1. IndiceOs Problemas da
tica..........................................7tica Grega
Antiga...............................................24tica e
Religio......................................................35Os
Ideais ticos....................................................43A
Liberdade...........................................................48Comportamento
Moral: o Bem e o Mal............62A tica
Hoje..........................................................70Indicaes
Para Leitura........................................79
2. O Que tica lvaro L. M. VallsColeo Primeiros Passos - N 177
ISBN 85-11-01177-3 - Ano: 1994 Editora Brasiliense
3. Conhece-te a ti mesmo. Scrates Sede perfeitos, como vosso
pai perfeito. Jesus Cristo Age moralmente. Kant Meu dilema no
significa, em primeiro lugar, que se escolha entre o bem e o mal;
ele designa a escolha pela qual se exclui ou se escolhe o bem o o
mal. Kierkegaard A triste cincia (...) se refere a um domnio que
por tempos imemoriais foi considerado o especfico da
filosofia,porm, desde a transformao desta em mtodo, caiu no
desprezo intelectual, na arbitrariedade das sentenas e afinal no
esquecimento: a doutrina da vida correta. Adorno
4. OS PROBLEMAS DA TICA A tica daquelas coisas qua todo mundo
sabe o que so, mas queno so fceis de explicar, quando algum
pergunta. Tradicionalmente ela entendida como um estudo ou
umareflexo, cientfica ou filosfica, e eventualmente at teolgica,
sobreos costumes ou sobre as aes humanas. Mas tambm chamamos detica
a prpria vida, quando conforme aos costumes consideradoscorretos. A
tica pode ser o estudo das aes ou dos costumes, e pode sera prpria
realizao de um tipo de comportamento. Enquanto uma reflexo
cientfica, que tipo de cincia seria atica? Tratando de normas de
comportamentos, deveria chamar-seuma cincia normativa. Tratando de
costumes, pareceria uma cinciadescritiva. Ou seria uma cincia de
tipo mais especulativo, quetratasse, por exemplo, da questo
fundamental da liberdade? 7
5. Que outra cincia estuda a liberdade humana, enquanto tal, e
em suasrealizaes prticas? Onde se situa o estudo que pergunta se
existe a liber-dade? E como ele deveria sar definida teoricamente,
a como deveria servivida, praticamente? Ora, ligado ao problema da
liberdade, aparecesempre o problema do bem e do mal, e o problema
da conscincia moral eda lei, e vrios outros problemas deste tipo.
Didaticamente, costuma-se separar os problemas tericos da tica
emdois campos: num, os problemas gerais e fundamentais (como
liberdade,conscincia, bem, valor, lei e outros); e no segundo, os
problemaespecficos, de aplicao concreta, como os problemas da
ticaprofissional, da tica poltica, de tica sexual, de tica
matrimonial, debiotica, etc. um procedimento didtico ou acadmico,
pois na vida realeles no vm assim separados. Mais adiante teremos
de ver tambm como a tica se distingue deoutros ramos do saber, ou
de outros estudos de comportamentos humanos,como o direito, a
teologia, a esttica, a psicologia, a histria, a economia eoutros.
Quando diferenciamos estes ramos do saber, no estamos dizendoque os
problemas, na prtica da vida, no sajam complexos e com
vriasdimenses simultaneamente. Vejamos um exemplo. Subornar
umfuncionrio, um problema apenas tico, apenas econmico, ou tem
osdois aspectos? 8
6. As quetes da tica nos aparecem a cada dia. A partir do
exemploacima, logo poderamos nos perguntar se, num pas capitalista,
o princpiodo lucro poderia ou deveria situar-se acima ou abaixo das
leis da tica. Eem pocas mais difceis, muitas vezes nos perguntamos
se uma lei injustade um Estado autoritrio precisa ou no ser
obedecida. E quando nsternos um "problema de conscincia", quando
estamos com um"sentimento de culpa", coisa que ocorre a todos, no
se torna importantesaber se este sentimento corresponde de fato a
uma culpa real? Cabe reflexo tica perguntar se o homem pode
realmente ser culpado, ou se oque existe apenas um sentimento de um
mal-estar sem fundamento. E as artes tambm levantam problemas para
a tica. Por exemplo: opoder de seduo, de encantamento, da msica,
pode (ou deve) ser usadopara condicionar o comportamento das
pessoas? E o mandamento evanglico do amor aos inimigos vlido como
umaobrigado tica para todos? E quando, lendo um romance de
Dostoievski, encontramos umpersonagem como Ivan, de Os Irmos
Karamazov, afirmando que "seDeus no existe tudo permitido", devemos
ento concluir que isso umaproposta de abolio da tica? Os problemas
que acabamos de mencionar implicam todosalguma relao com outras
disciplinas tericas e prticas, mas so todosproblemas especficos da
tica. 9
7. Mas h uma outra questo, especificamente tica, que parece
serabsolutamente fundamental. Os costumas mudam e o que ontem
eraconsiderado errado hoje pode ser aceito, assim como o que aceito
entreos ndios do Xingu pode ser rejeitado em outros lugares, do
mesmo pasat. A tica no seria ento uma simples listagem das convenes
sociaisprovisrias? Se fosse assim, o que seria um comportamento
correto, em tica? Noseria nada mais do que um comportamento
adequado aos costumesvigentes, e enquanto vigentes, isto , enquanto
estes costumes tivessemfora para coagir moralmente, o que aqui quer
dizer, socialmente. Quem secomportasse de maneira discrepante,
divergindo dos costumes aceitos erespeitados, estaria no erro, pelo
menos enquanto a maioria da sociedadeainda no adotasse o
comportamento ou o costume diferente. Quer dizer:esta ao seria
errada apenas enquanto ela no fosse o tipo de um novocomportamento
vigente. claro que, de qualquer maneira, a tica tem pelo menos
tambm umafuno descritiva: precisa procurar conhecer, apoiando-se em
estudos deantropologia cultural e semelhantes, os costumes das
diferentes pocas edos diferentes lugares. Mas ela no apenas retrata
os costumes; apresentatambm 10
8. 11
9. algumas grandes teorias, que no se identificam totalmente
com as formasde sabedoria que geralmente concentram os ideais de
cada grupo humano.A tica tem sido tambm uma reflexo terica, com uma
validade maisuniversal, como ainda veremos. Quanto aos costumes,
para partirmos do real e no do idealpropriamente dito, preciso
reconhecer desde logo uma sria restrio: ahumanidade s reteve por
escrito depoimentos sobre as normas decomportamentos (e teorias)
dos ltimos milnios, embora os homens jexistam h muito mais tempo.
Como se comportavam eticamente oshomens das cavernas, h mais de
trinta mil anos? Como era a sua ticasexual, que tipos de normas
polticas vigoravam na pr-histria? extremamente difcil diz-lo.
Quanto s grandes teorizaes, h documentos importantssimos pelomenos
desde os gregos antigos, h uns dois mil e quinhentos anos. Mas
importante ento lembrar que as grandes teorias ticas gregas
tambmtraziam a marca do tipo de organizao social daquela sociedade.
Taisreflexes no deixavam de brotar de uma certa experincia de um
povo, e,num certo sentido, at de uma classe social. Tais
enraizamentos sociaisno desvalorizam as reflexes mais aprofundadas,
mas sem dvida ajudama compreender a distncia entre as doutrinas
ticas escritas pelos filsofos,de um lado, e os costumes reais do
povo e das diferentes classes, por outrolado, 12
10. tanto no Egito quanto na Grcia, na ndia, em Roma ou na
Judia. Em certos casos, s chegaremos a descobrir qual a tica
vigente numaou noutra sociedade atravs de documentos no escritos ou
mesmono-filosficos (pinturas, esculturas, tragdias e comdias,
formulaesjurdicas, como as do Direito Romano, a polticas, como as
leis de Espartaou Atenas, livros de medicina, relatrios histricos
de expediesguerreiras e at os livros penitenciais dos bispos
medievais). Como no se admirar diante da diversidade dos
costumes,pesquisando, por exemplo, o que os gregos pensavam da
pederastia, ou oscasos em que os romanos podiam abandonar uma
criana recm-nascida,ou as relaes entre o direito de propriedade e o
"no cobiar a mulher doprximo" dos judeus antigos, ou a escala de
valores que transparece noslivros penitenciais da Idade Mdia,
quando o casamento com urnaprima em quinto grau constitua uma culpa
mais grave do que o abusosexual de uma empregada do castelo, ou
quando o concubinato, mesmodos padres, era uma forma de
regulamentar eficazmente o direito daherana? O que acabamos de
mencionar coloca a questo nos seguintes termos.No so apenas os
costumes que variam, mas tambm os valores que osacompanham, as
prprias normas concretas, os prprios ideais, a prpriasabedoria, de
um povo a outro. 13
11. Mas algum poderia argumentar que, embora s conheamos
asnormas ticas dos ltimos milnios, certamente deve haver um
princpiotico supremo, que perpasse a pr-histria e a histria da
humanidade. Noseria, quem sabe, o princpio que probe o incesto
(sexo antre parentes)?Mas at esta norma to antiga e to importante
carece de uma verdadeiraconcreo, de uma formulao bem determinada.
Afinal, a definioconcreta dos casos de incesto constantemente
variou. Voltemos ao exemplo da Idade Mdia. Ao redor do ano 1000, a
relaoincestuosa atingia at o stimo grau. Casar com uma prima de at
stimograu era um crime e um pecado. Mas, se a quase totalidade era
analfabeta,como conhecer bem a rvore genealgica? O costume ento era
bastantematreiro: os nobres se casavam sem perguntar pela
genealogia, e s sepreocupavam com o incesto quando eventualmente
desejassem dissolver ocasamento, anulando-o. No era difcil, ento,
conseguir um monge letradoou mesmo testemunhas compradas, para
demonstrar o impedimento eanular o casamento. Graas ao incesto, o
nobre podia tentar varias vezes,at conseguir ganhar um filho homem,
o que era, muitas vezes, a sua realpreocupao, por causa da
linhagem, do nome e da herana. Se formos pesquisar estes costumes
mais a fundo, descobriremos entotalvez que, por trs das normas
explcitas, havia outros valores mais altos,tais 14
12. como a linhagem, as alianas poltico-militares, e quem sabe
at a pazsocial, dentro de uma estrutura baseada na luta, na
competio e na guerra,por questes de honra, da religio ou de herana.
