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2014 Curitiba
Coleção CONPEDI/UNICURITIBA
Organizadores
Prof. Dr. oriDes Mezzaroba
Prof. Dr. rayMunDo Juliano rego feitosa
Prof. Dr. VlaDMir oliVeira Da silVeira
Profª. Drª. ViViane Coêlho De séllos-Knoerr
Vol. 30
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: VERDADE, MENÓRIA E JUSTIÇA
Coordenadores
Profª. Drª. saMantha riBeiro Meyer Pflug
Prof. Dr. Marcos augusto MalisKa
2014 Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Nossos Contatos
São Paulo Rua José Bonifácio, n. 209, cj. 603, Centro, São Paulo – SP CEP: 01.003-001 Acesse: www. editoraclassica.com.brRedes Sociais Facebook: http://www.facebook.com/EditoraClassica Twittter: https://twitter.com/EditoraClassica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
Equipe Editorial
EDITORA CLÁSSICA
Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão
Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos
Conselho Editorial
H673Justiça de transição: Verdade, memória e justiça
Coleção Conpedi/Unicuritiba.Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.Coordenadores : Samantha Ribeiro Meyer Pflug / Marcos Augusto Maliska.Título independente - Curitiba - PR . : vol.30 - 1ª ed. Clássica Editora, 2014.383p. :
ISBN 978-85-8433-018-8
1. Direitos humanos. 2. Ditadura. 3. Anistia.I. Título. CDD 320.981
Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica
Editora Responsável: Verônica GottgtroyCapa: Editora Clássica
MEMBROS DA DIRETORIA Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente Aires José Rover
Secretário Executivo Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente) Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
DiagramadorMarcus Souza Rodrigues
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBACentro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................
REFLEXÕES SOBRE O USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA EM FACE DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA(Ana Maria D´Ávila Lopes e Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab) ...............................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
DELIMITAÇÃO CONCEITUAL .....................................................................................................................
FUNDAMENTOS JURÍDICOS .....................................................................................................................
SOBRE A PLAUSIBILIDADE DO USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA NO CURSO DA DITADURA CIVIL-MILITAR .....................................................................................................................................................
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
AUTORITARISMO: A RELAÇÃO ENTRE OS MILITARES E OS JUÍZES DURANTE O REGIME INSTALADO EM 1964 (Grijalbo Fernandes Coutinho) ....................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
GOLPE MILITAR DE 1964 NO BRASIL E O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO ...............................................
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE CONFIANÇA DO REGIME E JUSTIÇA MILITAR DOS MILITARES .....
PARADIGMA LIBERAL POSITIVISTA DO DIREITO E O CONSERVADORISMO DA MAGISTRATURA .........
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEI DE ANISTIA E DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL (Gabriela Natacha Bechara) ........................................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
A ANISTIA E SEUS ANTECEDENTES HISTÓRICOS .....................................................................................
ANISTIA E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ......................................................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NOS REGIMES MILITARES DA AMÉRICA LATINA (Tais Ramos) ...........................................
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................
A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NOS REGIMES MILITARES DA AMÉRICA LATINA ..................................................................
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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NO REGIME MILITAR BRASILEIRO: A EXPERIÊNCIA DA COMISSÃO DE ANISTIA BRASILEIRA E DA COMISSÃO DOS MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS .........................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL: NOTAS SOBRE UM DEBATE NECESSÁRIO PARA O CAMPO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO (Carlos Bolonha e Vicente Rodrigues) ...........................................
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ........................................................................................................................
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO COMO NOVO CAMPO DOS DIREITOS HUMANOS ..........................................
MEMÓRIA E VERDADE: CAMINHOS PROPOSTOS ...................................................................................
DO RECONHECIMENTO DO DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL ........................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
A HERANÇA DA FALTA DE MEMÓRIA E AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS: A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À VERDADE NA AMÉRICA LATINA E NO BRASIL (Daniela de Oliveira Lima Matias e Mayara de Carvalho Araújo) .......................................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
DO TERCEIRO MUNDO AOS REGIMES BUROCRÁTIO-AUTORITÁRIOS NA ERA DOS EXTREMOS ...........
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, MEMÓRIA E VERDADE ....................................................................................
A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E SUA CONDENAÇAO AO ESTADO BRASILEIRO
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
A TORTURA DOS TEMPOS DA DITADURA MILITAR NO BRASIL E A CORRUPÇAO DOS DIAS ATUAIS FRENTE AO DIREITO À VERDADE E À MEMÓRIA (Diana Uchoa Torres Lima e Janaína Alcântara Vilela)
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
A TORTURA NA DITADURA MILITAR ........................................................................................................
CORRUPÇÃO: A TORTURA CONTEMPORÂNEA .......................................................................................
O QUE FICA PARA A SOCIEDADE? .............................................................................................................
O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE .....................................................................................................
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
CONSTITUIÇÃO DA VERDADE: EFEITOS DA MEMÓRIA NO “GRANDE ACORDO” DA TRANSIÇÃO (ARTHUR MAGNO E SILVA GUERRA) ...........................................................................................................
INTRODUÇÃO: MEMÓRIA E HISTÓRIA CONSTITUCIONAL .....................................................................
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A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A “HERANÇA SEM TESTAMENTO” .............................................
EFEITOS DA TRANSIÇÃO NO TEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO ....................................................
CONCLUSÃO PARCIAL ...............................................................................................................................
REFERÊNCIA ..............................................................................................................................................
O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE COMO DIREITOS ESSENCIAIS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS (Andrea Tourinho Pacheco de Miranda e Ezilda Claudia de Melo) ................
A HERMENÊUTICA E A VERDADE: O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS ........................................................................................................................................
MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO ....................................................................................
AS PRIMEIRAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL ......................................
O TRABALHO DA COMISSÃO DA VERDADE .............................................................................................
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA: UMA ANÁLISE SOBRE O PAPEL DAS “COMISSÕES DE VERDADE” NA CONSOLIDAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE E À MEMÓRIA NOS PAÍSES DO MERCOSUL (Fernando Horta Tavares e Larissa Maria da Trindade) ..............
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: AS BASES PARA O PROCESSO TRANSICIONAL .......................
BREVE PANORAMA DOS PROCESSOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NOS PAÍSES DO MERCOSUL ..........
A INSTITUIÇÃO E O PAPEL DAS COMISSÕES NACIONAIS DA VERDADE NA GARANTIA E PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...............................................................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E A LEI DA ANISTIA: SUPERAÇÃO VERSUS ESQUECIMENTO (Luciana Carrilho de Moraes) ......................................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
PANORAMA HISTÓRICO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL ..........................................................
A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E A ANISTIA ....................................................................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA A LEI DE ANISTIA BRASILEIRA E A OBRIGAÇÃO DE INVESTIGAR E PUNIR AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS RATICADAS PELA DITADURA MILITAR NO BRASIL (Samyra Naspolini e Marcio de Sessa) ......................................................................................................................
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INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA DA DECISÃO DA CORTE .............................................................................
COMPETÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA ........................................................................................
LEI DE ANISTIA BRASILEIRA E CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE ...................................................
OBRIGAÇÃO DE INVESTIGAR E PUNIR GRAVES VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS ..............................
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
DITADURA E LUGARES DE MEMÓRIA: AS DIRETRIZES DO MERCOSUL E O DIREITO AO PATRIMÔNIO CULTURAL (Leandro Franklin Gorsdorf) .....................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
MEMÓRIA E DITADURA:DISPUTAS PELA SIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA .................................................
LUGARES DE MEMÓRIA:EM BUSCA DE UM CONCEITO ..........................................................................
LUGARES DE MEMÓRIA COMO EXERCÍCIO DO DIREITO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO ............................
MERCOSUL, DITADURA E DIREITOS HUMANOS .....................................................................................
MERCOSUL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DOS LUGARES DE MEMÓRIA ....................................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
A (DES)CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO AGRÁRIO PELO DITADURA MILITAR BRASILEIRA (GUILHERME MARTINS TEIXEIRA BORGES) .................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
O PANORAMA JURÍDICO AGRARISTA PRÉ ESTATUTO DA TERRA ...........................................................
A NECESSIDADE DE UM ESTATUTO AGRÁRIO .........................................................................................
A DESCONSTRUÇÃO DO ESTATUTO DA TERRA PELOS GOVERNOS MILITARES .....................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERENCIAIS ...........................................................................................................................................
O ABOLICIONISMO BRASILEIRO E A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS LIBERTOS NA LITERATURA (Rafael Henrique Guimarães Teixeira de Freitas) ..................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
A ESCRAVIDÃO NO BRASIL E O ABOLICIONISMO ....................................................................................
A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA ESCRAVIDÃO ...................................
A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA ESCRAVIDÃO SOB A PERSPECTIVA DE JOAQUIM NABUCO ..............................................................................................................................
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CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DE MATO GROSSO E O TRABALHO DA ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE (CDHHT): UM ESTUDO DE CASO (Edna Soares da Silva) ..................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
CONSTITUIÇÃO DO CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE .....................................
VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS ACOMPANHADAS PELO CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE ..............................................................................................................................
A PERCEPÇÃO DOS ATORES DO CENTRO DE DIREITOS HUMANOS HENRIQUE TRINDADE: ANOS OITENTA E NOVENTA ................................................................................................................................
A CATEGORIA DIREITOS HUMANOS: TOLERÂNCIA E RECONHECIMENTO DA DIGNIDADE HUMANA
CONCLUSÃO ..............................................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
ENTRE O PASSADO E O FUTURO: O ATUAL ENFRENTAMENTO DOS CRIMES PERPETRADOS NA DITADURA (Evandro Charles Piza Duarte) .................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
O GOLPE DE 1964 E A DITADURA MILITAR BRASILEIRA ..........................................................................
ADPF 153 E A LEI DA ANISTIA ....................................................................................................................
CRIMES PERMANENTES E A VIRADA ARGUMENTATIVA – UMA ANÁLISE DO CASO SEBASTIÃO CURIÓ...
CONCLUSÃO – SE MEMÓRIA DE UM LADO, ESQUECIMENTO DO OUTRO ............................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA E VITALICIEDADE DOS MINISTROS DO STF: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE ESTUDOS DE OSCAR VILHENA E GERMANO SCHWARTZ (Roberto Carlos Rocha Kayat e Gabriela Vieira Leonardos) .........................................................................................................................
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: 1964/1988 .........................................................................................
A INADEQUAÇÃO DO SISTEMA DE COMPOSIÇÃO E DA VITALICIEDADE DOS MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................
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Caríssimo(a) Associado(a),
Apresento o livro do Grupo de Trabalho Justiça de Transição: Verdade, Memória e
Justiça, do XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em
Direito (CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre
os dias 29 de maio e 1º de junho de 2013.
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,
tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-
nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os
programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.
Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de
programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
Curitiba, inverno de 2013.
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente do CONPEDI
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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Apresentação
A obra “Justiça de transição: verdade, memória e justiça” é fruto do rico debate
ocorrido no grupo de trabalho “Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça” realizado
no dia 31 de maio de 2013 no “XXII Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e
Pós Graduação em Direito” na Universidade Curitiba em Curitiba, Paraná.
Os artigos apresentados no Grupo de Trabalho são dotados de grande qualidade
cientifica e densidade jurídica, e abordam temas importantes e também controvertidos da
justiça de transição, do Conselho Nacional da Verdade e do direito à verdade e à memória
histórica. Vale dizer que o Conselho Nacional de Verdade criado pelo governo brasileiro já
possui um ano de existência e trabalho o que enriqueceu sobremaneira a discussão acerca do
tema.
O debate sobre os artigos e ideias apresentadas foi bastante rico, intenso e proveitoso o
que motivou a criação dessa obra que contempla os textos apresentados no grupo de trabalho,
acrescidos das contribuições oriundas da discussão realizada.
Ana Maria D´Ávila Lopes e Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab abordam em
seu texto, aspecto relevante no tocante à justiça de transição no Brasil, qual seja, o direito de
resistência, mais especificamente a plausibilidade do seu uso em face da ditadura civil-militar
brasileira instaurada em 1964. Já a relação entre os militares e os juízes durante o regime
instalado em 1964 é enfrentada por Grijalbo Fernandes Coutinho. Ele trata da predominante
harmonia existente entre a cúpula da Justiça e o governo dos generais legitimou a prática de
atos cruéis contra militantes de esquerda, trabalhadores, estudantes e personagens moderados
da cena política nacional, indo dos expurgos às torturas, aos desaparecimentos e aos
assassinatos.
No tocante aos antecedentes históricos da lei de anistia e da justiça de transição no
Brasil Gabriela Natacha Bechara analisa detidamente o período histórico que deu origem à
ditadura militar e a lei de anistia brasileira, que por sua vez impactou na efetivação da Justiça
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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de Transição no país. De igual modo Tais Ramos examina a participação social na constituição
da verdade sobre as violações de direitos humanos nos regimes militares da América Latina
considerando o paradigma democrático de inclusão dos cidadãos nos processos de exames e
esclarecimento dos atos de desaparecimentos, sequestros, mortes e torturas, praticados nesses
Regimes.
No que se refere ao direito à memória e à verdade no Brasil Carlos Bolonha e Vicente
Rodrigues investigam o conceito e o reconhecimento do chamado “direito à memória e à
verdade”, identificando-o como um dos elementos-chave da justiça de transição brasileira.
Nesse sentido, Daniela de Oliveira Lima Matias e Mayara de Carvalho Araújo abordam a
herança da falta de memória e as violações de direitos humanos na construção do direito à
verdade na América Latina e no Brasil. Elas analisam a peculiaridade das ditaduras que
fizeram parte da história da América Latina nas décadas de 70 e 80 do século XX e o seu
legado para a realidade atual, em particular a do Brasil.
No tocante à tortura dos tempos da ditadura militar no Brasil Diana Uchoa Torres Lima
e Janaína Alcântara Vilela estudam a tortura instaurada nos tempos da ditadura militar, bem
como demonstram como a corrupção dos dias atuais pode ser tão parecida com a aquela figura
dos anos de chumbo. Destarte, Arthur Magno e Silva Guerra analisam os efeitos da memória
no "grande acordo" da transição. Eles levam a efeito um debate sobre um dos cruciais pontos
de fundamentação teórica e histórica do direito à memória e à verdade no Brasil e a incidência
desses “traumas” e “complexos” no Texto Constitucional que restaura a Democracia,
especialmente, depois das lutas políticas ocorridas, entre os anos de 1964 e 1985, contra a
Ditadura Militar.
O direito à memória e à verdade como direitos essenciais ao processo de
democratização do país são detidamente estudados por Andrea Tourinho Pacheco de Miranda e
Ezilda Claudia de Melo que demonstram a importância da consolidação do direito à memória e
à verdade no processo de democratização do nosso país, como direitos fundamentais, bem
como a instauração da Comissão da Verdade no Brasil, após o período ditatorial, marcado por
graves violações aos direitos humanos.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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O papel das “Comissões de verdade” na consolidação do direito fundamental à verdade
e à memória nos países do MERCOSUL é objeto de um exame detalhado e crítico de Fernando
Horta Tavares e Larissa Maria da Trindade. Já o período ditatorial, especificamente o golpe
militar do ano de 1964 e suas influências, com ênfase nos ideais de Francisco Campos, que,
almejam a instituição de um regime antiliberal, centralizador e autoritário é examinado por
Luciana Carrilho de Moraes.
A decisão da corte interamericana de direitos humanos no caso da guerrilha do
Araguaia a Lei de anistia brasileira e a obrigação de investigar e punir as violações aos direitos
humanos ratificadas pela ditadura militar no Brasil são estudadas por Samyra Naspolini e
Marcio de Sessa. O objeto do artigo é a decisão da Corte em paradigmática sentença proferida
em 24 de novembro de 2010, no caso Lund e outros versus Brasil, a qual condenou o Estado
brasileiro a implementar uma série de medidas com vistas a indenizar os familiares das vítimas
dos fatos ocorridos na Guerrilha do Araguaia e esclarecer e evitar que novos fatos similares
aconteçam.
Outro aspecto relevante da justiça de transição diz respeito aos lugares de memória, tal
tema é enfrentado por Leandro Franklin Gorsdorf que examina as diretrizes do MERCOSUL e
o direito ao patrimônio cultural. Já a (des)construção de um direito agrário pela ditadura militar
brasileira é estudado por Guilherme Martins Teixeira Borges que leva a efeito uma reflexão
sobre as consequências da promulgação do Estatuto da Terra, Lei Federal nº 4504, de 30 de
novembro de 1964 em relação à própria estruturação de um Direito Agrário.
O tema do abolicionismo brasileiro e a identidade constitucional dos negros libertos na
literatura é discutido por Rafael Henrique Guimarães Teixeira de Freitas, que faz uma análise do
abolicionismo e da identidade constitucional dos negros brasileiros no contexto histórico da
proibição da escravidão, sob a perspectiva de Joaquim Nabuco. Os direitos humanos no
estado de Mato Grosso e o trabalho da organização não governamental centro de direitos
humanos Henrique Trindade (CDHHT) criada a partir das articulações do Movimento Popular
em Cuiabá/MT nos anos oitenta, como instrumento mobilizador de luta contra a violação
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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sistemática dos direitos humanos no Estado de Mato Grosso é analisado por Edna Soares da
Silva.
Evandro Charles Piza Duarte estuda o passado e o futuro no atual enfrentamento dos
crimes perpetrados na Ditadura Militar, questionando a interpretação dada à Lei nº 6.683/79,
Lei da Anistia, pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 153.
Por fim, a legitimidade democrática e vitaliciedade dos ministros do STF, sob a ótica
dos estudos de Oscar Vilhena e Germano Schwartz é estudada por Roberto Carlos Rocha Kayat e
Gabriela Vieira Leonardos, com vistas a aferir eventual descompasso entre o decidido pelos
ministros de então e o momento político vivido à época, a refletir grave problema de
legitimidade na atuação da Corte.
Tenho a certeza que a obra será de grande valia para todos aqueles que se interessam
sobre tão relevante tema.
Coordenadores do Grupo de Trabalho
Professora Doutora Samantha Ribeiro Meyer Pflug – UNINOVE
Professor Doutor Marcos Augusto Maliska – UNIBRASIL
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REFLEXÕES SOBRE O USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA EM FACE DA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA
REFLECTIONS ON THE USE OF THE RIGHT OF RESISTANCE IN FACE OF CIVIL-
MILITARY DICTATORSHIP BRAZILIAN
Ana Maria D´Ávila Lopes1 Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab2
RESUMO
O presente trabalho discorrerá sobre o direito de resistência, mais especificamente sobre a plausibilidade do seu uso em face da ditadura civil-militar brasileira instaurada em 1964. Para tanto, foi utilizada pesquisa bibliográfica e documental. Inicialmente, foi apresentada uma delimitação conceitual do direito de resistência, partindo do pensamento de Santo Tomás de Aquino, Maquiavel, Locke e Rousseau. Em seguida, foram comentados alguns dos fundamentos jurídicos – nacionais e internacionais – do direito de resistência. Posteriormente, analisou-se a (possível) plausibilidade do uso do direito de resistência pelos grupos de esquerda durante a ditadura civil-militar brasileira. Ao final, concluiu-se que o direito de resistência teve sua matriz teórica constituída ao longo dos últimos séculos, sempre com o firme propósito de oportunizar defesa à opressão – individual e/ou coletiva - promovida por soberanos, independentemente da forma pela qual alcançaram o poder. Ainda, verificou-se que tanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos estabeleceram parâmetros mínimos para o respaldo da democracia, ou, em caso contrário, para a efetivação do direito de resistência. Igualmente, observou-se a fundamentalidade do direito de resistência, em razão da sua consonância com o regime democrático, os princípios e os tratados de que o Brasil é parte, além da sua relevância como instrumento na construção de uma sociedade livre e justa. Por derradeiro, comprovou-se por razoável o uso do direito de resistência em face da ditadura civil-militar brasileira, especialmente devido à sua inobservância – sistemática e institucional - ao ordenamento jurídico e ao bem comum.
PALAVRAS-CHAVE: Direito de resistência; Ditadura civil; Ditadura militar; Direitos fundamentais; Direitos humanos. ABSTRACT This article will discuss the right of resistance, more specifically about the plausibility of its use against of Brazilian civil-military dictatorship. For this purpose, we used bibliographic and documentary research. Initially, we presented a conceptual delimitation of the right of resistance, from the thought of Machiavelli, Locke and Rousseau. Then, we pointed some of the reviews - 1 Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela Universidadade Federal de Minas Gerais - UFMB. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. 2 Mestra e Doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Professora do Curso de Direito da Faculdade Integrada do Ceará – FIC.
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national and international – of the right of resistance. Subsequently, we analyzed the Brazilian civil-military dictatorship and the (possible) use of the right of resistance to face it. At the end, it was concluded that the right of resistance had its theoretical matrix formed over the past centuries, always with the purpose of defense to create opportunities against oppression - individual and / or conference - sponsored by sovereigns, regardless of the manner in which reached the power. Still, it was found that both Universal Declaration of Human Rights and International Covenant on Civil and Political Rights established minimum standards for the support of democracy, or otherwise, for the realization of the right of resistance. Also, we observed the fundamentality of the right of resistance, due its consonance with the democratic regime, the principles and treaties to which Brazil is a party, in addition to its relevance as a tool in building a free and just society. Finally, it was shown as reasonable the use of the right of resistance against the Brazilian civil-military dictatorship, especially due to its disobey - systematic and institutional – to the legal system and the welfare of the community. KEYWORDS: Right to resistance; Civil dictatorship; Military dictatorship; Fundamental rights. Human rights. INTRODUÇÃO
A outorga de poder ao soberano pressupõe sua observância ao bem comum e ao
ordenamento jurídico vigente. Por este motivo, a sua desobediência - ou mera desconsideração -
permite ações políticas de resistência dos cidadãos, no sentido de coibir as práticas corrompidas
dos seus mandatários.
Ratifica-se, assim, a tese da soberania popular, qual seja, de que o poder é exercido em
nome do povo. Ao príncipe, são outorgados poderes limitados, que, se infringidos, devem ser
realinhados ou – se necessário for – extirpados. Desta feita, pode-se afirmar que a continuidade
do soberano no poder está diretamente vinculada a ideia de obediência aos limites da sua outorga,
sem os quais não há fundamentação, nem legitimidade para o seu exercício.
Nesse contexto, insurgir-se contra um poder arbitrário, não se apresenta como
improvável, tampouco ilegal, na medida em que o fundamento daquela soberania fora rompido
justamente pela não observância do governante aos limites que lhe foram impostos, o que lhe
torna ilegítimo e passível de um enfrentamento formal e/ou fático pelo povo. Eis, portanto, o que
se intitula como direito de resistência.
O presente artigo visa, pois, discorrer, através de pesquisa bibliográfica e documental,
sobre o direito de resistência. Em específico, acerca da plausibilidade dos atos de resistência
implementados por grupos de esquerda durante o período da ditadura civil-militar brasileira
(1964-1985).
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Nesses termos, apresentou-se, no tópico inicial, a delimitação conceitual da expressão
direito de resistência, trazendo-se à lume as primeiras reflexões sobre a sua aplicabilidade,
vinculadas ao âmbito eminentemente individual, para, em seguida, tecer comentários sobre o
pensamento desenvolvido por Santo Tomás de Aquino, Maquiavel, Locke e Rousseau.
No tópico seguinte, foram colacionados os fundamentos jurídicos do direito de
resistência, iniciando-se pelas normas internacionais, tais como o Preâmbulo e artigos 28 e 29, da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), assim como os artigos 4º. e 5º., do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP). Posteriormente, explicitaram-se, também, o
parágrafo 2º., do art. 5º., da Constituição Federal.
Já no terceiro tópico, fez-se um breve arrazoado sobre a origem e os fundamentos
jurídicos da ditadura civil-militar brasileira para, em seguida, discorrer-se sobre a (possível)
plausibilidade dos atos de resistência implementados pelos grupos de esquerda em desfavor
daquele regime de exceção.
Ao final, concluiu-se que o direito de resistência está diretamente ligado à ideia de
soberania, que deve ser exercida em prol do bem comum e em consonância com o ordenamento
jurídico vigente.
Por semelhante modo, observou-se, desde Locke, a existência de uma sistematização –
mesmo que embrionária - do direito de resistência, que teve sua práxis aperfeiçoada através dos
escritos de Rousseau.
Igualmente, verificou-se que o direito de resistência tem seus fundamentos jurídicos
esposados tanto em diplomas internacionais – a exemplo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) – como na
Constituição Federal de 1988.
Ainda, demonstrou-se que as ações políticas promovidas por grupos de esquerda no curso
da ditadura brasileira podem ser caracterizadas como atos inerentes ao direito de resistência, haja
vista que estavam pautados na insurgência ao golpe militar de 1º. de abril de 1964, o qual depôs
o legítimo Presidente João Goulart.
Por derradeiro, explicitou-se que o governo militar não gozava de ilegalidade apenas na
sua origem, mas, sobretudo no seu exercício, o qual era pautado na violência institucionalizada
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em face dos seus próprios cidadãos e na inobservância contínua às normas fundamentais
brasileiras, conforme se explicitará nas linhas seguintes.
1. DELIMITAÇÃO CONCEITUAL
Já no século XIII, Santo Tomás de Aquino (1225-1274), nas obras Suma Teológica,
Regime dos Príncipes e Comentários às Sentenças de Pedro Lombardo, defendeu o direito à
resistência dos súditos em face de um governo tirânico, notadamente quando houvesse defeito no
modo como foi adquirido o poder, exacerbação nas atribuições concedidas ou perigo no exercício
daquele governo para o bem comum.(SANTOS, 2007, p. 49).
É importante esclarecer que – inicialmente - Tomás de Aquino condenava a insurreição
popular, excetuando-se, segundo Santos (2007, p. 54), nos casos em que o soberano não fosse
justo por não promover o bem da coletividade, ocasião em que seria plausível a rebelião em
desfavor do tirano.
Por seu turno, Nicolau Maquiavel (1469-1527), nos idos de 1532, em seu clássico O
Príncipe, Capítulo IX, intitulado Do Principado Civil, descreveu as relações e os embates pelo
poder soberano, nos termos seguintes:
[...] em toda cidade se encontram essas duas tendências opostas: de uma parte, o povo não quer ser comandado nem oprimido pelos poderosos, de outra, os poderosos querem comandar e oprimir o povo; desses dois desejos antagônicos advém das cidades um das três conseqüências: principado, liberdade ou desordem. (MAQUIAVEL, 2010, p. 77)
Malgrado o esboço de Maquiavel seja deveras assemelhado às disputas cotidianas pelo
poder, foi somente com os contratualistas, a começar por John Locke (1632-1704), em sua obra
Dois tratados sobre o governo, que foi sistematizado um pensamento acerca do direito de
resistência. Primeiramente, ao disciplinar os fundamentos do poder soberano:
Todavia, porquanto ao governo, seja em que mãos estiver, o poder foi confiado – conforme demonstrei anteriormente – sob essa condição e para esse fim, que os homens pudessem ter e garantir suas propriedades. (LOCKE,1998, p. 511) (grifo nosso)
Em seguida, Locke clarifica os limites da obediência dos súditos ao soberano, in verbis:
Porém, deve-se observar que ainda que, embora os juramentos de fidelidade e lealdade sejam dirigidos a ele, não o são por ser ele o legislador supremo, mas sim o supremo executor da lei formulado por um poder conjunto dele próprio com outros. Não sendo a fidelidade nada além da obediência segundo a lei, que, quando violada por ele, leva-o a perder todo o direito à obediência, tampouco pode ela exigi-la a não ser como a pessoa pública investida contra o poder da lei, devendo, portanto,ser considerada como a imagem, o espectro ou o representante do corpo político, agindo pela vontade da sociedade, declarada em suas leis. (LOCKE, 1998, p. 520) (grifo nosso)
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E para que não houvesse dúvidas, arrematou: Quando, porém, deixar essa representação, essa vontade política, e passar a agir segundo sua própria vontade particular, degrada-se e não é mais que uma pessoa particular sem poder e sem vontade, sem direito algum à obediência, pois que não devem os membros obediência senão à vontade pública da sociedade. (LOCKE, 1998, p. 520) (grifo nosso)
Observa-se, portanto, que Locke não desconsidera os poderes do soberano, ou quem em
seu nome exerça a soberania, entretanto, estabelece limites para sua implementação, frisando que
a origem de todo poder repousa na vontade pública da sociedade, sem a qual impossível se faz a
governança.
Nessa esteira, merecem ser apresentados, também, os seus comentários sobre quais seriam
as diferenças entre o poder legítimo e ilegítimo, a saber:
Pois reconheço que o ponto principal e essencial de diferença entre um rei legítimo e um tirano usurpador é que enquanto o tirano orgulhoso e ambicioso pensa de fato que seu reino e povo destinam tão somente à satisfação de seus desejos e apetites desarrazoados, o rei justo e legítimo, ao contrário, reconhece ser ordenado para promover a riqueza e a propriedade de seu povo. (LOCKE, 1998, p. 220)
Locke reafirma aqui as obrigações do soberano para com o seu povo, especialmente com
a sua propriedade, diferentemente do poder que venha a ser exercido pelo tirano usurpador. Note-
se que o autor traz à lume não apenas a forma como soberano alcançou o poder, mas também faz
jus ao modo pelo qual se dá o exercício da soberania. Senão vejamos:
No entanto, segundo Locke, o que motivou os homens a celebrarem o contrato social foi o sentimento de estarem correndo perigo em caso de eclosão de algum inesperado conflito. Se a autoridade a quem o povo confiou a tutela dos direitos utilizar de arbítrio, automaticamente retoma ele a sua soberania originária. (...) Perceba-se: para Locke, o governante deveria ter não só legitimidade de investidura (como queria Hobbes), mas também legitimidade de exercício. (ROCHA, 2010, p.34)
Destarte, a soberania que restar pautada na vontade pessoal e nos interesses privados do
governante, pode ser alvo de insurgência popular, haja vista o seu desrespeito ao fundamento do
governo, qual seja, o pacto firmado no bem estar da coletividade, que em Locke, é expressa pelo
resguardo à propriedade.
Em seguida, Rousseau (1712-1778) inicia o seu Contrato Social discorrendo sobre o
direito de resistência, mais especificamente sobre a sua práxis:
Quando um povo é obrigado a obedecer e o faz, age acertadamente; mas logo que possa sacudir esse jugo e o faz, age ainda melhor pois, recuperando sua liberdade pelo mesmo direito com que esta lhe foi roubada, ou ele tem o direito de retomá-la ou não o tinham de subtraí-la. (ROUSSEAU, 2006, p. 214)
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Para o genebrino, o pacto social não suprime a liberdade dos homens em sociedade, mas
promove o seu redimensionamento, passando de liberdade natural em liberdade convencional
(ROCHA, 2010, p.35).
É também Rousseau quem inova ao expor uma proposta de liberdade vinculada à vontade
geral pactuada pelos cidadãos, que se desrespeitada é passível de insubordinação legítima.
Nessa perspectiva, mas em séculos posteriores, Bobbio (2000, p. 253-254) urdirá o seu
entendimento sobre resistência como sendo: “todo comportamento de ruptura contra a ordem
constituída, que coloque em crise o sistema por seu próprio produzir-se, como acontece em um
tumulto, em uma sublevação, em uma rebelião, em uma insurreição, até o caso limite da
revolução (...)”
Por sua vez, Buzanello (2002, p. 22) advoga que o direito de resistência se constitui no
“direito de cada pessoa, grupo organizado, de todo povo, ou de órgãos do Estado, de opor-se com
os meios possíveis, inclusive a força, ao exercício arbitrário e injusto do poder estatal”.
Em tempos modernos, entretanto, notadamente nos regimes caracterizados como
democráticos, há que se sublinhar, consoante o pensamento de Rocha (2010, p. 81), que “(...) não
é qualquer injustiça que autoriza a resistência, mas somente aquelas que criem uma justificativa
capaz de remover o dever de todos para com as instituições democráticas”.
Assim, o autor apregoa que a etapa inicial da resistência deve ser pautada na própria
sobrevivência do Estado democrático, entretanto, em não sendo possível - seja magnitude, seja
pela relevância da injustiça – enseja-se, pois, o direito de resistência em face de quem exerça a
soberania.
Conclui-se, pois, que a tessitura do direito de resistência foi sendo constituída ao longo
dos últimos séculos, sempre com o firme propósito de oportunizar defesa à opressão – individual
e/ou coletiva - promovida por soberanos, independentemente da forma pela qual alcançaram o
poder, mesmo que legítima. De modo que, esta sua inobservância ao ordenamento jurídico e ao
bem-estar coletivo já se constitui como elemento suficiente para o uso do direito de resistência
pelos cidadãos oprimidos.
2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS:
O direito de resistência tem seu esteio em diversas normas internacionais, dentre as quais,
são citadas: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e Pacto Internacional de Direitos
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Civis e Políticos (1966). Merece igual destaque o seu embasamento constitucional, notadamente
no art. 5º, §2º conforme adiante será declinado.
2.1 Das normas internacionais
A primeira norma a dispor – genericamente – sobre o direito de resistência foi a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que no seu Preâmbulo estabeleceu:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum. Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão. Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações. Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla. Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades. Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso [...] (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1948).
Por semelhante modo, nos seus artigos 28 e 29 a DUDH sublinhou que:
Art. 28 - Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados. Art. 29. 1. Toda pessoa tem deveres para com a comunidade, em que o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é possível. 2. No exercício de seus direitos e liberdades, toda pessoa estará sujeita apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. 3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos contrariamente aos propósitos e princípios das Nações Unidas. (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1948).
Destarte, pode-se afirmar que a DUDH, já a partir do seu Preâmbulo, concedeu
significativa importância para o direito à resistência, na medida em que o formalizou como
direito e universalizou a obrigatoriedade de sua observância.
Por seu turno, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), editado no
ano de 1966, dispôs indiretamente sobre o direito à resistência, nos seguintes termos:
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Art.4º. 1. Quando situações excepcionais ameacem a existência da nação e sejam proclamadas oficialmente, os Estados partes do presente Pacto podem adotar, na estrita medida exigida pela situação, medidas que suspendam as obrigações decorrentes do presente Pacto, desde que tais medidas não sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhes sejam impostas pelo Direito Internacional e não acarretem discriminação alguma apenas por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião ou origem social. [...]
Art. 5º. - 1. nenhuma disposição do presente pacto poderá ser interpretada no sentido de reconhecer a um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de dedicar-se a quaisquer atos que tenham por objetivo destruir os direitos ou liberdades reconhecidos no presente Pacto ou impor-lhes limitações mais amplas do que aquelas nele prevista. 2. Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer Estado Parte do presente pacto em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o presente pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau. (grifo nosso) (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, ON-LINE, 1966).
Observa-se que o PIDCP clarificou sobre a possibilidade de vigência de situações
excepcionais, entretanto, declinou que nem mesmo estas situações devem ser suficientes para
suspender as obrigações ali contidas.
Por semelhante modo, o art. 5º. do PIDCP afiançou como inadmissível toda e qualquer
restrição ou suspensão dos direitos humanos fundamentais reconhecidos pelo presente pacto, o
que ratifica a ideia de que as medidas tomadas por soberanos em sentido contrário – para fins de
opressão e violência - deverão ser prontamente enfrentadas, inclusive, pelos próprios cidadãos.
Resta patente que tanto a DUDH, como o PIDCP defendem a democracia em sua
essência, inclusive, já fixando no Preâmbulo do primeiro diploma a possibilidade de insurgência,
quando houver opressão e tirania. Pode-se concluir, então, que em todos os dispositivos aqui
elencados – direta ou indiretamente – são estabelecidos parâmetros mínimos para a observância e
o respaldo da democracia, ou, em caso contrário, para a efetivação do direito de resistência.
2.2 Da fundamentalidade do direito de resistência A fundamentalidade do direito à resistência pode ser vislumbrada a partir da cláusula de
abertura firmada no art. 5o, § 2o, da CF/88, que permite a inclusão, no rol constitucional, de
direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados (LOPES; CHEHAB, 2008, p.
8).
A inclusão formal no catálogo dos direitos fundamentais, graças à norma prevista no art.
5º, § 2°, não é o único, nem talvez o mais forte argumento para afirmar a sua natureza de direito
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fundamental. Pelo contrário, o mais sólido deles é sua correspondência substancial com a
definição de direitos fundamentais, entendidos estes como princípios jurídicos positivos, de nível
constitucional, que refletem os valores mais essenciais de uma sociedade, visando a proteger
diretamente a dignidade humana, na busca pela legitimação da atuação estatal e dos particulares
(LOPES; CHEHAB, 2008, p. 9)
Desta definição, infere-se que os direitos fundamentais são normas positivas do mais alto
nível hierárquico, visto sua função de preservar a dignidade de todo ser humano, tarefa que deve
ser o centro e fim de todo agir. Aliás, a proteção da dignidade humana é o elemento essencial
para a caracterização de um direito como fundamental. É verdade que todo direito, toda norma
jurídica, tem como objeto a salvaguarda e bem-estar do ser humano - ou pelo menos assim
deveria ser - mas, no caso dos direitos fundamentais, essa proteção é direta e sem mediações
normativas (LOPES; CHEHAB, 2008, p. 10).
O caráter principiológico dos direitos fundamentais deriva, por sua vez, da estrutura
abstrata do seu enunciado, conforme os ensinamentos do jurista alemão Alexy (1993, p.105-108).
Por outro lado, afirma-se, também, que os direitos fundamentais buscam legitimar o Estado, na
medida em que o grau de proteção desses direitos permitirá definir o grau de democracia vigente.
Contudo, não apenas o Estado está submetido aos limites impostos pelas normas dos direitos
fundamentais: os particulares também devem obediência aos seus ditames (LOPES; CHEHAB,
2008, p.10).
Verifica-se, portanto, que o direito de resistência é merecedor do caráter de
fundamentalidade, na medida em que anuncia norma de importância suprema, que delineia
direito indispensável à concretização da dignidade pessoa humana, sendo ratificado, inclusive,
por diversos documentos internacionais, dos quais o Brasil é signatário.
Inconteste é, também, a identidade do direito em apreço para com o princípio da dignidade
da pessoa humana, que, embora não expresso no seio constitucional, encontra guarida no próprio
senso de efetivação dos direitos fundamentais, razão pela qual deve ser entendido de modo a
acolher todos os direitos e garantias que consigo se coadunem.
O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos
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fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana. (grifo nosso). (ROCHA, 1999, p. 60)
Não se pode olvidar, ainda, que a fundamentalidade do direito de resistência pode ser
justificada por dimanar de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, como o
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bastando, para tanto, que o Brasil seja signatário
do documento e obedeça ao regramento do art. 5o, § 3º, da Constituição Federal.
Desta feita, resta indubitável o acolhimento do direito de resistência pelo ordenamento
jurídico brasileiro e, em especial, da sua fundamentalidade, considerando sua formalização
decorrente do regime, da sua presença em diversos dispositivos constitucionais, dos princípios e
dos tratados de que o Brasil é parte, além da sua relevância como instrumento na construção de
uma sociedade livre, justa e democrática.
3. SOBRE A PLAUSIBILIDADE DO USO DO DIREITO DE RESISTÊNCIA NO CURSO DA DITADURA CIVIL-MILITAR
A ditadura militar, estabelecida com o golpe de 31 de março de 1964, e vigente até as
eleições indiretas de 1985, promoveu uma das maiores agressões institucionais perpetradas pelo
Estado brasileiro. Conforme dados do Programa Nacional de Direitos Humanos III (PNDH-3),
estima-se que 50.000 pessoas tenham sido presas somente nos primeiros meses de 1964, 20 mil
brasileiros tenham sido submetidos a torturas, 300 cidadãos tenham sido mortos e/ou
desaparecidos (BRASIL, 2010, p. 173).
Em 1979, com o advento da Lei nº 6.683, o Estado brasileiro - pressionado pela crise
econômica, pela perda de legitimidade na classe média e pela reorganização progressiva da
sociedade civil organizada, especialmente dos movimentos estudantis e dos familiares e parentes
de presos, desaparecidos e exilados políticos - concedeu anistia a todos quantos, no período
compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos
ou conexos com estes, crimes eleitorais, ou tiveram seus direitos políticos suspensos. Assim
também, concedeu anistia aos servidores da administração pública direta e indireta ou de
fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos poderes Legislativo e Judiciário, aos
militares e aos dirigentes e representantes sindicais punidos com fundamento em atos
institucionais e complementares editados nesse período.
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A partir do término formal do regime de exceção, no ano de 1985, os outrora presos e
torturados, além dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, passaram a reivindicar,
inclusive judicialmente, a abertura dos registros e arquivos da repressão militar, no intuito de que
o Estado apresentasse para toda a coletividade a verdade sobre as graves violações de direitos
humanos cometidas durante a ditadura e, assim, fizesse jus à memória individual e coletiva do
país, reparando simbólica e economicamente todos os cidadãos atingidos pelo regime.
Passados vinte oito anos, tais reivindicações jamais foram cumpridas em sua integralidade.
Esta ineficácia deve-se, dentre outros fatores, à pressão exercida, junto ao governo federal, por
alguns segmentos da sociedade - especialmente pelos quadros remanescentes da ditadura militar e
por alguns partidos políticos conservadores - que, com o discurso de que a lembrança poderia
colocar em risco a estabilidade democrática, bem como de que os grupos de esquerda que
praticaram atos de resistência são tão culpados pela ditadura quanto os agentes do Estado que
mataram e/ou torturaram, têm conseguido silenciar as discussões mais complexas a esse respeito.
Nesse contexto, a pergunta que persiste é a seguinte: será que os atos perpetrados pelos
indivíduos e/ou grupos que enfrentaram a ditadura civil-militar estão jungidos ao direito de
resistência? Ou seriam, como alguns apregoam, assemelhados aos atos de violência praticados
pelo Estado, e, por isto, plenamente ilegítimos?
Para uma análise mais objetiva dos fatos aqui relacionados, faz-se necessário apresentar o
contexto histórico da ditadura civil-militar, sobre o qual se passa a expor.
A ditadura civil-militar foi iniciada por um golpe de Estado contra um governo
legitimamente eleito, qual seja, do Presidente João Goulart, que há tempos, desde quando foi
titular do Ministério do Trabalho, durante o governo de Getúlio Vargas, já era alvo de críticas
pelos setores elitistas, em razão do seu alinhamento com as forças de esquerda (PRESOT, 2010,
p.72) e do caráter populista ( AMBOS et. al., 2010, p.140)
Em contrapartida, sabe-se que alguns militares - e simpatizantes do regime- costumam
dizer que a tomada do poder somente se deu em razão de uma potencial ameaça comunista no
Brasil, bem como em decorrência de uma reiterada solicitação popular, que, dentre outros
eventos, ganhou vulto com as Marchas da Família com Deus pela Liberdade. (SAFATLE, 2010,
p. 247)
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Malgrado não seja este o objeto do presente, cumpre ser destacado, para fins de
esclarecimento geral da temática, que, conforme Safatle (2010, p. 248):
[...] não havia luta armada de esquerda antes do golpe militar. Não há nenhum caso registrado de grupo guerrilheiro atuante antes do golpe, embora houvesse de maneira reiterada, sublevações militares conservadoras contra governos eleitos que não tinham vínculo algum com a esquerda revolucionária (como as sublevações de Jacarecanga e Aragarças no governo Juscelino Kubitschek) e tentativas de golpe desde o segundo governo Vargas. Isso demonstra como a luta armada esteve vinculada primeiramente à recusa legítima ao regime militar, ao caráter insuportável que ele adquiriu para vários setores da população nacional. (grifo nosso)
Observa-se, portanto, que não havia objetivamente qualquer ameaça comunista no Brasil,
exceto às que foram disseminadas no imaginário popular, no mais das vezes, pelos próprios
setores golpistas, o que findou por incitar, dentre outros expedientes, as supramencionadas
Marchas, posteriormente tidas como elementos de legitimação da ditadura.
Mas, mesmo que assim o fosse, ou seja, que o golpe tenha ocorrido devido ao clamor
popular e, por isto, supostamente seria patente a sua legitimidade, cumpre aqui lembrar as lições
de Friedrich Muller (2003, p.107), para quem a legitimidade é alcançada por meio de um
processo.
Nesta esteira, pode-se até tentar afirmar que os militares alcançaram o poder com certa
legitimidade, mas não seria plausível conceber que a ditadura tenha sido legitimada no seu
transcurso. De fato, a ditadura se encerrou, porque aos poucos, a diminuta legitimidade que
supunha ter, fora desfalecendo, o que resta inequívoco, em razão das seguidas vitórias do partido
de oposição consentida – MDB, durante os seus últimos anos de vigência.
Como se não bastasse a falta de legitimidade comprovada, deve-se destacar que a ditadura
tampouco fora submissa, como deveria sê-lo, ao ordenamento jurídico pátrio. Diz-se isto porque
a Carta Constitucional de 1946 estipulava claramente, em seu art. 79 e parágrafos, um plano de
sucessão para a Presidência da República, em caso de vacância, o que não fora respeitado.
Ademais, na mesma Carta Política, em seu Título IV, Capítulo II, estava firmado um vasto rol de
direitos e garantias individuais, os quais também foram progressivamente desrespeitados e/ou
suprimidos pelos setores militares aliados ao golpe de 1964.
Nessa esteira, é de bom grado frisar que o desrespeito em comento não se configurava em
situação isolada, uma vez que em 1967, três anos depois do Golpe Militar, foi outorgada uma nova
Constituição, já com traços eminentemente centralizadores e limitadores dos direitos individuais,
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tornando-se conhecida por ser instrumento de suplantação da legalidade e da dignidade da pessoa
humana, forjada em um período de elevada concentração de renda pelas oligarquias regionais e
partidárias da ditadura e de endividamento do país para com organismos financeiros estrangeiros.
(SKIDMORE, 1982, p.383). A despeito disto, esta mesma Carta Política, elaborada pela própria
ditadura, foi objeto de reiterados atos de inobservância por todos os poderes constituídos,
irregularidades que se formalizaram por meio do Ato Institucional nº.5/1968.
Por seu turno, a Emenda Constitucional nº. 1, de 17 de outubro de 1969, acolhida como
instauradora de uma nova ordem, e, portanto, recepcionada como Constituição, não suprimiu os
direitos e garantias fundamentais, contudo, deles não se propôs a fazer uso (BARROSO, 2006,
p.39), mantendo o aparato de violência institucionalizada do governo contra os seus próprios
cidadãos, inclusive, com o uso da execução sumária, leia-se: pena de morte, para alguns dos seus
supostos inimigos capitais, como Carlos Lamarca (MIRANDA; TIBÚRCIO, 2008, p. 500-501).
Destarte, olvidou-se o regime ditatorial de uma premissa básica dentro da Teoria Geral do
Estado, a saber: há que se respeitar – mesmo que minimamente - as regras sobre as quais tal
Estado foi fundado, o que inclui o uso da força, para que não alcance o arbítrio, senão vejamos:
Na medida em que há uso de armas pelos contrários à nova ordem estabelecida, como na guerrilha, há uma série de medidas legais, previstas no ordenamento jurídico do momento para que estes agentes possam ser punidos. Punidos, nunca extintos. A ordem, tendo o direito ao seu lado, jamais pode utilizar-se dos meios, especialmente quando os considere tipicamente terroristas, de seus opositores. Esses podem ser presos, jamais torturados, por um simples motivo de ordem jurídica: quem detém a prerrogativa de delimitar o direito não pode agir contra os parâmetros jurídicos postos. O poder não pode fazer uso de força desproporcional, já que o direito é a própria medida e a adequada proporção da força entre os civilizados. Se aqueles que são contrários a ordem tudo é dado fazer. Aos que detém o poder, e são responsáveis pela manutenção da ordem, somente é dado (sic) a utilização do direito, pelo qual é, em especial nos moldes em que se processou o fenômeno em 1964, responsável. (CORREIA, 2010, p.143-144)
Volvendo-se à ideia originária do presente artigo acerca do direito de resistência, que
estabelece que o soberano não adstrito ao ordenamento jurídico, tampouco ao bem comum, pode
ser submetido a atos de resistência dos seus cidadãos, tem-se por inequívoca a plausibilidade do
uso do direito de resistência pelos grupos de esquerda, durante a ditadura civil-militar brasileira,
haja vista que, como dissertado, ali não houve respeito ao ordenamento jurídico – posto ou
elaborado pela própria ditadura – nem observância ao bem comum.
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Tais argumentos podem ser exemplificados ainda pelos atos de opressão e violência
cometidos pelo próprio Estado ditatorial em detrimento dos seus cidadãos. Em números, pode-se
afirmar que a ditadura civil-militar brasileira foi responsável por – pelo menos - “10 mil exilados,
7.387 acusações formalizadas por subversão; 4.682 cassados e cerca de 300 mortos e
desaparecidos” (LIRA NETO, 2004, p. 419)
Por tudo isto, pode-se concluir que o uso do direito de resistência, notadamente por grupos
de esquerda, durante o período de exceção militar, fora plausível porque se deu em face de um
governo ilegítimo, que desconsiderou o ordenamento jurídico, a promoção e defesa da
coletividade, tanto na sua origem, quanto no seu exercício.
CONCLUSÃO
Diante do todo exposto, pode-se concluir que:
I - O direito de resistência está diretamente ligado à ideia de soberania, que deve ser exercida em
prol do bem comum e em consonância com o ordenamento jurídico vigente;
II –Por semelhante modo, observou-se que o direito de resistência teve sua matriz teórica
constituída a partir do século XIII, com os escritos de Santo Tomás de Aquino, e aperfeiçoada
com Maquiavel, Locke e Rousseau, sempre com o firme propósito de oportunizar a defesa à
opressão – individual e/ou coletiva - promovida por soberanos, independentemente da forma pela
qual alcançaram o poder;
III - Igualmente, verificou-se que o direito de resistência tem seus fundamentos jurídicos
esposados tanto em diplomas internacionais – a exemplo da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP) – como na
Constituição Federal de 1988;
IV - Ainda, demonstrou-se que as ações políticas implementadas pelos grupos de esquerda
durante o período de exceção brasileiro podem ser caracterizadas como atos inerentes ao direito
de resistência, haja vista que pautados na insurgência à ditadura civil-militar brasileira, que
alcançou o poder por meio de um golpe militar, em 1º. de abril de 1964, contra o Presidente –
legitimamente eleito - João Goulart;
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V – Por fim, explicitou-se que o governo militar não gozava de ilegalidade apenas na sua origem,
mas, sobretudo no seu exercício, o qual era pautado pela violência institucionalizada em face dos
seus próprios cidadãos e pela inobservância às normas fundamentais brasileiras.
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AUTORITARISMO: A RELAÇÃO ENTRE OS MILITARES E OS JUÍZES
DURANTE O REGIME INSTALADO EM 1964
Grijalbo Fernandes Coutinho*
RESUMO
Este artigo focaliza o papel do Poder Judiciário brasileiro durante o período da ditadura
militar brasileira (1964-1985). A predominante harmonia existente entre a cúpula da Justiça e
o governo dos generais legitimou a prática de atos cruéis contra militantes de esquerda,
trabalhadores, estudantes e personagens moderados da cena política nacional, indo dos
expurgos às torturas, aos desaparecimentos e aos assassinatos. Dos pilares da democracia e do
Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não foi simplesmente o mais frágil dos
elos da cadeia, senão verdadeiro legitimador, no tempo do arbítrio, das práticas opressoras e
cerceadoras das liberdades individuais da sociedade brasileira. As reações isoladas, no seio da
magistratura, contra a violência institucional adotada pelo Estado como lema e ação
repressiva contundente, foram objeto de expurgos e aposentadorias compulsórias, sem que
houvesse gestos efetivos de solidariedade por parte do conjunto de juízes e de suas entidades
de classe. Essa adesão silenciosa aos métodos autoritários dos governantes que tomaram o
poder político de assalto em 1964, com uma ou outra insurgência dos homens e mulheres de
toga avessos ao comodismo, resta suficientemente comprovada no último governo militar, a
partir da escolha do presidente da maior associação de juízes brasileiros para ocupar o cargo
de ministro do Supremo Tribunal Federal, conforme ato monocrático do General João
Baptista de Oliveira Figueiredo, chefe ilegítimo da República. Há inúmeras razões capazes de
justificar a apatia do Poder Judiciário. Entre outras, o presente trabalho aponta o perfil político
da magistratura daquela época como sendo a causa mais evidente da decantada neutralidade
assumida pela coletividade dos juízes diante da violência política institucionalizada pelos
autores da quartelada de 1964. Também não é possível relegar a falta de coragem em enfrentar
ditadores armados e seus seguidores agindo como cães ferozes, prontos, por isso mesmo, para
torturar, perseguir, sequestrar e matar insurgentes, sejam eles detentores ou não de alguma
fração de poder na República.
Palavras-chave: História. Direito. Regime militar de 1964. Arbítrio. Direitos Humanos.
Autoritarismo e Poder Judiciário. Positivismo. Constitucionalismo liberal. Conservadorismo.
* Mestrando em Direito pela UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais, juiz do trabalho, titular de Vara do
Trabalho em Brasília-DF, do TRT 10- Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região.
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AUTHORITARISM: THE RELATION BETWEEN MILITARIES AND JUDGES
DURING THE 1964 REGIME
ABSTRACT
This article focuses on the role of the Brazilian Judiciary during the Brazilian military
dictatorship (1964-1985). The prevailing harmony between the higer judges and the
government of generals legitimized the practice of cruel acts against leftists, workers, students
and even moderates in the national political scene, the purges going to torture, disappearances
and killings. One of the pillars of democracy and the democratic rule of law, the judiciary was
not simply the weakest links in the chain, but it truly try to legitimize, in a time of
arbitrariness, oppressive practices that reduced civil rights in the Brazilian society. Isolated
reactions within the judiciary, against institutional violence adopted by the state as a motto,
and as a forceful repression, subject the judges that resited to the regime to compulsory
retirement and purges, without any actual gestures of solidarity from the set of judges and
their associations . This silent alignment to authoritarian methods of rulers who took power
political assault in 1964, with an occasional insurgency of men and women of toga that
repudiated commodity, remains sufficiently proven in the last military government, from the
choice of the president of the largest association Brazilian judges to fill the position of Justice
of the Supreme Court, according the the single wish and act of the tyrannical General João
Baptista de Oliveira Figueiredo, an illegitimte head of Republic. There are numerous reasons
that justified the apathy of the Judiciary. Among others, this paper points out the political
profile of the judges of that time as being the most evident cause of celebrated neutrality
assumed by the community of judges facing the institutionalized political violence by the
authors of the 1964 military uprising. It should also be taken in consideration the lack of
courage in facing dictators and their armed followers acting like vicious dogs, ready,
therefore, to torture, persecute, kidnap and kill insurgents, whether or not holders of some
fraction of power in the Republic.
Key words: History. Law. Military Government of 1964. Dictatorship and the judiciary.
Human rights. Positivism. Liberal constitutionalism. Political conservatism.
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1 INTRODUÇÃO
O regime autoritário brasileiro mais próximo, vigente durante 21 anos, nasceu a
partir de golpe planejado nos quartéis com o apoio de expressivas frações da burguesia,
nacional e estrangeira, e também da nação imperialista norte-americana, cuja execução deste
ato agressivo se deu no dia 31 de março de 1964, havendo, desde então, a quebra da
institucionalidade democrática, com a consequente montagem gradual de novo aparato
jurídico capaz de dar suporte ao conjunto de violações aos direitos humanos.
Numa época marcada pela valorização do Estado constitucional que tem como um de
seus protagonistas o Poder Judiciário, é necessário indicar como os juízes brasileiros lidaram
com a ordem autoritária instaurada em 1964 e os seus comandos presentes em instrumentos
montados pelo arbítrio, sem descuidar, no entanto, da tentativa de localização das causas mais
evidentes de uma postura dos juízes, política e judiciária, refratária ou não à cartilha dos
militares brasileiros que tomaram o poder político de assalto.
Tem relevância para o direito, e sobretudo para a história, avaliar o papel
desempenhado por instituição do poder público concebidas para garantir primordialmente o
exercício dos direitos fundamentais, numa época de flagrante rompimento com a ordem
constitucional e de completo obscurantismo estatal.
O artigo busca, em síntese, indicar o tipo de relação existente entre militares e juízes
na época do arbítrio e algumas das razões para determinadas posturas serem assumidas pelo
Poder Judiciário brasileiro.
2 GOLPE MILITAR DE 1964 NO BRASIL E O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO
Ainda é reduzida a investigação realizada pelo mundo acadêmico a respeito do
efetivo papel exercido pelo Poder Judiciário durante o período do regime autoritário
brasileiro. Mesmo desprezando esse elemento de caráter científico, ninguém ousou até agora
descrever ou defender a tese da resistência, política ou judiciária, ao arbítrio instalado no País
em 1964, por parte dos juízes ou de suas entidades de classe. E aqui, cabe dizer, não serve
para materializar insurgência coletiva ou majoritária os eventuais atos isolados de insatisfação
contra as ações dos golpistas, inclusive pela falta de real solidariedade ou de respaldo aos
gestos de poucos magistrados afetados diretamente ou indignados com o quadro cerceador de
liberdades visto a partir de 31 de março de 1964.
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Com o propósito de verificar, entre outros aspectos, a intensidade da opressão
presente nos regimes autoritários vigentes no Brasil, no Chile e na Argentina, Anthony Pereira
(2010), numa pesquisa que resultou em livro, defende a teoria de que o grau de violência, em
cada uma dessas nações, foi definido pelo nível de cooperação, consenso e integração
existente entre as elites militares e judiciárias. Para tanto, nota o brasilianista que na Argentina
não houve entrosamento entre os dois segmentos, daí porque os militares portenhos
simplesmente ignoraram o direito e o Poder Judiciário, passando a resolver o confronto
mediante o massacre dos adversários, institucionalizando-se, assim, a violência, a ponto de
eliminar, contando mortos e desaparecidos, 30 mil pessoas, de 1976 a 1983.
No caso do Chile, Pereira assinala que, embora houvesse algum tipo de
entrosamento, definido como moderado, Pinochet não confiava tanto na eficiência do Poder
Judiciário no exame de suas práticas políticas de forte repressão aos opositores do golpe de
1973, motivo pelo qual adotou-se ali a via simples da usurpação das funções judiciárias pelo
comando militar. A corte militar legitimou, em última análise, o assassinato de 7.004 pessoas
e tantas outras opressões e perseguições.
Com especial atenção para a situação brasileira, Anthony Pereira, em vários capítulos
do livro Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na
Argentina (2010), sustenta que, ao contrário dos demais países, no Brasil havia total
entrosamento entre as forças militares e o Poder Judiciário, tendo o autoritarismo, por isso
mesmo, utilizado a estrutura jurídica existente antes do golpe para legitimar os seus atos, com
modificações ao longo do tempo, tal era a confiança depositada pelo regime nos magistrados,
criando, assim, um cenário de suposta normalidade e de respeito às regras do direito. Por
força de tal aliança, principalmente, o grau de violência adotado pelos militares brasileiros
teria sido menor, com 364 vítimas fatais, quando comparado com os extermínios de
adversários políticos vistos na Argentina e no Chile.
O pesquisador norte-americano anota o seguinte:
Onde existia consenso, cooperação e integração entre as forças armadas e o Judiciário, a repressão praticada pelo regime foi em boa medida judicializada, e o sistema judicial foi gradualmente alterado numa direção conservadora. Onde houve um rompimento entre os militares e as elites judiciárias, a repressão transformou-se num ataque radical em grande parte extrajudicial aos procedimentos legais tradicionais. Onde havia uma nítida separação entre as forças armadas e o Judiciário, e a cooperação era limitada, a repressão tomou uma forma intermediária entre esses dois polos. (PEREIRA, 2010, p. 286)
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Em outras palavras, Pereira compreende que a repressão extrajudicial, na ditadura,
aumenta quando o Judiciário não compactua, ainda que de forma velada, com o autoritarismo
(Argentina). Por mais paradoxal que seja a relação, é certo que a existência de tribunais de
confiança do arbítrio é fator de preservação de algumas garantias físicas dos presos políticos
(Brasil). Na dúvida, porém, sobre o respaldo aos atos de violência estatal, usurpam-se as
funções judiciárias para o corpo militar investido agora da condição de julgador, tudo a
configurar quadro intermediário entre a violência institucionalizada e o Estado autoritário
travestido de direito (Chile).
Por outro lado, a tentativa de imprimir algum caráter de legalidade aos atos da
ditadura militar brasileira, na leitura de Anthony Pereira, além do aspecto relativo ao
entrosamento com o Poder Judiciário, também tem suporte na tomada do poder por parte de
militares considerados moderados, na organização mais débil da esquerda brasileira,
especialmente dos grupos armados, e no afastamento de alguns juízes e ministros do STF não
alinhados à doutrina de segurança nacional.
Citado por Renato Lemos (2011), Emir Sader afirma que
Foi mais fácil para a ditadura, após depurar o Legislativo e o Judiciário, conviver com eles, sem necessidade de fechá-los, como aconteceu nos outros países do Cone Sul. Não foi um sinal de “liberalismo” do regime militar, mas de fraqueza das forças democráticas e de ambiguidade acentuada dos liberais: aquelas poderiam ser derrotadas, mantendo-se a fachada das instituições, e esses compactuaram com o regime de força.
Na verdade, os militares brasileiros pretendiam passar para o público a falsa imagem
de ter havido heroico levante contra o marxismo já instalado em algumas nações, mesclando,
por isso mesmo, elementos autoritários com instrumentos próprios de um Estado de Direito.
Tanto é assim que atribuíram ao golpe o significativo nome de “revolução”. O propósito era
escamotear a natureza golpista e autoritária do regime para adquirir a maior carga de
legitimidade possível entre os setores da sociedade desinformados ou simpáticos ao fervoroso
combate aos comunistas, além de esfriar eventual resistência por parte de governos e
organizações internacionais. E para a dissimulação perpetrada um ator era importante na mera
encenação democrática de exercício do poder político, qual seja, o Judiciário dócil e afinado
com a nova ordem e com a doutrina de segurança nacional das forças armadas. Embora
coadjuvantes no script geral, os juízes acabam tendo um papel importante no sentido de
legitimar as atrocidades dos gestores de plantão, especialmente na aplicação das políticas e
regras ditadas no curso da fase autoritária do Estado brasileiro.
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O trabalho investigativo de Pereira tem o notável mérito, entre outros, de expor a real
atitude do Judiciário brasileiro frente ao golpe militar e à ditadura instalada no País em 1964.
Tanto se pode conferir ao referido poder, naquela época, o título de aliado, colaborador e
complacente com o arbítrio ou, de maneira mais suavizada assim vista a ausência de reação
dos juízes, dar-lhe a qualidade de ator omisso, uma espécie de alienado político no processo
de escancarada violência condutora da tritura dos mais elementares direitos humanos durante
duas décadas.
Jamais podem ser relegadas as reações isoladas de juízes e ministros do STF contra o
regime autoritário brasileiro e suas despóticas ordens presentes na maioria das vezes nos atos
institucionais dos anos 1960. Há registro no sentido de que logo no início do autoritarismo 49
juízes sofreram algum tipo de expurgo (FAUSTO, 2000). Com o AI-5 outros magistrados,
inclusive no STF e na Justiça Militar, caíram na inatividade, com destaque para as
aposentadorias compulsórias dos ministros Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes
Lima, e voluntárias de Gonçalves de Oliveira e Lafaiete Andrade, além da compulsória
aplicada ao ministro Peri Constant Bevilacqua, do STM. Também é digna de nota a altivez do
juiz federal Márcio José de Morais ao responsabilizar civilmente a União pela prisão ilegal,
tortura e morte do Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI, além de determinar a
remessa de cópias dos autos à Procuradoria Militar, para fins penais, conforme sentença
proferida no dia 25 de outubro de 1978, nos autos da Ação Declaratória nº 136/76 (Autores:
Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog. Ré: União Federal, da 7ª Vara Federal de São
Paulo).
As eventuais dissidências no âmbito do Judiciário não comprometiam a busca
incessante das forças armadas na perspectiva de legitimar a ditadura sob o manto da
democracia. Para o professor Renato Lemos,
O STF desempenhou um importante papel nestas estratégias, como espaço atenuador de práticas policiais e jurídicas tendentes a aprofundar o caráter ditatorial do regime. É inegável que em muitas ocasiões o tribunal foi determinante para a garantia de respeito a direitos políticos e individuais. Mas essa evidência não invalida a hipótese, apenas indica o conteúdo contraditório das relações entre o Executivo e o Judiciário. O lugar reservado a este, na medida em que o mantinha em funcionamento, implicava o risco de que os juízes, ao menos alguns, votassem contra os interesses dos militares no poder. Como isso acontecesse esporadicamente, ou em relação a questões sem transcendência política, podia ser encarado com um preço razoável a ser pago para reforçar a ideia de uma ditadura provisória claramente comprometida com o restabelecimento da democracia. (LEMOS, 2011, p. 15)
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O juiz federal aposentado Vladimir Passos de Freitas indica algum tipo de resistência
dos juízes ao regime ditatorial instalado em 1964, segundo consta de artigo recentemente
publicado: O Brasil mudava. Atos Institucionais suspendiam direitos constitucionais. O AI 2, em 1965, elevou o número de ministros do STF de 11 para 16, com o intuito de alterar os posicionamentos. O AI 5, em 1968, suspendeu os direitos e garantias individuais, iniciando as cassações. O AI 6, de 1969, excluiu da apreciação judicial uma série de atos. O AI 13, de 1969, dispôs sobre o banimento dos considerados nocivos à segurança nacional. O AI 14, em 1969, instituiu a pena de morte para os casos de guerra psicológica revolucionária ou subversiva. É desta época a cassação de vários juízes. Talvez o primeiro caso tenha sido o do juiz de Direito José Francisco Ferreira, da comarca de Pacaembu (SP), que no dia 31 de março de 1964 mandou hastear a bandeira do Brasil a meio-pau no fórum. Entre tantos, a cassação do desembargador Edgard Moura Bitencourt (TJ-SP), autor do excelente livro O Juiz, do grande José de Aguiar Dias (TJ-DF, então no RJ), autor do ótimo Da Responsabilidade Civil e do juiz federal Américo Masset Lacombe, de São Paulo, que foi preso, cassado e voltou, anistiado, à magistratura, onde chegou à presidência do TRF-3[...]. Em conclusão abreviada pelo limite máximo de duas folhas, na visão minha que pode ser diferente de quem tenha tido outras experiências, penso que no regime militar o Judiciário, na esfera política e institucional, não tinha liberdade de agir, e os que ousassem enfrentar o regime corriam o risco da cassação. Na área das relações entre particulares, Justiça Estadual, não existia qualquer tipo de interferência, sendo plena a liberdade dos Juízes. E quem mais souber que o diga. Vamos construir nossa história. (FREITAS, 2011)
Pode se cogitar, como faz Vladimir Passos de Freitas, da provável cassação do
magistrado caso tivesse ele a ousadia de enfrentar o regime autoritário. Mas o que ocorreu no
Brasil não foi apenas a falta de enfrentamento senão uma adaptação do Poder Judiciário ao
figurino político e jurídico ditado sob a batuta dos quartéis, seja pela legitimidade conferida
ao arbítrio e aos personagens que tomaram o Estado por intermédio de golpe, seja pela
majoritária jurisprudência respaldadora de normas e atos injurídicos, nitidamente ofensivos
aos direitos humanos.
Os militares e o judiciário brasileiro, a exemplo das demonstrações públicas de
arrependimento externadas pelos golpistas argentinos, verdadeiras ou não, deveriam ter a
humildade e a hombridade de reconhecer cada um a sua responsabilidade pelas consequências
do autoritarismo vigente durante mais de 20 anos no país.
Definitivamente, as destemidas reações de alguns juízes naquela época são
fragmentos relevantes, cujo impacto, no entanto, foi reduzido, do ponto de vista de expressão
política, quando consideradas as insatisfações dentro do conjunto de medidas adotadas pelo
Poder Judiciário na análise dos atos arbitrários do regime.
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E assim atesta Theodomiro Romeiro dos Santos, preso político condenado à morte
pela Justiça Militar da época do arbítrio, conforme declaração por ele enviada por meio
eletrônico, em 2011, senão vejamos: A característica principal das auditorias militares foi a de uma estreita vinculação com a extrema direita dos quartéis e a subordinação ao que era decidido nos órgãos de repressão. Para você ter uma ideia, três meses antes do meu julgamento, o então Capitão Hemetério Chaves Filho, comandante da PE em Salvador e que dividia o comando das torturas na Bahia, com o Coronel Luís Arthur de Carvalho, Superintendente da Polícia Federal na Bahia e Sergipe e Chefe do DOI-CODI na mesma região, foi até a frente da minha cela e anunciou que eu seria condenado à pena de morte e Paulo Pontes à prisão perpétua, o que de fato aconteceu logo depois. A condenação foi tão absurda que gerou protestos no Brasil e no mundo, tendo sido pouquíssimo tempo depois reformada, com a conversão (ou comutação) da pena de morte em prisão perpétua, no meu caso, e a absolvição de Paulo Pontes. A situação era semelhante em São Paulo onde o Juiz Auditor de uma das Auditorias Militares chamado Aírton, quando os presos políticos não confessavam em juízo, ameaçava devolvê-los ao DOI-CODI, para novos "interrogatórios". Isso em plena audiência.Reafirmo também o que lhe disse sobre o papel "moderador" do STM. Registro que essa moderação se limitava a instituir um "que" de racionalidade nas decisões do Judiciário Militar, marcadas pela completa injuridicidade das decisões de primeiro grau. Lembro que alguns companheiros do PCBR, do interior da Bahia, foram condenados a penas altíssimas, acusados de tentar desmembrar Jequié (imagine) do território nacional. Pontuo que a Lei de Segurança Nacional (que merece um estudo bem detalhado seu e dos seus professores) apenava com prisão perpétua quem liderasse uma greve no serviço público que durasse mais de trinta dias. Uma loucura! Compareci à auditoria, no mais das vezes, com as mãos algemadas nas costas. Tudo diante dos advogados e da imprensa, que não podia fazer grande coisa. O papel do judiciário e do Supremo, em especial, foi lastimável e de completa subserviência. A Corte Suprema respaldou todos os atos de arbítrio, de violência e de arbitrariedade cometidos contra os presos políticos, de forma muito especial contra aqueles que escolheram a resistência armada contra a ditadura. Menção especial, Grija, a alguns pouquíssimos juízes auditores antifascistas, que nunca sucumbiram aos desmandos ditatoriais. Presto homenagem especial a Ramiro Teixeira da Mota, que nos visitava frequentemente na Penitenciária Lemos Brito e que findou sendo cassado pelo AI-5.
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Em outra mensagem eletrônica, a fim de dissipar qualquer dúvida a respeito do
caráter da Justiça Militar, Theodomiro assinala que
Depois de postar a mensagem, no dia seguinte, fui relê-la e fiquei pensando que posso ter transmitido uma impressão pouco adequada do tal "papel moderador" do STM. Concretamente, a nomeação para o cargo de Ministro do STM era um regalo somente oferecido para os oficiais generais, das três armas, mas afinados e fiéis ao regime militar. Era um presente e tanto. Nenhum trabalho (que era feito por assessores), bom salário, cargo vitalício e proventos no mesmo valor dos vencimentos. Foram para lá Bizarria Mamede e Orlando Geisel (irmão de Ernesto), e tantos outros do mesmo tipo. Nem o cargo de adido militar numa embaixada do circuito Elizabeth Arden era tão bom, porque a exoneração podia acontecer a qualquer hora. O problema é que a base do Judiciário Militar estava tão próxima da extrema direita do regime militar, dos órgãos de repressão política, que as decisões das Auditorias Militares frequentemente replicavam suas convicções nos julgamentos proferidos. Mesmo porque os Conselhos de Sentença só tinham um Juiz Auditor, sendo os demais militares, um Conselho para cada uma das três armas. Veja o meu caso. O Conselho que me julgou e condenou à pena de morte era formado pelo Juiz Auditor e por outros quatro, (nesse caso, de possibilidade de condenação à pena de morte), oficiais superiores da arma do militar morto. Ainda que se desse para qualquer um deles o benefício da dúvida (que eu não tenho nenhum motivo para dar), imagine a pressão que eles não sofriam dentro dos quartéis para apenar o acusado com a pena mais grave... Por isso, se pode falar do papel, modus in rebus, moderador do Tribunal.
A cúpula do Poder Judiciário e a Justiça Militar não foram entraves à consolidação
do golpe militar, muito menos às práticas gerais de opressão e de aniquilamento dos direitos
humanos vistas com a tomada do poder pelos homens dos quartéis em 1964.
