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O MUNDO 31 Quinta-feira, 28 de julho de 2011 O GLOBO Logo A PÁGINA MÓVEL Paraísos artificiais A morte de Amy Winehouse sob a ótica de uma análise histórica da relação arte/drogas E m que medida as drogas e o álcool — que, no universo da arte, matam uns, se- quelam outros e deixam uma minoria ilesa — influenciam seu processo criativo? De que forma as obras são forjadas pelo seu uso? Sem as drogas, alcançariam o mesmo resultado, um resultado “diferente” ou resultado algum? Cada caso é um caso? Depende da droga? Do artista? Da época? Perguntas como essas voltam à tona com a morte de Amy Winehouse, cuja carreira foi tão marcada pelo vício quanto pela arte. Aqui, um músico, um jornalista e uma curadora de artes plásticas portuguesa jogam luzes históricas e comportamentais sobre o já clássico assunto. (Arnaldo Bloch) Heitor Pitombo Dizem que as mortes de Brian Jones, Jim Morrison, Jimi Hendrix e Amy Winehouse foram deliberadamen- te provocadas pelo consumo de drogas. Ora... Cobain se encheu de Valium e heroína mas só morreu mesmo porque se suicidou com um tiro. Joplin aplicou uma dose de heroína cuja concentração, acidentalmente, estava muito acima do normal. Hendrix tomou barbi- túricos e deu o azar de passar mal e engolir o próprio vômito. O caso de Amy foi outro, seja qual for o re- sultado da autópsia. A cantora teve a maior parte de sua carreira pautada nos episódios em que expunha sua decadência física. Com tanto espaço dado pela mí- dia para tais efeitos, e com o próprio tempo que ela dedicou ao uso de drogas —, a música, principalmente depois do sucesso de “Back to Black”, acabou ficando em segundo plano. Dizer que Amy está em pé de igualdade com can- toras seminais da soul music e do jazz, como Aretha Franklin, Nina Simone, Etta James e Dinah Washington, é um baita exagero. Ela, no máximo, reciclou o estilo, que andava em baixa. A vivência com as drogas in- fluenciou as letras de suas canções, mas não abriu por- tas para novos caminhos musicais. Artistas como Amy vivem em tempos nos quais as drogas, efetivamente, encaretaram a música. Mas nem sempre foi assim. A heroína, apesar do efeito letal que trouxe para uma enorme gama de jazzistas entre os anos 1940 e 1960, serviu de combus- tível para o som que faziam. Se os picos na veia não ajudaram Charlie Parker a ser mais genial e revolucionário do que já era, dado ao seu estado avançado de dependência, discos como o genial “Jazz at the Massey Hall” jamais poderiam ter sido gra- vados não fosse pelo efeito apaziguador da droga. Se Miles Davis morreu por conta da ob- sessão por heroína, ela fazia parte do ambiente que desper- tou no trompetista as ideias que o levariam a criar, nos anos 1950, o cool jazz. A extensão vocal de Billie Holiday, por con- ta do consumo de drogas, foi diminuindo. Mas é jus- tamente em um de seus últimos e melhores discos, “Lady in Satin”, que ela conseguiu se valer de suas li- mitações técnicas para impostar a voz de um jeito que mesclava fragilidade física e desenvoltura emocional. Na década de 1960, o LSD e o psicodelismo muda- ram a história do rock. “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles, seria um disco completamen- te diferente se John e George não tivessem experimen- tado ácido em 1965. A influência da substância no pro- cesso criativo e nas paisagens descritas é inegável. Os happenings que balançaram a Swinging London em 1967 — onde o LSD era recomendado aos seus fre- qüentadores — fomentaram um novo som que rom- peu as amarras que a música pop tinha com fórmulas mais antigas. Eventos como o 14 Hour Technicolor Dream Extravaganza ajudaram o Pink Floyd a formatar o seu som. Com o andar dos anos 1970, a energia cria- tiva motivada pelo LSD foi sendo substituída pela ari- dez artística da cocaína, que por conta da natureza de seu consumo — em que carreiras são cheiradas se- guidamente — roubou o tempo antes dedicado ao flu- xo criativo. Existe coisa mais