Mas ento temos de nosperguntar qual a importncia desta
regulamentaco tica para ns hoje,numa poca de capitalismo avanado
(ou mesmo salvagem), onde a grandemaioria se sustenta ou empobrece
graas exclusivamente ao seu trabalhopessoal, sua fora de trabalho,
independente de linhagem e de herana. Mesmo nos dias de hoje, numa
mesma sociedade, no notamos ntidasdiferenas de costumes entre as
classes da mais alta burguesia, a pequenaburguesia e o
proletariado, para no falar dos camponeses ou agricultores? Mas no
haveria, ento, uma tica absoluta? No teria, quem sabe,
ocristianismo trazido esta tica absoluta, vlida acima das
fronteiras detempo e espao? Ser verdade que o cristianismo trouxe
realmente umanica tica? Max Weber, pensador alemo do incio do nosso
sculo, mostra queesta tica no era, em todo o caso, simples, clara e
acessvel a todos. Poisos protestantes, principalmente os
calvinistas, sempre valorizarameticamente muito mais o trabalho e a
riqueza, enquanto os catlicos davamum valor maior abnegao, ao
esprito de pobreza e de sacrifcio. E adiversidade simultnea no a
nica: maiores so as variaes de umsculo para outro. 15
13. No passado, houve pocas em que a pobreza e a castidade eram
os valoresmais altos da escala tico-religlosa (geralmente em pocas
em que seprevia para breve o fim do mundo). Isto explica os grandes
movimentosmonacais, assim como, em contrapartida, nos permite
entender por que, nosculo passado, o ideal do homem cristo
enaltecia muito mais o burgusculto, casado, com famlia grande e
boas economias acumuladas, cultor davida urbana e social. No seria
exagerado dizer que o esforo de teorizao no campo datica se debate
com o problema da variao dos costumes. E os grandespensadores ticos
sempre buscaram formulaes que explicassem, a partirde alguns
princpios mais universais, tanto a igualdade do gnero humanono que
h de mais fundamental, quanto as prprias variaes. Uma boateoria
tica deveria atender a pretenso de universalidade, ainda
quesimultaneamente capaz de explicar as variaes de
comportamento,caractersticas das diferentes formaes culturais e
histricas. Dois nomes merecem ser logo citados, como estrelas de
primeiragrandeza desse firmamento: o grego antigo Scrates (470-399
a.C.) e oalemo prussiano Kant (1724-1804). Scrates, o filsofo que
aparece nos Dilogos de Plato, usando omtodo da maiutica (interrogar
o interlocutor at que este chegue por simesmo 16
14. verdade, sendo o filsofo uma espcie de "parteiro das
idias"), foicondenado a beber veneno. Mas por qu? A acusao era a de
que eleseduzia a juventude, no honrava os deuses da cidade e
desprezava as leisda polis (cidade-estado). Depois de dois milnios,
ainda no sabemos sesua condenao foi justa. Pois Scrates obedecia s
leis, mas asquestionava em seus dilogos, procurando fundamentar
racionalmente asua validade. Ele ousava, portanto, perguntar se
estas leis eram justas. Emesmo que chegasse a uma concluso
positiva, o conservadorismo gregono podia suportar este tipo de
questionamento, pois as leis existiam paraserem obedecidas, e no
para serem justificadas. Mas, embora os gregos no gostassem dos
questionamentos socrticos,Scrates foi chamado, muitos sculos
depois, "o fundador da moral",porque a sua tica (e a palavra moral
sinnimo de tica, acentuandotalvez apenas o aspecto de interiorizao
das normas) no se baseavasimplesmente nos costumes do povo e dos
ancestrais, assim como nas leisexteriores, mas sim na convico
pessoal, adquirida atravs de umprocesso de consulta ao seu "demnio
interior" (como ele dizia), natentativa de compreender a justia das
leis. Parece mesmo que Scrates abandonou at o estudo das cincias
danatureza (as famosas cosmologias), para se ocupar exclusivamente
consigo 17
15. mesmo e o seu agir. Scrates seria ento, para muitos, o
primeiro grandepensador da subjetividade, o que, alis, tambm
transparecia por seucomportamento irnico. Pois a ironia (que alguns
traduzem como umaignorncia fingida, mas que deve ser muito mais do
que isto) sempreestabelece uma diferena entre o que eu digo e o que
eu quero dizer, eassim entre a formulao e o sentido das proposies
uma distncia,portanto, entre o exterior e o interior. Ora, se este
movimento de interiorizaco da reflexo e de valorizaoda
subjetividade ou da personalidade comea com Scrates, parece que
eleculmina com Kant, l pelo final do sculo XVIII. Kant buscava uma
tica de validade universal, que se apoiasse apenasna igualdade
fundamental entre os homens. Sua filosofia se volta sempre,em
primeiro lugar, para o homem, e se chama filosofia
transcendentalporque busca encontrar no homem as condies de
possibilidade doconhecimento verdadeiro e do agir livre. No centro
das questes ticas,aparece o dever, ou obrigao moral, uma
necessidade diferente da natural,ou da matemtica, pois necessidade
para uma liberdade. O dever obrigamoralmente a conscincia moral
livre, a a vontade verdadeiramente boadeve agir sempre conforme o
dever e por respeito ao dever. Partindo do pressuposto, tpico do
movimento iluminista queacompanhou a ascenso da burguesia, da
igualdade bsica entre oshomens, 18
16. Kant achava que a igualdade entre os homens era fundamental
para o desenvolvimento de uma tica universal. 19
17. Kant precisa chegar a uma moral igual para todos, uma moral
racional, anica possvel para todo e qualquer ser racional. Esta
moral no se interessa essencialmente pelos aspectos
exteriores,empricos e histricos, tais como leis positivas,
costumes, tradies,convenes e inclinaes pessoais. Se a moral a
racionalidade do sujeito,este deve agir de acordo com o dever e
somente por respeito ao dever:porque dever, eis o nico motivo vlido
da ao moral. Legalidade e moralidade se tornam extremos opostos.
Diante de cadalei, de cada ordem, de cada costume, o sujeito est
obrigado, para ser umhomem livre, a perguntar qual o seu dever, e a
agir somente da acordocom o seu dever, e isto, exclusivamente, por
ser o seu dever. Como vemos,uma tica bastante revolucionria para
uma poca dominada por umregime antigo, baseado em tradies e
imposies irracionais. Para Kant, os contedos ticos nunca so dados
do exterior. O quecada um de ns tem, porm, a forma do dever. Esta
forma se expressa emvrias formulaes, no chamado imperativo
categrico, o qual tem estenome por ser uma ordem formal nunca
baseada em hipteses oucondies. A formulao clssica do imperativo
categrico a seguinte,conforme o texto da Fundamentao da Metafsica
dos Costumes: "devoproceder sempre de maneira que eu possa querer
tambm que a minhamxima se torne uma lei universal". 20
18. Colocado como um imperativo para o outro, seria: "age de
tal maneira quepossas ao mesmo tempo querer que a mxima da tua
vontade se torne leiuniversal". E se algum perguntasse a Kant:
"sim, mas de que maneira,concretamente?", sua resposta seria:
"exatamente desta maneira. Ou seja,Kant procurou deduzir da prpria
estrutura do sujeito humano, racional elivre, a forma de um agir
necessrio e universal. moralmente necessriotodos ajam assim. Os
crticos de Kant costumam dizer que ele teria as mos limpas,
setivesse mos, ou seja, que desta maneira concretamente impossvel
agir.Impossvel agir refletindo a cada vez, aplicando ao caso
concreto afrmula do imperativo categrico. Seria querer comear, a
cada vez, tudode novo, seria supor em si uma conscincia moral to
pura e racional quenem existe, e seria reforar, na prtica, o
individualismo. A outra crtica,complementar a esta, a de que no se
pode ignorar a histria, as tradiesticas de um povo, etc., sem cair
numa tica totalmente abstrata. Masparace tambm impossvel, hoje em
dia, ocupar-se com a tica ignorandoas idias de Kant.Teremos de
analisar mais calmamente, neste livro, as posies deScrates e de
Kant, juntamente com outras posies clssicas econtemporneas. No
21
19. obstante, talvez j se possa afirmar que, com nosso pequeno
esboo sobreo que teria sido a vida tica grega antes de Scrates e
sobre a posioextremamente racionalista de Kant, ficaram colocadas
as duas margenspara o grande rio do pensamento tico, no meio do
qual se encontrammuitas outras posies, algumas atentas
principalmente aos costumesexteriores, que teriam de ser
interiorizados, outras mais preocupadas com aatitude individual e
subjetiva, que no entanto no deveriam esquecer asituao social,
poltica, histrica, etc. Neste grande rio se movimentam pensadores
do porte de Plato eAristteles, Santo Agostinho e Santo Toms de
Aquino, Maquiavel eSpinoza, Hegel e Kierkegaard, Marx e Sartre,
enfim, quase todos osgrandes pensadores que ns, ocidentais,
conhecemos, assim como, nomeio deles, todos ns, que a cada dia
enfrentamos problemas tericos eprticos, ticos ou morais. E que
temos de resolv-los, corn ou sem ajuda,mas de preferncia com alguma
ajuda daqueles que mais pensaram sobretais questes. Antes de
continuarmos, porm, um alerta: h muito pensadorimportante,
principalmente hoja em dia, que considera que o estudo datica a
regio mais difcil, e aquela para a qual o pensamento, reflexivo
ediscursivo, est atualmente menos preparado. Mas ento, o que
fazer?Adotar, como 22
20. propunha Descartes, uma moral provisria, para cuidar
primeiro dasquestes tericas, resolvendo as questes prticas do jeito
que der? Ou quem sabe seria melhor simplesmente ignorar as questes
ticas,cuidando apenas dos assuntos tcnicos, tais como: arranjar
dinheiro,arranjar-se na vida, progredir na vida profissional, gozar
o que forpossvel, conseguir fora suficiente para dominar e no ser
dominado. . .Ou quem sabe no seria melhor ainda simplesmente
deixar-se levar pelosistema e pelos acontecimentos? Mas, neste
caso, ns homens no estaramos abdicando, renunciandoao nosso anseio
de liberdade? 23
21. TICA GREGA ANTIGA Entre os anos 500 e 300 a.C.,
aproximadamente, ns encontramos operodo ureo do pensamento grego.