De igual modo, a base da magistratura, organizada em associação de classe, também
deixou de expressar eventual descontentamento com o regime autoritário. O silêncio quase
inexplicável por parte de quem tem a missão constitucional de assegurar o exercício dos
direitos civis e políticos mitigados pela ditadura, no mínimo, importou em conformação com
o arbítrio. Não é possível dizer, sem uma investigação mais profunda, se foi mera
conformação ou velada adesão ao regime de exceção. Talvez a escolha direta e nomeação pelo
último general no poder, em 1984, do presidente da maior associação de magistrados do
Brasil (AMB), naquela época congregando juízes de todos os segmentos do Poder Judiciário,
para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, possa indicar ao menos a completa
omissão da entidade dos juízes quanto à necessária crítica ao Estado autoritário vigente desde
31 de março de 19641. Isso porque as entidades de classe da magistratura normalmente
1 Sydney Sanches, juiz de carreira do Estado de São Paulo, foi diretor da APAMAGIS (Associação Paulista de Magistrados Estaduais), de 1970 a 1971, e de 1980 a 1981, presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), eleito por voto direto, nos biênios 1982-1983 e 1984-1985, e escolhido pelo General Figueiredo para ocupar o cargo de Ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), cujo ato de nomeação foi
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assumem uma voz bem mais ativa e contundente do que aquela manifestada pelos seus
integrantes nos pronunciamentos judiciais, dadas as limitações impostas inclusive por uma lei
da ditadura (Lei Orgânica da Magistratura Nacional – Loman, de 1979) e o recato que alguns
julgadores têm como predicado indissociável para o exercício da função com imparcialidade.
Sem ignorar o natural receio com as perseguições próprias dos regimes autoritários e
da consequente comodidade política provocada pela omissão frente ao arbítrio da ditadura, há
outros componentes determinantes de uma conservadora postura majoritária assumida pelos
diversos segmentos do Poder Judiciário – STF, Justiça Militar e juízes de base organizados em
associação de classe. É o que se tentará demonstrar a seguir.
3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DE CONFIANÇA DO REGIME E JUSTIÇA
MILITAR DOS MILITARES
A forma de seleção dos ministros do Supremo Tribunal Federal, desde a sua criação,
com pequenas variações, é marcada pela prerrogativa conferida ao presidente da República
quanto ao ato da escolha livre entre juristas para depois receber a medida presidencial
chancela meramente formal do Senado. O referido modelo secular, inspirado nos sistemas de
escolha da França e do EUA, além de pouco permeável à democracia, estabelece radical
separação entre a cúpula e a base da Justiça. São dois segmentos bem distintos do Judiciário,
com visões e aspirações quase sempre diferentes a respeito de questões políticas e jurídicas.
Não é possível tomar o STF como expressão do conjunto da magistratura, embora o tribunal
tenha de fato o privilégio constitucional de ser a voz com maior definitividade no
proferimento de sentenças judiciais.
Por outro lado, diante do último aspecto descrito e do viés hierárquico presente no
sistema de criação da jurisprudência, as decisões tomadas pelo STF repercutem com
extraordinária força no seio de todos os segmentos e instâncias do Poder Judiciário. Trata-se
de uma espécie de entrosamento compulsório, isto quando as entidades de classe não
conclamam os seus membros a desafiar a autoridade do órgão máximo de cúpula.
É por isso que tanto na época do regime militar quanto hoje, na análise do perfil do
Judiciário, é fundamental ter em conta as diferenças marcantes entre os membros do STF e os
integrantes das demais instâncias, inclusive porque os primeiros, como regra, não possuem
publicado em 13 de agosto de 1984. É o que revela a sua biografia presente na página do STF (www.stf.jus.br). Acesso em 28 mar. 2011.
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origem na carreira da magistratura.
Atenta ao corpo de integrantes do Supremo Tribunal Federal, para onde seguiam, em
última instância, os processos movidos contra os presos políticos, a ditadura militar brasileira
tratou, em um primeiro plano, de ampliar o número de ministros daquele tribunal, de 11 para
16, por intermédio do Ato Institucional nº 2, de 1965, com a finalidade de obter maioria
capaz de referendar os atos de arbítrio. Em face da ausência da maioria tranquila,
especialmente porque permaneciam no STF magistrados escolhidos dentro de outro contexto
político, não alinhados, portanto, ao regime de força, os expurgos foram inevitáveis depois da
edição do AI-5 em 1968, com a saída, compulsória ou não, de 5 ministros.
Quatro anos depois do golpe, o caminho estava pavimentado para a ditadura sofrer
apenas derrotas pontuais no âmbito do STF, as quais não comprometeriam a essência da
doutrina de segurança nacional dos militares. Havia, com o sistema de alteração gradual na
estrutura jurídica e na composição do órgão de cúpula do Judiciário, um Supremo Tribunal
Federal de confiança dos governantes de plantão.
Quanto à Justiça Militar, as palavras de Theodomiro Romeiro dos Santos, transcritas
no item 2 deste artigo, conseguem resumir a falta de independência judicial do referido
segmento do Poder Judiciário, em relação aos militares. Eram órgãos de primeira instância –
Circunscrições Militares Judiciárias (CJMs) – compostos por ampla maioria de militares
(leigos), escolhidos criteriosamente pelo regime, não sendo muito distinto o perfil do
STM(Superior Tribunal Militar), onde também houve expurgo de um dos seus ministros.
A existência de jurisdição militar, por si só, já configura flagrante aberração em
qualquer Estado constitucional. Durante o arbítrio dos militares, então, ter uma justiça militar
é mais ou menos como conferir poder aos juízes padres da Santa Inquisição Católica
Medieval para julgar e queimar vivos cientistas, hereges, protestantes, bruxas e sujeitos outros
dotados de ideias renascentistas.
Enfim, a Justiça Militar da época da ditadura era a justiça dos militares.
4 PARADIGMA LIBERAL POSITIVISTA DO DIREITO E O CONSERVADORISMO
DA MAGISTRATURA
Ora, partindo da premissa de que o Supremo Tribunal Federal e a Justiça Militar
representavam frações políticas bem distintas dos demais segmentos e instâncias do Poder
Judiciário, deve haver, sem nenhuma dúvida, outra explicação diferente daquela relatada no
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quadro exposto no tópico anterior, capaz de justificar a apatia do conjunto da magistratura de
base, frente à ditadura militar que se instalou no Brasil no dia 31 de março de 1964, aos seus
desmandos institucionais e ao processo de redemocratização do País.
Não se tem notícia, por exemplo, do engajamento de qualquer entidade nacional de
juízes no movimento das diretas-já2, numa época em que a ditadura agonizava
profundamente, vivendo os seus últimos dias de arbítrio muito mais sufocada pela opinião
pública. Ao contrário do que se espera da sociedade civil organizada, o que inclui os
magistrados em suas associações de classe, temos logo depois da derrota da emenda “Dante
de Oliveira” (25 de abril de 1984) a nomeação do presidente da AMB para o cargo de ministro
do Supremo Tribunal Federal (13 de agosto de 1984), pelo último ditador brasileiro. O ato é
sintomático para definir o papel predominante dos juízes durante o regime autoritário.
Anthony Pereira fornece algumas pistas gerais motivadoras da falta de reação dos
juízes aos atos dos militares. Indica ele o conservadorismo da tradição jurídica no âmbito da
América Latina e da própria sociedade brasileira, conforme trechos a seguir transcritos:
Além disso, na tradição do direito civil latino-americano, os juízes eram vistos não como criadores de leis através de interpretação, como no direito consuetudinário anglo-saxão, mas como aplicadores das leis formuladas com exclusividade pelo Executivo ou pelo Legislativo. Não se trata aqui de um viés meramente filosófico inerente ao sistema de direito civil, mas de um fato sociológico. O papel dos juízes na América Latina, muitas vezes, era visto como “o de servidor público que desempenha funções importantes, embora essencialmente pouco criativas, o que refletia a relativa fraqueza do Judiciário frente ao Executivo. Executivos fortes, Judiciários fracos, sistemas inquisitoriais de direito penal, massas privadas de direitos civis e elites temerosas da subversão consistem assim nos antecedentes dos casos aqui discutidos. [...] A sociedade brasileira, com sua história de escravatura e da manutenção do império até 1889, era mais hierárquica e conservadora que as de seus vizinhos do Cone Sul, que haviam passado por grandes mobilizações de massa durante as guerras de independência, sendo mais fortemente influenciados pelas ideias republicanas. (PERERIRA, 2010, p. 82 e 84)
2 A campanha das Diretas-Já foi a potencialização da luta contra a ditadura militar de toda a sociedade civil brasileira organizada e também dos desorganizados. Um marco da batalha pacífica do povo brasileiro contra a intolerância, a violência e o autoritarismo. E ainda serve como antídoto contra quaisquer intenções golpistas que porventura estejam camufladas nos setores conservadores e reacionários das elites nacionais. Não obstante a rejeição da emenda das Diretas-Já no dia 25 de abril de 1984, pelo Congresso Nacional, que tanta frustração causou ao povo brasileiro naquela noite de praças públicas lotadas e irmanadas do sentimento de altivez democrática, a ditadura militar passou a ter os dias contados a partir daquele evento.
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Com o advento das grandes revoluções burguesas nos séculos XVII e XVIII, o antigo
regime tem as suas estruturas destruídas no âmbito econômico para dar lugar aos vetores
liberais nos mais diversos espaços das relações humanas. A liberdade agora, no espectro
jurídico, passa pela obediência severa à lei contra o despotismo visto antes. Nesse sentido, o
código napoleônico de 1804 foi o instrumento jurídico mais importante para marcar uma nova
era nesse campo.
Não bastava, porém, fixar paradigma novo sem alterar o perfil dos sujeitos
incumbidos de julgar os conflitos.
Nos dizeres de Dalmo Dallari,
Nessa fase histórica, referida pelos teóricos franceses como ancien régime, o ofício dos juízes, que integravam os Parlaments, era considerado um direito de propriedade, tendo a mesma situação jurídica das casas e terras. Em tal situação, a magistratura podia ser comprada, vendida, transmitida por herança, ou mesmo alugada a alguém quando o proprietário não se dispunha a exercer a magistratura mas queria conservá-la,para futura entrega a um descendente que ainda era menor de idade. O ofício era rendoso, pois a prestação de justiça era paga, havendo muitos casos de cobrança abusiva(...) Por todas essas características, os magistrados acabaram sendo vistos com temor pelos particulares que, a qualquer momento, poderiam ser envolvidos num litígio, tendo de pagar muito caro pela interferência do juiz. Mas também os que participavam do governo ou das atividades políticas viam os juízes como pessoas perniciosas, que se interessavam mais por seus proveitos pessoais do que pelo direito, pela justiça e pelo bem do povo. Tudo isso contribuiu para que a Revolução Francesa punisse muitos juízes e procurasse adaptar o Judiciário aos princípios republicanos e aos sistemas de proteção de Poderes. (DALLARI, 1996, p. 14-15)
Era imprescindível, por conseguinte, ter juízes afinados com o espírito liberal das
revoluções burguesas e com os textos jurídicos produzidos pelo Parlamento. Nessa época, em
oposição ao modelo nada confiável de magistratura do antigo regime, nasce o juiz boca-da-lei
como expressão de um positivismo jurídico exacerbado, na qualidade de um dos sustentáculos
ou expressões do liberalismo econômico reinante, confirmando, em certa medida, a teoria
marxista do aparato jurídico como mero epifenômeno da infraestrutura econômica.
As raízes liberais, dotadas de conteúdo revolucionário, em relação ao momento
econômico, político e cultural anterior, foram fincadas no mundo inteiro, ainda presentes na
atualidade sob outra roupagem para assegurar a vitalidade do regime capitalista. E o
positivismo incrustou-se nas mentes ao longo dos dois últimos séculos como verdadeiro
cimento quase impenetrável a qualquer tipo de nascimento de novas árvores jurídicas mais
sensíveis à vida humana.
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Como anuncia Dallari,
Por influência do positivismo jurídico passou-se a considerar que só é “direito” o que está contido na lei. E esta, no mundo atual, é feita segundo o jogo das forças políticas, sem qualquer consideração pela realidade social ou por aquilo que na linguagem de Montesquieu e dos teóricos do direito natural seria a “natureza das coisas”. De qualquer modo, o direito seria sempre político, mas a partir da concepção do Poder Legislativo como um órgão ou conjunto de órgãos em que são produzidas as leis, essa politicidade passou a caminhar muito próxima da natureza político-partidária. Desse modo foi estabelecida uma ambiguidade, pois a lei pode ser a expressão do direito autêntico, nascido das relações sociais básicas e expressando os valores de um grupo social, mas, geralmente, passou a expressar apenas a vontade do grupo que predomina em determinado momento da vida de um provo, sendo muitas vezes um instrumento de interesses individuais ou grupais contrários aos de todo o povo. (DALLARI, 1996, p. 57)
Para Roberto Lyra Filho, o positivismo
Sempre capta o Direito, quando já vertido em normas; o seu limite é ordem estabelecida, que se garante diretamente com normas não-legisladas (o costume da classe dominante, por exemplo) ou se articula, no Estado, como órgão centralizador do poder, através do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimir-se (neste caso, ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas, mediante leis, que reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos). (FILHO, 1982, p. 40)
Mas surgiram reações filosóficas aptas a desvendar os verdadeiros propósitos do
positivismo e do direito como fenômeno metafísico. Nietzsche desmontou a estrutura do
racionalismo metafísico vigente durante séculos, ao proclamar com autoridade filosófica que
não há neutralidade nas palavras, nem mesmo nas teorias sustentadas a partir de princípios
aparentemente isentos. Tudo demanda interpretação, inclusive a mais genuína palavra criada e
proferida depois por inúmeras pessoas. Marx, na ponta esquerda do ataque ao racionalismo
iluminista burguês, não despreza a racionalidade de modo tão radical como fazia Nietzsche,
embora seja mais ácido na crítica à metafísica desafiada pela teoria do materialismo histórico
dialético. O racional de Marx é o caminho natural da luta sem tréguas do proletariado para
alcançar o socialismo científico.
As concepções de Marx e Nietzsche influenciaram o pensamento jurídico, com
destaque para a manifestação dos autores da contemporânea modernidade, aqui sintetizadas
as referidas inspirações no reconhecimento das gritantes desigualdades materiais entre o
capital e o trabalho, como também no papel jamais neutro da linguagem e da hermenêutica.
Somente com a tragédia do holocausto, o positivismo, como uma das expressões do
liberalismo também colocado em xeque, entra em franco declínio, ao menos do ponto de vista
da doutrina internacional. É que o direito posto aplicado sem tomar em conta os direitos
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humanos não conseguia resposta suficiente para ao menos dizer que a legislação de Hitler
violava normas fundamentais asseguradoras da vida digna.
As duas correntes de maior embasamento teórico no campo do Direito Constitucional
revelaram-se ineficazes para negar validade ao genocídio perpetrado pelo nazi-fascismo. Carl
Schmitt, teórico do regime, concentrava-se na descrição do papel Führer (comandante
supremo) como único interprete da vontade do povo. Hans Kelsen, embora perseguido pelo
regime, enfatizava uma obediência estrita à norma jurídica positivada, independentemente do
modo de sua formulação e do seu conteúdo, sem atribuir ele qualquer papel aos princípios,
cujo formalismo exacerbado do jurista alemão importava no cumprimento a qualquer custo da
norma fundamental, a ponto de declarar que a interpretação não é um problema da ciência do
direito (jurídico) (BARBOSA, 2010).
A interpretação constitucional fundada em princípios pode ser eficaz contra
retrocessos políticos, econômicos e sociais, populismos e eventuais medidas autoritárias
tomadas em nome da vontade do soberano eleito e consagrado pelo povo , assim como é viva
e mutante para rejeitar a mera aplicação do direito sem questionar o seu conteúdo ético e
humanista
Parece ser inquestionável, desde então, o avanço das ações de combate às verdades
absolutas antes anunciadas pela metafísica e, para o nosso campo de observação, no
protagonismo judicial avesso às soluções fiéis exclusivamente aos aspectos literais do objeto
investigado. Diante do quadro substancialmente alterado em relação ao mundo da ciência,
coloca-se em xeque, assim, conduta avalizadora de decisões anunciadas por certo positivismo
jurídico limitador da esfera crítica e reflexiva por parte dos operadores do direito.
Para representar uma nova fase do direito avesso ao positivismo insensível e capaz
de ignorar a violência respaldada em norma jurídica, são aprovados diversos tratados
internacionais, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
(ONU), e criadas as cortes regionais de direitos humanos.
Embora o positivismo tenha se enfraquecido como doutrina jurídica no mundo do
pós-guerra, os efeitos daí decorrentes não se fizeram sentir tão rapidamente, inclusive no
Brasil, onde a cega obediência à literalidade da lei e o caráter não axiológico do direito
integravam a rotina dos magistrados por ocasião do golpe militar de 1964. E outra vertente
desse verdadeiro vício hermenêutico que contamina mentes 200 anos depois de seu
surgimento como fenômeno revolucionário repousa na equivocada recomendação de que a
teoria de tripartição de poderes impede a emissão de juízo de mérito, pelo Judiciário, a
respeito da tomada de poder político por um ou outro grupo da sociedade, seja qual for o
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método utilizado.
Sobre o perfil da magistratura do século XX, José Eduardo Faria pontua que Graças a essa estratégia seletiva, expressa pelas categorias normativas forjadas pelo Estado liberal (como as noções tradicionais de contrato, legalidade, constitucionalidade, hierarquias das leis etc.) e operacionalizada pelo Judiciário nos casos de conflito concreto, esta concepção de direito atribui às regras jurídicas a responsabilidade de articular relações formalmente “igualitárias” entre os “sujeitos de direito”, garantindo o valor da segurança jurídica e, ao mesmo tempo, tornando tão previsíveis quão controláveis os atos de autoridade emanados dos diferentes órgãos decisórios do sistema legal. Em nome de uma concepção legal-racional de legitimidade, que despreza as determinações genético-políticas de suas categorias, preceitos e procedimentos, este sistema é autolimitado para resolver os conflitos jurídicos a partir de decisões estritamente legais – o que faz com que a ordem institucional seja encarada como uma estrutura formalmente homogênea, exclusiva e disciplinadora do comportamento dos cidadãos e do funcionamento do Estado. (FARIA, 1995, p.29)
Não pode ser relegado também o componente ideológico presente na falsa afirmação
de que não há direito sem normatividade e sem positivismo. Como dizia Roberto Lyra Filho,
“a ideologia é cegueira parcial da inteligência entorpecida pela propaganda dos que a
forjaram” (FILHO, 1981, p. 29).
Hermético, o Poder Judiciário brasileiro não tomou conhecimento da experiência
hitlerista na Alemanha, fechando os olhos para o golpe militar e as ações autoritárias da
ditadura instaurada em 1964. É provável que a cultura jurídica das próprias universidades
tenha persistido na linha positivista adotada na primeira metade do século XX.
A veia conservadora do Poder Judiciário e de seus juízes foi a chave para o regime
autoritário legitimar a ditadura disfarçada de Estado de direito. E assim seguiu sobretudo pelo
paradigma normativista prevalecente no seio da magistratura, numa equivocada crença de que
a imparcialidade ou a neutralidade somente pode ser alcançada pela via do exercício da matriz
positivista. O paradoxal é que o liberalismo esteve praticamente ausente do cenário
econômico no pós-guerra, mas um de seus vetores continuou firme no mundo jurídico do
capital que não pretendia desmontar a totalidade da engrenagem do sistema. O
constitucionalismo liberal valorizador da individualidade e da mitigação dos direitos humanos
jamais foi abolido da academia e dos diversos espaços jurídicos.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A postura complacente do Judiciário com o regime militar brasileiro gerou
consequências danosas das mais variadas ordens, marcando uma época de funcionamento da
instituição repleta de casos notoriamente ofensivos aos direitos humanos, sem, contudo, haver
reação adequada por parte dos juízes – julgadores e ativistas políticos –, salvo raras e
honrosas exceções.
É inegável que o aparato ideológico do sistema capitalista teve função relevante na
apatia da magistratura com o golpe e a ditadura militar, ao sedimentar falsa concepção a
respeito dos temas e atores envolvidos na disputa anterior ao triste desfecho de 31 de março
de 1964. Aliás, é muito mais longo o período e são mais profundas as raízes definidoras do
perfil político de uma determinada sociedade. Nesse sentido, pode-se dizer, precipitadamente,
que o comportamento dos magistrados apenas reflete a opinião predominante do conjunto da
sociedade. O problema é que ao corpo judiciário confere-se atributo especial para assegurar o
pleno funcionamento do Estado de direito e o exercício das garantias fundamentais contra
quaisquer tentativas autoritárias. Os juízes, por formação ético-moral e dever constitucional,
não podem ser alienados políticos, e muito menos estão autorizados a fechar os olhos diante
do arbítrio para salvar a própria pele.
O conteúdo ideológico de maior expressão para revelar a face conservadora do
Judiciário esteve presente, sem nenhuma dúvida, no apego a uma doutrina jurídica superada,
apesar de ainda hoje encontrar respaldo em alguns segmentos. É necessário romper com o
paradigma positivista. Interpretar textos e contextos não constitui algo simples, fácil e
burocrático, muito menos é medida resguardada por neutralidade, também ausente quando da
concepção de normas variadas. Se o ato fosse mecânico, insensível do ponto de vista
humanístico e social, fundado na concepção de ser por demais “clara a regra” posta, com o
alto grau de aperfeiçoamento contínuo dos sofisticados aparelhos da revolução cibernética em
curso, qualquer eficiente programa de computador conseguiria decidir os conflitos entre os
humanos de forma mais célere, econômica, “racional” e imparcial do que os homens e
mulheres hoje incumbidos dessa tarefa.
Com a transição moderada feita no Brasil e o Judiciário imune à crítica contundente
da sociedade pela sua atuação durante a época do arbítrio, não será fácil obter justiça
transicional, direito à verdade e à memória, reparação e condenação dos agentes do Estado
responsáveis por torturas, perseguições e assassinatos. O Supremo Tribunal Federal, por
enquanto, recomenda absoluta amnésia, no esquecimento definitivo da ditadura e de todos os
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seus violentos atos contra os direitos humanos durante mais de duas décadas.
Muitos não esquecerão, por outro lado, da postura até agora manifestada pelo STF a
respeito da anistia concedida aos militares golpistas, assassinos e torturadores de 1964, bem
como não compreendem, muito menos se conformam, com a interpretação reacionária dada a
uma lei aprovada sob a direção política da cruel ditadura brasileira.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Leonardo Augusto Andrade. Disciplina: Controle de Constitucionalidade. Universidade de Brasília-UnB, Brasília. Especialização em Direito Constitucional, 2009-2010. Aula Ministrada no dia 23 set. 2010. BRASIL. Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. D.O.U, de 14.03.1979. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Editora Saraiva, 1996. FARIA, José Eduardo. O Poder Judiciário no Brasil: paradoxos, desafios e alternativas. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Série monografias do CEJ (Centro de Estudos Judiciários), 1995. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora Edusp, 2000. FILHO, Roberto Lyra. O que é direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. FREITAS, Vladimir Passos de. O Poder Judiciário no Regime Militar. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2009-dez-20/segunda-leitura-poder-judiciario-brasileiro-regime-militar> Acesso em: 31 jul. 2011. LEMOS, Renato. Poder Judiciário e poder militar. Disponível em <http://ufrj.academia.edu/RenatoLemos/Papers/484051/Poder_Judiciario_e_poder_militar_1964-1969_>. Acesso em: 31 jul. 2011. PEREIRA. Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
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SANTOS, Theodomiro. Depoimento. Mensagens recebidas por [email protected], em 11 de julho de 2011 e 13 de julho de 2011. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pastas dos Ministros – Ministro Sydney Sanches. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaPastaMinistro&pagina=SydneySanchesDadosDatas> Acesso em: 28 mar. 2011. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO-TRF-1. 7ª Vara Federal da cidade de São Paulo. Ação declaratória. Processo nº 136/1976, 3 volumes, entre partes: Clarice Herzog, Ivo Herzog e André Herzog X União Federal. Prolator da decisão monocrática de primeira instância: Juiz Federal Márcio José de Morais. Sentença proferida em 25 out. 1978.
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ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA LEI DE ANISTIA E DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
ANTECEDENTES HISTÓRICOS DE LA LEY DE AMNISTÍA Y DE LA JUSTICIA DE TRANSICIÓN EN BRASIL
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar o período histórico que deu origem à ditadura militar e a lei de anistia brasileira, que por sua vez impactou na efetivação da Justiça de Transição no país. Dentro dessa perspectiva, faz-se necessário abordar os diferentes fatores históricos que deram origem ao golpe militar, contemplando o período do pré-golpe e o estabelecimento do regime de opressão, cuja resistência deu ensejo a campanha empreendida pela sociedade em prol da promulgação de uma lei de anistia. O objetivo é possibilitar uma maior compreensão a respeito da organização da sociedade brasileira que possibilitou a conquista da lei e cujos desdobramentos deram origem a redemocratização do país. Palavras-chave: golpe de 1964; ditadura militar; anistia; justiça de transição. Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar el periodo histórico que dio origen a la dictadura militar y la ley de amnistía brasileña, que a su vez impactó en la eficacia de la justicia transicional en el país. Dentro de esta perspectiva, es necesario abordar los diferentes factores históricos que condujeron al golpe militar, que abarca el período anterior del golpe y el establecimiento del sistema de opresión, lo que dio lugar a la campaña de resistencia llevada a cabo por la sociedad para la promulgación de una ley de amnistía. El objetivo es permitir una mayor comprensión de la organización de la sociedad brasileña que permitió la conquista de la ley y cuyos avances han dado lugar a la redemocratización del país. Palabras clave: golpe de 1964; dictadura militar; amnistía; justicia transicional.
1 INTRODUÇÃO
A lei de anistia brasileira é um tema atual e cogente, que apesar de suas décadas
de existência contrapõe ideologias e continua a suscitar grandes divergências e acalorados
debates. Questões como a apuração de responsabilidades, punição aos torturadores, reparação
as vitimas e a abertura dos arquivos das forças armadas jamais foram esquecidas, continuam a
emergir no cenário jurídico-político nacional.
Dentro desse escopo, tem-se que o processo que deu origem a campanha nacional
pela anistia foi reflexo de um período totalitário e opressor, onde um verdadeiro terrorismo de
estado foi imposto à população. As forças armadas, em nome da segurança nacional e
proteção da sociedade frente ao estabelecimento de um suposto comunismo, passam a
caracterizar como subversivos determinados segmentos da sociedade. Inseridos na lógica
repressora, os militares estabelecem política de eliminação de qualquer ameaça ao regime,
Gabriela Natacha Bechara
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seja ela real ou imaginária. O cidadão comum torna-se suspeito. Qualquer pessoa pode vir a se
tornar um inimigo interno que as forças armadas deveriam eliminar.
O período que compreendeu a ditadura militar (1964 - 1985) é considerado o
período mais negro da história do país. Brasileiros de todas as classes e credos foram mortos,
seqüestrados, presos, torturados. Inúmeros “desapareceram”. Os direitos humanos foram
sistematicamente violados em seus mais básicos aspectos.
Em contrapartida as atrocidades cometidas, surgiram ensaios de uma resistência
política, cultural, armada. Todas rechaçadas pelos militares.
Doravante, a partir de uma conjuntura nacional mais favorável a resistência ao
regime, a sociedade começa a reagir, mobilizando-se na luta contra as arbitrariedades
cometidas. A luta foi empreendida pela sociedade como um todo, dando origem a um
movimento nacional e diversificado, cujo mote consistia em uma anistia “ampla, geral e
irrestrita”. A campanha nacional pela anistia surge como um objetivo agregador, pacificador
das diferenças sociais.
Apesar da luta empreendida, a lei de anistia aprovada condizia com os desejos dos
militares, que se auto-anistiaram, ou seja, retiraram o caráter punitivo de certos atos
praticados por agentes públicos durante o regime militar.
A lei é fruto da configuração de forças da época, única possível dentro do
contexto histórico da distensão política delineada pelo general Geisel e levada adiante pelo
general Figueiredo.
Ainda que parcial, a conquista da lei representou importante passo na retomada da
democracia. A questão da anistia possui notável influência sob a história política recente do
país, e é o resultado de um esforço da sociedade civil nunca visto e cujo esforço culminou na
redemocratização da sociedade brasileira.
A Justiça de Transição vem para auxiliar na compreensão do processo de
redemocratização, oferecendo subsídios a respeito de como promover a mudança de um
regime totalitário para um regime democrático. Seus pilares, ou dimensões, foram
influenciados diretamente pela forma como se deu o processo de anistia no Brasil.
Assim, o presente artigo tem por objetivo fazer um levantamento histórico acerca
do período imediatamente anterior ao golpe militar de 1964, a deflagração do golpe, o período
que compreendeu a ditadura militar no país e a luta da sociedade brasileira pela lei de anistia e
redemocratização do país.
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2 A ANISTIA E SEUS ANTECEDENTES HISTÓRICOS
2.1 PERÍODO DO PRÉ-GOLPE MILITAR
Os anos que antecederam a ditadura militar no Brasil foram de intensa atuação
política entre as forças que disputavam o poder no país. Ao mesmo tempo, o mundo passava
por um período de divisão em dois blocos com a ocorrência da guerra fria, conflito entre as
duas potências dominantes na época, Estados Unidos e União Soviética e suas diferentes
concepções ideológicas1.
Como o restante da América Latina, o Brasil permanece sob a órbita da política
externa norte-americana, voltada a manutenção de sua influência na região.
Nesse ínterim, ocorre nas Américas a Revolução Cubana liderada por Fidel
Castro, que passa a organizar sua política de forma a exportar sua revolução. Por sua vez, na
busca pelo apoio e disseminação de sua própria política, os Estados Unidos estavam
determinados a impedir o avanço comunista através de Cuba no restante dos países latino-
americanos. A respeito de suas conseqüências na América Latina, tem-se que
A partir de 1959, a Revolução Cubana marcou profundamente a política exterior dos Estados Unidos, que anunciaram não mais tolerar insurgências desafiando sua hegemonia na região, logo após ter ficado clara a aproximação entre Cuba e União Soviética. Para garantir que os governos da região permanecessem como aliados, os Estados Unidos apoiaram ou patrocinaram golpes militares de exacerbado conteúdo anticomunista. (BRASIL, 2007, p. 19)
Como maior país da América do Sul, o Brasil passa a ser um dos alvos naturais
dos diferentes interesses em conflito. Americanos, soviéticos e cubanos enviam representantes
e estabelecem determinadas estratégias no intuito de influenciar a política interna do país, cuja
posição estratégica era fundamental para a contenção ou uma possível expansão do
comunismo na região.
Dessa forma, dado os interesses em jogo, não só o Brasil, mas a América Latina
como um todo, torna-se campo de manobra da política exterior americana, principalmente,
que passa a interferir na política interna de todos os países do bloco.
Corroborando nesse sentido, observa-se um incremento no poder (político e
econômico) dos grupos políticos opositores aos governos mais nacionalistas e com possíveis
1 A Guerra Fria tem sua origem na divisão ocorrida quando da vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Refere-se ao período de disputas e conflitos indiretos ocorridos entre os Estados Unidos e a União Soviética e suas zonas de influência.
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simpatizantes de esquerda que se multiplicavam pelo continente sul-americano. Isso porque
tal política era associada ao comunismo colocado em prática na União Soviética que os
Estados Unidos queriam expurgar, evitando uma possível onda comunista que assolasse o
continente vizinho.
Dentro desse contexto, assim como seus vizinhos latino-americanos, devido a
pressões externas e a configuração de poder na política interna, o Brasil sofreu ruptura em sua
ordem constitucional com a instauração do regime militar, verdadeiros anos de chumbo e
aborto democrático na história brasileira.
O cenário interno que deu ensejo ao golpe militar ocorrido em 1964 começa a se
delinear, resumidamente, a partir das décadas de 50 e 60, com o um aumento das pressões
sociais e o surgimento de novas organizações populares. Peculiaridades regionais, a situação
política e a disputa de poder acabaram por resultar em inquietações sociais generalizadas.
Com o passar do tempo, o aumento da população urbana em conjunto com o êxodo rural, o
endividamento externo, o déficit orçamentário da União, os elevados índices de inflação e o
aumento da concentração de renda resultam em uma onda de reivindicações sociais.
Portanto, as mudanças ocorridas no período aliadas com o subseqüente
desenvolvimento econômico e as mudanças sociais geram uma necessidade de modificações
profundas. (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1986, p. 56) Relativamente as
reivindicações sociais, tem-se que os tradicionais grupos da elite que disputavam o poder na
época não mostravam-se dispostos a implementar tais reformas.
É nesse cenário de inquietações sociais generalizadas que surge a figura de Jânio
Quadros, político carismático e de carreira fulminante, que criticava a corrupção no governo,
a desordem financeira e as negociações. Sua personalidade popularesca reunia no imaginário
popular todas as esperanças do país. Sua popularidade era tal que atingia diferentes camadas
da população, abrangendo desde a classe média e antigetulistas até os trabalhadores rurais e
operários urbanos. Sobre sua ascensão política:
Jânio Quadros era um político solitário que havia construído uma carreira política sobre seu carisma no estado de São Paulo. Começara como professor de ginásio, mais tarde vendendo sua história da gramática portuguesa de porta em porta, mas sua verdadeira vocação era convencer os eleitores da classe média de que ele podia limpar a política. Era uma figura desgrenhada – alto e magro, com os cabelos caindo sobre o cenho e um olho ruim (resultado de um acidente de infância). Era especialmente adepto de manter os holofotes sobre si soltando trechos saborosos de uma história enquanto postergava com sucesso o desfecho. Sua campanha para a presidência em 1960 exibia esse talento. O símbolo de sua campanha era uma vassoura – para
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varrer os políticos corruptos. Jânio atraía um apoio tão amplo e entusiástico que chegava ao público como uma espécie de messias. Ele foi a escolha da UDN, que o nomeou na esperança de finalmente ter um vencedor. Mas Jânio dava pouca importância à fidelidade partidária. No meio da campanha renunciou à indicação da UDN para caracterizar sua independência. (SKIDMORE, 2000, p. 208).
O Candidato a presidência nas eleições de 1960 Jânio Quadros é eleito
representando a União Democrática Nacional - UDN, e João Goulart2, candidato do Partido
Social Democrático – PSD, para vice. Quadros foi eleito com 48% dos votos, derrotando seu
principal adversário, o General Henrique Teixeira Lott3.
Ao assumir o poder, Jânio passa a implementar uma política interna controversa e
autoritária, optando por uma pacote ortodoxo de estabilização que acaba por reduzir o poder
aquisitivo dos salários recebidos pela população, dada, entre outros, a desvalorização cambial
e o corte dos subsídios do trigo e do petróleo.
Em sua política exterior4, Jânio estabelece uma política de independência em
relação a política norte-americana, condecorando Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do
Sul e apoiando a independência das colônias portuguesas na África.
Seu carisma passa a desvanecer perante a população, principalmente devido a seu
personalismo, comportamento pessoal esdrúxulo, tendências sensacionalistas e recusa em
negociar sua política, caminhando para o isolamento político, sem apoio ou aliados. Avesso a
negociações, Jânio, sem aviso, renuncia em 25 de agosto de 1961. Ainda restam dúvidas sobre
suas razões5, mas
Ele evidentemente supunha que a renúncia não seria aceita e que forçaria o Congresso a dar-lhe poderes de emergência – como ocorrera com o general de Gaulle na recente crise francesa precipitada pela independência da Argélia. (SKIDMORE, 2000, p. 209-210)
Sua estratégia de renúncia mostra-se por demais ineficiente6 pois não consegue
angariar o apoio previsto. João Goulart, seu vice e quem legitimamente deveria sucedê-lo,
2 A legislação eleitoral da época permitia que o eleitor votasse no candidato a presidente de uma determinada chapa e no vice de outra, não existindo o chamado voto casado. 3 Lott foi um dos responsáveis pelo contra-golpe militar de 1956 que conseguiu garantir a posse de Juscelino Kubitschek. 4 A política externa de Jânio Quadros era posta em prática pelo seu ministro do Exterior, Afonso Arinos de Melo Franco. Sua política de independência consistia muito mais na busca por um caminho alternativo para o país entre os dois grandes blocos em confronto do que uma efetiva aproximação com o comunismo. 5 Hipótese mais corrente é a que combina sua personalidade instável e um cálculo político equivocado, uma vez que se considerava imprescindível para o país e esperava com essa estratégia obter mais poderes para governar. Em novembro de 1959 Jânio já havia lançado mão do expediente, com sucesso. 6 Jânio não conseguiu fortalecer-se ou angariar o apoio das massas como ocorrera com Fidel Castro na Revolução Cubana.
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encontrava-se em visita a China, o que não foi bem visto pelos partidos liberais e de direita.
Sua volta ao país e sua posse só foram possíveis com o apoio da mobilização conhecida como
Campanha pela Legalidade, que visava assegurar a posse de Goulart.
Apontado como radical pela alta hierarquia das Forças Armadas, o vice-presidente João Goulart, principal herdeiro do nacionalismo getulista da década de 50, teve seu nome impugnado pelos três ministros militares. Contra esse veto, levantou-se uma ampla mobilização popular em todo o país. A reação mais enérgica partiu do Rio Grande do Sul, onde o governador Leonel Brizola comandou uma forte pressão, nas ruas, para que fosse assegurada a posse de Goulart. Receosos da guerra civil que se esboçava, os militares novamente recuaram, impondo, no entanto, o estabelecimento do sistema parlamentarista de governo, que retirava poderes do presidente. (ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1986, p. 57)
João Goulart assume a presidência com poderes limitados pelo parlamentarismo
imposto pelos militares e num contexto de mobilizações e pressões sociais até então
desconhecidas. Como plano de governo, Goulart estabelece como ideologia básica o
nacionalismo e as chamadas reformas de base, que incluem reforma agrária, urbana, bancária,
fiscal e educacional, além do direito de voto aos analfabetos. Tais reformas incluíam também
medidas de cunho nacionalistas como uma maior intervenção por parte do Estado e a
nacionalização de algumas empresas. (FAUSTO, 2003, p. 447-448)
Em plebiscito nacional ocorrido em janeiro de 1963 os brasileiros votam pela
revogação da emenda que impusera o parlamentarismo. Deflagrada a crise econômica oriunda
de outros governos, movimentos sociais passam a se organizar e reivindicar seus direitos.
Ocorrem manifestações do Movimento Nacional dos Sargentos, das Ligas Camponesas e
algumas greves, inspiradas pelo próprio governo para aumentar a pressão por reformas.
Jango passa a organizar uma série de comícios populares em diferentes cidades do
país onde anuncia o lançamento de decretos que dariam início às reformas de base. Seu
primeiro comício acontece em 13 de março de 1964, no Rio de Janeiro, e foi o início do fim
de seu governo. As medidas presidenciais colocavam em risco o controle da elite, que vê seus
privilégios ameaçados pelas manifestações populares com a incorporação das massas à
política do país e começam a se organizar para opor uma forte resistência e derrubar o
presidente.
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No dia 19 de março, em protesto ao comício presidencial, setores mais
conservadores, contando com o apoio de empresários7 e da Igreja Católica8, organizam em
São Paulo a primeira “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”9, pregando o perigo da
postura anticristã, contra a família e comunista do governo federal10.
A respeito das tendências golpistas da direita, tem-se que “O golpismo tornava-se
um recurso que setores da direita lançavam mão para deter o avanço popular e compensar
suas perdas eleitorais.” (DOLHNIKOFF, 2001, p. 265). Tentativas anteriores já haviam
acontecido, como para impedir a posse de Vargas e Juscelino Kubitschek, a crise em 1954,
sublevações militares em 1956 e 1959.
O golpe militar passar a ser estimulado abertamente pela CIA, Agência Central de
Inteligência Americana, que financia entidades como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação
Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), que veiculavam violenta
propaganda contra o governo. Armas também são oferecidas ao general Carlos Guedes, um
dos deflagradores do golpe.
Segundo a estratégia anti-comunista adotada pelo governo americano, além da
articulação, propaganda e participação de setores abastados do país, a participação militar era
essencial na suposta luta contra o comunismo, pois garantiria uma efetiva tomada do controle
do país. Assim como a direita, os militares estavam preocupados com o alastramento da
esquerda no Brasil, mas algumas de suas alas se mostravam relutantes em atuar. O pretexto
para a ação dos militares ocorre quando da revolta dos marinheiros e fuzileiros navais por
melhores condições de trabalho, posteriormente conhecida como Levante dos Marinheiros11.
Os revoltosos são anistiados pelo governo, o que é visto como um ato de agressão a hierarquia
das forças armadas, ensejando o fim da indecisão entre alguns setores militares,
oportunizando a ação por parte dos militares.
7 Interesses do capital nacional e estrangeiro ameaçado leva o empresariado a apoiar econômica e politicamente. 8 Setores da ala mais conservadora da Igreja Católica tiveram papel fundamental na mobilização que antecedeu o golpe de 1964. 9 Segundo estimativas existentes na época, a Marcha do Rio de Janeiro contou com a participação de 500 mil pessoas, tendo sido organizada em diferentes cidades do Brasil. Seu fundo estratégico consistia na manipulação dos sentimentos religiosos da população, majoritariamente católica. 10 As tentativas de reforma passam a ser encaradas como tentativas de implantar o comunismo no país, quando na verdade tratava-se apenas da modernização necessária para reduzir as desigualdades sociais, tão exacerbadas no país. 11 Ocorrida na sede do sindicato dos metalúrgicos do Rio de Janeiro, no dia 25 de março de 1964. Seu líder era José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, mais tarde identificado como informante do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e agente da CIA. (CARVALHO, 2004, p. 143)
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2.2 O GOLPE
O golpe foi deflagrado de forma eficiente e rápida. Em 31 de março tropas
militares deslocam-se de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, sendo logo seguidas pelas de
São Paulo. Sobre o apoio americano:
O apoio dos EUA foi dado de forma prática, com a aproximação de navios da Frota do Atlântico Sul, com o desembarque de armas nas costas de Santa Catarina com submarinos sem identificação e com o fornecimento de informações do serviço secreto americano aos golpistas. (SEIXAS; POLITI, 2009, p. 39)
Ao deslocamento de tropas contra o governo não foi oposta resistência
significativa. João Goulart prefere o exílio12 a provocar uma guerra civil. Assim, sem
resistência popular ou militar o presidente legitimamente constituído do Brasil é deposto.
Após a derrubada de Jango, seguiu-se um período de repressão violenta, com
prisões e torturas, estabelecendo um clima de medo e delações entre a população. Figuras
importantes de esquerda e pessoas que haviam tomado posições nacionalistas, bem como
todos que poderiam oferecer alguma resistência ao estabelecimento do novo regime, foram
presas. A sede da União Nacional dos Estudantes- UNE, foi incendiada. As ligas camponesas
perseguidas. Intervenções em sindicatos e federações eram rotineiras.
Aparentemente imposto para livrar o país da desordem, da ameaça do comunismo
e da corrupção e com o fim maior de restaurar a democracia, o golpe militar passa a adquirir
diferentes contornos com a promulgação dos Atos Institucionais e a adoção da Doutrina de
Segurança Nacional.
A promulgação de Atos Institucionais13 foi a maneira encontrada pelos militares
de burlar a Constituição, conferindo legitimidade ao novo regime. O alto comando emitiu o
primeiro decreto legitimador em 9 de abril de 1964 denominado Ato Institucional n. 1, que
reforçava o Poder Executivo, reduzia o campo de ação do Congresso, conferia ao presidente a
iniciativa de projetos de lei referentes ao orçamento, suspendia imunidades parlamentares e
direitos políticos, cassando mandatos e expurgando funcionários públicos e juízes, que
perdem a estabilidade e a vitaliciedade. (FAUSTO, 2003, p. 466-467)
Na mesma época, os políticos de direita que haviam apoiado o golpe são
surpreendidos pelos militares, “que decidem assumir diretamente o poder.” (CARVALHO, 12 Assim como Jango, outras personalidades políticas de peso procuram refúgio no exterior. 13 Ao todo foram 17 Atos Institucionais, sendo os mais importantes o AI-‐2 e o Ai-‐5.
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2004, p. 158) Com o Congresso e a população em choque, o general Humberto de Alencar
Castelo Branco 14, escolhido por meio de votação indireta no Congresso em 16 de abril, é
imposto como presidente.
Num primeiro momento a intervenção militar foi anunciada como passageira,
saneadora das mazelas sociais e da infiltração comunista no país.
Logo, no entanto, começaram as cassações, os desaparecimentos e o início das
torturas em nome da segurança nacional. Dentro das forças armadas ainda existiam diferentes
alas de influência, que apesar de não divergirem entre si a respeito da necessidade do golpe,
possuíam diferentes pontos de vista acerca de como deveria se dar a intervenção:
Os militares distinguiam-se ainda em dois agrupamentos: a chamada “Sorbonne”, como eram conhecidos os ideólogos da Escola Superior de Guerra (ESG), que forneceriam as bases doutrinárias para a intervenção político-social, e os representantes “linha-dura” que comandavam as principais unidades militares. Durante os vinte anos de ditadura, esses dois grupos disputaram o controle político do país e compuseram o núcleo do poder. (CAMPOS; DOLHNIKOFF, 2001, p. 271)
As eleições estaduais de 1965 concedem importantes vitórias a oposição,
alarmando os militares da linha-dura, que passaram a exigir um controle maior das eleições.
Em 17 de outubro de 1965, dias após as eleições, o General Castelo Branco baixa o AI-2,
estabelecendo, entre outros, a extinção dos partidos políticos existentes na época. Institui-se o
bipartidarismo, com a criação da Aliança Renovadora Nacional (Arena), agrupando os
partidários da ditadura, e do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que reunia a
oposição consentida.
Em outubro de 1966 o Congresso é fechado e reconvocado pelo AI-4 para aprovar
a nova Constituição Federal, que legalizava o governo ilegítimo dos militares.
Dias antes de deixar o governo, Castelo Branco promulga a Lei de Segurança
Nacional, que determina que toda ação possivelmente desestabilizadora do regime, passava a
ser alvo de punições.
Com o fim do governo de Castelo Branco, representantes dos linha-dura
conseguem articular a eleição do general Artur da Costa e Silva, que toma posse em março de
1967.
A partir de 1966 ocorre o início de uma rearticulação por parte da oposição:
setores mais liberais da Igreja Católica passam a se fazer ouvir, estudantes voltam a se
14 O General Castelo Branco era chefe do Estado-Maior das Forças Armadas.
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manifestar ruidosamente contra a repressão, forma-se a Frente Ampla, composto por
Juscelino, Carlos Lacerda e Jango. Em 1968 as manifestações ganham ímpeto. A morte do
estudante Edson Luís de Lima Souto pela Polícia Militar durante protesto no Rio de Janeiro
choca a sociedade, acarretando na famosa passeata dos 100 mil.
A essas manifestações o governo reage com destempero e de forma violenta, com
prisões, assassinatos, “desaparecimentos” e torturas, baixando o infame AI-5 em dezembro de
1968, considerado o golpe dentro do golpe, pois suspendia os direitos civis e políticos,
estabelecia a censura prévia dos veículos de comunicação e suprimia o mandado de segurança
e o habeas corpus. O AI-5 consolidava a Doutrina da Segurança Nacional15 que identificava
como inimigos internos determinados setores da sociedade como agentes do comunismo
internacional.
Com a edição do AI-5, houve início de período de prisões indiscriminadas,
torturas sistemáticas, estupros, fazendo com que as pessoas começassem a se organizar para
resistir a essas práticas bárbaras. Num primeiro momento, familiares, amigos e advogados das
vítimas começam a criar redes de distribuição de informação e proteção. Focos de resistência
a abusividade da ditadura passam a surgir nos mais variados cantos do país. Artistas e
intelectuais unem suas vozes contra a ditadura.
Como fruto da repressão e da impossibilidade de oposição legal e de resistência
civil, surgem os primeiros grupos de luta armada no país, influenciados pela formação de
guerrilhas nos países latino-americanos vizinhos.
Em resposta à falta de alternativa para a oposição legal, grupos de esquerda começaram a agir na clandestinidade e adotar táticas militares de guerrilha urbana e rural. Em setembro de 1969, houve o primeiro ato espetacular da guerrilha urbana, o seqüestro do embaixador norte-americano. Daí até o final do governo Médici, em 1974, forças da repressão e da guerrilha se enfrentaram em batalha inglória e desigual. Aos seqüestros e assaltos a bancos dos guerrilheiros, respondia a repressão com prisões arbitrárias, tortura sistemática de presos, assassinatos. Opositores assassinados eram dados como desaparecidos ou mortos em acidentes de carro. A imprensa era proibida de divulgar qualquer notícia que contrariasse a versão das forças de segurança. (CARVALHO, 2004, p. 162-163).
15 A Doutrina da Segurança Nacional foi desenvolvida no Brasil pela Escola Superior de Guerra, criada em 1949, sob influência norte-‐americano, no intuito de afastar a onda vermelha do ocidente.
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Curiosamente o PCB, Partido Comunista Brasileiro, era contra a luta armada.
Foram seus dissidentes que se organizaram em diferentes grupos e introduziram a guerrilha no
país16.
Esses grupos, em sua maioria, não contavam com mais de quinhentos
guerrilheiros, com idade em torno dos 20 anos. A atuação mais consistente desses grupos
ocorreu entre 1969 e 1972, com ações ousadas que impuseram derrotas táticas e publicitárias
a ditadura, numa estratégia de guerra de desgaste e desestabilização do regime.
Suas ações consistiam basicamente em assalto a bancos para angariar fundos para
a sobrevivência da resistência, as chamadas expropriações, e o seqüestro de diplomatas, como
o do embaixador americano17, a fim de trocá-lo por presos políticos, entre outros.
Um grande aparato repressivo foi montado para combater a oposição armada. Ligado diretamente ao Conselho de Segurança Nacional, o poderoso Serviço Nacional de Informações (SNI) subordinava todas as Secretarias Estaduais de Segurança e seus respectivos Departamentos de Ordem Política e Social (DOPS), além de coordenar os serviços secretos e centros de operações das três armas. No Exército foram criados dois organismos de operações especiais: o Centro de Operações de Defesa Interna (Codi) e o Destacamento de Operações e Informações (DOI). Vinculando as ações das polícias e do Exército financiadas por industriais brasileiros e multinacionais, foram organizadas operações de varredura de militantes de esquerda, denominadas Operações Bandeirantes (Oban). (CAMPOS; DOLHNIKOFF, p. 276, grifo nosso)
O fato de as guerrilhas serem isoladas politicamente e divididas, além das
sucessivas mortes e desaparecimentos dos militantes que as compunham, fizeram com que os
grupos de luta armada começassem a desaparecer. Em 1972 a maioria dos grupos armado já
não existia. Seus líderes morreram em confronto com as forças militares ou sob tortura.
Historiadores do período elencam ainda duas razões principais para o declínio das
guerrilhas. A primeira diz respeito a eficácia do aparato militar na repressão, que dizimou os
militantes e o grupos de apoio a causa. A segunda tem a ver com o isolamento dos grupos
guerrilheiros da massa da população, que em sua maioria, não se identificava ou se
solidarizava com a luta empreendida.
16 Pode-se citar a Aliança Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella, assassinado em 1969; Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada por Lamarca, assassinado em 1971; Vanguarda Armada Revolucionária – Palmares (VAR – Palmares); Comando de Libertação Nacional (COLINA); Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8) 17 Charles Burke Elbrick foi sequestrado quando ia para casa almoçar. Foi trocado por outros 10 militantes, que se encontravam presos.
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Essa última razão explica-se ainda pelas condições econômicas favoráveis geradas
durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici, no poder desde outubro de 1969. Em
seu governo houve o auge da repressão, com o silenciamento da oposição legal, o
desbaratamento das guerrilhas e a euforia vivida pela ocorrência do “milagre econômico”18.
Ainda, para neutralizar a população o governo utilizava uma campanha de propaganda
intensa, o que acarretava na não percepção da ditadura com o que ela de fato era, um regime
de exceção, que feria os direitos e liberdades da sociedade. Dessa maneira, a situação
econômica e a intensa propaganda oficial acabaram por ampliar a aceitação do regime militar
durante o período do milagre.
A propaganda veiculada pelo governo foi beneficiada com o aumento de
televisores nos lares brasileiros. O apoio da Rede Globo, maior beneficiária entre os veículos
de comunicação pelo regime militar, foi crucial:
A mais famosa beneficiária do favoritismo do governo foram as Organizações Globo, o conglomerado de mídia e editora que entrou na área da TV em 1965 e inicialmente obteve ajuda técnica e financeira do grupo Time-Life para se desenvolver. A corporação logo se desfez desse vínculo e emergiu por si mesma como a mais agressiva e profissional rede de TV. Sua expansão foi abertamente favorecida pelos governos militares, que lhe garantiram as melhores localizações e facilitaram a importação do equipamento mais atualizado. Em troca, a TV Globo seguia uma política de programação estritamente pró-governo, um poderoso trunfo para os generais, uma vez que o telejornal noturno da TV Globo alcançava 80% da audiência, além de suas taxas de audiência no geral superarem de longe a soma das taxas de todas as outras redes. (SKIDMORE, 2000, p. 241)
O último grande foco de resistência das guerrilhas ocorreu na Bacia do Araguaia,
no estado do Pará, onde um grupo de guerrilheiros treinados infiltraram-se no local e
ganharam a simpatia da população. Resistindo bravamente as incursões do Exército, o grupo
só foi dizimado anos depois quando um corpo de elite de 10 mil soldados capturou e
assassinou os militantes.
Ainda sobre o Araguaia:
Restou um foco de guerrilha rural que o PC do B começou a instalar em uma região banhada pelo Rio Araguaia, próxima a Marabá, situada no leste do Pará – o chamado Bico do Papagaio. Nos anos 1970 – 1971, os guerrilheiros em número aproximado de setenta pessoas estabeleceram ligações com os camponeses, ensinando-lhes métodos de cultivo e cuidados com a saúde. O Exército descobriu o foco em
18 O milagre econômico ocorreu entre 1969 a 1973, durante o governo do general Médici e combinava um extraordinário crescimento econômico com uma inflação relativamente baixa.
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1972, mas não se revelou tão apto na repressão como fora com a guerrilha urbana. Foi só em 1975, após transformar a região em zona de segurança nacional, que as forças do Exército conseguiram liquidar ou prender o grupo do PC do B. Tudo isso não chegou ao conhecimento do grande público, pois a divulgação do assunto era proibida. Quando muito, corriam boatos desencontrados sobre a guerrilha do Araguaia. (FAUSTO, 2003, p. 483-484)
Todos os grupos que optaram pela luta armada, cedo ou tarde acabaram
esfacelados pelos militares, resultando na prisão, tortura, morte, “desaparecimento” e
banimento de centenas de militantes envolvidos. Na verdade, dada a falta de preparo da
maioria dos jovens envolvidos, bem como a diferença de recursos disponíveis, revelam que a
esquerda armada jamais constituiu ameaça política significativa ao regime, mas seus ataques
deram argumentos aos militares linha-dura, fortalecendo a opinião dos que defendiam uma
maior repressão. (SKIDMORE, 1989, p. 249)
Em 1973 o general Ernesto Geisel toma posse, prometendo o início de uma
distensão19 política, verdadeira liberalização do regime com uma abertura “lenta, gradual e
restrita”. Durante todo o seu governo Geisel sofreu fortes pressões dos militares da linha-dura,
que não concordavam com a retomada da democracia, pois ainda acreditavam na ameaça
comunista e na existência de subversivos em meio a nação.
Mesmo não fazendo parte de grupos de esquerda, sindicatos ou associações,
simples suspeitas poderiam levar qualquer cidadão a ser alvo de torturas por parte dos
militares, que ainda acreditavam na existência de inimigos internos.
Com a repressão indiscriminada por parte do regime, a elite passa a ter o mesmo
tratamento que as demais parcelas da população. Nesse primeiro momento o medo cala. No
entanto, lentamente a sociedade passa a reagir às barbaridades cometidas pelo regime,
retirando, mesmo que gradualmente, o apoio dado ao golpe.
2.3 O MOVIMENTO PELA ANISTIA
Apesar da repressão, uma nova conjuntura nacional começa a se caracterizar com
o crescimento das lutas populares e o isolamento político do regime, ao mesmo tempo em que
se agrava a situação econômica. O cenário político favorável começa a se delinear com a
promessa de distensão por parte do general Geisel e com as vitórias do MDB nas eleições de 19 A estratégia da distensão foi formulada pelo general Golbery. Quanto as razões de Geisel e Golbery para promoverem a abertura provavelmente dizem respeito ao desgaste enfrentado pelo governo e os reflexos negativos da Ditadura Militar nas forças armadas.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
63
1974, que apesar de configurarem uma oposição consentida, mostram a rearticulação política
da sociedade.
A morte do jornalista Vladimir Herzog20 em outubro de 1975 causa verdadeira
comoção social. Em janeiro do ano seguinte, a morte do operário Manoel Fiel Filho21 dá
continuidade à indignação. As torturas e outras violações aos direitos humanos passam a ser
veiculadas pela imprensa. As mortes de Herzog e Fiel Filho representam um estopim,
disseminando no imaginário popular o repúdio pelas arbitrariedades cometidas e o sentimento
abertamente hostil quanto aos métodos utilizados pelos repressores. Amplos setores da
sociedade passam a se manifestar, o que acaba tendo impactos sem precedentes nos rumos do
regime, pois a campanha que se inicia em prol da anistia dá sustentação as reivindicação
relativas a redemocratização do país.
Impende ressaltar que a luta pela anistia é anterior ao movimento deflagrado na
década de 70, mas foi nesta última que se passou a ter um movimento efetivamente
organizado.
Logo após a deflagração do golpe, o escritor Alceu Amoroso Lima, também
conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde e o jornalista Carlos Heitor Cony
defendiam a anistia veementemente.
Dentro do próprio Superior Tribunal Militar - STM22, surgiam vozes em prol da
anistia. Um exemplo é o General Pery Constant Bevilacqua, que se manifestava favorável ao
instituto, citando célebre frase do Duque de Caxias, que também era a favor da Anistia. Outro
o do próprio general Olímpio Mourão Filho23, futuro ministro do STM, que também se
manifestava a favor.
Nesse primeiro momento, a idéia de Anistia surge como forma de conciliação
nacional. Sobre o assunto, em apresentação do livro Liberdade para os Brasileiros, Anistia
Ontem e Hoje, de Roberto Ribeiro Martins, Hélio Silva relembra aos leitores a tradição
brasileira da pacificação da sociedade e da família através do ato de anistia. (SILVA, 1978, p.
12)
20 Vladimir Herzog era diretor do Canal Cultura de São Paulo, lecionara na USP e fora correspondente da BBC, sendo conhecido por seus muitos contatos no exterior. Herzog se apresentou voluntariamente quando soube que estava sendo procurado pelo Segundo Exército. No dia seguinte, informou-se que Herzog havia cometido suicídio depois de ter confessado ser membro do Partido Comunista. 21 Manoel Fiel Filho fazia parte do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo. 22 Dizia-se que o STM era mais liberal do que a justiça civil. Quando do governo do general Médici, alguns generais mais liberais foram nomeados ministros do STM, justamente para afastá-los dos comandos ativos. (SKIDMORE, 1989, p. 262) 23 Olímpio Mourão Filho foi um dos generais que deflagrou o golpe de 1964.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
64
Em meados de 1966 a 1967, forma-se a Frente Ampla, composta por lideranças
como Carlos Lacerda, Juscelino e João Goulart que exige a redemocratização e a realização
de eleições diretas e livres, além de também pregar a concessão da anistia. A respeito de suas
reivindicações:
Desde fins de 66 que se articula um movimento que procura unir setores de oposição até elementos provenientes do golpe de 64. A Frente Ampla procura apresentar uma alternativa civil para o regime, através da aglutinação das principais lideranças dos antigos partidos: Juscelino Kubitschek, pelo PSD e João Goulart, pelo PTB, ambos já cassados, e Carlos Lacerda (que então já caracterizava o regime como antidemocrático e neofascista), pela UDN. A Frente defende em seu programa “Anistia Geral para que se dissipe a atmosfera de guerra civil que existe no país” e critica a “idéia de revisão dos atos de suspensão de direitos políticos”. Depois de “incomodar” o governo e “irritar” os seus elementos mais radicais, a Frente é fechada em abril de 68 e, com o AI-5, Lacerda é cassado. (MARTINS, 1978, p. 124)
A Constituição de 1967 muda a competência para concessão da anistia, cabendo
exclusivamente ao Presidente a iniciativa, sendo ouvido o Conselho de Segurança Nacional,
mantendo a competência de aprovação do Congresso Nacional.
A partir de 1968, com a volta das manifestações estudantis, ocorre, em março, a
morte de Edson Luís em passeata que protestava contra o fechamento de restaurante
estudantil. As manifestações passam a ocorrer no Brasil todo, e a Passeata dos 100 mil reúne
diferentes setores da sociedade em prol de reivindicações.
Aproveitando-se de uma brecha legal, o primeiro projeto concedendo anistia é
apresentado pelo deputado Paulo Macarini24, e visava conceder o instituto a todos os
envolvidos em atos relacionados com as manifestações populares a partir da morte de Edson
Luís. A votação do projeto, apesar de ameaçada pelo governo, aconteceu em agosto do
mesmo ano e a medida, não surpreendentemente, foi rejeitada dada a forte pressão militar:
Preocupada com a questão, a liderança do governo na Câmara buscou traçar normas de ação para impedir o que o noticiário da época classificou como possível “surto de anistia”. Afinal, embora rejeitado por 198 votos, o projeto de Macarini obteve mais de 140 votos favoráveis, com pelo menos 35 deles saídos da própria bancada do governo. Além disso, em agosto de 1968 tramitavam, na Câmara Federal, outros dez projetos de anistia, todos de iniciativa da oposição. (MEZAROBBA, 2007, p. 34)
24 Paulo Macarini fazia parte do MDB-SC e foi cassado pelo AI-5.
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65
A repressão por parte do regime se torna mais dura. Intimidações, perseguições,
prisões e torturas tornam-se lugar comum na sociedade brasileira. A instituição do AI-5 e os
anos de repressão mais violenta do governo Médici acentuam a necessidade da anistia,
embora não possa ser abertamente reivindicada. Dada essa impossibilidade, passa-se a
reivindicar o respeito aos direitos humanos como um todo, com o fim das arbitrariedades,
torturas, prisões, seqüestros e desaparecimentos.
No programa partidário do MDB, elaborado em 1972, reclama-se a anistia. Outros
projetos beneficiando com a anistia os envolvidos na oposição ao regime são apresentados,
mas rejeitados, na Câmara Federal. Destaca-se os projetos de Florim Coutinho (MDB-RJ),
apresentados em 1975 e 1977, para a concessão da anistia aos banidos e posteriormente, para
os cidadãos envolvidos em delitos de natureza política. Também em 1974 a Ordem dos
Advogados do Brasil - OAB aprova moção de apoio a anistia aos presos políticas em sua V
Conferência Nacional.
Marco nas mudanças que ocorrem na situação política do país, as eleições de 1974
impõem ao governo flagrante derrota. Entre as bandeiras mais levantadas nas plataformas
eleitorais dos candidatos do MDB eram a retomada dos direitos civis e políticos, a anistia, a
defesa dos direitos humanos e a retomada da democracia.
As torturas, prisões arbitrárias e os desaparecimentos continuam a acontecer, mas
o clima de medo já não cala mais, fazendo crescer a oposição ao regime. Começam os
primeiros gestos de resistência, principalmente pelas mulheres, mães e filhas, pioneiras na luta
pela anistia:
Tais gestos, de acordo com Danyelle Nilin Gonçalves consistiam em ir às prisões,
arrecadar dinheiro aos que precisavam; visita aos presos doentes e aos que não tinham
parentes próximos e trazer notícias aos presos. (GONÇALVES, 2009, p. 273)
Em 1975 ocorre passo decisivo na luta pela anistia. Surge o Movimento Feminino
pela Anistia - FMPA de São Paulo, sob a liderança da advogada Terezinha Godoy Zerbini25,
que entrega um abaixo-assinado contendo 20 mil assinaturas de mulheres de todo o país em
Conferência da ONU no México. Terezinha Zerbini também fica famosa quando entrega carta
a primeira-dama dos Estados Unidos Rosalynn Cartes durante visita ao Brasil, saudando o
país pela concessão de anistia aos resistentes de guerra. (MEZAROBBA, 2007, p. 26).
Dentro da lógica da conciliação, o movimento feminino propunha a anistia como
perdão e esquecimento. Essa visão inicial da anistia, só lhe trouxe benefícios, já que
25 Esposa do general Euriale Zerbini, cassado em 1964.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
66
O Movimento Feminino pela Anistia, no seu primeiro momento, numa conjuntura de grande repressão aos movimentos sociais pelas políticas, por defender a anistia como perdão, conciliação e paz, não parecia tão ameaçador à ditadura. [...]
Foi essa concepção machista que levou os militares a não reprimir os jornais feministas ou pelo menos não fazê-lo da mesma forma que faziam com a imprensa alternativa dirigida por homens. (LEITE, 2009, p. 115)
Nesse contexto, é criado o jornal Brasil Mulher, defendendo os direitos humanos e
anistia, que recebe o apoio de escritores, intelectuais e entidades de destaque, recebendo
manifestações de solidariedade por parte da Associação Brasileira da Imprensa – ABI.
A luta pela anistia ganha adeptos no exterior, principalmente por parte dos
exilados. Comitês pró-anistia no Brasil formam-se em diversos países, que protestam contra a
falta de respeito aos direitos humanos no Brasil, exigindo a anistia e o fim das torturas.
Com o crescimento da oposição, a luta pela Anistia toma as ruas, levada pelos
estudantes, que apesar de se manifestarem a favor da anistia desde 1975, passam a partir de
1977, a se manifestar publicamente. Surgem comitês de proteção aos Direitos Humanos,
setores mais progressistas da Igreja Católica se envolvem na luta e os metalúrgicos do ABC
paulista aderem a campanha pela anistia.
Em 1978 são criados os Comitês Brasileiros pela Anistia (CBAs), formado por
advogados, familiares e amigos de presos e exilados políticos dispostos a lutar pela causa de
uma forma a implementar políticas mínimas de ação e ir além do perdão e do esquecimento.
Apesar da negativa por parte dos militares, multiplicaram-se os comitês
brasileiros pela anistia estimulados pelos familiares de presos e desaparecidos políticos, dos
exilados e pelas organizações populares que passam a se mobilizar em nome da anistia ampla,
geral e irrestrita. Os comitês reuniam também advogados, membros da Igreja Católica,
estudantes, dirigentes sindicais e representantes de associações de bairro.
A mobilização popular conta agora com o apoio não só das vítimas, familiares e
amigos, mas também com a Igreja, a OAB, a SBPC, a ABI, estudantes, artistas, intelectuais e
trabalhadores que passaram a assumir a luta como sua, como um necessário passo para a
redemocratização do país.
Sobre a mudança de perspectiva acontecida dentro da Igreja, fazendo-a tornar-se o
principal foco de oposição legal tem-se que:
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
67
Dentro da Igreja Católica, no espírito da teologia da libertação, surgiram as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A Igreja começou a mudar sua atitude a partir da Segunda Conferência dos Bispos Latino-Americanos, de 1968, em Medellín. Em 1970, o próprio Papa denunciou a tortura no Brasil. A hierarquia católica moveu-se com firmeza na direção da defesa dos direitos humanos e da oposição ao regime militar. Seu órgão máximo de decisão era a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A reação do governo levou a prisões e mesmo assassinato de padres. Mas a igreja como um todo era poderosa demais para ser intimidada, como o foram os partidos políticos e sindicatos. Ela se tornou um baluarte da luta contra a ditadura. (CARVALHO, 2004, p. 183)
Assim, apesar do apoio inicial ao golpe, a Igreja Católica começa a se sentir
incomodada com os sucessivos episódios de desrespeito aos Direitos Humanos, além de
passar “[...] por profundas transformações e começar a enfrentar dificuldades crescentes em
suas relações com o Estado, tornando-se também vítima dos atos repressivos [...]”.
(ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO, 1986 p. 63)
O Cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, encaminha ao regime militar um
pedido de ampla e generosa anistia para os presos políticos, sinalizando posição oficial
adotada pela Igreja Católica em prol da Anistia.
Os advogados, apesar de timidamente atuantes em alguns casos envolvendo
opositores ao regime, começam a se manifestar publicamente pela anistia.
Sob a presidência de Raimundo Faoro, a OAB tornara-se altamente agressiva na disseminação de sua mensagem, revivendo seu ativismo do início da década de 70. Mesmo assim, os líderes pró-liberalização de dentro do governo pediam mais pressão pública para ficar bem claro por que as mudanças "tinham" que ser realizadas. Foi o caso, por exemplo, do ministro da Justiça Petrônio Portella, que pediu a Faoro que intensificasse a publicidade em favor da anistia. Faoro concordou, a OAB redobrou seus esforços e as reformas foram feitas para facilitar mais adiante a concessão da importante medida. (SKIDMORE, 1988, p. 391)
A Associação Brasileira de Imprensa - ABI, apesar do interesse corporativo, pois
apenas sem censura e com a liberdade de imprensa os jornalista podem atuar com plenitude,
passa a também atuar em prol da causa da Anistia, através de notícias e manifestações
públicas de apoio.
Por sua vez, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC também
apóia o movimento, já que muitas das mentes mais brilhantes do país foram obrigadas a se
exilar. Havia que se considerar também o prejuízo da sociedade como um todo causado pela
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perseguição do regime a cientistas, intelectuais, professores e o fechamento de universidades
e aposentadorias precoces.
Artistas e intelectuais, apesar de menos organizados, também se engajam na luta
pela anistia e redemocratização do país.
Também mudando sua postura outrora em conformidade com o regime,
empresários passam a se fazer ouvir em prol da liberalização da economia, com uma
conseqüente redução do papel do Estado na economia brasileira, tornando-se mais um ator na
causa da anistia.
Sobre a movimentação
Os entusiastas da anistia apareciam onde quer que houvesse uma multidão. Nos campos de futebol suas bandeiras com a inscrição Anistia ampla, geral e irrestrita eram desfraldadas onde as câmaras de TV pudessem focalizá-las. Esposas, mães, filhas e irmãs se destacavam de modo especial pelo seu ativismo, o que tornava mais difícil o descrédito do movimento por parte da linha dura militar. O Cardeal Arns chamou mais tarde a luta pela anistia "a nossa maior batalha". (SKIDMORE, 1988, p. 423)
O movimento se espalhou pelas principais cidades do país. A atuação de
diferentes atores em diferentes cenários em prol da mesma causa potencializa a luta da
sociedade, nascendo em 1978 o movimento nacional pela “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”,
tornando-se palavra de ordem nacional e unindo diferentes ideologias e convicções.
Em outubro de 1978, o general Geisel revoga o AI-5, o que é considerado uma
vitória para uma futura redemocratização do país e um passo fundamental para o fim da
repressão. O abrandamento da censura abre caminho para a informação da sociedade, que
passa a ter acesso as denúncias e críticas, que generalizam-se.
As eleições de 1978 representam mais uma derrota para os militares. No mesmo
ano acontece o I Congresso de Anistia. Em dezembro de 1978 o governo revoga decreto de
banimento de mais de 120 exilados26.
Panfletagens, debates em salões paroquiais, mesas-redondas, peças teatrais,
passeatas com palavras de ordem e cartazes espalhados pela cidade. A luta ganha a adesão das
massas. Sindicatos, associações de bairro, organizações estudantis, entidades profissionais,
mães, mulheres e filhos mostravam através de marchas, comícios, cartazes, faixas, adesivos e
panfletos a adesão popular ao movimento.
Sobre a reivindicação da sociedade, Martins: 26 Ficaram excluídas do decreto pessoas consideradas indesejáveis, como Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes e Francisco Julião.
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Transformada numa exigência nacional, a anistia não é uma reivindicação apenas dos que foram atingidos pelos atos de exceção, nem uma bandeira de luta de pequenos grupos. A cada dia é maior o número de entidades e personalidades que se incorporam na sua reivindicação. Mesmo no partido do governo muitas vozes tem surgido a apoiá-la, levando o debate para dentro das hostes dos que respaldaram os atos de exceção. A maioria esmagadora do povo brasileiro reclama hoje a anistia. (MARTINS, 1978, p. 171)
Passeatas e greves gerais são organizadas pelos metalúrgicos de SP. Os presos
políticos rompem seu silêncio e passam a ser ouvidos e terem suas idéias veiculadas na
imprensa.
Sucessor escolhido por Geisel, o general João Batista Figueiredo assume o poder
em 1979, prometendo redemocratizar o país. Não obstante suas promessas e a luta
empreendida pela sociedade, os militares se recusam a tratar o tema da anistia, sinalizando na
imprensa censurada apenas que admitiriam, no máximo, revisões caso a caso.
Foi apenas em 1979 quando a conjuntura econômica, política e social não era
mais favorável a ditadura que os militares são forçados a começarem os diálogos com os
setores da sociedade para a aprovação de uma lei de anistia no espírito de uma transição
“lenta, gradual e segura”.
O debate agora gira em torno da amplitude da futura lei de Anistia, que passa a ser
considerada de vital importância para o abandono do regime autoritário e o retorno de
milhares de exilados políticos ao país, impulsionando a discussão sobre a abertura do regime e
popularizando a figura de Figueiredo.
