1. Os Donos do Poder
http://groups.google.com.br/group/digitalsource Outras obras do
autor: Machado de Assis: A Pirmide e o Trapzio / Existe um
Pensamento Poltico Brasileiro?
2. R a y m u n d o F a o r o Os D o n o s d o P o d e r F O R M
A O D O P A T R O N A T O P O L T I C O B R A S I L E I R O 3.a
edio, revista, 2001 GLOBO
3. Maria Pompa
4. Nicht nur der Vernunft von Jahrtausenden auch ihr Wahnsinn
bricht an uns aus. Gefhrlich ist es, Erbe zu sein.
5. SU M R I O Prefcio Segunda Edio C a p t u l o I ORIGEM DO
ESTADO PORTUGUS 1.A guerra, o fundamento da ascendncia dos reis. As
bases da monarquia patrimonial; as contribuies e os concelhos 2. Os
fundamentos ideolgicos da monarquia: o direito romano 3. O Estado
patrimonial e o Estado feudal Captulo II A REVOLUO PORTUGUESA
1.Preliminares da revoluo de 1383-85: a nobreza, a burguesia e dom
Fernando 2. A Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a tutela do
rei 3. O estamento: camada que comanda a economia, junto ao rei 4.
Da aventura ultramarina ao capitalismo de Estado 5. A ideologia do
estamento: mercantilismo, cincia e direito Captulo I I I O
CONGELAMENTO DO ESTAMENTO BUROCRTICO 1. A cidade comercial: a corte
barroca e o funcionrio 2. O congelamento e a paralisia do Estado
barroco 3. Elite e estamento C a p t u l o IV O BRASIL AT O
GOVERNO-GERAL 1. A inveno ednica da Amrica 2. A integrao da
conquista no comrcio europeu 3. Colonizao como prolongamento do
sistema de feitorias 4. A colonizao: regime poltico e
administrativo das capitanias. Vnculos da colnia com a metrpole 5.
A distribuio de terras: mudana do sentido da sesmaria, com o
predomnio do contedo dominial sobre o administrativo 6. O chamado
feudalismo brasileiro C a p t u l o V A OBRA DA CENTRALIZAO
COLONIAL 1. O governo-geral: causas de sua criao 2. Os municpios e
a centralizao 3. Os colonos e os caudilhos: a conquista do
serto
6. C a p t u l o VI TRAOS GERAIS DA ORGANIZAO ADMINISTRATIVA,
SOCIAL, ECONMICA E FINANCEIRA DA COLNIA 1. A administrao e o cargo
pblico 2 . O espectro poltico e administrativo da metrpole e da
colnia 3. As classes: transformaes e conflitos 4. A apropriao de
rendas: o pacto colonial, monoplios, privilgios e tributos Captulo
V I I OS PRDROMOS DA INDEPENDNCIA I. A vida rural do comeo do sculo
XIX: a autarquia agrcola 2. A transmigrao e a frustrada reorganizao
poltica e administrativa 3. O dissdio e a transao Captulo V I I I
AS DIRETRIZES DA INDEPENDNCIA 1. A tentativa de reorganizao poltica
do pas independente 2. O Poder Moderador e a luta parlamentar 3.O
sistema poltico do 7 de abril 4.As reformas do 7 de abril: a
descentralizao C a p t u l o IX A REAO CENTRALIZADORA E MONRQUICA
1. A reorganizao da autoridade: a conciliao geogrfica e a reao
centralizadora 2.As bases econmicas da centralizao 3.Os fundamentos
legais da centralizao monrquica Captulo X O SISTEMA POLTICO DO
SEGUNDO REINADO 1. O modelo francs e o ingls 2.O parlamentarismo e
o Poder Moderador 3.A representao do povo: as eleies 4.O estamento
burocrtico Captulo XI A DIREO DA ECONOMICA NO SEGUNDO REINADO 1.
Economia dependente, sob a orientao do Tesouro 2. O regime de
terras, o agricultor e o comissrio 3. O centro estatal do crdito: o
dinheiro e as emisses 4. O poltico e o especulador
7. Captulo X I I O RENASCIMENTO LIBERAL E A REPBLICA 1. Do
liberalismo propaganda republicana 2. A fazenda sem escravos e a
Repblica 3. O Exrcito na monarquia e sua converso republicana C a p
t u l o X I I I AS TENDNCIAS INTERNAS DA REPBLICA VELHA 1.
Liberalismo econmico e diretrizes econmicas do perodo republicano
2. O militar e o militarismo 3. A transio para o federalismo
hegemnico: a poltica dos governadores C a p t u l o X I V REPBLICA
VELHA: OS FUNDAMENTOS POLTICOS 1. A fora e a fragilidade da poltica
dos governadores. O consulado de Pinheiro Machado 2. A ordem e a
contestao. O novo presidencialismo 3. O sistema coronelista C a p t
u l o XV MUDANA E RENOVAO 1. O abalo ideolgico e as aspiraes
difusas 2. A emergncia do Estado forte e o chefe ditatorial 3. Os
novos rumos econmicos e sociais C a p t u l o f i n a l A VIAGEM
REDONDA: DO PATRIMONIALISMO AO ESTAMENTO NOTAS
8. PREFCIO SEGUNDA EDIO MONTAIGNE, QUE NEGA AO AUTOR o direito
de alterar o texto de um livro hipotecado ao pblico, justificou as
suas infidelidades ao princpio, com este subterfgio resvaladio:
J'adjouste, mais je ne corrige pas. Posso afirmar, sem receio ao
olho malicioso e zombeteiro do francs quinhentista, que a tese
deste ensaio a mesma de 1958, ntegra nas linhas fundamentais,
invulnervel a treze anos de dvidas e meditao. A forma, todavia, est
quase totalmente refundida, outra a disposio dos assuntos, adequado
o estilo s minhas exigncias atuais. Houve o acrscimo de dois
captulos e a adio de inmeras notas, ordenadas ao fim do volume,
para orientar o leitor acerca das fontes do trabalho. Os conceitos
bsicos patrimonialismo, estamento, feudalismo, entre outros esto
fixados com maior clareza, indicada a prpria ambigidade que os
distingue, na cincia poltica. A perplexidade que alguns leitores da
primeira edio demonstraram, ante uma terminologia aparentemente
bizarra, estar atenuada, neste novo lanamento. Advirta-se que este
livro no segue, apesar de seu prximo parentesco, a linha de
pensamento de Max Weber. No raro, as sugestes weberianas seguem
outro rumo, com novo contedo e diverso colorido. De outro lado, o
ensaio se afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustentar a
autonomia de uma camada de poder, no diluda numa infra-estrutura
esquemtica, que daria contedo econmico a fatores de outra ndole.
Esto presentes, nas pginas que se seguem, os clssicos da cincia
poltica, Maquiavel e Hobbes, Montesquieu e Rousseau, relidos num
contexto dialtico. As hipteses e conjeturas, em aberta rebeldia aos
padres consagrados, inspiram-se no propsito de abarcar, num lance
geral, a complexa, ampla c contraditria realidade histrica. Um
longo perodo, que vai do Mestre de Avis a Getlio Vargas, valoriza
as razes portuguesas de nossa formao poltica, at agora desprezadas
em favor do passado antropolgico e esquecidas pela influncia de
correntes ideolgicas,
9. originrias da Frana, da Inglaterra e dos Estados Unidos, s
traduzidas nos ltimos cento e cinqenta anos. Na evocao no se pode
evitar o eu de um longnquo pesadelo, com certas "rabugens de
pessimismo", como lembrou um amvel crtico, mais amigo do que
crtico. Contra, na elaborao deste ensaio, nas suas duas feies,
muitas dvidas, que no comprometem a responsabilidade dos credores.
A maior de todas devo-a a Guilhermino Csar, que, ainda em Porto
Alegre, no carinhoso convvio de muitos anos, discutiu as hipteses e
suscitou questes novas, franqueando-me sua biblioteca para o estudo
e a pesquisa. O prprio ttulo do livro, ao que apurei, saiu de uma
de suas sbitas inspiraes. Augusto Meyer e Jorge Moreira leram os
originais. Paulo Olinto Vianna e Slvio Duncan cuidaram da reviso,
com pacincia e amor mincia. Arthur Cezar Ferreira Reis, no preparo
desta edio, socorreu-me com preciosas indicaes bibliogrficas,
acompanhadas do emprstimo do livro raro. Amandino Vasconcellos
Beleza, com seu vigilante bom gosto, leu os originais, aparando
erros e atalhando incongruncias. Genolino Amado incumbiu-se da
reviso das provas tipogrficas, em testemunho de generosa amizade.
No devo esquecer, neste elenco, o meu editor, representado por Jos
Otvio Bertaso, que se decidiu aventura e ao risco, confiado apenas
no mrito discutvel do livro, em homenagem a um autor que, sem
conhec-lo, enviou-lhe os originais pelo correio "alma forte e corao
sereno", como dele diria o maior de seus editados, Simes Lopes
Neto. Rio de Janeiro, fevereiro de 1973. R. F.