um perodo importante no s paraos gregos, ou para os antigos, mas um
perodo onde surgiram muitas idiase muitas definies e teorias que at
hoje nos acompanham. No soapenas trs pensadores (Scrates, Plato e
Aristteles) os responsveis poresta fabulosa concentrao de saber, e
por esta incrvel anlise e reflexosobre o agir do homem, mas talvez
valha a pena esquematizar rapidamentealgumas das idias dos dois
ltimos, para ternos uma imagem de como osproblemas ticos eram
formulados naqueles tempos. A reflexo grega neste campo surgiu como
uma pesquisa sobre anatureza do bem moral, na busca de um princpio
absoluto da conduta. Elaprocede do contexto religioso, onde podemos
encontrar o cordo umbilicalde muitas 24
22. idias ticas, tais como as duas formulaes mais conhecidas:
"nada emexcesso" e "conhece-te a ti mesmo". O contexto em que tais
idiasnasceram est ligado ao santurio de Delfos do deus Apolo. O
grande sistematizador, entre os discpulos de Scrates, foi
Plato(427-347 a.C.). Nos Dilogos que deixou escritos, ele parte da
idia de quetodos os homens buscam a felicidade. A maioria das
doutrinas gregascolocava, realmente, a busca da felicidade no
centro das preocupaesticas. Mas no se deve pensar, da, que Plato
pregava um egosmorasteiro. Pelo contrrio, ao pesquisar as noes de
prazer, sabedoria prticae virtude, colocava-se sempre a grande
questo: onda est o Sumo Bem? Plato parece acreditar numa vida
depois da morte e por isso prefere oascetismo ao prazer terreno. No
dilogo Repblica ele at condena a vidavoltada exclusivamente para os
prazeres. Contando com a imortalidade daalma, sugerida no dilogo
Fdon, e que coerente com uma preexistnciada alma, ele espera a
felicidade principalmente para depois da morte. Os homens deveriam
procurar, ento, durante esta vida, acontemplao das idias, e
principalmente da idia mais importante, aidia do Bem. Plato
descreve, de uma maneira literariamente muitosedutora, como h uma
espcie de Eros filosfico que atrai o homempara este exerccio de
25
23. contemplao. Como o astrnomo contempla os astros, o
filsofocontempla, atravs da arte da dialtica, as idias mais altas,
principalrnenteas do Ser e do Bem. O Ser imutvel, e tambm o Bem. A
partir desteBem superior, o homem deve procurar descobrir uma
escala da bens, que oajudem a chegar ao absoluto. O sbio no , ento,
um cientista terico, mas um homem virtuoso ouqua busca a vida
virtuosa e que assim consegue estabelecer, em sua vida, aordem, a
harmonia e o equilbrio que todos desejam. O sbio faz penetrarem sua
vida e em seu ser a harmonia que vem do hbito de submeter-se razo.
Dialtica e virtude devem andar juntas, pois a dialtica o caminhoda
contemplao das idias e a virtude esta adequao da vida pessoal
sidias supremas. Mas a virtude tambm uma purificao, atravs da qual
o homemaprende a desprender-se do corpo com tudo o que este tem de
terreno e desensvel, e desprender-se do mundo do aqui e agora para
contemplar omundo ideal, imutvel e eterno. A est o Sumo Bem, para
Plato. Aprtica da virtude (aret) por isso a coisa mais preciosa
para o homem. Avirtude a harmonia, a medida (mtron) e a proporo, e
a harmoniaindividual e social assim uma imitao da ordem csmica.
(Cosmos jsignifica ordem, ao contrrio de caos). O ideal buscado
pelo homem virtuoso a imitao ou assimilaco deDeus: aderir ao
divino. A plebe, naturalmente, considera o filsofo umlouco, 26
24. por causa de sua hierarquia dos bens, invertida em relaco
dela. Mas osbio exatamente aquele que busca assemelhar-se ao Deus,
tanto quantolhe possvel humanamente. O dilogo das Leis afirma que
"Deus amedida de todas as coisas". E qual seria ento a norma da
virtude? aprpria idia do Bem, uma idia perfeita e subsistente. Nas
pesquisas efetuadas dialeticamente nos diversos dilogos, Platovai
organizando um quadro geral das diferentes virtudes. As
principaisvirtudes so as seguintes:-- Justia (dike), a virtude
geral, que ordena e harmoniza, e assim nosassemelha ao invisvel,
divino, imortal e sabio;-- Prudncia ou sabedoria (frnesis ou sofa)
a virtude prpria da almaracional, a racionalidade como o divino no
homem: orientar-se para osbensdivinos. Esta virtude, que para Plato
equivale vida filosfica como umamsica mais elevada, aquela que pe
ordem, tambm, nos nossospensamentos;-- Fortaleza ou valor (andria)
a que faz com que as paixes maisnobres predominem, e que o prazer
se subordine ao dever;-- Temperana (sofrosine) a virtude da
serenidade, equivalente aoautodomnio, harmonia individual. 27
25. Assim, o que mais caractariza a tica platnica a idia do
Sumo Bem,da vida divina, da equivalncia de contemplao filosfica e
virtude, e davirtude como ordem a harmonia universal. A distncia
entre as virtudesintelectuais e morais pequana, pois a vida prtica
se assemelha muito prtica terica. Plato foi, alm de grande filsofo,
tambm um grande poeta ouliterato. A maioria de seus escritos tem a
forma de dilogos, que so lidoscom muito prazer e interesse
intelectual e moral. J o seu discpuloAristteles, filsofo da mesma
estatura de seu mestre, tem um outro estiloem seus escritos. Ele
muito mais um professor do que um poeta. Muitosde seus escritos so
fragmentos ou notas para exposies aos discpulos.Mas tem tambm
livros unitrios. Aristteles (384-322 a.C.), alm de um grande
pensador especulativoe profundo psiclogo, levava muito a srio (e
mais do que Plato) aobservao emprica. Assim, enquanto Plato
desenvolvia suaespeculao mais terica, Aristteles colecionava
depoimentos sobre avida das pessoas e das diferentes cidades
gregas. Isto no quer dizer queele fosse um empirista sem capacidade
especulativa, mas mostra o seuesforo analtico e comparativo, quando
ele se punha a comparar, porexemplo, mais de uma centena de
constituies 28
26. polticas de cidades gregas. Seus livros explicitamente
sobre questes de tica so a tica aEudemo e a tica a Nicmaco, mas ele
escreveu tambm uma MagnaMoral e um pequeno tratado sobre as
virtudes e os vcios. Ele tambm parte da correlaco entre o Ser e o
Bem. Mais do quePlato, porm, insiste sobre a variedade dos seres, e
da conclui que osbens (no plural em Aristteles) tambm devem
necessariamente variar.Pois para cada ser deve haver um bem,
conforme a natureza ou a essnciado respectivo ser. De acordo com a
respectiva natureza estar o seu bem,ou o que bom para ele. Cada
substncia tem o seu ser e busca o seu bem:h um bem para o deus, um
para o homem, um para a planta, etc. Quantomais complexo for o ser,
mais complexo ser tambm o respectivo bem. Assim, a questo platnica
do Sumo Bem d lugar, em Aristteles, pesquisa sobre os bens em
concreto para o homem. neste sentido que podemos dizer que a tica
aristotlica finalista eeudemonista, quer dizer, marcada pelos fins
que devem ser alcanadospara que o homem atinja a felicidade
(eudaimona). Mas em que consiste o bem ou a felicidade para o
homem? Qual omaior dos bens? Ora, Aristteles no isola muito um bem
supremo, poisele sabe que o homem, como um ser complexo, no precisa
apenas domelhor dos bens, mas sim de vrios bens, de tipos
diferentes, tais comoamizade, sade e 29
27. at alguma riqueza. Sem um certo conjunto de tais bens, no h
felicidadehumana. Mas claro que h uma certa escala de bens, pois os
bens so devrias classes, e uns melhores do que outros. Quais os
melhores bens? As virtudes, a fora, o poder, a riqueza, abeleza, a
sade ou os prazeres sensveis? A resposta de Aristteles parte do
fato de que o homem tem o seu serno viver, no sentir e na razo.