Atendendo ao clamor público, Figueiredo e o chefe de seu gabinete civil, o
general Golbery criam o projeto do governo para a concessão da Anistia. Sobre sua
apresentação no Congresso:
No dia 27 de junho de 1979 cerca de 300 pessoas assistiram, no salão leste do Palácio do Planalto, o presidente João Baptista Figueiredo assinar o projeto de anistia que logo em seguida enviaria ao Congresso Nacional, mas que naquela manhã já estampava as páginas de O Globo, em um furo de reportagem. De acordo com jornais e revistas da época, Figueiredo estava exultante e chegou a chorar. Ao abraçar o irmão, o teatrólogo Guilherme Figueiredo, declarou: “eu não disse que fazia? Eu não disse que fazia? E vou fazer mais!”. Referia-se a um indulto posterior, que deveria beneficiar os que ficariam de fora da Lei da Anistia, ou seja, os condenados pela prática de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal. (MEZAROBBA, 2007, p. 37)
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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A sociedade civil organiza-se na tentativa de se fazer ouvir e contribuir com
modificações e melhorias, o que é fortemente desencorajado por parte do governo.
No intento de uma maior proximidade com as aspirações populares que deram
origem a campanha pela anistia, o presidente da Comissão Mista do Congresso que debatia a
lei, o senador Teotônio Vilela (MDB-AL) percorre o país visitando presos políticos,
emocionando-se e engajando-se ainda mais ferrenhamente na luta pela anistia. Em uma de
suas visitas, interpelado por um jornalista, Teotônio passa a ser conhecido nacionalmente por
suas palavras:
Ao sair do presídio do Barro Branco, em São Paulo, Teotônio Vilela foi abordado por uma jornalista da Rede Globo, que perguntou sobre os terroristas. Teotônio foi direto: — "Não encontrei nenhum terrorista. Encontrei jovens idealistas que entregaram a vida pela liberdade no Brasil. Convidaria todos para se hospedar em minha casa, convite que não faço a muitos ministros do atual Governo" (VIANA; CIPRIANO, 1992, p. 25)
Presos políticos fazem greve de fome, demonstrando descontentamento com o
projeto apresentado pelo governo. Durante toda a tramitação do projeto de lei os militantes do
movimento, incansáveis em sua luta, jamais deixaram de requerer às mudanças que achavam
necessárias para a obtenção de uma efetiva lei de anistia ampla, geral e irrestrita, criticando o
projeto do governo e sugerindo pontos de aprimoramento.
Alguns deputados oposicionistas propuseram mudanças como a previsão do
pagamento de pensões mensais, sindicâncias para apurar casos de desaparecimento e
inquéritos policiais para investigar os sumiços, mas que invariavelmente acabaram rejeitadas,
pois em desconformidade com a vontade dos militares.
Em 28 de agosto de 1978 a Lei 6.683/78, em votação apertada27, é aprovada no
Brasil.
3 ANISTIA E A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
3.1 ANISTIA DESFIGURADA
27 A Emenda que propunha alteraçõas no texto original foi rejeitada, fazendo com que o projeto de lei do governo recebesse 206 votos a favor e 201 contra.
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Como pode-se observar, a lei da anistia foi fruto de um contexto histórico
favorável, numa situação de amadurecimento e de um processo de rearticulação da sociedade.
Aclamada pelas massas e imposta ao regime, que já não pode mais se imiscuir da questão, a
Campanha pela Anistia demonstra a capacidade de mobilização e solidariedade da sociedade
brasileira em prol dos direitos humanos, agregando, trazendo o povo às ruas, configurando
verdadeira palavra de ordem que uniu diferentes classes sociais e diferentes ideologias.
O mote da campanha, a “Anistia Ampla, Geral e Irrestrita”, tinha como objetivo
abranger entre os beneficiados de uma futura lei todas as vítimas do período de exceção, sem
restrições e reintegrando-os plenamente as suas funções. Sua importância tinha ainda a ver
com o desejo de incluir dentro de seu escopo os militantes que cumpriam pena por terem
cometido crimes de sangue quando da colocação em prática direito de resistência ao regime
ilegítimo imposto pelos militares.
Ambiciosa, a campanha ainda exigia a punição dos torturados, esbarrando no
medo já arraigado dos militares de algum dia serem punidos pelos atos cometidos durante o
regime. A respeito, excetuando-se o período imediatamente posterior ao golpe, a participação
direta dos militares no interrogatório dos presos políticos passa a acontecer a partir de 1968
com a criação da OBAN, posteriormente sucedida pelo DOI-CODI, que combinava forças
policiais com oficiais de segurança militares. A Oban, além do apoio governamental, recebia
também apoio financeiro de conhecidos empresários e firmas multinacionais, além de
conhecidas figuras políticas, que mais tarde juntaram-se ao coro pela anistia bilateral.
Firmas brasileiras também foram pressionadas a contribuir com dinheiro, carros, caminhões e outras formas de ajuda em espécie [...]. Alguns empresários aderiam com entusiasmo, outros somente sob coação. Certos comerciantes, por exemplo, com filhos na cadeia, sofriam intimidação para contribuir. O governador Abreu Sodré ajudou a levantar fundos privados para a entidade, também apoiada pelo prefeito Paulo Maluf que considerava a OBAN um importante projeto cívico. (SKIDMORE, 1989, p. 254)
O medo dos militares era justificável, uma vez que apesar de agirem de acordo a
uma defesa da segurança nacional acima dos direitos humanos, a maioria dos torturadores
sabia-se errada, usando capuzes e máscaras para não serem identificados no futuro. Quando
da instituição do terror por parte do estado, os militares passaram a sofrer com severa crítica
estrangeira, pois em sua luta contra o comunismo, as forças armadas do país traíram seu
compromisso maior, que era com a democracia e com o império da lei. Endossando ainda o
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medo das forças armadas, o fato de que no início da década de 70, todos os oficiais superiores
haviam exercido comandos onde se praticava a tortura:
Mas houve um fato que ameaçou a função dos torturadores: a escassez de suspeitos plausíveis. Com a liquidação da guerrilha urbana no início de 1972, o DOI-CODI saiu à procura de novos inimigos. Ante o seu pequeno número, os homens da segurança, no seu fanatismo, alegavam que a inatividade dos subversivos era apenas aparente. E se gabavam de que fora por causa de sua vigilância que o Brasil estava agora livre de assaltos a bancos e de sequestros. Finalmente, a tortura sob o comando do Exército tornou-se tão disseminada e institucionalizada que nenhuma alta pa tente podia afirmar não se ter envolvido com ela. Virtualmente todos exerceram um comando onde os torturadores operavam. Como "resultado, os generais e os coronéis ficaram implicados, mesmo que indiretamente. (SKIDMORE, 1989, p. 260 – 261)
Com efeito, a irrefreável pressão da sociedade e o objetivo do início da distensão
política aliado com o medo de punição por parte das forças armadas, fez com que os militares
assumissem a necessidade de criação da lei, manipulando o processo para que a lei aprovada
fosse a que lhes conviesse. Destarte, isso só foi possível porque malgrado a crescente
oposição, a presença dos militares e seus apoiadores ainda era significativa, forte o suficiente
para impor uma anistia que não lhes trouxesse repercussões negativas no futuro.
Por isso empreenderam esforços no sentido de impedir uma discussão livre e
popular sobre a lei, que não foi negociada com quem de fato deveria ser. O acordo obtido
ocorre entre os próprios militares, contando com a participação ativa da elite que deu apoio ao
golpe e a repressão que se seguiu.
Dentro dessa lógica, quando do envio do projeto de lei por parte de Figueiredo, o
governo já tinha ciência de suas limitações e não escondia o seu caráter restrito. Os militares
sustentavam que as restrições se deviam ao fato de que o governo não podia reconhecer o
terrorismo como instrumento de resistência. Para eles, os crimes de sangue cometidos pelos
opositores ao regime não foram contra o estado, mas sim contra a humanidade e não poderiam
ser contemplados pela lei por não serem crimes estritamente políticos.
O projeto do governo foi recebido com inúmeras críticas, pois segundo os
militantes do movimento pela anistia, era eivado de contradições, discriminações e
deficiências. Era parcial, não libertava os presos políticos e ainda descriminava os que haviam
sido formalmente condenados e cumpriam pena dos que haviam se exilado para não
responderem aos seus “crimes”, desrespeitando o princípio da igualdade.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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No movimentação que se seguiu a apresentação do projeto, várias figuras políticas
de renome e setores demonstraram seu descontentamento. Defendia-se que à sociedade cabia
fixar os parâmetros e precisar o alcance da lei. Corroborando a necessidade de mudança do
projeto, foram apresentadas 305 emendas de 134 parlamentares, sendo que destes, 49
parlamentares faziam parte da bancada do governo.
Todas as tentativas de sugestões e/ou emendas foram classificadas como
impertinentes, inconvenientes, impossíveis de serem acrescidas e sumamente rejeitadas. Uma
emenda de autoria do MDB, assinada por Ulysses Guimarães, Freitas Nobre e Paulo Brossard
concedia a anistia ampla, geral e irrestrita tão reivindicada pela sociedade. No entanto, o
governo mobiliza suas lideranças para evitar dissidência da bancada na votação da emenda,
que acabou sendo rejeitada por 205 votos contra, e 201 a favor, acarretando na aprovação do
projeto de lei dos militares.
Portanto, não obstante o início de seu crepúsculo, o regime consegue aprovar uma
Lei de Anistia muito restrita, que obedece a um suposto caráter conciliatório, com o fim maior
de trazer paz e perdão para a sociedade brasileira. E assim a anistia veio,
desfigurada, imperfeita, inconclusa, mutilada pelos vetos, distante da anistia ampla, geral e irrestrita que a sociedade demandou nas ruas. Foi aprovada [...] a Lei de Anistia imposta pela ditadura a um parlamento submetido por medidas de força, sem pactos, sem acordos. ( BRASIL; Anistia 30 anos)
O medo maior dos militares foi resolvido com a inclusão dos chamados crimes
conexos, pois apesar de negarem veementemente a ocorrência de torturas em seus quartéis, a
tortura era verdadeira política de Estado, tornando-se prática recorrente, mas sempre negada.
Acerca do medo dos militares, oportuna a fala de Skidmore
A questão de uma possível ação contra os torturadores foi de fato resolvida pela inclusão na lei de anistia de uma definição que incluía os praticantes tanto de “crimes políticos” quanto de “crimes conexos”, este último eufemismo em geral entendido como um artifício para dar cobertura aos torturadores. Foi uma transação política. Os líderes da oposição sabiam que só podiam passar a um regime aberto com a cooperação dos militares. Poderia haver futuras tentativas de reabrir a questão, especialmente por parte daqueles mais próximos das vítimas da tortura. Mas por enquanto os políticos brasileiros receberam uma lição, para o melhor ou para o pior, sobre a arte da “conciliação”. (SKIDMORE, 1989, p. 426)
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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A inclusão dos crimes conexos também preocupa os militantes em prol da anistia,
pois antevia-se possível desdobramento na interpretação dada ao termo, que poderia acoberta
os crimes cometidos pelos militares:
A anistia concedida pela Lei 6.683 aos crimes conexos, aprovada pelo voto das lideranças dentro de um parlamento sob os limites da tortura, foi imediatamente interpretada como uma anistia de dupla mão, anistiando as vítimas e ao mesmo tempo seus carrascos. A interpretação de quais são os crimes conexos aos crimes políticos anistiados distorceu o entendimento a ponto de interpretar a tortura como um crime conexo ao crime político. Uniu em um mesmo laço o crime político e um crime imprescritível, a tortura. (ARANTES, 2009, p. 99)
Apesar de tratar-se de uma conquista, a anistia aprovada não era ampla nem geral,
pois não englobava todos os punidos pelo regime, muito menos irrestrita, pois o retorno as
antigas atividades dependia de aprovação. Sobre suas limitações, tem-se que
A Anistia – “limitada, restrita e recíproca” – correspondia antes aos ideais da descompressão “lenta, segura e gradual” do regime militar. Além de não ser “ampla, geral e irrestrita”, ela contrariava ainda as reivindicações de apuração das responsabilidades pelas torturas, mortes e “desaparecimentos” realizados pelo regime e da inclusão de todos os punidos, mesmo os envolvidos em luta armada e “crimes de sangue”, uma vez que estes eram também imbuídos de motivação política. (DEL PORTO, 2009, p. 66)
A exclusão dos crimes de sangue manteve muitos presos políticos em
confinamento mesmo quando depois da promulgação da lei. Ao fim do processo, mesmo
depois de toda a luta empreendida, o projeto aprovado tinha cunho diverso ao pretendido pela
campanha nacional pela anistia. A indignação sentida e compartilhada pelos militantes da
época pode ser demonstrada pelas palavras de Rossi, que desabafa
Nesse processo da Anistia é curioso observar que os que foram roubados em seus mais elementares direitos e punidos por exigir o retorno dos seus direitos é que tiveram de pedir anistia e não os reais criminosos, os militares golpistas e assassinos. Como se pode entender isso? Um grupo, com o poder das armas, violenta e trai toda uma nação, prende, tortura, e mata e ainda deve dar perdão? (ROSSI, 2009, p. 128)
A aprovação da lei também contou com fortes críticas e objeções por parte dos
militares da linha dura, que davam claros sinais de resistência e descontentamento com a
flexibilização do regime, chegando até mesmo a ameaçar o andamento da distensão política
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com alguns atentados isolados. Em contrapartida a explosão reacionária, o general Figueiredo
e a redemocratização passam a contar com o apoio insuspeito dos jovens oficiais das forças
armadas:
Uma nova geração de oficiais do exército havia emergido, graduando-se na academia militar desde 1964. Não mais necessariamente ativistas anti-Getúlio ou mesmo anti-Jango, estavam agora preocupados com a imagem de sua profissão entre seus compatriotas. As histórias chocantes de torturas atingiam agora todo o exército. Alguns oficiais chegaram a parar de usar seus uniformes em público por medo do ridículo. Eles viam a linha dura como tendo maculado sua profissão. Tampouco eram estes oficiais suscetíveis à psicologia do “perigo vermelho” como foram seus predecessores. A linha dura estava perdendo apoio onde ele mais contava – nas fileiras dos oficiais do exército. (SKIDMORE, 2000, p. 259-260)
Apesar das oposições enfrentadas e das incongruências verificadas, a lei
representou passo significativo na superação do autoritarismo e repressão do regime,
permitindo a volta dos cassados, banidos, foragidos, exilados e clandestinos.
Cumpre ressaltar que a campanha nacional pela anistia caracterizou-se por em
verdadeiro esforço da sociedade civil organizada, cujo resultado foi obtido em agosto de
1979 com a promulgação da lei da anistia. A campanha refletiu a vontade popular, obrigando
o regime a dar vazão ao clamor popular, dando caráter único a campanha pela anistia no
Brasil, pois
[...] enquanto em países como a Argentina e Chile a anistia foi uma imposição do regime contra a sociedade, ou seja, uma explícita auto-anistia do regime; no Brasil a anistia foi amplamente reivindicada socialmente, pois se referia originalmente aos presos políticos, tendo sido objeto de manifestações históricas que até hoje são lembradas. (ABRÃO; TORELLY, 2010, p. 32)
A lei foi conquista do povo, foi o resultado de luta e mobilização intensa, e não
dádiva ou benesse militar. Significou o início da saída, ainda que controlada, dos militares do
poder. Também significou a reintegração de milhares de militantes na política do país e
configurou importante instrumento de luta para a conquista de novos direitos, pois teve
desdobramentos posteriores, repercutindo no desenrolar dos acontecimentos.
A anistia do governo não atendeu às pessoas que foram condenadas por terrorismo, assalto ou seqüestro e àquelas que cometeram os chamados “crimes de sangue” e que somente foram libertadas sob condicional ou mediante cumprimento integral da pena. Por outro lado, a lei teve o propósito político de favorecer militares e demais agentes públicos embora este propósito não estivesse explícito na lei.
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De toda forma, preponderou historicamente a idéia de que os agentes da repressão também estavam anistiados, incluindo os responsáveis pelas práticas de tortura, tornando amplíssima e deformada a bandeira popular. Apesar disso, revelou-se um marco importante de abertura política do país, permitindo a volta de clandestinos e exilados à cena pública, o ressurgimento de organizações políticas e a atuação política pública dos trabalhadores, intelectuais e estudantes. (ABRÃO et al, 2010, p. 63)
Considerada como o ato fundante do processo de transição política no Brasil, a
Lei de Anistia abre caminho para as eleições diretas de 1985, quando o regime de exceção é
abandonado e o Estado Democrático de Direito é restabelecido.
Com a retomada da democracia, o desafio brasileiro passa a ser o da correta
transição democrática, colocando em prática mecanismos que auxiliem essa transição e que
tratem adequadamente o legado histórico de violência deixado pelo regime militar. É assim,
portanto, que a Justiça de Transição insere-se no cenário nacional, uma vez que seu maior
objetivo é a construção de uma paz sustentável em Estados que, como o Brasil, sofreram com
regimes de exceção. Para o alcance dessa paz sustentável e para uma efetiva transição para
uma democracia, deve-se respeitar os chamados pilares da Justiça de Transição, quais seja,
verdade, memória, justiça, reparação e reforma das instituições. O processamento dos
criminosos, a revelação da verdade, o fornecimento de reparações as vítimas, a reforma de
instituições e da promoção da reconciliação entre os envolvidos nos conflitos, são essenciais
para que um estado antes autoritário atinja concretamente o ideal de um estado de regime
democrático e de direito.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em períodos de transição democrática, costuma-se adotar certas medidas, que
conferem legitimidade ao processo de transição democrática. Nesse sentido os Estados devem
apurar a verdade dos fatos, estabelecer processos penais para o julgamento e a punição dos
envolvidos, reconhecer oficialmente o período de repressão ocorrido e, na medida do possível,
instituir medidas que promovam a verdade e a reconciliação, normalmente através de
comissões de anistia e da verdade.
Isso porque o Estado não deve promover simplesmente o esquecimento. A
transição pacífica não pode ocorrer em detrimento da cidadania, da transição democrática
legítima, do respeito aos direitos humanos. Nesse sentido, faz-se necessária a apuração da
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verdade dos fatos, indenização das vítimas e familiares e a punição dos autores dos crimes no
período de exceção, visando garantir uma transição democrática segura e genuína, de acordo
com a nova ordem legal instituída.
Leis de anistia apelam para o esquecimento e para o fato de que a curto e médio
prazo não refletem negativamente dentro do escopo político-social de um povo. A longo
prazo, no entanto, as leis de auto-anistia trazem as mais abjetas consequências, pois leis de
anistia não curam feridas e não garantem o estabelecimento de uma democracia permanente,
justa e legítima. Configuram um auto-perdão, o que reforça o falseamento da história e das
versões parciais, da persistência de valores autoritários, de uma sociedade marcada pelo
autoritarismo, da participação social criminalizada e da tradição patrimonialista, entre outros.
Com o auto-perdão, há violação sistemática da memória, da verdade e da justiça, assim como
dos direitos humanos, o que impacta, positiva ou negativamente, na formação da sociedade.
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A PARTICIPAÇÃO SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DA VERDADE SOBRE AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS NOS REGIMES MILITARES DA
AMÉRICA LATINA 1
PARTICIPACIÓN SOCIAL EN LA CONSTITUCIÓN DE LA VERDAD SOBRE
DELIBERANTE VIOLACIÓNES DERECHOS HUMANOS EN LOS SISTEMAS DE
MILITARES EN AMÉRICA LATINA
Tais Ramos2
RESUMO
O presente trabalho apresenta a participação social na constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos nos Regimes Militares da América Latina, considerando o paradigma democrático de inclusão dos cidadãos nos processos de exames e esclarecimento dos atos de desaparecimentos, sequestros, mortes e torturas, praticados nesses Regimes. Atendendo a possível relação entre o Estado, o Regime Militar e a Sociedade Civil, o problema central deste trabalho consiste na verificação da participação social nos espaços públicos de investigação da verdade. Para isso o trabalho pretende averiguar, em linhas gerais, os mecanismos instaurados para constituir a verdade nos países da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Peru, analisando-se os trabalhos das Comissões da Verdade oficiais e não oficiais e a participação social em cada uma delas, bem como pretende analisar como se deu a participação da sociedade brasileira na Comissão da Anistia e na Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Para isso, o método de abordagem para o desenvolvimento da pesquisa será o hipotético-dedutivo, considerando a discussão teórica e sua natureza bibliográfica. Como método de procedimento se trabalhará o método histórico-crítico e o comparativo.
PALAVRAS-CHAVE: Democracia – Direito à Verdade – Participação Social – Regime Militar 1 Este texto é fruto das pesquisas desenvolvidas no Grupo de Pesquisa “VERDADE, MEMÓRIA E JUSTIÇA:
análises da experiência das políticas públicas reparatórias do governo no Rio Grande do Sul envolvendo os atos de sequestro, morte, desaparecimento e tortura de pessoas no regime militar brasileiro (1964/1985) estudos de caso”, junto ao Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, e vinculado ao Diretório de Grupo do CNPQ intitulado “Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pelo Prof. Dr. Rogério Gesta Leal. 2 Mestre em Direito. Graduada em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade de Santa
Cruz do Sul - UNISC. Professora na Faculdade Palotina – FAPAS, Santa Maria-RS. Integrante do Grupo de Pesquisa “VERDADE, MEMÓRIA E JUSTIÇA: análises da experiência das políticas públicas reparatórias do governo no Rio Grande do Sul envolvendo os atos de sequestro, morte, desaparecimento e tortura de pessoas no regime militar brasileiro (1964/1985) estudos de caso”, coordenado pelo Professor Dr. Rogério Gesta Leal, vinculado ao Diretório de Grupo do CNPQ intitulado “Estado, Administração Pública e Sociedade”. Pesquisa elaborada ainda na condição de Bolsista CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) do Programa de Mestrado e Doutorado em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Advogada OAB/RS. E-mail: [email protected].
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RESUMEN En este trabajo se presenta la participación social en la constitución de la verdad acerca de violaciónes de derechos humanos en los regímenes militares en América Latina, teniendo en cuenta el paradigma de la inclusión democrática de los ciudadanos en el proceso de examen y esclarecimiento de los actos de desapariciones, secuestros, asesinatos y torturas cometidos estos esquemas. Teniendo en cuenta la posible relación entre el Estado, el régimen militar y la Sociedad Civil, el problema central de este estudio es la evaluación de la participación social en espacios públicos de investigación de la verdad. Para este trabajo tiene como objetivo determinar, en general, los mecanismos puestos en marcha para establecer la verdad de los países de Argentina, Bolivia, Chile, Paraguay y Perú, analizando el trabajo de comisiones de la verdad y la participación social oficial y no oficial en cada ellos, y tiene la intención de analizar cómo ha sido la participación de la sociedad brasileña en la Comisión de Amnistía y de la Comisión sobre Muertos y Desaparecidos Políticos. Para ello, el método de enfoque para el desarrollo de la investigación será el hipotético-deductivo, teniendo en cuenta la literatura teórica y la naturaleza. Como método de procedimiento funcionará si el método histórico-crítico y el comparador. PALABRAS CLAVE: Democracia - Derecho a la Verdad - Participación Social - Régimen Militar
1 Considerações Iniciais
A partir de 1960 a América Latina mudou seu cenário político, as oligarquias
conservadoras foram consolidadas; terminaram gradativamente os regimes populistas; e os
golpes civil-militares iniciaram por todo o subcontinente, implementando métodos de
repressão para conter qualquer forma de expressão e oposição. O resultado dessa repressão foi
um grande número de mortos, desaparecidos e torturados. Após esse período, os países da
América Latina transitaram de suas ditaduras militares para regimes democráticos liberais,
reconhecendo esse processo de democratização por meio de alguns direitos políticos.
Entretanto, em alguns países os atos e fatos dessa repressão ainda são desconhecidos
pela sociedade, ainda restam dúvidas, incertezas sobre as violações de Direitos Humanos
ocorridas nesse período. Nessa perspectiva, as pessoas que sofreram tal repressão, bem como
seus familiares, devem ter condições de possibilidade de conhecerem a verdade, quais as
causas e como ocorreram tais atrocidades.
Além das pessoas afetadas diretamente e seus familiares, a sociedade em geral deve ter
a possibilidade de tornar-se informada e ainda, deve ela mesma, constituir a verdade para a
construção de sua identidade coletiva. Ademais, o direito fundamental à verdade é importante
para possibilitar a cada cidadão a formação de sua identidade individual, respeitando a sua
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privacidade, honra, imagem e as liberdades e garantias individuais, em harmonia com a
construção dessa identidade coletiva.
2 A participação social na constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos nos Regimes Militares da América Latina
Existem várias possibilidades de debate e esclarecimento sobre violações de Direitos
Humanos e Fundamentais decorrentes de estados de exceção, dentre eles o da justiça de
transição, que diz respeito à justiça dos fatos ocorridos nos períodos políticos e ao confronto
entre justiça e verdade, dando destaque à investigação, documentação e divulgação pública
dessas violações em busca de uma memória voltada à pacificação e reconciliação, nas
palavras de Tietel: “La justicia transicional puede ser definida como la concepción de
justicia asociada con períodos de cambio político, caracterizados por respuestas legales que
tienen el objetivo de enfrentar los crímenes cometidos por regímenes represores anteriores”3
A justiça de transição vai além da reparação e punição dos responsáveis pelos atos de
tortura, sequestro, desaparecimento e mortes, pois busca a verdade e resgata a memória, visto
que está relacionada com perdão e reconciliação. No que diz respeito à memória, Sylvas
destaca que “El proceso de construcción de la memoria se relaciona con la identidad
individual y colectiva, con la recuperación de un pasado histórico y con la defensa de los
Derechos Humanos”4
O objetivo principal da justiça transicional é de construir uma história dos abusos que
ocorreram no passado em busca da verdade e da justiça, para uma memória coletiva, através
do mecanismo institucional das Comissões da Verdade. A Comissão da Verdade é um
organismo oficial, criado por um governo nacional para investigar, documentar e tornar
público abusos de direitos humanos em um país durante um período específico.5
As Comissões da Verdade além serem mecanismos de investigação criados para ajudar
as sociedades que enfrentaram situações de violência política, tem o objetivo de superar as
3 TEITEL, Ruti G. Genealogía de la Justicia Transicional. Disponível em:
<http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital>. Acesso em: 24 out. 2012, p.01. 4 SYLVAS, Graciela Aletta. Memória para armar. In: Revista de História Social y Literatura de America Latina.
Vol. 8, nº 3, 2011, 140 – 162. Disponível em: <www.ncsu.edu/project/acontracorriente>. Acesso em 24 out. 2012, p. 01. 5TEITEL, Ruti G. Genealogía de la Justicia Transicional. Disponível em: <http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital>.
Acesso em: 24 out. 2012, p.11.
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crises e traumas gerados pela violência e evitar que estas se repitam no futuro. Para isso as
Comissões da Verdade buscam: as causas da violência; identificar os elementos do conflito;
investigar as graves violações de direitos humanos. Os trabalhos das Comissões da Verdade
permitem também identificar as estruturas e as ramificações das diversas instâncias da
sociedade (Forças Armadas, Polícia, Poder Judicial, Igrejas, instituições em geral) e outros
fatores envolvidos nessa problemática.6
De acordo Tóit, as Comissões da Verdade refletem uma dupla preferência pela
“Verdade” em lugar da justiça (retributiva e social). Assim, primeiro: as Comissões da
Verdade conferem prioridade a graves violações dos direitos humanos e diagnosticam a
necessidade moral principal como aquela que tem que tratar com as vítimas e os que
vitimaram. E em segundo lugar: as comissões da verdade diferem dos tribunais no
ortogamento de prioridade das audiências onde as vítimas podem contar suas histórias, mais
que buscar o processamento e um castigo dos agressores.7
Os fundamentos morais das Comissões da Verdade devem ser diferenciados de uma
quantidade de considerações relacionadas, porém distintas, incluindo: as circunstâncias
históricas relevantes, as condições políticas facilitadoras, os mandatos legislativos específicos
e os marcos conceituais disponíveis.8
Para Tóit as Comissões da Verdade podem ser vistas como projetos históricos
fundacionais num contexto transicional de introdução e consolidação de uma nova
administração democrática e/ou cultura de direitos e responsabilidades de um período de
violações de direitos humanos sob um regime anterior. Refere o autor que as Comissões da
Verdade não estão preocupadas com os detalhes de estabelecer o marco legal e institucional
para uma nova ordem política, e servem para gerar e consolidar concepções novas e distintas
de moralidade política que podem daí em diante conformar a cultura política.9
No que se refere à metodologia de trabalho das Comissões da Verdade Nürnberger
esclarece que:
6 NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In
http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em 24 out. 2012, p.6 7 TOIT, Andre Du. Los Fundamentos Morales de las Comisiones de Verdad La Verdad como Reconocimiento y la
Justicia como Recognition. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.1. 8 TOIT, Andre Du. Los Fundamentos Morales de las Comisiones de Verdad La Verdad como Reconocimiento y la
Justicia como Recognition. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.1. 9 TOIT, Andre Du. Los Fundamentos Morales de las Comisiones de Verdad La Verdad como Reconocimiento y la
Justicia como Recognition. Disponível em: http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.4.
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Buscar la verdad de las violaciones a los derechos humanos, cuando los acontecimientos están aún muy cercanos, por cierto implica muchos riesgos, tanto para los investigadores, como para los informantes, testigos, familiares. La injustificada sospecha de que los activistas de derechos humanos apoyan a la subversión, así como el temor de que sus organismos cuenten en su archivo con materiales relacionados a la historia de la violencia policial y militar, muchas veces ha llevado a las autoridades militares a precipitados allanamientos de las sedes de estos organismos y a la detención, o desaparición de los luchadores de derechos humanos. Esta agresión directa contra los organismos de derechos humanos fue una norma de casi todos los gobiernos en América Latina.”10
Alguns dos países renunciaram as persecuções penais e viabilizaram processos de
transição pacificadora, pois as Comissões da Verdade com a justiça de transição não
focalizam suas discussões em natureza penal, no âmbito da responsabilidade das pessoas por
atos de tortura sequestro, morte e desaparecimento de pessoas, mas na responsabilidade do
estado enquanto promovedor de políticas públicas revitalizadoras do regime democrático.
Na América Latina e em outros países foram formadas Comissões da Verdade, todas
com apoio internacional, na busca em conhecer as causas das violências ocorridas nos
períodos de ditaduras. Alguns países da América Latina já implementaram Comissões da
Verdade e já identificaram seus conflitos e casos de violação dos Direitos Humanos, outros
ainda, a exemplo do Brasil, recém implementaram suas Comissões ou mecanismos similares
para constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos.
Essa constituição da verdade possibilita a cada cidadão a formação de sua identidade
individual, mas devendo respeitar a sua privacidade, honra, imagem e as liberdades e
garantias individuais, em harmonia com a construção de uma identidade coletiva democrática.
Essa construção coletiva baseia-se no respeito e reconhecimento do outro, envolvendo a
participação de todos os cidadãos na garantia do direito à verdade e à memória.
Vejamos como se deu essa participação da sociedade na constituição da verdade sobre
as violações de Direitos Humanos em alguns países da América Latina:
Na Argentina um dos primeiros atos constitucionais do presidente Alfonsín foi criar a
Comissão da Verdade, chamada de Comissão Nacional de Investigação sobre o
Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) que ficou encarregada de investigar as violações
de direitos humanos ocorridas entre 1976 e 1983 no período de sua ditadura militar.11
10
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 24 out. 2012, p.7. 11
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.10.
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A CONADEP foi criada pelo Decreto Lei 187/83 de 15 de dezembro de 1983 e seu
período de investigação foi de 9 meses.12 Teve como objetivo intervir ativamente no
esclarecimento dos fatos os quais foram remetidos à justiça. A justiça receptora do material
adquirido pela Comissão em suas investigações e procedimentos seria encarregada de
delimitar responsabilidades, e decidir sobre os culpados.13 Ou seja, a Comissão da Verdade da
Argentina não usou só o método de reconciliação e perdão, mas condenou vários de seus
repressores.
Para garantir e afirmar o objetivo, o Poder Executivo resolveu integrar a Comissão com
pessoas de dentro e fora do país, elegidas por suas firmes atitudes em desefa dos Direitos
Humanos, bem como por sua representação nas várias atividades na vida social. Através do
Decreto Lei, as Câmaras do Congresso Nacional também foram convidadas a enviar três
representantes para compor a Comissão. Mas somente a Câmara dos Deputados respondeu ao
convite. Em votação foi escolhido por unanimidade o Presidente da Comissão Ernesto
Sabato.14
Desde o início de seu trabalho a CONADEP enfrentou muitas dificuldades, e pode
superá-las graças ao forte apoio de entidades nacionais e internacionais de Direitos
Humanos.15 Com o progresso das pesquisas, os membros foram insultados e ameaçados por
agentes da repressão.
Graças aos esforços de Ernesto Sabato e a pressão de organismos de Direitos Humanos,
alguns membros da Comissão tiveram a possibilidade de viajar para o exterior e receber
denuncias de exilados argentinos nos Estados Unidos, França, Suíça, Espanha, México, entre
outros países. A CONADEP ganhou o apoio do Ministério das Relações Exteriores, o que
permitiu a criação do "escritório de reclamações" de desaparecimentos durante a ditadura
militar, na maioria das embaixadas espalhadas por todo o mundo. O impacto do trabalho da
Comissão nos jornais e na televisão incentivou muitos exilados europeus a cooperar com as
investigações.16
12
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.11 13
CONADEP. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 6 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003, p.443. 14
CONADEP. COMISIÓN NACIONAL SOBRE LA DESAPARICIÓN DE PERSONAS. Nunca Más. 6 ed. Buenos Aires: Eudeba, 2003, p.443. 15
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.11 16
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.12.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
86
A CONADEP, depois de nove meses de trabalho, reuniu mais de 50 mil páginas de
depoimentos e relatórios, publicados em novembro de 1984 em seu relatório intitulado
"Nunca Más: Informe de la Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas". Eles
registraram o desaparecimento de 8,960 pessoas, que foram denunciadas e devidamente
documentadas. O relatório observa que na Argentina haviam 340 centros clandestinos de
prisão, liderados por oficiais superiores das Forças Armadas e Segurança, entre outras
informações importantes do período.17
A CONADEP tomou a iniciativa de apresentar várias recomendações para diferentes
ramos do governo, "a fim de prevenir, reparar e finalmente evitar violações repetidas em
direitos humanos." Suas propostas incluem: a continuação da investigação pela via judicial, a
entrega de ajuda financeira, bolsas de estudo e trabalho aos familiares de pessoas
desaparecidas, e a aprovação de normas legais que declaram como crime de lesa humanidade
o desaparecimento forçado de pessoas. A CONADEP recomendou também o ensino
obrigatório de Direitos Humanos nos centros educativos do Estado, tanto civis como militares
e policiais, com o apoio dos organismos de apoio de Direitos Humanos, e à revogação de toda
a legislação repressiva existente no país. Muitas dessas recomendações ainda precisam ser
implementadas. E a dolorosa verdade continua aflorando, como um trauma coletivo, o que
exige uma terapia global e integral.18
A Comissão da Verdade da Bolívia, assim como algumas outras da América Latina, é
uma Comissão Não Oficial, pois surgiu por iniciativa não governamental, sem mandato legal
específico.
As vítimas de violações de Direitos Humanos na Bolívia, entre assassinados, torturados,
desaparecidos entre 1965 e 1982 foram numerosos. O golpe militar, liderado pelo general
Hugo Banzer Suárez, em agosto 1971, foi uma das histórias mais sangrentas do país. Foram
relatados mais de 14.000 detenções ilegais de pessoas, muitas das quais foram submetidas à
tortura cruel; mais de 6.000 exilados, massacres, desaparecimentos forçados de mais de 70
pessoas.19
Após esse período foi discutido o que fazer com os crimes da ditadura, mas não houve
consenso sobre como os casos deveriam ser investigados. Como o poder judiciário e os
17
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.13. 18
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.12-15. 19
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
87
líderes dos partidos políticos, em sua maioria, eram os mesmos que atuaram durante a
ditadura militar, não houve vontade suficiente para punir todos os responsáveis por violações
de direitos humanos.20
O presidente Hernán Siles Suazo assinou em 28 de Outubro 1982 o Decreto Supremo N.
241, que criou a Comissão Nacional de Desaparecidos. Nos primeiros meses de transição para
a democracia, o consenso foi alcançado apenas na necessidade de investigar os crimes
cometidos pelo regime de General Luis García Meza, onde foram praticados massacres de
opositores políticos, desaparecimentos forçados, tortura, e despejos ilegais no país.21
A Central dos Trabalhadores da Bolívia, a igreja Católica e Metodista, a Universidade
San Simon da Paz, os sindicatos de jornalistas, os grupos de Direitos Humanos, os familiares
de vítimas da ditadura, com o apoio de alguns políticos começaram um processo de
impeachment contra o general Luis García Meza e 55 de seus principais assessores. A decisão
do Congresso, em 25 de fevereiro de 1986, excluiu das investigações dos fatos ocorridos antes
do golpe de Garcia Meza, protegendo especialmente o ditador Hugo Banzer. 22
A influência de vários órgãos representativos da sociedade, e a longa tradição de luta
como a Universidade, a Igreja, juntamente com grupos de Direitos Humanos na denúncia e
ajuizamento do regime de Garcia Meza, assegurou um importante apoio institucional e
popular no processo de investigar a verdade e punir os responsáveis pelas violações dos
Direitos Humanos e abusos do Estado de Direito. Um grupo de advogados e estudantes de
direito, jornalistas, bem como famíliares das vítimas da ditadura trabalharam no Comitê do
julgamento, por cinco anos, para coletar mais de 30 mil páginas acumuladas sobre os fatos da
ditadura e desenvolver as alegações e acusações.23
O Comitê julgador das responsabilidades, apesar das ameaças, continuou seu trabalho,
elaborando recursos acusatórios e difundindo maciçamente em jornais, rádio e na televisão
relatórios das informações sobre o julgamento. E depois de mais de seis anos de julgamento,
em 1992 o Poder Judiciário da Bolívia conseguiu condenar o general Luis García Meza e Luis
Arce Gómez a 30 anos de prisão. Outros 50 envolvidos também receberam suas condenações.
20
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33. 21
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33. 22
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.33-34 23
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.34.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
88
Os advogados que representaram a sociedade civil afetada pela ditadura, declararam o
seguinte à Suprema Corte:
Estuvimos motivados por la búsqueda de la verdad desde el primer momento; y cuando en ese primer momento la principal defensa apareció siendo la mentira, nos volvimos incansables en esa búsqueda de la verdad... había que probar que se delinquió bárbaramente contra el país, desde el aparato mismo del Estado... a la notoria verdad histórica había que adjuntar la verdad jurídica.24
Embora o Comité Diretor das responsabilidades ter sido uma Comissão da Verdade não
criada por lei, o trabalho da sociedade civil boliviana foi eficaz, conseguindo comprometer a
maioria das organizações do país na busca da verdade sobre o período crítica de sua história.
No Chile, após a derrota moral e política de Pinochet, a sociedade chilena elegeu como
Presidente um membro da oposição, que havia anunciado seu compromisso com a defesa dos
Direitos Humanos. Fiel à sua promessa, o presidente Patricio Aylwin, mediante o Decreto n º
355, de 24 de abril de 1990, criou a Comissão Nacional da Verdade e Reconciliação, com
objetivo de contribuir para o esclarecimento da verdade sobre as graves violações de Direitos
Humanos a fim de colaborar para a reconciliação de todos os chilenos.25
As tarefas confiadas à Comissão da Verdade foram:
Establecer un cuadro, lo más completo posible, sobre los graves hechos de violación a los derechos humanos, sus antecedentes y circunstancias. Reunir información que permita individualizar a sus víctimas y establecer su suerte o paradero. Recomendar las medidas de reparación y reivindicación que estimara de justicia, y Recomendar las medidas legales y administrativas que a su juicio deberían adoptarse para impedir o prevenir la comisión de nuevos atropellos graves a los derechos humanos.26
Foi determinada, com o prazo de nove meses, a investigação dos fatos que levaram à
morte ou ao desaparecimento de pessoas que ocorreram entre 11 de setembro de 1973 e 11 de
março 1990, seja dentro do país ou no exterior.27 Mais de 60 pessoas de diversas organizações
nacionais e internacionais de Direitos Humanos colaboraram e trabalharam em tempo integral
para o processamento das informações obtidas pela Comissão.
A Comissão consultou mais de 100 arquivos de organizações de Direitos Humanos,
acadêmicas, políticas e religiosas. Membros da Comissão, além de investigar dentro do país,
tiveram a oportunidade de viajar para o exterior, com a finalidade de entrevistar as vítimas da 24
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.36. 25
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p15. 26
CHILE. Corporación Nacional de Reparación y Reconciliacón. Informe de la Comissión Nacional de Verdad y Reconciliacón. 1996, p.20. 27
CHILE. Corporación Nacional de Reparación y Reconciliacón. Informe de la Comissión Nacional de Verdad y Reconciliacón. 1996, p.19.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
89
repressão, bem como familiares das vítimas desaparecidas. Muitos estudantes de cursos de
Direito trabalharam de forma muito eficaz para assessorar as famílias das vítimas nos seus
depoimentos. Também houve necessidade de contratar assistentes sociais para auxiliarem nas
crises emocionais dos familiares das vítimas.28
O resultado final das investigações da Comissão foi um informe com três partes:
Primera parte: Relación de los hechos de violaciones de los derechos humanos, hasta la página 1094. Segunda parte: Recomendaciones para reparar el daño: Págs. 1,096 hasta 1,168. Tercera parte: "Víctimas", Volumen de 635 páginas, con una reseña biográfica de las 2,279 personas respecto de las cuales la Comisión se formó una Convicción de que murieron o desaparecieron como víctimas de la violación a sus derechos humanos, entre ellos 132 miembros de las fuerzas del orden.29
Depois de sua meticulosa investigação sobre os desaparecidos e mortos, a Comissão
recomendou a reparação pública da dignidade das vítimas, e diversas medidas de bem estar
social, pensão, com atenção especial na saúde, educação, habitação, e reivindicações de
isenção de prestação de serviço militar obrigatório para os filhos das vítimas. A Comissão
apresentou também recomendações no plano jurídico e administrativo, como a adequação da
legislação nacional ao direito internacional sobre os Direitos Humanos e a ratificação de
tratados internacionais de Direitos Humanos. Também propôs várias medidas para reformar o
sistema judicial e as forças armadas, bem como a continuação das investigações sobre o
destino dos desaparecidos.30
A Comissão da Verdade e Reconciliação recomendou a penalização no caso de
ocultação de informação a respeito das exumações ilegais, já que muitos familiares das
vítimas continuaram a reivindicar os restos mortais de seus entes queridos. Em janeiro de
1992 o governo chileno, através da lei 19.123 criou a Corporação Nacional de Reparação e
Reconciliação para executar as recomendações da Comissão da Verdade e Reconciliação,
especialmente na reparação material dos danos causados pela ditadura de Pinochet.31
As violações de Direitos Humanos no Paraguai afetaram, além se seu próprio povo,
centenas de estrangeiros fugidos da perseguição da Argentina, Brasil, Chile, Bolívia e
28
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p15. 29
CHILE. Corporación Nacional de Reparación y Reconciliacón. Informe de la Comissión Nacional de Verdad y Reconciliacón. 1996. 30
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.18. 31
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p.15-19.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
90
Uruguai. Em troca, a Argentina, durante a sua guerra suja, desapareceu com 54 paraguaios
que estavam na capital federal Buenos Aires.
A Comissão da Verdade do Paraguai, assim como a da Bolívia, é uma Comissão não
oficial. Em 1976 foi criado o “Comitê de Iglesias para Ayudas de Emergência” (CIPAE),
desde então, com o apoio de várias organizações internacionais, desenvolveu um processo
sistemático de registro e documentação dos fatos de violência no país. Como vários locais
religiosos tinham sofrido ataques por parte das forças de segurança, o CIPAE, desde a sua
origem, tomou a precaução para proteger a maioria dos arquivos em casas seguras, obter
cópias duplas, microfilmes e até mesmo a documentação. Em 1984 o CIPAE encarregou seus
colaboradores de sistematizar informações sobre a violência e seus efeitos sobre o Paraguai.
Havia muito medo de que forças repressivas tentassem silenciar completamente corpos
direitos humanos. 32
O resultado da pesquisa foi publicado de maio de 1990 em uma série de quatro volumes
sob o título geral "Paraguai: Nunca Mais", onde ficou registrado numerosos fatos de violação
de direitos humanos durante a ditadura Stroessner. No Volume I do Paraguai Nunca mais,
indicava que 360.000 pessoas, de um total de três milhões habitantes, passaram por prisões.
Similarmente estimava em 1 milhão e meio o número de paraguaios forçados ao exílio.33
No final de 1993, foi descoberto no Paraguai, por acaso, arquivos dos governos dos
sistemas repressivos do Cone Sul da América, que foram classificados como "arquivos do
terror". Foi encontrado abundante documentação que explica milhares de casos de exilados e
presos políticos da Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai, Chile, Brasil, Paraguai, muitos dos
quais desapareceram nas mãos de serviços de segurança desses países.34
Desde 1980, após 12 anos de governo militar, o Peru experimentou uma situação de
guerra interna, na qual o movimento subversivo do Partido Comunista do Peru enfrentou o
Estado peruano. O movimento transitou da sua prática subversiva ao terrorismo, causando
milhares de vítimas, não só de membros das forças, mas, principalmente, camponeses, líderes
trabalhistas e populares; autoridades comunitárias, profissionais e população em geral. Forças
estaduais também cometeram atos graves e numerosas prisões em massa, torturas,
32
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 40-41. 33
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 41. 34
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 40-43.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
91
desaparecimentos e genocídios. Esse período produziu cerca de 30.000 mortos e mais de
5.000 desaparecidos.35
Por várias vezes, o Estado através do Congresso da República e o Poder Executivo,
criaram Comissões da Verdade para determinar responsabilidades frente as denúncias de
graves violações de direitos humanos. A maioria das comissões que foram criadas, nasceram
com o objetivo político claro: "contra subversivos" oficial. Assim aconteceu com a "Comissão
Uchuraccay", uma das primeiras a investigar casos de violações de direitos humanos no país.
Poucas vezes as investigações no Peru tiveram efeito pacificador e restaurador da justiça. A
impunidade para violadores de direitos humanos é quase norma oficial. 36
Por falta de uma clara compreensão do fenômeno da violência, assim como do apoio do
Poder Judiciário e recursos materiais as diversas Comissões investigadoras do Peru, não
puderam, na maioria dos casos, levar a um bom resultado nas investigações, nem proteger as
testemunhas de castigos. Muitas pessoas, depois de apresentar seus testemunhos e denúncias,
desapareceram ou foram assassinadas pelas forças do Estado.37
Diante dessas conclusões, realmente podemos afirmar que as Comissões na America
Latina tiveram diferentes processos de desenvolvimento, que trouxeram a verdade à sua
sociedade, abrindo possibilidades de sancionar os responsáveis. Mas o que realmente chama
atenção é que, para uma Comissão obter êxito, é importante a participação de organismos de
Direitos Humanos, das organizações políticas, religiosas, acadêmicas, sindicais entre outras, e
da sociedade em geral.
3 A participação social na constituição da verdade sobre as violações de Direitos Humanos no Regime Militar brasileiro: a experiência da Comissão de Anistia brasileira e da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos
A Comissão da Anistia procurou cumprir a função pública na busca dos valores
próprios da Justiça de Transição, quais sejam: o direito à verdade, à memória, à justiça e à
reparação, aprofundando no processo democrático brasileiro. Mas para além do debate
35
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 23. 36
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 23. 37
NÜRNBERGER, Esteban Cuya. Las comisiones de la verdad en América Latina. In http://www.iidh.ed.cr/bibliotecadigital. Acesso em: 05 nov. 2012, p. 24.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
92
reparatório, o Ministério da Justiça, por meio da Comissão de Anistia, exerceu o papel
concretizador dos valores da Justiça de Transição.38
Um dos grandes enfoques da Comissão de Anistia foi o diálogo e parceria estabelecidos
com os mais variados setores da sociedade civil comprometidos com a luta pela democracia.
Exemplo desse diálogo foi a realização das Caravanas da Anistia e demais projetos educativos
de incentivo à apropriação social e política do tema. A Comissão de Anistia também priorizou
a busca pelo direito à memória e à verdade, resgatando a importância da luta pela democracia
no projeto do Memorial da Anistia. 39
O Memorial da Anistia Política do Brasil é resultado do trabalho da sociedade brasileira
na busca da constituição da verdade, pois envolveu familiares, associações dos anistiados,
imprensa, os parlamentares, os conselheiros, os servidores da Comissão de Anistia, a União
Nacional dos Estudantes, a Associação Brasileira de Imprensa, a Congregação Nacional dos
Bispos do Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público Federal. Ele é
fruto de sentimento e valores da justiça. Esse projeto não só valorizou e reconheceu a
relevância de todos os sujeitos históricos que dedicaram suas vidas à resistência contra a
ditadura militar, mas também consolidou uma das principais características para a
constituição de um verdadeiro projeto de nação: “a de que a memória é a base identitária para
a construção e inspiração de novas lutas por uma sociedade que pode ser sempre mais justa e
democrática.”40
Desde a sua instituição, a Comissão da Anistia, passou por vários ajustes. Esses ajustes
foram elaborados para aumentar a capacidade operacional do órgão, como inovações no
funcionamento administrativo, nova metodologia de apreciação dos requerimentos,
aperfeiçoamento da atividade julgadora, aumento do acesso da sociedade civil e da imprensa
às informações e às decisões.41
As Caravanas da Anistia, na busca da ampliação do diálogo com a sociedade,
realizaram julgamentos da Comissão em outras cidades fora da capital federal, aumentando
assim o impacto social. Com a apreciação de processos no local aonde os requerentes foram 38
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.5. 39
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.5. 40
PISTORI, E.C, SILVA FILHO, J.C.M. Memorial da Anistia Política no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. Nº 1. Jan-Jun.2009. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 115-116. 41
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.7.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
93
perseguidos ou vítimas da arbitrariedade do Estado, pode-se resgatar de maneira mais
profunda a dignidade das pessoas, por meio do pedido oficial de perdão as ofensas no local
em que ocorreram. Essas Caravanas além de ampliar o potencial de reparação das decisões
aos anistiados, aumentaram a proximidade da população com os casos julgados e geraram
mais oportunidades de reflexão, por parte da sociedade, quanto às conseqüências do regime
militar na vida dos cidadãos e o valor da democracia.42
A Comissão de Anistia adotou uma visão abrangente na sua atuação, resgatando o
direito à verdade, à memória, à justiça e à reparação, que desencadearam em ações como:
tratamento dos arquivos e preservação do acervo, em especial o icnográfico e audiovisual,
passando a serem consideradas prioridades devido a sua relevância para a consolidação dos
direitos humanos e da cidadania do país.43
Também foram criados grupos de trabalho diante do acúmulo de requerimentos em
trâmite na Comissão. Com objetivo de resolver estes déficits, foram constituídos dez grupos
de trabalho, com destaque de tempo para adequada análise de situações fáticas e de Direito,
com finalidade de análise dos problemas administrativos. As propostas de encaminhamento
oriundas destes passaram a nortear os trabalhos internos da Comissão, agregando subsídios
para formação de juízo dos Conselheiros.44
No que diz respeito a participação da sociedade na Comissão em busca da verdade, a
realização de sessões plenárias temáticas oportunizou-se espaço a Anistia(n)dos, para
apresentar suas teses aos Conselheiros da Comissão e a sociedade civil, bem como divulgar
documentos e opiniões que consideram relevantes ao julgamento de seus requerimentos. O
presidente da Comissão recebeu Anistia(n)dos em seu Gabinete, em audiências previamente
agendadas, oportunidade em que foram detectados temas merecedores de debate mais
ampliado e direto.45
A Comissão de Anistia também promoveu ações educativas com os seguintes objetivos:
42
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.9. 43
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.18. 44
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.18. 45
BRASIL. Ministério da Justiça. Relatório Anual da Comissão da Anistia. Brasília. Ano 2007. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.22.
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94
• desenvolver políticas públicas de memória, concebidas numa perspectiva voltada para a educação em direitos humanos; • resgatar, preservar e divulgar os temas da anistia política, da democracia e da justiça de transição, por meio de ações educativas e culturais; • diversificar e potencializar as funções da Comissão, conferindo a ela caráter educativo e sensibilizador; • enfatizar os aspectos simbólicos, históricos e educativos da reparação, para além do seu caráter econômico.46
Com esses objetivos foram desenvolvidas as ações direcionadas a oportunizar o
conhecimento, a reflexão e o debate referente à verdade do período histórico da ditadura
militar: “1) Caravanas da Anistia; 2) Anistias Culturais; 3) Seminários, Oficias, Cursos e
afins; 4) Publicações de Materiais Educativos e de Divulgação.”47
As Caravanas da Anistia consistem na realização de sessões públicas itinerantes de
apreciação de requerimentos de anistia política acompanhadas por atividades pedagógicas e
culturais. As Caravanas têm como objetivo descentralizar as sessões regulares da Comissão de
Anistia ocorridas ordinariamente na Capital Federal, de modo a garantir ampla participação da
sociedade civil; propiciar o debate e a reflexão sobre o período da ditadura; valorizar e
difundir sobre a verdade da história das pessoas que foram perseguidas e torturadas; dar
visibilidade à luta política e ao papel desempenhado pelos ex-perseguidos, partidos e
organizações clandestinas em prol da democracia e da anistia política; e divulgar o trabalho
desenvolvido pela Comissão de Anistia.48
Durante as Caravanas, os testemunhos dos perseguidos políticos ou de seus familiares e
procuradores, diante de um público plural de estudantes, população local, profissionais da
imprensa, familiares, representantes de órgãos públicos - Ordem dos Advogados do Brasil, a
Confederação Nacional de Bispos do Brasil, a União Nacional dos Estudantes, a Associação
Brasileira de Imprensa, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,
universidades, governos estaduais e municipais, entidades de direitos humanos e grupos de
ex-presos e perseguidos políticos -, tornam de domínio público, as histórias de perseguição
46
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 20 nov. 2012, p.15. 47
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.15. 48
PAULO, Abrão. Caravanas da Anistia: um mecanismo privilegiado da Justiça de Transição no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. Nº 2. Jul-Dez.2009. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 114-115.
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muitas vezes desconhecidas, disponibilizam os relatos e visibilizam as sequelas oriundas das
perseguições, formando uma consciência social sobre o legado autoritário.49
Assim percebeu-se que o encontro promovido nas Caravanas, consequência da troca de
experiências e do processo de escuta coletiva, surtiu efeitos subjetivos que intensificaram o
sentimento de solidariedade entre as gerações, em um despertar de uma postura autor e
constituidor da própria história, da própria verdade. Desta forma, foram realizadas diversas
Caravanas da Anistia em parceria com Universidades e com a UNE (União Nacional dos
Estudantes).50
Já as Anistias Culturais constituem-se em atividades reflexivas desenvolvidas por meio
de uma abordagem cultural e pedagógica, a partir de fatos históricos e datas marcantes no
processo de luta pela redemocratização do país, com o objetivo de realizar Ciclos de Debates
e Mostras Culturais. Os Ciclos foram desenvolvidos mensalmente e foram relacionados a
temas relativos ao período de repressão política no país e temáticas afins, discutidos por ex-
perseguidos políticos, acadêmicos, advogados, e demais pessoas imbuídas pela temática.51
Assim, de 2008 a 2010, a Comissão de Anistia realizou as Anistias Culturais em
parceria com diferentes atores. Dentre os parceiros destacam-se “a Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres, a Universidade de Brasília, o Fórum de Expressos e Perseguidos
Políticos de São Paulo, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a
Ordem dos Advogados do Brasil.”52
Além das Caravanas e Anistias Culturais, foram realizadas outras atividades educativas
como oficinas temáticas, audiências públicas, cursos e seminários. A realização das Oficinas
Temáticas teve como referencia a educação em direitos humanos. Este referencial requereu
metodologias de trabalho de grupo que estimulassem a construção coletiva do saber e a
análise da realidade, promovendo a confrontação e o intercâmbio de experiências. Estas
oficinas tiveram o intuito de sensibilizar os diferentes atores sociais para os assuntos relativos
49
PAULO, Abrão. Caravanas da Anistia: um mecanismo privilegiado da Justiça de Transição no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Ministério da Justiça. Nº 2. Jul-Dez.2009. Brasília: Ministério da Justiça, 2009, p. 116. 50
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.17. 51
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.17. 52
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.18.
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à justiça de transição, com vistas a possibilitar uma leitura crítica da realidade a partir do
contexto histórico e atual.53
Em relação as Audiências Públicas, essas contribuíram para a democratização das
relações entre Estado e sociedade, de modo a fortalecer a participação popular na esfera
pública. Revestiram-se, assim, em espaços de escuta coletiva e de abertura para as
manifestações sociais de movimentos e associações de perseguidos políticos sobre temas de
relevante interesse social.54
Todas essas ações foram planejadas e desenvolvidas pela Coordenação das Ações
Educativas da Comissão de Anistia, de acordo com o procedimento administrativo adotado
pela estrutura ministerial somada às experiências diárias obtidas através das atividades
realizadas. Anualmente a Coordenação de Ações Educativas elabora um planejamento das
atividades no âmbito dos “Encontros sobre Estratégias de Preservação e Divulgação da
Memória”. A metodologia de trabalho adotada tem sido realizada em duas frentes estratégicas
que compreendem atividades de mobilização e atividades de disseminação de informações.
Tais atividades buscam fortalecer a Comissão de Anistia, a fim de obter êxito na execução de
suas políticas públicas de justiça de transição, sensibilizar, discutir e informar sobre anistia
política, e resgatar a memória e a verdade relativas ao período de repressão ditatorial por meio
de ações educativas.55
Nesse sentido, a mobilização tem sido promovida visando dois segmentos:
o primeiro relacionado ao mapeamento de parceiros para a promoção conjunta de atividades educativas a respeito do tema da anistia política, e à elaboração de agenda para firmar novas parcerias e consolidar as já em andamento. O segundo, relacionado ao mapeamento, divulgação e sensibilização do público, buscando atingir diversos setores da sociedade civil.56
A partir da divulgação e disseminação de todas essas atividades realizadas pela
Comissão, da realização de seminários, audiências públicas, debates, do estímulo à pesquisa e
53
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.16-17. 54
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.19. 55
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.46. 56
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.46.
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à produção acadêmica, bem como por meio do registro das atividades, composição de acervo
documental e relatórios de análise e avaliação das ações desenvolvidas, enriquece-se o debate
atinente ao tema da justiça de transição. Com esse viés, foram realizados estudos teóricos a
respeito das atividades educativas demonstrando sua relevância para a implantação do
processo justransicional brasileiro, promovidos cursos sobre anistia política e concebidas
diretrizes conceituais e propostas de novas ações. Assim, As atividades de disseminação de
informações têm-se revelado importante instrumento para a concepção de estratégias de
mobilização de novos públicos. Ademais, a execução de estudos teóricos implica, em muitos
casos, trabalhos de mobilização junto a parceiros.57
Houveram também atividades promovidas pela Comissão em parceria com outras
instituições, a exemplo do Projeto “Marcas da Memória: história oral da anistia no Brasil” que
foi firmado a partir de um convênio entre a Comissão de Anistia e três universidades federais:
a de Pernambuco (UFPE), a do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a do Rio de Janeiro (UFRJ). O
objetivo do convênio era mobilizar professores, pesquisadores e alunos das universidades a
produzirem acervos de fontes orais e visuais, refletirem sobre a história e a memória da anistia
no Brasil e divulgarem essas reflexões em fóruns acadêmicos. Ampliando, assim, o espaço da
discussão crítica e da produção de fontes primárias e de conhecimento sobre o período da
ditadura militar no Brasil, o processo de redemocratização e a justiça de transição que vem
sendo implantada no país.58
No que condiz esses trabalhos realizados pela Coordenação das Ações Educativas, este
está intrinsecamente associado a parceria interna e externa:
A parceria interna refere-se à interface necessária com os outros setores da Comissão de Anistia. No caso da realização de uma edição da Caravana da Anistia, o apoio vai desde a Secretaria do Gabinete, que realiza a solicitação de passagens e diárias, passando pelas Coordenações de Análise, Julgamento e Finalização, até a Presidência e Vice-Presidência e Conselheiros. A parceria externa refere-se, por sua vez, ao estreito contato com os parceiros das localidades onde as atividades serão realizadas, necessário para um resultado satisfatório.59
A Coordenação elaborou uma forma para manter o fluxo de informações.
Disponibilizou todos os documentos em pasta compartilhada na intranet. Com isto objetivou-
57
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.46-47. 58
ARAUJO, Maria Paula. Marcas da Memória: história oral da anistia no Brasil. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. N. 6. Jul-dez.2011, p. 174. 59
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.47.
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se o uso produtivo das informações e documentos gerados pelos integrantes, a fim de permitir
acessibilidade prática e rápida a toda equipe, baseado num sistema colaborativo, em que todos
participam da inserção e atualização dos dados. Para além da documentação em meio digital,
as atividades estão disponíveis em meio impresso, no arquivo físico da Coordenação.60
A Coordenação das Ações Educativas não trabalhou sozinha, teve interface com outros
setores da Comissão de Anistia: a Presidência e Vice-Presidência; Secretaria Executiva;
Secretaria Geral; Coordenação de Comunicação; Coordenação de Cooperação Internacional;
Coordenação de Percerias e Convênios; Coordenação de Orçamento e Finanças; Coordenação
de Análise; Coordenação de Julgamento; Coordenação de Contadoria e Finalização.61
Entre esses setores, o da Coordenação de Parcerias e Convênios está diretamente ligado
a participação da sociedade nas Ações Educativas. Exemplo disso é a elaboração de edital
público que selecionou 10 projetos de preservação, memória, divulgação, difusão e de
incremento do acervo material e imaterial, com ênfase em atividades temáticas sobre o
processo de Anistia Política e Justiça de Transição no Brasil. Por meio destas contratações,
estão sendo apoiadas financeiramente a produção de dois documentários, duas exposições,
duas publicações, um material didático e seminários, além do apoio à itinerância de um show
musical e de uma peça de teatro. Entre estes projetos, quatro estão vinculados diretamente às
Caravanas da Anistia: dois registros históricos e duas atividades artísticas que irão
acompanhar a programação das Caravanas.62
Para contribuir à reflexão e ampliação das atividades, foi contratado consultoras
externas para realizar estudos, ações de mobilização nacional e internacional e disseminação
de informações relativas às atividades desenvolvidas pela Comissão de Anistia. Os produtos,
frutos desta contratação, contribuíram para a reflexão e o conhecimento mais aprofundado das
atividades realizadas e sua relevância sociopolítica no contexto justransicional brasileiro.63
Percebe-se que realmente o grande enfoque da Comissão de Anistia foi o diálogo e
parceria estabelecidos com os mais variados setores da sociedade civil comprometidos com a
60
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.48. 61
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.48-50. 62
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.49. 63
BRASIL. Ministério da Justiça. Ações Educativas da Comissão de Anistia. Relatório de Gestão 2007-2010. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/anistia/main.asp?View={72590C4A-B0ED-4605-A9D8-5247054336A6}. Acesso em: 26 nov. 2012, p.60.
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luta pela democracia. Apesar das decisões sobre como e quais atividades deveriam ser
lançadas à sociedade na busca da verdade serem tomadas pela própria Comissão, essa
organizou diversas atividades que envolveram a sociedade. Um exemplo é o Memorial da
Anistia Política do Brasil, pois envolveu familiares, associações dos anistiados, imprensa, os
parlamentares, os conselheiros, os servidores da Comissão de Anistia, a União Nacional dos
Estudantes, a Associação Brasileira de Imprensa, a a Congregação Nacional dos Bispos do
Brasil, a Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público Federal.
As Caravanas da Anistia também buscaram a ampliação do diálogo com a sociedade,
realizaram julgamentos da Comissão em várias cidades do Brasil, aumentando assim o
impacto social. Além disso, a realização de sessões plenárias temáticas oportunizou-se espaço
a anistiados e anistiandos, para apresentar suas teses aos Conselheiros da Comissão e a
sociedade civil, bem como divulgar documentos e opiniões que consideram relevantes ao
julgamento de seus requerimentos.
No que diz respeito a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, a
busca da verdade pelos familiares das pessoas que morreram na luta contra o regime militar é
uma história longa e repleta de obstáculos. De início, as famílias e seus advogados tinham em
mãos apenas uma versão falsa ou simplesmente um vazio de informações. Há mais de 35
anos, seguem batendo em todas as portas, insistindo na localização e identificação dos corpos.
Tiveram sucesso em poucos casos. Mas alcançaram êxito num primeiro objetivo importante: o
Estado brasileiro reconheceu sua responsabilidade pelas mortes denunciadas.64
A legítima pressão exercida por militantes dos Direitos Humanos, ex-presos políticos,
exilados, cassados e familiares de mortos e desaparecidos a favor da Anistia e do direito à
verdade adquiriu vigor em meados da década de 1970, até resultar na conquista da Lei nº
6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como Lei da Anistia.65
Mais tarde, com o fortalecimento da luta dos familiares das vítimas do regime militar
abriu-se caminho para a conquista da Lei nº 9.140, essa lei trata da responsabilidade do
Estado pelas mortes, garantiu reparação indenizatória e, principalmente, oficializou o
64
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 31. 65
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 31.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
100
reconhecimento histórico de que esses brasileiros não podiam ser considerados terroristas ou
agentes de potências estrangeiras, como sempre martelaram os órgãos de segurança.66
A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), instituída
então pela lei, era composta de sete integrantes: um deputado da Comissão de Direitos
Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às vítimas da ditadura, um representante das Forças
Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas livremente escolhidas
pelo presidente da República. A composição inicial, bem como as sucessivas alterações
ocorridas ao longo desses 11 anos de sua existência, já foram apresentadas no início deste
livro-relatório.67
Os trabalhos começaram no dia 8 de janeiro de 1996, na sala 621 do prédio anexo ao
Ministério da Justiça, sob a presidência de Miguel Reale Junior. A partir desse dia, começou a
contagem regressiva para revisar duas décadas de história deliberadamente escondidas. Houve
embates e discussões acirradas na CEMDP. Os familiares nunca aceitaram a indicação do
general Oswaldo Pereira Gomes, pelo fato de seu nome estar citado como participante dos
aparelhos de repressão no Brasil Nunca Mais, livro que se tornou uma espécie de bíblia sobre
os crimes cometidos durante a ditadura militar.68
O general, que deixou a Comissão em 2003, orgulha-se de sua participação, embora
defenda que as indenizações também deveriam ser destinadas às famílias de militares e civis
mortos na defesa do regime. “Minha presença representava o contraditório, os embates eram
travados com base jurídica, eu atuava como advogado indicado pelas Forças Armadas”,
argumenta o militar da reserva. Para ele, um dos julgamentos mais simbólicos foi o de Zuzu
Angel. De início, foi negado o reconhecimento da responsabilidade do Estado por sua morte e
a consequente indenização. Em seguida, houve revisão do processo e a família obteve os
direitos, contra o seu voto. O general também não concordou com o reconhecimento das
mortes e com a indenização às famílias de Carlos Marighella e Carlos Lamarca.69
66
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 31. 67
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 38. 68
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 38-39. 69
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 39.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
101
Pressionados pelo prazo exíguo e pelo surgimento de muitos casos novos devido à
divulgação pela mídia, o trabalho teve de ser acelerado. Os requerimentos foram distribuídos
entre os integrantes, que tinham a missão de montar os processos, anexando documentos e um
relatório com explicações sobre as circunstâncias da morte.70
Sempre foi muito difícil o acesso a documentos probatórios. Aqueles obtidos para
comprovar que o Estado era responsável pelas mortes foram procurados nos arquivos
estaduais já abertos, livros dos cemitérios clandestinos, registros municipais e também
aproveitando testemunhos de sobreviventos. Fragmentos foram recolhidos e juntados
minuciosamente para reconstruir o histórico das mortes, mas o número de desaparecidos cujos
corpos puderam ser localizados e identificados ainda é considerado ínfimo.71
Os pesquisadores procuraram também a documentação do Superior Tribunal Militar
(relativa aos processos formados na Justiça Militar) e ali localizaram dados importantes. Um
exemplo foi o de Luiz José da Cunha, que segundo os autos ingressou na prisão apenas de
cuecas e meias e, portanto, não poderia ter morrido em tiroteio. Com lupas, respirando o ar
viciado e o mofo dos arquivos, os parentes dos mortos reviravam papéis amarelados,
garimpando detalhes perdidos em caudalosos textos de linguagem técnica ou dissimulada, em
especial nos arquivos do DOPS de Pernambuco, do Rio de Janeiro e de São Paulo. Também
as fotos dos corpos coletadas no Instituto Médico Legal (IML) foram fundamentais para que
médicos legistas emitissem laudos comprovando as marcas de tortura.72
Na opinião de Francisco Helder Macêdo Pereira, que atuou como assessor
administrativo da Comissão, entre 1996 e 2004, o início não foi tão difícil, pois os primeiros
casos a ser indenizados já constavam no Anexo I da Lei nº 9.140, embora houvesse resistência
da Polícia Federal e das Forças Armadas em fornecer informações. Mesmo com as
informações preliminares constando no anexo da lei, o excesso de trabalho, o tempo exíguo e
a dificuldade de obtenção de documentos refletiam-se no clima das reuniões da Comissão. Os
70
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 39. 71
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 39. 72
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 39-40.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
102
integrantes discutiam com freqüência e os embates mais acirrados ocorriam com o
representante das Forças Armadas.73
Miguel Reale Junior, que presidiu a comissão durante cinco anos, confirma que houve
momentos de confronto, quando teve de impor ordem nas discussões mais acaloradas,
“sobretudo durante análise dos casos de Marighella, Lamarca e Zuzu Angel, os mais
emblemáticos”. O jurista, que seria ministro da Justiça entre abril e julho de 2002, compara os
trabalhos do período em que esteve à frente da CEMDP com um contínuo filme de terror.
Destaca como importante avanço a ampliação do conceito de localidade em que a vítima está
sujeita ao poder do Estado. “Não apenas em quatro paredes se dava o reconhecimento da
responsabilidade do Estado, mas mesmo na rua ou no campo, quando a submissão à força
policial era evidente e massiva, como nos casos de Marighella e Lamarca, entre outros”.74
O coronel João Batista Fagundes, que entrou na Comissão em 2003, concorda com seu
antecessor, general Oswaldo Pereira Gomes, no sentido de que suas presenças tiveram
significado especial por permitirem o exercício do contraditório. “Tal fato demonstra também
que a Comissão não se destina a hipertrofiar erros e violências cometidos por autoridades
policiais ou militares, mas à apuração da verdade que possa ensejar um ressarcimento moral e
material às vítimas de tais violências”, assinala, ressaltando que a CEMDP é uma instância de
Estado, e não de governo.
Ele acredita que a força da Comissão reside na heterogeneidade da origem de seus
integrantes, credenciando-a a julgar os casos com isenção:
Ela é um colegiado que tem opiniões muito próprias, que às vezes são divergentes. Alguém já disse que da discussão nasce a luz. E temos discussões acaloradas mesmo. Evidentemente, eu, como integrante das Forças Armadas, não penso da mesma forma que pensam outros integrantes. Mas eles têm todo o direito de pensar daquela maneira, até porque nós vivemos a plenitude de um Estado Democrático de Direito. Tenho procurado interpretar o pensamento da Forças Armadas. Temos algumas falhas no nosso passado, alguns períodos de turbulência, em que determinados movimentos de força eram justificados. E que hoje não são mais justificados. As Forças Armadas têm o maior interesse em restabelecer a verdade dos fatos e, se possível, quando for o caso, até promover o ressarcimento do dano. Agora, nós não podemos é atribuir ao Exército e às Forças Armadas determinados erros e exageros dos quais participaram no passado”.75
73
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 40. 74
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 40. 75
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 40.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
103
Para ele, o trabalho da CEMDP registra para a posteridade um período nebuloso da
história do Brasil, “que, esperamos, não volte nunca mais, para que possamos viver
pacificamente em um Brasil com respeito à cidadania e onde todos sejam iguais perante a lei,
mediante o fiel cumprimento do preceito constitucional”. O coronel Fagundes lembra também
o processo sobre o jornalista Alexandre Von Baumgarten, do qual foi relator. A filha requereu
o pagamento de indenização, com base nas versões de que ele teria sido assassinado a mando
do general Newton Cruz. Houve um rumoroso processo à época, Newton Cruz foi submetido
a julgamento na Justiça Criminal do Rio de Janeiro, sendo absolvido por unanimidade,
inclusive em segunda instância. “E eu disse, ao indeferir o processo, cujo relatório foi
aprovado por unanimidade, que não poderia aplicar o princípio do ‘in dubio, pro reo’. O
jornalista era um homem de múltiplas inimizades. Ele estava escrevendo um livro, ‘Yellow
Cake’, no qual alegava o interesse de Israel e do Iraque na compra de urânio brasileiro. E
também era muito polêmica a idéia de que pretendia recuperar, com o patrocínio da Capemi, a
revista ‘O Cruzeiro’ para fazer propaganda do regime. Por que razão o Exército o mataria?