careta do que Elis Regina ter desperdiçado sua vida com uma substância que não trouxe nada para a sua música? HEITOR PITOMBO é músico e jornalista da Revista de História da Biblioteca Nacional Marta Mestre Não existe uma categoria estética para a arte pro- duzida sob efeito de drogas. Poucos são os estudos acadêmicos sobre a matéria. Mas existe uma estética dos estados alterados da percepção na contempora- neidade, que ganha terreno em exposições recentes, do New Museum, em Nova York, ao Palais de Tokyo, em Paris. A apreciação que hoje fazemos destas cria- ções não passa tanto pelo valor intrínseco das obras produzidas, nem pelas histórias de vida dos seus cria- dores. Os artistas sempre buscaram um elixir da cria- tividade. Foi, portanto, o nosso olhar que se abriu a novas categorias estéticas, a objetos, gestos e imagens considerados interditos no mundo da arte, tais como o sonho, o inconsciente, o transe, o informe, o irracional, o prosaico, o disléxico etc. O primeiro relato de que alguém poderá sair mais compensado artisticamente por experimentar drogas é feito pelo crítico da “arte pela arte” Théophile Gautier que em 1843 descreve uma “terrível urgência” em de- senhar depois de ter fumado maconha. Baudelaire de “Os Paraísos Artificiais” é central para entender a ex- periência subjetiva das drogas e do álcool, influencian- do todos a seguir, dos simbolistas aos surrealistas, da vanguarda à beat . Pintores ingleses como William Blake ou John Martin abrem as portas a mundos visionários e apocalípticos — cujas composições formais a New Age recupera mais tarde —, considerados vulgares na Academia, mas enfáticos junto do público. Facilitadores do autoconhecimento ou desbloquea- dores de impasses criativos, os alucinógenos, a hipno- se, a livre associação de ideias, a mediunidade ou o sonho vão interessar os surrealistas, André Breton, Ro- bert Desnos e Antonin Artaud. A todos invade um “sentimento oceânico da experiência tóxica”, como es- creve Romain Rolland na correspondência a Freud, on- de já figura o “eu” múltiplo, inalcançável, provisório, do qual apenas temos fragmentos. Em Dessin Mescalien do pintor e poeta Henri Mi- chaux, são visíveis os efeitos da mescalina que to- mou nos anos 1950. Herdeiro das experiências sur- realistas, Michaux produz desenhos de “desagrega- ção” e dissolução da forma. Segundo Michaux, “foi como se eu tivesse sido um cão e me tornasse fe- lizmente um homem, uma experiência violenta, sel- vagem, mas vital”. A “aleatoriedade” dos pingos de tinta nas telas de J. Pollock, como via do abstracio- nismo quando a América também começava a ser pop, era muitas vezes produzida sob efeito do ál- cool, razão que levou à sua morte. A beat genera- tion, em especial Brion Gysin autor das dream-ma- chine, alarga o campo artístico a experiências per- formáticas que misturam arte, edição, música, poe- sia baseadas no cut/up e na “deriva”, procedimen- tos que ainda hoje influenciam artistas. Experiências como as de Hé- lio Oiticica parecem só poder ser compreendidas por quem experimentou a aventura psi- codélica. Quando observamos os rascunhos de Newyorkaises percebemos a velocidade de- senfreada de quem confessa a L. Clark estar “sentado em di- namite”. Produzidas nos anos 70, em Manhattan, onde assiste à cultura rock e psicodélica de D. Bowie, e F. Zappa, as “Cos- mococas” se estruturam numa performatividade dependente da alucinação que inclui a in- corporação de psicoativos por parte do público. MARTA MESTRE é pesquisadora e curadora Edmundo Barreiros Mais uma estrela pop se foi, vítima autodestrutiva (“Live fast, die young and leave a beautiful corpse”) do mesmo remédio que ajudou a criar suas personalida- des de sucesso. Receita velha: sexo, drogas e, no caso, R&B — ou, num sentido macro, arte + estados altera- dos de consciência. Morto em 2000, o etnobotânico americano Terence McKeena atribuía as primeiras ma- nifestações espirituais e artísticas a visões provocadas por plantas