Ora, esta ltima que caracterizaespecificamente o homem. Ele no poda
apenas viver (e para isso osgregos consideravam fundamental uma boa
respirao como base dasade), mas ele precisa viver racionalmente,
isto , viver de acordo com arazo. A razo, para no se deixar ela
mesma desordenar, precisa da virtude,da vida virtuosa. Qual seria,
ento, a virtude mais alta, ainda que no anica necessria? O bem
prprio do homem a vida terica ou teortica,dedicada ao estudo e
contemplao, a vida da inteligncia. Convm lembrar aqui que afinal de
contas esses grandes filsofosgregos viviam numa sociedade de
classes, baseada no trabalho escravo, eque os filsofos em geral se
dirigiam aristocracia, isto , queles quepodiam dedicar-se quase que
exclusivamente vida do pensamento, livresque estavam do trabalho
duro e cotidiano. (E convm lembrar, igualmente,que uma observao
como esta acima no explica toda a grandeconstruo terica sobre a
tica, de pensadores como Scrates, Plato eAristteles). 30
28. No seria melhor ignorar as questes ticas e cuidar apenas
dos assuntos tcnicos? 31
29. Para Aristteles, o pensamento o elemento divino no homem e
o bemmais precioso. Assim, quem sbio no carece de muitas outras
coisas. Avida humana mais feliz a contemplativa, porque imita
melhor a atividadedivina, mas como este ideal demasiado elevado
para a maioria, precisoanalisar tambm as outras coisas de que o
homem carece. Mesmo assim, a contemplao no , aqui., um saber pelo
saber, mas antes um estudo das cincias (cincias teorticas, como a
teologia e amatemtica, cincias prticas e poticas). Mas o objeto do
estudo maiselevado o da teologia: o Deus. Na tica a Eudemo, o
objetivo ou a finalidade da vida humana oculto e a contemplao do
divino. Este o fim mais nobre e a nossa normamais segura de
conduta. J na tica a Nicmaco aparecem mais as coisas relativas e
tambmnecessrias, de modo que o autor busca igualmente as normas
maisrelativas. Assim, por exemplo, o prazer no um bem absoluto,
mastambm no um mal, pois ele acompanha as diferentes
atividades,mesmo as intelectuais ou espirituais. No entanto,
Aristteles insiste em que"os verdadeiros prazeres do homem so as
aes conforme a virtude". A felicidade verdadeira conquistada pela
virtude. As virtudes soento analisadas longa e detalhadamente. O
ser do homem substnciacomposta: 32
30. corpo material e alma espiritual. Como o corpo sujeito s
paixes, a almadeve desenvolver hbitos bons, uma vez que a virtude
sempre uma foraadquirida, um hbito, que no brota espontaneamente da
natureza. Aristteles valoriza, ento, mais do que seu mestre, a
vontade humana,a deliberao e o esforo um busca de bons hbitos. O
homem precisaconverter suas melhores disposies naturais em hbitos,
de acordo com arazo: virtudes intelectuais. Mas esta auto-educao
supe um esforo voluntrio, de modo que avirtude provm mesmo da
liberdade, que delibera e elege inteligentemente.Virtude uma espcie
de segunda natureza, adquirida pela razo livre. Para concluir esta
pequena amostra a respeito do pensamento tico dosgrandes tericos
gregos, vale a pena citar um trecho da tica a
Nicmaco,ondeAristteles mostra toda a lgica de seu raciocnio, aliada
a uma agudaobservao psicolgica e a um bom senso acostumado a ver as
coisascomoelas so, na prtica. Vejamos uma das tradues possveis da
definio devirtude: " um hbito adquirido, voluntrio, deliberado, que
consiste nojusto meio em ralao a ns, tal como o determinaria o bom
juzo de umvaro prudente e sensato, julgando conforme a reta razo e
a experincia". 33
31. Que os exemplos resumidos de Plato e Aristteles nos bastem,
emtermos de grandes teorias morais. Apenas como uma amostra.
Umaamostra da profundidade e da seriedade da reflexo tica. Que
muitomais do que isto. 34 TICA E RELIGIO Entre os gregos antigos, a
discusso sobre o mundo e a harmoniacsmica produziu doutrinas
prticas, que procuravam orientar a ao dosindivduos para uma vida
voltada para o bem, a virtude e a harmonia coma natureza. Viver de
acordo com a natureza no era uma questoexclusivamente ecolgica, mas
tambm moral, isto , eles consideravamque devia haver uma lei moral
no mundo, que permitisse ao homem vivere se realizar como homem,
isto , de acordo com a sua natureza. A leimoral seria ento um
aspecto da lei natural. Scrates, com sua preocupao moral, expressa
no lema "conhece-te ati mesmo" (lema que no era terico, mas prtico,
pois no buscava umconhecimento puro e sim uma sabedoria de vida),
acentuou aespecificidade da moral frente cosmologia (estudo
filosfico do mundo). 35
32. A religio grega, como muitas outras religies antigas, era
aindabastante naturalista, sendo os deuses geralmente quase
apenaspersonificaes de foras naturais, como o raio, a fora, a
inteligncia, oamor e at a guerra. Com a religio judaica, a questo
se modifica umtanto. O Deus de Abrao, Isaac e Jac no se identifica
tom as foras danatureza, estando assim acima de tudo o que h de
natural. Em termos ticos ou morais, isto tem uma conseqncia
profunda:quando o homem se pergunta como deve agir, no pode mais
satisfazer-secom a resposta que manda agir de acordo com a
natureza, mas deve adotaruma nova posio que manda agir de acordo
com a vontade do Deuspessoal. Para que isto seja praticamente
vivel, torna-se necessrioconhecer a vontade deste Deus pessoal, e a
filosofia sente a necessidade deuma ajuda fundamental fora dela: os
homens procuram a revelao deDeus. A revelao de Deus no uma exposio
terica, mas toda elavoltada para a educao e o aperfeioamento do
homem. O homem buscaser santo, como Deus no cu santo. Em relao
religio da Abrao e Moiss, expressa nos livros doAntigo Testamento,
os ensinamentos de Jesus Cristo so uma certacontinuao e um certo
aperfeioamento. Ele no nega a lei antiga, mas arelativiza num
mandamento renovado, o mandamento do amor. Este amor agora
diferente 36
33. do amor grego e mesmo do amor judaico aos seus, pois inclui
o perdo emuitas outras coisas duras de ouvir. E principalmente um
amor que vemde cima: Deus nos amou primeiro, por isso, na relao com
os irmos (queso agora todos os homens, resumidos na categoria do
prximo) cada umdeve procurar amar primeiro. A religio trouxe, sem
dvida alguma, um grande progresso moral humanidade. A meta da vida
moral foi colocada mais alto, numasantidade, sinnimo de um amor
perfeito, e que deveria ser buscada,mesmo que fosse inatingvel. Mas
no se vai negar, tambm, que osfanatismos religiosos ajudaram a
obscurecer muitas vezes a mensagemtica profunda da liberdade, do
amor, da fraternidade universal. A prpriareligio serviu de grande
estmulo para os filsofos e moralistas,levantando novas questes,
como a do relacionamento entre a natureza e aliberdade, ou a da
fraternidade universal confrontada a uma solidariedademais
restrita, grupal ou nacional, ou a da valorizao e relativizao
doprazer, do egosmo, do sofrimento, etc. Finalmente, todos sabem
que asinfluncias de uma certa viso religiosa, que no explicava bem
o queentendia por carne (sinnimo de pecado), em muitas pocas
foramresponsveis por um moralismo centrado nas questes do
sexo.Quando, ento, certos religiosos criticam o pan-sexualismo de
um Freud,por 37
34. exemplo, muitas vezes se esquecem de que eles mesmos, em
sua moral,fizeram tudo girar ao redor desta questo, e geralmente
numa perspectivasectria que, mais do que crist, era platnica no mau
sentido da palavra.Esta identificao da moral com a preocupao com o
sexo invadiu,porm, at as cabeas de gente no ligada religio. Quando
eu perguntei,certa vez, a um professor que se considerava marxista
e que estivera naUnio Sovitica a respeito da moral dos russos aps a
Revoluo, suaresposta foi toda voltada para as questes da
sexualidade, enquanto eleesquecia de falar sobre as questes morais
ligadas aos ideais defraternidade e aos problemas de propriedade,
poder, violncia revo-lucionria etc. Na medida em que se
convencionou chamar a Idade Mdia europia operodo cristo do
Ocidente, o pensamento tico que conhecemos est,portanto, todo ele
ligado religio, interpretao da Bblia e teotogia.Na Idade Moderna,
que coincide com os ltimos quatro ou cinco sculos,apresentam-se
ento duas tendncias: a busca da uma tica laica, racional(apenas),
muitas vezes baseada numa lei natural ou numa
estrutura(transcendental) da subjetividade humana, que se supe
comum a todos oshomens, e, por outro lado, novas formas de sntese
entre o pensamentotico-filosfico e a doutrina da Revelao
(especialmente a crist").Pensadores como Kant e Sartre, por
exemplo, tentam formular teoriasticas 38
35. aceitveis pela pura razo. Pensadores como Hegel,
Schelling,Kierkegaard e Gabriel Marcel, ou mesmo Martin Buber,
discutem apenas amaneira de relacionar as doutrinas religiosas com
a reflexo filosfica. Uma figura sui generis neste contexto, filsofo
alemo LudwigFeuerbach (1804-1872), que tentou traduzir a verdade da
religio,especialmente a crist, numa antropologia filosfica que
estivesse aoalcance de todos os homens instrudos. Na metade do
sculo XIX, ento,todos eram "feuerbachianos" (como diz Engels), e o
prprio Marx assumiua perspectiva de Feuerbach, criticando-a, porm,
por ser demasiadocontemplativa e esquecedora da prtica. Marx
desenvolve, ento, umanova viso do mundo e da histria humana, que,
num certo sentido,deveria substituir a religio. A moral
revolucionria, que aparece emmuitos textos de Marx (e que foi
desenvolvida principalmente pelosmarxistas do sculo atual), no
deixa de ser, em muitos pontos,influenciada pelo pensamento cristo,
com temas como converso,redeno, sacrifcio, martrio e espera do
Reino que est sendo construdo. No de espantar, por isso, que
pensadores cristos atuais busquemrecuperar nos textos da tradio
marxista muitos pontos da tradio ticacrist, por mais que isto parea
paradoxal. O marxismo , no sculo XX,uma grande tradio de preocupaes
ticas, onde persistem elementosdo 39
36. cristianismo em forma secularizada, o que no quer dizer que
marxismoseja sinnimo de cristianismo, na medida em que este se move
em outrascategorias, como f, revelao, paternidade divina e pecado,
com apossibilidade do perdo. Ao lado desta tendncia moderna que
busca formas de unir uma ticareligiosa e uma reflexo filosfica,
desenvolvem-se no mundo moderno econtemporneo prticas e teorias que
ignoram as contribuies da religio.Estas tendncias so as mais
variadas e podemos no mximo esquematiz-las. H, como veremos mais
adiante, a concepo determinista que ignora,por princpio, a
liberdade humana como sendo uma iluso. H umaconcepo racionalista
que procura deduzir da "natureza humana" (numaperspectiva
naturalista, fisicalista ou materialista, ou numa
perspectivatranscendental kantiana, que define a natureza humana
como liberdade, e aconscincia humana como "legisladora universal")
as formas corretas daao moral. Esta concepo, na sua linha kantiana,
procura principalmenteformas de procedimento prtico que possam ser
universalizveis, isto ,uma ao moralmente boa aquela que pode ser
universalizvel, de talmodo que os princpios que eu sigo pudessem
valer para todos, ou aomenos que eu pudesse querer que eles
valessem para todos. O chamado "formalismo kantiano" no deixa de
ter os seus encantos,pois 40
37. ele procura basear-se quase que exclusivamente nas leis do
pensamentos eda vontade, dando assim critrios prticos de serventia
inegvel. Se eutomo hoje, por exemplo, a questo da tortura, posso me
perguntar se seriapossvel desajar, ou melhor, querer, que tal
procedimento fosse aplicadouniversalmente. Se no posso querer a
universalizao da tortura, noposso aceitar a tortura tambm aqui e
agora. Enfim, h outras tendncias bastante difundidas, como a
doutilitarismo: bem o que traz vantagens para muitos (a da se
deduziu atuma matemtica ou clculo moral). Esta tendncia aparece em
muitasformulaes que podem ser definidas como pragmatismo: deixam-se
delado as questes tericas de fundo, apelando-se para os resultados
prticos,muitas vezes imediatos. Este pragmatismo parece estar
bastante ligado aopensamento anglo-saxo, e se desenvolveu sobretudo
nos pases de falainglesa. Prximo a este pragmatismo, h duas outras
tendncias atuaisimportantes, para um estudo da tica, e que at certo
ponto se completam.H uma prtica, especialmente desenvolvida nos
pases de capitalismomais avanado, que busca a utilidade e a
vantagem particular: bom o queajuda o meu progresso (econmico,
principalmente) e o meu sucessopessoal no mundo (carreira, amizades
teis, etc.). Est prxima, portanto,das formas gregas do hedonismo,
ou busca do prazer terreno, pormmediada pelas 41
38. condies que o progresso tcnico e o econmico proporcionaram
aomundo atual. A outra linha atual, at certo ponto complementar,
encontra-se maisentre os pensadoras do positivismo lgico, que
ignoram muitas vezesaquelas questes fundamentais, que chamam de
metafsicas ouespeculativas, e se dedicam apenas a pesquisar as
formas da linguagemmoral, os tipos vlidos de formulaes ticas, a
lgica e a sintaxe dosimperativos ticos e assim por diante. um
estudo certamente excitante ebem feito, mas que leva muitas vezes o
pensador a "se esquecer de simesmo", como diria Kierkegaard, a se
esquecer de que ele um sujeitoexistente, que tem de decidir
eticamente sobre suas aces, e que no podepassar a vida toda somente
estudando a linguagem da tica, sem viver atica, isto , sem viver
eticamente. E podemos encerrar este captulo ento com Kierkegaard.