Matar um amigo? Ele inclusive teria recebido a Medalha do Pacificador”, conta o oficial da
reserva.76
Os envolvidos na criação da CEMDP e seus integrantes são unânimes em afirmar que o
momento de maior exasperação foi quando se decidiu acatar os pedidos das famílias de Carlos
Lamarca e Carlos Marighella. Um senador chegou a telefonar dizendo que o governo estava
passando dos limites. “O deferimento de indenizações nesses dois casos submeteu nossa
incipiente democracia a mais um teste e ela resistiu bem”, opina Belisário dos Santos Junior.
Elder Macêdo lembra que o voto de Paulo Gonet no processo de Carlos Lamarca tinha 38
laudas e muitos tópicos foram até mesmo usados como referência em outros processos. “No
geral, tivemos uma postura equilibrada das Forças Armadas, com pouquíssima oposição de
alguns oficiais da reserva, mas creio que houve um entendimento superior de que era
necessário que o Estado assumisse a responsabilidade”, analisa José Gregori, que lembra,
ainda, a atuação sempre serena de Miguel Reale Junior como primeiro presidente da
Comissão.77
76
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 40-41. 77
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 41.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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Belisário dos Santos Junior também avalia a Comissão como um órgão de Estado, e não
de governo, o que facilita a melhor compreensão de seu papel para a sociedade. “Assim, os
membros da CEMDP sempre procederam com independência total. Jamais, em qualquer
gestão, houve tentativa de decidir neste ou naquele sentido. Sei que houve embates verbais
muito duros com o primeiro representante das Forças Armadas, o general Oswaldo Pereira
Gomes. O coronel João Batista, da atual representação militar, é um homem com imenso
respeito pelos Direitos Humanos, cujos votos têm honrado a tradição desta Comissão. Ele
sabe que as Forças Armadas não se confundem com os torturadores que se esconderam em
passado recente atrás de uma farda. E que a tortura, sob qualquer forma, deve ser punida, e
suas vítimas devem ser reconhecidas e indenizadas pelo Estado”, diz Belisário.78
Cada processo concluído pela Comissão Especial era apresentado e votado, mas, como
regra geral, o veredicto não era decidido por consenso, e sim por votação, após longos
debates. Por determinação da lei, as indenizações não ocorriam automaticamente. Os
familiares precisavam solicitá-las mediante requerimento. Na fase inicial foram protocolados
373 processos, referentes a 366 pessoas – sendo 132 de desaparecidos mencionados no Anexo
I da Lei. Dos 234 restantes, 166 eram mortos referidos no dossiê original e 68 eram casos
novos. A diferença numérica ocorreu pela duplicidade de pedidos ou pela existência de
processos repetidos, quando duas pessoas solicitavam indenização pela mesma vítima ou uma
única pessoa solicitava duas ou mais indenizações porque em sua família havia mais de uma
vítima. Dos processos apreciados, foram aprovados, de início, 148 nomes, 130 deles contidos
no dossiê e 18 casos novos. Os indeferimentos somaram 86 processos, sendo 36 do dossiê.79
Para o atual presidente da CEMDP, Marco Antônio Rodrigues Barbosa, os mortos e
desaparecidos políticos da ditadura sempre retornam, não descansam. “O que não é
assimilado pela História reaparece como sintoma”, diz. Para ele, em primeiro lugar, o trabalho
da Comissão Especial é a possibilidade, com a resposta do Estado, da restauração da justiça e
da paz, para que perseguições, mortes e desaparecimentos forçados nunca mais voltem a
acontecer neste país. Depois, esses trabalhos possibilitam a cicatrização de feridas: a luta dos
familiares constitui uma decisão com força de um destino trágico grego, “pois, como
Antígona em sua luta para dar sepultura ao irmão, assim eles fazem com relação aos seus
78
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 41. 79
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 41.
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entes queridos mortos e desaparecidos, muitos deles assassinados pela ditadura e enterrados
como indigentes”.80
Em síntese, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos foi a Comissão que
menos houve participação social. A Comissão é composta de um deputado da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às vítimas da ditadura, um representante das
Forças Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas livremente
escolhidas pelo presidente da República.
Os debates aconteciam, os integrantes discutiam com frequência e os embates mais
acirrados ocorriam com o representante das Forças Armadas. Além disso cada processo
concluído pela Comissão Especial era apresentado e votado, mas, como regra geral, o
veredicto não era decidido por consenso, e sim por votação, após debates.
Assim, percebe que também não houve deliberação pública. A democracia deliberativa
é uma composição estrutural de condições sociais e institucionais que torna mais provocante e
fácil o discurso livre entre cidadãos iguais. Ou seja, ela proporciona condições favoráveis de
participação, associação e expressão, além disso vincula a autorização para exercer o poder e
o próprio exercício do poder público, o que não ocorreu em nenhum dos casos.
4 Considerações Finais
O trabalho analisou a história da América Latina para comparar o trabalho e a
participação da sociedade brasileira na constituição da verdade sobre as violações de Direitos
Humanos do Regime Militar, apresentando assim, os mecanismos instaurados para constituir
a verdade nesses países, analisando-se os trabalhos das Comissões da Verdade oficiais e não
oficiais da América Latina e a participação social em cada uma delas, bem como se deu a
participação da sociedade brasileira na Comissão da Anistia e na Comissão dos Mortos e
Desaparecidos Políticos.
Nas Comissões da America Latina constituídas para a construção da verdade, verificou-
se, durante a pesquisa, que existiram diferentes processos de desenvolvimento que abriram
possibilidades, em alguns casos, de sancionar os responsáveis por violações de direitos
humanos. Mas o que realmente chama atenção é que, para uma Comissão obter êxito, é
80
BRASIL. SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, 2007, p. 42.
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importante a participação de organismos de Direitos Humanos, das organizações políticas,
religiosas, acadêmicas, sindicais entre outras, e da sociedade em geral.
Na Argentina a comissão da verdade ocorreu com maior participação do poder público,
revestindo-se de um caráter formal e oficial. Através de seu Poder Executivo, aquele país
resolveu constituir sua comissão com as câmaras do Congresso Nacional e com outras
pessoas de dentro e fora do país.
Por outro lado, dentre as comissões investigadas durante a pesquisa, foi na Bolívia em
que se verificou a maior participação da sociedade no processo de constituição da verdade,
discutindo-se, inclusive, assuntos relacionados ao que fazer com os crimes da ditadura e seus
responsáveis. Apesar de ser uma Comissão não oficial, foi a única que procurou um consenso
sobre como os casos deveriam ser investigados. A força da sociedade boliviana, a Central dos
Trabalhadores da Bolívia, a igreja Católica e Metodista, a Universidade San Simon da Paz, os
sindicatos de jornalistas, os grupos de Direitos Humanos, os familiares de vítimas da ditadura,
com o apoio de alguns políticos conseguiram o impeachment contra o general Luis García
Meza.
No Chile também houve participação social intensa. Mais de sessenta pessoas de
diversas organizações nacionais e internacionais de Direitos Humanos colaboraram e
trabalharam em tempo integral para o processamento das informações obtidas pela Comissão
da Verdade. E o Paraguai foi outro país que teve o apoio de várias organizações
internacionais.
Em todos esses casos, em maior ou menor medida, vê-se a participação social nas
comissões da verdade. Contudo, para uma Comissão da Verdade ser realmente bem sucedida,
além do envolvimento de organizações de direitos humanos e de instituições sociais oficiais,
verificou-se a necessidade de um amplo movimento de apoio da sociedade, em que as
organizações políticas, religiosas, acadêmicas, sindicatos e outros unam forças. A chance de
constituir a verdade, desse modo, é maior quando a sociedade parte de um esforço.
Entretanto, dentre as comissões analisadas, não se verificou em nenhuma delas, seja
oficial ou não oficial, uma deliberação pública efetiva. Ou seja, não se verificou a
concretização da democracia deliberativa, através da qual se vislumbra a abertura de um
debate público. Em todas as comissões analisadas, os indivíduos não tiveram acesso igual às
condições necessárias para tomar boas decisões em relação em como constituir a verdade. Na
sociedade política, onde existem divergências consideráveis sobre quais são os interesses dos
indivíduos, sejam eles individuais ou coletivos, a principal incorporação pública da
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consideração igual de interesses está em instituições que asseguram que cada um tenha voz
igual na tomada de decisão coletiva.
Em suma, muito embora nos países da América Latina a constituição da verdade tenha
se dado por meio de suas respectivas Comissões, sejam elas oficias ou não oficiais, com
maior ou menos participação da sociedade, em nenhum caso se vislumbrou uma efetiva
participação.
No Brasil, a Comissão Oficial da Verdade ainda não concluiu seus trabalhos. A despeito
disso, é perfeitamente possível averiguar a participação social na constituição da verdade nas
Comissões da Anistia e Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos por meio de seus
relatórios. Pode-se perceber que realmente há um grande destaque no diálogo e na parceria
estabelecidos com os mais variados setores da sociedade civil comprometidos com a luta pela
democracia. Apesar das decisões sobre quais atividades, e de que forma, deveriam ser
lançadas à sociedade na busca da verdade, serem concentradas na própria comissão, a sua
grande virtude está na organização de diversas atividades que envolveram a sociedade
brasileira. Um exemplo disso é o Memorial da Anistia Política do Brasil, pois envolveu
familiares, associações dos anistiados, imprensa, os parlamentares, os conselheiros, os
servidores da Comissão de Anistia, a União Nacional dos Estudantes, a Associação Brasileira
de Imprensa, a Congregação Nacional dos Bispos do Brasil, a Ordem dos Advogados do
Brasil e do Ministério Público Federal.
As Caravanas da Anistia também buscaram a ampliação do diálogo com a sociedade,
realizaram julgamentos da Comissão em várias cidades do Brasil, aumentando assim o
impacto social. Além disso, a realização de sessões plenárias temáticas oportunizou-se espaço
a anistiados e anistiandos, para apresentar suas teses aos Conselheiros da Comissão e a
sociedade civil, bem como divulgar documentos e opiniões que consideram relevantes ao
julgamento de seus requerimentos.
Por outro lado, a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos foi a Comissão que,
no Brasil, houve menos participação social. Essa Comissão é composta de um deputado da
Comissão de Direitos Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às vítimas da ditadura, um
representante das Forças Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas
livremente escolhidas pelo presidente da República. As decisões emanas desta comissão eram
tomadas através do voto e não por consenso após os debates. Assim, percebe-se que também
não houve deliberação.
A democracia deliberativa é uma composição estrutural de condições sociais e
institucionais que torna mais provocante e fácil o discurso livre entre cidadãos iguais. Ou seja,
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ela proporciona condições favoráveis de participação, associação e expressão, além disso
vincula a autorização para exercer o poder e o próprio exercício do poder público, o que não
ocorreu em nenhum dos casos que foram analisados na presente pesquisa.
Desse modo, as perspectivas de efetividade de uma democracia, calcada em seus
fundamentos teóricos e práticos, ainda que necessária para a constituição da verdade histórica,
enfrenta uma série de entraves que precisam ser superados para a construção de um Brasil
verdadeiramente democrático.
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DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO BRASIL: NOTAS SOBRE UM DEBATE
NECESSÁRIO PARA O CAMPO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO
RIGHT TO MEMORY AND TO TRUTH IN BRAZIL: NOTES ON A NECESSARY
DEBATE FOR THE TRANSITIONAL JUSTICE FIELD
Carlos Bolonha e Vicente Rodrigues
RESUMO O presente artigo tem por objetivo contribuir para o debate sobre a justiça de transição no Brasil buscando, para tanto, investigar o conceito e o reconhecimento do chamado “direito à memória e à verdade”, identificando-o como um dos elementos-chave da justiça de transição brasileira. Para tanto, parte da análise histórica do regime civil-militar brasileiro (1964-1985), identificando a justiça de transição como um novo campo de estudo que tem por objetivo o enfrentamento de um legado de violações dos direitos humanos. Em particular, centra-se numa reflexão sobre o conteúdo e o reconhecimento do direito à memória e à verdade. Este direito é aqui entendido como uma dimensão fundamental para a consecução dos objetivos da justiça de transição no Brasil, por intermédio de dois mecanismos recentemente criados, a Comissão Nacional da Verdade e a nova Lei de Acesso a Informações. PALAVRAS-CHAVE: Justiça de transição; Direito à memória e à verdade; Direitos Humanos; Regime civil-militar brasileiro.
ABSTRACT This article aims to contribute to the debate on transitional justice in Brazil, investigating both the concept and the recognition of the so-called “right to memory and to truth”. To this end, seeks to promote a historical analysis of the Brazilian civil-military regime (1964-1985) identifying transitional justice as a new field of study that aims to deal with a legacy of human rights violations. In particular, it focuses on the discussion of the content and the recognition of the right to memory and to truth as a fundamental dimension to achieve the goals of the Brazilian transitional justice. In Brazil the right to memory and truth has two recently created mechanisms: the National Commission of Truth and the new law on access to information. KEYWORDS: Transitional justice; Right to memory and to truth; Human rights; Brazilian civil-military dictatorship.
1 Considerações iniciais
O Brasil, como outros países da América do Sul, passou pela experiência de um
regime ditatorial na segunda metade do século XX, especificamente entre os anos de 1964-
1985, tempo de violações sistemáticas e maciças dos direitos humanos1, de negação de
valores democráticos e de arbítrio do Estado.
1 A expressão “direitos humanos” é aqui compreendida, de forma geral, como um grupo de direitos historicamente construídos que têm como destinatários todos os seres humanos. Isto é, representa posições
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Em breve resumo, que não pretende dar conta de toda a complexidade da experiência
brasileira, cabe rememorar que, em 1961, assumiu a presidência da República o político
conservador Jânio Quadros, cujo governo foi breve e errático, tanto do ponto de vista interno
quanto de sua política externa (MARKUN e HAMILTON, 2001). Em seu lugar, e após um
conturbado processo político, no qual sua posse chegou a ser impedida por setores das Forças
Armadas Brasileiras (FAB), assumiu o então vice-presidente2 do Brasil, João Goulart (1961-
1964), popularmente conhecido como “Jango”.
Com o objetivo de fortalecer o seu governo e promover uma agenda política
reformista, Jango realizou um grande comício, em 13 de março de 1964, na Central do Brasil,
na cidade do Rio de Janeiro, que ficaria conhecido como o “Comício das Reformas de Base”,
quando anunciou que o governo adotaria uma série de ações e projetos que levariam a
mudanças radicais nas estruturas agrária, econômica e educacional do Brasil sem, contudo,
afastar o país do marco legal e democrático.
Essas reformas jamais seriam levadas a cabo, pois em 31 de março de 1964, deu-se o
golpe de estado que selaria o fim do governo de Jango. Por outro lado, o golpe-civil militar3
teve como resultado mais do que a derrubada do presidente, levando ao estabelecimento, em
1º de abril do mesmo ano, de um “governo revolucionário” comandado por uma junta militar,
representando, ademais, a demolição do sistema constitucional democrático estabelecido após
o fim do Estado Novo (1937-1945).
Mal tinha se instalado no Palácio do Planalto, a junta militar decretou o Ato
Institucional (AI) nº-1, primeiro de uma série de seis normativas que buscavam
institucionalizar a “legalidade autoritária do regime”. Com apenas onze artigos, o AI-1 deu ao
executivo federal o poder de alterar a constituição e cassar mandatos legislativos e direitos
políticos, além da faculdade de demitir, colocar em disponibilidade ou aposentar
compulsoriamente qualquer adversário do regime “revolucionário”, sem “apreciação judicial
desses casos”. Da mesma forma, estabeleceu eleições indiretas para a presidência da
República. Portanto, embora a Constituição de 1946 somente tenha sido oficialmente
jurídicas ativas de direitos comuns a todas as pessoas, pelo simples fato de serem humanas (COMPARATO, 2010). 2 De acordo com o art. 81 da Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, o presidente e o vice-presidente da República deveriam ser eleitos simultaneamente, mas não havia a obrigação de pertencerem ao mesmo partido ou coligação. 3 Referimo-nos à caracterização do golpe, e da própria ditadura, como “civil-militar” e não, apenas, “militar”. A sucessão de “presidentes-generais”, bem como o papel de destaque das Forças Armadas parece, a princípio, indicar como correta esta última definição. Contudo, sobre o caráter civil-militar desse movimento, há que se considerar, como esclarece Silva (2003, p. 271), as “íntimas e complementares relações entre empresários e militares na conspiração contra o regime constitucional no Brasil”.
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substituída em 1967, não se encontrava mais em vigor, mutilada pelos atos institucionais do
regime civil-militar. Ao AI-1 sucederam-se mais cinco atos institucionais, dentre os quais o
mal afamado AI-5 (1968), que determinou o fechamento do Congresso Nacional e inaugurou
o período mais brutal da repressão política no Brasil, caracterizado pelos “desaparecimentos”
forçados, assassinatos e tortura generalizada ocorridos nos aparelhos policiais, oficiais e
extraoficiais, do Estado brasileiro.
Por outro lado, o período da ditadura civil-militar também demarcou, dentro da lógica
do sistema capitalista de produção, uma fase de grandes transformações na economia do
Brasil, de modernização da indústria e dos serviços, de concentração de renda, de abertura ao
capital estrangeiro e do endividamento externo. Nesse sentido, cabe apontar que a ditadura
civil-militar brasileira deve ser compreendida no contexto das ditaduras que foram
implantadas na América do Sul na segunda metade do século XX. Os Estados Unidos da
América do Norte (EUA), a pretexto de “proteger” os demais países americanos da
“infiltração comunista” financiada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS),
e de evitar, assim, a ocorrência de “outras Cubas4”, apoiou, direta ou indiretamente, golpes
militares como os que aconteceram no Brasil em 1964, na Argentina em 1976, e no Chile em
1973.
Nessa perspectiva, os regimes repressivos sul-americanos chegaram ao fim, um após o
outro, quando as condições políticas e econômicas que os sustentavam, tanto interna quanto
externamente, deixaram de existir. Nesse processo, desempenhou papel importante o fim da
Guerra Fria (1990), bem como fatores peculiares, como é exemplo a derrota da Argentina na
chamada “Guerra das Malvinas”5.
De toda forma, as transições políticas em direção a regimes democráticos, tanto no
Brasil, como na Argentina, Chile e Uruguai, completaram-se entre as décadas de 1980 e 1990,
com a passagem do poder para presidentes eleitos pelo voto popular, adoção de novas leis, e
até de novas constituições nacionais, fortemente influenciadas pela temática dos direitos
humanos.
Contudo, restava – e ainda resta – resolver determinadas questões fundamentais, um
“mal estar”, por assim dizer, das novas democracias, inclusive no Brasil, que poderia ser 4 Em 1959, o Movimento 26 de Julho (M-26-7), liderado por Fidel Castro, derrubou o ditador cubano Fulgencio Batista (1952-1959). Posteriormente, em 1960, o caráter socialista da revolução cubana ficou evidente. Os EUA reagiram decretando o bloqueio econômico contra Cuba (1960) e rompendo relações diplomáticas com o país (1961), situação que perdura até os dias de hoje. 5 Conflito armado que contrapôs a Argentina à Inglaterra, em 1982, pela soberania das Ilhas Malvinas (Falklands, em Inglês). O conflito, iniciado pela Argentina, é visto hoje como uma tentativa de garantir a sobrevida do regime militar naquele país. Ocorreu precisamente o contrário: com a derrota, a ditadura caiu no ano seguinte, em 1983.
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expresso a partir de perguntas muito diretas. Como conhecer e enfrentar o legado das graves
violações dos direitos humanos praticadas nos períodos repressivos? Como fazer justiça às
vítimas de tortura e aos familiares de desaparecidos políticos? Como e quando responsabilizar
os perpetradores de violações dos direitos humanos? E, principalmente, como evitar que as
atrocidades ocorram novamente?
A rigor, o campo da justiça de transição não possui respostas prontas a essas
perguntas. Contudo, por intermédio de determinados mecanismos, pretende oferecer
caminhos para que seja possível responde-las. Um desses caminhos envolve a promoção do
chamado “direito à memória e à verdade”, que visa (re)construir a história recente do país, a
partir de uma série de mecanismos e estratégias.
No Brasil, a justiça de transição encerra determinados desafios, assim como
potencialidades, tendo em vista a notória permanência da tortura como prática sistemática,
bem como de execuções extrajudiciais operadas pelo aparelho repressivo do Estado brasileiro.
É nesse contexto, portanto, que buscaremos discutir e caracterizar o direito à memória e à
verdade como elemento-chave da justiça de transição no Brasil.
2 Justiça de transição como novo campo dos direitos humanos
De acordo com Call (2004, p.101), uma das mais dramáticas transformações da
política global em anos recentes deu-se com o surgimento de um novo campo de estudos na
área dos direitos humanos, denominado de justiça de transição que, ainda segundo o autor,
“tem capturado muita atenção dos estudos sobre direitos humanos”.
Sua relevância pode ser explicada, a princípio, porque um grande número de países
foram, em anos recentes, “sociedades de transição” – inclusive o Brasil, após 1985, com o fim
do regime civil-militar. Por outro lado, ao contrário do que ocorre, atualmente, no Brasil,
muitas dessas sociedades puderam responsabilizar judicialmente os perpetradores de
violações dos direitos humanos.
O conceito de justiça de transição emergiu, internacionalmente, a partir de análises
feitas sobre contextos nacionais de transição política, em sociedades que experimentaram
violações maciças dos direitos humanos na segunda metade do século XX. Como exemplo
desses contextos, podemos citar o caso da Argentina que, em 1983, criou a Comisión
Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP) com o objetivo de esclarecer os
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desaparecimentos forçados durante a ditadura militar de 1976-19836, e a experiência da África
do Sul no processo de transição deflagrado com a queda do regime de Apartheid7.
De forma complementar ao que foi dito acima, Van Zyl (2011, p. 48) afirma que,
desde a década de 1990, o desenvolvimento da justiça de transição vem se dando, dentro da
área dos direitos humanos, sob dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, porque a justiça
de transição deixou de ser uma “aspiração do imaginário”, passando a representar “a
expressão de obrigações legais vinculantes” a partir do seu progressivo reconhecimento por
parte de tribunais nacionais, bem como de sua positivação na ordem internacional. Em
segundo lugar, porque tem sido destacada a sua participação no processo democrático em
muitos lugares do mundo, em especial na América Latina, na África e na Ásia.
Nesse sentido, cabe apontar que entendemos como a justiça de transição como o: Amplo espectro de processos e mecanismos utilizados pela sociedade para que esta chegue a um determinado acordo sobre violações de direitos humanos ocorridas no passado, de forma a garantir a responsabilização dos culpados, promover a justiça e alcançar a reconciliação. Isso pode incluir tanto mecanismos judiciais como extrajudiciais, com diferentes níveis de participação da comunidade internacional (...) (ONU, 2004, p. 4).
Com base nessa definição, Soares (2010) formulou verbete no Dicionário de Direitos
Humanos da Escola Superior do Ministério Público da União, disponível na Internet8, no qual
define a justiça de transição como o:
(...) conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias utilizados para enfrentar o legado de violência em massa do passado, atribuir responsabilidades, exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecer as instituições com valores democráticos e para garantir a não repetição das atrocidades.
Por seu turno, Teitel (2011, p. 135), ao propor uma “genealogia” da justiça de
transição, defende que ela pode ser definida como “a concepção de justiça associada a
períodos de mudança política, caracterizados por respostas no âmbito jurídico que têm por
objetivo enfrentar os crimes cometidos por regimes opressores do passado”. Pouco difere esta
definição da proposta por Van Zyl (2011, p. 47), segundo a qual a justiça de transição é “o
6 A ditadura de 1976 autodenominava-se “Proceso de Reorganización Nacional”, e foi comprovadamente responsável pelo desaparecimento de pelo menos 8.961 pessoas, conforme apontado no relatório final da CONADEP (1984), disponível em http://www.desaparecidos.org/. 7 Em Africâner, “Separação”. Refere-se à política oficial de segregação racial adotada, entre 1948 e 1994, pelo governo de minoria branca da África do Sul. 8 Disponível em http://www.esmpu.gov.br/dicionario/tiki-index.php. Acesso em 02 de setembro de 2012.
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esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa
ou violação sistemática dos direitos humanos”.
A partir dessas definições, pode-se extrair que a justiça de transição não é uma
justiça especializada9, ou temática, com competência exclusiva para tratar de casos que
envolvam violações maciças de direitos humanos. Antes, trata-se de um conjunto de
“mecanismos, abordagens e estratégias” ou de “processos e mecanismos” utilizados em
períodos de mudança política para enfrentar um legado histórico de violações de direitos
humanos. Nessa direção, Mezarobba (2009) afirma que os “mecanismos, abordagens e
estratégias” consistem em iniciativas tais como:
(...) processar criminosos; estabelecer comissões de verdade e outras formas de investigação a respeito do passado; esforços de reconciliação em sociedades fraturadas; desenvolvimento de programas de reparação para aqueles que foram mais afetados pela violência ou abusos; iniciativas de memória e lembrança em torno das vítimas; e a reforma de um amplo espectro de instituições públicas abusivas (como os serviços de segurança, policial ou militar) (p. 37).
Por outro lado, a partir da análise dos bens jurídicos tutelados por esses mecanismos, é
possível identificar certas dimensões específicas da justiça de transição, relacionadas aos
objetivos que essas dimensões pretendem alcançar. Como exemplo, as ações penais que visam
à punição de torturadores estão vinculadas à dimensão da “responsabilização”, no sentido
clássico de identificação e punição de culpados, da mesma forma que se pode falar em uma
dimensão de “justiça restaurativa” no caso das iniciativas voltadas à reconciliação nacional.
Para a presente discussão, interessa-nos, sobretudo, identificar que as “comissões da
verdade” (truth commissions), bem como as iniciativas voltadas à abertura de arquivos de
polícia política, têm vinculação direta com a dimensão do direito à memória e à verdade, no
sentido de garantir, em primeiro lugar, que a verdade sobre as violações sistemáticas dos
direitos humanos venha à tona e, em sequência, que os fatos relacionados a essas violações
não sejam esquecidos e jamais repetidos, o que pressupõe a adoção de uma série de iniciativas
destinadas a garantir a preservação dessa memória.
Contudo, cabe apontar que essas dimensões não são estanques, uma vez que a punição
de culpados por violações de direitos humanos também é forma de promoção do direito à
memória e à verdade, ao passo que a responsabilização de perpetradores de violações de
9 Nesse sentido, a justiça de transição não se assemelha, por exemplo, à Justiça Eleitoral ou à Justiça Militar, que são especializadas em determinados temas.
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direitos humanos também pode ser instrumentalizada pela liberação de informações contidas
em arquivos de polícia política ou, ainda, a partir das revelações de uma comissão da verdade.
Por outro lado, conforme aponta Zallaquett (1989, p.26), a experiência internacional
também vem demonstrando que “tratar de situações de transição política é uma nova área da
prática dos direitos humanos, que apresenta algumas questões éticas, legais e práticas
complexas – questões que ninguém está em posição de responder ainda”. Isto é, que a justiça
de transição suscita desafios substantivos quanto à demonstração do binômio
validade/utilidade.
No Brasil, os primeiros mecanismos de justiça de transição foram criados entre a
segunda metade dos anos de 1990 e o início dos anos 2000, apresentando caráter reparatório e
investigativo. São exemplos desses mecanismos a Comissão de Mortos e Desaparecidos
Políticos, prevista pela Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995, e instituída pelo Decreto
sem número de 18 de dezembro de 1995, e a Comissão de Anistia, criada com a aprovação da
Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, que regulamentou o art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT), garantindo o direito de reparação àqueles que, no
período que vai de 18 de setembro de 1946 até 05 de outubro de 1988, sofreram violações de
direitos por motivação política.
Contudo, foi somente entre os anos de 2009 e 2012 que mecanismos especificamente
dedicados à promoção do direito à memória e à verdade foram estabelecidos pelo Estado
brasileiro, com a criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias
Reveladas (Portaria nº. 204, de 13 de maio de 2009, da Ministra Chefe da Casa Civil), e
aprovação das leis nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011 (Lei de Acesso a Informações), e
nº 12.528, também de 18 de novembro de 2011, e que criou a Comissão Nacional da Verdade.
Portanto, se o debate público sobre a justiça de transição em geral é recente, a
discussão sobre o direito à memória e à verdade é ainda mais jovem e, como tal, suscetível a
certo grau de imprecisão. Por outro lado, tendo em vista que, no Brasil, a responsabilização
de perpetradores de violações dos direitos humanos durante o período do regime civil-militar
(1964-1985) ainda é uma impossibilidade, como será mais bem discutido adiante, as ações
voltadas especificamente para a recuperação de fatos históricos relevantes, e para a
(re)construção da memória sobre a história recente do país, têm merecido destaque nos
últimos anos.
Por essa razão, ao longo deste artigo, buscaremos investigar o conceito de direito à
memória e à verdade no âmbito do debate sobre a justiça de transição. Isso porque, conforme
aponta Hohfeld (1923, apud ALEXY, 1997, p. 41), “para qualquer análise racional de um
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117
dado problema, seja ele jurídico ou não, palavras camaleônicas são um perigo tanto para o
pensamento lúcido quanto para a clareza de expressão”.
3 Memória e verdade: caminhos propostos
Sustentar a possível existência, no Brasil, de um direito à memória e à verdade
requer esclarecer, tão precisamente quanto for possível, o que se tem por “memória” e por
“verdade”, no sentido de se buscar tentar revelar o conteúdo material desse direito.
Da mesma forma, faz-se necessário demonstrar a possibilidade jurídica de se
reconhecer o direito à memória e à verdade como um direito fundamental, tendo em vista a
sistemática da Constituição Federal de 1988 em relação aos direitos fundamentais, bem como
o atual estágio desse reconhecimento em nosso país.
Antes de abordarmos essas questões, contudo, cabe referir que estudos10 promovidos
pela Organização das Nações Unidas (ONU) já vêm reconhecendo, desde a segunda metade
da década de 1990, a existência do direito à memória e à verdade, ainda que sob a
denominação de right to truth (direito à verdade) ou, ainda, right to seek the truth (direito de
buscar a verdade). Observe-se que embora o componente “memória” não apareça expresso, é
possível abstraí-lo de uma série de princípios que a própria ONU estabeleceu como sendo
necessários para que seja alcançado o direito à verdade.
Tais princípios podem ser sumarizados como o inalienável direito que toda a
sociedade tem de saber a verdade; o dever de lembrar visando a não repetição; o direito das
vítimas de saber a verdade; e, principalmente, a tomada de ações efetivas visando promover a
verdade, o que compreende o estabelecimento de comissões da verdade e, também, a proteção
dos registros sobre as violações dos direitos humanos.
Diante do exposto, cabe apontar que ao discutirmos o direito à memória e à verdade
no âmbito da justiça de transição, estamos partindo da acepção comum do termo “memória”.
Isto é, entendemos a memória como “a capacidade de reter ideias, impressões e
conhecimentos adquiridos” ou, ainda, no sentido mais geral de “lembrança”11. Contudo, como
o termo está sendo aqui debatido na perspectiva de iniciativas de recuperação da história
recente do Brasil, não estamos nos referindo a uma memória particular ou pessoal, mas sim à
memória como um “bem público, que está na base do processo de construção da identidade
política, cultural e social de um povo” (STAMPA, 2011).
10 Um dos primeiros estudos a apontar nessa direção foi o Questions of Impunity of Perpetrators of Human Rights Violations, publicado pela ONU em 1997. 11 Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Objetivo, 2007.
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Conforme apontam Abrão e Torelly (2010), a memória é um meio de significação
social e temporal de grupos e instituições, o que implica em reconhecer sua importância para
a geração do senso comum, ou seja, para a compreensão coletiva da sociedade sobre
determinados eventos do passado. Dessa forma, a memória joga papel fundamental no
processo de auto-reconhecimento de um povo, ao embasar o processo de construção de sua
identidade12.
Dessa forma, a adoção de políticas de memória específicas para enfrentar o legado
histórico de violações sistemáticas dos direitos humanos, como aquelas que ocorreram no
período do regime civil-militar brasileiro, tem por objetivo não somente garantir a
compreensão do que ocorreu, mas, também, reforçar o entendimento coletivo de que são
necessárias reformas para combater as violações em tempo presente.
Portanto, resta claro que a memória é objeto de construções e reconstruções, uma vez
que é suscetível a seletividades, sejam elas acidentais ou estimuladas. Sobre este último
aspecto, Carbonari (2010) defende que, no Brasil do século XXI, setores financeiros e
políticos da sociedade brasileira sempre atuaram no sentido de preservar a imagem de
“próceres do autoritarismo”, o que compreende esconder e até mesmo apagar a história das
violações de direitos.
Defender que a memória é um bem público não significa, portanto, deixar de
reconhecer que ela mesma é resultado dos contextos e dos agentes13 que a constroem
(CARBONARI, 2010). Assim, a memória pode ser apropriada e transformada para cumprir
diferentes objetivos e agendas.
Por outro lado, cabe apontar que a memória pode ser construída e reconstruída a
partir de fontes diversas, como, por exemplo, os documentos textuais recolhidos aos arquivos
brasileiros, os livros de uma determinada biblioteca pública, os registros audiovisuais de um
colecionador particular ou, ainda, os relatos orais de pessoas que viveram ou testemunharam
acontecimentos, conjunturas, modos de vida etc. Nesse sentido, a todos cabe o “dever cívico”
de promover a discussão crítica do passado14.
12 De acordo com Abrão e Torelly (2010, p. 107): (...) lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica em alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro, uma vez que o que lembramos do passado é fundamental para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos no tempo. Mais ainda: nossas lembranças são determinantes para a orientação de nosso agir (...). 13 Sobre este aspecto, cabe lembrar a afirmação de Marx & Engels (1998, p. 41) de que as “As idéias da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que tem a força material na sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante”. Extrapolando a afirmação de Marx & Engels, é possível afirmar que a memória de uma época também é a memória da classe dominante, daí a importância de disputá-la. 14 Coimbra (2010, p. 94), referindo-se expressamente aos arquivos, afirma que (...) nas sociedades democráticas, e a propósito da história recente, a todos cabe o dever cívico de promover a discussão crítica do passado, de forma serena e sem revanchismos, buscando a verdade e a justiça e, sobretudo, exigindo responsabilidade aos
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Esse dever cívico, como lhe chama Coimbra (2010), ganha urgência no que se refere
à memória de períodos nos quais ocorreram violações maciças dos direitos humanos, seja
porque se trata de uma memória disputada entre vítimas e perpetradores de violações dos
direitos humanos, seja porque se trata de uma memória em risco, pelo interesse que
determinados grupos têm no aniquilamento dos registros históricos da época15.
Por sua vez, no que se refere ao termo “verdade”, as dificuldades de conceituação
aumentam sobremaneira, por três razões principais.
Em primeiro lugar, por envolver a própria discussão sobre a existência ou não do
direito à memória e à verdade, uma vez que, rigorosamente, não se pode admitir sua
existência se adotamos, sem concessões, o ponto de vista de que a verdade é “inalcançável”,
pois sua forma arquetípica16 jamais se realizará ou, ainda, de que a verdade “é completamente
relativa” e que, portanto, não vale a pena ser discutida. Em segundo lugar, pela dificuldade
técnica de apreender o conteúdo de um objeto imaterial de contornos tão amplos. E, por fim,
pela constatação de que a multiplicidade de teorias acerca do conceito revela – além de
dificuldades naturais de definição – que o conceito de verdade, assim como o de memória, é
tensionado por conflitos e interesses.
Reconhecidas essas dificuldades, afinal, o que é a verdade?
Conforme registra a literatura ocidental, essa pergunta vem sendo feita, pelo menos,
desde a antiguidade clássica por filósofos como Sócrates (c. 469 a.C. – c. 399 a.C) e Platão (c.
427 a.C. – c.348 a.C). Por outro lado, mesmo uma simples revisão das principais teorias
filosóficas formuladas, digamos, nos últimos duzentos anos, representaria desafio invulgar17.
poderes públicos pela preservação do legado documental histórico, criando e apoiando os “repositórios das memórias nacionais”. 15 Um exemplo dramático do risco que correm os registros da época deu-se em 2005, quando foi descoberto, nas cercanias da Base Aérea de Salvador, um lote de documentos oficiais queimados. Os documentos datavam do período do regime civil-militar, e se constituíam de prontuários, fichas e relatórios. Foi aberto o competente Inquérito Policial Militar (IPM), mas este concluiu que os documentos “não apresentam sinais de fogo”. Laudo posterior, elaborado por perito comissionado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR), atestou que os documentos foram queimados na própria Base Área de Salvador. Desse episódio, restaram alguns poucos documentos, parcialmente destruídos, que se encontram, atualmente, sob a guarda do Grupo Tortura Nunca Mais da Bahia (GTMN-BA). 16 Segundo a concepção de Platão (c. 427 a.C – 348 a.C.), refere-se a ideias que funcionariam como “modelos ideais” de todas as coisas existentes. Por exemplo, o arquétipo da verdade seria o modelo para todas as coisas verdadeiras existentes. 17 Apenas a título de referência, ao lado das contemporâneas “teorias correspondentistas”, que falam da verdade como resultado da correspondência entre realidade e o que se passa na mente das pessoas (“portadores-de-valor-verdade”), podemos falar também em “teoristas coerentistas”, para as quais a verdade é uma relação coerente estabelecida entre os próprios “portadores-de-valor-verdade”; “teorias pragmáticas” que sustentam que algo é verdadeiro quando a crença na sua verdade for útil; e “teorias deflacionárias”, que apontam que a verdade não é uma propriedade substancial e que, portanto, não está à espera de ser revelada.
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Por outro lado, como estamos aqui tratando não de uma verdade pessoal ou, ainda, de
uma verdade sobre fatos quaisquer, mas sim sobre a verdade histórica e sobre fatos históricos
ocorridos em um período de tempo determinado (1964-1985), cabe apontar que nossa posição
é diversa da chamada "epistemologia prática" que vem sendo adotada, majoritariamente, pela
historiografia contemporânea (REIS, 2000). Segundo a referida corrente, não há que se
prescrever fórmulas para a verdade, mas sim praticar determinados critérios, sob o crivo da
própria comunidade de historiadores, que atuaria como filtro “competente e autocontrolável
para decidir entre o relevante” (Ibidem). Tal posição, em que pese sua respeitabilidade e
reconhecimento na historiografia nacional, representa, a nosso ver, um atalho por intermédio
do qual se busca contornar o debate necessário sobre a memória e a verdade histórica.
Assim, feitas as ressalvas de que a formulação de um conceito de verdade é tarefa
dificílima, e de que adotamos um dos vários caminhos possíveis, optamos, nesta abordagem,
por um conceito de verdade que pode ser identificado com a tradição aristotélica, cujos
méritos buscaremos demonstrar a seguir.
Aristóteles (c. 384 a.C. - c.322 a.C) enxergava a verdade como uma correspondência
entre a) o que a coisa é; b) como a coisa é na mente humana, isto é, como a correspondência
que se dá entre portador-de-valor-de-verdade e a realidade (PEREIRA, 2011). Por essa razão,
a teoria aristotélica sobre a verdade foi denominada de “correspondentista”, por indicar que a
verdade não depende somente do objeto a ser conhecido, mas da correspondência entre o que
ocorre na mente do portador-de-valor-de-verdade e o que ocorre na realidade.
Mais recentemente, a teoria correspondentista foi retomada criticamente pelo filósofo
e matemático britânico Bertrand Russell (1872-1970), que buscou, de forma original,
encontrar “um lugar para a falsidade” no contexto da filosofia aristotélica. Sustenta Russell,
em sua obra Problemas da Filosofia, publicada originalmente em 191218 que a teoria da
verdade deve, necessariamente, admitir o seu contrário, isto é, a falsidade19.
Nesse sentido, o filósofo britânico aponta para a existência de um dualismo em
relação ao conhecimento de verdades, uma vez que devemos admitir que, em nossa
experiência cotidiana, defrontamo-nos tanto com “crenças verdadeiras” como com “crenças
falsas”. Da mesma forma, é induvidoso que, às vezes, as crenças falsas podem ser sustentadas
de modo tão firme, e com tanto brilho, que “podemos crer no falso como se verdadeiro fosse”. 18 Utilizamos a tradução de Jaimir Conte, de 2005, disponível no portal da Universidade Federal de Santa Catarina no endereço <http://www.cfh.ufsc.br/~conte/russell.html>. Acesso em 11 de dezembro de 2012. 19 “A teoria da verdade deve ser tal que admita o seu contrário, a falsidade. Alguns filósofos, e não poucos, deixaram de satisfazer adequadamente a esta primeira condição: construíram teorias segundo as quais todo o nosso pensar deveria ser verídico, o que os pôs nas maiores dificuldades para arranjar um lugar para a falsidade (....) (Russell, 2010. Capítulo 12).
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Portanto, em determinados casos não será sem dificuldades que se distinguirá uma crença
falsa de uma crença verdadeira.
Como é possível observar, Russell retomou a ideia aristotélica de correspondência
entre “portador-de-valor-de-verdade” e a realidade, mas não se limitou a reproduzir o
pensamento aristotélico, avançando na formulação de um critério que pudesse explicar como
se dá essa correspondência. Diz o filósofo que a mente não “cria a verdade ou a falsidade”, e
sim determinadas crenças. Dessa forma, não é a mente humana que pode tornar determinadas
crenças verdadeiras ou falsas, “exceto no caso especial onde elas dizem respeito às coisas
futuras que estão dentro do poder da pessoa acreditar, como tomar o trem”. De forma geral,
contudo, o que torna uma crença verdadeira é a ocorrência de um fato, e este não envolve, de
modo algum (exceto em casos excepcionais), a mente da pessoa que tem a crença.
Assim, a correspondência com o fato (realidade) assegura a verdade, e sua ausência
acarreta a falsidade. “Deste modo explicamos simultaneamente dois fatos: (a) que as crenças
dependem da mente para sua existência, (b) que não dependem da mente para sua verdade”
(Russell, 2010, capítulo 12). A mente, portanto, é hábil em produzir crenças, mas a verdade
ou falsidade dessas crenças não depende da mente, mas sim do fato.
Constata-se, dessa maneira, que a dificuldade não reside tanto em definir o termo
“verdade”, e sim em diferenciar, na prática, o que é verdadeiro e o que é falso, pelo desafio
que representa o conhecimento do fato. Essa questão é de difícil superação, uma vez que a
palavra fato corresponde, também, ao que é verdadeiro.
Por outro lado, devemos evitar, de início, supor identificar uma relação necessária
entre conhecimento do fato e verdade, uma vez que mesmo uma crença verdadeira não revela,
necessariamente, que possuímos conhecimento sobre o assunto, uma vez que uma crença
verdadeira não é um conhecimento quando é deduzida de uma crença falsa20. Da mesma
forma, uma crença verdadeira não pode ser denominada de conhecimento se é deduzida por
um método de raciocínio falacioso, como em falsos silogismos, ainda que baseados em
premissas corretas e que apresentem conclusões verdadeiras21.
Contudo, o pensamento de Russell conduz a afirmação de que quando acreditamos
firmemente na nossa crença, e a mesma não se encontra eivada de falácias ou contradições, ou
não deriva ela própria de uma crença falsa, podemos sim denominá-la de “conhecimento”. 20 Exemplifica Russell: (....) se um jornal, por uma antecipação inteligente, anuncia o resultado de uma batalha antes de receber qualquer telegrama informando o resultado, pode anunciar por acaso o resultado que em seguida se confirmará, e produzir uma crença em alguns de seus leitores menos experientes (Capítulo 13). 21 Se sei que todos os gregos são homens e que Sócrates era homem, e infiro que Sócrates era grego, não se pode dizer que sei que Sócrates era grego, porque, embora as premissas e a conclusão sejam verdadeiras, a conclusão não se segue das premissas (Capítulo 13).
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Quando, contudo, acreditamos firmemente em algo que não se revela verdadeiro, por não
corresponder ao fato, estaremos em “erro”. Na maioria dos casos, porém, a demonstração
cabal do “conhecimento” ou do “erro” não será possível e, portanto, teremos apenas uma
“opinião provável”.
Diante do exposto, é forçoso reconhecer que a filosofia de Russell não nos conduz a
um método que permita processar, na mais absoluta segurança, a separação entre o que é
verdadeiro e o que é falso – tal método, aliás, não existe. Em lugar dele, devemos trabalhar
com operações lógicas visando identificar contradições, falácias, falsas intuições ou
inferências, de forma a alcançarmos uma opinião provável sobre a verdade.
Esse proceder, como é natural, não nos livra da possibilidade de erro, embora, em
alguns casos, diminua o risco a tal ponto que ele se torne praticamente desprezível. Nesse
sentido, aponta Russell que “não é possível fazer mais que isso num mundo onde devem
ocorrer erros; e nenhum defensor prudente da filosofia pretenderá ter feito mais que isso”
(Capítulo 15).
Outro aspecto de interesse para a compreensão do conceito de verdade refere-se à
constatação de que a verdade, assim como a memória, também é um campo tensionado por
conflitos e interesses22.
Ou seja, se a memória, conforme já apontado, desempenha um papel basilar na
construção da identidade social, cultural e política - e, portanto, no próprio auto-
reconhecimento de um povo, nação, grupo ou classe enquanto tais - é a verdade, ou melhor, o
“conjunto de regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao
verdadeiro efeitos específicos de poder”, que qualifica e garante o reconhecimento da
memória.
Diante do exposto, é possível sumarizar o que entendemos como o conteúdo material
do direito à memória e à verdade.
A memória é um bem público que está na base do processo de construção da
identidade de um povo, é a capacidade que esse mesmo povo tem de reter ideias, impressões e
conhecimentos. Leva ao reconhecimento do que esse próprio povo é, e de como chegou a sê-
lo. A memória é composta de fatos selecionados de forma deliberada ou acidental.
22 Sobre esse aspecto, Foucault (2003, p. 13) revela que Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – entendendo-se, mais uma vez, que por verdade não quero dizer o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”; entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha.
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Por seu turno, a verdade é aqui compreendida como o produto da relação que a
mente humana estabelece com a realidade a partir de um conjunto de regras (lógicas) por
intermédio das quais se busca o conhecimento. A aplicação desse conjunto de regras nos
conduzirá, na maior parte dos casos, a uma opinião provável sobre o fato, uma vez que não
existe uma teoria ideal que possa nos conduzir, com absoluta certeza, à verdade.
Portanto, é por meio da relação estabelecida entre memória e verdade que esta se
qualifica como verdadeira e pode ser reconhecida como tal. Ou seja, ao falarmos de um
“direito à memória e à verdade”, tratamos aqui de um direito cujo todo (“à memória e à
verdade”) é mais do que a soma de suas partes individualmente consideradas (“à memória” e
“à verdade”).
Por fim, cabe apontar que, curiosamente, não obstante o interesse óbvio que a
discussão sobre o conceito de “verdade” tem para o debate sobre a justiça de transição, a
literatura especializada é tímida na abordagem do problema23– talvez pelas dificuldades
inerentes a essa conceituação.
4 Do reconhecimento do direito à memória e à verdade no Brasil
Ao tratarmos da possibilidade jurídica de se reconhecer, no Brasil, a existência de um
direito à memória e à verdade, cabe apontar, inicialmente, que o conceito de verdade tem
especial interesse para o campo jurídico, uma vez que os tribunais operam a partir da lógica
de que o Poder Judiciário resolve os conflitos que lhes são postos por intermédio de operações
lógico-jurídicas e ritos processuais que têm por fim último descobrir a verdade.
No mínimo, o senso comum espera que o Poder Judiciário se utilize da verdade para
compor interesses em disputa24. Nesse sentido, De Plácido e Silva (2008, p. 1478) defende
que, do ponto de vista jurídico, algo é “verídico” quando é “exato ou conforme a realidade”.
Assim, a veracidade de um documento, por exemplo, é “a sua própria autenticidade” ou
exprime “a sua própria qualidade de verdadeiro, fiel ou exato” (Ibidem).
Observe-se, contudo, que no exemplo acima referido, é possível que o documento em
questão seja, ao mesmo tempo, formalmente verdadeiro (autêntico quanto à sua autoria) e
materialmente falso (inverídico quanto ao seu conteúdo). Essa distinção será retomada 23 Nenhum dos textos especializados sobre o tema justiça de transição citados neste trabalho aborda diretamente o problema de conceituar a verdade. Foi possível, contudo, ter acesso à definição proposta por Javier Ciurlizza, durante sua participação, em 2009, no Curso Essencial de Justiça de Transição. Para o especialista peruano, “a verdade é um relato intersubjetivo, cientificamente articulado e que denota um certo consenso social”. Nesse sentido, trata-se de uma definição “coerentista” da verdade. 24 O próprio juiz comunica a resolução da questão por intermédio do “veredito”, palavra que vem do Latim “vero” (verdade) e “dictus” (que foi dito). Assim, o veredito é, etimologicamente, aquilo que “foi dito com verdade”.
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adiante, ao tratarmos da nova Lei de Acesso a Informações e da Comissão Nacional da
Verdade.
Por outro lado, é importante reconhecer que, na Constituição Federal de 1988, não há
previsão expressa do direito à memória e à verdade. De fato, no Título II (“Dos Direitos e
Garantias Fundamentais”) não são referidas as expressões “memória” ou “verdade”. Apenas
no seu art. 216, a Constituição faz referência “à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”, ao passo que o termo verdade sequer aparece no texto constitucional.
Essa ausência não deve causar surpresa uma vez que, conforme apontado
anteriormente, o debate sobre a justiça de transição é recente, e o próprio conceito de direito à
memória e à verdade somente foi consolidado a partir de estudos produzidos na segunda
metade da década de 1990, isto é, após a promulgação, em 05 de outubro de 1988, da atual
Constituição Federal brasileira.
Nesse sentido, ao discutirmos o possível reconhecimento de um direito fundamental
à memória e à verdade, estamos falando de um direito atípico, isto é, de um direito não escrito
na Constituição Federal de 1988, mas que pode ser abstraído do regime democrático e dos
princípios adotados na própria Constituição, de acordo com o § 2º do seu art. 5º25.
O citado dispositivo constitucional estabeleceu a denominada “cláusula de abertura
material dos direitos fundamentais”, o que significa dizer que não somente aqueles direitos
típicos constantes no Título II são direitos fundamentais, mas também os “direitos
fundamentais atípicos”, não previstos pelo legislador constituinte de forma expressa, mas que
decorrem do próprio regime e dos princípios estabelecidos na Constituição Federal de 198826.
Da mesma forma, a Constituição Federal de 1988 estabelece uma série de princípios
e garantias inteiramente compatíveis e, por vezes, complementares ao conceito de direito à
memória e à verdade. Como exemplo, podemos citar: a proibição da tortura e do tratamento
desumano ou degradante (art. 5º, III); a inviolabilidade da liberdade de consciência (art. 5º,
VI); o acesso à informação (art. 5º, XIV).
25 Diz o § 2º do art. 5º da CF/88: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Por outro lado, o § 3º do mesmo dispositivo prevê, também, que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, nos quais o Brasil seja parte, equiparam-se ao patamar de normas constitucionais. 26 Conforme lição de José Afonso da Silva (1997, p. 197), que se referiu expressamente à classificação dos direitos individuais: (1) direitos individuais expressos, aqueles explicitamente enunciados nos incisos do art. 5º; (2) direitos individuais implícitos, aqueles que são subentendidos nas regras de garantias, como o direito à identidade pessoal, certos desdobramentos do direito à vida, o direito a atuação geral (art. 5º, II); (3) direitos individuais decorrentes do regime e de tratados internacionais subscritos pelo Brasil, aqueles que não são nem explícita nem implicitamente enumerados, mas provêm ou podem vir a provir do regime adotado, como o direito de resistência, entre outros de difícil caracterização a priori.
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Diante do exposto, é possível configurar o direito à memória e à verdade nos termos
propostos por Silva Filho (2009, p. 78-79), que entende tratar-se de um direito transindividual
que alcança “os mais diversos grupos da sociedade civil”. Por outro lado, trata-se de um
direito que representa “as mais diversas formas de reivindicação e concretização, não estando
necessariamente preso à legislação estatal”, tendo em vista que “sua formulação e
reivindicação continuam a existir mesmo que a legislação imponha políticas de
esquecimento” (Idem, p. 79).
Nesse sentido, se há clara compatibilidade entre o direito à memória e à verdade com
os princípios e garantias expressos na constituição democrática de 1988, da mesma forma a
questão do seu reconhecimento e efetivação permanece em aberto. Isso ocorre,
principalmente, em virtude do que Silva Filho denominou de “políticas de esquecimento”
(Ibidem), conceito que abrange não somente ações que visam apagar ou reescrever a história
do regime civil-militar27, como também a falta de políticas de memória para o período
(dimensão negativa).
Como esse exemplo de ação que teria por objetivo apagar a história das violações de
direitos humanos, temos, no Brasil, que a questão da responsabilização dos agentes públicos
responsáveis por “graves violações”28 dos direitos humanos durante o período de 1964-1985
permanece, ainda, uma impossibilidade. Sobretudo após o Supremo Tribunal Federal (STF),
nos autos da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº
15329, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ter decidido que a vigência da
Lei nº. 6.683, de 28 de agosto de 1979, denominada de “Lei de Anistia”, impede qualquer
persecução judicial em relação a esses agentes do Estado.
A polêmica que se seguiu a essa decisão, contudo, acabou por ofuscar outro aspecto
do julgamento que merece ser destacado: pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal
(STF) reconheceu30 a existência do direito fundamental à memória e à verdade, denominado
27 Como exemplo desse tipo de ação destinada a apagar a memória do período ou, ainda, de reescrevê-la ao ponto de ficar irreconhecível, cite-se que, em 17 de fevereiro de 2009, o jornal Folha de S. Paulo publicou editorial no qual se referiu à ditadura militar brasileira como uma "ditabranda”, comparando-a positivamente em relação ao governo de Hugo Chávez, presidente eleito da Venezuela. 28 O conceito de “graves violações dos direitos humanos” é aberto, contudo, o art. 3º, I, da Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011, cita especificamente a tortura, o assassinato, o desaparecimentos forçado e a ocultação de cadáveres. 29 A ADPF nº 153 Distrito Federal (2010) buscava a declaração de não-recebimento, pela Constituição do Brasil de 1988, do disposto no § 1º do artigo 1º da Lei n. 6.683, de 19 de dezembro de 1979: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. 30 O acórdão está disponível na base de dados de jurisprudência do STF, no endereço: www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000168467&base=baseAcordaos. No item 10, dispõe que (...) Acesso a documentos históricos como forma de exercício do direito fundamental à verdade (...)
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pelo tribunal, simplesmente, de “direito fundamental à verdade”, a exemplo da conceituação
proposta pela ONU.
Interessante observar que tal reconhecimento foi feito, especificamente, no que se
refere ao acesso de documentos históricos do período do regime civil-militar. Em seu voto, o
relator do caso, ministro Eros Grau (2010, p. 20), acatou parecer da Procuradoria Geral da
República (PGR), que se pronunciou sobre a necessidade de se concretizar o “direito
fundamental à verdade histórica”31. No mesmo sentido, o ministro concluiu o seu voto
reconhecendo não somente a dimensão da verdade, mas também à da memória, ao afirmar
que “é necessário não esquecermos, para que nunca mais as coisas voltem a ser como foram
no passado” (Ibidem, p. 73).
Da mesma forma, juízos de 1ª instância brasileiros já vêm reconhecendo, e
fundamentando decisões, com base no direito à memória e à verdade, principalmente no
âmbito de ações que visam à retificação de registros oficiais falsificados pelo regime civil-
militar brasileiro32. Essas ações vêm sendo propostas pelo Ministério Público Federal e por
familiares de desaparecidos.
Contudo, cabe lembrar que o Estado brasileiro, apesar de ter reconhecido o “direito
fundamental à verdade”, especialmente no que se refere ao acesso de documentos históricos,
acabou por ser condenado, em novembro de 2010, na Corte Interamericana de Direitos
Humanos (Corte IDH), nos autos do caso “Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”)
vs. Brasil”.
A condenação deu-se em virtude do entendimento do Estado brasileiro, conforme
exarado na ADPF nº 153, sobre a impossibilidade de responsabilização dos perpetradores de
violações maciças dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, a Corte estabeleceu uma
vinculação clara entre o direito à memória e à verdade e a dimensão da justiça
(responsabilização)33. E mais. Quase como se admoestasse o Supremo Tribunal Federal pelo
10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura (ADPF 153, Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 29/04/2010, DJe-145 DIVULG 05-08-2010 PUBLIC 06-08-2010 EMENT VOL-02409-01 PP-00001 RTJ VOL-00216- PP-00011). 31 Conforme consta na ementa do julgamento: “É evidente que reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia não significa apagar o passado. Nesse sentido, o estado democrático de direito, para além da discussão acerca da punibilidade, precisa posicionar-se sobre a afirmação e concretização do direito fundamental à verdade histórica”. 32 Exemplo desse fenômeno ocorreu em São Paulo, em 16/04/2012. A 2ª Vara de Registros Públicos da capital acolheu pedido formulado por M.E.C.D. para retificar certidão de óbito de seu marido, J.B.F.D. No documento, passou a constar que o falecimento ocorreu nas dependências do DOI/Codi do II Exército, e que a morte foi decorrente de torturas físicas. Fonte: TJ/SP. 33 “As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem
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resultado do julgamento da ADPF nº 153, o juiz Roberto de Figueiredo Caldas, da Corte IDH,
conclui o seu voto afirmando ser
(...) preciso ultrapassar o positivismo exacerbado, pois só assim se entrará em um novo período de respeito aos direitos da pessoa, contribuindo para acabar com o círculo de impunidade no Brasil. É preciso mostrar que a Justiça age de forma igualitária na punição de quem quer que pratique graves crimes contra a humanidade, de modo que a imperatividade do Direito e da Justiça sirvam sempre para mostrar que práticas tão cruéis e desumanas jamais podem se repetir, jamais serão esquecidas e a qualquer tempo serão punidas (OEA, 2010b, p.9).
Por outro lado, se é bem verdade que não há previsão expressa do direito à memória
e à verdade no plano constitucional brasileiro, coisa diferente se dá com a legislação
infraconstitucional. Desde a promulgação do Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2009,
que estabeleceu o 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), o direito à memória e
à verdade encontra-se formalmente reconhecido pelo Estado brasileiro34. De fato, o PNDH-3
prevê, de forma compreensível, um conjunto de medidas programáticas em favor da
efetivação do direito à memória e à verdade.
Entre essas medidas, incluem-se a criação de determinados mecanismos de justiça de
transição, como a Comissão Nacional da Verdade (CNV), bem como ações visando à
proteção dos registros do período do regime civil-militar. Dessa forma, é possível afirmar que
a dimensão do direito à memória e à verdade vem se destacando, em anos recentes, no âmbito
da justiça de transição brasileira.
5 Considerações finais
Em breve síntese, os elementos apresentados neste artigo permitem afirmar que o
debate sobre o direito à memória e à verdade é de fundamental importância para a justiça de
transição no Brasil, cujo desenvolvimento vem sendo impulsionado por pressões exercidas
por familiares de vítimas do regime ditatorial estabelecido em 1964, articuladas a movimentos
organizados da sociedade civil e, até mesmo, à atuação de organismos multilaterais.
seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil” (OEA, 2010a, p. 114). 34 Conforme consta no “eixo orientador VI” do PNDH 3: “Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidade e dever do Estado. Objetivo Estratégico I: promover a apuração e o esclarecimento público das violações de Direitos Humanos praticadas no contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período fixado pelo artigo 8º do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade e promover a reconciliação nacional.
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128
Ao compreendermos a justiça de transição como o um determinado conjunto de
estratégias, abordagens e mecanismos, tanto judiciais como não judiciais, utilizados para
enfrentar o legado de violência em massa do passado, identificamos no direito à memória e à
verdade um elemento-chave para a consecução de seus objetivos.
Essa constatação é especialmente importante para a experiência brasileira da justiça
de transição, uma vez que, em nosso país, a questão da responsabilização dos agentes públicos
responsáveis por graves violações dos direitos humanos durante o período de 1964-1985
permanece, ainda, uma impossibilidade. Sobretudo após o Supremo Tribunal Federal (STF),
nos autos da ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº
153/2010, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ter decidido que a vigência
da Lei nº. 6.683, de 28 de agosto de 1979, denominada de “Lei de Anistia”, impede qualquer
persecução judicial em relação a esses agentes.
Contudo, para que se possa sustentar a existência, no Brasil, de um direito
fundamental à memória e à verdade, é preciso buscar esclarecer, tão precisamente quanto for
possível, o que se tem por “memória” e por “verdade”, no sentido de se tentar revelar o
conteúdo material desse direito. No debate sobre a verdade histórica, essa perspectiva
pretende servir de contraponto à chamada "epistemologia prática”, segundo a qual não há que
se “prescrever fórmulas para a verdade”, mas sim praticar determinados critérios, sob o crivo
da própria comunidade acadêmica. Tal posicionamento, embora popular, afigura-se, em nossa
perspectiva, como um atalho teórico que visa contornar a necessidade de análise detalhada de
conceitos centrais para o debate sobre a justiça de transição.
Em sentido contrário, compreendemos, compreendemos a memória como um bem
público que está na base do processo de construção da identidade de um povo, isto é, a
memória permite, dentre outras coisas, o auto-reconhecimento desse povo. Por seu turno, a
verdade foi entendida como o produto da relação que a mente humana estabelece com a
realidade a partir de um conjunto de regras cuja aplicação conduz, na maior parte dos casos, a
uma opinião provável sobre o fato, uma vez que não existe uma teoria ideal que possa nos
conduzir, com absoluta certeza, à verdade. É por meio da relação estabelecida entre a
memória e a verdade que esta se qualifica como verdadeira e pode ser reconhecida como tal.
Em ambos os casos, tanto a memória quanto a verdade são campos intensamente tensionados
por conflitos e interesses.
No que se refere à possibilidade jurídica desse reconhecimento, salientou-se a
importância da chamada “cláusula de abertura material dos direitos fundamentais” para o
reconhecimento de direitos fundamentais atípicos, não expressos no texto constitucional, mas
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decorrentes do regime e dos princípios consignados na Constituição Federal de 1988. Da
mesma forma, foram apresentados elementos que nos permitem afirmar que o Poder
Judiciário brasileiro, notadamente o Supremo Tribunal Federal, já vem reconhecendo a
fundamentalidade do direito à memória e à verdade.
Diante do exposto, ganha importância a discussão sobre o conteúdo do direito à
memória e à verdade, ainda mais quando tomamos em conta a infeliz permanência, no Brasil,
de violações sistemáticas dos direitos humanos praticadas por agentes do Estado, como são
exemplos a utilização generalizada da tortura no sistema carcerário e a ocorrência de
execuções extrajudiciais.
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A HERANÇA DA FALTA DE MEMÓRIA E AS VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS: A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À VERDADE NA AMÉRICA
LATINA E NO BRASIL
THE LEGACY OF FORGOTTEN HUMAN RIGHTS VIOLATIONS: THE CONSTRUCTION OF RIGHTS TO THE TRUTH IN LATIN AMERICA AND
BRAZIL
Daniela de Oliveira Lima Matias1 Mayara de Carvalho Araújo2
RESUMO O presente artigo tem por objetivo analisar a peculiaridade das ditaduras que fizeram parte da história da América Latina nas décadas de 70 e 80 do século XX e o seu legado para a realidade atual, em particular a do Brasil. Passando por um contexto de justiça de transição, portanto, pretende abordar o direito à memória e à informação, em contraposição às leis de anistia aprovadas naquele período, entendendo que talvez essenciais em determinado espaço de tempo e de negociação, quando da consolidação das respectivas democracias, estas tornam-se incompatíveis com a situação atual e os princípios que norteiam os Estados democráticos de direito. Atentos à importância destes fatos para a consolidação da cidadania e a segurança dos seus protegidos, alguns países investigaram e puniram os crimes cometidos durante o período ditatorial, enquanto outros, dentre eles o Brasil, optaram pelo esquecimento sob argumentos duvidosos. Fato que, todavia, tem sofrido algumas pequenas modificações, destacando-se a criação da Comissão da Verdade pelo atual governo, com o objetivo de resgatar a identidade nacional e investigar as violações de direitos humanos ocorridas em épocas de repressão. Este artigo pretende, por fim, analisar o teor da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e o respectivo cumprimento das obrigações internacionais por ele adquiridas, passando por uma breve reflexão acerca da importância dos sistemas regionais de direitos humanos e a superação do conceito tradicional de soberania como entrave para a efetivação de situações jurídicas há muito já acordadas e aceitas. Palavras-chave: Justiça de transição. Direito à memória. Corte Interamericana de Direitos Humanos.
ABSTRACT The essay herein intends to analyse the specificities of the dictatorships that took place in Latin America during the decades of 1970-1980 and its legacy to the current situation in these countries, mainly in Brazil. After a period of time which was conventioned to be referred to as transitional justice, the present article intends to study the right to memory, which contrasts with the amnesty laws that were approved in that period, always taking into account that even though they might have been a 1 Mestranda em Ciências Jurídicas, com ênfase em direitos humanos, pela Universidade Federal da Paraíba; bolsista Capes; advogada; e bacharel em direito pela Universidade Federal da Paraíba. 2 Mestranda em Ciências Jurídicas, com ênfase em direitos humanos, pela Universidade Federal da Paraíba; bolsista Capes; advogada; e bacharel em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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necessary step towards negotiation and democracy, they no longer represent the reality and the principles of Rule of Law, frontly coliding with its core ideas. Having in mind the importance of these facts to the development of citizenship and the safety of the population, some countries decided to investigate and punish the crimes committed during the dictatorial context, while others, amongst Brazil, still prefer to forget the dark times. We must take into consideration, though, the creation of the Thuth Commission by the current brazilian government, which shows an important step in this direction, aiming to rescue the national identity and to investigate human rights violations that occurred during repression. In its last part, the article analyses Brazil’s condemnation by the Interamerican Court of Human Rights and its respective due to implement its sentences as part of the international obligations previously taken by this country, who should not utilise the sovereign argument in order to put aside the effectiveness of a juridical system accorded and accepted a long ago. Key-words: Transitional Justice. Right to memory. Interamerican Court of Human Rights.
“Como os repressores e os reprimidos podem viver no mesmo país, compartilhar a mesma mesa? Como curar um país que foi traumatizado pelo medo, se aquele mesmo
medo continua a operar em silêncio? E como chegar à verdade quando nos acostumamos a mentir? Podemos manter o passado vivo sem que nos transformemos
em seus prisioneiros? E podemos esquecer o passado sem arriscar sua futura repetição? É legítimo sacrificar a verdade para assegurar a paz? E quais são as
consequências para a comunidade se as vozes daquele passado são reprimidas? É possível que uma comunidade busque a justiça e igualdade se a ameaça de uma
intervenção militar persiste para sempre? E, nessas circunstâncias, como a violência pode ser evitada? Em que sentido somos todos em parte responsáveis pelo sofrimento
de outros, pelos grandes erros que levaram a uma colisão tão terrível? E talvez o maior dilema de todos: de que modo tais questões devem ser confrontadas sem
destruir o consenso nacional, que constitui a base de qualquer estabilidade democrática?”
DORFMAN, Ariel. La doncella y la muerte. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1993, p. 96.
1 INTRODUÇÃO
Durante a segunda metade do século XX, as ditaduras militares fizeram parte
do contexto dos países da América Latina. O receio de uma possível expansão do
comunismo pelo continente, a exemplo da Revolução Cubana, de 1959, levou ao
financiamento de regimes ditatoriais por parte de lideranças capitalistas locais, unidas
ao empresariado, que temiam uma provável retração de seus negócios.
Na década de 1980, com a redemocratização desses Estados, leis de anistia
foram aprovadas com o objetivo de auxiliar o período de transição, tendo, contudo,
sido revistas em decorrência da conscientização acerca do direito à verdade, à
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informação e à memória. O Brasil, no entanto, apesar de ter vivido os horrores desta
época e ao contrário de alguns de seus vizinhos, parece optar pelo esquecimento da
sua história, fato que tem reflexos ainda nos dias atuais.
O país vive as consequências da não apuração dos acontecimentos daquele
momento. O sentimento de impunidade, a corrupção, a relação entre autoritarismo e
subdesenvolvimento, enfim, muito ainda pode ser identificado como decorrente de
uma história ainda não investigada.
Este artigo, pois, propõe-se a estudar estas relações e a peculiaridade das
ditaduras do cone sul, o processo de redemocratização pelo qual estes Estados
passaram, seu neoconstitucionalismo, além de abordar a questão do papel da
cidadania nesta realidade.
Em sua parte final, traz à discussão a condenação do Brasil pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, decorrente da decretação da
Constitucionalidade da Lei da Anistia (Lei Nº 6.683/79) pela Suprema Corte deste
país, no ano de 2010, fato que impossibilita até então a investigação e punição dos
desaparecimentos forçados e torturas que aconteceram na região do Araguaia, durante
a ditadura militar brasileira (1964-1985).
2 DO TERCEIRO MUNDO AOS REGIMES BUROCRÁTIO-AUTORITÁRIOS NA ERA DOS EXTREMOS
Um dos aspectos caracterizadores do breve século XX3 foi o surgimento da
compreensão da existência de países pertencentes ao chamado terceiro mundo4, o que
se tornou possível, principalmente, em razão da explosão demográfica ocorrida nesses
Estados sem que, contudo, esse mesmo crescimento fosse refletido em modificações
no âmbito da economia e das instituições (HOBSBAWN, 2011, p. 339).
3 Para fins deste artigo, o termo “breve século XX” será utilizado no sentido a ele atribuído por Eric Hobsbawn, em a “Era dos extremos” (2011). 4 A compreensão da existência do terceiro mundo chegou a inspirar alguns teóricos pertencentes ao dito primeiro mundo acerca da teoria do “terceiro-mundismo”, a saber: a crença na possibilidade de melhorar a realidade a partir da libertação dos primeiros da sua condição de subjugados. Nesse sentido, Hobsbawn (2011, p. 431) enfatiza que “se, como sugeriam os teóricos do ‘sistema mundial’, as raízes dos problemas estavam não na ascensão do capitalismo industrial moderno, mas na conquista do Terceiro Mundo por colonialistas europeus no século XVI, então a inversão desse processo histórico no século XX oferecia aos impotentes revolucionários do Primeiro Mundo uma saída de sua impotência”.
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Embora a relação de ambos não seja analisada costumeiramente, outro
aspecto relevante desses Estados, durante a era dos extremos, foi a predominância ou,
ao menos, a inclinação a regimes militares de cunho autoritário. Essa é também uma
característica idiossincrática ao terceiro mundo do século XX, em razão de constituir
verdadeira inovação desse período. Isso porque, apesar de termo-nos acostumado à
possibilidade da existência de governos militares, estes são um fenômeno recente e
peculiar, com origem ligada a uma experiência mexicana ocorrida no século passado
(HOBSBAWN, 2011, p. 340 e p. 422).
É nesse sentido que Hobsbawn (2011, p. 341) ressalta que
A política de golpes militares foi portanto produto da nova era de governo incerto ou ilegítimo. A primeira discussão séria do assunto, Coup d’état, de Curzio Malaparte, um jornalista italiano com lembranças de Maquiavel, foi publicada em 1931, na metade dos anos de catástrofe. Na segunda metade do século, quando o equilíbrio de superpotências pareceu estabilizar fronteiras e, em menor medida, regimes, foi cada vez mais comum os homens de armas irem se envolvendo na política, quando mais não fosse porque o globo agora continha até duzentos Estados, a maioria dos quais novos e, portanto, sem qualquer legitimidade tradicional e em sua maior parte onerados por sistemas políticos mais propensos a produzir colapso político do que governo efetivo. Em tais situações, as Forças Armadas eram muitas vezes os únicos corpos capazes de ação política, ou qualquer outra ação, em base estatal ampla. Além disso, como a Guerra Fria entre as superpotências se dava em grande parte através das Forças Armadas dos Estados clientes ou aliados, elas eram subsidiadas e armadas pela superpotência apropriada, como na Somália. Havia mais espaço na política para os homens dos tanques do que jamais antes.
Foi esse contexto que proporcionou a eclosão de regimes burocrático-
autoritários responsáveis pela transição para a economia de cunho industrial em países
onde até então havia predominância do modelo agrário. No que pese o característico
crescimento econômico, no caso brasileiro, o governo militar produziu burocracia,
corrupção, desperdício, desigualdade e descumprimento de direitos humanos
(HOBSBAWN, 2011, p. 344).