alucinógenas. Na cultura ocidental cristã elas foram reprimidas durante séculos sob o carimbo de bruxaria, magia, coisa do demônio. Essas plantas fo- ram resgatadas aos poucos. Na Paris do século XIX, Baudelaire e outros embarcaram na moda oriental e redescobriram o haxi- xe. Cantavam odes a essa e de- mais substâncias em obras co- mo “As flores do mal”, ou em jantares regados a THC de seu Clube dos Assassinos (a etimo- logia de “assassino” vem de “ha- xixe”). Eram dândis em busca de novas sensações que forja- vam um estilo à base de viagens de erva, sonhos de ópio e da mais glamurosa bebida de seu tempo: o absinto de escritores e dos pintores impressionistas como Lautrec. Por décadas proibido, o absinto voltou às prateleiras: era “apenas” um ál- cool muito forte. Transgressão sempre rimou com charme entre artistas. Em parte pela proibição, co- mo do álcool nos EUA, que levou à glorificação de gângsteres, rebeldes e revolucionários. O novo intelec- tual ganhava charme com um copo de rum numa das mãos e um charuto em outra, como Hemingway. O caminho da mitificação do artista doidão estava aberto, e ganhou ainda mais força entre os beatniks nos anos 50, com sua literatura e sua música anfetamina- das. Ginsberg e Burroughs falavam sobre uma geração louca que buscava o prazer a qualquer custo. A prosa alucinada de Kerouac ou os solos inacreditáveis de Charlie Parker iam nessa linha. O primeiro enlouque- ceu, o segundo morreu disso, mas os personagens que representaram e seu comportamento sobreviveram: os hippies, sucessores diretos, abraçaram uma droga sin- tética que fez a cabeça de muita gente, o LSD, propa- gandeado pelo guru Timothy Leary, professor de psi- cologia em Harvard, e Ken Casey, autor de “O estranho no ninho”. O cinema explodiu em cores em “Zabriskie Point” e ditou comportamento em “Easy Rider”. Na mú- sica, cadenciou-se o reggae jamaicano com seu ritmo embalado pelos baseados de Bob Marley. No universo pop, brilharam os acordes psicodélicos de Graterful Dead, Cream, Beatles, Hendrix e Janis Joplin, os dois últimos vítimas do estilo de vida que os tornou lendá- rios. Outros renunciaram, para sobreviver. Em meados dos anos 1970, foi a vez de a cocaína vi- rar febre no jet set internacional, consagrada pela cul- tura disco, pelos mega-astros do rock e pela indústria cinematográfica americana. Festas com o pó branco em bandejas de prata eram símbolo bizarro de status des- colado até o fim dos anos 1980, quando os efeitos da droga começaram a levar muita gente para clínicas de recuperação. O glamour, então, mudou de droga. O ec- tasy, o MDMA e outras substâncias sintéticas se expan- diram e se popularizaram com a cultura clubber e as raves dos anos 90. Faziam os usuários dançarem por horas seguidas ao som de batidas e loops hipnóticos, como num ritual tribal. Hoje, há uma variedade e oferta de drogas nunca an- tes vista. De cogumelos vendidos livremente na Holan- da a “ectasy legal” (coquetéis de substâncias não proi- bidas por lei), passando por special K (anestésico para cavalos), skanks superpoderosos, sálvia e drogas arti- ficiais das mais sofisticadas às mais vagabundas e mor- tais como o crack. Os artistas também embarcam nes- sa, e são vistos quase todos os dias entrando e saindo de clínicas psiquiátricas, até o dia do exagero final na dose. Amy é a vítima mais recente disso. Tem também, é verdade, um tal de Keith Richards, que desde os anos 60 experimentou todas as drogas imagináveis e ainda está aí, sem sequelas graves. Mas Richards, claro, jamais poderia ser usado como regra: ele é exceção, provavelmente feita de titânio. EDMUNDO BARREIROS é jornalista e tradutor de Kerouac Na Paris do século XIX, Baudelaire e outros embarcaram na moda oriental e redescobriram o haxixe Foi nosso olhar que se abriu a novas categorias estéticas (...) como o sonho, o inconsciente, o prosaico, o disléxico etc Artistas como Amy Winehouse vivem em tempos nos quais as drogas, efetivamente, encaretaram a música