Estepensador religioso considerava que uma tica puramente humana,
depoisdo cristianismo, no deixava de ser um retorno ao paganismo,
no seio deuma cristandade no mais crist. A nica vantagem que
haveria, talvez,para um tal esforo, seria, na perspectiva do homem
de f, a obteno deuma linguagem comum, aceitvel tambm pelos homens
que no possuema mesma f. O que, para Kierkegaard, era uma vantagem
ainda duvidosa. 42
39. OS IDEAIS TICOS Mas, afinal - perguntava-me um estudante -,
qual o critrio damoralidade? Ele compreendia facilmente que a
conscincia moral deveriaser ao menos uma espcie de critrio
imediato. Agir moralmentesignificaria agir de acordo com a prpria
conscincia. Mas, afora isto,agir como? Buscando o qu? Qual seria o
ideal da vida tica? As respostas variam, como estamos vendo. Para
os gregos, a ideal ticoestava ou na busca terica e prtica da idia
do Bem, da qual as realidadesmundanas participariam de alguma
maneira (Plato), ou estava nafelicidade, entendida como uma vida
bem ordenada, uma vida virtuosa,onde as capacidades superiores do
homem tivessem a preferncia, e asdemais capacidades no fossem,
afinal, desprezadas, na medida em que ohomem, ser sinttico e
composto, necessitava de muitas coisas(Aristteles). 43
40. Para outros gregos, o ideal tico estava no viver de acordo
com anatureza, em harmonia csmica. (Esta idia, modificada, foi
depoisadotada por telogos cristos, no seguinte sentido: viver de
acordo com anatureza seria o mesmo que viver da acordo com as leis
que Deus nos deuatravs da natureza.) Os esticos insistiram mais
nesta vida bem natural. Jos epicuristas afirmavam que a vida devia
ser voltada para o prazer: para osentir-se bem. Tudo o que d prazer
bom. Ora, como certos prazeres emdemasia fazem mal, acabam por
produzir desprazer, uma certa economiados prazeres, uma certa
sabedoria e um certo refinamento, at uma certamoderao ou temperana
eram exigncias da prpria vida de prazer. No cristianismo, os ideais
ticos sa identificaram com os religiosos. Ohomem viveria para
conhecer, amar e servir a Deus, diretamente e em seusirmos. O lema
socrtico do "conhece-te a ti mesmo" volta tona, emSanto Agostinho,
que agora ensina que "Deus nos mais ntimo que onosso prprio ntimo".
O ideal tico o de uma vida espiritual, isto , doacordo com o
esprito, vida de amor e fraternidade. Historicamente, porm,muitas
formas dualistas, que separavam radicalmente, por exemplo, o cue a
terra, esta vida e a outra, o amor a Deus e o amor aos
homens,acabaram dificultando a realizao dos ideais ticos cristos.
Nem sempreos cristos estiveram altura da afirmao do seu Mestre:
"Nistoconhecero que sois 44
41. meus discpulos: se vos amardes uns aos outros". Com o
Renascimento e o Iluminismo, ou seja, aproximadamente entreos
sculos XV e XVIII, a burguesia que comeava a crescer e a
impor-se,em busca de uma hegemonia, acentuou outros apectos da
tica: o idealseria viver de acordo com a prpria liberdade pessoal,
e em termos sociaiso grande lema foi o dos franceses: liberdade,
igualdade, fraternidade. (Hquem afirme que a Revoluo Francesa
buscou concretizar apenas aliberdade, a Russa, a igualdade e a
Africana, ou a do Terceiro Mundo, afraternidade.) O grande pensador
da burguesia e do Iluminismo, Kant,identificou bastante, como temos
visto, o ideal tico com o ideal daautonomia individual. O homem
racional, autnomo, autodeterminado,aquele que age segundo a razo e
a liberdade, eis o critrio da moralidade. Se Kant e a Revoluco
Francesa acentuaram de maneira talvezdemasiado abstrata a
liberdade, o ideal tico para Hegel estava numa vidalivre dentro de
um Estado livre, um Estado de direito, que preservasse osdireitos
dos homens a lhes cobrasse seus deveres, onde a conscinciamoral e
as leis do direito no estivessem nem separadas e nem emcontradio. A
profunda perspectiva poltica de Plato e Aristtelestransparece de
novo, portanto, em Hegel. Mas parece que a realidadehistrica no
acompanhou muitas de suas teorias. Os valores espirituais,ticos e
religiosos foram se tornando, nestes 45
42. ltimos duzentos anos, sempre mais assunto particular, e os
assuntos geraisforam sendo dominados pelo discurso da ideologia. No
sculo XX, os pensadores da existncia, em suas posies muitodiversas,
insistiram todos sobre a liberdade como um ideal tico, emtermos que
privilegiavam o aspecto pessoal ou personalista da
tica:autenticidade, opo, resoluteza, cuidado, etc. J o pensamento
social e dialtico buscou como ideal tico, na medidaem que aqui
ainda se usa esta expresso, a idia de uma vida social maisjusta,
com a superao das injustias econmicas mais gritantes. A tica
sevolta sobre as relaes sociais, em primeiro lugar, esquece o cu e
sepreocupa com a terra, procurando, de alguma maneira, apressar
aconstruo de um mundo mais humano, onde se acentua
tradicionalmenteo aspecto de uma justia econmica, embora esta no
seja a nicacaracterstica deste paraso buscado. Assim como em
Maquiavel e Hegel a razo de Estado parecia infiltrar-se na reflexo
tica como elemento complicador, tambm no pensamentorevolucionrio de
esquerda surgem alguns problemas semelhantes. Arelao entre os meios
e os fins no parece um problema resolvido.Tambm no se entende muito
bem que uma gerao deva ser sacrificadahoje pelas geraes futuras, e
h quem diga que a justia futura naocompensar jamais a injustia
atual. E assim por diante. 46
43. Finalmente, no h como negar que exatamente a maioria dos
pasesricos atuais se caractariza por uma tica que em muitos casos
lembra abusca grega do prazer, porm, nem sempre com moderao. O
prazer,depois do sculo XIX, poca da grande acumulao capitalista,
reduziu-sebastante, de fato, posse material de bens, ou propriedade
do capital. Emnome da defesa do capital, ou, mais modestamente, em
nome da defesa dapropriedade particular, muito sangue j foi
derramado e muita injustiacometida. O grande argumento do
pensamento de esquerda que no foi aesquerda quem inventou a luta de
classe. E que a propriedade um direitobsico para todos. A reflexo
tico-social do sculo XX trouxe, alm disso, uma outraobservao
importante: na massificao atual, a maioria hoje talvez j nose
comporte mais eticamente, pois no vive imoral, mas amoralmente.
Osmeios de comunicao de massa, as ideologias, os aparatos econmicos
edo Estado, j no permitam mais a existncia de sujeitos livres,
decidados conscientes e participantes, do conscincias com
capacidadejulgadora. Seria o fim do indivduo? 47
44. A LIBERDADE Falar de tica significa falar da liberdade. Num
primeiro momento, atica nos lembra as normas e a responsabilidade.
Mas no tem sentido falarde norma ou de responsabilidade se a gente
no parte da suposio de queo homem realmente livre, ou pode s-lo.
Pois a norma nos diz como devemos agir. E se devemos agir de
talmodo, porque (ao menos teoricamente) tambm podemos no agir
destemodo. Isto : se devemos obedecer, porque podemos
desobedecer,somos capazes de desobedecer norma ou ao preceito.