Assim como em terras canarinhas, os governos militares deixaram um legado
de violações de direitos humanos em quase toda a extensão da América Latina. O
Cone Sul vivenciou, no decorrer do século XX, ditaduras brutais que foram
responsáveis por assassinatos, massacres, torturas e desaparecimentos forçados que
restaram, em grande medida, impunes (REÁTEGUI, 2011, p. 37).
Esses regimes, em sua maioria, baseavam-se na Doutrina da Segurança
Nacional (DSN), teoria oriunda das academias militares estadunidenses do pós
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segunda guerra, que sustentava a vulnerabilidade dos Estados ocidentais frente à
ideologia comunista. Dessa forma, defendia-se o papel das Forças Armadas na
contenção do perigo vermelho ainda que, para tanto, fosse necessário fazer as vezes
do governo e sacrificar a democracia (AVILA; JOO, 2010, p. 25-26).
Nas palavras de Avila e Joo (2010, p. 26)
[...] para os adeptos da DSN, as questões e desafios da cidadania e dos
direito humanos – eram bastante relevantes em todos os países da região – pareciam ser muito menos relevantes do que o suposto perigo vermelho. Eles ignoravam ou não aceitavam que normalmente eram os desequilíbrios estruturais vinculados à exploração, à exclusão social, à miséria e a outros problemas socioeconômicos semelhantes – e não necessariamente a filosofia marxista – os verdadeiros impulsionadores das reivindicações para a mudança, a reforma e, em casos excepcionais, para a revolução.
Isso foi possível, dentre outras razões, pelo fato do discurso dos direitos
humanos ser recente na América Latina, motivo pelo qual não se trata do debate em
torno da perda de algo já garantido, mas apenas da compreensão de algo essencial que
não era reconhecido previamente (RONIGER; SZANAJDER, 2004, p. 43).
2.1 A redemocratização brasileira: Constituição Cidadã e neoconstitucionalismo
Como visto, o Brasil dos anos 60, 70 e 80 do século passado não construiu
uma história menos triste do que a dos países fronteiriços. Foram cerca de 20 (vinte)
anos de graves violações aos direitos humanos, perseguições políticas, torturas,
concentração de renda e de administração pública sem transparência.
Passados os tempos cinzentos do regime burocrático-autoritário pós-64, o
Brasil experimentou uma leva de redemocratização e de lutas em prol da efetivação
dos direitos de cidadania no país. O entusiasmo foi tamanho que proporcionou uma
cara cidadã à nova Constituição.
A “Constituição Cidadã”, como ficou conhecida a Lei Fundamental de 1988,
tentou refletir um pouco das expectativas que compõem o miscigenado e heterogêneo
povo5 brasileiro. Foi assim que, como diria José Murilo de Carvalho (2004, p. 7), “a
cidadania virou gente”. Por óbvio, a Constituinte não foi isenta de pressões de grandes
empresas ou de bancadas mais conservadoras, mas a Constituição Federal de 1988,
5 Sobre a formação do povo brasileiro, recomendamos a leitura de RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia de bolso, 2006.
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137
sem dúvidas, representou um grande passo democrático para o país.
Todavia, a democracia política não foi suficiente para resolver alguns
problemas crônicos do Brasil, como a pungente desigualdade social e o alarmante
índice de analfabetismo.
Nesse contexto, percebeu-se que seria necessário atualizar a própria
compreensão de direitos e de cidadania que repetíamos irrefletidamente desde a
declaração de independência (CARVALHO, 2004, p. 1999) . No entanto, como
atualizar a compreensão da cidadania no país se sequer temos dado a chance do povo
brasileiro conhecer e entender sua história recente?
Sobre esse aspecto, é relevante o papel desempenhado pelo
neoconstitucionalismo, que almeja alinhar progressivamente o direito público sob
bases democráticas. Essa etapa emergente do constitucionalismo se diferencia por
buscar a aproximação dos diversos Estados e sistemas constitucionais, que pode
acontecer por dois caminhos: universalização ou internacionalização, ou seja, através
da difusão do ideal democrático e da projeção, no cenário internacional, de elementos
do direito constitucional6.
2.2 Dos elementos dos direitos de cidadania
A cidadania compõe o núcleo essencial dos direitos humanos, uma vez que
consiste no direito de ter direitos e deveres7 reconhecidos na comunidade jurídica
(SORTO, 2009, p. 43). Não só, sua extensão excede os limites do próprio Estado8.
6 Sobre o tema, cf.: ARAÚJO, Mayara de Carvalho; FERREIRA, Siddharta Legale. Transferência supranacional de competências: parâmetros para implementação. Revista Jurídica In Verbis, Natal, n. 25, p.249-262, jan. 2009. Semestral. 7 Embora o objeto específico desse trabalho gire entorno dos direitos de cidadania, faz-se importante destacar o papel ocupado também pelos deveres no conceito de cidadania que, frise-se, não existe sem obrigações (SORTO, 2011, p. 103). Quanto a estes, podem ser representados pelo elemento da fraternidade na célebre trilogia da Revolução Francesa, uma vez que é justamente a fraternidade o contraponto aos direitos de liberdade e igualdade. Assim, os deveres de cidadania são praticados sem a espera de recompensas e não são realizados tendo em conta a nacionalidade, o sexo ou qualquer outro elemento distintivo da pessoa, mas o indivíduo em si e enquanto seres humanos. Sobre o tema, cf. SORTO, Fredys Orlando. La compleja noción de solidaridad como valor y como Derecho: la conducta de Brasil em relación a ciertos Estados menos favorecidos. In: LOSANO, Mario G. (Comp.). Solidaridad y derechos humanos en tiempos de crisis. Madrid: S. E., 2011. p. 97-122. 8 A esse respeito, importante salientar a distinção entre nacionalidade e cidadania. Segundo Fredys Sorto (2009, p. 42), “a nacionalidade refere-se ao vínculo que a pessoa tem com determinada comunidade política organizada soberana e estatalmente num dado território. A cidadania refere-se, por sua parte, ao exercício de determinados direitos e deveres, dentro e fora do espaço estatal”.
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Em seu “Cidadania, classe social e status”, Marshall (1963, p. 63) defende
uma compreensão dos direitos de cidadania a partir de três elementos que lhe seriam
intrínsecos, a saber: os direitos civis, políticos e sociais.
Segundo o autor, o elemento civil corresponde aos direitos relacionados à
liberdade individual e ao direito à justiça. Sua compreensão, por isso, excede a noção
tradicional de direitos civis, à medida que não só contempla o direito à justiça, mas
também confere a este um patamar diferenciado.
O elemento político, por sua vez, equivale ao direito de participar das
decisões políticas, seja na condição de membro de alguma instituição dotada deste
poder (MARSHALL, 1963, p. 63), seja por intermédio do voto e dos demais meios de
participação democrática semidireta, como plebiscitos, referendos e legislação
participativa.
Por fim, o elemento social representaria o que concebemos hoje por direitos
sociais. Segundo o autor (1963, p. 63-64), “o elemento social se refere a tudo o que
vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de
participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado, de
acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”.
A evolução dos direitos de cidadania, portanto, envolveu um duplo processo
de fusão geográfica e de separação funcional da estrutura do Estado, que teve início
no século XII, quando a justiça real foi efetivamente estabelecida para defender os
direitos civis dos indivíduos com base no direito consuetudinário inglês
(MARSHALL, 1963, p. 64).
2.3 Da construção da cidadania no Brasil
No Brasil, a história do desenvolvimento dos elementos de cidadania sofreu
uma inversão substancial se comparado ao modelo inglês, tanto no aspecto da
sequência dos fatos, quanto no tocante à ênfase atribuída a cada um desses direitos.
Aqui, não só foi atribuído primazia aos direitos sociais, como estes também
precederam os demais, o que acarretou uma compreensão do cidadão brasileiro
bastante distinta da do cidadão inglês (CARVALHO, 2004, p. 11-12).
Conforme observa José Murilo de Carvalho (2004, p. 219-220)
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Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide de direitos foi colocada de cabeça para baixo. Na sequência inglesa, havia uma lógica que reforçava a convicção democrática. As liberdades civis vieram primeiro, garantidas por um Judiciário cada vez mais independente do Executivo. Com base no exercício das liberdades, expandiram-se os direitos políticos consolidados pelos partidos e pelo Legislativo. Finalmente, pela ação dos partidos e do Congresso, votaram-se os direitos sociais, postos em prática pelo Executivo. A base de tudo eram as liberdades civis.
O próprio José Murilo de Carvalho (2004, p. 220-221) ressalta que não há
um só caminho para a cidadania, mas que a inversão deste no Brasil afeta o tipo de
cidadão e de democracia que se desenvolverão em solo tupiniquim.
Dentre as importantes consequências apontadas pelo autor (2004, p. 221 ss.)
estão a excessiva valorização do Executivo, centralizada principalmente em âmbito
federal; a permanente defesa de um Executivo forte e a esperada vitória do
presidencialismo no plesbiscito de 1993; a cultura da “estadania9” no país; o culto a
políticos messiânicos populistas; a desvalorização do Legislativo e de seus titulares; a
ótica corporativista dos interesses coletivos10; e a redução da atividade dos
legisladores aos interesses da maioria dos votantes.
Para aperfeiçoar a cidadania no país, portanto, faz-se necessário consolidar
nossa jovem democracia e incentivar uma maior participação da sociedade civil em
prol de seus direitos, mas também contra o Executivo clientelista messiânico
(CARVALHO, 2004, p. 227).
Para tanto, todavia, faz-se imprescindível a solidificação das bases da
cidadania no Brasil, o que pode ser alcançado, dentre outras formas, pela 9 A expressão é do próprio José Murilo de Carvalho (2004, p. 221) e contrapõe-se à cidadania. Com ela, o autor pretende referir-se à cultura de orientação da ação política mais voltada para a negociação direta com o Estado em si do que para a representação popular. 10 Sobre o corporativismo no país, importante repetir as palavras de José Murilo de Carvalho (2004, p. 222-223): “O grande êxito de Vargas indica que sua política atingiu um ponto sensível da cultura nacional. A distribuição dos benefícios sociais por cooptação sucessiva de categorias de trabalhadores para dentro do sindicato coorporativo achou terreno fértil em que se enraizar. Os benefícios sociais não eram tratados como direitos de todos, mas como fruto da negociação de cada categoria com o governo. [...] A prática política posterior à redemocratização tem revelado a força das grandes corporações de banqueiros, comerciantes, industriais, das centrais operárias, dos empregados públicos, todos lutando pela preservação de privilégios ou em busca de novos favores. Na área que nos interessa mais de perto, o corporativismo é particularmente forte na luta de juízes e promotores por melhores salários e contra o controle externo, e nas resistências das polícias militares e civis a mudanças em sua organização”.
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140
compreensão do passado nacional e de suas repercussões no presente e futuro
brasileiros, o que se torna possível a partir do reforço da memória baseada na verdade
e da opção pela justiça transicional.
3 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, MEMÓRIA E VERDADE
A compreensão de história remete a uma imagem do passado distinta da do
presente, ao passo que o conceito de memória transpõe o passado para o presente,
como parte indissociável e reformulada deste (NORA, 1989, apud RONIGER;
SZNAJDER, 2004, p. 224).
O direito à memória no Cone Sul, todavia, tem cedido, muitas vezes, à
negação ou minimização dos fatos históricos, uma vez que o mito nacionalista e
conservador de “salvador da pátria” foi empregado, sem maiores pudores, por um sem
número de regimes autoritários.
Todavia, uma concepção da memória baseada na verdade é fundamental para
a solidificação da paz após períodos de conflitos ou de violações de direitos humanos.
É nesse sentido que se insere a necessidade da justiça transicional, que visa revelar a
verdade sobre crimes passados, proporcionar a reparação às vítimas ou de seus
parentes, promover a reconciliação11 e reformar as instituições infratoras de direitos
humanos a fim de legitimá-las democraticamente (REÁTEGUI, 2011, p. 47).
Com isso, pretende-se, simultaneamente, enfrentar o passado e evitar novas
violações no futuro, garantindo, assim, uma paz sustentável12. A partir da coleta de
depoimentos e análise de dados, as comissões da verdade são capazes de identificar a
imagem das violações de direitos humanos durante dado período. Conhecidas suas
nuances, causas e estrutura, há condições de esclarecer os fatos e atores que
possibilitaram ou legitimaram essas violações e, por isso, de diagnosticar suas razões
e combatê-las no futuro.
11 A respeito da reconciliação, importante ressaltar que esta não é sinônimo de perdão puro e simples ou com impunidade, embora seja com ele muitas vezes confundida. Através dela, ao contrapasso, o que se busca é permitir a convivência harmônica no seio da sociedade, diluindo a possibilidade de eventual retorno ao conflito ou ao estado de violência anterior. Isso é particularmente relevante quando o conflito é motivado por questões pessoais como religião, língua ou etnicidade (REÁTEGUI, 2011, p. 54). 12 Nesse contexto, importante ressaltar o papel do Direito Internacional no tocante à atuação da Corte interamericana de Direitos Humanos (CIDH), do Tribunal Europeu de Direitos humanos e do Comitê de Direitos Humanos, que estabelecem os padrões para enfrentamento das questões atinentes a violações de direitos humanos.
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141
Dessa forma, acaba também por afastar a cultura da impunidade e favorecer
a prestação de contas com a sociedade, bem como incentivar a reconciliação e a
restauração da confiança e legitimidade do Estado Constitucional de Direito
(REÁTEGUI, 2011, p. 64).
Por essa razão, faz-se imprescindível que, a partir da justiça de transição, seja
perseguida a consolidação democrática, a abertura dos arquivos do período de
violações de direitos humanos e o julgamento moral dos seus repressores (AVILA;
JOO, 2010, p. 29 ss.).
4 A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E SUA CONDENAÇAO AO ESTADO BRASILEIRO
Os sistemas regionais de direitos humanos foram desenvolvidos
paralelamente ao sistema universal proposto pela Organização das Nações Unidas
(ONU) com o objetivo de perseguir a evolução e o cumprimento dos direitos humanos
de modo mais próximo às respectivas realidades locais.
Um sistema global deve lidar com a coexistência pacífica de Estados
pertencentes a conjunturas socioeconômicas (CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 79)
e culturas distantes, demonstrando uma universalidade muitas vezes pretenciosa,
incapaz de enfrentar problemas específicos e pontuais, concernentes a uma
determinada localidade.
Sem prescindir do sistema universal da ONU, de relevância ímpar e
conquistas únicas para o Direito Internacional dos Direitos Humanos, principalmente
se levado em consideração o momento histórico a partir do qual fora criado, os
ordenamentos regionais desenvolveram-se paralelamente, com a característica de
ocupar uma posição privilegiada em relação àquele, mais perto das realidades as quais
pretende monitorar.
Dessa forma, o sistema Interamericano foi concebido nas Américas,
composto pela Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA–1948), a
Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948), a Convenção
Americana de Direitos Humanos (1969), também conhecida como Pacto de San José
da Costa Rica, a Comissão (1959) e a Corte (CIDH - 1978) Interamericana de direitos
Humanos.
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142
Costuma-se dizer que o âmbito americano engloba um duplo sistema de
proteção dos direitos humanos, quais sejam, o sistema geral, baseado na Carta da
OEA e na Declaração, além daquele que abarca os Estados signatários da Convenção
(GUERRA, 2011, p. 167), o qual contempla a Comissão e a Corte.
Declarações, como o próprio nome transparece, não são objeto de assinatura
e ratificação. Seu papel consiste tão somente em enumerar condutas e princípios os
quais considera que devam ser obedecidos. Em sentido contrário, as Convenções
passam a ser válidas e passíveis de cobrança somente após o processo que inicia-se
com o ato soberano de um Estado em sua assinatura, e que culmina em sua publicação
no âmbito interno.
Como membro deste sistema, a República Federativa do Brasil ratificou a
Convenção Interamericana aos dias 07.09.1992 e aceitou a competência da respectiva
Corte em 12.10.199813, tendo em vista que sua jurisdição depende de declaração
prévia (SHAW, 2010, p. 295). Uma vez reconhecendo-a, o ordenamento jurídico
interno deve respeitar suas decisões, podendo também recorrer à sua competência de
emitir pareceres consultivos acerca da interpretação da Convenção Americana e de
outras convenções que tratem da proteção dos direitos humanos no Estados
Americanos (SHAW, 2010, p. 296).
A Comissão Interamericana teve sua função desenvolvida e ampliada ao
longo dos anos. Originalmente, foi concebida como órgão de observação e
recomendação, com vistas à promoção dos dos direitos humanos. Em momento
posterior, no final dos anos 60, passou a atuar como órgão de ação, e já na década de
1970 engajou-se na coleta de dados, visita e missões de investigação in loco, além da
preparação de relatórios e recebimento de denúncias de violações dos direitos
humanos (CANÇADO TRINDADE, 2003, pp. 460/461).
Desaparecimentos forçados, mortes, leis de anistia e assuntos afins têm feito
parte da agenda da Comissão desde a década de 1970, e da Corte desde 1980
(STEINER; ALSTON; GOODMAN, 2007, p. 1020). Em Chumbipuma Aguirre v.
Peru, conhecido como caso Barrios Altos14, o Tribunal enfrentou a questão das leis
13 Dados coletados no site da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Disponíevl em: <http://www.cidh.oas.org/annualrep/2002port/anexo.1.htm>. Acesso em: 22.10.2012. 14 Disponível no site da Corte Interamericana de Direitos Humanos: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_ing.pdf>, acesso em 22.10.2012.
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143
internas de anistia e declarou que as leis de anistia peruanas eram incompatíveis com
a Convenção Americana e, portanto, legalmente nulas (SHAW, 2010, p. 298).
Nesse mesmo sentido, a CIDH condenou o Brasil, em novembro de 2010,
pelo desaparecimento de sessenta e duas pessoas, entre os anos de 1972 e 1974, na
região do Araguaia15, indo de encontro ao julgamento do Superior Tribunal Federal
(STF) brasileiro, ocorrido em Abril do mesmo ano, acerca da constitucionalidade da
Lei nº6.683/197916.
Na sentença da CIDH, destaca-se o posicionamento da Corte no que diz
respeito à incompatibilidade da acima referida Lei com as obrigações internacionais
assumidas pelo Brasil quando da ratificação da Convenção Americana de Direitos
Humanos. Na nota para a imprensa17, publicada no dia 14 de Dezembro de 2010, o
Tribunal expressou ter baseado sua decisão nos princípios do direito Internacional e
na Jurisprudência. Asseverou que impedir ou obstacular a investigação e punição dos
crimes cometidos durante o período com base na anistia conferida pela Lei Nº
6.683/79 não tem efeito legal.
O Brasil foi ainda condenado pela violação do direito à integridade física e à
informação, tendo falhado em proporcionar acesso aos arquivos relativos aos
desaparecimentos, possíveis pontos de partida para a investigação e consequente
punição dos responsáveis pelo ocorrido.
A Comissão Interamericana já havia referido-se à incompatibilidade das leis
de anistia em seus informes sobre casos individuais, anuais e por países em ocasiões
anteriores. Seu primeiro pronunciamento neste sentido deu-se no Informe Anual
1985-1986, época em que havia começado a transição democrática em alguns países
da região e, consequentemente, apareciam os primeiros obstáculos à investigação das
graves violações dos direitos humanos (CANTON, 2011, p. 263).
É sabido que, em decorrência da bipolarização conjuntural da época da
Guerra Fria, alguns países da América latina passaram por períodos ditatoriais,
financiados por aqueles receosos de um possível levante comunista. Nesses Estados, o
conceito de democracia foi relativizado, e a repressão aos rebeldes que lutavam por
15 Disponível no site da Corte Interamericana de Direitos Humanos: <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>, acesso em 22.10.2012. 16 Disponível em: <http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/1253_153_gilmar.pdf>, acesso em 22.10.2012. 17 Disponível no site da Corte Interamericana de Direitos Humanos: < http://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_19_10_esp.pdf>, acesso em 22.10.2012.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
144
esta causa ocorreu de forma desleal e autoritária, sob o argumento de defesa da
democracia.
Após a queda dessas ditaduras civil-militares, houve um processo de
redemocratização das instituições e dos próprios Estados. Com o objetivo de facilitar
o período de transição, leis de anistia foram aprovadas com vistas a absolver os
crimes praticados durante os anos de repressão, de ambos os lados.
Desta forma, exilados puderam retornar a seu país de origem, por outro lado,
torturadores tiveram suas condutas esquecidas, não penalizadas. Parecia uma solução
conveniente à época, capaz de responder aos anseios da maioria dos envolvidos nas
convulsões políticas instaladas naquele determinado contexto histórico.
Todavia, Comissões da verdade foram instaladas em diversos países após a
transição democrática, como na Argentina e Chile, demonstrando a necessidade da
busca de uma nação pela sua história com o objetivo de promover a justiça e evitar a
repetição dos erros cometidos no passado.
Nesse contexto, o Brasil até então caminhou em sentido contrário, negando
sempre o desejo de investigação dos acontecimentos decorrentes de uma época
peculiar, não aceitando que a Lei de 1979, em verdade, consolidara a autoanistia, e
afirmando com igual veemência que a construção de um futuro não se faz com olhos
no passado.
Este pensamento teve sua afirmação constitucional validada pela Corte
Suprema brasileira no ano de 2010, o que resultou em uma condenação por parte de
um Tribunal Internacional meses depois, qual seja, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos. O Brasil, de forma soberana, reconheceu a competência desta Corte através
do Decreto Legislativo 89/98, devendo, portanto, respeito à Instituição e às sentenças
que porventura venham a condená-lo, sem que esta obediência seja considerada como
algum tipo de abuso ou interferência demasiada em questões internas.
Para que um determinado caso seja levado à da Corte Interamericana, faz-se
necessário, dentre outros requisitos de admissibilidade, o esgotamento dos recursos
internos disponíveis no direito brasileiro (CANÇADO TRINDADE, 1997), o que
demonstra o respeito primordial ao ordenamento jurídico e à soberania dos Estados
sob sua tutela, que de maneira voluntária e no exercício do seus poderes consideraram
razoável e prudente a aceitação da sua jurisdição, em conformidade com a realidade
cada vez mais comum de criação de Cortes Internacionais.
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145
Dessa maneira, a desobediência das sentenças proferidas pelo referido
Tribunal torna-se explicitamente contraditória. Como já mencionado, o Estado
brasileiro possuiu a prerrogativa de reconhecer a competência da referida Corte, não
sendo, de forma alguma, obrigado a aceitá-la. Uma vez a reconhecendo, contudo, a
não observância das sentenças condenatórias por ela emitidas enfraquece a posição do
Brasil no cenário internacional, país comumente reconhecido por sua colaboração e
respeito aos Tratados Internacionais por ele ratificados.
Em reportagem no dia 05.03.2013, a Cable News Network (CNN) noticiou o
início do julgamento de vinte e cinco ex oficiais responsáveis pela operação Condor,
momento sombrio de colaboração entre os regimes ditatoriais latino-americanos18. O
julgamento acontece na Argentina e deve levar cerca de dois anos para ser concluído,
no qual mais de quinhentas vítimas devem ser ouvidas. Dos vinte e cinco acusados,
vinte e quatro são argentinos e um deles é uruguaio, o ex Maj. Juan Cordeiro
Piacentini. Observam-se, portanto, esforços no sentido da punição dos responsáveis
pelas violações aos direitos humanos decorrentes das ditarduras civil-militares no
cone sul, posição da qual o Brasil parece se afastar.
O Brasil costuma ser bem quisto na seara internacional por suas atitudes em
prol do desenvolvimento dos direitos humanos, autorizando visitas permanentes em
seu território de missões especiais da ONU, sendo reconhecido como um Estado ativo
e tido como um bom exemplo no que concerne ao respeito dos instrumentos
internacionais. Em sua política externa, opta sempre por soluções diplomáticas e
negociadas, posicionando-se constantemente contra a sobreposição do uso da força
em detrimento do diálogo.
Assim, espera-se coerência por parte dos operadores do direito interno
brasileiro no que se refere ao cumprimento da sentença proferida pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que de maneira alguma viola a soberania do
ordenamento jurídico deste Estado mas, ao contrário, reforça o poder das suas
instituições, que de forma voluntária e em consonância com a realidade de
colaboração regional que vem se consolidando ao longo dos anos, decidiu dela fazer
parte.
18 Reportagem completa disponível em: <http://edition.cnn.com/2013/03/05/world/americas/argentina-operation-condor-trial>, acesso em 05 mar. 2013.
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A autoanistia não é reconhecida pela jurisprudência do referido Tribunal e o
Brasil, como Estado-Parte do sistema que o engloba, deve adaptar-se à realidade
moderna que evoca a relevância e a necessidade do direito à memória e à verdade
como meio de evitar o cometimento dos mesmos erros do passado, sem que, para
tanto, haja um enfraquecimento da soberania interna dos Estados, teoria há muito
superada no âmbito do direito internacional.
Sem minimizar a importância e os méritos da criação da Comissão da verdade
pelo Estado brasileiro, a resposta pontual à condenação da Corte não pode ser
interpretada como outra, senão a revogação da Lei de Anistia e a consequente
persecução penal dos oficiais e daqueles que de alguma forma patrocinaram a
manutenção do regime autoritário no Brasil.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As ditaduras militares na América Latina das décadas de 70 e 80 do último
século deixaram sequelas físicas e psicológicas não só naqueles que participaram da
luta armada contra o regime, mas também em suas nações. Apesar de alguns países
terem rejeitado suas respectivas leis de anistia em momento posterior à transição
democrática por eles atravessada, outros sofrem até hoje consequências decorrentes
da impunidade daqueles que promoveram o terror.
A ferida permanente que constitui a não apuração dos crimes praticados
naquela época encontra-se ainda aberta e capaz de encorajar atitudes autoritárias na
certeza da impunidade, ainda que dentro de Estados democráticos de direito. Em
verdade, um país que não é capaz de enfrentar o passado com coragem, tende
fatalmente a permanecer envergonhado, a encontrar-se ainda na escuridão e na certeza
da incapacidade de transmitir segurança aos seus cidadãos.
Dessa maneira, o direito à memória e à justiça, respeitados em determinados
Estados, carecem ainda de efetividade em outros. O Brasil insere-se no grupo destes
últimos, apesar do grande progresso alcançado no atual governo com a instalação da
Comissão da Verdade, com o escopo de investigar as violações aos direitos humanos
cometidos durante o período de repressão. O órgão, mesmo não possuindo caráter
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punitivo, mas tão somente investigativo, constitui imenso avanço, posto que
possibilitará, de certa forma, o encontro do país com seu passado.
Por fim, frisa-se a necessidade da observância ao cumprimento da sentença
condenatória proferida contra o Brasil pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, Tribunal ao qual o estado brasileiro soberanamente reconheceu a
competência e que, portanto, deve respeito. Sua política externa, fonte de constante
admiração pelas posições tomadas sempre em prol da promoção e proteção aos
direitos humanos e do diálogo pacífico, deve assim permanecer, tendo em vista que o
discurso e as atitudes autoritárias nunca constituíram fonte de democracia.
Encoraja-se, assim, não somente a investigação dos crimes ocorridos no
contexto ditatorial, mas também sua devida punição. Pensar no passado apenas com o
sentimento de atraso leva à perpetuação de situações que poderiam ser modificadas
em um futuro não tão distante, e o desconhecimento de um país quanto à sua história
tende a educar uma população alienada, à margem da política e sem a capacidade e a
devida coragem para enfrentar os desafios à sua frente.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Mayara de Carvalho; FERREIRA, Siddharta Legale. Transferência supranacional de competências: parâmetros para implementação. Revista Jurídica In Verbis, Natal, n. 25, p.249-262, jan. 2009. Semestral. AVILA, Carlos Frederico Dominguez; JOO, Carlos Ugo Santander. Auge e declínio dos governos autoritários na América Latina: reflexões em perspectiva comparada. In.: SANTANDER, Carlos Ugo. Memória e direitos humanos. Brasília: LGE, 2010. CANTON, Santiago. Leis de Anistia. In.: REÁTEGUI, FÉLIX (org). Justiça de transição: manual para a América Latina. Brasília: Comissão de Anistia, Ministério da Justiça, 2011. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2004. CASTILLO, Mariano. Trial over terrifying ‘Operation Condor’ under way. Cable News Network, Estados Unidos da América. 05 mar. 2013. Disponível em:
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A TORTURA DOS TEMPOS DA DITADURA MILITAR NO BRASIL E A
CORRUPÇAO DOS DIAS ATUAIS FRENTE AO DIREITO À VERDADE E À
MEMÓRIA
TORTURE OF TIMES OF MILITARY DICTATORSHIP IN BRAZIL AND
CORRUPTION OF THE PRESENT DAY FRONT RIGHT TO THE TRUTH AND
MEMORY
Diana Uchoa Torres Lima1
Janaína Alcântara Vilela2
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar a tortura instaurada nos tempos da ditadura
militar, bem como demonstrar como a corrupção dos dias atuais pode ser tão parecida com a
aquela figura dos anos de chumbo. Procura-se traçar um enfoque comparativo entre a tortura e
a corrupção, analisando seus efeitos, características e como a corrupção atua no mundo
contemporâneo. Busca-se também abordar quais as consequências que estas duas figuras
trazem para a sociedade, principalmente no que tange ao direito à verdade e à memória
relacionadas aos fatos e acontecimentos das diferentes épocas. Por fim, analisa-se o papel da
narrativa e da linguagem no estudo da tortura e da corrupção, bem como o direito à memória,
englobando aí a memória coletiva e histórica de um país e ainda o direito à verdade,
analisando a anistia e os benefícios que a instituição da Comissão da Verdade criada no Brasil
pode trazer ao país.
Palavra-chave: Tortura; Ditadura Militar; Corrupção no Brasil; Direito; Memória; Verdade.
ABSTRACT
This paper aims to present the torture introduced in times of military dictatorship as well as
demonstrate how the corruption of the present day can be so similar to that figure the years of
lead. It seeks to draw a comparative approach between torture and corruption, analyzing its
effects, features and how corruption works in the contemporary world. Search also address
1 Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da PUC/Minas. Pós-graduada em Direito de Empresa pela UGV. Pós-graduada em Administração de Empresa pela FGV. Advogada. 2Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da PUC/Minas. Especialista em Direito de Empresa pelo IEC – Instituto de Educação Continuada da PUC/Minas. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela FGV. Advogada.
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what consequences these two figures bring to society, especially in regard to the right to truth
and memory-related facts and events from different eras. Finally, we analyze the role of
narrative and language in the study of torture and corruption, as well as the right to memory,
encompassing around collective memory and history of a country and even the right to truth,
analyzing and amnesty benefits that the institution of the Truth Commission created in Brazil
can bring to the country.
Keyword: Torture; Military Dictatorship; Corruption in Brazil; Right; Memory; Truth.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo analisar a tortura instaurada nos tempos da
ditadura militar, bem como demonstrar como a corrupção dos dias atuais pode ser tão
parecida com aquela figura dos anos de chumbo. Para tanto, apresenta breves considerações a
respeito da tortura, bem como traz um breve resumo desta figura, desde os tempos da ditadura
militar até os dias atuais, demonstrando como a corrupção pode ser uma tortura com novas
vestes.
Aborda ainda a corrupção no seio dos agentes de segurança pública do país, enfocando
os possíveis pontos comuns entre ambas as figuras. Discorre sobre como os fins justificam os
meios para se conseguir atingir a corrupção e a tortura. Aborda o modo como o desempenho
administrativo pode ser afetado, bem como pontua quais as consequências que a tortura e a
corrupção podem ocasionar na fase de crescimento econômico e nas relações internacionais
do país. Ainda se reporta sobre a questão do prejuízo causado quanto à publicidade dos atos
no tocante a essas figuras.
Menciona, outrossim, as consequências nefastas deixadas, tanto pela tortura, quanto
pela corrupção, na sociedade em que se vive.
Por fim, o trabalho demonstra como a tortura e a corrupção relaciona-se com o direito
à memória e à verdade, bem assim como o papel da narrativa e da linguagem mostram-se
relevantes no estudo de ambas as figuras. O direito à memória descreve como se comporta a
memória coletiva e histórica de um país, marcado pela tortura no passado e pela corrupção
nos dias atuais. Já o direito à verdade aborda a importância de se revelar os documentos, fatos
e narrativas que compuseram todo um período da história do Brasil, assim como analisa a
questão da anistia e da instituição da Comissão da Verdade criada no país.
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Percebeu-se que a memória adormecida da época de barbárie do país precisa ser
revivida pela sociedade e pelos cidadãos, reconstruída pelos familiares dos presos políticos da
ditadura militar, para que assim se reconstrua a memória coletiva de um país. Não se pode
deixar lacunas, incertezas e falta de memória como legado para as futuras gerações.
O trabalho trouxe reflexão importante sobre o estudo da tortura e corrupção no país,
demonstrando como a figura da corrupção no mundo moderno pode ser tão similar à tortura
na ditadura militar, e também como o direito à memória e à verdade está intrinsecamente
ligado no tocante ao resgate do Brasil com o seu passado. Aliás, isso é o que se espera: que o
Brasil se reconcilie com seu passado.
2 A TORTURA NA DITADURA MILITAR
2.1 Breves considerações sobre a Tortura
A tortura sempre existiu desde os primórdios da história universal. As guerras civis ou
militares, as desordens sociais, ocasionadas por diferentes motivos, tornaram a prática da
violência uma rotina. É quando a força prevalece sobre a razão, de forma oficial ou não. A
tortura foi uma forma que se desenvolveu para extrair depoimentos de oposicionistas do
governo, intimidar a população e consolidar os governos ilegítimos, construídos sem a
participação ou o consentimento popular.
Como explica Valdir Sznick:
A tortura, em sua evolução histórica, foi empregada, de início, como meio de prova, já que, através da confissão e declarações, se chegava à descoberta da verdade; ainda que fosse um meio cruel, na Idade Média e na Inquisição, seu papel é de prova no processo, possibilitando com a confissão a descoberta da verdade. (SZNICK,1998, p.14).
A tortura foi praxe no Brasil no século XX, durante o período de regime militar (1964-
1985), banalizando-se e revelando-se com um método eficaz de garantir um Estado de
ilegalidade. No entanto, também existiu no período ditatorial do Estado Novo (1937-1945).
Em 1964, quando os militares chegam ao poder, a tortura é institucionalizada. Ela
passa a ser um poderoso instrumento a serviço dos detentores do poder, a fim de que
pudessem obter das vítimas informações relevantes, tendo como objetivo a total extinção dos
opositores políticos.
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Durante a ditadura militar as maiores atrocidades foram cometidas contra estudantes,
intelectuais e todos aqueles que se opunham aos líderes da época.
No entanto, para viabilizar esta barbárie instalada no governo militar foi necessário
criar 242 centros secretos de detenção, muitos mantidos pelas Forças Armadas, como o DOI-
CODI (Departamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna) e
o DOPS (Departamento de Ordem Política Social) que efetuava investigações políticas no
plano estadual. (COIMBRA,ROLIM, 2001, p.15).
Em fins de 1968, o governo de Costa e Silva fechou o Congresso Nacional, O AI-5
foi decretado, dando plenos poderes ao presidente e, entre outras coisas, abolindo o habeas
corpus aos presos políticos, legalizando a tortura. Várias foram as pessoas torturada no país
durante a ditadura militar, entre as formas cruéis de tortura estão o uso da palmatória,
esmagamento de dedos com barra de metal, o pau-de-arara, choques elétricos, entre outros
métodos terríveis que agridem de forma brutal o ser humano.
Mesmo diante de tantas evidências, o governo militar jamais admitiu que houve
tortura no Brasil, o presidente Castelo Branco chegou a negar publicamente a existência de
truculência em seu governo.
Nota-se, portanto, que a tortura é uma prática social solidamente incorporada à
tradição cultural do país, com única diferença de que é tolerada, muitas vezes exigida,
amparada culturalmente, a depender do perfil daqueles que serão vitimados. (COIMBRA,
ROLIM, 2001, p.06).
2.2 A tortura: breve relato dos anos de Ditadura Militar no Brasil até os tempos de hoje
Complicado se faz reportar aos dias de hoje um pouco do que se passou na época da
Ditadura Militar no Brasil. Não só pelo fato da grande ausência de fatos concretos, narrados e
documentados, mas, acima de tudo, pela dificuldade de se imaginar a figura da tortura entre
seres de uma mesma nação, dotados de racionalidade e discernimento, dentro de um Estado
Democrático de Direito.
Em tempos em que a prática da tortura é tida como crime contra a humanidade,
passível das maiores penalidades possíveis que um homem possa sofrer, sendo esta uma visão
mundial diante da Declaração dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas –
ONU (PARIS, 1949) que em seu artigo 5º declara que “ninguém será submetido a tortura,
nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, como se explicar que fatos e
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acontecimentos ocorridos nos chamados Anos de Chumbo estão, até hoje, à margem da
sociedade brasileira?
Vive-se na atualidade no Brasil um Estado Democrático de Direito (ou, quem sabe, em
busca de um) e, em contrapartida, tem-se a história de um período de Governo Ditatorial
negativada, ou melhor, omitida da sociedade e, consequentemente, das sanções cabíveis
perante as leis brasileiras e soberanas.
A divulgação de acontecimentos que possam remeter a um crime hediondo não pode
ser deixada de lado.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF de nº. 153,
impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil, a fim de promover a revisão da Lei de
Anistia no país, foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal. Tal decisão foi atacada pela
Organização das Nações Unidas, esperando que o Brasil consiga livrar-se desta questão de
total impunidade.
Em que pese discussão acerca da prescrição dos crimes de tortura, sendo defendido
por alguns a impossibilidade de imputação de penalidades aos agressores por ato ilícito
cometido há mais de 50 anos, ou ainda, discursos vinculados à subordinação dos agressores a
superiores hierárquicos, no intuito de demonstrar que estariam os mesmos cumprindo ordens
legais, não se pode, de forma alguma, deixar que a história mantenha-se encoberta.
Vê-se uma real necessidade de transcrever partes da história do Brasil nas páginas em
branco deixadas pela Ditadura Militar. A memória de um país não deve deixar de ser
retratada, seja ela qual for, em prol da defesa de alguns ou de possíveis penalidades impostas
aos autores dos delitos praticados naquela época. Deve-se haver uma separação entre o direito
à memória e a real exposição da narrativa dos fatos daquela época, com a possibilidade, ou
não, de tipificação dos crimes ali reconhecidos, bem como a imputação destes aos agressores
ou um provável perdão.
A figura da tortura não está tão longe do alcance dos olhos da geração contemporânea,
principalmente em países afastados de um Estado Democrático de Direito. Sua existência
ainda nos tempos de hoje é incontestável, mesmo que vista pelo mundo com enorme
assombro.
Remeter-se aos tempos passados, a uma transição de sistemas, quebras e golpes, se
mostra tão longe e distante como imaginar os horrores de uma guerra mundial ocorrida em
outro continente, ou, ainda, práticas nazistas contra povos de outras nações.
Entretanto, a história vivida na época da Ditadura Militar no Brasil se mostra,
novamente, presente na atualidade, em um molde diferenciado, com outra roupagem. É
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passível de aceitação por alguns, os que a cometem, sem o peso de um crime hediondo. Uma
versão sem abusos físicos, mas de semelhante consequência e, o que é pior, de iguais
características e efeitos para a sociedade.
Em analogia feita por Frei Betto, mas contrastando a tortura com a pobreza, sábias são
suas palavras quando narra que “haveremos um dia de considerar a pobreza crime tão
hediondo quanto à tortura e a escravidão, outrora aceitas como licitas e legais, embora ainda
praticadas.” (BETTO, 2006, p. 158).
Nitidamente, as palavras do autor se encaixam exatamente na comparação das figuras
tortura e corrupção.
3 CORRUPÇÃO: A TORTURA CONTEMPORÂNEA
Estranho se faz uma comparação entre figuras particularmente tão distantes. Afinal, a
corrupção envolve a vontade de ambas as partes em voga, não se alinhando com lesões físicas
ou emocionais do agressor contra a vítima e nem sequer vinculando-se à morte ou tentativas
revolucionárias de parte da sociedade, como se viu pela guerrilha armada na época da
Ditadura Militar no Brasil.
Nos dias atuais, a tortura institucionalizada da época da ditadura militar mudou suas
vestes e seus alvos, segundo relato de Elzira Vieira, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais,
de São Paulo. Para ela:
O modo de agir dos integrantes da ditadura, o arbítrio, a violência que se dirigia contra os opositores do regime passa a se voltar contra a população mais pobre, negra, analfabeta, que se concentra, sobretudo, nas favelas,cortiços e periferias da cidade.A ação dos agentes de segurança é discriminatória e depende da pessoa contra a qual é dirigida. (REVISTA Superinteressante, 2004, p.54).
Nota-se, portanto, que a tortura reveste-se agora de sutilezas, é feita através da lei do
custo-benefício que domina os agentes públicos que fazem a segurança dos cidadãos. Aqui,
interessa saber qual a classe social e o benefício que se vai receber em troca da prática ou não
de determinado ato. É a corrupção corroendo justamente aqueles que deveriam zelar pelo
cumprimento da lei.
Vê-se que a proximidade entre tortura, ocorrida há mais de 50 anos no país, e
corrupção, nos moldes atuais, é incontestável. Os pontos comuns é o que se passa a debater.
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3.1 Os fins justificam os meios e a funcionalidade
Frase célebre de Nicolau Maquiavel3, representando o maquiavelismo e demonstrando
que os poderes devem estar acima da ética e moral, a fim de se alcançar seus objetivos.
Na tortura, a frase se aplica, como retrata Alfredo Sirkis, como justificativa para a
polícia torturar, matar, agredir os considerados pelo Governo como guerrilheiros e
subversivos.
O objetivo maior era manter a segurança pública, a defesa da sociedade contra
qualquer tipo de tentativa de revolução, pois, conforme emblema da Polícia Paulista à época,
“contra a pátria não há direitos”.
O país estaria acima de tudo e todos, valendo-se, portanto, qualquer prática contra
aqueles que o ameaçassem (GASPARI, 2002).
É esta, também, a frase que justifica a prática de atos corruptos. A ambição ao se
almejar o objetivo final, seja ele funcional, econômico ou político, estaria acima de qualquer
meio ou instrumento utilizado no percurso. Estaria acima da moral, ética e das leis de um
povo.
Percebe-se que há em ambas as épocas um envenenamento da conduta dos
encarregados da Segurança Pública. As atividades dos militares e políticos demonstram-se
totalmente desvirtuada de sua real função.
O proveito pessoal do agente, seja ele na vertente funcional, com méritos burocráticos,
seja ele econômico, de forma imediata, faz com que o risco assuma a característica do mais
vantajoso.
Há nítida decadência moral dos agentes públicos o que resulta em uma descrença da
população nas instituições, pois o Estado passa a acobertar seus agentes, detendo ciência dos
fatos e os omitindo ou se mostrando em total desconhecimento das ações promovidas por seus
representantes.
No âmbito do Poder Judiciário, este será sempre o primeiro a se tornar cúmplice dos
maus feitos. É o primeiro atingido, pois para a total omissão dos acontecimentos, necessário
se faz a participação judicial de forma a prevenir denúncias e anular provas. A prática na
clandestinidade torna-se reiterada, diante de total impunidade.
3 Nicolau Maquiavel, historiador italiano, nascido em Florença em 3 de maio de 1469, onde morreu no dia 21 de junho de 1527, autor da obra O príncipe.
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Atrativa, assim, se torna a prática da tortura e da corrupção, não só por atingir seus
fins e alcançar seus objetivos, mas também pela impunidade dos seus sujeitos ativos.
Inegável, portanto, a funcionalidade das duas figuras.
Nas palavras de Elio Gaspari, tem-se um resumo do que ora se expõe:
A centralização das atividades de policia política pelo CIE4 e pelos DOIS5 feriu a estrutura das Forças Armadas e subverteu a hierarquia no Exército. As conexões com o submundo corromperam alguns de seus quadros e obrigaram ministros, generais e juízes a acumpliciar-se com bandidos. A adoração da funcionalidade da tortura envolveu a máquina repressiva num mito de eficiência, escondendo fracassos e inépcias, ao mesmo tempo, que se passou a exagerar o tamanho da ameaça para adaptá-la ao tamanho da cobiça liberticida. (GASPARI, 2002, p.190)
As duas figuras passam a ser uma política de Estado, uma arma política, a fonte de
poder para quem as exerce.
3.2 O desempenho administrativo afetado
Indiscutivelmente a corrupção afeta o desempenho administrativo de um país,
principalmente no que tange à questão orçamentária. Recursos que deveriam ser investidos na
população, nos direitos fundamentais do cidadão, na melhoria da qualidade de vida, da saúde
e da segurança são desviados em jogadas políticas, transações econômicas fraudulentas e
tratativas ilegais.
O país deixa a população à margem diante de ausência de recursos que possam levá-la
a um crescimento. Do que se arrecada através de tributos, parte, a grande parte, pode-se assim
dizer, não é utilizada da forma como planejado e orçamentariamente vinculado.
As atividades parlamentares, ao serem tomadas por investigações, deixam de exercer
os serviços a que lhe foram conferidos. Passa-se à realização de Comissões de Investigações
com maior frequência do que estudos e discussões de normas necessárias para o andamento e
desenvolvimento da sociedade como um todo.
O mesmo se pode dizer da tortura, que desvia funcionários públicos de suas reais
atividades para a prática de atrocidades. Valores altíssimos eram gastos com as estruturas das
salas de tortura, até porque não era interessante ao Governo que tal prática deixasse vestígios
e provas. A máquina do Estado passou a girar em torno da perseguição aos subversivos, em
detrimento da sua real função na qualidade de Poder.
4 Centro de Informação do Exército 5 Destacamento de Operações de Informações
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Inegável, em ambos os períodos, a participação das empresas privadas como
financiadoras das práticas de tortura e corrupção, pois acima de tudo tratam-se de institutos
caros, onde há necessidade de altos investimentos, seja para sua construção, seja para sua
manutenção.
3.3 Fase de crescimento econômico e relações internacionais
Época de crescimento econômico, esta era a situação do Brasil nos Anos de Chumbo,
bem como é a situação atual.
Hoje, tem-se a valorização do real, bem como do país na esfera internacional. Os
Estados Unidos e a Europa passam por grandes crises.
Internamente, a economia está aquecida, o salário mínimo detém os maiores valores da
história, possibilitando um maior acesso da população, uma circulação monetária que
alavanca a economia nacional.
O Brasil, cada vez mais, estreita suas relações internacionais e se impõe como um país
promissor, respeitado e com voz ativa, inclusive perante a Organização das Nações Unidas.
Quando da Ditadura Militar, o Brasil encontrava-se na época do “Milagre Brasileiro”.
Inéditas taxas de crescimento passaram a ser vistas na economia do país; no futebol, a seleção
canarinha tornava-se tricampeã mundial na Copa do Mundo de 1970; a televisão em cores
tomava conta dos lares; vivia-se o Regime do “Pleno Emprego”; investimentos estrangeiros,
principalmente dos Estados Unidos, eram celebrados; e a imagem do Brasil no exterior
tomava forma.
Nelson Rodrigues citado por Elio Gaspari (2002, p.336) pronuncia-se em sua coluna
no Jornal O Globo “aí está por que emudeceram todas as piadas, porque o próprio Brasil deixa
de ser uma piada. Quando reconhece o Milagre Brasileiro, Richard Nixon6 ensina o Brasil a
ver Emilio Garrastazú Medici7 como o nosso maior presidente”.
6 Richard Milhous Nixon, 37º presidente dos Estados Unidos da América, no período de 1969 a 1974. 7 Emílio Garrastazu Médici, nascido em 4 de dezembro de 1905 e morto em 9 de outubro de 1985, foi militar e político brasileiro, tendo se tornado presidente do Brasil durante a Ditadura Militar, de 1969 a 1974.
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3.4 A publicidade dos atos
Este, certamente, se faz como o ponto mais crítico desta análise comparativa: a
publicidade dos atos praticados na Ditadura Militar e no mundo atual. Fato é que se a tortura
não era de conhecimento público, omitida e velada, a corrupção também assim não se faz.
Pouco se sabe, até hoje, sobre os reais casos de tortura no Brasil. O que se tem notícia
são bibliografias de quem viveu dentro de todo o sistema da época e conseguiu se livrar da
morte ou de um desaparecimento eterno e, ainda, ter coragem de abrir parte de sua vida à
leitura de outras pessoas. São experiências de vida, como narra Alfredo Sirkis: O ano de 1968 e os anos de chumbo que a eles sucederam são como cenas de um filme antigo, histórias desbotadas, quase implausíveis, conquanto deveras acontecidas àquela outra pessoa que fui. Sinto-me a muitos anos-luz do guerrilheiro Felipe com seus 19 anos e sua intrincada mescla de revolta e pulsão de ser herói, viver a aventura da nossa geração, que depois, como disse Alex Polari, se cortou com cacos de sonho. Não me desconforta esse passo, também não me enaltece. (SIRKIS, 2008).
A ausência de publicidade dos fatos leva, inegavelmente, a uma imprensa parcial,
formadora de opinião, não vinculada à verdade dos fatos que se propõe a narrar. Nítidos
traços de censura, mesmo que velada, pois a imprensa também passa a ser controlada pelos
órgãos de comunicação dos dominantes.
Em épocas de ditadura, poucos ainda buscavam eclodir no mundo a realidade vivida
internamente no país. Dom Helder Câmara, bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro
na década de 60, citado por Elío Gaspari, falando para mais de 10 mil pessoas reunidas no
palácio dos Esportes, em Paris, relatou: A tortura é um crime que deve ser abolido. Os culpados de traição ao povo brasileiro não são os que falam, mas sim os que persistem no emprego da tortura. Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria e a tortura a desonra. (CÂMARA apud GASPARI, 2002, p. 292).
O que se vê, majoritariamente, é a extorsão de informações, histórias desencontradas,
falsas e incorretas suposições de fatos e atos. Uma total incoerência entre o real e o narrado,
retirando de um povo o seu direito à verdade e à memória.
Apenas nos últimos anos no Brasil, têm-se engatinhado as primeiras tentativas reais de
trazer a público os fatos e acontecimentos relacionados à corrupção através de uma Polícia
Federal preparada e um Ministério Público autônomo.
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Várias são as Comissões de Investigação instaladas pela Câmara dos Deputados em
Brasília com o intuito de apurar denúncias de corrupção contra autoridades políticas, agentes
públicos e funcionários ligados ao governo.
Nota-se, portanto, que a corrupção, assim como a tortura ainda são praticadas nos dias
atuais de diferentes formas, em diferentes setores dos órgãos do país, sendo a publicidade
desses atos ainda situada na clandestinidade. O pouco que se vê nos jornais e revistas são
denúncias realizadas graças ao direito à informação, e a extinção da censura, que existiu nos
anos da ditadura militar.
Assim, forçoso concluir que mesmo diante da corrupção, os atos praticados são
ocultados da sociedade e dos cidadãos. A verdade também aqui é omitida pelo governo.
Necessário, então, dar-se publicidade ampla aos atos praticados durante o império da
tortura no Brasil, bem como revelar e apresentar a sociedade brasileira os atos de corrupção,
pois somente dessa forma o país poderá se reencontrar com o seu direito à verdade e à
memória.
4 O QUE FICA PARA A SOCIEDADE?
Repassadas algumas comparações entre as duas figuras, tem-se, agora, a análise de
seus efeitos.
Diante de tamanha seriedade do se que se viveu há tempos atrás, através da prática da
tortura e ao que se passa na atualidade sob o enfoque da corrupção, resta à sociedade
consequências nefastas, mas acima de tudo, visíveis a todos.
Vê-se a existência de uma sociedade silenciosa, que muitas vezes sabe dos fatos, mas
lhe falta coragem ou provas que possam fundamentar suas acusações. Passa-se, então, a
tolerar o intolerável, aceitar o inaceitável e calar-se diante dos acontecimentos. Talvez por
medo, talvez por culpa, mas acima de tudo por falta de solidariedade e coletivismo.
A sociedade já não luta unida, como uma mesma nação. Os interesses individuais se
sobrepõem aos interesses coletivos. A percepção de cidadania se altera, trazendo uma enorme
desmoralização da sociedade, que passa a ver tudo apenas como telespectador e não como
parte integrante de um sistema, de um país corrupto e torturador.
Nítida é a perda das referências, contesta-se o que realmente é moral e ético, caindo,
assim, em uma decadência do ser humano ao não saber distinguir o certo e o errado.
Envenena-se a vida nacional com a descrença nas Políticas Públicas.
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As duas figuras em questão tornam-se consequências de si mesmas, uma vez que a
prática da tortura leva a uma corrupção, ao passo que os atos de corrupção podem alcançar
ritos de tortura.
Ainda, nas palavras de Lucas de Alvarenga Gontijo “a corrupção vista nos dias de hoje
está intimamente ligada à tortura do passado, sendo que os principais nomes políticos
envolvidos em escândalos são aqueles de pessoas envolvidas no Governo Militar.” (aula
mestrado PUC/Minas, 2012).
Conclui-se, portanto, que as figuras aqui estudadas estão intimamente ligadas, assim
como seus algozes e vítimas, sendo que as consequências que deixam para a sociedade em
que se vive perpetuam no tempo, caso nada se faça a respeito.
5 O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE
5.1 O importante papel da narrativa e da linguagem no estudo da tortura e corrupção
O Direito à memória e à verdade se faz presente, principalmente, no intuito de evitar
que acontecimentos passados se repitam de modo a prejudicar uma sociedade.
Utilizando-se dos pensamentos de Paul Ricoeur, através da narrativa e da linguagem
é que o homem passa a contar sua temporalidade em forma de história, com a devida seleção,
disposição e reorganização dos acontecimentos.
Mas não se deve esperar que as narrativas sejam parciais e neutras, pois elas contém
as percepções de cada um, influenciadas pela cultura, pela tradição, pelos valores, bem como
pela forma de lembrança dos fatos narrados.
A narrativa nada mais é do que a identidade do homem, estando, as mesmas, ligadas,
completando-se e unindo-se no decorrer do tempo. Assim: A narrativa é o instrumento que permite que o sujeito reavalie as possibilidades de sua vida ao olhar para trás, atribuindo-lhe uma qualificação ética e um sentido para o futuro. O conjunto de sua vida, reunida em termos narrativos, permite que as experiências passadas sejam depuradas e examinadas como “boas” ou “ruins”, ‘bem-sucedidas’ ou “mal-sucedidas”, orientando as ações humanas ainda porvir. (COSTA JUNIOR, 2011).
Nota-se, pois, quando do estudo da tortura na ditadura militar, a narrativa dos fatos
daquela época deve ser estudada pelas atuais e futuras gerações, visto que a partir dos relatos
das vítimas de tortura, seus familiares e política utilizada pelo governo militar são possíveis
reconstruir a história do passado. Os atores sociais da tortura no país – vítimas, torturadores,
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governo – podem repensar e refletir sobre as atitudes e experiências vividas, depurando o
futuro. O mesmo vale também para a corrupção, que não deixa de ser uma forma
contemporânea da tortura. Claro que com vestes menos truculentas, mas que podem produzir
um estrago enorme no futuro do país caso não analisado as narrativas em que se passaram.
Adotando o pensamento de Dartigues, Ernani Salles da Costa Junior traz a seguinte
ideia: A compreensão do si, então, perpassa pelo tecido do reconhecimento em uma complexa trama que interconecta as esferas da singularidade, da alteridade e das instituições jurídicas e democráticas. Por essa razão, a narrativa que permite ao sujeito identificar-se não é somente sua narrativa autobiográfica, mas toda narrativa histórica, fictícia, normativa, que ele interroga como um espelho, devolvendo-lhe uma imagem de si próprio; a identidade buscada nessas narrativas não é a de um “eu isolado”, mas a de um “si” que interfere com uma identidade coletiva e se amplia, pois, à de “nós”, o da comunidade étnica, política, jurídica, etc. (DARTIGUES apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 32)
Citador por Ernani Salles, Paul Ricoeur, ao confirmar não ser o homem um ser
“solista”, mas sim influenciado por sua cultura – politica, jurídica ou poética, passa a pensar
na construção da ação humana não apenas de cunho pessoal, mas também institucional. Só
com o conhecimento do passado que a sociedade poderá se abrir ao futuro. Pois, nas palavras
de Daniel Vieira Sarapu, sob enfoque de Ernani Salles, “carente desse elo com o passado, a
construção do direito estaria, assim, submetida a uma amnésia continuada da sua própria
existência história” (SARAPU apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 82).
Ainda, dentro da obra de Ernani Salles, algumas citações de Ricoeur se fazem de
grande valia:
As histórias da vida estão a tal ponto imbricadas umas das outras, que a narrativa que cada um faz e recebe de sua própria vida se torna o segmento das outras narrativas que são narrativas dos outros. Podemos então considerar as nações, os povos, as classes e as comunidades de todos os tipos como instituições que se reconhecem, cada uma por si e umas às outras, por sua identidade narrativa (RICOEUR apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 33). Essa noção de identidade narrativa é da maior importância para a pesquisa da identidade dos povos e das nações; pois ela contém o mesmo caráter dramático e narrativo que frequentemente podemos confundir com a identidade de uma substância ou de uma estrutura. No nível da história dos povos, assim como no dos indivíduos, a contingência das peripécias contribui para o significado global da história contada e para o significado de seus protagonistas. Esse reconhecimento implica desfazer-se de um preconceito referente à identidade reivindicada pelos povos sob a influência da arrogância, do medo ou do ódio. (RICOEUR apud COSTA JUNIOR, 2011, p. 38).
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O homem recorre ao passado e à memória para avaliar suas possibilidades e
expectativas futuras, motivo pelo qual o direito à verdade dos reais acontecimentos do
passado e do presente se faz tão necessário para uma sociedade.
Em que pese os acontecimentos do passado serem inapagáveis, devem primeiramente
ser trazidos ao conhecimento de todos, para que a sociedade possa tirar seus ensinamentos,
dar sentido ao presente e assumir responsabilidade por seus erros. (OST, 2005, p.28).
Assim é como deve se fazer com o estudo da tortura e corrupção no país. A
sociedade necessita saber da história de tortura e corrupção porque passou e passa ainda hoje
o país, para que tenha conhecimento absoluto e real da situação e possa assumir o controle dos
rumos da história e poder escolher qual direção seguir.
5.2 O direito à memória
A memória lida com quatro paradoxos segundo François Ost. Para ele, o primeiro
paradoxo: a memória é social, e não individual. (OST, 2005, p.59). Segundo ele, as nossas
recordações, mesmo as mais pessoais e mais íntimas só conseguem se expressar nos termos
da tradição e só fazem sentido se forem partilhadas por uma comunidade efetiva e social, que
não tarda em retrabalhá-las. (OST, 2005, p.59-60).
O segundo paradoxo da memória: a memória opera a partir do presente. Assim, a
recordação não só é social, como ainda resulta, em larga medida, de uma reelaboração com a
ajuda de dados retirados do presente e do passado próximo, isto é, das reconstruções
intermediárias que já reinterpretaram consideravelmente o material original, por meio de
sedimentações sucessivas. Não há, pois, memória sem reinterpretação coletiva. (OST, 2005,
p.60).
O terceiro paradoxo da memória situa-se no prolongamento direto do precedente: se a
memória opera a partir do presente e não do passado é porque ela é uma disposição ativa, até
voluntária, e não uma faculdade passiva e espontânea. (OST, 2005, p. 61).
Por fim, o quarto paradoxo da memória liga-se ao esquecimento. A memória
pressupõe o esquecimento. Qualquer organização da memória é igualmente organização do
esquecimento. Não há memorização sem triagem seletiva, não há comemoração sem invenção
retrospectiva. O tempo, mesmo passado, nunca é adquirido, pede sempre para ser instituído e
reinstituído. (OST, 2005, p. 63).
Percebe-se, com isso, que a memória da tortura e da corrupção precisa do passado para
ser trabalhada no presente. Ou seja, é necessário voltar no tempo e trazer à tona toda a época
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de barbárie vivida nos porões da ditadura militar, assim como se necessita denunciar e
relembrar a memória da corrupção ocorrida, pois somente farão sentido se estudadas,
conhecidas e debatidas por toda a sociedade. Afinal, só fazem sentido se retrabalhadas numa
sociedade efetiva.
Deve-se, também, fazer a distinção entre memória coletiva e memoria histórica, que
na visão de OST, pode-se assim concluir: a primeira trata daquela existente e construída
dentro da sociedade, da comunidade, enquanto a segunda reflete os acontecimentos e as
compilações dos fatos (OST, 2005, p. 53).
Assim, imperioso se faz observar que tanto a memória da tortura, quanto a da
corrupção existente e construída na sociedade, muitas das vezes se mistura e amolda-se àquela
refletida nos acontecimentos e fatos históricos. Tornando-se difícil a identificação da memória
coletiva e histórica dessas figuras.
Para Maurice Halbwachs, as lembranças podem se organizar de duas maneiras: tanto
se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de vista, como se
distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são imagens parciais.
Portanto, existiriam memórias individuais e, por assim dizer, memórias coletivas. Em outras
palavras, o indivíduo participaria de dois tipos de memórias. Por um lado, suas lembranças
teriam lugar no contexto de sua personalidade ou de sua vida pessoal – as mesmas que lhes
são comuns com outras só seriam vistas por ele apenas no aspecto que o interessa enquanto se
distingue dos outros. Por outro lado, em certos momentos, ele seria capaz de se comportar
simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranças
impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo. (HALBWACHS, 1997, p. 71).
Diante disso, reforça-se a importância de se trazer à tona todos os documentos,
relatos e provas que permearam os anos de tortura no Brasil, assim como imperioso se torna
também relatar e evidenciar os casos de corrupção vividos no país. Isto porque as lembranças
pessoais ou dos familiares ocorridas durante a tortura ou a corrupção são fundamentais para se
reconstruir a memória coletiva destes episódios e, assim, reelaborá-las para que se tenha um
futuro diferente.
O direito vem, então, assumir o papel de guardião da memória social, enfrentando os
riscos do esquecimento, a fim de que a vida social se desenvolva e mantenha continuidade,
estando os dados acessíveis a todos. (OST, 2005, p. 84).
Assim, a fim de manter a segurança jurídica, a continuidade das instituições e a paz
social, o direito, através da memória jurídica, busca garantir os direitos fundamentais do
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homem. Tais direitos estão estipulados na Declaração de Direitos de 16898, sendo os mesmos
“imemoriais”, “inalienáveis” e “sagrados”.
Dentre eles, o que remete toda a discussão ora exposta, é a proibição da tortura e dos
tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.
A proibição da tortura está dentro do núcleo rígido dos direitos intangíveis do ser
humano, bem como a proibição da retroatividade da pena, da escravidão e da servidão,
considerados, portanto, como uma ameaça à vida da nação.
5.3 O direito à verdade
A Comissão Nacional da Verdade foi instalada em 16 de março de 2012. Ela terá o
prazo de dois anos para apurar violações aos direitos humanos ocorridos no período entre
1946 a 1988, que inclui a ditadura militar (1964-1985). Foi passo importante para a
consolidação da sociedade democrática brasileira contra a violência política.
O objetivo maior dessa comissão será apurar os casos de desaparecidos políticos.
Não há registros de prisão deles e os advogados e familiares até hoje procuram
esclarecimentos sobre onde se encontram os corpos das vítimas.
A presidente Dilma Rousseff destacou na abertura da instalação da Comissão da
Verdade que:
O Brasil merece saber a verdade, as novas gerações merecem a verdade e, sobretudo, merecem a verdade factual. Aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo, é como se eles morressem de novo e sempre a cada dia. É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulos, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo, pode existir uma história sem voz. E quem dá voz à história são os homens e mulheres livres que não têm medo de escrevê-la. (ROUSSEFF, 2012).
A Comissão da Verdade implantada no país é um compromisso real com a defesa dos
direitos humanos, com a memória das vítimas e das suas famílias.
Ademais, a Comissão da Verdade e Reconciliação instalada na África do Sul através
de uma lei de 1995, tendo como objetivo dar conhecimento a todos dos acontecimentos no
período do Aparthaid, trouxe a verdade ocorrida no passado, por pior que ela se mostrasse. As
vítimas foram ouvidas e indenizadas, os agressores identificados com suas confissões
publicadas e as ofensas ocorridas devidamente entabuladas. Na esfera da reconciliação,
8 A Declaração de Direito de 1689 (em inglês Bill of Rights of 1689) foi um documento redigido pelo Parlamento da Inglaterra.
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concedeu-se anistia civil e penal aos crimes reconhecidos, teve-se, assim, uma anistia sem
amnésia.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos entende correta uma lei de anistia
caso a mesma coloque o passado a limpo, podendo as vítimas ser indenizadas, alcançando,
também, a restauração de sua dignidade (OST, 2005, p. 133).
Nas palavras de Carmem Castillo, relembradas na obra de François Ost, “a máquina
do esquecimento da ditadura que apaga a existência dos assassinados” (CASTILHO apud
OST, 2005, p. 135). Com a criação do Tribunal Penal Internacional, viu-se a possibilidade dos
direitos humanos se imporem à razão dos Estados, tornando assim imprescritíveis os crimes
contra a humanidade, tal como a tortura o é, o que possibilitaria o direito à memória,
excluindo-se, assim, os privilégios de imunidade e o esquecimento dos fatos do passado.
Citado pelo autor, Bourget, em sábias palavras, reflete: “entre a referência ao
imprescritível que se recusa a nada esquecer e o uso da anistia que tende a tudo esquecer”
(BOURGET apud OST, 2005, p. 168).
O perdão, aposta na liberdade dos interlocutores: o ofendido, que através de seu gesto imprevisto e gratuito renuncia a reclamar o que lhe é devido, e o ofensor, que afastando-se da lógica do pior, solicita o perdão e se compromete a restaurar a relação comprometida. Assim, o homem do ressentimento (a vítima), e o homem do remorso (o culpado), se libertam juntos de um passado obsessivo e se tornam disponíveis para um futuro novamente promissor” (OST, 2005, p. 164).
Nas palavras de Ricoeur, citadas por François Ost, “o perdão é uma espécie de cura
da memória liberado do peso da dívida, a memória é libertada para grandes projetos. O perdão
oferece um futuro à memória” (RICOEUR apud OST, 2005, p. 164).
As anistias pontuais, como denominada por Ost, são de caráter político, sendo
classificadas em anistia de penas e anistia de fatos. A primeira versa sobre a existência de um
processo, já em fase de condenação, vindo a anistia a interromper a execução da pena. A
segunda extingue uma ação pública, fazendo com que os fatos imputados ao agressor deixem
de ser delituosos (OST, 2005, p. 172).
Deve-se, contudo, pontuar a diferença entre anistia e prescrição, pois esta procede de
uma lei, adotada antes do delito se concretizar, enquanto aquela procede de lei ou decisão
casual que intervêm no ato, após sua ocorrência, ou seja, após a infração.
De forma conclusiva, pode-se aqui utilizar as palavras de Ost ao dizer que “alguns
veem a anistia uma forma de esquecimento forçado ou de conspiração do silêncio, outros, ao
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167
contrário, interpretam-na como ‘o perdão por excelência’, o gesto de misericórdia da
sociedade”. (OST, 2005, p. 173).
Adentrando, ainda, nos pensamentos de Ost, a anistia não deve ser confundida com
esquecimento, pois anistia não significa amnésia, “nenhuma sociedade se acomoda com seus
temores; tanto que todas elas elaboram mecanismos destinados, pelo menos parcialmente, a
desligar o passado e ligar o futuro” (OST, 2005, p. 38).
Utilizando-se das palavras de Hannah Arendt, François Ost traz duas instituições: a
promessa e o perdão. Entende o autor:
dois polos essenciais de regulação jurídica do tempo social: o perdão, entendido no sentido amplo, como essa capacidade que tem a sociedade para “soldar o passado”, ultrapassá-lo trazendo-o à tona, liberá-lo, rompendo o ciclo sem o fim da vingança e do ressentimento; a promessa, por outro lado, entendida em sentido amplo como capacidade que tem a sociedade para “creditar o futuro”, comprometer-se com ele através de antecipações normativas que irão balizar de um momento em diante seu desenvolvimento. (ARENDT apud OST, 2005, p.39)
O perdão deve estar associado à memória e não desvinculado dela, dando ênfase ao
esquecimento, pois neste caso será visto como um perigo para a sociedade, como se tem visto
através de algumas Leis de Anistia, inclusive a brasileira. Assim: Sem memória, uma sociedade não se poderia atribuir uma identidade, nem ter pretensões a qualquer perenidade, mas, sem perdão, ela se exporá ao risco de repetição compulsiva de seus dogmas e de seus fantasmas. Em troca, já o vimos, o perdão sem memória remete-se ao caos inicial dos cálculos de interesse ou nos leva à tendência confusa do esquecimento. Enfim, necessita-se de mais um esforço, coragem sem dúvida, para aceitar a prova da retomada da discussão assim que nos retenham os laços do hábito e o medo do desconhecido. (OST, 2005, p.42).
Nota-se, portanto, que a verdade deve ser apurada durante o período de tortura pelo
qual passou o país, assim como a ocorrência da corrupção também deve ser devidamente
questionada, impedindo, desse modo, que o país volte aos tempos fúnebres da tortura, bem
como evite a fácil estrada da corrupção. Espera-se que através do direito à verdade o Brasil se
reconcilie com seu passado.
6 CONCLUSÃO
O presente estudo teve como objetivo principal fazer uma análise da tortura e
corrupção, apresentando como podem ser similares tais figuras, sendo a corrupção a forma
pela qual a tortura se mostra nos dias atuais.
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Num primeiro momento o trabalho esteve associado a tecer comentário sobre o
conceito e características da tortura ocorrida no Brasil. Viu-se que a prática da tortura sempre
esteve presente na história do país. Com o estabelecimento do Estado Novo em 1937 e a
implantação da ditadura getulista, que duraria até 1945, a tortura ganhou contornos e
regulamentação institucionais.
Em que pese ser a tortura considerada crime contra a humanidade, muitos fatos e
acontecimentos daquela época encontram-se perdidos no tempo e na história do país, sendo
necessário o resgate desses episódios para se preencher a lacuna deixada na memória do
Brasil. Ademais, não se pode deixar que a tortura institucionalizada anos atrás, seja vivida nos
dias atuais através da corrupção. Figura que com roupagem nova, traz implícita os mesmos
malefícios da tortura.
A corrupção encontrada na sociedade contemporânea é muito similar àquela figura dos
anos de chumbo. Isto porque, utiliza-se dos fins para justificar os meios, tal qual foi
protagonizado pela tortura. Em ambos os estudos, ainda que visitados em épocas distantes, há
um envenenamento da conduta dos encarregados da Segurança Pública. As atividades dos
militares e políticos demonstram-se totalmente desvirtuada de sua real função.
Além disso, tem-se que o desempenho administrativo fica comprometido, uma vez que
na corrupção o dinheiro que deveria ser gasto com melhoria nas condições de vida dos
cidadãos era utilizado em prol da vantagem obtida pelos agentes públicos. Já com relação à
tortura o alto gasto para financiar as salas e porões onde eram torturadas as vítimas também
afetava o desempenho administrativo do governo. Isso sem falar na influência que tanto a
corrupção quanto a tortura fizeram na fase de crescimento econômico e nas relações
internacionais do país.
Outro aspecto comum às duas figuras situa-se na publicidade dos atos, haja vista que
em ambas tais atos vivem, ainda hoje, na clandestinidade. A procura pelos algozes e culpados
da prática de tortura, assim como pelos corruptos nos dias de hoje tornaram-se um dos
objetivos do governo deste século.
Percebeu-se ao longo do trabalho que as consequências deixadas pela tortura e
corrupção na sociedade atual são nefastas, sendo o silencio e o trauma de se remexer no
passado, algumas delas.
Todavia, o direito à memória e o direito à verdade se faz imperioso nesta nova época
da história do Brasil, uma vez que as lacunas deixadas no passado necessitam ser reescritas
pelo seu povo. Também é preciso que se cure das feridas do passado, lembrando-se dele e
imprimindo uma nova história para o futuro do país.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
169
O direito à memória não deve ser sacrificado ou prejudicado por disputas contrárias a
respeito de se repudiar ou se punir crimes contra direitos humanos, que a Lei da Anistia
considerou como uma página virada da história do Brasil.
O conceito da anistia deve ser cautelosamente estudado, porque a sociedade quer
descobrir a verdade que ocorreu no período de ditadura militar do país e, ainda que anistiado o
culpado, o direito à verdade deve ser apurado e resguardado.
Os acordos políticos nacionais não podem estar acima da defesa incondicional dos
cidadãos contra Estados que torturam. Lembrando, ainda, que a redação da Lei da Anistia, em
seu parágrafo segundo, é clara ao dizer que os benefícios da anistia não se aplicam aos
condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal.
Espera-se que, com a Comissão da Verdade instalada em março de 2012, apure-se as
atrocidades cometidas pela prática da tortura durante a ditadura militar.