10. C A P T U L O I ORIGEM DO ESTADO PORTUGUS 1. A guerra, o
fundamento da ascendncia dos reis. As bases da monarquia
patrimonial: as contribuies e os concelhos 2. Os fundamentos
ideolgicos da monarquia: o direito romano 3. O Estado patrimonial e
o Estado feudal
11. 1 A PENNSULA IBRICA formou, plasmou e constituiu a
sociedade sob o imprio da guerra. Despertou, na histria, com as
lutas contra o domnio romano, foi o teatro das investidas dos
exrcitos de Anbal, viveu a ocupao germnica, contestada
vitoriosamente pelos mouros. Duas civilizaes uma do ocidente
remoto, outra do oriente prximo pelejaram rudemente dentro de suas
fronteiras pela hegemonia da Europa. Das runas do imprio visigtico,
disciplinado e enriquecido pela cultura dos vencidos, dilacerado em
pequenos reinos, gerou-se um mundo novo e ardente, que transmitiu
sua fisionomia aos tempos modernos. Do longo predomnio da espada,
marcado de cicatrizes gloriosas, nasceu, em direo s praias do
Atlntico, o reino de Portugal, filho da revoluo da independncia e
da conquista. "O reino de Portugal" dir, j com anacrnica arrogncia,
um annimo escritor do sculo XVII " to guerreiro, que nasceu com a
espada na mo, armas lhe deram o primeiro bero, com as armas
cresceu, delas vive, e vestido delas, como bom cavaleiro, h de ir
para a cova no dia do juzo." Dos fins do sculo XI ao XIII, as
batalhas, todos os dias empreendidas, sustentadas ao mesmo tempo
contra o sarraceno e o espanhol, garantiram a existncia do condado
convertido em reino, tenazmente. A amlgama dos dois fragmentos o
leons e o sarraceno , ambos conquistados com esforada temeridade,
criou a nova monarquia, arrancada, pedao a pedao, do caos. Do
elemento leons lhe veio a armadura e a fisionomia, ao elemento
sarraceno imps seu molde, recebendo, de seu lado, vestgios
guardados no carter e no esprito. "Estes dois fatos pertencem
histria do pas: constituem as fontes dessa civilizao."1 No topo da
sociedade, um rei, o chefe da guerra, general em campanha, conduz
um povo de guerreiros, soldados obedientes a uma misso e em busca
de um destino. A singular histria portuguesa, sulcada interiormente
com a marcha da supremacia do rei, fixou o leito e a moldura das
relaes polticas, das relaes entre o rei e os sditos. Ao prncipe,
afirma-o
12. prematuramente um documento de 1098, incumbe reinar
(regnare), ao tempo que os senhores, sem a aurola feudal, apenas
exercem o dominam, assenhoreando a terra sem govern-la.2 Ainda uma
vez a guerra, a conquista e o alargamento do territrio que ela
gerou, constitui a base real, fsica e tangvel, sobre que assenta o
poder da Coroa. O rei, como senhor do reino, dispunha, instrumento
de poder, da terra, num tempo em que as rendas eram
predominantemente derivadas do solo. Predomnio, como se ver, no
quer dizer exclusivismo, nem a sede dinmica, expressiva da
economia. A Coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da
reconquista, imenso patrimnio rural (bens "requengos',
"regalengos", "regoengos", "regeengos"), cuja propriedade se
confundia com o domnio da casa real, aplicado o produto nas
necessidades coletivas ou pessoais, sob as circunstncias que
distinguiam mal o bem pblico do bem particular, privativo do
prncipe. A conquista ao sarraceno ou ao inimigo se incorporava ao
domnio do rei, ao reinado, se no apropriada a terra por legtimos
ttulos prvios. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, no
remoto ano de 1140, alude a "todo herdamento e vinhas, e almoinhas,
e figueiras que para mim tomei nas cercanias de vora". Dom Dinis,
em 1308, lembrava ao concelho de Santarm ser o proprietrio das
terras, visto que "El Rey Dom Affonso o primeiro Rey de Portugal,
que filhou Santarm e Lisboa a Mouros, logo em comeo da povoana da
terra as filhou assinadamente para sy, como filhou todollos outros
Reguengos, e todallas outras cousas, que ha..."3 Acentue-se, por
temor generalizao, que a obra de restaurao, j completa no sculo
XIII, respeitou a propriedade individual. Os morabes, antigos
cristos arabizados, os descendentes dos colonos africanos e
asiticos, os sucessores dos sditos e vassalos dos reis de Oviedo e
Leo tiveram seus bens reconhecidos. Sobravam, todavia, margem
desses quistos, largos domnios para apropriar: as terras dos
mouros, reduzidas, pelo extermnio ou pela batalha, a terras sem
dono; as terras fiscais dos sarracenos, aquelas reservadas a
empresas de colonizao ou a objetivos vinculados estrutura do
Estado; as confiscadas aos
13. particulares, em represlia a crimes ou traies; as que caam
sob o poder do rei em razo do direito de monhadego ou monaria, isto
, o direito da Coroa de herdar os bens dos viles (vilani) que
morriam sem prole.4 Do patrimnio do rei o mais vasto do reino, mais
vasto que o do clero e, ainda no sculo XIV, trs vezes maior que o
da nobreza5 fluam rendas para sustentar os guerreiros, os delegados
monrquicos espalhados no pas e o embrio dos servidores
ministeriais, aglutinados na corte. Permitia, sobretudo, a dispensa
de largas doaes rurais, em recompensa aos servios prestados pelos
seus caudilhos, recrutados, alguns, entre aventureiros de toda a
Europa. Os dois caracteres conjugados o rei senhor da guerra e o
rei senhor de terras imensas imprimiram a feio indelvel histria do
reino nascente. A crise de 1383-85, de onde nascer uma nova
dinastia, a dinastia de Avis, dar a fisionomia definitiva aos
elementos ainda dispersos, vagos, em crescimento. Um fato
quantitativo, o rei como o maior proprietrio, ditar, em consonncia
com a chefia da guerra, a ndole qualitativa, ainda mal colorida, da
transformao do domnio na soberania do dominare ao regnare. O centro
supremo das decises, das aes temerrias, cujo xito geraria um reino
e cujo malogro lanaria misria um conde, impediu que, dispersando-se
o poder real em domnios, se constitusse uma camada autnoma, formada
de nobres proprietrios. Entre o rei e os sditos no h intermedirios:
um comanda e todos obedecem. A recalcitrncia contra a palavra
suprema se chamar traio, rebeldia vontade que toma as deliberaes
superiores. O chefe da heterognea hoste combatente no admite
aliados e scios: acima dele, s a Santa S, o papa e no o clero;
abaixo dele, s h delegados sob suas ordens, sditos e subordinados.6
Excepcionalmente, em ateno ao costume dos soldados estrangeiros,
vindos da Idade Mdia francesa, a concesso de terras acarretava, alm
da propriedade, o gozo da soberania, trao de cunho feudal. O tempo,
girando sob o tropismo da ndole geral do pas, se incumbiu de
absorver e anular esses pontos extravagantes de direito
estrangeiro. A independncia da nobreza territorial e do clero,
com
14. lastro em seu domnio de terras, frustrou-se, historicamente
condicionada e tolhida, enferma de uma fragilidade congnita. A
concesso de senhorio ou de uma vila, filha da liberalidade do rei,
no importava na atribuio de poder pblico, salvo em medida limitada.
A Coroa separava nos nobres ricos-homens, infanes e cavaleiros a
qualidade de funcionrio da qualidade de proprietrio. Seu poder, na
verdade avultado, derivava da riqueza e no das funes pblicas. Nos
tormentosos dois sculos iniciais do reino de Portugal traaram-se
limites ntidos entre o exerccio de um cargo e a propriedade
privilegiada. O pas se dividia em circunscries administrativas e
militares, as "terras" ou "tenncias", cujo superior governo cabia a
um chefe, o "tenens", dentro das quais se constituam distritos, os
"prestamos", administrados por um prestameiro designado pelo rei. A
funo pblica de primeiro nvel cabia ao nobre, senhor da terra ou
alheio ao solo jurisdicionado. Igualmente, as circunscries
judiciais (julgados) e as circunscries fiscais (almoxarifados)
dependiam, no provimento dos cargos, da exclusiva escolha rgia. O
corpo de funcionrios recebia a remunerao das rendas dos casais,
aldeias e freguesias, dos estabelecimentos no beneficiados com a
imunidade fiscal. Os cargos eram, dentro de tal sistema,
dependentes do prncipe, de sua riqueza e de seus poderes.
Extremava-se tal estrutura da existente na Europa contempornea,
marcando um prematuro trao de modernidade.7 O rei, quando precisava
do servio militar da nobreza territorial, pagava-a, como se paga a
um funcionrio. As soldadas marcam o vnculo de subordinao, origem
das futuras quantias, periodicamente distribudas, e que daro causa,
no momento de apertura do tesouro real no sculo XIV, converso em
terras, largamente doadas por um rei aparentemente prdigo. Entre o
esquema, traado pela lgica da histria, e a realidade, convulsionada
por foras em tumulto, h um salto e muitas discordncias. O lao de
subordinao entre o rei e a nobreza territorial e o clero no se
fixou sem muitas escaramuas e muitas resistncias. A fraqueza da
classe territorial, derivada das fronteiras inscritas na
15. transferncia da terra, se robusteceu, em movimento paralelo
expanso dos poderes rgios, com a explorao das imunidades dos
domnios. Entre a Coroa e a nobreza trava-se, em direo oposta ordem
esboada nos desgnios da realeza, uma longa e porfiada batalha da
qual resulta a derrota das veleidades feudais. As doaes de terras,
em retribuio a servios de guerra ou aos servios da estirpe,
privilegiavam os nobres com a jurisdio privativa sobre os moradores
e a completa iseno de tributo. Sob esta base, idntica da fidalguia
encontrada pela dinastia borgonhesa ou afonsina, furtava-se a
aristocracia do garrote da realeza.8 Enquanto a imunidade tributria
permaneceu indisputada, no curso dos sculos, salvo com a sisa,
fixada para todos no sculo XIV, a jurisdio privativa no gozou da
mesma sorte. Percebeu bem a realeza que o poder de julgar envolve,
em ltima anlise, o poder de sujeitar o homem a uma camada
intermediria e autnoma. Sem a jurisdio, o sdito ficaria liberto da
obedincia, preso apenas a uma lealdade de segundo grau, indireta,
convertido o poder supremo em fico. Da a doutrina, j sustentada
tenazmente no perodo da dinastia borgonhesa: "O direito e costume
geral do reino, dizia el-rei dom Dinis em 1317, eram e tinham sido
sempre que em todas as doaes rgias se entendesse reservada para a
Coroa a justia maior, a suprema jurisdio, em reconhecimento ao
maior senhorio".9 A medida que estendiam a atribuio jurisdicional,
os reis conquistavam sditos, os quais, por um movimento
convergente, procuravam fugir s prerrogativas da nobreza e do
clero. Lavradores, artesos e mercadores despontavam como aliados da
Coroa, reforados com a solidariedade da organizao municipal, os
concelhos. O velho direito de Castela, consolidado no Fuero Viejo,
vigente em Portugal, reservava ao rei, nas doaes ou nos senhorios,
certas prerrogativas (justia, moeda, fossado ou jantar), tidas como
inerentes sua preeminncia na sociedade poltica. Algumas vezes,
verdade, margem dos padres gerais, premida pelos variados lances a
que se expunha, a monarquia transigia em doaes peculiares, com o
abandono de suas prerrogativas.