Tambm no tem sentido falar de responsabilidade, palavra que
derivade resposta, se o condicionamento ou o determinismo to
completo que aresposta aparece como mecnica ou automtica. 48
45. Todas as doutrinas ticas se articulam entre dois extremos
que tornama tica impossvel. Se algum afirma que o determinismo
total, ento no h mais tica.Pois a tica se refere s aes humanas, e
se elas so totalmenledeterminadas de fora para dentro, nao h espao
para a liberdade, comoautodeterminao, e, conseqentemente, no h
espao para a tica. H muitas formas de determinismo. Por exemplo: o
fatalismo: tudo oque acontece, tinha de acontecer. A fatalidade o
que rege, por exemplo,as tragdias gregas. dipo afastado ou se
afasta do seu lugar duas vezes,para fugir ao destino fatal. Mas,
exatamante ao se afastar da casa daquelesque ele cr serem seus
pais, cai nas malhas do destino, matando seu paiverdadeiro e
casando com sua me. Os orientais diriam: "estava escrito".Se a
fatalidade, ou o destino, rege todos os nossos passos, no
temosliberdade, e nem temos, propriamente, presente ou futuro. Tudo
o que vaiacontecer j estava decidido: vivemos assim num eterno
passado. O determinismo pode aparecer igualmente com a doutrina de
um Deusdominador. Tudo o que fazemos decidido por ele, de modo que
notemosliberdade. Mas o determinismo pode aparecer tambm como uma
doutrina de ummaterialismo estrito: a natureza, ou a lei natural,
rege todos os nossos atos.Os condicionamentos materiais (como os
econmicos, por exemplo)decidem 49
46. por ns. Esta posio extremada tambm acaba com a tita. E
mesmoMarx, que acreditava numa liberdade humana, ao menos como
poderlibertador, ao descrever situaes nas quais o capital (este
deus dasociedade moderna) dominaria totalmente o homem
trabalhador,denunciava uma situao de escravido total, onde o homem
realmenteno teria mais liberdade. Nesta situao, a prpria tica no
teria maissentido. Ou teria, no mximo, o mandamento tico de
revolucionar talsociedade. Quando uma objetividade total domina o
sujeito, no h maisespao para a liberdade e conseqen-temente nem
para a tica. O extremo oposto ao do determinismo, porm, nega
igualmente a tica.Pois o outro extremo est representado por uma
concepo que acreditanuma liberdade total e absolutamente
incondicionada. Os filsofosesticos, gregos ou romanos, pensavam que
"o sbio livre sempre,mesmo que esteja aprisionado e acorrentado".
Ora, esta liberdade seresumiria possibilidade de pensar o que
quisesse. Mas liberdade parapensar, sem poder agir de acordo com os
pensamentos, isto , sem poderagir livremente, no liberdade humana.
Assim como tambm no o uma liberdade absoluta e abstrata, sem
condicionamentos, sem normas,sem necessidade. O pensamento estico,
que afirmava apenas estaliberdade abstrata, penetrou no
cristianismo, que assim tambm pecoupor este exagero, deixando que a
50
47. liberdade real se resumisse a algo de puramente interior.
No comeo do sculo passado, alguns pensadores do idealismotambm
acentuaram de tal maneira o poder da vontade, acima de todos
oscondicio-namentos naturais e materiais, sociais, econmicos e
psicolgicosque, no final, restava a pergunta: esta liberdade ainda
seria a liberdade dohomem, um ser que s pode ser compreendido como
uma estruturasinttica, e no simples, um ser que no puro esprito,
pois tambm (outem) corpo, um ser que no puramente subjetivo, mas
tambm umobjeto? O homem um esprito puro, ou um ser afinal de contas
corporal econdicionado, um ser cultural com bastante dependncia das
condiesconcretas das formas culturais de seu tempo e de seu lugar?
Assim, os chamados idealistas subjetivos acabam pressupondo
umsujeito puramente racional, infinito, acima e livre do aqui e
agora, umesprito to poderoso que no se identifica mais com o homem
real econcreto. Tambm contra esses pensadores, vale uma frase
famosa deAdorno (1903-1969), pensador da chamada "Escola de
Frankfurt":"Liberdade da economia nada mais do que a liberdade
econmica", ou,mais simplesmente: s no depende do dinheiro quem o
tem de sobra. Pois bem no meio da poca dos diversos idealismos que
floresceramnas terras alems, em 1809, o filsofo F. W. J. Schelling
(1775-1854)escreveu um 51
48. pequeno mas profundo tratado intitulado Investigaes
filosficas sobre aessncia da liberdade humana e assuntos conexos.
Esta pequena obrasitua-se entre os escritos de Kant e Fichte, de um
lado, e os de Hegel, deoutro lado. E a palavra-chave, no caso, a
expresso "liberdade humana".Por insistir em investigar uma
liberdade que fosse realmente humana, nemmais e nem menos,
Schelling a at antecipou crticas a escritos posterioresde Hegel.
Pois a questo da liberdade, em Hegel, muito discutida, e com
razo,devido profundidade com que este filsofo trata o tema,
realmentecentral para o seu pensamento. Na perspectiva de
Schelling, teramos dedizer que a liberdade que Hegel expe to
infinita a absoluta, que j nocorresponde mais realidade humana,
considerando-se que o homem umesprito condicionado e finito. Mas se
Hegel (1770-1831) em certas passagens expe a histria deuma
liberdade que seria sobre-humana, no se pode negar,
principalmentehoje, a importncia de seus escritos para esta questo.
Em primeiro lugar,porque ele procura expor uma histria filosfica da
liberdade. Assim eleexplica, por exemplo, porque que num Estado em
que apenas um homem livre ningum livre, nem mesmo o tirano. E Hegel
mostra qua a liberdade no pode ser apenas exterior, nemapenas
interior, e que ela se desenvolve na conscincia e nas estruturas.
Aliberdade 52
49. aumenta com a conscincia que se tem dela, embora a
simplesconscincia da liberdade ainda no seja a liberdade efetiva,
isto , real. E esta histria prossegue, mostrando como o homem e a
humanidadese constroem, na busca de uma liberdade sempre mais real.
Nos gregos, asnormas exteriores da polis no respeitavam a liberdade
individual. Com ocristianismo teria surgido a conscincia profunda
da liberdade e do valorinfinito de cada indivduo. O ponto mximo
desta tendncia trazida pelocristianismo estaria no pensamento moral
de Kant, que acentua tanto aliberdade moral, que at deixa na sombra
o aspecto exterior da legalidade,isto , da organizao em leis da
sociedade. O que Hegel procurou, desde sua juventude, nos tempos da
RevoluoFrancesa, foi a formulao de uma sntese da poltica grega e da
moralcrist, que deve aparecer na estruturao de um Estado de
direito,moderno e constitucional, onde cada indivduo fosse
realmente livre,interior e exteriormente. Num Estado de direito, o
exterior, ou seja,as leis e as organizaes sociais, garante a
liberdade, ou melhor, asliberdades individuais e o bem comum. Pois
no basta que eu me sintalivre, preciso que eu me saiba realmente
livre, num Estado organizadoque garanta a liberdade de todos e de
cada um. Esta tentativa de sntese brota como uma necessidade aps as
53
50. experincias histricas da Revoluo Francesa. Segundo Hegel, o
erroocorrido na fase do Terror, com seu libertarismo acompanhado
pelaguilhotina, teria sido a procura de uma liberdade puramente
abstrata etotal. O que faltou, portanto, foi a percepo de que a
liberdade precisava"organizar-se na sociedade", "dar-se existncia",
ou organizar a sociedadede acordo com a sua idia. Uma liberdade que
se d existncia concretaaparece como um Estado, que seria a realizao
da liberdade de todos,concretizada em instituies sociais e
polticas. Hegel atingiu, com seu pensamento, um estgio que no pode
mais serignorado, mesmo que critiquemos alguns aspectos de sua
teoria. Mesmoassim, as crticas so fortes. Criticando a teoria do
Estado de Hegel, Karl Marx (1818-1883) dirque o Estado nao , de
fato, o que o mestre Hegel gostaria que ele fosse,isto , a instncia
do universal, instncia preocupada com a realizao dobem comum e com
a harmonizao dos interesses contrrios da sociedadecivil burguesa. O
Estado seria, de fato, um instrumento a mais de poderpara uma das
classes em conflito na sociedade burguesa. No seria ouniversal
harmonizador, mas o particular dominador, seria um
instrumentoconquistado por uma classe. J os filsofos de inspirao
kantiana criticam a teoria hegeliana doEstado por um outro lado: a
estaria instituda uma tica baseada nona 54
51. autonomia, mas na heteronomia, isto , o homem, ao pretender
agirmoralmente segundo Hegel, acabaria guiando-se no por sua
conscinciamoral autnoma, e sim, em ltima instncia, por "razes de
Estado". Finalmente, no campo da crtica a Hagel, h os pensadores
daexistncia, como Kierkegaard, no sculo passado, e Jaspers,
Heidegger,Merleau-Ponty e Sartre, neste sculo. Eles insistem, de
diferentesmaneiras, sobre a crtica de que Hegel teria esquecido a
dimensopropriamente humana e individual da liberdade. O sistema de
Hegel, quacoloca tudo num processo impressionante, acabaria
menosprezando asingularidade da instncia individual, afirmada
apenas verbalmente, masesquecida de fato. Relativizando a instncia
individual, baseada naconscincia moral, o pensamento hegeliano
seria, no fundo, amoral. Dito de outra maneira, esta crtica soaria
assim: quando um processosupera o individual, esvazia-se a dimenso
tica. Ao que Hegelresponderia: supera-se dialeticamente a moral,
para entrar no terrenoslido e real da vida tica (Sittlichkeit),
concretizada em instituies(supra-individuais) como a famlia, a
sociedade civil e o Estado,dimenses que no podem ser ignoradas por
nenhuma tica que pretendaser concreta. Um dos pontos mais
interessantes da filosofia atual a pesquisa dospontos de aproximao
entre os marxistas crticos ( como oschamados 55
52. frankfurtianos) com os pensadores da existncia, na questo
da crtica doEstado totalitrio e autoritrio do sculo XX. No por
acaso que, ao falarmos de liberdade, viemos parar naquesto do
Estado moderno. Mas convm agora retomar a distino inicialdos dois
tipos de negao da liberdade: o determinismo absoluto e
olibertarismo absoluto. Dizamos que a tica se movimenta entre estes
doisextremos, igualmente falsos. A tica se preocupa, podemos diz-lo
agora, com as formas humanasde resolver as contradies entre
necessidade e possibilidade, entre tempoe eternidade, entre o
individual e o social, entre o econmico e o moral,entre o corporal
e o psquico, entre o natural e o cultural e entre ainteligncia e a
vontade. Essas contradies no so todas do mesmo tipo,mas brotam do
fato de que o homem um ser sinttico, ou, dito maisexatamante, o
homem no o que apenas , pois ele precisa tornar-se umhomem,
realizando em sua vida a sntese das contradies que oconstituem
inicialmente. Antes de encerrar este pequeno captulo sobre a
liberdade, questocentral para qualquer estudo de tica, seria til
destacar ainda duascontribuies 56
53. importantes neste campo, igualmente do sculo passado, de
grandeinfluncia sobre o atual: uma de Marx, outra de Kierkegaard.