Isto se aplica analogicamente aos atos de corrupção que aos olhos da sociedade não
estão sendo retratados de forma real e verdadeira. Não é trazida ao conhecimento do povo a
realidade dos acontecimentos, os reais envolvidos, todos os que se beneficiam de uma ação
imoral, ilegal e antiética, em prol da manutenção de um sistema, de um governo, de um poder.
Repete-se nos dias de hoje a presença da figura da tortura vivida durante a Ditadura
Militar no Brasil. Desta vez, em um molde diferenciado, através das vestes da corrupção. O
silêncio, a desmoralização da sociedade, a impunidade dos agentes agressores, o Estado como
partícipe, a violência contra os que buscam a verdade, a ausência de publicidade e, acima de
tudo, a negativa de memória e verdade sobre os acontecimentos, passam a fazer parte também
do período contemporâneo. E isso não se pode deixar acontecer. O Brasil precisa resgatar o
seu passado. O Brasil merece a verdade, assim como as futuras gerações. Aliás, isso é o que
se espera.
REFERÊNCIAS BETTO, Frei. A mosca azul: reflexão sobre o poder. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. COIMBRA, Cecília Maira Bouças. ROLIM, Marcos. Tortura no Brasil como herança cultural dos períodos autoritários. Revista CEJ. Brasilia, nº 14, ago.2001. COSTA JUNIOR, Ernani Salles. O tempo da constituição: lineamentos para uma teoria narrativa do direito à luz do pensamento de Paul Ricoeur. 2011. 109 f. Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito, Belo Horizonte.
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170
FARIAS, Maria Eliane Menezes de. Por uma maior eficácia no combate à tortura. Revista CEj. Brasília, n.14. p.73-77, ago, 2001. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia de Letras, 2002. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1997. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em http://www.onu.org.br/a-onu-em-acao/a-onu-e-os-direitos-humanos. Acesso em: 20 jun. 2012. OST, François. O tempo do direito. Tradução Élcio Fernandes; revisão técnica Carlos Aurélio Mota de Souza. Bauru: Edusc, 2005. RICCEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução Alain François. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (orgs). Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. SIRKIS, Alfredo. Os carbonários. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2008. SZNICK, Valdir. Tortura: histórico, evolução, crime. São Paulo: Leud, 1998.
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CONSTITUIÇÃO DA VERDADE:
EFEITOS DA MEMÓRIA NO "GRANDE ACORDO" DA TRANSIÇÃO.
THE TRUTH CONSTITUTION:
THE MEMORY EFFECTS DURING THE “BIG AGREEMENT” OF TRANSITION.
ARTHUR MAGNO E SILVA GUERRA
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG;
Doutorando em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas;
Professor de Direito Constitucional do Curso de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito Milton Campos – FDMC;
Resumo: O presente ensaio irá debater sobre um dos cruciais pontos de fundamentação teórica e histórica do Direito à Memória e à Verdade no Brasil: a incidência desses “traumas” e “complexos” no texto Constitucional que lhe restaura a Democracia, especialmente, depois das as lutas políticas ocorridas, entre os anos de 1964 e 1985, contra a Ditadura Militar; mas sem ignorar outros caminhos de acordos traçados, passando por uma transição pacífica de um Regime Político ao outro. Com um método de análise histórica bibliográfica e de notícias da época, serão enfrentadas as conexões entre os acontecimentos ocorridos e o aparecimento de alguns institutos, justificados, especialmente, pelo temor de retrocesso aos tempos de outrora, ensejando o aparecimento de institutos, v.g., como direitos individuais (contra tortura, liberdade de expressão, liberdade de imprensa), Imunidades parlamentares e um estatuto próprio aos militares.
PALAVRAS-CHAVE: Constituição; Memória Coletiva; Ditadura Militar; Estado Democrático Brasileiro.
Abstract: This paper will discuss one of the main axes of historical and theoretical fundamentation of the right to memory and truth in Brazil: the incidence of these "traumas" and "complexes" in the constitutional text which restores the Democracy, specially, after political clashes, against Military Dictatorship, occurred between the years 1964 and 1985; but without ignoring other paths form agreements traced, passing through a peaceful transition, from authoritarian past to democratic government. With a method of analyzing historical literature, doctrine and news of the that time, in it will be facing the connections between the historical events and the appearance of some institutes, justified, especially for fearing the old days, enabling the emergence of some institutes, as individual rights (against torture, freedom of speech, freedom of press), legislative protections and the military prerogatives.
KEYWORDS: Constitution; Collective Memory; Military Dictatorship; Brazilian‟s Rule of Law.
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1. INTRODUÇÃO: MEMÓRIA E HISTÓRIA CONSTITUCIONAL
A Constituição brasileira de 1988 é frequentemente apontada como um
instrumento de libertação democrática, resultante de movimentos de forte adesão popular pós-
ditadura militar. Assim, recebe diversos desígnios, como “Constituição Cidadã”, “do Futuro” e
“de vanguarda”. Ao analisar o texto, contudo, é possível perceber a incidência de influência
desse “período de trevas” da Democracia pátria, decorrente, especialmente, de um “grande
acordo”, formulado entre os que, à época, estavam à frente da transição de poder. Mas a
exposição desses institutos decorre, sobretudo, de uma incidência memorial que torna o texto,
ademais, num instrumento repositório de sintomas, aspirações, máculas e esperanças de um
povo, até o momento de sua promulgação, orpimido e ansioso por liberdades.
Para compreender esses efeitos no constitucionalismo brasileiro e suas
“inspirações”, faz-se necessária uma análise preparatória acerca da noção de “memória”, em
seus diversos aspectos e aparições. Preliminarmente, é possível dizer que diversos institutos
servem como mecanismos de defesa traumática, a fim de que atrocidades do passado não se
venham a repetir; mas, ao mesmo tempo, é possível notar a presença de “blindagens” e
proteções desarrazoadas que coincidem com interesses dos antigos gestores do poder
ditatorial.
Os institutos do Direito Constitucional brasileiro atual e a reflexão atual sobre
sua inclusão no texto da Constituição Federal de 1988 são pontos cruciais que se analisam no
presente estudo. Por isso mesmo, a essa altura, entende-se importante a conexão entre a
memória coletiva e a história constitucional brasileira.
1.1. Compreensão da memória e do esquecimento: direito, imposição ou conseqüência?
A concepção de memória, atualmente analisada, busca libertar-se da mera
noção de “imaginação”, de “transcendência”, com um sentido falacioso, fantástico, fictício ou
irreal. Paul Ricoeur é um dos que compreeendem a memória, como a capacidade de poder
alcançar o passado (“fazer-se remeter”), através de dados que estão “armazenados”, de certo
modo, na mente humana. As reflexões acerca da ars memoriae (arte da memória) são bastante
importantes, no que tange ao referencial de algum dado passado (RICOEUR, 2007).
Buscar conceber, no hoje, algo que é dado passado (inexistente no presente)
carece de uma análise filosófica, quando não, psicológica, do suejito que usa de sua memória,
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173
par recordar ou retomar algo. Nesse intento, calha a compreensão de Paul Ricoeur, que inicia
sua análise, a partir do pensamento da Filosofia Antiga1, passando, mais adiante, por Husserl,
até alcançar, pelas mãos, especialmente de Bergson, a “vertente contemporânea”. Para
Ricoeur: “... não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu,
ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (RICOEUR, 2007, p. 40).
A memória pode ser encarada não somente como uma ferramenta de guardar dados mnemônicos, mas, sobretudo, como uma capacidade de (re)significação das coisas e de si mesmo; trata-se de uma representação das coisas já apresentadas anteriormente para si, uma possível reconfiguração de tais dados guardados na memória que são despertados pela rememoração. (KUSSLER, 2009, p. 1929)
Para “relembrar”, é necessário exercer a ars memoriae (esforço) de buscar o
conhecimento anteriormente obtido e que está, agora, guardado na memória. Daí, porque
memorizar é, a um só tempo, uma forma de poupar esforço, já que o sujeito não terá que
reaprender algo; bem como, uma maneira de evitar que caia em esquecimento, pela falta de
memorização.
Com fulcro no autor, é que se pode dizer que, para alcance da memória não é
suficiente a busca de alguma imagem do passado. Essa, muitas das vezes, é deturpada ou
falseada. Melhor que se lha compreenda como a busca de algum dado “guardado”, cuja
representação, tão somente, é desvelada. “Memória não somente se liga à imaginação
enquanto fantasia, mas enquanto representação de coisas reais que, de fato estão aí.”
(KUSSLER, 2009, p. 1929)
Outro aspecto que merece destaque, no que tange à abordagem da memória, é o
fato de que ela pode ser entendida como a “defesa do esquecimento”2. Nesse sentido,
desenvolve-se para assegurar os dados na memória com os exercícios que visam garantir que
os fatos trágicos do passado (e não as “lembranças ruins”) não venham a ocorrer novamente.
Afinal de contas, “o lembrar-se é uma experiência de (re)significação, (re)conhecimento,
(re)criação das coisas e de si”. (KUSSLER, 2009, p. 1929).
1 Nela, por sinal, já é possível detectar debates, acerca da memória. 2 Ricoeur aborda, dentre seus estudos, a história sob uma perspectiva filosófica. Isso não se confunde, porém, com a “Filosofia da História”. Em Histoire et vérité, de 1955, ele busca definir a natureza do conceito do que seja a verdade em História, diferenciando a objetividade dessa ciência da objetividade nas Ciências Exatas. Posteriormente, o autor passa a centrar atenção em questões culturais e históricas, a partir de uma perspectiva fenomenológica e hermenêutica. É a partir daí que a memória e a memória cultural em La mémoire, l'histoire, l'oubli (op. cit. 2000) passam a ser a atenção primordial de Paul Ricoeur.
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A polêmica trazida por Paul Ricoeur centra-se, especialemente, no fato de
mencionar o perdão na História. Isso, porque discutir a imposição de limites para a memória
social não significa, necessariamente, vangloriar o esquecimento.
“Perdão” não é sinônimo de “Impunidade”. Para que se tenha idéia, na lição do
Paulo Renato Silva que, abordando procesos históricos traumáticos, aborda o Holocausto3, nos
seguintes termos:
Retornando ao exemplo do Holocausto, o debate cresce, pois responsáveis pelo genocídio foram julgados e punidos e a maior parte dos que conseguiram fugir já faleceu. Assim, o amplo espaço destinado ao Holocausto, por exemplo, nos currículos escolares alemães, não representaria uma descrença na capacidade de discernimento dos mais jovens, como se naturalmente fossem propensos a um discurso como o nazista? (SILVA., 2010, p. 342)
A memória em eventos dessa natureza, acaba servindo como benchmark, para
as condutas futuras não incorrerem nos mesmos erros e desvios do passado. Paulo Renato
Silva revela o diálogo entre Martin Walser, esquerdista, e Jacy Alves de Seixas: lembrar o
Holocausto representa a “instrumentalização da vergonha com fins contemporâneos”
(WALSER apud SEIXAS, 2000, p. 76). Completa Silva, dizendo que essa lembrança “foi
apropriada para objetivos alheios, particulares, não necessariamente relacionados ao ocorrido.”
(SILVA, 2010, pp. 342-343)
A partir daqui, importa destacar a “memória coletiva”. Se é possível discernir
entre uma idéia de “memória quente” (que é coletiva) e uma “fria” (a história), pode-se dizer
que a história é uma seleção de assuntos em que há um distanciamneto. No caso da memória
coletiva não há essa seleção, porque ela é experimentavel. Ela se traduz como a identidade de
um povo-nação.
Mencionar a “ditadura brasileira”, por exemplo, significa abordar a memória
coletiva; e não a história em si. Traduz-se como a identidade brasileira, dentro da qual o povo
– ou sua nação – é formado. Como visto acima, a identidade do alemão ainda é formatada na
Segunda Guerra Mundial. Por óbvio que o sujeito alemão se sente ofendido se for chamado de
“nazista”. Isso, ainda, é-lhe latente, donde se conclui que a memória coletiva é passional.
3 Cf. a propósito: SILVA, Paulo Renato. Processos históricos traumáticos: deve haver limites para lembrá-los? Disponível em <http://unilahistoria.blogspot.com.br/2011_04 _01_archive.html>. Acesso em 12 abr. 2011.
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Para que se tenha uma idéia, um pouco mais apurada ainda, de que o saber
selecionável, filtrado é histórico e distanciado, basta analisar, para os brasileiros, o epísódio da
“Guerra do Paraguai”. Esta não existe mais.
Daqui, surge a necessidade de perceber que “toda memória é coletiva”, embora
alguns contestem essa noção, como se cada indivíduo não fosse capaz de pensar
individualmente. Ora: em verdade, toda memória é temporizada, está dentro de determinado
tempo. A memória do sujeito é, sim, um processo interativo. Existe, ainda, uma memória
coletiva, derivada de uma relação. Toda memória é social. É que, aos poucos ela se vai
amoldando aos conceitos coletivos.
No momento em que se iniciou e transcorreu um grande conflito armado entre
dois países (Inglaterra e Alemanha), no séc. XX, aqueles que ali estavam não perceberam
tratar-se da “Segunda Guerra Mundial”. Só depois é que isso foi “desvelado”. Naquele
momento, por exemplo, Hitler não era um tido como um “monstro”... Até porque, não se
conheciam, ao certo, os campos de concentração, as câmaras de gás, as experiências científicas
com seres humanos, o Holocausto, como um todo.
A memória coletiva vai unificando entendimentos e contaminando a forma de
pensar. Se hoje, o auge das discussões sobre a consolidação da Democracia brasileira se dão,
especialmente, através da repulsa a um recente período de ditadura militar, vivida nas décadas
de 60 a 80; certamente, chegará o momento em que esse “Golpe Militar” será discutido no
Brasil, como, hoje, discute-se a “Guerra do Paraguai”. Esse espaço passado se vai
homogenizando, assim como acontece com a própria memória familiar.
Disso decorre a impossibilidade de se impor o esquecimento, de cima para
baixo, como algo compulsório e instituído pelo Estado ou por governantes temporais. O
esquecimento, muito menos, é um processo inevitável; é, muito mais, uma opção ou, até
mesmo, um direito.
Contrario sensu, entender o esquecimento não como um direito, mas como
dever, traduzir-se-ia na repetição incessante da experiência lembrada, aos indivíduos e grupos.
“A memória viraria uma „prisão‟. O nazismo, por exemplo, não se alimentou do ressentimento
que se propagou entre os alemães após a derrota na 1ª Guerra Mundial?” (SILVA, 2010, p.
343-344).
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[...] Trata-se um debate antigo, que se articula em torno de dois pontos principais. O ressentimento pode unir um grupo e ajudá-lo a se afirmar? Ou o ressentimento paralisa os indivíduos e os grupos? O ressentimento, quando exteriorizado, ajuda a superar ou alimenta ódios? Nietzsche já destacava a necessidade de equilíbrio entre a memória e o esquecimento dos ressentimentos. (SILVA, 2010, p. 343)
Uma parte da memória tem que ser esquecida... É um “direito a esquecer”. Se,
de um lado, o “esquecer” é um direito, “lembrar” é igualmente importante. Para o sujeito
viver, não lhe é possível lembrar tudo. Assim que, para construir uma sociedade, ao mesmo
tempo, seus sujeitos têm que esquecer e lembrar. Lembra-se de tudo que vem na mnesis,
sabido que os indivíduos possuem, também, a anamneses (construir uma memória que tem que
ser lembrada). Para que fatos sejam lembrados com maior frequência e acionados do interior
mental com maior facilidade, é que os “símbolos” e “mitos” são conclamados, para
“concretizar” eventos, em torno de determinada ideologia ou intenção política.
Para que se tenha uma idéia, cumpre destacar o processo de Independência do
Brasil. Ora... Sabe-se, com perfeição que, ao contrário do que doutrinam os livros
introdutórios de História, nas Escolas infantil e fundamental, a Independência do Brasil não se
deu, estritamente, no dia 07 de Setembro de 1822... Esta data, talvez, seja o resultado de uma
série de fatores que lha precederam; bem como não pode funcionar como o último liame entre
um status anterior e o que lhe sucedeu. O processo emancipatório pátrio e de instituição de um
Estado independente brasileiro decorreu de um acúmulo de lutas políticas, guerrilhas e
movimentos que pruriram em diversas regiões do território nacional (e, não, apenas, às
“margens do Ipiranga”): expulsão dos holandeses (séc. XVII) e a “Batalha dos Guararapes”,
na Insurreição Pernambucana; Guerra dos Mascates, Sabinada, Inconfidência Baiana; Revolta
de Vila Rica, a Conjuração Mineira (Inconfidência Mineira), a Revolução de 1817, dentre
tantos outros acontecimentos rebeldes foram contribuintes inevitáveis ao desemboco da
Independência brasileira.
Enfim, precisamos enxergar a independência brasileira, não como um resumido acordo político, mas como um momento de grande relevância, pois a luta por uma nação livre, ja estava na pauta de alguns grupos políticos e no discurso de outros intelectuais que viviam em nossas terras, assim, ao contrário do que se propaga, nossa independência não foi criada pela conveniência da família real portuguesa, mas por conjunturas sociais, políticas e econômicas anteriores ao heróico grito de independência proferido por D. Pedro. (BARBOSA, 2011)
Élcio Fernando (2010, s.p.), especialista em Marketing e Comunicação Social,
mostra como os “símbolos” revelam essa carência de mitos em torno das reflexões. Sobre a
simbologia em torno da narrativa do “07 de setembro”, “Dia da Independência” ou “Grito do
Ipiranga” o autor chama atenção:
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“O que marca o ser humano é justamente sua particularidade de possuir e organizar símbolos que se tornam linguagens articuladas, aptas a produzir qualquer tipo de narrativa” (ROCHA, p. 4. 1996). A essas narrativas são somados os mitos, ou seja, alegorias narradas que externam verdades mas escondem algo. Os mitos podem até mesmo representar o pensamento de uma sociedade, ainda conforme Rocha (1996). Consequentemente, se o mito é construído com representações fantasiosas ou não, do pensamento humano, na propaganda (propagare: propagare uma idéia ou ideal) também há, e muito. Na verdade o mito representa uma das bases do discurso da propaganda e tal, como sua definição, também foi representada em nosso país, com a utilização mais veemente de símbolos (cores, música e linguagem) após a Independência. Até mesmo na composição do Hino da Independência havia o mito do poder atribuído à D. Pedro I, em evidente articulação política, e representada na letra de forma alegórica.
1.2. A reprogramação do direito: análise da compreensão de François Ost
O Direito não é ciência estática, infalível, diante das novas conjunturas e
anseios sociais. Ciência social aplicada que é, não tem o condão de regular o comportamento
humano; mas, pode, sim, ser reprogramado, o tempo todo, para o futuro. Para compreender a
idéia de reprogramação, interessante a abordagem do estudo de François Ost (2001), em “O
Tempo do Direito”. Na obra, o filósofo belga analisa a relação existente entre “Tempo” e
“Direito”, introdutoriamente, por meio de recorrência à Mitologia Grega, à Filosofia e às
Ciências Sociais e Políticas. Mais adiante, apresenta a sedimentação que o tempo confere à lei.
Esta, por seu turno, delineia caminhos norteadores do próprio futuro, ampliando a discussão
histórico-social a respeito das convenções temporais e legais que fundamentam e dão as
características sutentáculas de cada civilização.
O autor introduz sua obra, narrando a história de Krónos. A recorrência existe
para demonstrar o aspecto negativo do tempo, já que, em síntese, quando Krónos se coloca na
posição de “Deus-Tempo”, separando o Céu (Urano, seu pai) da Terra (Gaia, sua mãe),
bloqueia passado do futuro. A simbologia se traduz no corte do elo com o passado, através da
castração de seu pai; seguido do bloqueio do futuro, na medida em que engolia todos os seus
filhos, com exceção de um que se lhe escapou desse destino: Zeuz (OST, 1999).
Tanto Urano (pai), quanto Krónos (filho dele) chegam ao poder de governar,
utilizando-se da violência e, especialmente, pela negação do tempo. Sempre que buscaram
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impedir que seus filhos se desenvolvessem4, acabaram sendo punidos por eles mesmos, de
forma bastante semelhante.
É a conseqüência na própria história da humanidade: os responsáveis por
comportamentos violentos e arbitrários são vítimas de idêntica violência: “o tempo dos tiranos
esgota-se num presente estéril, sem memória nem projeto”. (COUTO, 2007).
Não se pode perder de vista, dessa maneira, que, do mesmo modo que na
Mitologia, Zeus destitui a tirania de seu pai (Krónos, o Deus do Tempo) e, com isso, rompe a
cadeia de violência, é possível, nas sociedades, que os indivíduos invertam a não aceitação do
tempo. Ost (1999) exemplifica com a “Comissão da Verdade e Reconciliação”, da África do
Sul, que “promove a anistia garantindo a possibilidade e a esperança em desenvolver um
futuro de paz, mas sem olvidar o passado”. Exemplifica, mais, manifestações de não-aceitação
do poder do tempo na atualidade:
a) o passado que não passa: em países como a Ruanda onde a ocorrência de
genocídio impune compromete qualquer esperança de reconciliação;
b) o presente eternizado e a ausência do futuro: os países satélites da União
Soviética.
c) o futuro abafado: pela proliferação de medidas jurídicas incapazes de
disciplinar o futuro de forma segura. A agitação civil dos jovens excluídos na França (que
buscam o direito a ter direito).
A Mitologia traz mais contribuições à reflexão de Ost... Lembra que Zeus e
Themis têm três filhas (as “Horai”, ou seja, horas), denominadas, na vertente política
Eunomia, Diké e Eirenie, respectivamente, a disciplina, a justiça e a paz. A metáfora
mitológica tem uma razão de ser. Especialmente, se se buscar compreender a simbologia das
Horais:
4 Urano devolvia os filhos que nasciam ao interior do ventre materno de Gaia. Esta, incitou o filho mais novo, Krónos, a castrar o pai. Sendo bem sucedido, esse filho toma o lugar do pai. Por sua vez, Krónos, quando assume o poder, escuta em uma profecia da “Idade Dourada” que um de seus filhos lhe tomaria o poder. Para tanto, passa a se alimentar de todos eles quando nasciam. Sua esposa, Reia, porém, cansada disso, dá-lhe de comer, no lugar de um de seus filhos, uma pedra enrolada em faixas, fazendo-lhe crer que eliminara mais um de sua prole. Contudo, esse filho cresce, desenvolve-se e lidera uma revolta que deu fim ao reinado de seu pai. Esse filho era exatamete Zeus, considerado, na Mitologia Grega, o “Senhor dos Céus”.
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As Horais personificavam as estações e, também, simbolizavam as virtudes cívicas. Elas expressam o início de um novo tempo: dialético, aberto − o equilíbrio das estações, a pluralidade das estações ou do tempo, a alternância dos períodos, a harmonia da natureza, simbolizando uma vida social portadora de sentido − rompendo radicalmente com o tempo monolítico e violento de Cronos. As Horas eram originalmente deusas das estações que asseguravam o curso harmonioso de tudo. (COUTO, 2007)
Daqui, a percepção da relação entre o tempo e a justiça ou, até, entre a
„temperança‟ (sabedoria do tempo) e „justiça’ (a sabedoria do direito). Logo, a obra
desenvolve a contribuição dessa relação, para o bom governo.
1.2.1. Idéias centrais do autor
A contribuição especial, de Ost (1999) para o presente estudo é a configuração
de três idéias primordiais que ora se passam a analisar. São essenciais, para a compreensão
final, acerca de como a Constituição brasileira de 1988 não se descola dos fatos antecedentes,
dos dogmas político-jurídico vigentes no entorno de seu surgir, mas, essencialmente, de outros
elementos, muita vez, omitidos na história perfunctória. Assim, Ost, em “O tempo do direito”,
explica:
a) O tempo é uma “instituição social”; não um fenômeno físico ou uma
experiência psíquica. Isso, se concebido o tempo como fenômeno físico, no sentido da singela
sucessão do dia e da noite, o curso das estrelas e o envelhecimento dos seres vivos.
O tempo físico tem a seu favor sua evidência irrecusável: a do movimento dos astros no céu a s dos ritmos biológicos em nossos corpos, sugerindo de forma irresistível a imagem de um tempo exterior e homogêneo, espaço de vasto continente formal enquadrando qualquer espécie de acontecimento – como um dado englobante no interior do qual seríamos mergulahdos e do qual nos caberia somente recortar o desenvolvimento em períodos fixos. (OST, 2001, p. 22)
Já o tempo como uma experiência psíquica (experiência subjetiva de uma
vivência individual) faz entender que “o curso do tempo depende da experiência íntima e da
consciência individual” e é por isso que “um minuto do relógio, pode ser um tempo
interminável ou apenas um instante fugaz” (COUTO, 2007).
Ao entender o tempo como instituição social (tempo “sócio-histórico”), o autor
o compreende como “produto de construção social denominada „temporização‟. Logo, o
tempo é “uma questão de poder”, uma “exigência ética” e um “objeto jurídico”. O tempo
“sócio-histórico”, para OST (2001, p. 23):
É antes, uma operação sempre em curso de elaboração – daí a utilização do verbo “temporalizar” para dar conta dele. Sem dúvida, tendemos a objetivar e exeriorizar a medida
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que assim construímos, (daí o sentimento de que a hora não é construída, mas dada), mas isso não autoriza, em consequência que se sustente, como fazia Kant, que a síntese desse modo operada seja inata ou a priori: muito antes disso ela é o fruto de um aprendizado histórico muito longo e de elaborações diferenciadas de uma sociedade para outra, cada sociedade desenvolve seu “tempo próprio” [...]
“O tempo não é exterior às situações, ele participa da sua própria natureza,
assim, neste contexto podemos, por exemplo, esperar, tomar, perder, passar, encontrar, matar
ou ganhar tempo” (COUTO, 2007). Assim sendo, a segunda idéia é de que o Direito contribui
para a instituição do social: além de leis e sanções é um discurso que exprime o sentido e o
valor da vida em sociedade.
b) A idéia de que o Direito contribui para a instituição do social: além de
leis e sanções é um discurso que exprime o sentido e o valor da vida social.
François Ost (2001) entende que Direito vem da “tradição”. Mas os indivíduos
têm grande habilidade de “mudar de tradição”. Assim, é que se dá fundamento à idéia de que é
certo que, se constitucionalmente válidos os Princípios “da legalidade” e “da anterioridade da
lei penal”; a “Lei de Anistia”, igualmente, encontra fundamento no ordenamento supremo.
Contudo, hodiernamente, seria possível “mudar a tradição”, para uma outra,
voltada à “tradição dos direitos humanos” e, assim, abandonar a tradição anterior.
c) Existe uma correlação entre temporalização social do tempo e
instituição jurídica da sociedade. Isso, porque o direito acaba por interferir na forma de
criação do tempo (“temporalização”) e, por sua vez, o tempo determina o elemento fundante
(força instituinte) do direito. Para OST (2001), “o direito temporaliza ao passo que o tempo
institui”.
COUTO (2007) acresce que do mesmo jeito que a “temporalização” foi
instituída pelo direito, surge a “destemporalização”, ou seja, a saída do tempo comum
instituinte.
1.2.2 Anistia, Memória, Perdão e Esquecimento
Quando o Direito institui, ele atua, a um só tempo, como rompimento e ligação
com o tempo. Uma vez que as forças instituintes (o tempo) moldar-se-ão às formas instituídas
(o direito) e estas, por seu turno, adequar-se-ão, em cadeia, com o desenvolvimento social (ao
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passar do tempo), “pedirão para ser substituídas por novos modelos instituintes” (COUTO,
2007). É dessa conjugação que se pode extrair e alcançar: a) a “temperança” que é a sabedoria
do tempo; b) a justa medida da continuidade; e a justa medida, também, da mudança. Tudo
isso vai possibilitar o equilíbrio das relações sociais.
1.3. As quatro categorias de tempo jurídico de François Ost
Assim, ainda com sustento na tese de François Ost (2001), observam-se quatro
categorias de tempo jurídico instituinte (normativas e temporais), duas delas primeiras,
remetenes ao passado; as outras duas pro futuro: memória, perdão, promessa e
requestionamento.
O primeiro tempo, ligado ao passado, é a Memória – tem missão precípua de
ligar o passado, com asseguramento da identidade histórica: registro, fundação e a
transmissão.
A memória lembra que existe “o dado e o instituído”. Por isso mesmo, cabe ao
direito o papel de instituir uma memória da coletividade, entendendo-se esta memória coletiva
como verdadeiro elemento essencial à própria coletividade. “Instituir o passado”, com a
respectiva certificação dos fatos vivenciados, garantindo “a origem dos títulos, das regras, das
pessoas e das coisas” é importante para que se evite o risco da anomia. Dessa maneira, a
sociedade encara seu passado composto, escrito a partir do presente (OST, 2001, p. 49-50):
Esta missão de guardião da memória social foi, todos os tempos, confiada aos juristas. Não tanto, ou não somente, a título de arquivistas ou notários, conservadores dos atos passados; não tanto, ou não somente, como cérebros ciumentos das portas da legalidade; não tanto, ou nçao somente, como servidores apressados dos príncipes: o direito, bem sabemos, nunca causou repugnância, nem à reescrita dos textos, nem ao deslocamento das fronteiras do proibido, nem mesmo à fabricação de novas legitimidades. Muito mais fundamentalmente os juristas assumem seu papel de guardiães da memória, lembrando que, aravés mesmo de todas operações de deslocamento, opera alguma coisa como uma lei indisponível que foi utilizada num dado momento do passado.
Fica claro que a instituição de algo “novo” pelo Direito, não terá um aspecto,
necessariamente, “inédito” e que a fundamentação da lei advém de algo já vivenciado,
desconhecendo-se algo desvinculado do que já instituído. Contudo, se hoje se percebe uma
“decadência” da memória, isso se deve ao fato do excesso de informações, aliado ao declínio
da memória coletiva em detrimento da individual.
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O segundo aspecto temporal relacionado ao passado é o Perdão. Este desliga o
passado inovando o sentido das cosias. (OST, 2001, p. 137-147). As perguntas a serem feitas,
nessa superação, são “como desligar o passado sem aboli-lo? Como ultrapassar a vingança
sem afundar na injustiça e na desonra?”5
A idéia de realização da justiça, dessa maneira, estaria relacionada,
inicialmente, às de “vingança” e da própria “Lei de Talião”. Mas assim não pode permanecer
(rápida e demasiadamente imediata), vez que traduziria, apenas, uma pretensão mínima do que
seja justiça. Não seria capaz de “elevar-se acima do cara a cara das reivindicações opostas”, no
dizer do OST (2001, p. 139-140):
Se cada um pode, com todo direito, invocar a justiça de seu lado sem elevar-se á terceira instância, quem poderia separá-los, onde está a diferença entre esta ustiça e a violência nua?
[...] Uma saída completamente diferente para o conflito, de uma novidade radical: a justiça, enfim, substitui a vingança, a deliberação ultrapassa a violência, enquanto o tempo da memória é substituído pelo perdão.
A idéia de perdão está ligada à inversa de memória e o inverso da tradição. No
perdão se opera “outra forma de interpretação do passado”. Contudo, no que tange à anistia,
esta se liga ao esquecimento, uma espécie de “mal necessário”. Entendida por OST (2001, p.
171-172), como “a mais importante e a mais controvertida”, dentre as figuras do perdão social,
está o mecanismo das leis de anistia. Sobre ela, aponta:
Considerada como uma medida de exceção que inspira o silêncio à lei penal, a anistia é uma prpatica frequente de múltiplas faces. Encontramos de fato, formas de anistia menores (anistia das penas) e formas maiores (anistia dos fatos); ora ela intervém nas circunstâncias políticas específicas como uma medida puramente circunstancial, ora, ao contrário, será o caso de anistias periódicas e tradicionais pronunciadas por ocasião de aniversários, festas nacionais ou eleições presidenciais. (OST, 2001, p. 172)
Não... Não se trata, legitimamente, de um “esquecimento forçado”, de “perdão
deliberado”, “conspiração do silêncio” ou “gesto de reconciliação nacional”... A anistia é não
deixar que o direito exista. E o risco está no fato de aliá-la à noção pura de singelo
esquecimento.
5 Na busca das resposatas a esses questionamentos, OST (2001) remete à história das Erínias, “deusas de longa memória” (p. 138). Em seguida, o autor traz crítica à tradição (“fazer tábula rasa do passado”?) e defende que é necessária uma discussão entre outras tradições num apropriado espaço público. (p. 146) A questão já não é “liquidar a tradição, mas submetê-la a um processo permanente, crítico e reflexivo, de revisão que, ao mesmo tempo, lhe garanta uma consciência mais exata da sua singularidade e lhe organize uma abertura dialógica com as outras tradições num espaço público de discussão – científico, artístico ou político – que continua em grande parte a se construir”. (p. 147).
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Os exemplos históricos da Truth Commission, no Chile (1990), em El Salvador
(1991), bem como da „Comissão da Verdade e Reconciliação‟, na África do Sul, ao fim do
Apartheid, demonstram como se procurou estabelecer os fatos e atos ocorridos em regimes
pretéritos, para, em seguida, não visionar a mera punição dos culpados e (ir)responsáveis; mas,
para, puramente, trazer a verdade de seus direitos: “Assim, ninguém ignora o que aconteceu e
quem aí tomou parte; o passado não é manipulado e o silêncio não é imposto à história.
Acontece apenas que, por razões superiores, o perdão é concedido aos responsáveis, pelo
menos em certas condições” (OST, 2001, p. 176).
O perdão está, por conseguinte, depois do direito, além dele. Ao perdoar,
também há um processo de justiça cumprido, porque houve a exata caracterização da vítima e
do culpado. O perdão se destaca da ordem jurídica, não sendo uma medida coletiva, até
porque, ele não possui mecanismos para ser imposto. Perdão deve ser entendido como uma
aposta no futuro. O importante para que haja justiça é a possibilidade de se ter o
reconhecimento de uma vítima e do culpado. Depois – aí já é outra questão – ele deverá pagar
a pena tipificada ou ser perdoado.
Para OST (2001), a sanção é um tipo de perdão. Há uma dose dele dentro dela.
A punição separa a pessoa humana do seu erro e a faz sentir a dor, no que é possível punir, a
fim de redignificar a pessoa humana. No momento em que o sujeito está no Tribunal, na
humilhante posição de „réu‟, de alta pressão, diante da esposa, mãe, filhos é o centro de todas
as atenções. Ele está sendo exumado, tendo sua dignidade sendo retomada, em certa medida.
Mas é somente quando vem a sanção que ele está sendo perdoado de fato.
Agora ele sabe que tem algo a pagar e readquirirá sua integridade e
contextualização social (cidadania). A sociedade mantém o estigma; mas ele é um sujeito que
não mais precisa viver na fuga. Existe, de fato, uma “remissão” e – por que não dizer? – uma
redenção? Assim, é importante que a vítima seja reconhecida como vítima e, portanto,
reconheça-se a culpa. “Anistiar” é confundir vítima e culpado. Seria um “mal” muito grande,
porque os valores se acabam perdendo. O que é certo e o que é errado se confunde.
O direito não é capaz de perdoar (ele é público). Ele não é a própria vítima e
esta é a única pessoa que pode perdoar, de fato. Se um juiz perdoa, sua conduta se traduz em
traição à vítima. Se ele age como jurista, ele trai o direito. Assim, que “o perdão é o futuro da
memória”.
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O primeiro aspecto temporal remetente a futuro é a Promessa. Esta liga o
futuro pelos compromissos normativos.
OST (2001, p. 191) caracteriza Prometeu como rebelde e instituidor a um só
tempo, quando recorre, novamente, a episódios da Mitologia Grega, para raciocinar. Descreve
como o fogo celeste é furtado (o rebelde) e entregue aos homens (o instituidor), com uma
intenção louvável: colocar a história e movimento, mediante lições passadas, sobre como
manusear o fogo e como ficar ereto. Disso, decorre a bifurcação do tempo prometêico: o
tempo da rebelião e o da instituição.
A promessa tem um significado voltado à noção de uma figura dialética de
mediação, capaz de possibilitar ao sujeito subsumir suas intenções voluntárias à luz de
princípios éticos prévios. Só assim, é que se mobilizam e regeneram estruturas preexistentes
de cooperação. “Cada promessa [...] dá vida a uma confiança preexistente sem a qual, no
entanto, ela nada seria”. (OST, 2001, p. 204).
Por seu turno, a concepção de Estado de Direito pressupõe o “respeito desta
confiança mútua”, pois que, no Rule of Law prevalece um “contrato tácito”, em que se acorda
que o respeito à autoridade dos governantes só se legitima, na medida em que esses respeitem
as regras por eles mesmos adotadas. (OST, 2001, p. 205).
Por fim, o 4° Tempo (segundo que remete ao futuro) é o do Questionamento.
Este desliga o futuro com um objetivo específico de assegurar as revisões necessárias para
que, na hora da mudança, as promessas sobrevivam. Neste ponto é possível perceber uma das
linhas mestras da obra como um todo: a noção de que “a temporalidade que se absolutiza é
virtualmente desinstituinte; isto também é válido para o tempo do questionamento”: libertado
da dialética que o liga à memória e à promessa, em breve se torna inútil e se encerra num
instantâneo insignificante (OST, 2001, p. 307). Mas como possibilitar questionamento, sem
que isso signifique, necessariamente, ruptura com promessas já feitas ou a credibilidade no
momento de se fazer promessas?
A resposta reside na epistemologia da incerteza que possibilita a extrapolação
da racionalidade do universo a partir de raras “ilhotas de certeza”. Em verdade, as leis
universais da natureza podem explicar o movimento dos pêndulos e predizer a trajetória das
bolas de canhão. Contudo, não são capazes de desentrelaçar sistemas abertos que se conduzem
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de forma complexa e dão provas de autoorganização. Só excepcionalmente o real se revela
racional (OST, 2001, p. 310).
A ordem é, pois, excepcional: o caos é a regra e quando surgem localmente ilhotas de informação e de ordem no fundo de desordem e de entropia, é o acaso, mais de causalidade, é que o princípio de emergência destas formas de organização superior.
Dessa maneira, é que se pode dizer que a produção de conhecimento submete-
se a um movimento permanente, exigido pelo questionamento, assim como acontece com o
tempo do mundo que se torna incerto.
Pelo que se percebe, o OST, ao concluir sua obra traz três palavras que balizam
seu caminho: compasso, presente e responsabilidade, donde confessa que o livro se dedica a
tomar a „medida‟ do Direito (2001, p. 399). De fato, o que se percebe é que o direito se
mostrou „medido‟ em quatro sentidos temporais, que vão desde a norma até o tempo.
Mas, como “ser responsável pelo tempo”? Hoje a responsabilidade assume uma
forma muito explícita: o “desejo de um futuro durável”. Assim, uma vez que do passado são
herdadas instituições justas mas perfectíveis, resta à atual sociedade transmitir esses dados
para que sejam reconstruídos sem cessar: é essa a responsabilidade.
2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A “HERANÇA SEM TESTAMENTO”
2.1. Antecedentes históricos desvelados
Abril de 1964: a Democracia brasileira se vê assolada por um “Golpe Civil-
Militar” que encerrou a „República Populista‟. Uma nova ordem político-institucional foi
instaurada, a partir da atuação de um Governo Militar que, em sua convicção instaurava a
“contra-Revolução em defesa da Nação brasileira. Tanto assim, que as palavras de
„encorajamento‟ daquele que, futuramente, seria Ministro do Exército do governo do General
Figueiredo (1979-1985), como que em um rescaldo de consolo e de afago contra retaliações:
“Estaremos sempre solidários com aqueles que, na hora da agressão e da adversidade,
cumpriram o duro dever de se opor a agitadores e terroristas de armas na mão, para que a
Nação não fosse levada à anarquia” (USTRA, 2006, p. 07).
O autointitulado „Comando Supremo da Revolução‟, formado pelo General
Costa e Silva, pelo vice-almirante Augusto Hademaker e pelo brigadeiro Francisco de Mello
editou, aos nove dias do mês de abril o Ato Institucional de n° 01 (num total de 17), declarou-
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se novo Governo brasileiro, embora, em Brasília existisse outro constituído, sob comando do
Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili (VILLA, 2011, p. 93).
Golpe? No entendimento daqueles que participaram do movimento, a seleção
histórica pretensiosa é nítida. A exemplo, pode-se colacionar a posição do General Carlos
Alberto Brilhante Ustra: “É desconhecimento, memória fraca ou conveniência classificar de
golpe o que na realidade foi apenas a interrupção de um processo revolucionário de tomada de
poder pelos comunistas, iniciado antes de 1960 e intensificado no governo Jango” (USTRA,
2006, p. 119).
Sua posição não é isolada... Tanto que busca sustentar-se em historiadores e
noticiários, numa busca insustentável pela legitimação do ilegitimável. Rebela-se contra
Professores de História e Sociólogos, usando-lhes textos, para tentar dar força à tomada de
poder no Brasil. Segundo entende aquele militar, não haveria qualquer sustentação na história
ou nos documentos da esquerda capazes de comprovar algum “golpe da direita” ou um “golpe
militar”:
Tais conceitos fazem parte da mesma orquestração em que se inclui a falácia de que a esquerda revolucionária pós 1964 lutava contra a “ditadura”. Não tenho idéia de quem urdiu essas mentiras, mas com muita convicção afirmo que tudo faz parte de um processo para desmoralizar o movimento de 31 de março de 1964 e de mitificar os “heróis” das esquerdas. (USTRA, 2006, p. 122)
A história, entretanto, não permite fraudes quanto a seus elementos e seus fatos.
Omissões e desvirtuamentos conceituais não são suficientes ao esquecimento de um período
iniciado pela deposição de um Presidente da República, eleito como „vice‟, mas legitimado
constitucionalmente a suceder seu antecessor que renunciara. “Golpe de Estado”, com início
marcado, em 31 de março de 1964, sem nenhum grande foco de resistência pela população.
São mais de vinte anos de agonia do poder civil. Um ciclo politicamente marcado pelo autoritarismo militar, redução ou supressão de direitos constitucionais, repressão policial, censura à imprensa, controle casuístico do processo político, esvaziamento do Poder Legislativo, limitação do Judiciário e domínio arbitrário do Poder Executivo. (COUTO, 2003, p. 41)
Diversas são as justificativas históricas apontadas, para desencadeamento da
atuação dos golpistas: o tenentismo dos anos vinte, intervenções em 1945 (deposição de
Vargas), 1954 (suicídio de Getúlio Vargas), crise que antecede o Governo Kubitschek (1955) e
1961, com a renúncia de Jânio Quadros e veto dos ministros militares à posse de seu vice
(João Goulart). Há quem busque na „Guerra Fria‟, em tentativa do Imperialismo Norte-
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americano na América Latina, ou, até, a “crise econômica combinada com excessos populistas
e retóricos do governo João Goulart, visto pelos adversários como instrumento de
“comunização” do país, corrupção, ameaça À democracia e à disciplina e hierarquia das
Forças Armadas”. (COUTO, 2003, p. 42-43)
VILLA (2011, p. 93) lembra que, naquele momento histórico, o termo
“revolução” tinha uma enorme positividade. Tanto que os militares se intitularam
“revolucionários” e “se proclamaram no exercício do „poder constituinte‟”. Com dezenas de
parlamentares cassados, a ordem do art. 2° do AI-1 efetivou-se, realizando-se as Eleições
Presidenciais Indiretas, de 11 de abril, com um Congresso esfacelado, elegendo-se o Marechal
Castelo Branco.6 Daí por diante, os Atos Institucionais, cada vez mais, foram mutilando a
Constituição de 1946, com determinações que já fazem entender diversos dos atuais
dispositivos constitucionais:
Foram suspensas por seis meses as garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade e, por meio do artigo 11, buscaram dar legitimidade aos processos de suspensão dos direitos políticos pelo prazo de dez anos, casando mandatos legislativos federais, estaduais e municipais, “no interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na Constituição”. De imediato casaram 41 deputados. Seis meses depois, os casados chegaram a 4.454, dos quais 2.757 eram militares. (VILLA, 2011, p. 94)
A nova forma de tramitação dos projetos de lei, de iniciativa do Executivo,
agora, colocando prazo de noventa dias, para que o Congresso, através de suas duas Casas, os
pudessem aprovar (Do contrário, haveria uma espécie de „aprovação tácita‟), juntamente, com
a idéia geral de „paralisia‟ do Legislativo, foram ao encontro dos ideais de quem defendia o
„Executivo forte‟.
Extinguiu-se a eleição presidencial direta, sendo que a eleição do Presidente e
do Vice-Presidente, da República se daria pela maioria absoluta dos membros do Congresso
Nacional, em sessão pública e votação nominal. Se não fosse obtido o quorum na primeira
votação, repetir-se-iam os escrutínios até que ele fosse atingido, eliminando-se,
sucessivamente, do rol dos candidatos, o que obtivesse menor número de votos. Quando,
finalmente, limitados a dois os candidatos, a eleição se daria mesmo por maioria simples.7
Agora, em definitivo, foram suspensas as garantias constitucionais ou legais de
vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por tempo
6 O eleito recebeu 361 votos, dos 438 presentes. 7 Art. 9° do AI-2
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certo. Não bastasse, os titulares daquelas garantias poderiam ser “demitidos, removidos ou
dispensados, ou, ainda, com os vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço,
postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados”, desde
que, para tanto, demonstrassem incompatibilidade com os objetivos da Revolução.8
A liberação para o Presidente da República suspender Direitos Políticos de
quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais,
estaduais e municipais (sem direito à ocupação por suplentes), veio, fundada no interesse de
preservar e consolidar a Revolução. Para tanto, poderia fazê-lo, “sem as limitações previstas
na Constituição”.
Concomitante à suspensão de direitos políticos, o cidadão, ainda, sofreria, uma
série de sanções9:
I - a cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II - a suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III - a proibição de atividade ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV - a aplicação, quando necessária à preservação da ordem política e social, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado.”
Cerceando a pluralidade de ideologias no Estado, o art. 18 do AI-2 veio para
extinguir os 13 Partidos Políticos da época, que tiveram cancelados os respectivos registros.
Interessante que pelo Ato Complementar n° 04/65, para que um partido fosse criado, a partir
de então, deveria ter, no mínimo, 120 Deputados e 20 Senadores, num empenho óbvio de
conduzir o país ao Bipartidarismo, num curto prazo de 45 dias para conseguir essa filiação dos
adeptos.
O partido do governo – a Aliança Renovadora Nacional (Arena) – rapidamente conseguiu um número muito superior ao mínimo exigido. Já o partido oposicionista – o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) – patinava. Teve de receber um discreto apoio do próprio governo, que pediu que alguns parlamentares desistissem de fazer parte do partido oficial e se filiassem ao MDB. Castelo Branco descumpriu o uramento de posse; aroveitou uma ocasição favorável e estendeu seu mandato por cerca de 14 meses: de 30 de janeiro de 1966 para 15 de março de 1967. (VILLA, 2011, p. 95)
Com a eleição indireta de Costa e Silva, este, por meio do AI-4 convocou o
Congresso Nacional para, entre 12 de dezembro de 1966 e 24 de janeiro de 1967, período de
8 Art. 14, do AI-2 9 Art. 16, do AI-2
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óbvio esvaziamento das Casas Legislativas, apreciar o “projeto de Constituição” enviado pelo
Executivo. VILLA (2011, p. 97) chama atenção:
Diferente das Constituições Republicanas anteriores, a de 1967 não determinou claramente a denominação do Brasil. Desapareceu a designação Estados Unidos do Brasil. Contudo não há outra definição clara. Só é definido, no artigo 1°, que o Brasil é uma república federativa. Pressupõe-se, portanto, que a denominação tenha-se resumido a “Brasil”.
Um ponto que chama atenção, na Constituição de 1967, além da eleição
indireta para Presidente e da reserva de uma longa seção especial para “Forças Armadas” e
outra para “Segurança Nacional”, é a ampliação do número de membros do Supremo Tribunal
Federal.
O que poderia parecer uma forma de dar agilidade aos processos, na verdade,
significava um mecanismo ardiloso de o governo manter confortável maioria entre seus
Ministros nomeados, sob a batuta do Regime.
Após a redemocratização de 1946, coube ao movimento militar e gol pista de 1964 procurar interferir na independência e na autonomia de nossa Suprema Corte. Não bastassem as aposentadorias compulsórias de diversos membros da magistratura de primeiro e segundo graus, o regime da ditadura militar, ao ampliar a composição do Supremo Tribunal para 16 membros, buscava, desse modo, garantir para si uma pretensa e confortável maioria. Mas a Justiça não se dobra a interesses políticos ocasionais. O Supremo Tribunal Federal permaneceu altivo em defesa da legalidade e dos direitos fundamentais do Estado de Direito e das liberdades democráticas. Apesar das mudanças no sistema constitucional, operadas em 1965 e 1967, tantos foram os reveses sofridos pelo regime autoritário nesse período que o Poder Executivo, em janeiro de 1969, brandindo o instrumento autoritário do Ato Institucional nº 5, voltou a reduzir a composição do Supremo para 11 membros e ousou aposentar compulsoriamente três dos mais destacados de seus Ministros, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Em solidariedade, repetiu-se o gesto do Barão de Monserrat, mediante os pedidos de aposentadoria, a pedido, de seu Presidente, Antonio Gonçalves de Oliveira e de outro Ministro, Antonio Carlos Lafayette de Andrada. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1992, p. 42)
Se for possível determinar o mais afrontoso dos Atos Institucionais, certamente,
destaca-se o AI-5, decretado aos 13 de dezembro de 1968, pelo governo Arthur Costa e Silva,
que vigorou até dezembro de 1978. Caracteriza-se, comumente, como o momento mais “duro”
do Regime Militar, tendo em vista os poderes dados aos governantes, a fim de punir os
inimigos políticos do regime.
O ano de 1968, conhecido como "o ano que não acabou", marcou-se nas
histórias do Brasil e do Mundo, como um momento de grande contestação da política e dos
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costumes.10 Foi a partir dele, também que se noticia uma ação mais expressiva da Igreja, em
favor dos Direitos Humanos, bem como da junção de lideranças políticas cassadas
anteriormente, com intuito de retornar à política Nacional, na luta contra a Ditadura.
A marginalização política que o golpe impusera a antigos rivais - Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek, João Goulart - tivera o efeito de associá-los, ainda em 1967, na Frente Ampla, cujas atividades foram suspensas pelo ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, em abril de 1968. Pouco depois, o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, reintroduziu o atestado de ideologia como requisito para a escolha dos dirigentes sindicais. Uma greve dos metalúrgicos em Osasco, em meados do ano, a primeira greve operária desde o início do regime militar, também sinalizava para a "linha dura" que medidas mais enérgicas deveriam ser tomadas para controlar as manifestações de descontentamento de qualquer ordem. Nas palavras do ministro do Exército, Aurélio de Lira Tavares, o governo precisava ser mais enérgico no combate a "idéias subversivas". O diagnóstico militar era o de que havia "um processo bem adiantado de guerra revolucionária" liderado pelos comunistas. (D‟ARAÚJO, 2012)
Segundo consta, o açoite final, ensejador da decretação do AI-5 teriam sido
dois discursos de Deputados do MDB: Márcio Moreira Alves e Hermano Alves.
O primeiro deles se pronunciou às vésperas da comemoração do “Dia da
Independência”, atiçando a população, para que não comparecesse aos desfiles do 07 de
setembro, bem como apelando às moças "ardentes de liberdade" que se recusassem a sair com
oficiais. O segundo parlamentar escreveu artigos para o Jornal Correio da Manhã tidos como
provocações ao governo instituído. Costa e Silva, Ministro do Exército, então, “declarou que
esses pronunciamentos eram „ofensas e provocações irresponsáveis e intoleráveis‟”, o que
ensejou pedido da cassação de mais esses parlamentares. (D‟ARAÚJO, 2012)
No dia 12 de dezembro daquele ano, enfim, no pedido de licença para o
processo de cassação, faltaram 75 votos (incluindo membros do Arena), para que se
conseguisse retirá-los da vida política. Uma derrota para o Governo Militar.
No dia seguinte foi baixado o AI-5, que autorizava o presidente da República,
em caráter excepcional e, portanto, sem apreciação judicial, a:
[...] decretar o recesso do Congresso Nacional; intervir nos estados e municípios; cassar mandatos parlamentares; suspender, por dez anos, os direitos políticos de qualquer cidadão; decretar o confisco de bens considerados ilícitos; e suspender a garantia do habeas-corpus. No preâmbulo do ato, dizia-se ser essa uma necessidade para atingir os objetivos da revolução,
10 O movimento estudantil celebrizou-se como protesto dos jovens contra a política tradicional, mas principalmente como demanda por novas liberdades. O radicalismo jovem pode ser bem expresso no lema "é proibido proibir". Esse movimento, no Brasil, associou-se a um combate mais organizado contra o regime: intensificaram-se os protestos mais radicais, especialmente o dos universitários, contra a ditadura. Por outro lado, a "linha dura" providenciava instrumentos mais sofisticados e planejava ações mais rigorosas contra a oposição. (D‟ARAÚJO, 2012)
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"com vistas a encontrar os meios indispensáveis para a obra de reconstrução econômica, financeira e moral do país". No mesmo dia foi decretado o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado - só em outubro de 1969 o Congresso seria reaberto, para referendar a escolha do general Emílio Garrastazu Médici para a Presidência da República.
Ao fim do mês de dezembro de 1968, 11 deputados federais foram cassados, entre eles Márcio Moreira Alves e Hermano Alves. A lista de cassações aumentou no mês de janeiro de 1969, atingindo não só parlamentares, mas até ministros do Supremo Tribunal Federal. O AI-5 não só se impunha como um instrumento de intolerância em um momento de intensa polarização ideológica, como referendava uma concepção de modelo econômico em que o crescimento seria feito com "sangue, suor e lágrimas. (D‟ARAÚJO, 2012)
Outras medidas do AI-5: impedia o direito dos presos políticos a recorrerem
ao habeas corpus; controle mais intenso sobre os órgãos de imprensa e entretenimento,
estabelecendo a censura prévia aos jornais, revistas, letras de música, peças de teatro e falas de
cinema. “Com o AI-5, a repressão se tornaria mais sangrenta e punitiva àqueles que
manifestassem oposição ao Regime Militar, suscitando nos anos mais violentos do período,
conhecido como „anos de chumbo‟”.11
Esse foi o ritmo que ditou a condução da vida política do país, até meados dos
anos 80. É que com a realização de eleições para Governadores dos Estados, em 1982,
concluindo um roteiro iniciado pelo AI-5, especialmente, com anistia dos perseguidos pelo
Regime Militar em 1979, os anseios da população começam a se acirrar, no sentido de uma
abertura democrática. (VILLA, 2011, p. 111): “A oposição venceu em estados-chave. Mesmo
assim, o Partido Democrático Social (PDS) ainda mantinha uma pequena maioria no Colégio
Eleitoral que elegeria indiretamente o presidente da República em janeiro de 1985”.
Antes disso, porém, importa destacar o papel desempenhado pela „Emenda
Dante de Oliveira‟, apresentada por Deputado mato-grossense (PMDB) de mesmo nome que
visava alterar o texto constitucional, para restabelecer as eleições presidenciais diretas. Aqui,
cabe apontar testemunho daquele momento de frustração da Democracia brasileira, vivenciado
por ROSSI (1984):
A emenda Dante de Oliveira, que prevê eleições diretas já para a Presidência da República, foi rejeitada esta madrugada pela Câmara dos Deputados, embora tivesse recebido maioria de votos a favor (298 a 65), insuficiente, entretanto, para se atingir o quórum de dois terços exigido para alterações da Constituição. Faltaram 22 votos.
A emenda recebeu substancial apoio da bancada do PDS (54 votos), o que demonstra o quanto a tese das diretas-já penetrou no partido oficial, como reflexo da mobilização popular. Com esse resultado, fica evidentemente mais fácil prosseguir, daqui para a frente, na campanha pelas diretas, na qual a oposição promete continuar engajada. Prova disso foi a reafirmação pública,
11 http://www.historiabrasileira.com/ditadura-militar/atos-institucionais/
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ontem, da posição assumida na véspera pelos governadores do PMDB, transmitida à imprensa por Franco Montoro: "Esta luta não pode cessar senão com a conquista das eleições diretas".
A idéia dos oposicionistas é tentar encaixar na própria emenda do governo - que joga em diretas para 1988 - a tese das diretas-já, por meio de uma subemenda. O que ainda não está definido, entre os oposicionistas, é como dar prosseguimento à campanha no intervalo entre a votação da Dante de Oliveira e a apreciação da emenda governamental.12
Mas isso não foi um golpe mortal à esperança dos brasileiros... Sociólogos,
como Elimar Nascimento (1997, p. 50), percebem que as eleições diretas estaduais
significaram uma diacronia insustentável aos opositores da abertura democrática. Isso, porque
se havia, por de lado, “um governo central nascido de eleições indiretas e de um processo já
contestado, cuja legitimidade, débil, esfacela-se com a explosão da recessão econômica em
1981”; por outro, surgiram “diferentes governos estaduais da oposição, legitimamente eleitos,
cujas bandeiras de luta têm em comum a reinstalação da democracia no país”. Nascimento
(1997, p. 51) complementa a lição, ao perceber as conseqüências políticas:
Agora, soma-se à negatividade da contestação e rejeição do antigo regime, que se manifestara desde 1974, a positividade de uma alternativa real de poder, articulando políticos de tradições e partidos políticos diferentes (Leonel Brizola do PDT, Franco Montoro do PMDB e Tancredo Neves do então PP).
Calha, ademais, lembrar que foram essas mesmas forças populares que
conseguiram lançar e apoiar a candidatura de Tancredo Neves (à época Governador de Minas
Gerais) para o cargo da Presidência da República. Desde sua campanha, o candidato
demonstrava anseios de mudança pela instalação de uma “Nova República”.
A eleição de Tancredo ocorrera aos 15 de janeiro de 1985, significando, para
muitos, “o início de um novo período na história das instituições políticas brasileiras, e que ele
próprio denominara de a Nova República” (SILVA, 2003, p. 88).
12 O colunista ainda retratou o sentimento daquele instante (ROSSI, 1984): A rejeição da emenda Dante de Oliveira ocorreu em clima de acentuada vergonha, de parte dos pedessistas que votaram não ou ausentaram do plenário (113).Vergonha refletida no fato de que a maioria dos que votaram contra preferiu fazê-lo de suas próprias bancadas, ao invés de se dirigir ao microfone de aparte, ao qual compareciam todos os que diziam sim. Houve ainda três abstenções. A discussão e votação da emenda se arrastou das 9h07 da manhã de ontem até duas horas da madrugada de hoje, seguindo estratégia combinada entre as lideranças do PDS e dos partidos oposicionistas. A idéia, de elementar bom senso, era a de dar a conhecer o resultado apenas tarde da noite (ou mesmo na madrugada), de forma a permitir que se dispersassem as multidões que, durante o dia, se concentraram nos grandes centros urbanos e mesmo em cidades do interior. Temia-se, tanto na oposição como na situação, que a frustração popular pela rejeição da emenda desaguasse em tumulto de proporções, o que todos estavam interessados em evitar. Outro fator de tensão era a presença, em toda a Esplanada dos Ministérios, de um impressionante dispositivo policial, que restringiu o acesso ao Congresso, em cujos gramados e rampas um grupo de estudantes se manifestava alegremente, inclusive desenhando com seus próprios corpos um enorme "diretas-já" (à noite, o slogan era iluminado por tochas). Rejeitada pela Câmara, a emenda Dante de Oliveira sequer precisou passar pelo Senado.
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O candidato eleito já prometera os novos preceitos desse Brasil nascente:
democrático e social. Para tanto, percebera a necessidade de instalação – assim que assumisse
a Presidência – de uma Assembléia Nacional Constituinte, para elaborar a nova Constituição.
Instalaria, ademais, uma Comissão de Estudos Constitucionais, com competência de
elaboração de estudos capazes de contribuir, a título de sugestão, com a nova Carta.
(GUERRA, 2006)
O Editorial da Folha de São Paulo do dia 16 de janeiro de 1985 anunciou e advertiu a um só tempo: “que seja uma democracia melhor”. Por 480 votos contra 180, Tancredo Neves (PMDB) venceu Paulo Maluf, nas eleições indiretas à Presidência da República, já deixando claro a que vinha: "Esta foi a última eleição indireta do País; venho para realizar urgentes e corajosas mudanças políticas, sociais e econômicas, indispensáveis ao bem-estar do povo." Acrescentou o candidato eleito seu empenho no combate à inflação, observância de deveres sociais por parte do governo, bem como desenvolvimento econômico e crescimento. Seu comprometimento com o combate às desigualdades, também, demonstrou-se notório: "Enquanto houver, neste país, um só homem sem trabalho, sem pão, sem teto e sem letras, toda a prosperidade será falsa”. As promessas incentivaram o povo brasileiro e seus representantes...
Inobstante, em 21 de abril de 1985 o candidato eleito à Presidência da
República, Tancredo Neves, faleceu aos 75 anos, após 38 dias de sua internação no Hospital
de Base de Brasília. As últimas palavras do líder dirigiram-se a seu neto, Aécio Neves, num
tom de despedida: “Eu não merecia isto”.
O Vice-Presidente da República, recém-eleito, José Sarney, chorou
copiosamente ao receber a notícia, às 22h25, no Palácio do Jaburu (Brasília), de onde se
dirigiu para o Palácio do Planalto, onde, em rede nacional, falou às “brasileiras e brasileiros”,
que continuaria firme em processo de abertura democrática, prometendo empenhar-se nas
mudanças reivindicadas: "Nosso programa é o de Tancredo Neves”.
À noite do dia 14 de março de 1985, estava oferecendo um jantar a amigos meus, entre eles os deputados Carlos Wilson, Heráclito Fortes, e o advogado Pedro Grossi, quando recebi telefonema do general Ivan Mendes, que já havia sido convidado por Tancredo Neves para chefiar o SNI (Serviço Nacional de Informações). Ivan me comunicava que, naquele instante, 21 horas, o presidente eleito, sofrendo crise aguda de apendicite, estava sendo removido da Granja do Riacho Fundo, onde se hospedara com a família, para o Hospital de Base. Assim, Tancredo achava-se impedido de tomar posse, no dia seguinte, na Presidência da República. O general Ivan Mendes, meu amigo pessoal, indagava-me quem deveria assumir, se o presidente da Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães, se o vice-presidente da República eleito, José Sarney. Opinei que, nos termos da Constituição (Emenda Constitucional no 1, de 1969), o vice-presidente da República deveria tomar posse. (OLIVEIRA, 2009, p. 139)
O Congresso Nacional se reuniu na manhã seguinte, em sessão extraordinária,
para declarar vacância no cargo da Presidência e, por conseguinte, confirmar José Sarney
como novo Chefe do Executivo nacional. Porém, desde aqui, cumpre esclarecer que a decisão
não foi plenamente pacífica. Isso, porque a interpretação acerca de quem deveria assumir o
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cargo passou por percalços e reuniões na calada da noite. Chega-se a afirmar, até mesmo um
ex-ministro do STF, que os seus pares se teriam reunido na casa do Ilustre Min. Oscar Dias
Corrêa e, em consenso, teriam acordado no entendimento constitucional de que José Sarney
era mesmo quem deveria assumir.
Em face da controvérsia surgida horas antes da posse, dia 15 de março, alguns oficiais-generais, à frente o general Leônidas Pires Gonçalves, virtualmente escolhido ministro do Exército, fizeram uma visita, na noite do dia 14 de março de 1985, ao ministro Cordeiro Guerra, presidente do Supremo Tribunal Federal, que chamou mais três ministros para um exame conjunto da situação. Após cerca de duas horas de conversa, todos se manifestaram a favor da posse do vice-presidente Sarney. (OLIVEIRA, 2009, p. 139)
Assim, o primeiro na linha sucessória presidencial passaria a ser o presidente da
Câmara dos Deputados, Ulysses Guimarães. Este falou à nação do plenário da Câmara às
23h20 e garantiu que "a homenagem sincera e conseqüente dos que choram Tancredo será
impedir qualquer recuo na caminhada pelas instituições livres que se consolidarão através da
Assembléia Nacional Constituinte" (FOLHA de São Paulo, 1985).
Com o intuito de manter a normalidade da caminhada democrática, portanto,
tomou posse, mesmo, como presidente da República, no dia 15 de março de 1985 o candidato
a Vice-Presidente eleito na chapa de Tancredo Neves: José Sarney. Este revelou conselhos do
companheiro Tancredo Neves, durante a transição (SENADO FEDERAL-2, 2005):
Tancredo me transmitiu duas regras básicas na relação com as Forças Armadas, que foram seguidas à risca, e garantiram a volta aos quartéis e a profissionalização dos nossos militares, de acordo com a Constituição: 1) a abertura democrática seria COM as Forças Armadas, e não CONTRA elas. Não haveria qualquer revanchismo; 2) Não haveria mais as Ordens do Dia, em que os militares tomavam posição sobre todos os assuntos.
O evento, traumático ao povo brasileiro, mostrou-se como episódio de temor a
que tudo até então conquistado derrocasse. Isso, porque o candidato à Vice-Presidência, José
Sarney foi quem assumiu no lugar de Tancredo, aos 15 de março de 1985. Sarney,
reconhecido como filiado às “forças autoritárias e retrógradas” (SILVA, 2003, p. 89) era visto
como o fracasso de toda a evolução até então alcançada pelo povo. Acreditava-se que as
reformas não seriam efetuadas. Até mesmo ele, o próprio Sarney, chegou a duvidar. Tanto que
chegou a afirmar, recentemente, por ocasião da comemoração dos vinte anos da
redemocratização: “Achei que a democracia poderia morrer em minhas mãos. Não morreu; ao
contrário, floresceu” (SENADO FEDERAL-2, 2005).
Não obstante, Sarney surpreendeu: nomeou a „Comissão de Estudos
Constitucionais‟. Esta, inicialmente, foi criticada pelos progressistas; mas, ao começar e
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apresentar seus projetos, passou a ser atacada pelos então conservadores, justamente por se
demonstrar demasiado “avançada” (GUERRA, 2006).
Posteriormente, José Sarney enviou proposta de Emenda Constitucional,
aprovada sob o nº 26 (27/dez/85), convocando Assembléia Nacional Constituinte. Esta, na
realidade tratou-se da reunião dos então deputados federais e senadores13, para que, em
reunião, no dia 01 de fevereiro de 1987, começassem os trabalhos de elaboração de uma nova
Constituição, na sede do Congresso Nacional. A emenda Constitucional estabeleceu, dentre
outros: a) instalação da Assembléia Nacional Constituinte sob presidência do Presidente do
STF; b) aprovação do texto, mediante dois turnos de discussão e votação, pela maioria
absoluta dos membros da ANC;
3. EFEITOS DA TRANSIÇÃO NO TEXTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO
Ao se analisar o texto da Constituição brasileira de 1988, poderia ser singelo o
estudo romântico que o glorifica como uma “Constituição Cidadã”. Inegável o progresso à
Democracia brasileira que o texto trouxe, mas sua construção se dá no dia-a-dia, através da
sociedade aberta que o concretiza, não apenas, através das instituições, mas, principalmente,
através de reivindicações de um regime político que, embora jovem, amadurece
paulatinamente.
Nesse sentido, é importante apontar, de que modo alguns dos institutos
constitucionais pátrios significam alguma espécie de memória: a) traumático-social; ou b)
protetiva dos antigos detentores do poder.
3.1. Memória traumático-social
Aqui, podem ser enumerados institutos que, de algum modo, significam
exatamente, alguma forma de constitucionalização de proteções e defesas, contra aquilo que já
foi impingido em desfavor do povo brasileiro nos tempos de Ditadura.
O artigo 5° concentra a maioria desses elementos:
III- ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
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VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Não se pode deixar de lembrar que a própria formulação de cláusulas pétreas
tem o sentido de resguardar contra um retorno ao passado, já que, ao analisar aquilo que ficou
explícito como vedação à tendência de se abolir, percebe-se que, bens jurídicos não
„incomodados‟ pelo Regime ditatorial – como, por exemplo, os „Direitos Sociais‟ – não
receberam o status de cláusula pétrea. Ao contrário, v.g., do que acontece com os “Direitos
Individuais que recebem capitulação específica no Título II do texto: eles, sim, sofreram
retaliações e ofensas durante a exceção.
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais.
A defesa dos parlamentares recebe tratamento especial também. Isso pode ser
sentido, por exemplo, pela possibilidade de alteração da sede do Legislativo Federal, através
de Decreto Legislativo (logo, sem sanção presidencial), a princípio, para fins de
comemorações; mas, possibilitando, inclusive, em casos extremos de necessidade de „fuga‟
contra um cercamento da Casa Legislativa, para impedir seus trabalhos, possam os
parlamentares mudar-se, enquanto permaneça a querela, para qualquer ponto do território
nacional.
As inviolabilidade materiais parlamentares lhes dão, de certa forma,
tranquilidade para bem representar o povo, sendo invioláveis por quaisquer de suas opiniões,
palavras e votos, atualmente, assim compreendido, desde que estejam no exercício da
atividade congressual. Mas não é este, apenas, o ponto central que faz relembrar tempos
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pretéritos. Sim, imunidades formais que impedem processos injustos ou arbitrariamente
persecutórios, possibilitando, inclusive, que, nesses casos, a Casa respectiva promova sua
sustação, também, são relevantes:
Art. 53 [...] § 3º Recebida a denúncia contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o Supremo Tribunal Federal dará ciência à Casa respectiva, que, por iniciativa de partido político nela representado e pelo voto da maioria de seus membros, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001) § 4º O pedido de sustação será apreciado pela Casa respectiva no prazo improrrogável de quarenta e cinco dias do seu recebimento pela Mesa Diretora. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
Isso não significa impunidade. Ao contrário, pois o parlamentar, se o caso for
poderá ser processado após o término de seu mandato, vez que a prescrição não ocorre:
§ 5º A sustação do processo suspende a prescrição, enquanto durar o mandato. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
Enfim, mais três proteções aos parlamentares: inobrigação de testemunhar
sobre fatos que podem ter aceso em virtude do exercício de sua função; impossibilidade inicial
de incorporação às Forças Armadas (mecanismo muito simples de dilapidar o Corpo
Legislativo, mediante convocação obrigatória, no caso de inexistência da defesa do cidadão) e
a permanência, inicial, das imunidades, mesmo em situações adversas decretadas.
§ 6º Os Deputados e Senadores não serão obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001) § 7º A incorporação às Forças Armadas de Deputados e Senadores, embora militares e ainda que em tempo de guerra, dependerá de prévia licença da Casa respectiva. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001) § 8º As imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)
Se, no passado, o Congresso restou esfacelado, pela cassação de parlamentares,
pela sua retirada compulsória das Casas Legislativas, pela punição de suas palavras e votos ou,
até, pela instauração de processos de cunho extremamente duvidosos, a fim de abalar a
estabilidade institucional ou a liberdade de consciência e representação, a Constituição de
1988 traz esse „Estatuto dos Congressistas‟ com essa exata finalidade.
3.2. Memória protetiva dos antigos detentores do poder.
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Por outro lado, é inegável perceber como os antigos detentores do poder
usurpado por determinado grupo de militares recebeu tratamento diferenciado no texto
constitucional.
Em primeiro lugar, a existência de uma Justiça Federal Especializada e a
possibilidade de instituição de Justiça Estadual Militar, demonstram a “necessidade” de um
tratamento específico, àqueles que se submetem a julgamentos pelos seus „pares‟. Isso, porque
somente um militar compreenderia, significativamente, a atuação de outro. Por isso mesmo,
indispensável possibilitar essa forma privilegiada de tratamento em processos judiciais.
Resguardam-se a hierarquia e a disciplina militares, como se as coisas que
acontecem dentro do quartel, por ali mesmo, devessem ficar. Para que se tenha idéia, nos
termos do art. 142, § 2º, “Não caberá habeas-corpus em relação a punições disciplinares
militares”.
A obrigatoriedade ao serviço militar permanecera, mas apenas àqueles que,
considerados “fortes” e “valentes” pudessem prestar um bom serviço às Forças Armadas.
Observe-se a exclusão, apriorística, de mulheres e eclesiásticos.
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei. § 1º - às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar. § 2º - As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir.
Com um nítido intuito de busca de perdão através de „anistia”, enfim, não se
pode deixar de destacar o intento do art. 8° do ADCT. Nele, uma miscelânea de cidadãos,
servidores públicos, civis e militares que prejudicados no passado, agora, anistiados,
juntamente, com os detentores do regime de outrora receberam o mesmo tratamento de
impunibilidade legalizada.
Art. 8º. É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividade previstos nas leis e regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos.
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Aliás, cumpre destacar que a anistia recebera um grau constitucional no
ordenamento, vez que antes do advento da Constituição de 1988, no entanto, diversos fatos
marcaram a história política nacional, dentre eles “Lei da Anistia”, aprovada em agosto de
1979, que anistiou acusados de “crimes políticos e conexos”, um conceito que acabou por
incluir, tanto os adversários do Regime, quanto os opressores e torturadores.
