Trinta (a tirania oligárquica), era um orador influente e um dos líderes do partido popular. A acreditar em Xenofon-te (que escreveu a sua própria Apologia de Sócrates), ele estava zangado com Sócrates porque este tinha-o criticado severamente por pretender formar o seu filho na profissão de curtidor. Mas tinha seguramente ou-tros motivos bem mais sérios, motivos de natureza polí-tica: Anitos deve ter-se sentido ferido com as críticas de Sócrates contra os líderes do partido democrático (ou popular). De Lícon, não se sabe grande coisa. Um poeta satírico reprova-lhe o facto de ser de origem es-trangeira e há quem faça alusão aos seus costumes efe-minados. Em todo o caso, parece ter sido uma persona-gem de pouca importância. Neste concerto de acusado-res, Meleto representava os poetas, Anitos os artesãos e os homens políticos, Lícon os oradores, todos tipos de

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pessoas que Sócrates tinha criticado, pondo em causa o seu amor próprio.

Sócrates, exposto a todos estes ódios, não alimentou ilu-sões a respeito do que seria o seu destino. Mas, embora esperasse ser condenado, continuou as suas conversas com os seus discípulos, como testemunha Platão no Teeteto, a respeito de assuntos muito distantes do tema do seu processo. Havendo quem se admirasse com o de-sinteresse de Sócrates pelo seu processo, chegando ao ponto de nem sequer preparar a sua defesa (segundo a Apologia de Xenofonte), terá respondido: “Não te pare-ce que me ocupei dele durante toda a vida? - e como? - Vivendo sem cometer nenhuma injustiça.” E como o avisassem de que os tribunais de Atenas já tinham con-denado pessoas inocentes, respondeu que, por duas ve-zes, tinha tentado compor uma apologia (um discurso de defesa), mas o seu signo divino tinha-o afastado des-sa tarefa. Segundo Diógenes de Laércio, Lísias ter-lhe-ia proposto um discurso de defesa que, seguramente, teria o efeito de o tribunal o considerar inocente. Sócra-tes recusou, dizendo: “O teu discurso é muito belo, mas não me convém.” Esse discurso era, sem dúvida, com-posto seguindo as regras da retórica e visava alimentar a piedade dos juízes. Era isso precisamente que Sócra-tes não queria. Defendeu-se, portanto, a si mesmo com um discurso que não escreveu, mas sobre o qual deve

ter meditado antes, com certeza. Nesse discurso, Sócra-tes evidenciou um orgulho de linguagem que surpreen-deu tanto os seus amigos quanto os seus juízes. “Ou-tros, diz Xenofonte, escreveram sobre o seu processo, e todos transmitiram correta-mente o orgulho da sua lin-guagem, o que prova que foi mesmo assim que ele fa-lou.” Condenado por uma maioria de 60 votos num júri de 500 ou 501 votantes, e convidado a escolher a sua pena, recusou fazê-lo para não se reconhecer como cul-pado, diz Xenofonte. Segun-do Platão ele propôs mesmo que a sua pena fosse a de ser gratuitamente alimenta-do pelo Estado. Esta proposta pareceu uma provoca-ção, e o júri condenou-o à morte com uma maioria ain-da mais significativa. Levado para a prisão, teve ainda de esperar que a comitiva, enviada a Delos para ofere-cer o sacrifício anual a Apolo, voltasse a Atenas; não era permitido executar um prisioneiro entre a partida e a chegada dos enviados à ilha sagrada. Sócrates teve, por isso, oportunidade para se evadir da prisão. Mas re-

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O tribunal dos Heliastas que julgou Sócrates era com-posto por 6 000 membros, escolhidos por sorteio. Mas não deliberavam todos ao mesmo tempo: normalmen-te, o tribunal era formado por 500 ou 501 juízes, por vezes, 1 000, outras vezes, 300 ou 400. O júri, diante do qual Sócrates compare-ceu era composto por 500 ou 501 juízes.