16. A exacerbao dos privilgios da nobreza territorial e do
clero, responderam os reis com o incremento de uma instituio,
pretensamente recebida da velha, e em alguns momentos influente,
ordem romana. O municpio, arma comum estratgia poltica da realeza
na Europa, mereceu especial estmulo, na mesma medida em que se
ensoberbeciam os potentados rurais. Os concelhos, conservados
tenuemente pela tradio, no incio desvinculados de carta de foral,
pouco representavam, no curso dos dois primeiros sculos da
monarquia portuguesa.10 Temerosa do domnio autnomo das camadas que
a apoiavam o clero e a nobreza a realeza deslocou sua base de
sustentao, criando as comunas e estimulando as existentes, no
incremento da realidade capaz de lhe proporcionar suporte poltico,
fiscal e militar. Buscava o trono a aliana, submissa e servil, do
povo o terceiro estado. J Afonso II (f 1223), na luta contra o
clero, pde bem avaliar a fora desse novo instrumento poltico, ao
enfrentar, ajudado pela plebe furiosa, um poderoso bispo e seu
cabido. Os forais a carta de foral , pacto entre o rei e o povo,
asseguravam o predomnio do soberano, o predomnio j em caminho do
absolutismo, ao estipularem que a terra no teria outro senhor seno
o rei. Com a instituio dos concelhos logrou a poltica medieval
ferir a prepotncia eclesistica, num meio que levaria a subjugar a
aristocracia. A esta razo se agregava outra, inspirada na ndole
militar do pas, em estreita conexo com o fundamento poltico do
alargamento da forma municipal. Decretada a criao do concelho, que
deveria organizar uma povoao, reedific-la ou reanim-la, procurava o
rei impor-lhe o dever de defend-la militarmente contra seus
inimigos, os mouros ou os vizinhos estrangeiros. Criava-se,
obediente monarquia, uma milcia gratuita, infensa s manipulaes da
nobreza ou do clero batizados os antigos municeps e castellanus com
o nome de alcaide, palavra sugerida pela invaso rabe. Abria-se,
desta forma, um campo neutro aos privilgios aristocrticos, muitos
deles os coutos e as honras isentos da prestao militar, paga pelo
rei quando dela necessitava. Finalmente, os concelhos somavam renda
do prncipe, oriunda de seu
17. patrimnio fundirio, largas contribuies. As imunidades da
propriedade aristocrtica no permitiam que a casa real dela
retirasse os avultados meios de que carecia, para as despesas da
guerra e de seu incipiente corpo burocrtico. Este ltimo vnculo
entre as contribuies e o tesouro rgio suscita a comercializao, a
reduo em riqueza mvel, do patrimnio do soberano. Por a se canalizar
o influxo, poderoso dentro de dois sculos, de carter patrimonial do
Estado, indistinta a riqueza particular da pblica. Os mordomos, sob
a chefia do almoxarife, todos incipientes funcionrios pblicos,
proviam a casa real das arrecadaes nos mais distantes lugarejos. A
concesso de forais permitiu melhor sistema de cobrana, com o
arrendamento dos direitos aos concelhos, mais tarde substitudo pelo
arrendamento a particulares. Facilitava-se com a medida, alm disso,
o amoedamento das arrecadaes, numa prematura transformao da
economia natural para a economia monetria. "Fundar uma vila ou
povoao, ato de benemerncia rgia, era converter em moeda sonante o
produto bruto da fazenda agrcola. Os impostos locais estabelecidos,
as multas na quantidade dos delitos passveis dessa pena, a prestao
ajustada pelos direitos de proprietrio abandonados, tudo isso
constitua receita considervel. Em cada povoao os tabelies pagavam,
pelo exerccio do cargo, uma anuidade. E no desdenhava o dador do
foral pequenos mananciais de renda, alguns singulares. E destes a
disposio no estatuto da Covilh, segundo o qual se cobrava das
mulheres mundanas um soldo cada ms, pelo direito de exercerem a
profisso"...11 Guerra, ascendncia do rei com a rede de seus agentes
cobrindo o pas, controlando-o e dirigindo-o, domesticao sem
aniquilamento da nobreza so os traos que imprimem o carter
sociedade nascente. Um brao, dia a dia mais vigoroso, completar o
quadro, com a entrada do povo nos clculos polticos, amparado nos
concelhos, sob o ditado da velha feio romana. Astcia e pacincia
erguero, do desprezo e do alheamento, uma classe, com a qual o
soberano dividir lucros e moeda: ter xito a caa ao tigre por meio
da lebre.12 Os ingressos da Coroa levaro o sangue, o calor, o
estmulo e a vida a todas as atividades,
18. agricultura, comrcio e indstria do reino. H um jogo de
presses e influncias recprocas, que associam o predomnio do
soberano nas rendas mais altas e nos misteres mais humildes. A
propriedade do rei suas terras e seus tesouros se confunde nos seus
aspectos pblico e particular. Rendas e despesas se aplicam, sem
discriminao normativa prvia, nos gastos de famlia ou em obras e
servios de utilidade geral. O rei, na verdade, era o senhor de tudo
tudo hauria dele a legitimidade para existir , como expresso de sua
autoridade incontestvel, bebida vorazmente da tradio visigtica e do
sistema militar. Discernir e especificar a fonte dos ingressos da
realeza ser trabalho de revelao da prpria estrutura econmica do
reino. Mostrar a anlise a base do poder supremo, sua estrutura e
profundidade, fonte das remuneraes aos guerreiros, funcionrios em
embrio, homens da corte, letrados em flor. No h dvidas: a parte
fixa, permanente, previsvel dos rendimentos do prncipe flui da
propriedade fundiria (os bens reguengos, "regalengos", "regoengos",
"regeengos"), senhorio territorial como outro qualquer, seja da
nobreza ou do clero, singularizado com o fim de servir ao chefe do
Estado e se destinar, eventualmente, a objetivos que hoje se diriam
pblicos. Esta propriedade territorial sofria duas modalidades de
explorao: a indireta e a direta. A explorao indireta, por sua vez,
gerava duas espcies de rendas: uma que se aproxima da que
caracteriza o moderno arrendamento, temporrio o cultivo da herdade;
na outra, o lavrador detinha o domnio til do solo, transmissvel
entre vivos e por herana, revertendo ao rei o foro. Na gesto direta
do imvel, os colonos se obrigavam a prestar, gratuitamente, alguns
dias de trabalho por ano, no excludo o salrio, em moeda ou in
natura. Esta a explorao direta era a regra do trato da pecuria,
adotada tambm, em menor parcela, nas culturas arvenses, vinhas e
olivais.13 Dessa circunstncia o rei "principal lavrador da nao",
com celeiros e adegas espalhados por todos os confins de seus
domnios, atarefados os seus mordomos na cobrana de foros e rendas
concluiu-se ser a monarquia
19. portuguesa uma "monarquia agrria".14 O fato, repita-se, no
pode ser posto em dvida: as rendas do soberano, na parte mais
considervel, fluam da terra. A concluso, todavia, aparentemente
lgica, no se concilia com as demais caractersticas do reino, em que
o soberano se confunde com o titular, pelo menos eventual ou
sobreproprietrio, de toda a riqueza e de toda a economia. As garras
reais, desde cedo, se estenderam ao comrcio, olhos cobiosos no
comrcio martimo. J nos meados do sculo XIII, estimulado pela
conquista de Lisboa em 1147, o comrcio martimo mostra os sinais do
seu futuro prximo, ativo com as trocas dos produtos da Inglaterra,
Flandres, Frana, Castela e Andaluzia.15 Dispunha o pas, para o
trfico internacional, de assentada economia de sal, pescado,
vinhos, azeite, frutas, couros, cortia produtos que lhe
proporcionavam os txteis flamengos e italianos, o ferro da Biscaia,
as madeiras do norte, a prata da Europa central e oriental, as
especiarias, o acar.16 Portugal, alm disso, cobria-se de feiras,
ardentes e ativas na promoo do comrcio interno, j vinculado navegao
internacional. Tudo dependia, comrcio e indstria, das concesses
rgias, das delegaes graciosas, arrendamentos onerosos, que, a
qualquer momento, se poderiam substituir por empresas monrquicas.
So os fermentos do mercantilismo lanados em cho frtil. Dos
privilgios concedidos para exportar e para importar no se esquecia
o prncipe de arrecadar sua parte, numa apropriao de renda que s
analogicamente se compara aos modernos tributos. No fim do sculo
XIV a sisa, devida ao tesouro pelos consumidores na compra e venda
e na troca de mercadorias, ocupa o primeiro lugar no oramento,
recaindo sobre toda a gente, nobres, eclesisticos e plebeus, com o
rompimento do privilgio da imunidade. Era o comrcio, atestado num
fato fiscal, atravessando, sob o patrocnio soberano, todas as
camadas da populao, estimulado na organizao dos concelhos. Nas
fendas da monarquia agrria, mais fico do que realidade, cresciam os
outros rendimentos da Coroa. Da propriedade no fundiria do domnio
eminente e no efetivo bem como do exerccio da soberania ainda
mal
20. definida decorriam variadas, mltiplas, coloridas e
pitorescas contribuies. Ligado s origens da monarquia destaca-se o
quinto da guerra, institudo na luta contra os sarracenos, que se
materializava na taxa de vinte por cento sobre os despojos tomados
ao inimigo, fonte dos dispersos domnios reais em todo o territrio.
Uma tentativa de classificao, sem desfigurar a realidade com padres
conceituais modernos: "a) os rditos com origem na agricultura e no
pastoreio cnones, pores, direituras e miunas dos herdamentos rgios,
jugadas dos herdamentos dos herdadores pees, o montado pago sobre
certas pastagens, as vendas da produo direta; b) rditos
provenientes da circulao interna e do mercado portagens, aougagem,
alcavalas; c) os rditos provenientes do comrcio externo dzimas,
portagens; d) as multas judiciais, ou calnias e coutos; e) rditos
provenientes da atividade industrial vieiros e minas, dzima do
pescado, taxa de mesteres; f) servios prestados ao rei ou aos
oficiais rgios geiras de malados jniores e outros, almocreverias e
carretos, servio de remadores na frota real [...] ou suas
compensaes monetrias; g) jantar ou colheita; h) emisses de moeda.
Extraordinariamente, recorria-se ao pedido ou finta ou talha".17 No
so de desdenhar, ainda, as rendas colhidas da dzima eclesistica,
das penses de tabelionato e da justia civil. Dessa ampla rede
vinham os tesouros rgios, moedas, ouro e prata, que avultam nos
testamentos dos soberanos, numa indicao da nascente economia
monetria. A simplificao da cobrana, j se notou, levou ao calculado
incremento da ordem municipal. A Coroa criava rendas de seus bens,
envolvia o patrimnio particular, manipulava o comrcio para
sustentar o squito, garantia a segurana de seu predomnio. Este o
primeiro ato do drama. O sdito o sdito qualificado, o nobre, j
absorvido o clero nas malhas do poder supremo, e o sdito sem
esporas no paga servios, tangveis ou abstratos, como o contribuinte
moderno. Um poderoso scio, scio e patro, tosquia a melhor l,
submetendo o proprietrio nominal obrigao de cuidar da ovelha. A
nobreza, agarrada aos velhos privilgios, ainda se manter no
21. nvel de companheira do soberano. Um pouco mais e ela, j
cercada, com as unhas embotadas, dividir, domesticada depois de uma
revoluo, o segundo lugar com a burguesia. A ideologia completar a
obra, vencendo as conscincias e roubando imaginao o estandarte da
resistncia. O Estado patrimonial, implacvel nos seus passos, no
respeitar o peso dos sculos, nem os privilgios da linhagem antiga.
2 O CONTEDO DO ESTADO, capaz de ajustar juridicamente as relaes
entre o soberano e os sditos, formou-se de muitos fragmentos,
colhidos numa longa tradio. O ponto inicial, quanto ao carter
poltico, pode ser situado na constituio de Diocleciano (285-305). O
direito ser o de Justiniano (527-65), cujas codificaes se
propagaram no ocidente, modelo indelvel do pensamento jurdico.
Fixados os dois marcos a organizao poltica e o conjunto de regras
jurdicas no se presume uma continuidade sem quebra, no curso de
sete sculos. A seqncia se funda no aproveitamento, ao sabor das
circunstncias sociais, de retalhos e restos vivos, conjugados para
estruturar uma ideologia, s esta coerente. O trabalho de reconstruo
espiritual deformar muitas realidades, roubadas de sua significao
ntima, transfiguradas em corpos diferentes, de cor diversa, com
outra fisionomia. H o trabalho surdo, em que as idias se filtram
nos costumes, e o trabalho de criao consciente, ao modo de uma obra
de arte, que a Escola de Bolonha (sculos XII e XIII) sistematizar.