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O MUNDO ● 31Quinta-feira, 28 de julho de 2011 O GLOBO

O GLOBO ● O MUNDO ● PÁGINA 31 - Edição: 28/07/2011 - Impresso: 27/07/2011 — 21: 12 h AZUL MAGENTA AMARELO PRETO

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Paraísosartificiais

A morte de Amy Winehouse sob a ótica deuma análise histórica da relação arte/drogas

Em que medida as drogas e o álcool — que, no universo da arte, matam uns, se-quelam outros e deixam uma minoria ilesa — influenciam seu processo criativo?De que forma as obras são forjadas pelo seu uso? Sem as drogas, alcançariam omesmo resultado, um resultado “diferente” ou resultado algum? Cada caso é um

caso? Depende da droga? Do artista? Da época? Perguntas como essas voltam à tona coma morte de Amy Winehouse, cuja carreira foi tão marcada pelo vício quanto pela arte.Aqui, um músico, um jornalista e uma curadora de artes plásticas portuguesa jogam luzeshistóricas e comportamentais sobre o já clássico assunto. (Arnaldo Bloch)

Heitor Pitombo

● Dizem que as mortes de Brian Jones, Jim Morrison,Jimi Hendrix e Amy Winehouse foram deliberadamen-te provocadas pelo consumo de drogas. Ora... Cobainse encheu de Valium e heroína mas só morreu mesmoporque se suicidou com um tiro. Joplin aplicou umadose de heroína cuja concentração, acidentalmente,estava muito acima do normal. Hendrix tomou barbi-túricos e deu o azar de passar mal e engolir o própriovômito. O caso de Amy foi outro, seja qual for o re-sultado da autópsia. A cantora teve a maior parte desua carreira pautada nos episódios em que expunhasua decadência física. Com tanto espaço dado pela mí-dia para tais efeitos, e com o próprio tempo que eladedicou ao uso de drogas —, a música, principalmentedepois do sucesso de “Back to Black”, acabou ficandoem segundo plano.

Dizer que Amy está em pé de igualdade com can-toras seminais da soul music e do jazz, como ArethaFranklin, Nina Simone, Etta James e Dinah Washington,é um baita exagero. Ela, no máximo, reciclou o estilo,que andava em baixa. A vivência com as drogas in-fluenciou as letras de suas canções, mas não abriu por-tas para novos caminhos musicais. Artistas como Amyvivem em tempos nos quais as drogas, efetivamente,encaretaram a música.

Mas nem sempre foi assim. Aheroína, apesar do efeito letalque trouxe para uma enormegama de jazzistas entre os anos1940 e 1960, serviu de combus-tível para o som que faziam. Seos picos na veia não ajudaramCharlie Parker a ser mais geniale revolucionário do que já era,dado ao seu estado avançadode dependência, discos como ogenial “Jazz at the Massey Hall”jamais poderiam ter sido gra-vados não fosse pelo efeitoapaziguador da droga. Se MilesDavis morreu por conta da ob-sessão por heroína, ela faziaparte do ambiente que desper-tou no trompetista as ideiasque o levariam a criar, nos anos1950, o cool jazz. A extensãovocal de Billie Holiday, por con-ta do consumo de drogas, foi diminuindo. Mas é jus-tamente em um de seus últimos e melhores discos,“Lady in Satin”, que ela conseguiu se valer de suas li-mitações técnicas para impostar a voz de um jeito quemesclava fragilidade física e desenvoltura emocional.

Na década de 1960, o LSD e o psicodelismo muda-ram a história do rock. “Sgt. Pepper’s Lonely HeartsClub Band”, dos Beatles, seria um disco completamen-te diferente se John e George não tivessem experimen-tado ácido em 1965. A influência da substância no pro-cesso criativo e nas paisagens descritas é inegável. Oshappenings que balançaram a Swinging London em1967 — onde o LSD era recomendado aos seus fre-qüentadores — fomentaram um novo som que rom-peu as amarras que a música pop tinha com fórmulasmais antigas. Eventos como o 14 Hour TechnicolorDream Extravaganza ajudaram o Pink Floyd a formataro seu som. Com o andar dos anos 1970, a energia cria-tiva motivada pelo LSD foi sendo substituída pela ari-dez artística da cocaína, que por conta da natureza deseu consumo — em que carreiras são cheiradas se-guidamente — roubou o tempo antes dedicado ao flu-xo criativo. Existe coisa mais careta do que Elis Reginater desperdiçado sua vida com uma substância quenão trouxe nada para a sua música?