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cusou fazê-lo. Durante cerca de um mês, enquanto aguardava a sua execução, continuou a receber os seus discípulos e a convesar com eles, a respeito dos seus te-mas habituais. Após a chegada dos enviados a Delos, be-beu, então, a cicuta e, segundo se diz (embora seja pou-co provável, dadas as características do veneno), mor-reu com uma serenidade que coroava dignamente uma longa carreira à ciência e à virtude.

A condenação de Sócrates não podia deixar de ser as-sunto de debate público. Embora tivesse contra si juí-zes avisados contra os sofistas, com os quais era confun-dido, e democratas que não lhe perdoavam as críticas contra o regime, tinha por si todos os que o conheciam bem e, em particular, discípulos fervorosos como Antís-tenes, Ésquino, Xenofonte e Platão. Estes dois não tar-daram a tomar a defesa do mestre e, para o dar a conhe-cer tal como era, Platão escreveu a Apologia. É claro - as divergências entre a apologia de Platão e a apologia de Xenofonte assim o mostram - que Platão, tal como Xenófonte, não reproduz as palavras exatas que Sócra-tes proferiu diante dos juízes. O mais certo é que tenha reproduzido fielmente o essencial da refutação que fez das queixas dos acusadores; se não fosse assim, o nume-roso público que ouviu Sócrates teria podido acusá-lo de mentir e arruinar assim o efeito da sua obra. Por ou-tro lado, Platão não podia fazer melhor, para defender

o seu mestre, do que apresentar, aos seus leitores, uma imagem dele o mais fiel que fosse possível. Sabemos, pelas descrições que fez de Lísias, de Protágoras e de outros, o quanto Platão era capaz de contrafazer os ta-lentos mais distintos. Podemos, então, acreditar que, empenhando-se em fazer reviver a figura do seu mestre venerado, tenha reproduzido as suas características mais importantes.

A Apologia divide-se em três partes bem distintas. Na primeira, de longe a mais importante, Sócrates discute os argumentos dos seus acusadores; na segunda, faz a escolha da sua pena; na terceira, anuncia aos juízes, que o condenaram erradamente, que, para eles, o futu-ro não lhes reserva boas notícias e dirige-se àqueles que o condenaram à morte, afirmado que, desse modo, lhe concederam as graças do além e o reconhecimento dos vindouros.

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Primeira Parte

Logo desde o exórdio da primeira parte, podemos reco-nhecer em Sócrates a sua falsa modéstia. Diz que não domina a linguagem dos tribunais, pelo que se limitará a dizer simplesmente a verdade (insinuando que a lin-guagem da verdade não era a linguagem dos tribunais). Refere, em seguida, as duas grandes divisões do seu dis-curso de defesa:

responderá, em primeiro lugar, às calúnias, divulga-das a seu respeito desde há muito tempo;

discutirá, em seguida, os argumentos dos seus acu-sadores recentes.

Ele é acusado, desde há muito tempo, de procurar des-vendar os segredos da natureza, de transformar as boas causas em más causas, e de ensinar os outros a fazer o

mesmo. Foi deste modo que um poeta satírico (Aristófa-nes, As Nuvens) o representou em cena: “passeando-se no ar, e debitando todo o tipo de disparates.” Sócrates garante que nada sabe das ciências da natureza, que nunca teve discípulos à maneira dos sofistas, que rece-biam muito dinheiro pelas suas lições, porque ele nun-ca pediu dinheiro a ninguém para assistir ou participar nas suas conversas.

De onde vêm, então, esses boatos que correm a seu res-peito? É que, tendo um dia sido proclamado o mais sá-bio de todos os homens pelo oráculo de Delfos, ele quis assegurar-se de que o oráculo não se tinha enganado. Interrogou, por isso, os homens mais sábios, os ho-mens de Estado, depois os poetas e finalmente os arte-sãos. Ele, Sócrates, descobriu e demonstrou-lhes que, achando-se eles sábios, de facto não o eram. Reconhe-ceu, assim, que tinha sobre os seus interlocutores a su-perioridade de, não sendo sábio, também não acreditar que o era. Os jovens que o ouviram fizeram o mesmo que ele, e todas as pessoas inquiridas, tendo de enfren-tar a sua própria ignorância, em vez de olharem para si mesmos, acusaram-no de corromper a juventude.