De uma e de outra fonte correro as guas para se encontrar no Estado
moderno: o Estado que consagra a supremacia do prncipe, a unidade
do reino e a submisso dos sditos a um poder mais alto e coordenador
das vontades. No fundo, os sinos da catedral submersa, que os godos
e os rabes no puderam calar. As colunas fundamentais, sobre as
quais assentaria o Estado portugus, estavam presentes, plenamente
elaboradas, no direito
22. romano. O prncipe, com a qualidade de senhor do Estado,
proprietrio eminente ou virtual sobre todas as pessoas c bens,
define-se, como idia dominante, na monarquia romana. O rei, supremo
comandante militar, cuja autoridade se prolonga na administrao e na
justia, encontra reconhecimento no perodo clssico da histria
imperial.18 O racionalismo formal do direito, com os monumentos das
codificaes, servir, de outro lado, para disciplinar a ao poltica,
encaminhada ao constante rumo da ordem social, sob o comando e o
magistrio da Coroa. O direito escrito dos visigodos se construiu
sobre o direito romano e a influncia do clero, penetrada esta dos
rasgos principais das antigas codificaes justinianas. Bem verdade
que os costumes, alm do extenso territrio das prticas extralegais,
conservaram carter godo, sobrepondo-se, em muitos assuntos, ordem
jurdica formalizada. De outro lado, a disperso da autoridade,
fenmeno geral na Idade Mdia, conspirava em favor do predomnio do
direito costumeiro do costume da terra, rplica continental do
Common Law. Sobre este manto de muitas cores e de muitos retalhos,
o direito romano j se impe como o modelo do pensamento e o do ideal
de justia uma ideologia ainda em formao, germinando obscuramente.
No subsistiria se no a fecundasse o adubo dos interesses, que se
aproveitam da armadura espiritual, conservando-a por fora e
dilacerando-a na intimidade. O clero, desde o distante sculo VI,
convertido o rei visigtico ao catolicismo, trabalhou para romanizar
a sociedade. Serviu-se, para esta obra gigantesca, do direito
romano, o qual justificava legalmente seus privilgios, revelando-se
o instrumento ideal para cumprir uma misso e afirmar um predomnio.
A Pennsula Ibrica, unida cabea papal, absorveu as lies dos
clrigos-juristas, que se espalham pela Europa, sobretudo a partir
dos sculos XI e XII. Culmina este movimento, j contestada a
supremacia do clero, com as obras jurdicas e legislativas de Afonso
X (1267-72), rei de Castela, autor do monumento das Siete partidas,
e do rei portugus Afonso III (1246 ou 1248-79) com sua ordenao
sistemtica sobre o processo.19 O domnio do clero e da nobreza,
empreendido pelo rei,
23. encontrou, nesse instrumento, os meios espirituais de
justificao. A obra dos juristas e imperadores romanos serviu, v-se
logo, a fins opostos aos previstos pelo clero, num movimento que d
contedo novo s formaes ideolgicas. As duas fases dessa luta
obedecem aos padres, acabados e perfeitos, do jurismo justinianeu.
A primeira batalha, rijamente estimulada pelos soberanos
portugueses, buscou nos municpios romanos a forma adequada
instituio dos concelhos, de cujo expressivo papel histrico j se fez
meno. Certo, uma viva polmica se instaurou, a este propsito, nas
letras portuguesas e europias, com graves danos tese sustentada por
Herculano e Gama Barros, que no hesitaram em ver na organizao
municipal dos concelhos a face romana.20 No centro da divergncia h
uma incompreenso: o municpio portugus se filia origem romana, mas
sua feio ideolgica, no sua continuidade real. A forma, o modelo, a
estrutura so romanos o contedo, os fins a que se destina, as funes
que desempenha so modernos, e, em muitos pontos, incompatveis com o
molde abstrato antigo. Este o sentido, de resto, da influncia
romana. Por isso, os princpios justinianeus apareceram em certo
momento, no momento de atuar, corrigir e dominar, e no em todos os
tempos. A incorporao dos enxertos velhos se opera seletivamente,
infundindo vida a um corpo apagado, sem alma prpria. No importa a
observao em afirmar o papel passivo da ideologia: ela pressiona, se
interpenetra, ou, em casos extremos, frustra a realidade. Impossvel
ser, todavia, dissoci-la do sistema ou da estrutura social, dentro
da qual vive e atua, perecendo se afastada do hmus que a tonifica.
Igualmente, a segunda fase do movimento lanado para erguer o
prncipe sobre as camadas que o querem tolher, dividindo com ele o
poder, se apia sobre o direito romano. O primeiro passo ser o
depuramento do direito romano do direito cannico21, dissonncia que
traduz a discrdia entre o clero e a Coroa. Entram em cena, nesta
luta, os letrados, filhos diretos ou indiretos da Escola de Bolonha
(sculos XII e XIII) e das universidades europias, progressivamente
implantadas. Define-se, a partir da corte, a distino entre o
dominare, reservado
24. nobreza territorial, e o regnare, exclusivo do prncipe,
embrio da futura doutrina da soberania, cujo proprietrio ser o rei.
Refinado o pensamento, o conceito de propriedade do reino se elevar
para reconhecer ao soberano a qualidade de defensor, administrador
e acrescentador, teoria que assenta sobre o domnio eminente e no
real. So as vsperas vsperas de alguns sculos do absolutismo. Ao
tempo que combatia o particularismo da nobreza territorial, a
recepo do direito romano no favorecia os interesses comerciais.
Raciocnio simplificador poderia, ao situar uma face do problema,
evocar a outra, como se, entre as duas, no se interpusesse, mais
alto, o prncipe, titular de grandes, poderosos e extensos
interesses econmicos. O comrcio j criara, no seio da Idade Mdia, o
seu prprio direito, fundamento e origem do moderno direito
comercial com suas sociedades comerciais e os ttulos de crdito. A
Inglaterra, me do capitalismo moderno, pde desenvolver seus
instrumentos legais de relaes econmicas, sem que o direito romano
exercesse papel de relevo. A direo que suscitou o recebimento do
direito romano ser de outra ndole: a disciplina dos servidores em
referncia ao Estado, a expanso de um quadro de sditos ligados ao
rei, sob o comando de regras racionais, racionais s no sentido
formal. A calculabilidade do novo estilo de pensamento jurdico,
reduzida ao aspecto formal, no exclui, na cpula, o comando
irracional da tradio ou do capricho do prncipe, em procura da
quebra aos vnculos das camadas nobres. No ganhou a justia foros de
impessoalidade, assegurada nas garantias processuais isentas da
interferncia arbitrria dos julgados. O cronista do sculo XV, Ferno
Lopes, no consegue repudiar, embora no aprove no ntimo, os
desvairados atos de justia de dom Pedro I (1367). Usou o
desesperado amante de Ins de Castro "de justia sem afeio", sem que
a igualdade de tratamento a todos os delinqentes traduzisse a
moderna igualdade perante a lei. Graduava as penas de acordo coro
seu enlouquecido juzo, sem obedincia a cnones pr-fixados. A um
adltero mandou, em sua cmara, "cortar-lhe aqueles membros que os
homens em maior apreo tm". Por sua prpria mo, meteu a tormento
25. um dos assassinos de Ins de Castro, sem poupar chicotadas
aos criminosos. Justia salomnica, cuja caricatura fez do governador
Sancho Pana o modelo dos juizes do caso a caso, espectro racional
ao servio das decises arbitrrias. As instituies no gozam de campo
prprio de atuao, visto que esto subordinadas ao poder do prncipe,
capaz de decidir da vida e da morte, reminiscncia prxima do rei-
general, competente para julgar todos os soldados. Verdade que, nos
calcanhares, a nobreza territorial, dominada mas no domesticada,
rosna ameaas rancorosas, espreita do momento de lanar-lhe os
dentes, cautelosa. O renascimento jurdico romano, estimulado
conscientemente para reforo do Estado patrimonial, serviu de
estatuto ascenso do embrionrio quadro administrativo do soberano,
grmen do ministerialismo. Ainda aqui, a tradio visigtica infiltrou,
no reino recm-constitudo, os fluidos poderosos das idias e
instituies romanas. As ondas da era de Diocleciano, contaminadas do
orientalismo dos prncipes despticos, atingem o mundo novo,
ditando-lhe, em acolhimento seletivo, a ordem antiga. Os
funcionrios romanos se transmutaram na aristocracia goda, que se
afastou da sua imagem original pela riqueza territorial. O papel da
ltima, porm, sofreu limites severos na sua independncia ou
autonomia, com a poltica real de agrupar, na corte, os nobres,
atrelados a funes pblicas, que os amarravam ao poder do soberano.
Por via do leito, cavado no sculo III, no lograram as impetuosas
guas descentralizadoras apagar a organizao antiga. A Pennsula
Ibrica teria sido conquistada, mas no germanizada, fiel a uma
utopia perdida, atuante como uma viso potica, capaz de imantar as
imaginaes, se os interesses a evocarem.22 O elemento catalisador
das baronias territoriais foi o officium palatinum ou aula regia,
criao de Diocleciano, composta dos principais oficiais da
monarquia, magistrados superiores, civis e militares, rgo onde se
fundiam a aristocracia burocrtica dos romanos e a militar dos
godos. O recrutamento, condicionado pela tradio, obedecia liberdade
do rei,
26. que nela inclua servos de sua casa, ao lado de senhores
territoriais. Consultiva por natureza, pesava, sem embargo, nas
decises da realeza, capaz at de depor um rei, condenado ao desterro
aviltante como acontecera com o desventurado Vamba (672-80). Mais
importante do que a aula regia e os conclios destitudos de
atribuies diretas de comando, era o corpo ministerial, responsvel
pelos negcios da Coroa, antecipao da organizao moderna, sem ntida
separao de competncia, indistinto o patrimnio rgio do patrimnio da
nao. Incluam-se nesse conselho: "o comus thesaurorum, a um tempo
almoxarife e ministrio da fazenda; o comus patrimoniorum, uma
espcie de ministro do imprio; o comus notoriorum, semelhante a um
procurador-geral da Coroa; o comus spathiorum, general-em-chefe das
guardas do rei (cousa diversa do exrcito, que ento se formava com
os contingentes da nobreza e dos concelhos); o comus scanciorum,
mordomo- mor; o comus cubiculi, camareiro-mor; o comus stabuli,
estribeiro-mor; e, finalmente, o comus exercitus, ministro da
guerra".23 Esta ordem poltica, com a conquista sarracena, se
desintegrou desintegrou-se mas no se perdeu, conservada na tradio.