HEITOR PITOMBO é músico e jornalista da Revista deHistória da Biblioteca Nacional

Marta Mestre

● Não existe uma categoria estética para a arte pro-duzida sob efeito de drogas. Poucos são os estudosacadêmicos sobre a matéria. Mas existe uma estéticados estados alterados da percepção na contempora-neidade, que ganha terreno em exposições recentes,do New Museum, em Nova York, ao Palais de Tokyo,em Paris. A apreciação que hoje fazemos destas cria-ções não passa tanto pelo valor intrínseco das obrasproduzidas, nem pelas histórias de vida dos seus cria-dores. Os artistas sempre buscaram um elixir da cria-tividade. Foi, portanto, o nosso olhar que se abriu anovas categorias estéticas, a objetos, gestos e imagensconsiderados interditos no mundo da arte, tais como osonho, o inconsciente, o transe, o informe, o irracional,o prosaico, o disléxico etc.

O primeiro relato de que alguém poderá sair maiscompensado artisticamente por experimentar drogasé feito pelo crítico da “arte pela arte” Théophile Gautierque em 1843 descreve uma “terrível urgência” em de-senhar depois de ter fumado maconha. Baudelaire de“Os Paraísos Artificiais” é central para entender a ex-periência subjetiva das drogas e do álcool, influencian-do todos a seguir, dos simbolistas aos surrealistas, davanguarda à beat. Pintores ingleses como William Blakeou John Martin abrem as portas a mundos visionáriose apocalípticos — cujas composições formais a NewAge recupera mais tarde —, considerados vulgares naAcademia, mas enfáticos junto do público.

Facilitadores do autoconhecimento ou desbloquea-dores de impasses criativos, os alucinógenos, a hipno-se, a livre associação de ideias, a mediunidade ou osonho vão interessar os surrealistas, André Breton, Ro-bert Desnos e Antonin Artaud. A todos invade um“sentimento oceânico da experiência tóxica”, como es-creve Romain Rolland na correspondência a Freud, on-de já figura o “eu” múltiplo, inalcançável, provisório,do qual apenas temos fragmentos.

Em Dessin Mescalien do pintor e poeta Henri Mi-chaux, são visíveis os efeitos da mescalina que to-mou nos anos 1950. Herdeiro das experiências sur-realistas, Michaux produz desenhos de “desagrega-ção” e dissolução da forma. Segundo Michaux, “foicomo se eu tivesse sido um cão e me tornasse fe-lizmente um homem, uma experiência violenta, sel-vagem, mas vital”. A “aleatoriedade” dos pingos detinta nas telas de J. Pollock, como via do abstracio-nismo quando a América também começava a serpop, era muitas vezes produzida sob efeito do ál-cool, razão que levou à sua morte. A beat genera-tion, em especial Brion Gysin autor das dream-ma-chine, alarga o campo artístico a experiências per-formáticas que misturam arte, edição, música, poe-sia baseadas no cut/up e na “deriva”, procedimen-tos que ainda hoje influenciam artistas.

Experiências como as de Hé-lio Oiticica parecem só poderser compreendidas por quemexperimentou a aventura psi-codélica. Quando observamosos rascunhos de Newyorkaisespercebemos a velocidade de-senfreada de quem confessa aL. Clark estar “sentado em di-namite”. Produzidas nos anos70, em Manhattan, onde assisteà cultura rock e psicodélica deD. Bowie, e F. Zappa, as “Cos-mococas” se estruturam numaperformatividade dependenteda alucinação que inclui a in-corporação de psicoativos porparte do público.