K. Marx (1818-1883) interpretou a histria da humanidade como
ahistoria de uma luta constante com a natureza. A ao humana se
defineento como trabalho, como tcnica. Tentando dominar a natureza,
pelotrabalho, para humaniz-la, o homem encontra sempre a resistncia
domaterial, mas, ao tantar transformar a matria ao redor dele, ele
tambm setransforma: ao trabalhar, ele se faz trabalhador, se
especializa, se adaptaaos segredos do material, se produz. Marx est
longe, portanto, doidealismo subjetivo com os sonhos de liberdade
incondicionada. Pelocontrrio, a liberdade, como possibilidade
humana, est semprecondicionada pelas possibilidades tcnicas e pelas
formaes econmico-sociais. Mas num aspecto Marx se mostra tambm
condicionado pelo seutempo. Num aspecto ele ingnuo como quase todos
os pensadores dosculo XIX: ele aceita tranqilamente que a natureza
"deva ser dominada",s no aceitando "a dominao do homem pelo homem".
Ora, osfrankfurtianos hoje reconhecem que havia a uma contradio,
pois, afinalde contas, cada homem tambm um pedao da naturaza, de
modo queesta ltima dominao decorre naturalmente da aceitao sem
restries daprimeira. As questes ticas da ecologia comeam a corrigir
certos ideaisda economia. 57
54. Marx tenta seguir a linha de Kant, que afirmava que o homem
deve sersempre tratado como um fim, e nunca como um meio. Mas o
prprio Kantno via que o homem, sendo tambm um ser da natureza, se
coloca elemesmo numa posio de meio, por exemplo, quando pede um
emprego eaceita um trabalho. Mas, ao contrrio de Kant, Marx
desenvolve, por outrolado, com total insistncia o aspecto tcnico do
agir humano(transformao da natureza pelo trabalho), que deixa
bastante na sombra oaspecto propriamente moral. Hoje em dia,
pensadores inspirados por Marx, mas que conhecem bemtoda a tradio
alem, preferem falar, como J. Habermas, de duas dife-rentes
dimenses do agir humano. Alm da atividade terica, o homemteria no s
uma atividade tcnica, representada pelo trabalho produtivo,mas
tambm uma atividade propriamente prtica (no sentido grego,
eportanto tica), representada pelo amor, por ideais de comunicao e
porvalores como a fraternidade entre os homens. Assim, o problema
docapitalismo, por exemplo, teria de ser reestudado, para vermos
como apredomina a dimenso tcnica sobre a dimenso tica, e para
descobrirmosuma alternativa realmente diferente. S. Kierkegaard
(1813-1855), pensador dinamarqus e grandeadmirador dos gregos,
especialmente de Scrates, o responsvel pelaoutra grande contribuio
para as pesquisas no terreno da tica. 58
55. Kierkegaard relaciona a angstia com a experincia humana de
ser livre, de poder optar e de ter mesmo que optar. 59
56. Confrontando o pensamento grego antigo com o cristo,
Kierkegaardpercebeu que para os gregos o pecado seria apenas
ignorncia. ParaScrates e Plato, diz ele, o problema tico era, no
fundo, um problema dateoria: a nica coisa importante para o homem
seria "conhecer o bem",porque da se seguiria necessariamente um
"agir bem". Os gregos nocompreendiam, ento, que se pudesse fazer o
mal, conhecendo o bem; demodo que o homem mau seria sempre (apenas)
um ignorante, que poderiae deveria ser curado pela filosofia. Ora,
Kierkegaard insiste, conhecedor que do pensamento cristo emsuas
fontes (por exemplo, So Paulo), que o homem pode conhecar o beme
preferir o mal, e a liberdade, quer dizer, tambm a tica,
estariaexatamente nesta zona da problemas. Neste caso, a liberdade
no seria,absolutamente, sinnimo de conhecimento filosfico (terico)
do bem, oudo processo dialtico do bem (ou da liberdade), do qual
seguirianecessariamente a prtica do bem. No, a liberdade deve
consistir antes naopo voluntria pelo bem, consciente da
possibilidade de preferir o mal. Em seu livro de 1844 dedicado
questo da liberdade, O Conceito deAngstia, Kierkegaard descreve a
angstia como a experinciapropriamente humana do ser livre,
experincia de poder realmente optar eter mesmo de optar. Este
pensador dinamarqus descreve, como outrospsiclogos profundos
posteriores, no s a angstia que o homem sentediante do mal, 60
57. mas tambm a que sente diante do bem, quando preferiu o mal.
A angstia o reflexo psicolgico da conscincia da liberdade.
Aquiloque totalmente necessrio no poda angustiar. O que j real,
enquantotal, no angustia tambm. O que angustia a possibilidade. Ou
o que j real, mas que aparece de novo como uma possibilidade. Neste
contexto, posteriormente explorado pelos pensadores daexistcia, o
esprito realmente humano (e no o esprito absoluto) aparececomo uma
tarefa e um poder de auto-sintetizao, de auto-realizao,sendo que o
instante da deciso se mostra como uma sintetizao entrenecessidade e
possibilidade, ou, se quisermos, de aspectos necessrios,dados, e de
possibilidades abertas. E por isso diz Kierkegaard que opresente
deve ser compreendido como o instante da deciso, sntese depassado e
de futuro. 61
58. COMPORTAMENTO MORAL: O BEM E O MAL Kierkegaard dizia, em
seu livro O Conceito de Angstia, que a ticagrega era, no fundo,
apenas uma esttica. Isto significaria dizer que anorma grega de
buscar o belo e bom se resumiria, no fundo, busca dabeleza, do
prazer, de tudo o que era agradvel. E explicaria tambm umpouco a
dificuldade que eles tiveram frente ao cristianismo, onde a mortena
cruz no era bela, e onde o Sermo da Montanha no era racional. De
maneira semelhante se poderia dizer que a tica medieval, pelomenos
na cristandade, era, no fundo, um comportamento religioso, e
notico, no sentido restrito. Pois o comportamento era orientado
pelosmandamentos divinos, pela autoridade religiosa e continha,
neste sentido,uma certa exterioridade em relao conscincia moral dos
indivduos.Com isso no se 62
59. quer negar que um filsofo e telogo como Toms de Aquino,
porexemplo, desse uma importncia fundamental conscincia moral. E o
queseria esta conscincia moral? Aquela voz interior que nos diz que
devemosfazer, em todas as ocasies, o bem e evitar o mal. Mas, como
j vimos em outros momentos, na prpria Idade Mdiaexistiam
paralelamente vrios cdigos de tica, como o dos cavaleiros
eprncipes, o dos bispos locais, o da Igreja de Roma e o dos
seguidores deMaom. A histria da tica dos cavaleiros est sendo
escrita atualmente.Falta agora escrever a respeito da tica na
perspectiva das mulheres e dosservos. Com o Renascimento e a Idade
Moderna, junto com a imprensa, a ore-estudo do mundo antigo, a
difuso da cultura (enquanto na Idade Mdiaquase todos os letrados ou
simplesmente alfabetizados eram clrigos), oenriquecimento de urna
nova classe a burguesia o fortalecimento dosEstados nacionais,
surgem, naturalmente, novos estudos de moral, tantosobre os
aspectos individuais quanto sobre os sociais e estatais. nessafase
que surgem as grandes obras de Maquiavel, Rousseau, Spinoza eKant.
O que a tica agora desenvolve principalmente a preocupao com
aautonomia moral do indivduo. Este indivduo procura agir de acordo
coma sua razo natural. O mundo mediaval (pintado magistralmente
porUmberto 63
60. Eco em O Nome da Rosa), baseado na autoridade da "palavra
divinarevelada", j est longe. Os homens querem fundamentar o seu
agir nanatureza. Assim temos o "direito natural", que contm uma
idiarevolucionria em relao ao "direito divino dos reis", do regime
antigo.Assim temos Rousseau (1712-1778), com o ideal de uma vida
melhorgraas ao retorno s condies naturais, anteriores civilizao. E
assimtemos Kant, que busca descobrir em cada homem (e neste sentido
antiaristocrata e burgus) uma natureza fundamentalmente igual,
pormnatureza livre. O agir da acordo com a nossa natureza, em Kant,
portanto bemdiferente dos ideais aparentemente paralelos dos gregos
(esticos e outros),dos medievais e de um Rousseau. Para os gregos,
isto significava umacerta harmonia passiva com o cosmos. Para o
medieval, significava umaobedincia pessoal ao Criador da natureza.