4. CONCLUSÃO PARCIAL
O presente estudo não possui, em absoluto, qualquer pretensão de esgotamento
do tema. Apenas conduz à reflexão inicial de diversos aspectos que podem ser analisados mais
profundamente, uma vez que alocados no texto constitucional brasileiro, muitas vezes, sem
uma explicação muito clara de seus porquês.
Percebe-se como os institutos constitucionais protetivos dos cidadãos comuns,
das autoridades (paramentares e judiciárias) receberam um status constitucional, como
reclamo social do discurso de justificação democrático, ao lado de inserções oportunistas dos
antigos detentores do governo ditatorial, como condição mesmo, de realização de uma
transição pacífica, lenta e paulatina.
Certo, que a memória se faz perceber, ainda que no sentido de relato de fatos
passados, para compreensão do futuro, especialmente, formalizados em um texto condutor de
toda a vida política de um Estado e de seu povo. Memória? Perdão? Ou esquecimento de algo
que não se poderia ter esquecido? Reflexões para um futuro que assombra o presente, porque é
este é o passado do futuro.
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5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE COMO DIREITOS ESSENCIAIS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS. *Andrea Tourinho Pacheco de Miranda1 *Ezilda Claudia de Melo 2
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo demonstrar a importância da
consolidação do direito à memória e à verdade como essenciais ao processo de
democratização do nosso país, como direitos fundamentais, bem como a instauração da
Comissão da Verdade no Brasil, após o período ditatorial, marcado por graves
violações aos direitos humanos. Partimos nossa pesquisa da Hermenêutica sobre a
verdade, para finalizarmos com o estudo dos outros pilares da justiça de transição:
memória e reparação, já que a memória coletiva surge sobre o passado quando ocorre a
interpretação de acordo com as sensibilidades culturais, dilemas éticos e conveniências
políticas de uma determinada sociedade.
Palavras-chave: Memória. Verdade. Hermenêutica Direitos Humanos.
RESUMEN : Este trabajo objetiva demostrar la importancia de la consolidación de lo
derecho a la memoria y la verdad como derechos esenciales en el proceso de la
democratización de nuestro país, En este trabajo se pretende demostrar la importancia de
1 Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Professora de Direito Penal da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “História, Memória e Verdade” da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia. Defensora Pública. 2 Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público. Professora da Faculdade Ruy Barbosa – Devry Brasil e da Faculdade Social da Bahia. Professora de Cursos Preparatórios para Carreira Jurídicas e de Pós-Graduações. Palestrante. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “História, Memória e Verdade” da Faculdade Ruy Barbosa, Bahia. Advogada. Historiadora. Blog: www.ezildamelo.blogstpot.com
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consolidar el derecho a la memoria ya la verdad como algo esencial para el proceso de
democratización de nuestro país, como los derechos fundamentales, y el establecimiento
de la Comisión de la Verdad en Brasil, después de lo período de la dictadura militar ,
marcado por graves violaciones de los derechos humanos. Comenzamos nuestra
investigación sobre la verdad por la hermenéutica, para finalizar el estudio con los otros
pilares de la justicia transicional: la memoria y la reparación, como la memoria
colectiva del pasado surge cuando se produce la interpretación según la sensibilidad
cultural, los dilemas éticos y las conveniencias políticas de una sociedad determinada.
Palavras-Clave: Memória. Verdad. Hermeneutica. Derechos humanos.
SUMÁRIO: 1. A Hermenêutica e a Verdade: o Direito à memória e à verdade
como direitos fundamentais. 2. Memória, verdade e justiça de transição. 3. As primeiras
políticas públicas de justiça de transição no Brasil. 4. O trabalho da Comissão da
Verdade no Brasil. 5. Conclusão. 6. Referências.
1 - A HERMENÊUTICA E A VERDADE: O DIREITO À MEMÓRIA E À
VERDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Na Antiguidade Clássica, recorria-se a Hermes, o mensageiro dos Deuses, pela
busca da verdade escondida. Hermes foi retratado por Homero (no livro "Odisseia") e
Hesíodo (na obra "Os trabalhos e os dias") por suas habilidades e considerado benfeitor
dos mortais, portador da boa sorte e também das fraudes. Autores clássicos também
adornaram o mito com novos acontecimentos. Esquilo mostrou Hermes a ajudar Orestes
a matar Clitemnestra sob uma identidade falsa e outros estratagemas, e disse também
que ele era o deus das buscas, e daqueles que procuram coisas perdidas ou
roubadas. Seu atributo característico era a ambiguidade, pois ao mesmo tempo que era
mensageiro dos deuses, era também fiel mensageiro do mundo das trevas. Não é de se
estranhar que a palavra "hermenêutica" encontre consentâneos nas palavras
"hermeneuein" (interpretar), "hermeneia" (interpretação), "hermeios" (sacerdote do
oráculo de Delfos) e "Hermes" (o mensageiro, na mitologia antiga ocidental). A verdade
é em si ambígua, ou será que não a enxergamos?
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A interpretação que fazemos do mundo é uma atividade de compreensão. O
jurista deve considerar o ordenamento jurídico dinamicamente, pois a interpretação é
que mantém a vida da lei e das outras fontes do Direito.
Interpretar um fato corretamente requer, antes de tudo, visão sobre nós mesmos.
Quem somos? Sobre quais valores ético-morais temos nossa base fincada? O que
queremos para o mundo? Somos pessoas boas? Tratamos bem nossos semelhantes?
Cultivamos a semente do bem? Não nos apropriamos de nada que não nos pertence?
Uma das maiores desobediências que podemos cometer ético-jurídica-filosófica-
política-religiosa é o furto. Retirar algo de alguém. Algo que não nos pertence. O furto
está nas origens das piores barbaridades: nas questões de vida, como no caso dos
homicidas ou dos abortos; nas questões de bens, públicos ou privados, como no caso
dos corruptos; nas questões pessoais, que envolvem o "furto" de sentimento e de
emoção, como num caso de uma mãe não permitir que uma filha tenha laços com o pai,
ocasionando a alienação parental, ou nas questões que envolvem o direito à memória e à
verdade. O furto é abominável. Sendo assim, continuemos analisando as verdades no
Direito. O que elas são? O que representam? Quem pode interpretá-las?
Para Enzo Traverso3, a memória coletiva surge quando opera sobre o passado
una seleção e interpretação de acordo com as sensibilidades culturais, dilemas éticos e
conveniências políticas.4
Para responder a essa indagações precisamos falar um pouco mais sobre as verdades:
muitas delas permanecerão ocultas até que um olho mágico consiga decifrar a
mensagem. Nem todos conseguem alcançá-la. É assim em qualquer área. No Direito
pesa sobre as vidas das pessoas, especialmente na hora de um julgamento judicial que
tenta rastrear o passado, tal qual Sherlock Holmes, em busca de vestígios, pistas de
momentos já vivenciados. Sendo assim, constata-se que o trabalho é frustrado desde o
nascedouro, não desmerecendo a importância de provas que são colhidas para
exemplificar parte da "verdade". Quem já assistiu "Versões de um Crime"? O grande
questionamento é, justamente, o que é verdade?
Drummond de Andrade também refletiu sobre isso e escreveu "Verdade”:
3 TRAVERSO, Enzo. El pasado, instrucciones de uso. Madrid: Marcial Pons, 2007, Págs.14.
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A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Para tudo pode existir diferentes versões, mas só há uma verdade. Ela ocorreu. E
o passado é quem viu.
2. MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO.
Kundera5 faz-nos refletir sobre a possibilidade das repetições na história. Ele nos
diz:
“o eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou
muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como
foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que
significa esse mito insensato? (...) Digamos, portanto, que a ideia do eterno
retorno designa uma perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as
conhecemos: elas nos parecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade.
Essa circunstância atenuante nos impede, com efeito, de pronunciar qualquer
veredicto. Como condenar o que é efêmero?”
Não suportaríamos esse fardo metafísico do eterno retorno a um período de
ditadura, de tortura e de violações de toda natureza aos direitos humanos. A ditadura
aconteceu uma vez e trouxe muitos prejuízos. A ditadura militar brasileira não foi um
fato isolado na história da América Latina. Pelo contrário. Na mesma época, regimes
semelhantes nasciam de rupturas na ordem constitucional de outros países, tendo as
Forças Armadas assumido o poder em consonância com a lógica da Guerra Fria. Esse
contexto histórico regional trouxe a generalização de regimes políticos repressivos em
5 KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Círculo do Livro S.A., 1984.
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todos os países do Cone Sul, a exemplo: Brasil (1964), Argentina (1966 e 1976),
Uruguai (1973), Chile (1973).
A busca da verdade pelos familiares das pessoas que morreram na luta contra o
regime militar é uma história longa e repleta de dificuldades. Muitas pedras no caminho,
mas as conquistas são inerentes para quem tem o ideal de justiça como meta.
.
Memória e verdade são princípios essenciais do direito positivo brasileiro, estes
compreendidos desde o direito a preservação da identidade cultural dos povos até o
direito á informação, essenciais para a formação do estado democrático de direito.
Procuramos, nesse trabalho, demonstrar a maneira pela qual o Brasil, marcado
pelos abusos do período da ditadura militar, com acentuadas violações de direitos
humanos busca alcançar o caminho para consolidar a democracia. Esse período de
mudanças, em que se responsabiliza a criminalidade do passado ditatorial brasileiro é
denominado de justiça de transição ou justiça transacional cuja importante tarefa tem
sido a de estabelecer estratégias e mecanismos para enfrentar o legado de violência do
passado e atribuir responsabilidades aos Estados, no presente.
Sobre a definição de justiça de transição nos valemos do conceito trazido por
Dimitri Dimoulis6 na tradução da obra de Lon L. Fuller, “O caso dos Denunciantes
Invejosos”, sendo aquela definida como “um processo de julgamentos, depurações e
reparações que se realizam após a mudança de um regime jurídico para um outro”.
Dessa maneira, a justiça de transição, enquanto marco histórico das duas
realidades políticas, a do passado e a do presente, além de exigir a efetividade do direito
à memória e à verdade, deve iniciar a persecução de perpetradores das atrocidades do
antigo regime, preservar o direito fundamental da verdade e desenvolver um conjunto
6 DIMOULIS, Dimitri. O caso dos Denunciantes Invejosos: introdução prática às relações entre direito, moral e justiça. 3.ed.rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
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de reparações para fortalecer as instituições democráticas a fim de garantir que
violações de direitos humanos não se tornem práticas recorrentes no âmbito social.
Dentre os quatro pilares que sustentam a justiça de transição, o Brasil só
construiu a reparação, através da Lei 9.140, de 04 de dezembro de 1995, quando
estabeleceu a indenização devida à família dos mortos e desaparecidos durante o regime
militar. Não divulgou a verdade, visto que mantém os arquivos daquele período
fechados, nem realizou a justiça desejada por todos, punindo os torturadores do
regime de exceção.
O Brasil, a partir do argumento de que não condenou nenhum dos violadores do
regime militar, contribuiu para a impunidade. Por outro lado, o Chile levou a sério a
justiça de transição, quando julgou Pinochet em 2005. A Argentina, por sua
vez, iniciou seu processo de justiça de transição, julgando os generais do regime
ditatorial, episódio que ficou popularmente conhecido como Nurembeg argentino.
Vale salientar que não existe um consenso na doutrina internacional, nem um
modelo único para o processo de justiça de transição, pois cada país tem seu processo
peculiar para lidar com o legado de violência do passado totalitário e implementar
mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade. A
Comunidade Internacional, no entanto, menciona quatro obrigações comuns para os
Estados, quais sejam: adotar medidas razoáveis para prevenir violações de direitos
humanos; oferecer mecanismos e instrumentos que permitam a elucidação de situações
de violência; dispor de um aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes
que tenham praticado as violações e; garantir a reparação das vítimas, por meio de ações
que visem à reparação material e simbólica.
O Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ), organização não
governamental que oferece assistência a países os quais enfrentam um legado de
violência dos direitos humanos, destaca, dentre os enfoques básicos de justiça de
transição – memória, verdade e justiça –, algumas iniciativas importantes como
estratégias, a saber: interposição de ações penais contra torturadores e violadores dos
direitos humanos; instauração de comissões da verdade; instauração de programas de
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reparação em favor das vítimas e de familiares; acesso e abertura dos arquivos do
período da repressão, além de reforma institucional. O ICTJ sinaliza que essas medidas 7não são exaustivas, já que cada país sabe a melhor forma de lidar com o seu passado
violento e desenvolver estratégias para avançar no processo democrático.
Os objetivos da justiça de transição giram em torno do reconhecimento do
passado totalitário, para que se possa dar efetividade aos direitos fundamentais. Como
bem assinala Dimitri Dimoulis8, em relação aos pilares da justiça de transição:
Forma-se assim um triângulo de modelos de tratamento jurídico dos problemas transicionais: responsabilização( punição)- verdade( memória) -anistia ( perdão).(...) os vários modelos possuem um elemento comum: se realiza uma reavaliação do passado, modificando julgamento e mudando a postura oficial perante acontecimentos e pessoas.
O Brasil adotou um modelo de justiça de transição que afasta o jus puniendi
dos autores dos crimes, fundamentado na errônea interpretação da Lei 6.683/79 - Lei de
Anistia, que não alcançou a responsabilização criminal dos torturadores do período
ditatorial, não havendo, até a presente data, nenhuma condenação na justiça criminal.
Os crimes perpetrados pelos violadores dos direitos humanos – sequestros,
ocultação de cadáveres, torturas, homicídios, entre outros – não foram apreciados pela
justiça criminal do Brasil. Tais crimes deveriam, ser interpretados como delitos de lesa
humanidade.
Destarte, a responsabilização penal por esses atos é considerada essencial para
que se possa realmente consolidar a democracia brasileira e realizarmos o nosso “nunca
mais”. Mais de vinte anos se passaram e até o presente momento, não existe nenhuma
condenação contra os agentes da repressão brasileira no período da ditadura militar.
7 DIMOULIS, Dimitri. Justiça de transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010, p.94.
8 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Antonio (Orgs.). Justiça de transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010, p.94.
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Algumas políticas públicas de transição no Brasil, no entanto, merecem
considerações a saber: abertura de arquivos do período em alguns Estados brasileiros; a
atuação da Comissão Especial de Mortos Desaparecidos (Lei 9.140/95), que tem um
acervo importante sobre vítimas e sobre as atrocidades cometidas pelos torturadores e
que deu origem a instauração da Comissão nacional da Verdade em 2012; o trabalho da
Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça (Lei 10.559/02), a publicação
do livro Direito à Memória e à Verdade, lançado pela Secretaria Especial de Direitos
Humanos da Presidência da República em 2007, a criação do Centro de Referência das
Lutas Políticas no Brasil, denominado Memórias Reveladas, institucionalizado pela
Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional e a
instituição do 3º Programa Nacional de Direito Humanos- PNDH pelo Decreto
Presidencial nº 7.037/09 em 2009, e finalmente a instauração da Comissão Nacional da
Verdade em 2012.
A Comissão da Anistia do Ministério da Justiça lançou, em abril de 2008, a
Caravana da Anistia, com o objetivo de percorrer todos os estados brasileiros para
difundir o conhecimento histórico do passado ditatorial e julgar os pedidos
de indenizações de perseguidos políticos, fomentando exposições e debates sobre o
tema.
Em outros países, como a Argentina, o período da ditadura militar foi bastante
cruel, com indicadores de que aproximadamente 30 mil argentinos foram sequestrados e
torturados pelos militares e várias crianças foram arrancadas de seus pais e entregues a
famílias de militares ou a orfanatos.
A sociedade argentina, por meio dos organismos de direitos humanos, partidos
de esquerda e movimentos sociais, como Las Madres de La Plaza de Mayo, foi bastante
atuante para que se realizasse a justiça de transição na Argentina, enquanto movimento
social para consolidação da democracia no país.
As condenações dos militares argentinos ainda continuam sendo alvo de
discussões da população sofrida. O ex-presidente Jorge Rafael Videla recebeu, em
dezembro de 2010, sua segunda condenação à prisão perpétua e, no dia 23 de março de
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2011, o General Luciano Benjamin Menéndez também foi condenado, pela segunda vez,
à pena de prisão perpétua pela prática de crimes contra a humanidade.
Em 2012, o movimento “ Hijos ” (H.I.J.O.S. (Filhos e Filhas pela Identidade e a
Justiça, Contra o Esquecimento e o Silêncio, na sigla em espanhol, que se traduz por
FILHOS) em Córdoba, teve seu reconhecimento quando um dos seus representantes foi
escolhido com Secretário de Direitos Humanos da Argentina.9
3. AS PRIMEIRAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUSTIÇA DE
TRANSIÇÃO NO BRASIL
A justiça de transição no Brasil teve como pilar principal a reparação. As
reparações são instrumentos de suma importância para a justiça de transição, e podem
ser feitas por meio de benefícios financeiros, de assistência psicológica ou de outras
medidas.
As políticas públicas de memória e verdade no Brasil debruçaram-se para as
violações de direitos humanos ocorridas durante os anos de 1964 a 1985, época da
ditadura militar do país. Destarte, podemos dizer que a justiça de transição no Brasil,
teve o ano de 1985 como período inicial, apesar de 1979, com a promulgação da Lei de
Anistia (Lei 6.683/79), já possamos dizer que o Brasil deu seus primeiros passos no
tocante a formação do Estado democrático.
Apesar desta Lei, resultante dos movimentos sociais opositores a ditadura, ter
sido marco no processo de abertura política, como reivindicação da anistia para os
presos políticos, foi adotada com um texto ambíguo, que incluía aqueles delitos
“conexos com os políticos”, tendo sido mal interpretada pelos tribunais de forma que,
entre o rol dos delitos anistiáveis, se incluiria aqueles cometidos por funcionários da
ditadura militar, para reprimir a opositores políticos, incluindo crimes de lesa
9 Martín Fresneda, Secretário de Direitos Humanos é filho de desaparecidos, tendo sido, quando criança junto com seu irmão, testemunha do sequestro de seus pais durante a chamada “Noite das Gravatas” É advogado e em Córdoba, foi denunciante em vários dos processos pelos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado.
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humanidade como a tortura, o sequestro e desaparecimento forçado e execuções
sumárias. Esta divergência de interpretação teve suas consequências no futuro, ou
melhor, no presente, momento em que se questiona a constitucionalidade da referida lei.
Assim, não podemos dizer que a Lei de Anistia brasileira10, apesar de ter sido
desejada para ser “ampla, geral e irrestrita” pelas vítimas e familiares de militantes
políticos, teve a sua completa eficácia .
A falta de julgamento dos responsáveis pelas graves violações dos Direitos
Humanos, diferente o Brasil dos outros países latino-americanos que também sofreram
violações de Direitos Humanos no período ditatorial. O caso brasileiro se caracterizou pela
ausência de juízos penais que condenaram os agentes da repressão.11
Ademais, só no ano de 2012 foi que se instaurou a Comissão Nacional da Verdade
Brasileira, embora já houvesse comissões que buscavam a reparação no País, como: a Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) de 1995, a Comissão de Anistia do
Ministério de Justiça de 2002, além do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3).
Antes da instauração da Comissão Nacional da Verdade, poderíamos dizer que o direito
brasileiro, no tocante a reparação se resumiria num verdadeiro direito de anistia., entendido
como um direito do militante político de ter sido declarado oficialmente anistiado político. Esta
declaração do anistiado é considerada como um gesto oficial de pedidos de desculpa pelo
Estado que reconhece que perseguiu politicamente um cidadão. O art. 1º de la Lei 6.683/79 d 22 de agosto de 1979, estabelece “É concedida anistia todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado) [...]”.
Em 2010, o Supremo Tribunal Federal de Brasil reafirmou a constitucionalidade da interpretação da Lei de Anistia, a qual foi interpretada de maneira benéfica para os agentes da repressão, sendo estes absolvidos. Vide sentença do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental No. 153, de 29 de abril de 2010, In: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf.
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Apesar de esse ato ser individual, há que se reconhecer que já houve um pedido de
desculpas coletivo registrado pela Caravana da Anistia, como ocorreu quando “a Caravana da
Anistia” realizou em junho de 2009, em praça pública do município de Santo Domingo de
Araguaia/Pará, na presença de más de 600 habitantes da região. Essa atividade inaugurou o
primeiro ato público de pedido de desculpas coletivo por parte do Estado brasileiro, aos
campesinos perseguidos e torturados durante o período da repressão militar contra o movimento
de resistência conhecido como a “Guerrilha do Araguaia”.·.
Outro passo para a reparação, pode ser ilustrado no caso da família do jornalista
Vladimir Herzog, morto em razão de torturas, nos porões do DOI-CODI, em 1975. A
causa mortis na certidão de óbito de Herzog foi modificada. Na certidão, revisada após
determinação da Justiça, passa a constar como causa da morte "lesões e maus tratos
sofridos durante o interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI-Codi)", que
substitui formalmente a versão de "asfixia mecânica por enforcamento".
Ainda no tocante as políticas públicas relativas a reparação, podemos destacar algumas
políticas de nível federal que tem impacto local, como o Projeto Direito à Memória e à Verdade
da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que inclui a criação
de monumentos e montagem de exposição em todo o Brasil, em parceria com algumas
instituições como Prefeituras, universidades, centros de estudos e ONG.·.
Verifica-se a existência de algumas políticas públicas relacionadas com a memória e
verdade, correspondente aos anos de 1990 e 1993. A primeira corresponde a Comissão
Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo sobre a fossa comum de Perus,
no Cemitério Dom Bosco, na Capital. A descoberta desta fossa comum com mais de 1000
corpos de opositores políticos, contribuiu para por em debate público o problema dos mortos e
desaparecidos políticos. Vale salientar que esta Comissão de Investigação não emitiu de forma
imediata nenhum informe concludente sobre a questão, até 2012.
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O ano de 1995 teve um marco para a justiça de transição do Brasil, a aprovação da lei
9.140, que reconheceu como mortas às pessoas desaparecidas em razão da sua participação em
atividades políticas entre 1961 e 1979. A referida Lei dispunha de três importantes
reconhecimentos: Firmou o reconhecimento expresso por parte do Estado brasileiro na
responsabilidade sobre a morte e desaparecimento de opositores políticos da ditadura., listando
136 pessoas sequestradas a partir do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de
1964 elaborado por organizações de familiares das vítimas12;
4. O TRABALHO DA COMISSÃO DA VERDADE
As Comissões da Verdade são instrumentos importantes para se garantir à
sociedade – como forma de resgate da cidadania – o direito a ter conhecimento dos
motivos pelos quais esses crimes foram cometidos no passado, num regime distante
do atual.
A lei que a institui a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, (Lei 12.528) foi
instaurada oficialmente em 16 de maio de 2012, mediante iniciativa oficial, tendo como
objetivo investigar e registrar as violações ocorridas durante o período militar, com
vistas a reparar as famílias dos militantes mortos ou desaparecidos.
Sete membros compõem a Comissão Nacional da Verdade: José Carlos Dias (ex-
ministro da Justiça), Gilson Dipp (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa
Maria Cardoso da Cunha (advogada), Cláudio Fonteles (ex-procurador-geral da
República), Paulo Sérgio Pinheiro (diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José
Cavalcante Filho (jurista). Os critérios para a escolha dos membros se fundaram em
alguns pontos principais, tais como pessoas "de reconhecida idoneidade e conduta ética,
identificadas com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como
com o respeito aos direitos humanos".
COMISSÃO ESPECIAL SOBRE MORTOS E DESAPARECIDOS POLÍTICOS. Direito à Memória e à
Verdade, Ob.Cit., Págs. 33-35. Sobre el Dossiê dos Mortos e Desaparecidos .” Publicação do Dossiê dos
Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964”.
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A coleta de provas da Comissão Nacional da verdade é realizada a partir do
depoimento das vítimas, testemunhas, documentos, tendo ainda o dever de fazer com
que a sociedade e os próprios violadores reconheçam as injustiças cometidas e peçam
perdão.
A comissão terá o direito de convocar vítimas ou acusados das violações para
depoimentos, mesmo que a convocação não tenha caráter obrigatório, além de ter acesso
a arquivos e documentos do poder público sobre o período, porém não tem o poder de
punir ou recomendar que acusados que praticaram crimes durante a ditadura.
A comissão deverá colaborar com as instâncias do poder público para a
apuração de violação de direitos humanos, além de enviar aos órgãos públicos
competentes dados que possam auxiliar na identificação de restos mortais de
desaparecidos, podendo proceder a vistorias em locais considerados “sítios de tortura”,
e além de identificá-los, devem apontar instituições e circunstâncias relacionadas à
prática de violações de direitos humanos daquele período.
A comissão, proposta em 2010, passou por diversas mudanças, principalmente
para atender as queixas dosa gentes públicos repressores da época, substituindo alguns
termos descritos no seu texto, como "repressão política", além de prevê o "exame" de
violações de direitos humanos, diferente da versão de 2010, que previa a "apuração" dos
fatos ocorridos durante o período de 1964 a 1985, englobará fatos que ocorreram entre
os anos de 1946 e 1988.
5- CONCLUSÃO
O tempo presente reflete sobre a verdade. Mas, é o futuro quem dirá o que
devemos fazer. Só o tempo ganha. Não adianta travar lutas contra ele. As medidas
estabelecidas pela Comissão de Justiça de Transição devem ser aplicadas,
preferencialmente, de forma integrada, a fim de não comprometer a credibilidade do
processo, buscando sempre o caminho para alcançar a democracia, desde que sejam
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levadas em consideração a prevalência dos direitos humanos e a obediência ao
cumprimento de princípios fundamentais.
Exemplo bem claro aconteceu em 05 de dezembro de 2011 com o
anistiamento a Marighella. Quem foi Marighella na época da ditadura, senão um
criminoso? Hoje, quem é Marighella? Um herói. Um homem que lutou por um Brasil
melhor. Em 1969 Marighella foi assassinado. E o que se contou foi outra versão. Nosso
presente nos traz novas informações, muitas delas perdidas para sempre, porque tiraram
tudo de Marighella, inclusive seus pertences pessoais, seus registros, suas fotos.
Afastamo-nos um pouco mais de 40 anos do ocorrido e já podemos identificar/pensar as
verdades a despeito do ocorrido.
Sobre a verdade ainda temos muito a refletir, especialmente juridicamente falando.
No entanto, acreditamos que o direito de acesso à informação é determinante para a
construção dos direitos e valores fundamentais da cidadania e da democracia
participativa.
Embora ainda haja muitas dificuldades enfrentadas pela justiça de transição no
Brasil, a memória e a verdade não podem ser afastadas do conhecimento da nova
geração, sobretudo para que as atrocidades do regime totalitário não voltem a se repetir.
Mesmo sem a abertura dos arquivos da ditadura, no Brasil, em algumas regiões,
como na Bahia, onde prevalece o silêncio, a Comissão da Verdade vem se firmando na
luta pela democracia e no reconhecimento das violações dos direitos humanos, mas a
verdade sobre um passado sofrido um dia será mostrada.
Os remédios democráticos como o Habeas data e as ações de reparação podem
confirmar que a luta existiu, que pessoas morreram porque acreditaram na possibilidade
de um regime democrático em nosso país.
À medida que os governos são surpreendidos com a memória revelada, estes
podem conceder compensações financeiras às famílias. Embora tais reparações não
possam trazer de volta aqueles que um dia deram a vida pelo ideal de justiça, ao menos
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essas famílias podem ver os sonhos dos seus filhos concretizados no ideal democrático.
Um grande avanço, sem dúvida, no Brasil é a entrada em vigor da Lei 12.527/2011.
Temos muito caminho a percorrer.
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JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E RECONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA: UMA ANÁLISE
SOBRE O PAPEL DAS “COMISSÕES DE VERDADE” NA CONSOLIDAÇÃO DO
DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE E À MEMÓRIA NOS PAÍSES DO
MERCOSUL.
TRANSITIONAL JUSTICE AND DEMOCRACY RECONSTRUCTION: ONE
ANALYSIS OF THE PURPOSE BY “COMISSIONS OF TRUTH” IN THE
CONSOLIDATION OF THE FUNDAMENTAL RIGHTS LIKE TRUTH AND
MEMORY IN THE MERCOSUR COUNTRIES.
Fernando Horta Tavares1
Larissa Maria da Trindade2
RESUMO O presente artigo faz uma abordagem critica acerca do papel desempenhado pelas “Comissões de Verdade” quanto à consolidação do Direito Fundamental à verdade e à memória nos países do MERCOSUL (Brasil, Paraguai, Uruguaia, Argentina e Venezuela). O paradigma do Estado Democrático de Direito, engloba em um mesmo diapasão a Justiça de Transição, a Democracia e o Constitucionalismo, que mostram-se intimamente ligados na busca pela defesa e garantia dos direitos humanos, mais especificamente os direitos à verdade e à memória, no que diz respeito aos processos transicionais. Questiona-se a legitimidade conferida às Comissões Nacionais da Verdade nestes países para eficazmente contribuírem para o processo de reconstrução democrática, uma vez que não foram instauradas mediante um processo de democracia participativa. PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Constitucionalismo; Justiça de Transição; Comissão de Verdade; Direitos Humanos. 11 Pós-Doutoramento em Direito Constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Doutor em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Direito Processual pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMINAS. Professor da Graduação e da Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Licenciado em História pela Universidade Católica de Minas Gerais (UCMG). Advogado. 2 Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Monitora das disciplinas Teoria Geral da Constituição e Direito Constitucional I e II na Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas.
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ABSTRACT This article aims to make a critical approach on the role played by "Truth Commissions" as the consolidation of the Fundamental Right to truth and memory in the MERCOSUR countries (Brazil, Paraguay, Uruguay, Argentina and Venezuela). The paradigm of democratic rule of law, encompasses the same pitch in Transitional Justice, Democracy and Constitutionalism, which show up in the search for closely linked defense and guarantee of human rights, specifically the rights to truth and memory, respect to transitional processes. Questions the legitimacy conferred National Commissions of Truth in these countries to effectively contribute to the process of democratic reconstruction, since they were not introduced through a process of participatory democracy.
KEYWORDS: Democracy; Constitutionalism; Transitional Justice; Commission of Truth; Human Rights.
INTRODUÇÃO
Há um ponto sobre o estudo da sociedade e da cultura em que são mais ou menos
acordes os antropólogos, e diz respeito à propensão do homem de viver em agregados
(ROUDINESCO: 2003; HERSKOVITS: 1963). Essa afirmativa não escapou às preocupações
de Freud (1921), o que se revela em sua obra sobre a Psicologia de grupo e análise do ego,
artigo no qual o autor destina um capítulo para explicar o que seria esse instinto gregário. Ao
lado de outros instintos primários como os de autopreservação e nutrição, o instinto gregário
revela-se como característica inata aos seres humanos que os leva a se associarem, a se
organizarem em grupos. Isso se dá, segundo Freud, porque “[...] se está sozinho, o indivíduo
sente-se incompleto.” (FREUD (1921), 1976, p.150).
Por isto, uma sociedade é regida por normas que procuram estabelecer, numa dada
época histórica direitos e deveres aos seus cidadãos. Porém, conforme leciona Dalmo de
Abreu Dallari (1985), um direito só existe realmente quando pode ser usado: direitos que
constam da lei e não podem ser praticados e direitos desrespeitados por falta de meios de
defesa e garantia, não são considerados direitos.
A vivência em sociedade configura em cada país o estabelecimento e criação de uma
identidade nacional entre seus povos: um conjunto de valores, tradições, sentimentos, história
e cultura, que fazem uma pessoa se sentir parte de uma determinada nação.
O que se pode denominar de identidade nacional é consolidado pela convivência
social, repassada pelas gerações e constitui elemento de integração. O sentimento do ‘ser’
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argentino, paraguaio, uruguaio ou brasileiro não se mistura, mas unifica-se no ‘ser’ latino-
americano, fruto das contingências históricas reunidas a partir de um passado ibérico.
Referida identidade congrega valores e objetivos democráticos, no sentido traçado
por Eduardo Nunes Campos:
“Em busca de identidade, que de resto marca toda a história da humanidade, reveste-se, na América Latina, de traços que lhe conferem singularidade em relação a processos afins ocorridos em outras partes do mundo. Aqui, o processo de independência colonial e fragmentação dos territórios levou primeiro, na quase totalidade dos casos, ao surgimento dos Estados e posteriormente à pergunta relativa à identidade e aos projetos nacionais, particularidade a que se soma a história comum de alienação, dependência e exclusão social da região.” (CAMPOS, 2002 p.251)
No entanto, os estudos que compreendem os chamados processos transicionais não
devem ser analisados somente como método da releitura histórica das identidades nacionais,
pois o tema da justiça de transição engloba muitos elementos além destes.
A temática da justiça de transição, enquanto válvula propulsora da reconstrução
democrática dos povos está intimamente ligada à ideia da identidade do sujeito constitucional,
às identidades nacionais, mas não só a elas, justamente por poder ser sempre reinterpretada e
reconstruída, ao longo do tempo. Por consequência, afigura-se inevitável a tensão entre o
pluralismo inerente ao constitucionalismo contemporâneo e a tradição, pois a identidade
constitucional surge como algo complexo, fragmentado e incompleto, como esclarece Michel
Rosenfeld (2003).
Neste sentido, discorre o referido Rosenfeld para quem
“ (...) o sujeito constitucional deve ser considerado como um hiato ou uma ausência em pelo menos dois sentidos distintos: primeiramente a ausência do sujeito constitucional não nega seu caráter indispensável, daí a necessidade de sua reconstrução; e, em segundo lugar, o sujeito constitucional sempre envolve um hiato porque ele é inerentemente incompleto, e então sempre aberto a uma necessária, mas impossível busca de completude.”(ROSENFELD, 2003, p.23)
À vista destas considerações, surge a necessidade imperiosa de verificar se a Justiça
de Transição, que ocorreu e ocorre nos países do MERCOSUL, inclusive por intermédio da
instalação das Comissões de Verdade, busca realmente reafirmar as identidades
constitucionais de seus povos ou apenas assegurar a auto-imagem de seus Estados. Nesta
última, a reconstrução democrática estaria sempre sujeita ao reconhecimento do Estado, e não
às pretensões, objetivos e necessidades do povo, enquanto sujeito de poder direto e indireto.
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Para Giddens (2002), a orientação da modernidade direcionada para o controle em
relação à reprodução social e à auto-identidade “têm certas consequências e características ao
nível da experiência moral” (2002, p.139). Com efeito, o autor discorre sobre sua defesa do
que ele denomina políticas de emancipação, que tem como imperativos os valores da justiça,
igualdade e participação e se ocupa em reduzir a desigualdade, a exploração e a opressão:
“Defino a política emancipatória como uma visão genérica interessada, acima de tudo, em libertar os indivíduos e grupos das limitações que afetam negativamente suas oportunidades de vida. Ela envolve dois elementos principais: o esforço por romper as algemas do passado, permitindo assim uma atitude transformadora em relação ao futuro; e o objetivo de superar a dominação ilegítima de alguns indivíduos e grupos por outros. O primeiro desses objetivos facilita o ímpeto dinâmico positivo da modernidade. A ruptura com as práticas fixas do passado permite que os homens aumentem o controle social sobre as circunstâncias de suas vidas.” (GIDDENS, 2002. p. 194)
2 CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA: as bases para o processo transicional
A Justiça de Transição deve ser justamente baseada em uma política emancipatória,
que posteriormente converte-se em uma política-vida as quais, em outras palavras, levam à
política da escolha e esta somente é possível quando a sociedade já possui um maior controle
de sua vida social, em razão do maior grau de esclarecimento.
Para isso, se faz necessário a concretização e o desenvolvimento do Direito
Constitucional e do constitucionalismo, segundo Maurizio Fioravanti: “ El constitucionalismo
es concebido como el conjunto de doctrinas que aproximadamente a partir de la mitad del
siglo XVII se han dedicado a recuperar em el horizonte de la constitución de los modernos el
aspecto del limite y de la garantia.” (FIORAVANTI, 2011. p. 85)
O constitucionalismo moderno requer governo limitado, um Estado cujo Direito seja
Democrático e uma eficaz proteção aos direitos fundamentais.
Acerca dos elementos constitutivos do Estado Democrático de Direito, discorre
Menellick de Carvalho Netto:
“No paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto do sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.” (NETTO, 1999 p.482)
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
222
A necessidade da limitação do poder do governo se faz em decorrência da garantia
que se deve exigir da implementação dos direitos fundamentais, mas para que essa
fundamentalidade seja eficaz é preciso uma mediação entre as identidades, que devem ser
reconstruídas com a Democracia, sem amarras às heranças de uma tradição constitucional
dissociada dos princípios que estruturam hermeneuticamente o constitucionalismo pós-
segunda guerra mundial, marcadamente calcado na Dignidade do Ser Humano.
Em tempos de um Estado de Direito Democrático, é inconcebível que ainda não se
tenha traçado um estudo direcionado no sentido de verificação da reconstrução democrática
nos países que integram o Mercado Comum do Sul-MERCOSUL, tendo como base a Justiça
de Transição, pois ainda que não se esteja diante da mesma sociedade que viveu à época das
ditaduras civil-militares que assolaram a América do Sul nas décadas de 1960 e 1970,
vivenciam-se até hoje os seus reflexos a exigir o estabelecimento da verdade factual.
A defesa da democracia, da cidadania, das garantias constitucionais e processuais se
faz necessária não só para a instituição como a permanente concretização do Estado
Democrático de Direito. Uma democracia que deve assegurar conjuntamente igualdade, não
discriminação, dignidade e devido processo legislativo à todos os cidadãos, sendo estes,
também, observadores atentos da Constituição de modo que ela não se constitua em mera
“folha de papel”, na feliz expressão de Ferdinand de Lassale.
Nesta direção, menciona José Alfredo de Oliveira Baracho trecho que enfatiza o
sentido que deve ser empregado ao funcionamento das Comissões de Verdade, como
preservação da verdade e memória do período e meio amplo de efetivação das garantias
constitucionais: "os direitos elencados na Constituição podem ampliar-se, de modo que a
juridicidade, a efetividade e a justiciabilidade possam tornar concretos os direitos da
cidadania”. (BARACHO, 2003)
Essa cidadania necessariamente envolve a permanente reconstrução do que se
entende como direitos fundamentais consoante uma dimensão de temporalidade que abarque
as vivências e exigências constitucionais das gerações passadas, presentes e futuras, segundo
Rosenfeld (2003).
No entanto, para que essa efetividade e justiciabilidade, garantidora dos direitos da
cidadania se torne possível, é preciso, antes de tudo, a vivência sob a perspectiva de uma
democracia histórica e constitucionalmente construída e reconstruída, nos moldes, todavia, da
definição da democracia e do constitucionalismo conforme defende Hans Kelsen, em seu livro
intitulado “A Democracia”:
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223
“A democracia, no plano da ideia, é uma forma de Estado e de sociedade em que a vontade geral, ou sem tantas metáforas, a ordem social, é realizada por quem está submetido a essa ordem, isto é, pelo povo. Democracia significa identidade entre governantes e governados, entre sujeito e objeto do poder, governo do povo sobre o povo. Mas o que é esse povo? Uma pluralidade de indivíduos, sem dúvida. E parece que a democracia pressupõe, fundamentalmente, que essa pluralidade de indivíduos constitui uma unidade, tanto mais que, aqui o povo como unidade é – ou teoricamente deveria ser – não tanto objeto, mas principalmente sujeito do poder.” (KELSEN, 2000 p. 154)
Nesta mesma ordem de ideias discorre André Del Negri para quem “(...) há
democracia quando a Constituição é observada por todos (Cidadãos, Executivo, Legislativo,
Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Universidades, Escolas, etc...) (...)”
(NEGRI, 2007).
A seu turno, Norberto Bobbio (2004), em seu esclarecedor Dicionário da Política
conclui que hodiernamente o constitucionalismo não é outra coisa senão o modo concreto
como se aplica e realiza os sistemas democráticos representativos, mais corretamente
chamados de sistemas constitucional-pluralistas, que realizam o princípio do Governo
limitado. (BOBBIO, 2004, p. 257)
Canotilho (2004), mencionado por Pedro Lenza, procura estabelecer uma definição
para o constitucionalismo moderno:
“Canotilho identifica vários constitucionalismos, como o inglês, o americano e o francês, preferindo falar em "movimentos constitucionais". Em seguida, define o constitucionalismo como uma teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantida dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo". (LENZA, 2010 p. 49)
É a democracia, conquista histórica da humanidade e do constitucionalismo, o
pressuposto para o pleno exercício dos direitos humanos. Esses só podem ser concretizados
em um Estado essencialmente democrático, que não opera a supressão dos mesmos como
ocorreu nos regimes totalitários que assolaram a sul América, mas que os positive enquanto
direitos fundamentais e os garanta constitucionalmente, ainda que, não estejam explicitamente
elencados no Texto Constitucional, admitindo assim, uma interpretação extensiva da
Constituição em prol do Ser humano emoldurado pela Dignidade e de uma cidadania dela
resultante.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
224
Não há dúvida que a discussão em torno da temática dos processos transicionais tem
como marco teórico o paradigma do Estado Democrático de Direito, sobre o qual leciona
Wilba Lúcia Maia Bernardes:
“Podemos afirmar que esse paradigma ainda está comprometido com o ideal da legalidade, mas busca sua sustentação e legitimidade também no ideal de justiça. Como realizar esses dois aspectos balizadores deste novo Estado é a tarefa que hoje enfrentamos. Está claro que para superarmos as grandes questões desta sociedade hipercomplexa em que vivemos, teremos de construir a democracia, agora não mais formal, mas efetiva.” (BERNARDES, 2000. p. 17)
Para que esta normatividade se concretize é preciso que constitucionalismo e
democracia caminhem juntos, entendendo o constitucionalismo moderno como uma limitação
de poder que se faz necessária para a garantia dos direitos humanos, resultante na
possibilidade desta garantia ser concretizada por intermédio dos mecanismos do exercício da
democracia direta pelo povo, ou indireta por seus representantes.
3 BREVE PANORAMA DOS PROCESSOS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NOS
PAÍSES DO MERCOSUL
Os processos históricos e políticos da Justiça de Transição nos países do
MERCOSUL3 devem ser considerados como uma representação da consolidação de uma
consistente cultura dos direitos humanos, e de novos caminhos para a democracia
3 “Em 26 de março de 1991, a república Argentina, a república federativa do Brasil, a república do Paraguai e a república oriental do Uruguai assinaram o Tratado de Assunção com o objetivo de constituir um Mercado Comum, denominado MERCOSUL. O MERCOSUL tem por objetivo consolidar a integração política, econômica e social entre os países que o integram, fortalecer os vínculos entre os cidadãos dos países membros, a fim de melhorar sua qualidade de vida, incorporando em seu âmbito o setor produtivo para melhorar sua competitividade em nível regional e internacional. O Mercado Comum implica a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, o estabelecimento de uma tarifa externa comum, a adoção de uma política comercial comum, a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais e a harmonização de legislações nacionais para alcançar o fortalecimento do processo de integração. Com o objetivo de fortalecer as relações com os países da América Latina, O MERCOSUL assinou acordos de livre Comércio com o Estado Plurinacional da Bolívia (1996), com a república do Chile (1996), com a república do Peru (2003), com a república da Colômbia (2004), com a república do Equador (2004) e com a república Bolivariana da Venezuela (2004), países que por tal motivo passaram a ser considerados Estados associados. .No contexto da consolidação do processo de integração latino-americana, em 4 de julho de 2006, foi aprovado o “Protocolo de adesão da república Bolivariana da Venezuela ao MERCOSUL”, dando início a um processo que transformou aquele país de Estado associado em Estado Parte do MERCOSUL. Mediante este Protocolo, a Venezuela aderiu ao Tratado de Assunção, ao Protocolo de Ouro Preto e ao Protocolo de Olivos para a Solução de Controvérsias.(MERCOSUL, Cartilha do Cidadão. 2010)”
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
225
constitucional, caminhos estes, traçados a partir da garantia do direito fundamental à verdade
e à memória.
É o que afirma Kildare Gonçalves de Carvalho para quem
“ Em tempos de reconstrução democrática e de um neoconstitucionalismo marcado pela verdade, solidariedade e participação, fala-se em justiça de transição – uma conquista democrática – um conjunto de medidas, nem todas elas exclusivamente jurídicas, que a sociedade tem à disposição, na passagem ou retorno à democracia, para lidar depois de períodos de conflito ou repressão, com legados de violência deixados por regimes totalitários. A justiça de transição incorpora as várias dimensões de justiça capazes de contribuir para a reconstrução social, fundamentada na idéia da universalidade dos direitos humanos e sustentada na legislação humanitária e internacional de direitos humanos.”(CARVALHO, 2011 p.169-171)
No Brasil, o processo de justiça transicional iniciou-se com a Lei nº. 6.683 (Lei da
Anistia) que foi promulgada pelo então presidente Figueiredo4 em 1979, ainda durante a
ditadura civil-militar. No entanto, não foi assim que aconteceu com os demais países do
MERCOSUL já que nem todos criaram uma Lei de Anistia ou percorreram o mesmo caminho
rumo à redemocratização.
É verdade que os países do MERCOSUL guardam entre si muitos pontos de
identidade, principalmente em virtude do paralelismo de suas trajetórias históricas5, mas
4 João Baptista de Oliveira Figueiredo foi um geógrafo, político e militar brasileiro, tendo sido 30º Presidente do Brasil de 1979 a 1985 e o último presidente do período da ditadura civil-militar. 5 “No marco do chamado Mercado Comum do Sul – o Mercosul –, as identidades têm um forte componente histórico. O paralelismo nas trajetórias históricas das nações do Cone Sul vai muito além de sua origem colonial comum; a experiência de regimes burocrático-autoritários, na segunda metade do século XX, bem como os desafios enfrentados nos respectivos processos de redemocratização, também as aproximam de maneira bastante significativa. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009 p. 297)” – Na Argentina ocorreu a colonização espanhola iniciada em 1536 na região do Rio da Prata, com ruptura definitiva apenas em 1810 e independência em 1816, seguida de uma guerra civil. Passaram por uma aristocracia rural e pelo governo tirânico de um caudilho denominado Manuel das Rosas. Sofreram um golpe de Estado em 1930 e outro em 1943. Desde então, teve períodos de grandes instabilidades econômicas, políticas, sociais e de debilitamento de sua democracia: desde governo de coronéis, governos com viés fascistas, guerras (Guerra Suja, Guerra das Malvinas), atuação de guerrilhas de oposição aos regimes adotados e governos militares, intercalando períodos de surgimento e supressão da democracia. No Paraguai também ocorreu colonização espanhola com inicio em 1530, escravização da população indígena que residia anteriormente no território, durante o século XVII, com conquista da independência em 1811. Após essa data o país se isolou das demais nações sul-americanas ficando sob o poderio ditatorial do ditador José Gaspar Rodríguez Francia de 1814 até 1840. Esteve envolvido em guerras (Guerra do Chaco, Guerra do Paraguai), passou por vários golpes políticos até 1954, foi governado por um general (Alfredo Stroessner) que instalou uma ditadura no país e foi retirado do poder em 1989 com um golpe militar, por meio do qual assumiu um novo presidente. No Uruguai, ocorreu processo de colonização espanhola e portuguesa em 1624, com conquista da independência em 1825. Em 1859 e 1861 passou por uma guerra civil, seguida da participação na Guerra do Paraguai em 1865, surgimento do grupo guerrilheiro Tupamaros em 1966 e implantação de uma ditadura militar em 1973. O surgimento da democracia ocorre somente em 1980, com eleições em 1984. O Brasil, em conformidade com os demais países também teve um processo de colonização espanhola e portuguesa a partir do ano de sua descoberta em 1500, que se estendeu até o século XIX, terminando com a independência em 1822. Após a independência sucederam-se as fases do Brasil Império, República, políticas de coronelismo, guerras (inclusive a Guerra do Paraguai já citada anteriormente), a
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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também há entre eles grandes diferenças, uma vez que, é preciso observar a justiça de
transição como reflexo do histórico cultural e político dos povos de cada país
individualmente, que ocorre em diferentes circunstâncias historicamente situadas.
Torna-se necessário dar um enfoque especial à revelação da verdade e à preservação
da memória deste espaço de tempo, ainda que existam muitos outros processos relacionados
ao período transicional6, tais como as reformas institucionais, a tentativa de promover a
reconciliação entre as partes em conflito, medidas de reparação e os processos judiciais contra
aqueles que atentaram, em realidade, contra os direitos humanos.
O quadro abaixo demonstra o que já foi feito para reconstrução da identidade dos
países do MERCOSUL, com dados até março de 2009:
Quadro 1: As experiências da justiça transicional no Mercosul
País do Mercosul
Investigação da Verdade
Responsabilização criminal dos autores
de violações
Reparação das vítimas
Reforma de instituições
do regime político
(VETTING)
Argentina Avançada e
plena
Sim Sim Não
Brasil Limitada a
algumas
Tentativas fracassadas Sim Não
ditadura militar até o inicio da redemocratização. Todos os países, historicamente com grandes oscilações que permeiam regimes de colonização e autoritarismo até a conquista de períodos mais democráticos. 6 “Contudo, mesmo em países que aprovaram anistias, o Estado e a sociedade não renunciaram a seu direito de conhecer o passado e mesmo de buscar a responsabilização dos agentes de graves violações a direitos humanos. Com efeito, dentre os países do Cone Sul, apenas o Paraguai não aprovou nenhuma forma de anistia após o fim de sua ditadura cívico-militar (SIKKING; WALLING, 2007). Ainda assim, Uruguai e Argentina, com suas respectivas leis de anistia, promoveram comissões de verdade e julgamentos para responsabilizar agentes da repressão. Mesmo a via da responsabilização criminal não fica interditada por essas leis, pois as mesmas não abarcam todos os atos ou agentes, deixando abertas oportunidades para a proposição de ações criminais. A Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado (Lei 15.848) uruguaia protege apenas funcionários militares e policiais do regime, não impedindo a punição de agentes civis da ditadura. Outras leis, como a Lei do Ponto Final argentina (Lei 23.492) e mesmo a lei de anistia brasileira (Lei 6.683/79), não impediriam a responsabilização por alguns crimes não incluídos, como o desaparecimento, nos primeiros casos, e a tortura, no último. No Uruguai, apenas recentemente foi estabelecida uma curta Comissão para a Paz e processados pretensos autores de violações a direitos humanos. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009)”
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
227
informações
sobre mortos e
desaparecidos
Paraguai Recente, porém
plena
Sim Sim Não
Uruguai Temporalmente
limitada
Recente Sim Não
Fonte: NAHOUM, André Vereta. BENEDETTI, Juliana Cardoso. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E INTEGRAÇÃO REGIONAL: O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NO MERCOSUL. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. N. 1 (jan. /jun. 2009). -- Brasília: Ministério da Justiça, 2009.
4 A INSTITUIÇÃO E O PAPEL DAS COMISSÕES NACIONAIS DA VERDADE NA
GARANTIA E PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
As Comissões de Verdade, enquanto meios quase-judiciais de apuração dos fatos,
passaram a desempenhar um papel fundamental na construção institucionalizada do Estado
Democrático de Direito, rumo à reconciliação e ao perdão sociais, e também como meios de
garantir os direitos à verdade e à memória da sociedade, em determinados períodos de
repressão política e social. Elas já são uma realidade de todos os países do MERCOSUL,
ainda que, no Brasil só tenha sido implantada recentemente no ano de 2012.
A Comissão Nacional da Verdade brasileira foi instalada pela presidente Dilma
Rousseff em 16 de maio de 2012, pela Lei nº. 12.528/2011 e possui como objetivo a apuração
de violações graves aos direitos humanos que tenham ocorrido entre setembro de 1946 e
outubro de 1988 – ano em que foi promulgada a Constituição Cidadã. O prazo para apuração
das violações é de 2 (dois) anos e a Comissão é composta por 7 (sete) membros, entre os
quais figuram Cláudio Fonteles, Gilson Dipp, José Carlos Dias, João Paulo Cavalcanti Filho,
Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Maria Cardoso da Cunha.
No Uruguai foi criada em 2000 a Comisión para La Paz; no Paraguai a Comisión de
Verdad y Justicia foi estabelecida em 2004 e na Argentina a Comisión Nacional sobre la
Desaparición de Personas ocorreu em 1983.
Importante salientar também a experiência chilena, enquanto Estado Associado ao
MERCOSUL:
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
228
“ No Chile, o presidente Aylwin Azocar criou, em 1990, a Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, tendo oito membros e prazo de nove meses para investigação. Essa Comissão tinha como funções as seguintes: (a) estabelecer um quadro sobre as violações dos direitos humanos, seus antecedentes e circunstancias; (b) reunir informações para individualizar as vítimas e seus paradeiros; (c) recomendar as medidas de reparação e reivindicações necessárias; (d) recomendar as medidas legais e administrativas cabíveis. Foram investigados os fatos ocorridos no período de 11 de setembro de 1973 a 11 de março de 1990, contando a Comissão com a colaboração de diversos organismos nacionais e internacionais de Direitos Humanos. Foram ouvidos mais de 3.400 familiares de desaparecidos, tendo ocorrido viagens internacionais a fim de ouvir o relato de exilados. Em 1992 o governo do Chile criou a Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, para cumprir e executar as recomendações da Comissão de Verdade e Reconciliação. (LEAL, 2012 p.203 – 228)
Ao contrário do Uruguai, Paraguai e Brasil a população chilena não reivindicou por
uma anistia (a lei de anistia, imposta pela ditadura comandada pelo General Augusto Pinochet
em 1979, foi há pouco tempo declarada sem aplicação pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos), tendo ocorrido eleições para retorno à democracia logo após o fim dos regimes
militares.
4.1 “Comissões de Verdade” e o Direito Fundamental à verdade e à memória
É preciso compreender, sobretudo, o papel das Comissões de Verdade nos países da
América Latina no que diz respeito à defesa dos direitos humanos, uma vez que alguma
doutrina jurídica acaba propondo uma talvez desnecessária diferenciação entre os direitos
humanos e os direitos fundamentais.
Para autores como Fábio Konder Comparato (2001), por exemplo, estes últimos
seriam os direitos humanos positivados nas Constituições, leis e tratados internacionais. Mas
para outros autores como Marcelo Campos Galuppo, os direitos fundamentais são os direitos
que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado momento
histórico, se quiserem que o direito por eles produzidos seja legítimo, ou seja, democrático.”
(Galuppo, 2003, p. 236).
Dessa forma, percebe-se que em âmbito doutrinário há uma gama de conceitos, que
de certa forma se intercomunicam, de maneira que os direitos humanos, em determinado
momento, transformam-se em direitos fundamentais, como conclui o próprio Galuppo:
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
229
“Os Direitos Humanos transformam-se em Direitos Fundamentais somente no momento em que o Princípio do discurso se transforma em Princípio Democrático, ou seja, quando a argumentação prática dos discursos morais se converte em argumentação jurídica limitada pela faticidade do direito, que implica sua positividade e coercibilidade, sem, no entanto, abrir mão de sua pretensão de legitimidade. Isso significa, antes de qualquer coisa, que os Direitos Fundamentais representam a constitucionalização daqueles Direitos Humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história dos discursos morais, que são, por isso reconhecidos como condições para a construção e o exercício dos demais direitos.” (Galuppo, 2003, p.233)”
Neste artigo defende-se a tese de que se faz necessária a constante defesa dos direitos
humanos porque eles carregam consigo um caráter de supranormatividade muito além dos
textos positivados ou de qualquer limitação imposta pela soberania popular, por se tratar de
um direito de todos os povos, sem restrições.
São as Comissões de Verdade o “locus” para o respeito e consolidação dos direitos
humanos e a efetiva possibilidade de reconstrução da memória e verdade de um país e de seu
povo. No entanto, de acordo com a reportagem veiculada no site “Brasil de Fato”, pode-se
observar algumas críticas com relação à implantação da Comissão Nacional da Verdade
brasileira, no que se refere à sua finalidade e atuação:
“A Comissão para muitos abre novos horizontes na luta contra os desmandos, atrocidades e impunidades cometidas durante a ditadura militar, para outros, entretanto, já nasce natimorta, uma vez que subordinada à Lei da Anistia, está esvaziada, impedida e impossibilitada de utilizar o mecanismo da punição. O governo brasileiro reconheceu em 1995 que o Estado foi o responsável por assassinatos, desaparecimentos e tortura durante o regime militar, mas a Lei de Anistia de 1979 proíbe punições. As comissões da verdade não tem poder para responsabilizar ou punir ninguém.” (SANSON, 2012)
No mesmo sentido crítico discorre Frei Betto (2012) para quem
A Comissão da Verdade, nomeada pela presidente Dilma, corre o risco de se transformar em Comissão da Vaidade, caso seus integrantes façam dela alavanca de vaidades pessoais. A comissão atuará sob a obscura luz da injusta Lei da Anistia, promulgada em 1979 e referendada pelo STF em 2010. Esta lei nivela torturadores e torturados, assassinos e assassinados. Ora, como anistiar quem jamais sofreu julgamento, sentença e punição? Não houve “dois lados”. Houve o golpe de Estado perpetrado por militares e a derrubada de um governo constitucional e democraticamente eleito. A ditadura implantada cassou partidos e políticos, e criou um aparelho repressivo (“o monstro”, segundo o general Golbery) que instalou centros de torturas mantido com recursos públicos e privados. (BETTO, 2012, p. 2)
A implementação da Comissão Nacional da Verdade brasileira é um fato consumado
na esfera da defesa dos direitos humanos, dos ideários democráticos e para a realização da
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
230
releitura histórica do país, da mesma forma como as já implantadas Comissões de Verdade
que atuaram nos países do MERCOSUL (Argentina, Paraguai, Uruguai). A dúvida recai é
sobre a legitimidade dessa Comissão e das demais, uma vez que, em um Estado Democrático
de Direito não se operou uma consulta popular para verificar a viabilidade e a aceitação desse
tipo de comissão, pela sociedade brasileira.
A ausência da consulta popular gerou inclusive relatos de descontentamento7 no que
se refere à composição da comissão por parte dos militares e de parentes das vítimas da
ditadura militar. Também não existem relatos da realização de consultas populares às demais
sociedades dos países do MERCOSUL, quando da implantação das suas Comissões de
Verdade, para que se fosse possível, por exemplo, incluir nas mesmas, algumas funções
sugeridas pela opinião popular.
A criação das Comissões de Verdade representa uma grande conquista histórica em
termos de reconstrução democrática. No entanto, a maneira como elas foram implantadas,
sem a consulta à sociedade, retira-lhes parte de sua legitimidade para a consolidação dos
direitos humanos e eficácia dos papéis por elas desempenhados.
A Justiça de Transição é necessária para o salutar desenvolvimento e fortalecimento
das instituições democráticas. De acordo com o Discurso da presidente Dilma Rousseff,
quando da instalação da Comissão de Verdade brasileira:
“A verdade não desaparece quando é eliminada a opinião dos que divergem, a verdade não mereceria este nome se morresse enquanto censurada. A verdade, de fato, não morre por ter sido escondida. Nas sombras somos todos privados da verdade mas não é justo que continuemos apartados dela à luz do dia. Embora saibamos que regimes de exceção sobrevivem pela interdição da verdade, temos o direito de esperar que sob a democracia, a verdade, a memória e a história venham à superfície e se tornem conhecidas sobretudo para as novas e futuras gerações (grifo meu). (...) A palavra verdade é o contrário do esquecimento, é memória e é história. É a capacidade humana de contar o que aconteceu. Ao instalar a Comissão da Verdade não nos move o revanchismo, o ódio ou o desejo de reescrever a história de uma forma diferente do que aconteceu mas nos move a necessidade imperiosa de conhecê-la em sua plenitude, sem ocultamentos, sem camuflagens, sem vetos e sem proibições. É a celebração da transparência da verdade de uma nação que vem trilhando seu caminho na democracia mas que ainda tem encontro marcado consigo mesma(grifo meu). Nesse sentido, e nesse sentido fundamental, essa é uma iniciativa do Estado Brasileiro e não apenas uma ação de governo. Reitero: hoje, celebramos aqui um ato de Estado. (...) Cada um de nós é igualmente responsável por esse momento histórico de celebração, cada um de
7 Conforme reportagem da BBC do Brasil: “A Comissão da Verdade, criada para investigar abusos de direitos humanos cometidos durante a ditadura militar, se reunirá pela primeira vez, em meio a críticas de oficiais das Forças Armadas e de parentes de vítimas. Descontentes com a composição da comissão, oficiais reformados do Clube Naval do Rio de Janeiro anunciaram a formação de uma "comissão paralela" para rebater as eventuais acusações do grupo oficial.” (CABRAL, 2012)
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231
nós deu a sua contribuição para esse marco civilizatório da Comissão da Verdade. Esse é um ponto culminante de um processo iniciado nas lutas do povo brasileiro pelas liberdades democráticas, pela anistia, pelas eleições diretas, pela constituinte, pela estabilidade econômica, pelo crescimento com a inclusão social(grifo meu). Um processo construído passo a passo, durante cada um dos governos eleitos depois da ditadura. A Comissão da Verdade foi idealizada e encaminhada ao Congresso no governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva.Tem sua origem na Lei da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos aprovada em 1995 na gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso.” (TRANSCRIÇÃO PRÓPRIA. Vídeo: Dilma instala a Comissão da Verdade. Disponível em: < http://www.youtube.com/watch?v=5yPBt3GSJuM > Acesso em: 23 set. 2012.)
Percebe-se que a presidente brasileira, em seu discurso, faz várias referências à
necessidade da implantação da Comissão de Verdade como mais um marco de fortalecimento
da democracia, das liberdades democráticas tão arduamente defendidas pelos brasileiros
durante tantos anos, como ela mesma menciona. Todavia, cada país do MERCOSUL possui
uma concepção diferente acerca da necessidade do fortalecimento de suas instituições
democráticas justamente por possuírem estruturas históricas e processos transicionais
semelhantes, mas não idênticos.
Nesse sentido, não é possível afirmar-se que o discurso do executivo brasileiro seja
considerado como parâmetro, em sua totalidade, para o processo de justiça de transição dos
demais países do MERCOSUL e vice-versa.
Como é cediço, a consolidação dos direitos humanos por intermédio da Justiça de
Transição deu-se de maneira diferenciada nos países do MERCOSUL como se vê, por
exemplo, na Argentina. Os direitos humanos, mais especificamente os direitos fundamentais à
memória e à verdade, iniciaram seu processo de consolidação em épocas diferentes em cada
país, com diferentes finalidades e fazem parte de um processo de releitura histórica e
democrática que está em curso até hoje.
É o que afirma Rogério Gesta Leal, referindo-se às Comissões da Verdade:
“Em vários países da América Latina os processos de saída dos regimes militares ao longo das décadas de 1960 a 1990 foram auxiliados por políticas públicas envolvendo a investigação das violações dos Direitos Humanos e Fundamentais e as formas de reparação dos danos causados em face disso. Umas das formas evidenciadoras destas políticas foram as Comissões da Verdade, com distintos aportes de finalidades, mas todas envolvidas em temas comuns decorrentes dos regimes de força e violência (grifo meu) gestados pelos governos militares.” (LEAL, 2012 p. 215)
Iniludível, pois, que se está diante um período de transição ainda inacabado.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise do processo de Justiça de Transição que se desenvolveu, e ainda se
desenvolve perante os países do MERCOSUL, embora guarde uma origem histórica-base,
admite muitas interpretações e possibilidades. Nesse sentido, as Comissões de Verdade
nasceram com finalidades distintas em sua atuação, para cada país, como antes se discorreu.
Essa diferenciação ocorre em virtude de diferentes bases de governo e estrutura de
Estado. As Comissões de Verdade foram criadas com os mesmos objetivos em todos os países
mas produziram e ainda produzirão diferentes efeitos em cada um deles, tendo em vista os
objetivos que se pretendem alcançar pela trajetória transicional dos mesmos. Sendo assim, a
consolidação dos direitos à verdade e à memória afigura-se de forma variável, a ser analisada
em cada país separadamente.
Por outro lado, e levando em consideração outra linha interpretativa, é possível
constatar um ponto de equilíbrio entre os processos transicionais ocorridos e os que estão
ainda ocorrendo no MERCOSUL e que tem favorecido inclusive a integração regional entre
esses países (Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina), ainda que existam algumas diferenças,
embora entrelaçadas por uma aspiração à uma identidade latino-americana.
Dessa forma, as Comissões de Verdade apesar de que não tenham sido criadas com
os mesmos objetivos e finalidades em todos os países, têm projeção na consolidação dos
direitos à verdade e à memória, que deve ser uma máxima dentro dos processos transicionais,
a ser analisada de maneira uniforme no MERCOSUL.
Ainda assim, nem todos os processos transicionais de mesma origem política e
histórica no MERCOSUL alcançaram os efeitos pretendidos perante a sociedade respectiva de
cada país, no que diz respeito à preservação da memória do período e a revelação da verdade.
Nesta linha, retomando a lição de Dalmo de Abreu Dallari (1985), não basta dar às pessoas
consciência de seus direitos sem meios para defendê-los, uma vez que, a eficiência de um
sistema de proteção de direitos está condicionada a atuação conjunta do Legislativo,
Executivo e Judiciário.
As Comissões de Verdade ainda não conseguiram cumprir efetivamente seu papel de
posterior efetivação dos direitos à verdade e à memória, considerando que estão em
construção os espaços para a configuração e exercício de uma efetiva democracia
participativa. É preciso que seja aberto um espaço de deliberação popular, de incitação à
critica, à novas perspectivas e novos pontos de vista, que possam levar a sociedade, em
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
233
determinado momento, a reivindicar por novas maneiras de ver ocorrer a releitura de sua
história política e a concretização da defesa pelos direitos humanos, que não só as opções
ofertadas pelo ente estatal.
A Justiça de Transição só será efetiva, plena e eficaz nos países do MERCOSUL,
sem correr-se o risco de ver verificada uma situação de anomia sócio – jurídica nos países já
citados, hipótese que poderá ser evitada propondo-se um debate democrático com a sociedade
de modo a verificar-se o grau de satisfação da mesma, a partir da implementação do chamado
‘processo de transição’ em cada país, segundo regras procedimentais de direitos
constitucionais processuais.
Por enquanto, o que se visualiza é a criação de Comissões de Verdade justamente
como suplemento a um processo transicional incompleto e, por isto mesmo, inacabado. Tal
situação pode ser comparada à questão da evolução da afirmação dos direitos humanos a que
aponta Fábio Konder Comparato (2001) para quem os direitos humanos foram criados e
estabeleceram-se progressivamente sendo, por esta razão, sempre uma conquista inacabada e
constantemente reconstruída, no lhe acompanha Celso Lafer (1988) em seu livro intitulado “A
Reconstrução dos Direitos Humanos”.
Dessa forma, os direitos à verdade e à memória ainda estão por ser efetivados até os
dias atuais e a redemocratização, sob esta ótica, ainda é um processo em curso nos países que
compõem o MERCOSUL.
Verificar como os Estados do MERCOSUL têm cumprido seu papel no sentido de
contribuir para o melhor desenvolvimento desse processo de Justiça de Transição e quais os
reflexos advindos dos referidos processos transicionais, o papel da democracia, do
constitucionalismo e aquele desempenhado pelas Comissões de Verdade afiguram-se tarefas
árduas, tendo em vista o grau de exigência das pretensões plurais características da
contemporaneidade e do Estado Democrático de Direito, o qual deve ser visto como um
Estado propulsor da defesa dos direitos humanos, essencialmente solidário, fraterno e
consolidador da justiça social.
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LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 As experiências de justiça transicional do Mercosul ......................................... 11
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239
A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL E A LEI DA ANISTIA: SUPERAÇÃO
VERSUS ESQUECIMENTO
A TRANSITIONAL JUSTICE IN BRAZIL AND THE LAW OF AMNESTY:
OVERCOMING AGAINST FORGETTING
Luciana Carrilho de Moraes1
Enquanto o direito estiver sujeito às
ameaças da injustiça – e isso perdurará
enquanto o mundo for mundo –, ele não
poderá prescindir da luta. A vida do
direito é a luta: a luta dos povos, dos
governos, das classes sociais, dos
indivíduos.
(Rudolf Von Inhering, A luta pelo
Direito)
RESUMO O artigo analisa o período ditatorial, especificamente o golpe militar do ano de 1964 e suas
influências, enfatizando os ideais de Francisco Campos, que, almejando a instituição de um
regime antiliberal, centralizador e autoritário, empreendeu as reformas que deram forma e
organização política e institucional ao país. Posteriormente, serão abordadas as medidas da
justiça de transição, norteada por seus princípios basilares, quais sejam restauração dos
mecanismos democráticos, liberdades públicas e garantia dos direitos humanos,
correlacionando-a com a lei da anistia, abarcando as perspectivas penal, tributária e política,
uma vez que tais institutos possuem objetivos opostos: enquanto a justiça de transição luta
contra o esquecimento, a lei da anistia age em prol deste.
1 Graduação Bacharelado em Direito pelo Instituto Camillo Filho (ICF). Pós-graduação em Direito do Trabalho
pela Fundação Luís Flávio Gomes. Advogada associada no escritório Campelo & Campelo. Mestranda em
Direito Constitucional nas Relações Privadas pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Email:
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
240
Palavras-chave: Ditadura militar; Brasil; Justiça de transição; Lei da Anistia. ABSTRACT The article examines the dictatorial period, specifically the military coup of 1964 and its
influences, emphasizing the ideals of Francisco Campos, who, aiming to establish a illiberal
regime, centralized and authoritarian undertook reforms that shaped and political organization
and institution in the country. Later, we will discuss the measures of transitional justice,
guided by its founding principles, namely restoration of democratic mechanisms, civil
liberties and human rights guarantees, correlating it with the law of amnesty, embracing the
perspectives criminal, and tax policy, since these institutes have opposing goals: while the
transitional justice struggle against forgetting the law of amnesty acts in favor of this.
Keywords: Military dictatorship, Brazil; Transitional justice; Amnesty Law. INTRODUÇÃO
O período ditatorial no Brasil (1964-1985) foi marcado por uma série de violações
aos direitos fundamentais mediante a organização de um aparelho repressivo brutal. Este
institucionalizou a prisão, a tortura, o desaparecimento forçado e o assassinato de setores da
população civil, em decorrência da intolerância ideológica, por serem considerados como
opositores ao regime.
A “Revolução DemocráPica” Mpoiou-se nos Atos Institucionais, que fundamentaram
um novo cenário político, baseando-se na doutrina da Segurança Nacional e não mais no bem
comum do povo.
Tal momento histórico recebeu fortes influências dos ideais de Francisco Campos,
que afinado com a tendência e visando a instituição de uma nova ordem nacional, empreendeu
as reformas que deram forma e organização política e institucional ao país, tais como os Atos
Institucionais, que motivaram a queda do então Presidente João Goulart.
Portanto, após o golpe militar, as garantias constitucionais dos cidadãos foram
suprimidas, imperando o “terrorismo de EstMdo”.
Ademais, com o fim do regime militar e a redemocratização do país, a sociedade
brasileira se deparou com o passado, marcado por graves violações aos direitos fundamentais,
surgindo inúmeros questionamentos sobre quais medidas a serem tomadas pelo novo governo,
agora democrático.
Tais indagações buscam ser respondidas pelo que se convencionou denominar de
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
241
Justiça de Transição, na qual um dos seus objetivos é promover a reconciliação das forças
antagônicas do país, evitando, desta feita, que novas catástrofes impostas por regimes
autoritários ou totalitários ocorram.
O presente artigo visa compreender os fatores políticos-jurídicos da suposta
“Revolução GemocráticM”, demonstrando M forte influência de Fco. Campos neste contexto
político, e dando o arcabouço para uma melhor compreensão acerca da implementação da
Justiça de Transição e a aparente (in) compatibilidade para com a Lei da Anistia, uma vez que
a primeira luta contra o esquecimento, elemento norteador deste preceito legal.
Portanto, percebe-se que o desenvolvimento deste será, essencialmente, empírico,
consequentemente o método indutivo terá uma grande importância na produção deste
trabalho. Além disso, é necessário ressaltar que o método hipotético-dedutivo contribuirá para
analisar a compatibilidade ou não entre os institutos em análise, quais sejam Lei da Anistia e a
Justiça de Transição, visando eliminar qualquer discussão a posteriori.
1 PANORAMA HISTÓRICO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
Com o fim da ditadura militar em 1985 e a redemocratização do Estado, a sociedade
brasileira e as autoridades políticas que assumiram o poder estatal depararam-se com a difícil
tarefa de confrontar-se com as arbitrariedades do regime e administrar as consequências dele
decorrentes.
Convencionou-se chamar de Justiça de Transição a estrutura estabelecida com o
objetivo primordial de investigar a maneira pela qual as sociedades, marcadas por passados de
abusos dos direitos humanos, atrocidades maciças ou diferentes formas de traumas sociais
buscam alcançar o restabelecimento e respeito aos direitos humanos.