Foram estas calúnias inveteradas que encorajaram Me-leto, Anitos e Lícon a apresentar queixa contra ele. Vai tentar refutá-las na primeira parte do seu discurso.

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Logo no início, empenha-se em ridicularizar Meleto e em fazer ver aos juízes que esse grande justiceiro nunca se preocupou com a educação da juventude. Procede como era habitual nas suas conversas diárias e, através de uma série de questões habilmente conduzidas, leva o seu adversário a dizer que toda a gente é capaz de edu-car bem a juventude e que Sócrates é o único, de entre todos os homens, que a corrompe ou educa mal. Mas como poderia eu fazer isso? - pergunta Sócrates. Por acaso não saberei que, semeando o mal, só recolho o mal? Como todos os homens sensatos, se a corrompo, só a posso corromper involuntariamente; por isso, po-derei, quando muito, ser admoestado, mas não castiga-do.

Meleto já não consegue ser coerente consigo mesmo, quando acusa Sócrates de negar a existência dos deu-ses. Por um lado, pretende que Sócrates não acredita nos deuses, e, por outro, afirma que ele acredita em coi-sas demoníacas e, portanto, em demónios que são fi-lhos dos deuses (como era crença em Atenas). Era como se dissesse: Sócrates acredita nos deuses e Sócra-tes não acredita nos deuses.

Mas porque é que Sócrates se dedica a ocupações que põem a sua vida em perigo? Quando nós escolhemos um cargo, ou um chefe nos colocou nele, não devemos

desertar; pelo contrário, devemos dar a vida por ele. - afirma Sócrates. Ora, foi-lhe dada, por ordem do deus de Delfos, a missão de melhorar os seus concidadãos, e, enquanto tiver um sopro de vida, ele dedicar-se-á, como um moscardo, aos atenienses para os picar e con-duzir no caminho da virtude. Seja, pode dizer-se. Mas, dado que quer servir os verdadeiros interesses dos seus concidadãos, por que razão não sobe à tribuna para dar conselhos à república? Porque uma voz divina, que lhe é familiar, sempre o desviou desse caminho, e com ra-zão; pois com a sua franqueza e a sua lealdade às leis, não teria sobrevivido muito tempo. Ele deu-se bem con-ta disso, quando ousou enfrentar, sozinho, a assem-bleia em delírio no processo contra os generais de Argi-nusas (uma batalha da guerra do Peloponeso, que opôs Atenas a Esparta durante cerca de trinta anos), e quan-do recusou obedecer aos Trinta Tiranos (regime oligár-quico anterior ao regime democrático ateniense) que o tinham mandado prender Leão de Salamina, um ino-cente que queriam condenar à morte. Quer na sua vida privada, quer na sua vida pública, Sócrates garante que nunca fez uma única concessão contrária à justiça, mui-to menos àqueles a que os acusadores chamam seus dis-cípulos. Se ele os tivesse corrompido, eles próprios ou os seus pais levantar-se-iam para o acusar; mas ne-nhum o acusa.

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Sócrates disse o que tinha a dizer em sua defesa. E não sairá daí: não recorrerá, como outros acusados, a pedi-dos de clemência, que seriam indignos dele e indignos dos juízes, os quais não devem ceder à piedade, mas aplicar a justiça. Entrega-se, portanto, aos juízes e a Deus, para que decidam o que seja melhor para eles e para si.

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Segunda Parte

Após esta defesa, os juízes foram a votos, e Sócrates foi declarado culpado por uma maioria de sessenta votos. Em processos como este, em que a lei não estabelecia previamente uma pena, o acusador propunha uma, e o acusado, se fosse declarado culpado, propunha outra. Au júri competia decidir-se por uma ou por outra das penas, sem possibilidade de recurso. Os adversários de Sócrates pediram a pena de morte. Convidado a propor a sua pena, Sócrates considerou que, em lugar de uma pena, os seus serviços mereciam uma recompensa; pe-diu, por isso, que o Estado o alimentasse gratuitamente no Pritaneu (onde os eleitos das tribos de Atenas, que presidiam à Assembleia, reuniam e tomavam as refei-ções às custas do Estado, juntamente com outros cida-dãos de mérito reconhecido). E não foi para provocar o júri que Sócrates disse isto, como foi interpretado por