MARTA MESTRE é pesquisadora ecuradora

Edmundo Barreiros

● Mais uma estrela pop se foi, vítima autodestrutiva(“Live fast, die young and leave a beautiful corpse”) domesmo remédio que ajudou a criar suas personalida-des de sucesso. Receita velha: sexo, drogas e, no caso,R&B — ou, num sentido macro, arte + estados altera-dos de consciência. Morto em 2000, o etnobotânicoamericano Terence McKeena atribuía as primeiras ma-nifestações espirituais e artísticas a visões provocadaspor plantas alucinógenas. Na cultura ocidental cristãelas foram reprimidas durante séculos sob o carimbode bruxaria, magia, coisa do demônio. Essas plantas fo-ram resgatadas aos poucos. NaParis do século XIX, Baudelairee outros embarcaram na modaoriental e redescobriram o haxi-xe. Cantavam odes a essa e de-mais substâncias em obras co-mo “As flores do mal”, ou emjantares regados a THC de seuClube dos Assassinos (a etimo-logia de “assassino” vem de “ha-xixe”). Eram dândis em buscade novas sensações que forja-vam um estilo à base de viagensde erva, sonhos de ópio e damais glamurosa bebida de seutempo: o absinto de escritores edos pintores impressionistascomo Lautrec. Por décadasproibido, o absinto voltou àsprateleiras: era “apenas” um ál-cool muito forte.

Transgressão sempre rimoucom charme entre artistas. Em parte pela proibição, co-mo do álcool nos EUA, que levou à glorificação degângsteres, rebeldes e revolucionários. O novo intelec-tual ganhava charme com um copo de rum numa dasmãos e um charuto em outra, como Hemingway.

O caminho da mitificação do artista doidão estavaaberto, e ganhou ainda mais força entre os beatniks nosanos 50, com sua literatura e sua música anfetamina-das. Ginsberg e Burroughs falavam sobre uma geraçãolouca que buscava o prazer a qualquer custo. A prosaalucinada de Kerouac ou os solos inacreditáveis deCharlie Parker iam nessa linha. O primeiro enlouque-ceu, o segundo morreu disso, mas os personagens querepresentaram e seu comportamento sobreviveram: oshippies, sucessores diretos, abraçaram uma droga sin-tética que fez a cabeça de muita gente, o LSD, propa-gandeado pelo guru Timothy Leary, professor de psi-cologia em Harvard, e Ken Casey, autor de “O estranhono ninho”. O cinema explodiu em cores em “ZabriskiePoint” e ditou comportamento em “Easy Rider”. Na mú-sica, cadenciou-se o reggae jamaicano com seu ritmoembalado pelos baseados de Bob Marley. No universopop, brilharam os acordes psicodélicos de GraterfulDead, Cream, Beatles, Hendrix e Janis Joplin, os doisúltimos vítimas do estilo de vida que os tornou lendá-rios. Outros renunciaram, para sobreviver.

Em meados dos anos 1970, foi a vez de a cocaína vi-rar febre no jet set internacional, consagrada pela cul-tura disco, pelos mega-astros do rock e pela indústriacinematográfica americana. Festas com o pó branco embandejas de prata eram símbolo bizarro de status des-colado até o fim dos anos 1980, quando os efeitos dadroga começaram a levar muita gente para clínicas derecuperação. O glamour, então, mudou de droga. O ec-tasy, o MDMA e outras substâncias sintéticas se expan-diram e se popularizaram com a cultura clubber e asraves dos anos 90. Faziam os usuários dançarem porhoras seguidas ao som de batidas e loops hipnóticos,como num ritual tribal.

Hoje, há uma variedade e oferta de drogas nunca an-tes vista. De cogumelos vendidos livremente na Holan-da a “ectasy legal” (coquetéis de substâncias não proi-bidas por lei), passando por special K (anestésico paracavalos), skanks superpoderosos, sálvia e drogas arti-ficiais das mais sofisticadas às mais vagabundas e mor-tais como o crack. Os artistas também embarcam nes-sa, e são vistos quase todos os dias entrando e saindode clínicas psiquiátricas, até o dia do exagero final nadose. Amy é a vítima mais recente disso.

Tem também, é verdade, um tal de Keith Richards,que desde os anos 60 experimentou todas as drogasimagináveis e ainda está aí, sem sequelas graves. MasRichards, claro, jamais poderia ser usado como regra:ele é exceção, provavelmente feita de titânio.

EDMUNDO BARREIROS é jornalista e tradutor de Kerouac

“Na Paris doséculo XIX,Baudelaire eoutrosembarcaramna modaoriental eredescobriramo haxixe

“Foi nossoolhar que seabriu a novascategoriasestéticas (...)como o sonho,o inconsciente,o prosaico, odisléxico etc

“Artistas comoAmyWinehousevivem emtempos nosquais asdrogas,efetivamente,encaretaram amúsica