A reconquista a revalorizou, nico padro espiritualmente mantido no
renovo do poder real. O baro no se extremou, nem se estereotipou no
feudalismo: as populaes s aceitam, hipnotizadas por um estilo
antigo, a nica predominncia do rei, chefe dos exrcitos. O baro
define sua sobranceria como funcionrio e no como senhor os
agrupamentos de moradores, as behetrias, reivindicam autonomia, s
obediente ao chefe supremo.24 H um trao do feudalismo mas no o
feudalismo como instituio. O direito pblico que define as relaes
entre o rei e os sditos continua visigtico25, assegurando as
prerrogativas intangveis do rei. No sculo XV, esta linha de
pensamento levaria um rei a se reconhecer titular do poder
absoluto. A organizao ministerial renasceu, ela tambm, dos
escombros da monarquia visigtica, por sua vez impregnada de
romanismo. O mais elevado cargo, exercido sob o direto comando do
rei, modifica-se, quanto preeminncia, tal como na ordem visigtica,
de acordo com as condies do reino. Sob as
27. aperturas da guerra de reconquista e de definio do pas, a
principal funo caber ao comandante do exrcito, comandante superior
na ausncia do rei o alferes-mor (signifer). Esta funo, simbolizada
na competncia para levar o pendo do rei, cabia, em tempo de paz, a
um escudeiro. No sculo XIII, os personagens mais importantes do
reino, os que mais assiduamente freqentavam o rei, eram os guardas
dos livros dos rditos da Coroa (recabedo regni): o alferes, o
mordomo e o chanceler. O chefe da administrao civil, equiparado ao
alferes, era o mordomo da corte (mordomus curiae). Sob a influncia
inglesa, em 1382, criaram-se os postos de condestvel e marechal da
hoste, cabendo ao primeiro superintender o exrcito e tomar-lhe a
vanguarda, cargo que, como o de maior honra do reino, coube a Nuno
Alvares, durante a crise de 1383-85.26 Ao marechal da hoste se
atribuam as funes de primeiro auxiliar do condestvel, com as funes
de chefe dos rgos judicirios em campanha.27 indistino das
atribuies, sucede, sob a presso dos juristas, uma organizao de
competncias cada vez mais fixas. H, portanto, uma linha ideolgica
contnua entre o imprio de Diocleciano e o reinado da reconquista:
linha cortada de muitos acidentes, reconstituda pelos letrados, no
limiar da Renascena. "Para acabar de destruir a preponderncia e at
o equilbrio dos elementos polticos a pena do jurista, mais pesada
que o montante do soldado, porque representava a inteligncia,
achava-se na balana ao lado do cetro. Educados na admirao da
sociedade romana na poca do imprio, deslumbrados pela indubitvel
superioridade das suas instituies civis sobre as rudes e
incompletas usanas tradicionais da idade mdia, os letrados acolhiam
com o mesmo culto supersticioso as mximas da poltica desptica dos
csares." (O monge de Cister, cap. XVII.) No antecipemos, porm, a
hora do absolutismo, nem a hora singular de Joo das Regras, capaz
de formar, com suas mos cultas e astutas, uma nova dinastia, sada
da espada da nao popular.
28. 3 Os MENCIONADOS FUNDAMENTOS SOCIAIS e espirituais renem-se
para formar o Estado patrimonial. A realidade econmica, com o
advento da economia monetria e a ascendncia do mercado nas relaes
de troca, dar a expresso completa a este fenmeno, j latente nas
navegaes comerciais da Idade Mdia. A moeda padro de todas as
coisas, medida de todos os valores, poder sobre os poderes torna
este mundo novo aberto ao progresso do comrcio, com a renovao das
bases de estrutura social, poltica e econmica. A cidade toma o
lugar do campo. A emancipao da moeda circulante, atravessando pases
e economias at ento fechadas, prepara o caminho de uma nova ordem
social, o capitalismo comercial e monrquico, com a presena de uma
oligarquia governante de outro estilo, audaz, empreendedora,
liberta de vnculos conservadores.28 Torna-se possvel ao prncipe e
ao seu estado- maior organizar o Estado como se fosse uma obra de
arte, criao calculada e consciente. As colunas tradicionais, posto
que no anuladas ou destrudas, graas aos ingressos monetrios, ao
exrcito livremente recrutado e aos letrados funcionrios da Coroa,
permitem a construo de formas mais flexveis de ao poltica, sem
rgidos impedimentos ou fronteiras estveis.29 o Estado moderno,
precedendo ao capitalismo industrial, que se projeta sobre o
ocidente. Na aparente seqncia sem acidentes, que parte da guerra e
amadurece no comrcio, com o prncipe senhor da espada e das trocas,
h um srio problema histrico. Seria a nova construo poltica um
acontecimento s possvel depois da runa do feudalismo ou teria ele
uma linha prpria de crescimento, sem vnculo necessrio com o sistema
reinante na Europa central? A questo, de feitio enganadoramente
terico, tem largo alcance no tempo: ser uma das determinantes que
explicar a histria da sociedade brasileira. Sua ressonncia alcanar
o sculo XX, envolvendo apaixonada polmica, ditando a interpretao
histrica da estrutura econmica vigente. No bojo da tese central h
outras duas: o feudalismo na Pennsula Ibrica
29. e em Portugal e o feudalismo no Brasil. H um dogma, frio,
penetrante, expansivo, que pretende comandar a interpretao
histrica. A sociedade capitalista, no ocidente, se gerou das runas
da sociedade feudal. A era capitalista, caracterizada pela
propriedade da burguesia dos meios de produo e da explorao do
trabalho assalariado, teria seu ponto de partida no sculo XVI. Os
acontecimentos singulares dessa poca as navegaes e os
descobrimentos, as colnias e os novos mercados aceleraram uma
transformao fundamental da histria, convertida, pelo seu volume, de
quantitativa em qualitativa, segundo o enunciado de uma lei da
dialtica. A produo da economia natural, com trocas apenas do
suprfluo, cedeu o lugar s manufaturas, iniciando o irreversvel e
fatal movimento da acumulao do capital, que expropriou as terras
dos produtores, separando-os, tambm na produo artesanal, dos meios
de produo. Rompe-se, com estas alavancas, o mundo feudal,
substitudo pelo mundo capitalista, este aniquila o primeiro, com
armas que, um dia, se voltaro contra o novo sistema.30 O
feudalismo, fase necessria no ocidente europeu, seria um momento da
diviso do trabalho, que se projeta em formas diversas de
propriedade. Sucedeu ao primeiro estgio, o tribal, o perodo estatal
e comunal, alcanando o sistema feudal, preldio da era capitalista.
Cidade e campo, polarizados com a propriedade territorial e
corporativa, respectivamente, se identificam numa ordem patriarcal
e hierrquica.31 Feudalismo e economia natural seriam termos
correlatos.32 O ponto importante, que caracteriza a economia da
Idade Mdia, identificada em bloco com o feudalismo, reside na
propriedade dos meios de produo. Regia, antes do advento do
capitalismo, a pequena indstria, calcada na propriedade do arteso
sobre os meios produtivos, e, no campo, a agricultura de lavradores
limitados a plantar para as suas necessidades, ou pouco mais. "Os
meios de trabalho a terra, os implementos agrcolas, a oficina, as
ferramentas eram meios de trabalho dos indivduos, destinados to-s
ao uso individual, e, portanto, necessariamente pequenos,
minsculos, limitados. Por isso
30. mesmo pertenciam, em regra, ao prprio produtor."33 O tear
individual cedeu lugar ao tear coletivo, a roca foi substituda pela
mquina de fiar a produo perde o carter individual, entregue a foras
coletivas, que convertem o trabalho em mercadoria, degradando-o
condio de coisa, perdida a identidade do homem na ndole annima de
seus produtos. Inegvel, no quadro medieval, alm da feio
idealizadora, a cor idlica, adequada para se opor ao negro painel
do capitalismo. Idade Mdia e feudalismo, reduzido este,
fundamentalmente, a uma forma de trabalho, se confundem. Dela e s
dela, imperativamente brota o capitalismo, filho das contradies
aninhadas no seu seio: uma classe oprimida, a burguesia das
cidades, se ergue contra os nobres, esmagando-os, primeiro no campo
econmico e depois na arena poltica. Outra conseqncia do modelo
marxista: o capitalismo, responsvel pela runa feudal, o capitalismo
das manufaturas, fase primeira do capitalismo industrial. Isto no
exclui, verdade, que, a seu servio, em pases diferentes, ele se
projete no capitalismo comercial, caracterizado na troca de
produtos manufaturados alheios, por mercadorias arrancadas do
prprio solo, do mar ou das navegaes. O contexto da nova poca ter
carter universal, arrastando, nas suas guas, as naes que trabalham
nas usinas, as naes inertes e as naes que buscam, na aventura, a
riqueza e a opulncia. Ainda uma observao. As pocas econmicas do
mundo asitico, antigo e feudal so fases, encadeadas sob o vnculo
progressivo e ascendente, que culminou na poca moderna.34 A histria
segue um curso linear embora reconhea a doutrina a ausncia de
feudalismo nos Estados Unidos e a no peculiaridade de certas relaes
sociais tidas como especficas da Idade Mdia.35 Esta doutrina,
construda sobre uma tradio histrica, recebida sem exame crtico de
profundidade, infiltrou-se na teoria, ganhando o prestgio dos
lugares-comuns. Ela contaminou os estudos do sculo XX, empenhada
em, por toda parte, sobretudo nos pases subdesenvolvidos, descobrir
a "estrutura feudal", os "restos feudais", perdidos no mundo
universal do capitalismo. Os estudos do sculo XIX,
31. sobre os quais brotou a tese marxista, pareciam apoi-la,
com raros dissidentes. A Europa seria, sem maiores dvidas, um
universo feudal desmoronado, no sculo XV, sob o peso das
manufaturas e das monarquias. Os movimentos anteriores polticos e
sociais seriam, quando existentes, antecipaes de um curso histrico
geral.36 O problema no seria pertinente a este ensaio se o
feudalismo no houvesse deixado, no seu cortejo funerrio, vivo e
persistente legado, capaz de prefixar os rumos do Estado moderno.
Patrimonial e no feudal o mundo portugus, cujos ecos soam no mundo
brasileiro atual, as relaes entre o homem e o poder so de outra
feio, bem como de outra ndole a natureza da ordem econmica, ainda
hoje persistente, obstinadamente persistente. Na sua falta, o
soberano e o sdito no se sentem vinculados noo de relaes
contratuais, que ditam limites ao prncipe e, no outro lado,
asseguram o direito de resistncia, se ultrapassadas as fronteiras
de comando.37 Dominante o patrimonialismo, uma ordem burocrtica,
com o soberano sobreposto ao cidado, na qualidade de chefe para
funcionrio, tomar relevo a expresso.38 Alm disso, o capitalismo,
dirigido pelo Estado, impedindo a autonomia da empresa, ganhar
substncia, anulando a esfera das liberdades pblicas, fundadas sobre
as liberdades econmicas, de livre contrato, livre concorrncia,
livre profisso, opostas, todas, aos monoplios e concesses reais. O
feudalismo no cria, no sentido moderno, um Estado. Corporifica um
conjunto de poderes polticos, divididos entre a cabea e os membros,
separados de acordo com o objeto do domnio, sem atentar para as
funes diversas e privativas, fixadas em competncias estanques.