um grande número de juízes, mas, porque, “não tendo nunca feito mal a quem quer que fosse, também não queria fazer mal a si próprio”, disse Sócrates. Não que-ria o exílio, nem uma multa que, de resto não teria con-dições para pagar. Mesmo assim acabou por se dispor a pagar uma multa de uma mina e, depois, pressionado pelos seus amigos, aceitou pagar trinta minas (um mon-tante que, a valor constante, contado a partir do último valor do dracma para trás, corresponderia a menos de 300 dracmas - menos de 1 euro atual, ou menos de 200 escudos, em dinheiro português anterior ao euro). Não admira que muitos juízes tenham visto nesta proposta uma provocação.

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Terceira Parte

A proposta de pena, apresentada por Sócrates, irritou o júri que o condenou à morte com uma maioria mais si-gnificativa do que a que o tinha considerado culpado. Depois, enquanto eram executadas as formalidades ne-cessárias para o conduzir à prisão, Sócrates repreen-deu, quase com ternura, os juízes por não terem tido a paciência necessária para esperarem pela morte natu-ral de um homem com setenta anos, como ele. Dirigiu-se, primeiro, àqueles que o condenaram e, desse modo, tomaram a seu cargo cometer um crime inútil, pois não escapariam à reprovação de jovens menos contidos do que ele. Dirigiu-se depois àqueles que o absolveram e falou-lhes do seu futuro. A morte, disse Sócrates, não poderia ser um mal para ele. A voz profética não lhe deu nenhuma indicação que contrariasse a sua disposi-ção durante todo o processo. Portanto, o mais certo é

que estivesse de acordo com o resultado. E, de facto, porque haveria Sócrates de recear a morte? Se é um sono, é uma felicidade. Se é uma passagem para um ou-tro lugar, onde encontrará os heróis do passado, que prazer vai ter em falar com eles! Não guarda, por isso, qualquer ressentimento contra aqueles que o condena-ram.

Antes de se separar deles, pediu aos atenienses que cui-dassem dos seus filhos como ele, Sócrates, tinha cuida-do dos seus concidadãos, e que os chamassem à aten-ção, se eles preferissem a riqueza à virtude. “E agora, chegou a hora de nos irmos embora, eu para morrer, vós para viver. Qual de nós fica com a melhor parte, só Deus o sabe.”

Como é que, depois de se ter explicado com tanta since-ridade, tanta nobreza e grandeza de alma, Sócrates pôde ser assim desprezado e condenado? Não foi segu-ramente por não ter refutado completamente as acusa-ções que lhe foram feitas, ou por ter escamoteado as acusações de Meleto, ridicularizando-o para evitar ex-plicar-se sobre os deuses e a sua maneira de educar os jovens. A sua ideia a respeito dos deuses era bem mais exigente do que a mais vulgar entre os seus concida-dãos; rejeitava, tal como mais tarde Platão na Repúbli-ca, os combates, os adultérios, os crimes e os vícios que

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as lendas sagradas lhes atribuíam. Mas isso não o impe-dia de os honrar e de lhes fazer sacrifícios públicos; na verdade, ele tinha uma alma religiosa, mística até, e se-ria um erro grave ver nele um livre pensador, como ago-ra se diria. Pensava livremente, mas sujeitava-se às leis e respeitava os deuses; praticava a religião corrente, tal como os seus discípulos Xenofonte e Platão. Por este motivo, não faria sentido que fosse condenado. Tam-bém não merecia ser condenado por falar de novas di-vindades. Na verdade, na sua acusação, Meleto referia-se seguramente à voz divina que avisava Sócrates quan-do este se encontrava em risco de fazer algo de mal. Mas este sinal divino não era nada de extraordinário na religião grega, pois era aceite que os deuses advertiam quem eles queriam através dos oráculos, de aparições, de augúrios ou de qualquer outro modo, conforme mui-to bem lhes apetecesse. Quando muito, os juízes poderi-am ficar chocados por Sócrates ter a ousadia de se con-siderar um favorito dos deuses. Quanto à corrupção da juventude, a defesa de Sócrates não podia ser mais cla-ra. Nada impedia que os pais dos jovens o acusassem de se interpor entre eles e os seus filhos. Mas nenhum se queixou. Bem vistas as coisas, não é isso mesmo o que acontece com a intervenção de todos os professo-res, a quem os pais confiam os seus filhos? Não lhes é pedido precisamente que se interponham entre pais e