Para Rousseau significava umagir de forma mais primitiva. Mas para
Kant, a natureza humana umanatureza racional, o que equivale a
dizer que a natureza nos fez livres, mascom isso no nos disse o que
fazer, concretamente. Sendo o homem um sernatural, mas naturalmente
livre, isto , destinado pela natureza liberdade,ele deve
desenvolver esta liberdade atravs da mediao de sua
capacidaderacional. Mas se a natureza nos quer livres e no nos diz
como devemos agir,ento precisamos consultar a nossa conscincia
individual. Ora, parano carmos 64
61. num subjetivismo irracional, pois arbitrrio, no-universal,
temos de suporque todos os homens so estruturalmente iguais. Cada
indivduo, ao agirde acordo com sua conscincia ilustrada, educada da
melhor maneirapossvel, ao agir refletidamente como legislador
universal, age de umamaneira universal, embora subjetiva, pois as
decises que toma soaquelas que deveriam ser vlidas e vigentes para
todos os indivduosconscientes, racionais e livres. Completando a
obra do pensamento moderno, Hegel consideroudemasiado abstrata a
posio kantiana, lembrando que seu igualitarismopostulado no levava
realmente em conta as tradies e os valores, o modode ver de cada
povo; ignorava, portanto, as instituies histricas concretase no
chegava a uma tica de valor histrico. Hegel liga, ento, como
jvimos, a tica histria e poltica, na medida em que o agir tico
dohomem precisa concretizar-se dentro de uma determinada
sociedadepoltica e de um momento histrico varivel, dentro dos quais
a liberdadese daria uma existncia concreta, organizando-se num
Estado. Talvez pudssemos agora perguntar: se a tica grega era uma
esttica,e a tica medieval crist uma atitude religiosa, no se
deveria dizer que atica hegeliana uma poltica? Talvez sim, mas
tambm verdade queprovavelmente Hegel no consideraria esta afirmao,
absolutamente,como 65
62. uma crtica. Todo agir poltico, inclusive e principalmente o
agirtico. Finalmente, em termos de comparaes histricas, o caso de
lembrarque Marx, relacionando todo comportamento humano economia,
eacentuando as relaes econmicas que sempre interferem sobre o
agirtico, abriu novas perspectivas, mas tambm novo problema. Como
sabero que o tico e o que o econmico, em um dado
comportamentoconcreto? Na segunda metade do sculo atual, a questo
do comportamento ticose modificou mais uma vez. As atenes se
voltaram principalmente para aquesto do discurso, mas isto de duas
maneiras mais ou menosindependentes. Por um lado, e ainda por
influncia do pensamento deesquerda, as reflexes ticas passaram a
analisar os discursos com vistas auma crtica da ideologia. Por
outro lado, filsofos de inspirao anglo-saxnica passaram a ocupar-se
principalmente com uma crtica dalinguagem, dentro da qual se
desenvolve tambm a crtica ou anlise dalinguagem tica. A crtica da
ideologia busca descobrir, por trs dos discursos sobre asaes
humanas, individuais ou grupais, os (verdadeiros) interesses
reais,materiais, econmicos ou de dominao poltica. Por trs dos
apregoadosinteresses ticos e universais, descobrir a hipocrisia e
revelar o cinismo dosinteresses econmicos, polticos e particulares.
Esta crtica da ideologiatem ajudado inclusive a reescrever a
histria da tica. 66
63. A anlise da linguagem, dentro principalmente das diversas
linhas dafilosofia analtica, tem os mritos do rigor formal, quando
se concentra naanlise das formulaes lingsticas atravs das quais os
homens definemou justificam o seu agir. extremamente interessante,
por exemplo, verum autor como E. Tugendhat demonstrar que a afirmao
"eu te amo" notem sentido, logicamente, uma vez que o sentido desta
proposio s seencontraria, ou melhor, s seria encontrado pela
segunda pessoa naobservao dos atos empricos da primeira. E no deixa
de ser instrutivoler, por exemplo, como Moritz Schlick (1882-1936),
membro do Crculode Viena e grande inspirador de muitos filsofos
atuais, analisa o queseriam as aes boas: "Boas aes so aquelas que
se exigem de ns. . ." Por mais que variem os enfoques filosficos ou
mesmo as condieshistricas, algumas noes, ainda que bastante
abstratas, permanecemfirmes e consistentes na tica. Uma delas a
questo da distino entre obem e o mal. Agir eticamente agir de
acordo com o bem. A maneiracomo se definir o que seja este bem, um
segundo problema, mas aopo entre o bem e o mal, distino levantada j
h alguns milnios,parece continuar vlida. 67
64. Um dos pseudnimos de Kierkegaard, definido exatamente corno
"otico", afirmava, por isso: "meu dilema no significa, em primeiro
lugar,que se escolha entre o bem e o mal; ele designa a escolha
pela qual seexclui ou se escolhe o bem e o mal". Neste sentido,
poderamos continuar,dizendo que uma pessoa tica aquela que age
sempre a partir daalternativa bem ou mal, isto , aquela que
resolveu pautar seucomportamento por uma tal opo, uma tal disjuno.
E quem no vivedessa maneira, optando sempre, no vive eticamente.
Numa apresentao da moral tomista, encontramos a seguintedefinio. "A
moral uma cincia prtica, cujo objeto o estudo e adireo dos atos
humanos em ordem a conseguir o ltimo fim, ou seja, aperfeio
integral do homem, no que consiste a felicidade. Os atoshumanos so
particulares, e assim, enquanto cincia prtica, a moral deveatender
e descer ao particular" (Fraile, Historia de la Filosofa, BAC).
Ora,os homens discutiro sempre sobre os atos particulares, isto ,
as aesconcretas de cada um. O julgamento concreto de cada ao
exigeexatamente todos os pressupostos ticos. J se discutir menos
sobre aquesto da busca da felicidade, e se discutir menos sobre a
relao entre oagir tico e a perfeio do homem enquanto homem.
Kierkegaard criticava, no sculo passado, a especulao
idealista,porque, segundo ele, ela distraa o sujeito, com grandes
apresentaeshistricas, 68
65. fazendo com que ele se esquecesse que tinha de agir, e que
tinha deescolher entre o bem e o mal. O perigo desta distrao talvez
venha, nosculo XX, daquelas teorias que insistem sobre a anlise
formal dodiscurso, e que muitas vezes parecem esquecer de que,
fundamentalmente,a tica uma cincia prtica, que trata, portanto, de
uma questo prtica,da ao, e no apenas do discurso. Mas parece que de
resto os homens do sculo XX esto maisconscientes de que eles no so
espectadores, e sim atores, que no estona platia, e sim no palco,
como diziam os pensadores da existncia. Aquesto atual
principalmente saber se, mesmo sabendo isto, os homensde hoje ainda
se sentem em condies de agir individualmente, isto ,
agirmoralmente. A massificao, a indstria cultural, a ditadura dos
meios decomunicao e mesmo as ditaduras polticas so fenmenos que tm
de seranalisados tambm nesta perspectiva, para sabermos at que
ponto ohomem de hoje ainda pode escolher entre o bem e o mal.
Adorno, em sua anlise do fetichismo da msica coloca a questo:nosso
mundo individualista no estaria acabando exatamente com
aindividualidade, estrutura bsica de um agir moral? 69
66. A TICA HOJE Logo no incio de seu difcil livro Minima
Moralia, Theodor Adorno(1903-l969) chama a ateno para o fato de que
hoje a tica foi reduzida aalgo de privado. J o jovem Marx, no incio
dos anos 40 do sculopassado, observava o mesmo a respeito da
religio. Ora, nos tempos dagrande filosofia, a justia e todas as
demais virtudes ticas referiam-se aouniversal (no caso, ao povo ou
polis), eram virtudes polticas, sociais.Numa formulao de grande
filosofia, poderamos dizer que o lemamximo da tica o bem comum. E
se hoje a tica ficou reduzida aoparticular, ao privado, isto um mau
sinal. Um mrito definitivo do pensamento de Kant ter colocado
aconscincia moral do indivduo no centro de toda a preocupao
moral.Afinal de contas, o dever tico apela sempre para o indivduo,
ainda queeste 70
67. nunca possa ser considerado uma espcie de Robinson Cruso,
como sevivesse sozinho no mundo. Procurando superar o ponto de
vista kantiano, que chama de moralista,Hegel insistiu numa outra
esfera, que chamou de esfera da eticidade ouda vida tica. Nesta
esfera, a liberdade se realiza eticamente dentro dasinstituies
histricas e sociais, tais como a famlia, a sociedade civil e
oEstado. Hegel no teme afirmar que o Estado a realidade efetiva
daidia tica. No h dvidas que a exposio de Hegel tem pelo menos
omrito de localizar onde se encontram os problemas ticos. Assim,
hoje em dia, os grandes problemas ticos se encontram nestestrs
momentos da eticidade (famlia, sociedade civil e Estado), e uma
ticaconcreta no pode ignor-los. 1) Em relao famlia, hoje se colocam
de maneia muito aguda asquestes das exigncias ticas do amor. O amor
no tem de ser livre? Oque dizer ento da noo tradicional do amor
livre? Ele realmente livre?E como definir, hoje, o que seja a
verdadeira fidelidade, sem identific-lacom formas criticveis de
possessividade masculina ou feminina? Comofundamentar, a partir dos
progressos das cincias humanas, oscompromissos do amor, como se
expressam na resoluo (no sim)matrimonial? E como desenvolver uma
nova tica para as novas formasde relacionamento heterossexual? E
como 71
68. fundamentar hoje as preferncias por formas de vida
celibatria, casta ouhomossexual? As transformaes histrico-sociais
exigem hoje igualmentereformulaes nas doutrinas tradicionais ticas
sobre o relacionamento dospais com os filhos. Novos problemas
surgiram com a presena maior daescola e dos meios de comunicao na
vida diria dos filhos. As figurastradicionais, paterna e materna,
no exigem hoje uma nova reflexo sobreos direitos e os deveres dos
pais e dos filhos? Em especial, a reflexo sobre a dominao das
chamadas minoriassociais chamou a ateno para a necessidade de novas
formas derelacionamento dentro do prprio casal. O feminismo, ou a
luta pelalibertao da mulher, traz em si exigncias ticas, que at
agora ainda noencontraram talvez as formulaes adequadas, justas e
fortes. A libertaoda mulher, como a libertao de todos os grupos
oprimidos, umaexigncia tica, das mais atuais. E, como lembraria
Paulo Freire, em seuPedagogia do Oprimido, a libertao no se d pela
simples troca depapis: a libertao da mulher liberta igualmente o
homem. 2) Em relaco sociedade civil, que para Hegel tambm
significaria aforma histrica da sociedade burguesa, os problemas
atuais continuam osmais urgentes: referem-se ao trabalho e
propriedade. Como falar detica 72
69. num pas onde a propriedade um privilgio to exclusivo de
poucos? Eno um problema tico a prpria falta de trabalho, o
desemprego, parano falar das formas escravizadoras do trabalho, com
salrios de fome,nem da dificuldade de uma auto-realizao no
trabalho, quando a maioriano recebe as condies mnimas de preparao
para ele, e depois noencontram, no sistema