Desconhece a unidade de comando grmen da soberania , que atrai os
fatores dispersos, integrando-os; apenas concilia, na realizao da
homogeneidade nacional, os privilgios, contratualmente
reconhecidos, de uma camada autnoma de senhores territoriais. No h
feudalismo sem a superposio de uma camada de populao sobre outra,
dotada uma de cultura diversa. O ajuste, a adaptao das duas
estruturas se processa, num momento sobretudo
32. (no necessariamente) de economia natural e de trnsito
precrio, tornando difcil ou impossvel a troca de mercadorias. O
feudalismo, fenmeno no somente europeu, significa, portanto, um
acidente, um desvio na formao da nao politicamente organizada. No
se apresenta ele no mundo grego ou no mundo romano, onde uma linha
sem interrupo se fixou, desde a tribo at ao Estado universal. H
insupervel incompatibilidade do sistema feudal com a apropriao,
pelo prncipe, dos recursos militares e fiscais fatores que levam a
intensificar e racionalizar o Estado, capaz, com o suporte
econmico, de se emancipar, como realidade eminente, das foras
descentralizadas que o dispersam, dividem e anulam. Mesmo nos pases
de tradio feudal, a emergncia desses elementos golpeou o
desenvolvimento de suas expresses caracterizadoras.39 O incremento
do comrcio, de outro lado, acelera o aparecimento do sistema
patrimonial, contrrio ordem feudal.40 O feudalismo, realidade
histrica e sistema social, no se constri, desta sorte, mediante
modelos arbitrrios, esquematicamente simplificados. Ele h de se
retratar num tipo ideal, capaz de, fielmente, reconstruir um
momento histrico, em traos simultneos, que, reunidos, formam o
conceito da realidade. O sistema se compe de elementos militares,
econmico-sociais e polticos; a identificao de um carter disperso no
o caracteriza lembra aspectos feudais, que, como tais, so o oposto
do feudalismo. O chamado feudalismo portugus e brasileiro no , na
verdade, outra coisa do que a valorizao autnoma, truncada, de
reminiscncias histricas, colhidas, por falsa analogia, de naes de
outra ndole, sujeitas a outros acontecimentos, teatro de outras
lutas e diferentes tradies. De outro lado, o feudalismo suporta
diversas bases, em que predominam um e outro fator essencial, sem a
excluso de seus elementos fundamentais. O elemento militar do
regime feudal caracteriza a situao de uma camada (estamento v.
adiante) vinculada ao soberano por um contrato um contrato de
status, calcado na lealdade, sem subordinao incondicional. Sob o
aspecto econmico-social, aos senhores est reservada uma renda,
resultante da explorao da terra.
33. Politicamente, a camada dominante, associada ao rei por
convvio fraternal e de irmandade, dispe de poderes administrativos
e de comando, os quais, para se atrelarem ao rei, dependem de
negociaes e entendimentos. Dos trs elementos, que somente reunidos
constituem o feudalismo, resulta, com respeito ao soberano, a
imunidade armada, capaz de se extremar na resistncia, elevada
categoria de um direito. O servio ao rei e o servio aos senhores,
por meio do conceito de vassalagem, no constitui uma obrigao ou um
dever forma um apoio livre, suscetvel de ser retirado em qualquer
tempo.41 Situado terica e historicamente o contedo do sistema
feudal, ressalta do enunciado a sua incompatibilidade com o mundo
portugus, desde os primeiros atos do drama da independncia e da
reconquista. A velha tese de Alexandre Herculano, sustentada com
paixo, est hoje consagrada, sem embargo das isoladas resistncias:
Portugal no conheceu o feudalismo.42 No se vislumbra, por mais
esforos que se faam para desfigurar a histria, uma camada, entre o
rei e o vassalo, de senhores, dotados de autonomia poltica. O
feudalismo, acidente poltico e de direito pblico, no se configura,
historicamente, sem que rena os elementos que o fazem um regime
social. O argumento de que se deve procurar-lhe o cerne no sistema
econmico, no enquadramento das foras de produo, peca por uma
fraqueza fundamental. Se ele no logrou provocar, na superfcie, as
floraes sociais, jurdicas e institucionais as chamadas
superestruturas , essa incapacidade denuncia a prpria incerteza da
infra-estrutura, da base. Quer, todavia, como regime econmico, por
emprstimo ou como fenmeno comum europeu, quer como realidade
social, militar e poltica, esteve ele ausente de Portugal, salvo,
como assinalado, em algumas ilhas francesas, logo absorvidas no
contexto nacional. A persistncia, no curso da histria, de magnatas
territoriais, no os extrema, apesar dos poderes decorrentes da
riqueza e das dependncias que ela gera, na caracterizao de um
sistema que, para se aperfeioar, exige o conjunto de outras
atribuies, imunidades e
34. competncias de ordem pblica. A terra obedecia a um regime
patrimonial, doada sem obrigao de servio ao rei, no raro concedida
com a expressa faculdade de alien-la. O servio militar, prestado em
favor do rei, era pago. O domnio no compreendia, no seu titular,
autoridade pblica, monoplio real ou eminente do soberano. Estado
patrimonial, portanto, e no feudal, o de Portugal medievo. Estado
patrimonial j com direo pr-traada, afeioado pelo direito romano,
bebido na tradio e nas fontes eclesisticas, renovado com os
juristas filhos da Escola de Bolonha. A velha lio de Maquiavel, que
reconhece dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial,
visto, o ltimo, nas suas relaes com o quadro administrativo, no
perdeu o relevo e a significao.43 Na monarquia patrimonial, o rei
se eleva sobre todos os sditos, senhor da riqueza territorial, dono
do comrcio o reino tem um dominus, um titular da riqueza eminente e
perptua, capaz de gerir as maiores propriedades do pas, dirigir o
comrcio, conduzir a economia como se fosse empresa sua.44 O sistema
patrimonial, ao contrrio dos direitos, privilgios e obrigaes
fixamente determinados do feudalismo, prende os servidores numa
rede patriarcal, na qual eles representam a extenso da casa do
soberano. Mais um passo, e a categoria dos auxiliares do prncipe
compor uma nobreza prpria, ao lado e, muitas vezes, superior
nobreza territorial. Outro passo ainda e os legistas, doutores e
letrados, conservando os fumos aristocrticos, sero sepultados na
vala comum dos funcionrios, onde a vontade do soberano os
ressuscita para as grandezas ou lhes vota o esquecimento
aniquilador. A economia e a administrao se conjugam para a
conservao da estrutura, velando contra as foras desagregadoras,
situadas na propriedade territorial, ansiosas de se emanciparem das
rdeas tirnicas que lhes impedem a marcha desenvolta. H, em todos os
tempos e com maior veemncia num contexto feudal de vizinhana, o
impulso do domnio territorial de se projetar numa nobreza, cuja
forma de preponderar ser o aprisionamento do prncipe num sistema
feudal. Enquanto o mundo no est dominado, em toda a sua extenso,
pelo capitalismo
35. industrial, o risco de um feudalismo importado est sempre
presente. Ele no pde, incontestavelmente, se fixar no reino
portugus, voltado, desde o bero, para um destino patrimonial, de
preponderncia comercial. Nem por isso deixaram de rondar perigos
prximos, sagazmente combatidos e anulados em todo o tempo, pela
ordem em ascenso, comandada pelo rei, com os prstimos dos
comerciantes, letrados e militares, grupos interessados na
incolumidade do tesouro real, forte e centralizador, rico e
generoso. Uma nao se projeta, gerada sob a presso de foras
singulares, na Idade Moderna, antecipando um desenvolvimento que s
amadureceria dois sculos depois na Europa. A monarquia agrria,
hiptese de trabalho carinhosamente cultivada pela historiografia
portuguesa45, no passou de um esboo, varrido da terra com a
abertura de Lisboa ao oceano. O comrcio definiu o destino do reino,
meio natural do financiamento da obra da reconquista e da
independncia. De tal maneira o trfico se converteu no modo prprio
de expandir suas atividades que Portugal, embriagado de
imprevidncia, abandonou a cultura do trigo, para adquiri-lo em
mercados estrangeiros, a melhor preo do que o produzido em seus
vales.46 Uma trajetria sem interrupo, iniciada com as exportaes
para Flandres, Inglaterra e Mediterrneo, culmina nas grandes
navegaes. "A maior parte da populao portuguesa na Idade Mdia vivia
da agricultura. Exato. No obstante, o trao caracterstico da vida
econmica no dado pela explorao do solo. A atividade comercial e
martima que resultou da modalidade do povoamento da costa e da
explorao do mar que representa o elemento decisivo que define o
gnero de vida nacional portugus baseado na pesca, na salinao e nas
trocas dos produtos comerciveis da terra. Graas ao desenvolvimento
do trfico ocenico, os mercadores portugueses puderam desde muito
cedo estabelecer estreitas e cordiais relaes com a Flandres."47
Entre o comrcio medieval, de trocas costeiras, e o comrcio moderno,
com as navegaes longas, h o aparecimento da burguesia desvinculada
da terra, capaz de financiar a mercancia. H, sobretudo, o
aparecimento de um rgo
36. centralizador, dirigente, que conduz as operaes comerciais,
como empresa sua: o prncipe. Nenhuma explorao industrial e
comercial est isenta de seu controle guarda, todavia, para seu
comando imediato os setores mais lucrativos, que concede,
privilegia e autoriza burguesia nascente, presa, desde o bero, s
rdeas douradas da Coroa. As outorgas de atividades, dispersas e
tmidas, ganham relevo com as grandes viagens, com os reis senhores
incontestveis dos mares e das rotas abertas na frica, sia e Amrica.
O Estado torna-se uma empresa do prncipe, que intervm em tudo,
empresrio audacioso, exposto a muitos riscos por amor riqueza e
glria: empresa de paz e empresa de guerra.48 Esto lanadas as bases
do capitalismo de Estado, politicamente condicionado, que
floresceria ideologicamente no mercantilismo, doutrina, em
Portugal, s reconhecida por emprstimo, sufocada a burguesia, na sua
armadura mental, pela supremacia da Coroa. A camada dirigente, com
o rei no primeiro plano, o futuro rgio mercador da pimenta, dever
ao comrcio seu papel de comando, sua supremacia, sua grandeza. A
estrutura patrimonial levar, porm, estabilizao da economia, embora
com maior flexibilidade do que o feudalismo. Ela permitir a expanso
do capitalismo comercial, far do Estado uma gigantesca empresa de
trfico, mas impedir o capitalismo industrial.49 Quando o
capitalismo brotar, quebrando com violncia a casca exterior do
feudalismo, que o prepara no artesanato, no encontrar, no
patrimonialismo, as condies propcias de desenvolvimento. O trnsito,
a compra e venda, o transporte, o financiamento ensejaro o
gigantismo dos rgos de troca, com o precrio enriquecimento da
burguesia, reduzida ao papel de intermediria entre as outras naes.