filhos, no processo educativo? Aqueles que conviveram com Sócrates, poderiam ter-se queixado desta alegada corrupção. Ora, nenhum se levantou para o acusar.

No entanto, Sócrates foi condenado. Quais foram, en-tão, as verdadeiras causas da sua condenação? Sócra-tes, que já contava com ela, responde a esta pergunta. Foram os ódios que atraiu, ao desmascarar a ignorân-cia de personagens importantes na presença de gente jovem, que, ainda por cima, obtinha grande prazer em ver essas pessoas importantes sem saber o que dizer. Mas houve outras razões. Desde logo, os ataques de Aristófanes que o representavam a discutir ao jeito dos sofistas. O povo ignorante acabou por pensar que Sócra-tes era também um sofista. Ora, os sofistas, destruido-res das antigas tradições, passavam por ímpios, ateus e professores de imoralidade. Era também esta a ideia que muitos faziam de Sócrates, e, como ele próprio dis-se, não seria no pouco tempo que lhe era atribuído pelo esvaziamento da clepsidra, que ele conseguiria retificar o erro em que incorriam os que assim pensavam. A es-tas razões, juntavam-se também razões de natureza po-lítica. As suas relações com jovens de famílias ricas, os únicos que tinham tempo livre para o ouvir, tornavam-no suspeito aos olhos dos líderes do partido popular. Sócrates não escondia, aliás, o desprezo que lhe inspira-va o regime de gabarolice e incompetência em que se

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tinha transformado a de-mocracia ateniense. Por outro lado, embora a Apo-logia não mencione de for-ma clara este aspeto, é cer-to que as relações que teve com Crítias e Alcibíades, homens considerados de má índole, reforçaram no espírito dos juízes a convic-ção de que corrompia a ju-ventude. É o que se pode entender na passagem do seu discurso, onde afirma que nunca fez concessão alguma contrária à justiça, nem sequer àqueles que os seus caluniadores diziam ser seus discípulos, acres-centando em seguida que, se algum daqueles que o ou-viu acabou por fazer o mal, não foi seguramente por res-ponsabilidade sua.

Apesar destes ódios, era quase certo que, face à reduzi-da maioria que o declarou culpado, se ele quisesse pe-dir misericórdia, se tivesse levado consigo os seus fi-lhos para comover os jurados, teria sido considerado

inocente. Podemos, então, dizer que, não o tendo feito, Sócrates deixou-se condenar voluntariamente. Foi a isto que os seus discípulos chamaram “orgulho da sua linguagem” (megalêgoria), e terá sido por isso que não obteve as graças dos juízes. A sua proposta para ser ali-mentado no pritaneu, independentemente de tudo o mais que pudesse explicar, foi tomada como uma provo-cação que fez com que alguns juízes que, antes, o ti-nham absolvido, agora votassem a favor da sua conde-nação à morte.

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Crítias foi um filósofo nasci-do em Atenas, tio de Platão e um dos membros do grupo de Trinta Tiranos que gover-naram a cidade, dos quais era um dos mais violentos. Foi discípulo de Sócrates.

Alcibíades (homem que decla-rava só ter respeito por Sócra-tes) viu-se implicado (com Andócides), na profanação de estátuas do deus Hermes e dos mistérios de Elêusis. Acusado de sacrilégio, foi des-tituído em alto-mar; deser-tou e refugiou-se em Espar-ta, cujos costumes severos chegou a adoptar durante al-gum tempo.