A atividade industrial, quando emerge, decorre de estmulos,
favores, privilgios, sem que a empresa individual, baseada
racionalmente no clculo, inclume s intervenes governamentais, ganhe
incremento autnomo. Comanda- a um impulso comercial e uma
finalidade especulativa, alheadores das liberdades econmicas, sobre
as quais assenta a revoluo industrial. Da se geram conseqncias
econmicas e efeitos polticos, que se
37. prolongam no sculo XX, nos nossos dias. Os pases revolvidos
pelo feudalismo, s eles, na Europa e na sia, expandiram uma
economia capitalista, de molde industrial. A Inglaterra, com seus
prolongamentos dos Estados Unidos, Canad e Austrlia, a Frana, a
Alemanha e o Japo lograram, por caminhos diferentes, mas sob o
mesmo fundamento, desenvolver e adotar o sistema capitalista,
integrando nele a sociedade e o Estado. A Pennsula Ibrica, com suas
floraes coloniais, os demais pases desprovidos de razes feudais,
inclusive os do mundo antigo, no conheceram as relaes capitalistas,
na sua expresso industrial, ntegra. A coincidncia flagrante e,
vista da perspectiva desta ltima metade do sculo XX, ser capaz de
provocar a reviso da tese de Max Weber, que vinculou o esprito
capitalista tica calvinista.50 Entre coincidncia e causalidade h,
certo, um caminho a percorrer, longo caminho de muitas pesquisas,
laboriosas investigaes e hipteses ousadas. Guerra, quadro
administrativo, comrcio, a supremacia do prncipe quatro elementos
da moldura do mundo social e poltico de Portugal. Dentro do quadro,
h um drama que precipitar a emergncia de uma estrutura permanente,
viva no Brasil, fixada na queda de uma dinastia, consolidada numa
batalha, amadurecida com a expedio de Ceuta (1415).
38. C A P T U L O I I A REVOLUO PORTUGUESA 1. Preliminares da
revoluo de 1383-85: a nobreza, a burguesia e dom Fernando 2. A
Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a tutela do rei 3. O
estamento: camada que comanda a economia, junto ao rei 4. Da
aventura ultramarina ao capitalismo de Estado 5. A ideologia do
estamento: mercantilismo, cincia e direito
39. 1 A OBRA DA CONSOLIDAO da monarquia portuguesa,
condicionada pelo capitalismo poltico1, chegar ao seu ponto
culminante por meio de uma revoluo, a mais profunda e a mais
permanente de todas as revolues que varreram a histria do pequeno
reino. Preparam-na causas remotas e acidentes prximos, todos
conjugados para a abertura de uma nova idade, a stima idade "na
qual se levantou outro mundo novo, e nova gerao de gentes", na
palavra proftica do cronista.2 Na segunda metade do sculo XIV, uma
velha camada, a aristocracia territorial, subitamente fortalecida,
procurava afirmar, com exclusividade, seu domnio poltico. De outro
lado, a categoria mais rica, a burguesia comercial, longamente
associada Coroa, sabia que sua hora havia soado, a hora de juntar
riqueza o poder poltico. O dilaceramento das duas faces, ao ameaar
a prpria existncia da nao, provocou uma guerra externa, expresso de
uma tenaz, porfiada e autntica luta intestina. Perece uma dinastia,
a dinastia afonsina, filha da infncia do reino; em seu lugar,
ergue-se a gloriosa dinastia de Avis (1385-1580), plataforma social
e poltica da conquista do mundo desconhecido pelas audaciosas naus
de Vasco da Gama. Nasce, assistida pela violncia, pelo dissdio,
pela guerra, a nao pica de Os Lusadas, sonho de curta durao,
meterico, que deixou, na sua cauda de luz, uma constelao ainda
ntegra. As bases da revoluo comearam a ser lanadas com o movimento
que aproxima, uma de outras, as populaes do litoral, com a abertura
do comrcio martimo, primeiro com produtos agrcolas, depois com a
pesca e o sal. H, nessa caminhada, uma longa histria, j ardente no
domnio dos sarracenos na Pennsula os portugueses sucederam ao
comrcio rabe, que j havia definido a vocao martima do pas, vocao
geograficamente condicionada na convergncia atlntica da terra.
Morabes e muulmanos preparam, com o trfico pelo mar, a jornada
ultramarina e a grandeza de uma camada popular, a burguesia
comercial. Documentos do sculo XII
40. demonstram que, na concesso de privilgios para os oficiais
de navios e nas mercadorias reexportadas, persistia uma atividade
antiga, rapidamente em expanso aps a reconquista. Em consonncia com
a realidade econmica, as instituies se renovam, permitindo o
florescimento das suas virtualidades. s camadas privilegiadas
nobreza e clero se contrape a ascenso popular, protegida pelas
comunas, que crescem, na Europa medieval, dentro de um contexto
geral, s ideologicamente filiado s tradies romanas. A fixao da
monarquia portuguesa, contemporaneamente revoluo comunal europia,
teve efeito acelerador nas garantias e privilgios dos concelhos no
princpio ilhas de liberdade dentro da armadura aristocrtica. "Ao
findar o sculo XIII, malgrado as discrdias das classes, mal
sujeitas a um cetro ainda vacilante, sente-se que a nao est de p.
Fica povoada a costa de norte a sul e formado o gnero de vida
nacional pelo comrcio martimo com base na agricultura. Os homens
bons e a arraia-mida dos concelhos, a peonagem que to brilhantes
provas deu nas Novas de Tolosa, formam ao lado do monarca, ao qual
apiam nas tentativas de unificar as classes, sob o imprio da mesma
lei. A prpria lngua portuguesa, o rude mas saboroso romance
medieval, por influncia dessas classes urbanas, sai definitivamente
do latim e balbucia, atravs dos documentos oficiais, a soberania e
a unificao da grei. E j nas guas da beira-mar, nas viagens de pesca
ao longo dos litorais ou de longo curso a pases distantes, uma
gente nova e audaz ala sobre as esbeltas caravelas a rmige das
latinas."3 O Porto, que busca o lugar de metrpole social do reino,
por meio de um burgus, ousa firmar o primeiro tratado de comrcio
com a Inglaterra, em nome dos mercadores, marinheiros e
pescadores.4 E o litoral, so as cidades que anseiam pelo comando da
poltica comercial, modificando, com a presena de suas instituies,
as relaes sociais do campo. O comrcio de trnsito, abraando a
Europa, est prximo da plena maturidade. Lisboa seria o teatro da
nova era, projetada sobre o mar e sobre o mundo. Nos meados do
sculo XIV entram a ferver as causas prximas da
41. grande revoluo, da gloriosa revoluo que completou e
aperfeioou o reino. Um acidente prepara-lhe o nimo popular,
conturbado com as conseqncias sociais e econmicas da grande peste
de 1348. Provavelmente pereceu um tero da populao, atingida sem
nenhum meio de defesa, seno a splica ao cu.5 No campo,
alteraram-se, de imediato, as relaes de trabalho e de riqueza: ao
lado da escassez de servidores, os jornaleiros, dizimados em maior
nmero pelo flagelo, as heranas, avolumando-se em poucas mos, em
virtude de muitos proprietrios desaparecidos, enriqueceram pessoas
que, desse modo, aumentaram seu patrimnio ou abandonaram a condio
servil. A no- breza, assentada sobre os bens rsticos, encontrou-se
sem trabalhadores, ao tempo que novos proprietrios, at ento
jornaleiros, pretendiam a ela se equiparar na ociosidade, padro
visvel do alto estado. "O leitor de agora, conhecedor da lei que
relaciona os preos com a intensidade da oferta e da procura, prev
facilmente o que veio a dar-se: uma revoluo nos salrios. Faltavam
obreiros para o trafegar das glebas, e fugia-se a servir pela paga
antiga. De a se origina o conflito econmico entre a classe dos
empregadores e a dos jornaleiros estes exigindo maior estipndio, ou
buscando profisso de seu maior agrado, aqueles esforando-se por
obrigar os 'vis' a servirem por soldada que lhes impunha a lei."6
Afonso IV, para remediar os graves inconvenientes do conflito, que
percutiam imediatamente na produo agrcola, expediu aos concelhos a
circular de 3 de julho de 1349. Justificou a medida com o
conhecimento da denncia, chegada aos seus reais ouvidos, de que
homens que antes da peste se ocupavam no servio alheio, agora,
convertidos em herdeiros, se tinham em to grande conta, ao ponto de
abandonar e desprezar a vida antiga. Outros, explica o monarca,
empregados no trabalho rural, exigiam, fiados na escassez de
mo-de-obra, tal preo para seus servios que os proprietrios,
vergados com tais despesas, abandonam as culturas e os rebanhos.
Ordena que os concelhos nomeiem dois rbitros, escolhidos entre os
homens bons, burgueses aliados aos nobres, no momento, em
conseqncia de interesses comuns, para que arrolem as pessoas
42. capazes de exercer algum ofcio ou em condies de trabalhar
para outrem, com a incluso daqueles que, antes do flagelo, estavam
nesses casos e agora se recusavam a prestar seu trabalho. Todas as
pessoas cadastradas seriam obrigadas a continuar nos seus misteres
ou noutros em que o concelho lhes reconhecesse capacidade, mediante
o salrio que lhes taxasse. A excluso do arrolamento se poderia
fazer, mediante prova da qualidade da pessoa e do valor dos bens,
circunstncias que, reconhecidas, permitiam o emprego no trato da
mercancia, lavoura ou outra ocupao mais nobre. Aos recalcitrantes
sobravam aoites, multas e degredo, penas impostas pelos juizes
municipais, prevista uma recompensa aos acusadores. Conquistava a
burguesia urbana, com a lei draconiana, um poderoso aliado no
campo, at ento fechado solidariedade. O povo mido do interior,
amargurado e ressentido, transformado em servo da gleba, estaria,
da por diante, espera de um aceno para vingar o agravo imposto no
muramento ascenso econmica e social. A nobreza e os demais
proprietrios rurais, apertando rudemente a tampa da panela,
acumulavam o vapor da exploso. O bloco rural, soldado pela tradio
secular, abria a primeira fenda por onde se infiltraria o predomnio
da burguesia urbana, sob o futuro estandarte do Mestre de Avis. Na
confluncia destes caudais, alimentados de velhas guas e de guas
novas, guas turvas e guas claras, sobe ao trono dom Fernando I
(1367-83). A obra do aperfeioamento do reino, todavia, comeada com
o primeiro rei, se completar sob a vigilncia de outras mos, mais
astutas, destras c enrgicas. A poltica do ltimo rei da dinastia
fundadora da monarquia, dilacerada numa crise que ameaava sepultar
a prpria independncia, no chegou a corporificar uma doutrina de
transao. Retrata-se na atarefada preocupao de atender reivindicaes
contrrias, cada uma medida da presso, da burguesia e da nobreza. O
"mancebo valente, ledo, enamorado, amador de mulheres e muito amigo
de se chegar a elas" no encontrou uma sociedade unida. O setor
rural vivia a guerra civil latente, perigosamente aprestada para o
desenlace sangrento. No obstante, tal
43. a vivacidade da economia comercial, nenhum rei antes dele
foi mais rico, tamanhos os tesouros que seus pais e avs juntaram.
Os direitos reais, que definem a apropriao de renda dos negcios,
enchiam as arcas, fluindo das alfndegas. O chefe do Estado
desempenhava as funes de banqueiro da nao, scio e animador das
exportaes. "E no vos admireis" adverte o cronista "de isto ser
assim e muito mais, porque os reis antes de ele tinham tal
procedimento com o povo, sentindo-o por seu servio e proveito, que
era foroso serem todos ricos e os reis terem grandes e grossas
rendas. Porque eles emprestavam sobre fiana dinheiro aos que
queriam carregar, e tinham, duas vezes no ano, dzima do retorno que
lhes vinha; e visto o que cada um ganhava, deixava logo a dzima do
ganho em comeo de pagamento. E assim, sem sentirem, pagavam a pouco
e pouco e eles ficavam ricos e el-rei recuperava todo o seu. "Havia
tambm em Lisboa residentes de muitas terras, no em uma s casa, mas
em muitas casas cada uma de sua nao, assim como genoveses e
prazentins e lombardos e catales de Arago e de Meiorca e milaneses
e corsins e biscainhos e outros de outras naes a quem os reis davam
privilgios e liberdades, sentindo-o de seu servio e proveito. Estes
faziam vir e expediam do reino grandes e grossas mercadorias, a
ponto que, fora as outras cousas que nesta cidade podiam
abundantemente carregar, s de vinhos achando-se um ano em que se
carregaram doze mil tonis, alm dos que levaram depois os navios no
segundo carregamento de maro. E para tanto vinham de diversas
partes muitos navios a Lisboa, de guisa que, contando aqueles que
vinham de fora e os que havia no reino, jaziam muitas vezes diante
da cidade quatrocentos e quinhentos navios de carga, e estavam
carga no rio de Sacavm, e na ponte de Montijo, da parte do
Ribatejo, sessenta e setenta navios em cada lugar, carregando sal e
vinhos. [...] El-rei D. Fernando no comprava para carregar nenhuma
daquelas cousas que os mercadores compram, e de que habitualmente
vivem, s possuindo as que auferia dos seus direitos reais. E se
alguns mercadores queriam encarregar-se de lhe trazer de fora de
seus reinos as cousas de que
44. precisava para seus armazns, no carregava ele prprio
nenhuma delas, dizendo que o seu desejo era que os mercadores de
sua terra fossem ricos e abastados, e no fazer-lhes cousas que
fosse em seu prejuzo e abaixamento de sua honra. E por isso mandava
que nenhum residente estrangeiro comprasse por si nem por outrem,
fora da cidade de Lisboa, nenhum haver, grande nem pequeno, a no
ser para seu prprio mantimento, exceto vinhos, fruta e sal. Mas nos
mercados da cidade podiam comprar livremente, para carregar,
quaisquer mercadorias. "A nenhum senhor, nem fidalgo, nem clrigo,
nem outra pessoa poderosa, consentia que comprasse qualquer
mercadoria para revender, porquanto tirariam dessa forma o modo de
vida aos mercadores da sua terra, dizendo que parecia contra razo
que tais pessoas tivessem atividades que lhes eram pouco prprias,
tanto mais que isso lhes era proibido por direito." (Crnica de
el-rei dom Fernando.) O jovem rei encontrava um pas rico e, na rea
mais ativa, prspero, embora minado no campo. O cronista d relevo ao
comrcio de produtos nativos vinhos, sal e frutas indicando
palidamente o comrcio de trnsito, perceptvel na presena de
numerosas naus e de muitos estrangeiros. O caminho da poltica
nacional estaria esboado, se um soberano pudesse conduzi-la
livremente. Pelo incremento do comrcio alcanaria o reino a
prosperidade, suplantando as dificuldades agrcolas. As guerras com
Castela, tradicionalmente sustentadas pelos squitos militares da
nobreza, fortaleceram esta camada, que urgia por pagamentos e
dinheiro para a empresa, vista como obra insensata pela opinio
pblica, opinio pblica j ntida e predominantemente de cor burguesa.
Duas correntes opostas mostram-se at nos conselhos do rei, depois
de percorrerem as praas e os solares. "Uma, a pre- dominante porque
era a que se conformava mais com o gnio extravagante, verstil e
descuidado do rei, impelia s cegas o governo do pas, para o caminho
das aventuras; a outra, pelo contrrio, quando o soberano ou os
conselheiros mais aceitos no lhe embargavam o curso, introduzia
leis que deviam favorecer o comrcio, reprimir a insolncia
45. dos poderosos, prover sobre o desenvolvimento da
agricultura, ou produzir outros benefcios. Mas os desatinos do
soberano anulavam em grande parte o que havia de bom nessas
reformas."7 Atrs das medidas legislativas, das censuras da opinio e
dos conselhos polticos, havia a causa do mal-estar do reino,
corporificada no poderio crescente da nobreza. A turbulenta poltica
exterior levou ao dramtico e sbito esgotamento do outrora opulento
tesouro real. A penria sugeriu ao rei, mais imprevidente que
prdigo, a doao nobreza em ressarcimento s quantias atrasadas de
terras da Coroa. O reino na concepo patrimonialista do Estado terra
do rei, que a podia doar apesar das resistncias, ainda difusas, de
diversa doutrina, empenhada em preservar a incolumidade da riqueza
monrquica. De outro lado, ferido com a malquerena da burguesia, o
soberano ainda mais se extremava nas simpatias nobreza, desejoso de
lhe ganhar o apoio e a adeso. Sob a presso deste impulso o
reequilbrio de uma aliana tradicionalmente comprometida as doaes de
vilas e herdades passaram a se fazer com a transferncia da
jurisdio, em recuo a uma trilha j consagrada. O povo a burguesia
comercial reclamava, nas Cortes (1372), contra a poltica retrgrada:
queria que a "justia no tivesse senhores", que o monarca
reservasse, para si, "a maior justia".8 Temia-se sempre o mesmo
receio o retorno a normas de cunho feudal, tidas como
definitivamente afastadas. A outra corrente, antiaristocrtica,
permaneceu coesa, capaz de levar o rei, joguete merc de abalos
contrrios, ao estabelecimento de regras e normas, convenientes ao
comrcio. A aguda crise agrria, que no amainou com as drsticas
medidas de Afonso IV, inspirou a Fernando a clebre Lei das
Sesmarias (possivelmente de 1375), ditada pela sugesto das Cortes,
nas quais era saliente a influncia burguesa. Diga-se, em parntese,
que a burguesia, assenhoreando-se da administrao municipal,
preponderante sobretudo em Lisboa e no Porto, tinha voz nas Cortes,
s quais concorriam seus delegados e procuradores. A lei, depois
incorporada s Ordenaes Afonsinas, guarda, na verdade, matiz
duplo,
46. nem burgus nem aristocrtico. Ser, ao no aderir aos
interesses do proprietrio agrcola, uma vitria burguesa, sem
representar um desprestgio da nobreza. Lei de compromisso inexeqvel
seno com um governo novo, liberto dos impedimentos das travas de
uma faco a outra. Somente depois da revoluo de 1383-85, tentou-se
execut-la, claudicantemente, agora na sua feio antiaristocrtica. A
escassez de mantimentos, sobretudo de trigo e cevada, levou aos
dois meios para alcanar o objetivo: obrigando ao cultivo das terras
e constrangendo os lavradores ao trabalho agrcola dupla coao, que
atingia, numa ponta, o proprietrio. "Mandou que todos os que
tivessem herdades prprias e emprazadas ou por outro qualquer ttulo,
fossem constrangi- dos a lavr-las e seme-las. [...] E que fosse
fixado tempo conveniente, aos que houvessem de lavrar, para
comearem a aproveitar as terras, debaixo de certas penas. E quando
os donos das herdades as no aproveitassem nem dessem a aproveitar,
a justia as entregasse por certa importncia a quem as lavrasse,
deixando o seu dono de receber a respectiva renda, que deveria ser
despendida em proveito comum da terra onde estivessem essas
herdades. [...] E que todos os que eram ou costumavam ser
lavradores, assim como os filhos e netos de lavradores, e quaisquer
outros que em vilas ou cidades ou fora delas morassem, usando de
ofcio que no fosse to proveitoso ao bem comum como era o ofcio da
lavra, fossem constrangidos a lavrar, salvo se tivessem de seu
valor quinhentas libras, que seriam umas cem dobras. E se no
possussem herdades suas, lhes fizessem dar das outras para se
aproveitarem, ou vivessem por soldadas com os que houvessem de
lavrar, fixando-se-lhes soldada justa. [...] Outrossim mandava que
todos os que se achassem a vadiar, intitulando-se escudeiros e moos
de el-rei ou da rainha e dos infantes e de quaisquer outros
senhores e no fossem notoriamente conhecidos como tais ou
mostrassem certido de como andavam em servio daqueles de quem se
diziam, fossem logo presos e postos a bom recado pela justia dos
lugares onde andassem, e constrangidos a servir na lavoura e em
outra cousa." (Crnica de el-rei dom Fernando.) No parou a, nessa
difusa lei,
47. o impulso burgus, ao qual cedeu o hesitante e fraco dom
Fernando. Duas medidas favoreceram diretamente o comrcio martimo,
em benefcio dos armadores: os privilgios concedidos "aos
mercadores, moradores e vizinhos de Lisboa", para o fomento da
construo de navios e a genial criao dos seguros martimos (1383). O
primeiro expediente tem algum cunho nacionalista "melhor seria se o
lucro que os navios estrangeiros recebiam dos fretes fosse recebido
pelos seus naturais". (Crnica.) O segundo visava ao estabelecimento
"de uma associao de todos os donos das naus, pela qual tais perdas
se remediassem e seus donos no cassem em spera pobreza". (Idem.)
Parece certo que, entrado o ltimo quartel do sculo XIV, o comrcio
martimo se sentia capaz de, pelos prprios recursos, explorar as
vantagens do trnsito, associando-se e vinculando-se solidariamente.
A chusma de aventureiros internacionais, sucede um grupo em vias de
organizao, vido de se apropriar dos lucros at ento dispersos,
pulverizados, migratrios. Malgrado todas as concesses, dom Fernando
se identificava, aos olhos do povo e da burguesia comercial, a um
soberano vendido nobreza. Ferno Lopes alude com freqncia ao
mal-estar da populao urbana, fixado sobretudo no repdio ao
casamento com dona Leonor Teles, "loua e elegante e de bom corpo",
sem acrescentar igual veemncia de sentimento por parte da nobreza.
O protesto teria fundamento, obscuramente, inarticuladamente, na
aproximao da futura rainha faco da nobreza mais ciosa de seus
privilgios, inclinada aliana espanhola, cuja coroa era propcia
permanncia das conquistas sociais da aristocracia. Esta a linha
final da dissenso, mal prevista, ainda no campo das probabilidades
remotas: a entrega do reino tutela castelhana, permanente ameaa,
instaurada no primeiro dia da independncia. Pela autono