O conceito é comumente entendido como uma estrutura para confrontar um passado
de abuso como um componente de uma importante política de transformação. Isso
geralmente envolve uma combinação de estratégias complementares de justiça e
‘quMse justiça’, tais como M persecução de perpetradores, estabelecimento de
comissões de verdade e outras formas de investigação do passado; envidando
esforços na busca de reconciliação em sociedades divididas, desenvolvendo um
conjunto de reparações para aqueles que foram mais afetados pelas violações ou
abusos; memorizando e relembrando as vítimas; e reformando um largo espectro de
instituições arbitrárias do Estado (tais como as de segurança pública, polícia ou
forças armadas) numa tentativa de prevenir futuras violações2.
2 BICKFORD, Louis. The encyclopedia of Genocide and crimes against humanity. USA: Macmilillan
Reference, 2004, vol. 3, p. 1045-1047 (todas as traduções são de responsabilidade do autor). As origens desta
área de investigação remontam ao final da Segunda Guerra Mundial, especialmente o Tribunal Internacional
Militar de NuremNerg e os progrMmas de “desnazificação” nM AlemanOMB Desde então forMm sendo
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
242
Nessa linha de intelecção, Fco. Campos3 define o aspecto trágico das chamadas
épocas de transição. In verbis:
A época de transição é precisamente aquela em que o passado continua a interpretar
o presente; em que o presente ainda não encontrou as suas formas espirituais, e as
formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo,
se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela rigidez, com um corpo de
linhas ainda indefinidas ou cuja substância ainda não fixou os seus polos de
condensação. Nós fomos educados pelo passado para um mundo que se supunha
continuar a modelar-se pela sua imagem. O nosso sistema de referências continuou a
ser o que fora calculado para um mundo de relações definidas ou constantes, mas
nós nos vemos confrontados com uma realidade em que as posições não
correspondem às fixadas na carta topográfica. O que chamamos de época de
transição é exatamente esta época profundamente trágica, em que se torna agudo o
conflito entre as formas tradicionais do nosso espírito, aquelas em que fomos
educados e de cujo ângulo tomamos a nossa perspectiva sobre o mundo, e as formas
inéditas sob as quais os acontecimentos apresentam a sua configuração
desconcertante.
Portanto, resta claro o caráter problemático da Justiça de Transição, já que o ritmo da
mudança encontra-se acelerado, e toda e qualquer situação passa a ser provisória, na qual a
atitude de espírito há de ser uma atitude de permanente adaptação à mudança.
Dentro desta seara, vislumbra-se que o instituto da anistia política no Brasil
representa a existência de duas forças opostas: de um lado, a política de segurança nacional
dos militares, e do outro, o movimento para o restabelecimento democrático.
É sabido por todos que o golpe de 1964 instMlou o “terrorismo de Estado” 4, criando
um aparato repressivo especializado composto basicamente pelo Sistema Nacional de
Informação (SISNI) e pelo Sistema de Segurança Interna (SISSEGIN), além de inovações
legislativas, como os Atos Institucionais.
Em suma, estabeleceu-se no Brasil uma estrutura de repressão montada, organizada e
patrocinada pelo Estado, que também utilizava práticas criminosas para perseguir e punir os
desenvolvidos e aperfeiçoados diversos mecanismos para se lidar com a herança da violência de regimes
autoritários ou totalitários. Entretanto, as bases da justiça de transição ganharam mais coerência nos últimos cinte
e cinco anos do século XX, se iniciando especialmente pelos julgamentos de membros da junta militar na Grécia
(1975) e Argentina (1983). 3 CAMPOS, Francisco Luís da Silva. O estado nacional. Disponível em: <http://www.
ebooksbrasil.org/eLibris/chicocampos.html>. Acesso em: 26 nov.2012. 4 Terrorismo de Estado consiste num regime de violência instaurado por um governo, em que o grupo político
que detém o poder se utiliza do terror como instrumento de governabilidade. Caracteriza-se pelo uso da máquina
de repressão do Estado como organização criminosa, restringindo os direitos humanos e as liberdades
individuais, podendo chegar ao extermínio de setores da população (democídio). Tipicamente é utilizado após a
tomada do poder por grupos revolucionários, como forma de combater a contrarrevolução. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Terrorismo_de_Estado>. Acesso em: 20 mar.2013.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
243
opositores ao regime autoritário.
Ademais, é inconcebível tratar deste contexto histórico sem demonstrar a enorme
contribuição de Francisco Campos para a instalação deste regime autoritário. É o que será
demonstrado a posteriori.
1.1 Francisco Campos e o período ditatorial
Francisco Campos, classificado como antiliberal e autoritário, visando à instituição
de uma nova ordem nacional, empreendeu as reformas que deram forma e organização
política e institucional ao país, sendo elas o novo Código de Processo Civil, o Código Penal e
a Lei de Contravenções Penais5.
Nomeado ministro da Justiça dias antes do golpe, foi, então, encarregado por Getúlio
Vargas de elaborar a nova Constituição do país, a de 1937, marcado por características
corporativistas e pela proeminência do poder central sobre os estados e do Poder Executivo
sobre os demais6.
Contudo, em 1941, afastou-se temporariamente do ministério por motivos de saúde.
Seu retorno no ano seguinte, porém, foi obstaculizado pelos anseios da redemocratização que
começavam a ganhar terreno no país, estimulados pela aproximação do Brasil com os países
aliados, no contexto da Segunda Guerra Mundial. E em janeiro de 1943, foi nomeado
representante brasileiro na Comissão Jurídica Interamericana, cargo que exerceria até 1955.
No decorrer do ano de 1944, passou a defender a redemocratização do país e negou o
caráter fascista da Constituição de 1937, ainda em vigência. No ano seguinte, participou das
articulações empreendidas nos meios políticos e militares que levaram ao afastamento de
Vargas e ao fim do Estado Novo.
Em 1964, participou ferreamente, ao lado das Forças Armadas, das conspirações
contra o governo do presidente João Goulart. A ameaça comunista propagada pelos militares,
imprensa, Igreja e oligarquias resultou na adesão da classe média ao então golpe.
Segundo Eric Hobsbawn7, os militares:
Tomaram o poder no Brasil em 1964 contra um inimigo bastante semelhante: os
herdeiros do grande populista brasileiro Getúlio Vargas (1883-1954), que se
5Faculdade Getúlio Vargas. Biografia. Disponível em:
<http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/francisco_campos>. Acesso em: 15 mar.2013. 6 Ibidem.
7 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX; 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 429.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
244
deslocavam para a esquerda no início da década de 1960 e ofereciam
democratização, reforma agrária e ceticismo em relação à política americana.
Após a implantação do regime militar, voltou a colaborar na montagem de um
arcabouço institucional autoritário para o país, participando da elaboração dos dois primeiros
Atos Institucionais baixados pelo novo regime (AI-1 e AI-2) e enviando sugestões para a
elaboração da Constituição de 19678.
Assim, o Ato Institucional nº 1 se colocava como uma intervenção passageira,
justificável apenas para recompor a ordem. Seu mecanismo era simples: eliminava a oposição
que pudesse a vir enfrentar o regime, dando ao Presidente poderes para escolher os
congressistas que ficariam na casa, e estes o elegeriam. Dessa forma, ganhava o regime uma
suposta legitimidade democrática frente à opinião pública internacional.
Ademais, a Lei de Segurança Nacional, fundamento do golpe de 1964, teve seu
embrião no AI-1, sendo posteriormente convertida em legislação (DL nº 314, de 13 de março
de 1967; DL nº 898, de 29 de setembro de 1969), tendo como pressuposto a proteção
nacional.
Abaixo, um discurso de Goffredo Telles Junior9, que demonstra a ideia central de que
a doutrina da Segurança Nacional deveria fornecer poderes às instituições estatais, numa
visível proteção da democracia e da soberania, mesmo que isso importasse em violações aos
direitos humanos:
Defender a ordem jurídica do País contra tudo quanto fora os princípios éticos
tradicionais da civilização brasileira. Para desempenho dessa obrigação, deverão
salvaguardar, em todas as circunstâncias, os interesses básicos do Brasil. Dentro de
um plano de ação permanente, cumpre-lhes estimular e promover o
desenvolvimento econômico do País, assim como combater e extirpar o que possa
debilitar as suas forças produtivas. É dever supremo do Presidente da República, do
Primeiro Ministro e do Senado repelir, com desassombro, tudo quanto representa
ameaça, próxima ou remota, aos direitos indivisíveis de independência e soberania
do Estado brasileiro.
Já o Ato Institucional nº 2, baixado no dia 27 de outubro de 1965, representa uma
resposta aos resultados das eleições que ocorreram no início daquele mês. Com a vitória de
adversários ao regime nas eleições de cinco estados do país, os militares avançaram com a
repressão: foram reabertos os processos de cassação, partidos políticos foram extintos, além
de terem suas sedes invadidas e desativadas e o Poder Judiciário sofreu intervenção do
8 PIRES, Isabel. Os Atos Institucionais: lemNrMnças de umM “DitadurM com G maiúsculo”. DisponWQel em: <
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
245
Executivo10
.
Em 27 de outubro de 1965, o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco,
mandou publicar no Diário Oficial e ordenou o cumprimento do AI-2, suspendendo a
Constituição de 1946, a democracia e as eleições diretas para Presidente da República11
.
Com o AI-2, o Poder Judiciário passou a sofrer intervenção direta do Poder
Executivo. Com isso, civis passaram a ser presos e processados por crimes contra a segurança
nacional, algo que antes cabia apenas à Justiça Civil.
Partidos políticos foram extintos, sendo criados somente dois: a Aliança Renovadora
Nacional (ARENA) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB)12
.
As eleições para o novo Presidente passaram a ser indiretas, sendo transferidas para o
Congresso Nacional, então dominado pela ARENA, sendo um dos inúmeros artifícios para
garantir a permanência dos militares no poder.
Vale ressaltar que o AI-2 durou até 15 de março de 1967, sendo substituído pela
Constituição de 1967, não tendo, contudo, seus efeitos suspensos.
Após o exposto, resta incontroverso afirmar que as perseguições, desaparecimentos
forçados, torturas e assassinatos constituíram o modus operandi da supostM “Revolução
DemocráticM”, já que o “Perrorismo de Estado” é que coincidiu com a reMlidMde em tela.
Por fim, é completamente inconcebível tratar deste polêmico momento histórico sem
mencionar o papel fundamental de Francisco Campos.
2 A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E A ANISTIA
Nas chamadas época de transição, é válido afirmar que mesmo o presente ainda não
consolidado, este já se convertera em passado. Neste sentido13
:
O demônio do tempo, como sob a tensão escatológica da próxima e derradeira
catástrofe, parece acelerar o passo da mudança, fazendo desfilar diante dos olhos
humanos, sem as pausas a que estavam habituados, todo o seu jogo de formas que,
1965, p. 1. 10
SILVA, Tiago Ferreira. Atos institucionais. Disponível em: < http://www.historiabrasileira.com/ditadura-
militar/atos-institucionais/>. Acesso em: 09 jan. 2013. 11
SILVA, Tiago Ferreira. Atos institucionais. Disponível em: < http://www.historiabrasileira.com/ditadura-
militar/atos-institucionais/>. Acesso em: 15 fev. 2013. 12
JUNIOR, Antonio Gasparetto. Aliança renovadora nacional. Disponível em: <
http://www.infoescola.com/ditadura-militar/alianca-renovadora-nacional/>. Acesso em: 15 dez.2012. 13
CAMPOS, Francisco Luís da Silva. O estado nacional. Disponível em: <http://www.
ebooksbrasil.org/eLibris/chicocampos.html>. Acesso em: 26 nov.2012.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
246
nas condições normais, teriam que ser distribuídas segundo uma linha de sucessão
mais ou menos definida e coerente.
A reinserção da democrMcia, “finda” M ditMdura, ocorre mediante um lento processo
que visa restaurar todos os mecanismos democráticos, as liberdades públicas e, especialmente,
a garantia dos direitos humanos, outrora desrespeitados.
Portanto, tais medidas são extremamente necessárias para se evitar novas catástrofes
impostas por regimes autoritários ou totalitários que utilizam o ‘terrorismo’ para MlcMnçMr suas
metas.
A justiça de transição visa promover a reconciliação das forças antagônicas do país,
contudo, tal termo, especialmente na América Latina, tem sido mal interpretado, já que vem
sendo utilizado para justificar a ausência de medidas de justiça, verdade e reparação das
vítimas ou punição dos responsáveis. Neste sentido é que nasceu a Lei da Anistia, tão
polêmica desde sua promulgação.
Vários países da América Latina, tais como Chile, Argentina, Uruguai, Paraguai e
Brasil, que foram vítimas de regimes autoritários / totalitários tiveram leis de anistia
promulgadas com o intuito de alcançar a tão sonhada reconciliação nacional, mas que, na
prática, acabaram por conceder impunidade aos perpetradores de graves violações dos direitos
humanos.
Daí surge uma das maiores polêmicas da atualidade: a concessão de uma anistia que
impeça a responsabilização penal dos perpetradores de crimes no passado é mais conveniente
do que suportar um período de conflito e de transição violenta?
Etimologicamente, anistia advém do grego amnestia14
, que significa esquecimento,
não havendo relação alguma com o perdão. Pressupõe, sobremaneira, um apagamento de
fatos do passado.
A anistia foi uma das bandeiras de luta das oposições ao regime militar instaurado no
Brasil em 1964. Entretanto, se a Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, concedeu a anistia
para os seus opositores, representou, também, uma “Mutoanistia” do regime militar, em
especial aos seus agentes de repressão.
A Lei em comento fora criada com o intuito de pacificar o País e levar ambos os
lados da guerrilha ao esquecimento. Ocorre que esta não se tornou conquista do povo
14
ANISTIA. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Anistia&oldid=34191953>. Acesso em: 22 mar. 2013.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
247
brasileiro, como sonharam os seus formuladores, mas sim um instrumento de revanchismo
imoral.
Conforme já dito, não há como separar a anistia do esquecimento. Mas de que tipo de
esquecimento se está falando quando se refere à anistia trazida pela Lei nº 6.683/79? Quais as
consequências desse esquecimento?
Paul Ricoeur15
entende que M Mnistia é uma “verdadeirM Mmnésia institucional”,
comparando-M com M tentMtiQM de MpMgMr “M mancOM de sangue nMs mãos de I Mdy MMcNeth”:
O que se tem em vista? Sem dúvida alguma, a reconciliação nacional. Nesse
aspecto, é perfeitamente legítimo reparar pelo esquecimento as lacerações do corpo
social. Mas pode ser preocupante o preço que se paga por essa reafirmação (que
chamei de mágica e desesperada) do caráter indivisível do poder soberano.
A anistia se coloca, assim, como contrária ao perdão, na medida em que este exige
memória e Mquela é um esquecimento forçMdo dos conflitos em nome de um “MpaziguMmento”
da sociedade. François Ost16
, em análise desta passagem do texto de Ricoeur, enumera dentre
estes “delitos do esquecimento” o enorme “risco de NMnalizMr o crime ou Minda neutrMlizMr
todos os valores, bons ou maus, colocando-os lado a lado numa medida comum de clemência,
como quando se Mnistia os Mntigos opositores parM melhor Mnistiar os Mntigos opressores”B Foi
esta modalidade de esquecimento que norteou a Lei nº 6.683/79.
É possível afirmar, ainda, que M lei da Mnistia se MproximM da “teoria do mal menor”
17, segundo o qual, diante de dois males, é “nosso” dever optar pelo menor. Portanto, no caso
da anistia, entre o esquecimento dos crimes do passado e uma transição violenta, a teoria do
mal menor conduziria ao esquecimento.
Ademais, é possível correlacionar a fraqueza de tal teoria com um argumento de
Hannah Arendt18
, Mo Mfirmar “que Mqueles que escolhem o mMl menor esquecem muito
rapidamente que escolhem o mal”, podendo Mssim, esquecer-se do mal praticado. Aduz,
ainda:
[...] se olharmos para as técnicas do governo totalitário, é óbvio que o argumento do
“mal menor” [...] é um dos mecanismos embutidos na maquinaria de terror e
15
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora
da UNICAMP, 2007. p. 188. 16
OST, François. O tempo do direito. Bauru, SP: EDUSC, 2005. p. 210. 17
AQUINO, Tomas. In: WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2013. Disponível
em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Tom%C3%A1s_de_Aquino&oldid=34427961>. Acesso em: 22
mar. 2013. 18
ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 99.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
248
criminalidade. A aceitação de males menores é conscientemente usada para
condicionar os funcionários do governo, bem como a população em geral, a aceitar o
mal em si mesmo. Para dar apenas um dentre muitos exemplos: a exterminação dos
judeus foi precedida por uma sequência muito gradual de medidas antijudaicas, cada
uma das quais foi aceita com o argumento de que a recusa a cooperar pioraria ainda
mais a situação – até que se atingiu um estágio em que nada pior poderia
possivelmente ter acontecido19
.
Portanto, torna-se difícil estabelecer uma nítida relação de causa e efeito entre
anistia, estabilidade social e Estado de Direito.
2.1 Desdobramento da justiça de transição
Conforme demonstrado, o fim de uma ditadura e a reinserção da democracia não
acontecem automaticamente, como se espera. Muito pelo contrário, ocorrem mediante um
longo processo de restauração dos mecanismos democráticos, liberdades públicas e garantia
dos direitos humanos.
Em virtude de o período ditatorial ser eivado de instituições corrompidas,
perseguições políticas, desaparecimentos forçados, torturas e homicídios, não bastam cuidar
apenas da vulnerabilidade daqueles que foram perseguidos, mas, sobretudo, estabelecer um
novo sentimento nacional, baseado na esperança e justiça.
É neste sentido que vem à baila os pilares desta justiça, que visam garantir a
recomposição do Estado e da sociedade, possibilitando que cada indivíduo retome o controle
de sua vida.
E não há que se falar em restauração social de toda uma nação sem ter como
alicerces a verdade, a justiça e a memória.
Sem dúvida, o silêncio acerca do que realmente ocorreu no período ditatorial é uma
das maiores lacunas da democracia brasileira, tendo o Estado o dever de permitir o acesso aos
tão almejados arquivos secretos da ditadura, criando mecanismos legais que possibilitem o
acesso à verdade e não mecanismos que compactuem com o esquecimento, tal como a Lei nº
11.111/05.
Realizar a justiça remonta à responsabilização administrativa, civil e penal dos
violadores dos direitos humanos, o que vai de encontro aos diplomas legais que vigoram no
Brasil, a Lei nº 6.683/79 e a EC nº 26/85, que impedem o processamento de agentes estatais
praticantes de tais crimes.
19
Ibid. , p. 99.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
249
E por fim, não há como dissociar a restauração social do direito à memória.
Rediscutir o passado é reconstruí-lo a cada momento, no presente. Fazer isso de
maneira consciente, sem a ilusão positivista de que o passado é estanque, é abrir a
possibilidade de resgatar as promessas não cumpridas e as vozes caladas ao longo da história.
É preciso revisitar o passado e verificar como se dá a relação do Direito com a memória
coletiva de um país, tendo em vista o papel instituidor do que o Direito é dotado e sua
profunda ligação com a tradição, que lhe dá sentido e legitimidade. Colocar as premissas
dessa discussão é não se olvidar que, como já disse o poeta Jorge Luís Borges20
, “o
esquecimento é uma das formas da memória, seu porão difuso, a outra face secreta da
moeda”B
Portanto, não restam dúvidas de que as vítimas do regime militar e seus familiares
merecem, legitimamente, pleitear que suas histórias pessoais, até então relegadas à
clandestinidade, sejam integradas à história coletiva do povo brasileiro. Mas também se
impõe questionar até que ponto esse direito à memória se conflita com o direito dos
criminosos do regime militar em ter seus crimes esquecidos, tanto em virtude da anistia,
quanto do lapso temporal entre os delitos e a presente data.
2.2 Desdobramento do instituto da anistia
Para uma melhor compreensão, vale esclarecer que no âmbito do Direito, a anistia
envolve três perspectivas: penal, tributária e política.
Por anistia penal, Cezar Bitencourt21
entende ser um “esquecimento jurídico do
ilícito e tem por objeto fatos (não pessoas) definidos como crimes, de regra, políticos,
militares ou eleitorais, excluindo-se, normalmente, os crimes comuns”B
A anistia tributária representa uma medida de política fiscal do ente político que
fixou determinado tributo, visando desonerar os sujeitos passivos tributários de infrações
administrativas, sem extinguir a cobrança dos tributos.
E, por último, a anistia política, que visa à solução de um conflito advindo de um
momento de grave perturbação institucional, tais como revoltas e insurreições no âmbito
interno de um Estado.
20 BORGES, Jorge Luis. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 21
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. Parte geral. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. V. 1.
p. 718.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
250
E este tipo de anistia deve ser observado nos diferentes diplomas legais: i) Lei nº
6.683/79, que representa um acordo político de esquecimento; ii) Constituição Federal de
1988, regulada pela Lei nº 10.559/02, que trouxe uma nova visão sobre tal instituto, não se
encaixando nem no esquecimento nem no perdão, já que visa reparar o anistiado dos prejuízos
suportados por razões políticas, não havendo relação nenhuma para com os crimes políticos.
Portanto, baseando-se na Constituição, seria mais adequado falar-se em reparação do
que concessão de anistia política, uma vez que todo e qualquer ato estatal de perseguição deve
estar intimamente relacionado à ideologia repressora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo visa demonstrar o processo de transição democrática, que
corresponde à reconfiguração de um determinado Estado, passando de um regime ditatorial
para o democrático, demonstrando como ocorreu o enraizamento burocrático-autoritário e em
qual panorama nacional essa nova ordem foi instalada.
Tratar acerca da crise institucional brasileira dos anos 1960 a 1985 sem
contextualizá-la com as influências de Francisco Campos seria compactuar com uma análise
superficial deste momento histórico, uma vez que se adotando um ideário antiliberal,
centralizador e autoritário, teve um papel notável, sobretudo na sistematização da Nação,
mediante a elaboração de importantes diplomas legais, tais como os Atos Institucionais (AI-1
e AI-2) e a Constituição Federal de 1937, corroborando com o entendimento de que há sim
um pensamento constitucional genuinamente brasileiro.
Resta incontroverso conceituar a Justiça de Transição como uma estrutura para
confrontar um passado de abuso (período ditatorial) como um componente de uma importante
política de transformação, a qual a Lei da Anistia possui um aspecto fundamental.
Contudo, o presente diploma legal encontra-se eivado pela política do esquecimento,
contra sensu da superação, impedindo que as vítimas do regime militar, privadas do direito de
tornarem públicas suas memórias, não sofram o trabalho de luto necessário à assimilação
destas, através do dissenso.
Por fim, felizmente, o panorama atual volta-se para o fenômeno da Justiça de
Transição, que com seus pilares de sustentação, quais sejam, a busca pela verdade até então
omitida, mediante a revelação dos arquivos secretos, o reencontro com o passado,
possibilitando sua superação e a investigação dos crimes contra a humanidade, acarretando na
responsabilização dos agentes da repressão, aponta para um caminho de acerto de contas com
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
251
o passado, resgatando a ordem democrática, mediante a reconfiguração das instituições,
voltando-se para a concretização dos direitos humanos.
Enfim, pretende-se que a nação saia de um estado de desesperança para o
encantamento com a vida.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
255
A DECISÃO DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO DA GUERRILHA DO ARAGUAIA A LEI DE ANISTIA BRASILEIRA E A
OBRIGAÇÃO DE INVESTIGAR E PUNIR AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS RATICADAS PELA DITADURA MILITAR NO BRASIL
Samyra Naspolini
Marcio de Sessa
LA DECISIÓN DE LA CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS EN EL CASO DE LA GUERRILLA ARAGUAIA E LA LEY BRASILEÑA DE AMNISTÍA Y OBLIGACIÓN DE INVESTIGAR Y SANCIONAR LAS VIOLACIONES DE LOS DERECHOS HUMANOS POR LA DICTADURA MILITAR EN BRASIL
RESUMO O objeto de pesquisa deste artigo é a decisão da Corte em paradigmática sentença proferida em 24 de
novembro de 2010, no caso Lund e outros versus Brasil, a qual condenou o Estado brasileiro a
implementar uma série de medidas com vistas a indenizar os familiares das vítimas dos fatos ocorridos
na Guerrilha do Araguaia e esclarecer e evitar que novos fatos similares aconteçam.O objetivo da
pesquisa é investigar a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso em tela para
verificar qual o entendimento firmado com relação à sua competência para o julgamento do caso, a Lei
de Anistia brasileira e e a condenação dada ao Brasil de investigar e punir graves violações de
direitos humanos ocorridos no período da ditadura militar.O método de abordagem a ser adotado
no desenvolvimento da presente pesquisa será o indutivo, numa perspectiva histórica,crítica e
comparativa.
Palavras chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos; Guerrilha do Araguaia; Lei de
Anistia;
RESUMEN:
El objeto de estudio de este trabajo es la decisión de la Corte en el juicio paradigmático de 24 de
noviembre de 2010, donde Lund y otros contra Brasil, que condenó al gobierno brasileño a
implementar una serie de medidas destinadas a compensar a las familias de víctimas de los
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
256
acontecimientos en la Guerrilla Araguaia y aclarar y evitar nuevos hechos aconteçam.O mismo
objetivo de la investigación es analizar la decisión de la Corte Interamericana de Derechos Humanos
en el caso en que para comprobar el entendimiento alcanzado con respecto a su capacidad para juzgar
la caso, la Ley de Amnistía brasileña eea condena dado a Brasil para investigar y sancionar graves
violaciónes de los derechos humanos que ocurrieron durante la dictadura militar.O método de enfoque
que se adopte en el desarrollo de esta investigación será inductivo, desde una perspectiva histórica y
crítica comparativa.
Palabras clave: la Corte Interamericana de Derechos Humanos; Guerrilla Araguaia; la Ley de
Amnistía;
SUMÁRIO: Introdução; 1 A importância Histórica da Decisão da Corte; 2 Competência
da Corte Interamericana; 3 Lei de Anistia Brasileira e Controle de Convencionalidade;
4 Obrigação de investigar e punir graves violações de direitos humanos no período da
ditadura militar; Referências.
Introdução
O presente artigo é o relatório parcial de uma pesquisa que fará parte de uma
Coletânea a ser elaborada pelo Grupo de Pesquisa em Memória, Verdade e Justiça de
Transição, formado por professores e estudantes da área jurídica e outras afins da UNINOVE,
PUC e USP e Coordenado pelo Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira.
O objetivo do Grupo de pesquisa é produzir conhecimento para embasar o
Observatório do Direito à Memória, Verdade e Justiça, que segundo o seu Coordenador
Executivo Rogério Gesta Leal “pretende investigar, de maneira sistemática e coordenada, os
temas da Memória, Verdade e da Justiça no Brasil envolvendo as lutas políticas ocorridas
entre os anos 1964 a 1985” para propor medidas e políticas públicas sobre o assunto para o
Brasil, compatíveis com o estado democrático de Direito.
O objeto da pesquisa maior dos autores são as decisões da Corte Interamericana de
Direitos Humanos – CIDH nos casos de violações de Direitos Humanos praticados por
ditaduras militares nos países da América Latina nas décadas de 60 e 70, para que o Grupo
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
257
possa, posteriormente, traçar um paralelo com o caso brasileiro e verificar o que pode ser
proposto para o Brasil.
Assim, o objeto de pesquisa deste artigo é a decisão da Corte em paradigmática
sentença proferida em 24 de novembro de 2010, no caso Lund e outros versus Brasil
(Guerrilha do Araguaia), a qual condenou o Estado brasileiro a implementar uma série de
medidas com vistas a indenizar os familiares da vítimas dos fatos ocorridos na Guerrilha do
Araguaia e esclarecer e evitar que novos aconteçam.
O Caso Araguaia, foi resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre
1972 e 1975 naquela região com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto
da ditadura militar do Brasil (1964–1985). Consistiu na detenção arbitrária, tortura e
desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e
camponeses da região.
O objetivo da pesquisa é investigar a decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos no caso em tela para verificar qual o entendimento firmado com relação à sua
competência para o julgamento do caso, a Lei de Anistia brasileira e a condenação dada ao
Brasil de investigar e punir graves violações de direitos humanos ocorridos ni período da
ditadura militar.
O método de abordagem a ser adotado no desenvolvimento da presente pesquisa será o
indutivo, numa perspectiva histórica,crítica e comparativa.
1 A importância Histórica da Decisão da Corte
Em 26 de março de 2009 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu à
Corte uma demanda contra o Brasil, que se iniciou pelo Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, em nome de pessoas
desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares. Após somaram-se ao
caso a Comissão de familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Instituto de Estudos da
Violência do estado, a senhora Angela Harkavy e o Grupo Tortura Nunca Mais. Em 6 de
março de 2001, a Comissão expediu o Relatório de Admissibilidade e, em 31 de outubro de
2008, aprovou o Relatório de Mérito o qual continha determinadas recomendações ao Estado.
Após vários trâmites e prazos concedidos ao Brasil para que informasse sobre as ações
executadas com o propósito de implementar as recomendações da Comissão, isso não foi feito
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
258
de forma satisfatória, o que levou a Comissão a submeter o caso à jurisdição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, enfatizando que esta seria “uma oportunidade
importante para consolidar a jurisprudência interamericana sobre as leis de anistia com
relação aos desaparecimentos forçados e à execução extrajudicial e a consequente obrigação
dos Estados de dar a conhecer a verdade à sociedade e investigar, processar e punir graves
violações de direitos humanos”1.
A sentença proferida pela Corte, além da importância histórica, enfrenta e resolve uma
série de questões de suma importância para o Direito Internacional dos Direitos Humanos,
dentre as quais o presente artigo destaca a questão da competência da Corte e a
responsabilidade do Estado brasileiro de julgar e punir os crimes contra os Direitos Humanos
praticados no período da ditadura.
Interessante pontuar que a Corte, ao final da sentença, faz algumas importantes
recomendações ao Brasil no sentido de esclarecer as violações aos direitos humanos
ocorridos não só no Caso Araguaia, mas durante o período da ditadura militar, punir os
responsáveis e com um intuito pedagógico, atuar preventivamente para que novas violações
não aconteçam.
Neste sentido decidiu que o Brasil deve realizar todos os esforços para determinar o
paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a
seus familiares e realizar a sistematização e publicação de toda a informação sobre a
Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos
ocorridas durante o regime militar, o que serviu de base para a criação da Comissão de
Memória e Verdade.
2 Competência da Corte Interamericana
O processo de universalização e internacionalização dos Direitos Humanos trouxe a
necessidade de implementação desses mediante a criação de um Sistema Internacional de
proteção, monitoramento e controle2, o qual foi dividido em Sistema Global de proteção e
Sistema Regional de proteção, esses não substituem os tribunais internos e não são tribunais
1 Sentença disponível em http://www.corteidh.or.cr
2 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
259
de recurso ou cassação, ao contrário, trata-se de direito subsidiário e suplementar ao direito
nacional. O Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses direitos e a
comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária, porém os atos internos dos
Estados podem vir a ser objeto de exame dos tribunais internacionais.3
Tal entendimento pode ser encontrado neste julgamento da Corte Interamericana de
Direitos Humanos ao afirmar que o julgamento quanto à violação ou não, pelo Estado, de suas
obrigações internacionais, é sim de sua competência, podendo revisar, inclusive, as decisões
de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade com a Convenção Americana.4
O Sistema Global de proteção é composto pela Carta das Nações Unidas de 1945
integrada posteriormente pela Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 e pelos
dois Pactos Internacionais de 1966: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.
Por sua vez, os Sistemas Regionais buscam internacionalizar os Direitos Humanos no
plano regional. Enquanto o Sistema Global fornece um parâmetro normativo mínimo, o
regional deve ir além, buscando concretizar os direitos já existentes e adicionar novos, tudo
isso levando em consideração as diferenças entre as regiões. Atualmente a Europa, a América
e a África já possuem aparato jurídico próprio.5
A competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos está prevista no artigo
62.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o qual reza que será levada em
consideração a data de reconhecimento da competência por parte do Estado, os termos em que
se deu esse reconhecimento e o princípio de irretroatividade, disposto no artigo 28 da
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969
Na sua contestação, o Brasil preliminarmente alegou a incompetência da Corte para
julgar o caso, uma vez que o reconhecimento da competência da Corte só se deu em 10 de
dezembro de 1998 e, em sua declaração, indicou que o Tribunal só teria competência para os
“fatos posteriores” a esse reconhecimento. A Corte entendeu que realmente não poderia
exercer sua competência quando os fatos alegados ou a conduta do Estado, sejam anteriores a
esse reconhecimento da competência. Por esta razão, ficou excluída a competência da Corte
para julgar a execução extrajudicial da senhora Maria Lúcia Petit da Silva, cujos restos
3 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008. 4 Sentença disponível em http://www.corteidh.or.cr 5 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e justiça internacional. São Paulo: Saraiva, 2007.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
260
mortais foram identificados em 1996, bem como qualquer outro fato anterior a esse
reconhecimento.
Porém, a Corte se julgou competente para analisar os desaparecimentos forçados, uma
vez que em sua jurisprudência já estabeleceu que os atos de caráter contínuo ou permanente
perduram durante todo o tempo em que o fato continua, ou seja, o ato de desaparecimento se
inicia com a privação da liberdade da pessoa e a falta de informação sobre seu destino, e
permanecem até quando não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e os fatos não
tenham sido esclarecidos.
A Corte também entendeu que tem competência para analisar os supostos fatos e
omissões do Estado, no que diz respeito à falta de investigação, julgamento e sanção das
pessoas responsáveis pelos desaparecimentos forçados e execução extrajudicial; bem como
pelas restrições ao direito de acesso à informação, e o sofrimento dos familiares.
3 Lei de Anistia Brasileira e Controle de Convencionalidade
Os Estados latino-americanos alegaram a anistia como obstáculo para investigar e, se
fosse o caso, punir os responsáveis por violações graves aos direitos humanos. Em sentido
contrário, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, os órgãos das Nações Unidas e outros organismos universais e regionais
de proteção dos direitos humanos são unânimes em declarar a incompatibilidade das leis de
anistia, relativas a graves violações de direitos humanos com o Direito Internacional e as
obrigações internacionais dos Estados. O Comitê de Direitos Humanos, em sua Observação
General 31, manifestou que:
os Estados devem assegurar-se de que os culpados de infrações reconhecidas como crimes no Direito Internacional ou na legislação nacional, entre eles a tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, as privações de vida sumárias e arbitrárias e os desaparecimentos forçados, compareçam perante a justiça e não tentem eximir os autores da responsabilidade jurídica, como ocorreu com certas anistias6.
Na sua contestação, o Brasil, sustentando a falta de esgotamento dos recursos internos,
alegou que seria preciso dar tempo para que o Supremo Tribunal Federal se pronunciasse na
6 Observação Geral 31: Natureza da obrigação jurídica geral imposta aos Estados Partes no Pacto. U.N. Doc. CCPR/C/21/Rev.1/Add.13, 26 de maio de 2004, par. 18.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
261
ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental interposta pela Ordem dos
Advogados do Brasil em outubro de 2008.
Na ação, a OAB solicitou que o Supremo Tribunal Federal conferisse à Lei de Anistia
uma interpretação conforme com a Constituição Federal de 1988, com o objetivo de declarar
que a anistia concedida por essa lei aos crimes políticos ou conexos não se estenderia aos
crimes comuns praticados pelos agentes de repressão contra opositores políticos, durante o
regime militar.
Mais tarde, o Brasil comunicou que, em 29 de abril de 2010, o Supremo Tribunal
Federal considerou improcedente a Arguição de Descumprimento No. 153, declarando que “a
Lei de Anistia representou, em seu momento, uma etapa necessária no processo de
reconciliação e redemocratização do país” e que “não se tratou de uma autoanistia”.
Baseado neste fato novo, o Brasil questionou a competência da Corte Interamericana
para revisar decisões adotadas pelas mais altas cortes de um Estado. Alegou que com a
decisão da Arguição de Descumprimento No. 153, ocorreu o esgotamento dos recursos
internos, porém devido o caráter subsidiário da atuação dos sistemas regionais de proteção aos
Direitos Humanos, estes não podem atuar como tribunais de alçada e julgar alegados erros, de
fato ou de direito, cometidos por tribunais domésticos que tenham atuado dentro de suas
competências.
Acertadamente a Corte Interamericana afirmou que o julgamento quanto à violação ou
não, pelo Estado, de suas obrigações internacionais, é sim de sua competência, podendo
revisar, inclusive, as decisões de tribunais superiores, para estabelecer sua compatibilidade
com a Convenção Americana.
Essa decisão da Corte consagra o processo de universalização dos Direitos Humanos
iniciado após a Segunda Guerra mundial, quando os Direitos Humanos tornam-se uma
legítima preocupação internacional, encerrando-se a concepção de que a forma como o Estado
tratava seu povo era concebida como um problema de jurisdição doméstica devido à
soberania.
A necessidade de implementação dos Direitos Humanos mediante a criação de um
sistema internacional de monitoramento e controle não substitui os tribunais internos e não
são tribunais de recurso ou cassação, mas os atos internos dos Estados podem vir a ser sim,
objeto de exame dos tribunais internacionais, dessa forma a relação do Estado com os seus
nacionais passa a ser uma problemática internacional.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
262
Neste sentido, a Corte entendeu que o exame da Lei de Anistia para saber se está de
acordo com a Constituição Nacional do Estado é questão de direito interno que não lhe
compete, porém é sua competência e dever realizar um controle de convencionalidade, ou
seja, analisar a compatibilidade, ou não, daquela lei com as obrigações internacionais do
Brasil contidas na Convenção Americana.
No caso do Uruguai7o Comitê de Direitos Humanos entendeu que não se pode aceitar
a postura de um Estado de não estar obrigado a investigar violações de direitos humanos
cometidas durante um regime anterior, em virtude de uma lei de anistia, e reafirmou a
incompatibilidade com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das leis que
anistiam violações graves de direitos humanos, o que foi acatado pela Suprema Corte
Uruguaia.
Do mesmo modo, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina decidiu, no Caso
Simón, declarar nulas as leis de anistia que obstaculizavam a investigação, julgamento e
eventual condenação de fatos que implicavam violações dos direitos humanos8:
Também a Corte Suprema de Justiça do Chile concluiu que as anistias a respeito de
desaparecimentos forçados, abrangeriam somente um determinado tempo e não toda a
duração do desaparecimento forçado ou seus efeitos9:
No mesmo sentido, a Corte Suprema de Justiça da Colômbia salientou que: “as normas
relativas aos [d]ireitos [h]umanos fazem parte do grande grupo de disposições de Direito
Internacional Geral, reconhecidas como normas de [j]us cogens, razão pela qual aquelas são
inderrogáveis, imperativas [...] e indisponíveis”10.
Os exemplos citados demonstram que vários países da América Latina têm se
pronunciado pela incompatibilidade das leis de anistia sobre graves violações de direitos
humanos com as obrigações internacionais dos Estados que as emitem.
A partir de tais exemplos a Corte Interamericana, no caso brasileiro reitera que
concorda com o estabelecido unanimemente pelo Direito Internacional e pelos precedentes
7 Hugo Rodríguez versus Uruguai. Comunicação No. 322/1988, UN Doc. CCPR/C/51/D/322/1988 8 Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina. Caso Simón, Julio Héctor e outros s/privação ilegítima da liberdade, etc., Causa 17.768, Resolução de 14 de junho de 2005. 9 Corte Suprema de Justiça do Chile. Decisão do Plenário a respeito da instância que examinará a aplicação da Lei de Anistia no caso do sequestro do mirista Miguel Ángel Sandoval, Caso 2477, 17 de novembro de 2004, Considerando 33. 10 Corte Suprema de Justiça da Colômbia, Câmara de Cassação Penal. Caso do Massacre de Segovia. Ata número 156, de 13 de maio de 2010, p. 68.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
263
dos órgãos dos sistemas universais e regionais de proteção dos direitos humanos,
considerando que:
“são inadmissíveis as disposições de anistia, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como a tortura, as execuções sumárias, extrajudiciais ou arbitrárias, e os desaparecimentos forçados, todas elas proibidas, por violar direitos inderrogáveis reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos”11.
Assim, a Corte entendeu que as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem
a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a
Convenção Americana e não podem ser obstáculo para a investigação dos fatos nem para a
identificação e punição dos responsáveis. Portanto o Brasil deve realizar a investigação penal
dos fatos ocorridos durante a ditadura militar, com o objetivo de esclarecê-los, determinar as
responsabilidades penais e aplicar as devidas sanções.
4 Obrigação de investigar e punir graves violações de direitos humanos
Na sentença, a Corte assevera que a obrigação de investigar violações de direitos
humanos encontra-se dentro das medidas positivas que os Estados devem adotar para garantir
os direitos reconhecidos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. O dever de
investigar é uma obrigação que faz com que uma vez que as autoridades estatais tenham
conhecimento do fato, devem iniciar, uma investigação séria, imparcial e efetiva. Em especial
decorre da obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção Americana. Essa
obrigação implica no dever dos Estados Parte de organizar todo o aparato governamental de
maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos
direitos humanos. Assim, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos
direitos humanos reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, o restabelecimento, caso
11Caso Barrios Altos versus Peru. Mérito. Sentença de 14 de março de 2001. Série C No. 75, par. 41; Caso La Cantuta, supra nota 160, par. 152, e Caso Do Massacre dos Dois Erres, supra nota 186, par. 129.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
264
seja possível, do direito violado e, se for o caso, a reparação dos danos provocados pela
violação dos direitos humanos.
No mesmo sentido, no sistema universal, o Comitê de Direitos Humanos das Nações
Unidas estabeleceu que os Estados têm o dever de investigar as violações ao Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos. Considerou, também, que a investigação penal e o
consequente julgamento constituem medidas corretivas necessárias para as violações de
direitos humanos. Em casos de desaparecimentos forçados, o Comitê concluiu que os Estados
devem estabelecer o que ocorreu com as vítimas desaparecidas e levar à justiça as pessoas por
eles responsáveis.
Ao elaborar relatório sobre os fatos ocorridos durante os regimes ditatoriais na
América Latina, a antiga Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas asseverou que
“exigir responsabilidade dos autores de violações graves dos direitos humanos é um dos elementos essenciais de toda reparação eficaz para as vítimas e um fator fundamental para garantir um sistema de justiça justo e equitativo e, em definitivo, promover uma reconciliação e uma estabilidade justas em todas as sociedades, inclusive nas que se encontram em situação de conflito ou pós-conflito, e pertinente no contexto dos processos de transição”12.
Assim, em vários relatórios das Nações Unidas pode-se encontrar que a obrigação de
respeitar e fazer respeitar as normas internacionais de direitos humanos inclui a obrigação do
Estado em prevenir, mas também o dever de investigá-las e, quando seja necessário, adotar
medidas contra os autores dessas violações.
Assim, julgou o Estado brasileiro responsável pelo desaparecimento forçado e,
consequentemente pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à
vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, previstos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Também considerou o Estado responsável pela violação dos direitos às garantias
judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos, devido à falta de investigação dos fatos e pela falta de julgamento e sanção
dos responsáveis.
Considerou ainda, o Estado responsável pela violação do direito à liberdade de
pensamento e de expressão previsto no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, pela violação do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito de
conhecer a verdade sobre os fatos ocorridos. Também considerou o Estado responsável pela
12 Comissão de Direitos Humanos. Impunidade. Resolução 2005/81, 61° período de sessões, U.N. Doc. E/CN.4/RES/2005/81, de 21 de abril de 2005.
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265
violação dos direitos às garantias judiciais estabelecidos no artigo 8.1 da Convenção
Americana, por exceder o prazo razoável para a apuração dos fatos.
A polêmica maior, encontra-se na questão sobre a punição criminal, devido à anistia e
à prescrição. Em artigo sobre o tema, André de Carvalho Ramos13 propondo a teoria do duplo
controle ou crivo dos direitos humanos, reconhece que no Brasil os direitos humanos possuem
uma dupla garantia, a constitucional e a da Convenção Americana e que ainda que o STF
tenha decidido pela anistia e prescrição, o controle de convencionalidade realizado pela Corte
entende que estas são sem efeito no caso em tela.
Segundo o autor, como as teses de anistia e prescrição “não convenceram o controle
de convencionalidade e dada a aceitação constitucional da internacionalização dos direitos
humanos, não podem ser aplicadas internamente.”
Conclusão
Após analisados os argumentos da Corte com relação às questões relativas à sua
competência para a análise do caso, à Lei de Anistia brasileira e a condenação à obrigação de
investigação e punição das violações aos direitos humanos, conclui-se que cumpriu a Corte o
seu papel de órgão de proteção dos Direitos Humanos. Sua decisão tem força jurídica
vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento.
A efetividade da proteção dos Direitos Humanos no Brasil está absolutamente
condicionada ao aperfeiçoamento das medidas nacionais de implementação e ao resgate do
compromisso do Estado com as vítimas das violações aos Direitos Humanos ocorridas no
período da ditadura militar. As reminiscências do regime autoritário, com uma cultura de
violência e impunidade, ainda é muito presente no nosso país e precisa ser passada a limpo.
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DITADURA E LUGARES DE MEMÓRIA: AS DIRETRIZES DO MERCOSUL E O
DIREITO AO PATRIMÔNIO CULTURAL
DICTATORSHIP AND SITES OF MEMORY: MERCOSUL’S GUIDELINES AND
THE RIGHT TO CULTURAL HERITAGE
Leandro Franklin Gorsdorf1
RESUMO
O presente trabalho visa no contexto da busca da Memória e da Verdade, empreendido nestes
últimos anos pelo Estado e sociedade civil no Brasil, abordar a importância da constituição
dos Lugares de Memória para avivar uma história invisibilizada no período da ditadura. O
conceito de Lugares de Memória trazido pelo historiador Nora contribui na construção e
percepção como estes lugares podem representar a materialização do direito ao patrimônio
cultural brasileiro e contribuir na formação do ideário nacional.Resgata-se portanto a
preocupação no âmbito do Mercosul deste tipo de ação vinculado a Memória e Verdade dos
Estados Nacionais membros e os parâmetros internacionais construídos neste espaço para a
elaboração de políticas públicas dos Lugares da Memória as quais o Estado Brasileiro se
comprometeu a adotá-las em âmbito nacional.
PALAVRAS CHAVES
Lugares de Memória; Mercosul;Direito ao Patrimônio Cultural
ABSTRACT
Given the recent context of a search for Truth and Memory by civil society and the
Government in Brazil, this article aims to tackle the importance of constituting Sites of
Memory to give life to a history that was made invisible during the dictatorship. The concept
of Sites of Memory, as suggested by the historian Nora, contributes to the construction and
perception of how these places can represent the materialization of the right to cultural
1 Professor de Prática Jurídica em Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná(UFPR). Doutorando em
Direito da Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Membro Pesquisador do Observatório
de Direitos Humanos da UFPR e membro do Fórum Paranaense Justiça, Memória e Verdade.
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272
heritage in Brazil and contribute to the formation of the national ideal. The article, therefore,
reclaims the concern for actions linked to Truth and Memory from the Mercosul member
states and the international standards developed in this field for the establishment of public
policies related to Sites of Memory, which the Brazilian Government is committed to
adopting at the national level.
KEYWORDS
Sites of Memory; Mercosul; Right to Cultural Heritage
1.INTRODUÇÃO
Pensar a redemocratização no Brasil nos remete principalmente as questões da
transição do regime da ditadura a democracia e suas consequências e as formas de pensar a
história de um país. Por isso na contramão de uma política do esquecimento deve se
implementar uma política da memória.
Marcas, Vestígios, Histórias, Testemunhos, Documentos são fontes para uma
possível aproximação da realidade do período autoritário em nosso país. Como estamos em
tempos da Memória e da Verdade, discute-se sobre a possibilidade de preservação e
permanência destes elementos para o reavivamento de uma história que se tentou apagar.
No Brasil tem se empreendido um trabalho de reconstrução de Memória e da
Verdade por meio das mais diversas manifestações, entre elas, a discussão sobre os Lugares
de Memória. Nas cidades onde a repressão e a resistência foram mais significativas, alguns
lugares apenas por sua existência física, emanam uma carga simbólica sobre o lugar que
ocuparam naquele período.
Os Lugares de Memória se inserem na reconstrução da verdade sobre o período
da Ditadura, compondo e (re)compondo o imaginário nacional e a identidade do povo
brasileiro como Nação.
Por estes motivos os Lugares da Memória devem ser compreendidos como o
exercício dos direitos culturais plasmados na Constituição Brasileira, seja como direito ao
patrimônio cultural material ou imaterial.
Para pensar em como o Estado Brasileiro, por meio das mais diferentes
instancia federativas podem contribuir para construção de políticas públicas de promoção e
garantia do Direito a Memória e a Verdade, e consequentemente do direito a patrimônio
cultural, através dos Lugares da Memória, o Mercosul iniciou uma discussão sobre
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273
parâmetros comuns para a implementação destas políticas públicas de Lugares da Memória
nos diversos países membros.
Este artigo pretende trazer alguns desses elementos levantados num documento
elaborado pelo Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul sobre os
Lugares da Memória, que viabiliza a concreção do direito ao patrimônio cultural vinculado a
rememoração da época da Ditadura.
2.MEMÓRIA E DITADURA:DISPUTAS PELA SIGNIFICAÇÃO DA HISTÓRIA
O entrelaçamento entre o presente e o passado para apontar caminhos para o
Direito numa perspectiva futura, deve partir do exercício da memória, pois “a relação entre
hoje e ontem não é unilateral: em um processo eminentemente dialético, o presente ilumina o
passado, e o passado iluminado torna-se força no presente.” (LOWY, 2005, p. 61)
Nesta mesma linha, LE GOFF assume que este processo deve garantir uma
memória que sirva para a emancipação, pois na história, é onde cresce a memória, que por sua
vez a alimenta, que procura salvar o passado para servir o presente e futuro. (LE GOFF,1996,
p.547-548)
Ainda, “a memória é ao mesmo tempo meio de significação social e temporal dos
indivíduos, grupos e instituições, e daí sua grande importância na geração do senso comum.
Socialmente, a memória parcialmente compartilhada promove a formação de uma narrativa
que inclui diferentes coletivos numa mesma história. Temporalmente torna operacionalmente
funcional o elo que liga o passado ao futuro, tensionando e agregando significado ao
momento presente (ARENDT, 2000, p. 78), tanto nos planos individuais como nos planos
coletivos.
O ato de rememorar, não é somente o fato de acolher uma imagem do passado, como
também de busca-la, da fazer alguma coisa, do exercício da memória.(RICOUER, 2007, p.71)
Ao pretender exercitar a memória, porém com a visão de que por estarmos nos
debruçando sobre tema pungente da nossa democracia atual, é necessário recuperá-la não de
uma forma naturalizada a história, como se fosse resultado de um desenvolvimento
necessário, ao qual não poderia ter impedido, pois correríamos o risco de negá-lo. (ARENDT,
2005, p.320)
Quando falamos de processos como a discussão da Lei de Anistia, da instalação da
Comissão de Memória e Verdade e da reparação pelas violações de direitos humanos
cometidas no período da ditadura, se faz presente a inscrição da narrativa daqueles que
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resistiram a este processo na história com a finalidade de reconstruí-la a partir de diversos
olhares.
No Brasil, como em outros países que passaram por estados ditatoriais, os
governos “fazem uso de uma espécie de esquecimento de encomenda (não nos lembramos das
coisas más), por razões respeitáveis que visam a manutenção da paz social.” Porem a pergunta
é sobre qual a linha de fronteira entre anistia e amnésia? (TORELLY, 2009, p. 92).
É assim que surge a necessidade de afirmação e avivamento de memórias sociais
que somem as vivências individuais e coletivas de violações passadas ao processo reflexivo
de superação do legado autoritário e consolidação do Estado Democrático de Direito,
fomentando o surgimento de narrativas reflexivas que, ao dialogar com o autoritarismo,
promovam o pluralismo, a democracia e os direitos humanos traduzidos em uma cultura que,
por conter este senso comum democrático, repele o autoritarismo, consolidando a democracia
desde um ponto de vista prático (e não estritamente jurídico) e possibilitando que os
elementos não conscientes da memória não sejam vinculados com a violência do passado.
(TORELLY, 2009, p. 105)
Para tanto, devemos entender que a recuperação da memória não se faz, portanto
sem o confronto de valores, “contrapor os valores que nos guiaram e os valores que erigiram a
fundação de regimes repressivos, que somente foram passíveis de serem implementados pela
violência armada.” (GENRO; ABRÃO, ,2009, p. 19)
A história se converteu no campo preferencial para as disputas sobre a
legitimidade constitucional e, por isso mesmo, a pluralidade de leituras que leva a uma luta de
histórias ou a própria fragmentação de história em histórias diversas, porque é a história que
articula uma fala autorizada sobre o passado, recriando a memória social através de um
processo de seleção e exclusões, onde se joga com as valorações da positividade e do rechaço.
A história do tempo da ditadura apresenta para nós atualmente este embate sobre a
disputa de sentidos, sobre o acontecido naquele período, sendo que há uma inflexão muito
grande nas pesquisas até hoje realizadas de primar pela “amnésia”, conduzindo a uma
percepção unidimensional, determinando a memória da sociedade brasileira em tempos de
democracia.
A perspectiva histórica adotada nesses estudos trouxe aquilo, que BENJAMIM
denomina de história dos vencedores, pois “fecha-se em uma lógica linear que pisoteia as
vitimas, que as ignora sob o cortejo triunfante do progresso.” (BENJAMIM,1992, p.91). Esta
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275
visão da história “prestou-se a reforçar uma concepção acumulativa, evolutiva e continuista
do tempo, reservando um papel normativo para a memória, confundida em muitos momentos
com a repetição fria e hipnótica de rituais de civismo e do culto a símbolos forjados para
representar um conceito de unidade que , mais do que o reflexo de laços tradicionais e fruto
de um escavar da memória, atendia aos interesses e as conveniências da formação do ideal
nacionalista” (SILVA FILHO,2008 p. 189)
Por isso devemos tratar de romper esse continnum e abrir a brecha das qual
nascerá a ação política, (GENRO; ABRÃO, p. 20) resignificando o passado, agregando ou
dando novos significados , para que se possa então refletir sobre a transformação e
emancipações sociais. O que interessa na rememoração do passado, é “a luta até a morte entre
opressores e oprimidos, exploradores e explorados, dominantes e dominados”. ( LOWY,
2005, p. 59)
De diversas formas o processo de Justiça, Memória e Verdade por parte dos
“vencidos” tem se consolidado, seja por meio das ações judiciais perante o Poder Judiciário,
seja por meio das Comissões da Verdade, seja por meio de manifestações culturais, seja pela a
instituição dos denominados Lugares da Memória.
3.LUGARES DE MEMÓRIA:EM BUSCA DE UM CONCEITO
Num primeiro momento a pergunta que nos cabe é : qual é a função dos Lugares
da Memória neste processo de construção pública da verdade?
Os Lugares de Memória são um recurso fundamental para a efetividade dos
direitos humanos por poderem ser tratados como bens culturais destinados a reparação
simbólica das vítimas e à produção de conhecimento para a sociedade
No âmbito da cultura diversas são as formas de sedimentação de uma narrativa no
imaginário social, “a construção de memoriais, a proteção de um espaço como lugar de
memória, o estabelecimento de datas comemorativas, a formação de museus com temas que
busquem prevenir a repetição das atrocidades de um determinado período ou outras formas de
homenagem de vítimas são iniciativas de memorialização.” (SOARES;QUINALHA, 2011, p.
80)
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276
Esses atos de memorialização são importantes por representarem o
reconhecimento público do legado da violência ou de um passado violento.
Os Lugares de Memória “servem como mecanismo extrajudicial para reparação
simbólica das vitimas da ditadura e da sociedade e tem um potencial que atinge também o
Estado que, por meio da implantação e gestão desses locais ( ou pelo apoio aos mesmos, no
caso de uma iniciativa privada), pode expressar pública e oficialmente seu repúdio as
violações cometidas por seus agentes a ao negacionismo”.(SOARES;QUINALHA, 2011, p.
80)
Os Lugares da Memória devem se orientar para romper com a lógica do
silenciamento e a valorização das histórias de resistência a ditadura.
Em regra os Lugares da Memória se encontram situados em antigos espaços de
repressão da ditadura militar, como as sedes dos DOI-CODI, a exemplo de São Paulo, ou
mesmo de casas/ abrigos que serviam como lugares de tortura como as “Casas da Morte”, a
exemplo como esta em processo na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro.
Ao trazer esta ideia de Lugares da Memória, existe a conciliação na proteção do
espaço físico (material) como suporte para a formação de uma memória coletiva(imaterial).
O conceito elaborado por NORA de Lugares de Memória é elaborado no sentido
que criticar os efeitos de uma sociedade contemporânea, pós industrial, dominada por uma
sociedade massas. Ao apontar para a construção do conceito de memória, dissocia-a da ideia
de história, onde esta vinculada a uma narrativa unificadora e de criação de uma identidade
universal. Enquanto a memória, é “tradição definidora, portadora de uma herança que dá
sentido e forma, é viva e dinâmica.”
A “memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A
história só se liga a continuidades temporais, as evoluções e as relações das coisas. A
memória é o absoluto e a história o relativo.” (NORA,1993,p.09)
Diante do esfacelamento da memória, esfacelada desperta memória para a sua
encarnação. “Há locais da memória porque não há mais meios de memória” (NORA,
1993,p.7)
“A memória é a vida, carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela esta em
permanente evolução, aberta a dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
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277
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas
latências e de repentinas revitalizações”. (NORA,1993, p.9)
A ideia de memória sempre foi evocada pela ideia de Nação, por ser ela portadora
da consciência da coletividade, se apresentava com univocidade da identificação nacional e da
transmissão de valores.
“Os lugares de memória são, antes de tudo, restos.” (NORA, 1993, p. 12)
Os lugares da memória são resultado de um processo dialético, onde são gestados
como operações não naturais, não espontâneo, que seleciona e privilegia, porém a história a
retira para “deforma-los, transforma-los, sova-los e petrifica-los”.(NORA, 1993, p. 13)
Ainda sobre o conceito NORA traz que :
Lugares salvos de uma memória na qual não mais habitamos, semi-oficiais e
institucionais, semi afetivos e sentimentais, lugares de unanimidade sem
unanismo que não exprimem mais nem convicção militante nem participação
apaixonada, mas onde palpita ainda algo de uma vida simbólica. Oscilação
do memorial ao histórico, de um mundo onde se tinham ancestrais a um
mundo de relação contingente com aquilo que nos engendrou, passagem de
uma história totêmica para uma história critica; é o momento dos lugares da
memória. (NORA, 1993, p. 14).
A discussão dos Lugares da Memória passa pela necessidade urgente da
materialização e expressão de um futuro incerto, garantindo ao hoje, um significado, que pode
ser redimensionado.
Contudo, não somente no tocante ao aspecto material que os lugares da memória
se sobressaem, mas também no campo do funcional e do simbólico. “Só é lugar da memória
se a imaginação o investe de uma aura simbólica” (NORA,1993, p. 21)Os lugares da memória
tem a função também de bloquear o esquecimento, ampliando significativamente os seus
sentidos e os tornando imprevisíveis.
Os Lugares de Memória são uma resposta a essa necessidade de identificação do
indivíduo contemporâneo, pois os “lugares da memória nascem e vivem do sentimento que
não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, organizar celebrações, manter
aniversários, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque estas ações não são
naturais”(NORA, 1993, p. 13)
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
278
Os Lugares de Memória tem o papel narrativo de consolidação e totalização
reunindo elementos característico de um grupo, conferindo-lhe sentido e unificando-o, “há
uma rede articulada dessas identidades diferentes, uma organização inconsciente da memória
coletiva que nos cabe tornar consciente se si mesma. Os lugares da memória são nosso
momento de história nacional.” ”(NORA, 1993, p. 13)
Uma das principais criticas trazidas pelo conceito de NORA de Lugares da
Memória, se deve por ser um conceito estático, unitário e substantivo, devendo se tratar de
uma noção mais dinâmica e fluída, como territórios das memória, que vem a ser “ as relações
ou o processo de articulação entre os diversos espaços marcados e às práticas de todos os que
se envolvem no trabalho de produção de memórias sobre a repressão; ressalta os vínculos, a
hierarquia e a reprodução de um tecido de lugares que potencialmente pode ser representado
por um mapa. Ao mesmo tempo, as propriedades metafóricas do território nos leva a associar
conceitos tais como conquista, litígios, deslocamentos ao longo do tempo, variedade de
critérios de demarcação, de disputas, de legitimidades, direitos, soberanias.”(CATELA,
2010,P. 208).
Mas independente da critica, este termo ainda é o mais comumente utilizado para
designar estes espaços de importantes na construção histórica de um país.
A retomada da ideia de memória pela discussão sobre o período da ditadura é
constituinte de uma positividade política que fortalece a noção de cidadania ativa no processo
de análise do fatos do passado, em confronto com a ideia de amnésia que se instaurou
posteriormente a abertura democrática.
O processo de memória e verdade neste âmbito revela os processos de
deslegitimarão política de alguns grupos sociais e indivíduos, por isso este é ato é em sua
essência político.
Ao contrário do que se presta a memória oficial e oficiosa, a memória impregnada
nestes lugares não deve padecer da ideia de totalidade e de verdade, devendo sempre garantir
uma abertura para as diferentes narrativas da resistência.
Os lugares da Memória, por meio de sua materialidade são testemunho das
violações ali ocorridas uma vez que constituem um patrimônio histórico e cultural ineludível
para as gerações futuras.
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279
4. LUGARES DE MEMÓRIA COMO EXERCICIO DO DIREITO AO PATRIMÔNIO
HISTÓRICO
A relação direta entre Lugares de Memória e a proteção jurídica se deve em
grande medida pelo fato que ambos, Memória e Direito, se instituem no tempo,e por isso
condicionados por uma seleção de um determinado grupo no poder. Desta forma resultante de
uma construção social, na qual “a memória social foi, todos os tempos, confiada aos
juristas.”(OST,2005,p.49)
A consciência coletiva edificada por lembranças comuns constroem a identidade
coletiva necessária a Nação. O Direito então funciona como o mecanismo legitimador da
seleção representativa do poder.
Por meio desta mediação, o Direito institui os contornos do que vem a ser o
patrimônio cultural de um país e as formas de regulação e proteção.
Desta forma, o patrimônio cultural é uma memória selecionada juridicamente que
põe em evidência os valores de um grupo que está no poder. Deste modo, o patrimônio
cultural é um instrumento de proteção e rememoração de uma memória selecionada que é
construída socialmente, referendando determinada forma de poder e de direito.
O Estado com a finalidade de reforçar a coesão nacional pelo afeto e não pela
coerção, visa “adotar uma concepção de memória capaz de fornecer uma origem comum ao
povo, pois a comunhão do passado, construída a partir da criação e compartilhamento do
patrimônio cultural, permite criar uma identidade singular, que serve como argamassa para
consolidação e o fortalecimento dessa organização política.” (DANTAS,2010,p.56)
Pode-se definir patrimônio cultural como “o conjunto de bens materiais e
imateriais que exprimem as experiências simbólicas e ideológicas de determinada sociedade,
fundantes de uma identidade cultural”.(DANTAS,2010,p.117)
No processo de democratização, a Constituição forjada naquele momento trazia
consigo este conceito, ampliando as possibilidades de conformação do patrimônio cultural
brasileiro, pois este documento representava “um produto da cultura porque os significados e
categorias das suas normas só podem ser interpretados em consonância com a realidade
social, que é cultural, além do que os valores constitucionais tem origem sócio-
cultural.”(DANTAS,2010,p.46)
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
280
A Constituição Federal de 1988 no rol dos seus bens a serem protegidos trouxe a
necessidade preservação e conservação do patrimônio material e imaterial, pois o patrimônio
faz recordar o passado, é uma manifestação cultural, é um testemunho de um tempo, é luz
sobre o passado.
A ideia dos Lugares da Memória se coaduna com o previsto no artigo 216, inciso
IV e V2 da Constituição Federal, quando faz referencia a edificações e espaços destinados a
manifestação cultural e cojuntos urbanos de valor histórico.
A presença na Constituição desta proteção se deve pelo “interesse cultural de que
se revestem determinados bens, assume tal relevância para a sociedade que sua proteção se
impõe ao ordenamento jurídico.”(MARÉS,1999,p.27)
A proteção a esses espaços visa a concretizar o aprofundamento da democracia no
país, permitindo a sociedade brasileira o contato com lugares simbólicos daquele período de
repressão, ampliando a sua visão sobre os efeitos da ditadura.
A possibilidade de repensar a história brasileira a partir da experiência trazida
pelos Lugares de Memória avança na constituição de uma identidade nacional, se tornando
fonte da cultura nacional, assegurando as futuras gerações à possibilidade de acesso a este
representativo acervo de nossa sociedade, que constituem o Patrimônio Cultural Brasileiro.
Algumas iniciativas foram tomadas na direção de proteção deste patrimônio
histórico cultural relacionado a ditadura. No ano de 2009, foi institucionalizado pela Casa
Civil da Presidência da República o Centro de Referencia das Lutas Políticas no Brasil, que
originou o projeto Memórias Reveladas implantado no Arquivo Nacional.
Outro marco importante no âmbito do Governo Federal, foi a aprovação do 3º
Programa Nacional de Direitos Humanos, no qual um dos eixos é a Memória e a Verdade,
dentre as suas diretrizes se destaca a 24, que indica a preservação da memória histórica e a
construção pública da verdade, por meio da criação e manutenção de museus, memoriais e
centros de documentação sobre a resistência à ditadura “como uma ação para cumprimento do
objetivo estratégico de incentivar as iniciativas de preservação da memória histórica e de
construção pública da verdade sobre períodos autoritários” (SOARES;QUINALHA, 2011, p.
77)
2 O texto do artigo 216 da Constituição Federal: “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de
natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência a
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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Para além das ações governamentais indicadas acima, para a concretização do
direito ao patrimônio cultural relacionado a ditadura, neste caso os Lugares de Memória, é
imprescindível o Estado Brasileiro adotar políticas públicas, isto é, da intervenção estatal para
a garantia da proteção.
De acordo com BUCCI:
Política Pública é o programa de ação governamental que resulta num
processo ou conjunto de processos juridicamente regulados visando
coordenar os meios a disposição do Estado e as atividades privadas
para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados.(BUCCI,2006,p.39)
Para a formulação das políticas públicas o Estado Brasileiro deve se guiar por
alguns parâmetros para institucionalizar os Lugares de Memória, definir prioridades, a reserva
dos meios necessários e o estabelecimento de metas para atingimento dos resultados
esperados. (BUCCI,2006,p.39)
As diretrizes foram formuladas no âmbito do Mercosul, motivados pela ação
cojunta realizada em alguns países do bloco no período da ditadura por parte dos poderes
governamentais da época.
5.MERCOSUL,DITADURA E DIREITOS HUMANOS
O Mercosul foi estabelecido em 1991, pelo Tratado de Assunção, com base em
acordo de livre comércio envolvendo a Argentina, o Brasil, o Uruguai e o Paraguai, e
incorporando posteriormente o Chile, Bolivia e Venezuela A principal finalidade era eliminar
tarifas alfandegárias, assegurar a livre circulação de fatores produtivos (capital e trabalho)
entre os países membros e estabelecer uma política comercial comum no sul do continente.
Porém, com o passar dos anos o Mercosul foi ampliando sua perspectiva de
atuação principalmente para tornar concreta a integração do Mercosul no tocante a cultura e
identidade.
Na mesma esteira de pensamento, foi se reforçando o ideário comum de Direitos
Humanos como um dos fatores integradores do Mercosul e com isso a criação de instâncias e
marcos legais.
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282
Quanto as instâncias tivemos a criação da Reunião das Altas Autoridades em
Diretos Humanos do Mercosul (RAADDHH) e posteriormente no seu âmbito o Instituto de
Políticas Públicas em Direitos Humanos.
O estabelecimento de pontos comuns quanto a questão democrática e de direitos
humanos, apresentou aos Estado do Mercosul o contexto de violações de direitos humanos,
também comum no contexto do Cone Sul.
Apesar da complexidade e das grandes diferenças étnicas e raciais que
caracterizam a America Latina, algumas observações gerais podem ser feitas especialmente
em relação aos países do Cone Sul como Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, que tem passado
por transformações políticas semelhantes nas últimas décadas. O contexto político do
Paraguai difere das situações dos países citados, pois a ditadura militar iniciou-se muito antes
neste país.
É importante frisar que “por várias razões econômicas e geopolíticas, tais países
sofreram golpes de estado nos anos 60 e 70 que instalaram governos militares autoritários.
Estes governos utilizaram diversas estratégias de coerção e violência institucional para impor
o seu domínio.”(CEPIA,2001,p. 08)
A dimensão regional das violações de direitos humanos no Cone Sul é cabível
“porque foram cometidas e estão enquadradas em que processos históricos que se deram de
forma inter-relacionada, tal como demonstra a criação da aliança repressiva continental,
conhecida como “Operação Condor3”.(IPPDH, 2012, P. 5)
Por este contexto comum é que se pode pensar numa ação conjunta e partilhada da
memória no nosso continente.
Para tal tarefa, o Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos foi criado no
âmbito do Mercosul, com a finalidade de contribuir ao fortalecimento do Estado de Direito
nos Estados partes, mediante a elaboração e monitoramento das políticas públicas em Direitos
Humanos e contribuir na consolidação dos Direitos Humanos como eixo fundamental da
identidade e desenvolvimento do Mercosul. (MERCOSUR/CMC/DEC. Nº 12/10). Tem a sua
3 Nos anos setenta os serviços de inteligência dos países do Cone Sul constituíram uma aliança repressiva
sustentada ideologicamente na Doutrina de Segurança Nacional e ideada com o objetivo de combater quem se
considerava subversivo, suscetível de incluir uma multiplicidade de sujeitos definidos como inimigos
ideológicos. O documento fundacional da aliança enfatiza a necessidade de enfrentar a guerra psicopolitica com
uma coordenação eficaz que permita no intercambio de informações e experiências entre os países da região.
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283
atuação adstrita ao âmbito da Reunião de Altas Autoridades na área de Direitos Humanos e
Ministérios das Relações Exteriores do Mercosul.
A característica do Instituto é de ser uma instância técnica de Investigação no
campo das políticas públicas, com vistas a fortalecer a dimensão social do processo de
integração.
A direção do instituto é colegiada e composta por um representante titular e um
suplente de cada Estado Parte. Sua sede permanente é na cidade Autônoma de Buenos Aires
na Argentina.
De acordo com o Plano Estratégico do Instituto de Políticas Públicas em Direitos
Humanos Mercosul de 2010-2012, existem quatro eixos temáticos de trabalhos : a) políticas
de prevenção da violência institucional e segurança cidadã; b) políticas de igualdade e não
discriminação; c) políticas de Memória, Verdade, Justiça e Reparação perante graves
violações de direitos humanos e infraestrutura institucional em direitos humanos. Quanto ao
Eixo Memória e Verdade se buscou o intercambio de experiências nacionais relativas aos
processos de justiça por graves violações de direitos humanos cometidas durante os períodos
ditatoriais nos países do Mercosul e Estados Associados, dentre os trabalhos propostos está as
políticas de lugares da memória. (IPPDH, 2010,p. 4)
Diante estes objetivos fixados para o Instituto de Políticas Públicas, busca-se
algumas estratégias de intervenção do Instituto, como promoção de debates e espaços de
discussão no Mercosul, vinculando os temas de direitos humanos com a agenda social,
política e econômica; promoção de uma maior coordenação e articulação das políticas em
direitos humanos nas reuniões da RAADDHH, ou em reuniões de Ministros do Mercosul ou
Unasul; apoio nas relações Estado e Sociedade Civil na formulação de políticas públicas em
direitos humanos, promoção e fortalecimento dos sistemas de proteção de direitos humanos
nacionais e regionais; desenvolvimento de investigações disponíveis na área, neste ponto se
enquadra o documento relacionado aos parâmetros quanto aos Lugares da Memória. (IPPDH,
2010, p.6)
Para alcançar os objetivos definidos pela Reunião das Altas Autoridades, foi
instituído com as seguintes funções:
a) Cooperar com projetos de políticas públicas em Direitos Humanos e sua posterior
consecução; a implementação dos meios que permitam uma mais efetiva e eficaz
proteção e promoção dos Direitos Humanos reconhecidos nas respectivas
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284
Constituições Nacionais e nos Instrumentos Internacionais de Direitos Humanos e a
adoção dos padrões internacionais postos nos instrumentos de Direitos Humanos nos
sistemas interamericano e das Nações Unidas;
b) Contribuir com a harmonização normativa entre os Estados Partes em matéria de
promoção e proteção dos Direitos Humanos;
c) Prestar assistência técnica para o desenvolvimento de atividades de capacitação e
promoção de Direitos Humanos para funcionários das instituições de Direitos
Humanos dos Estados Partes;
d) Oferecer um espaço permanente de reflexão e dialogo entre os funcion´´arios
públicos e as organizações da sociedade civil sobre políticas públicas;
e) Realizar estudos e investigações sobre temas vinculados a promoção e proteção
dos Direitos Humanos, que sejam solicitados pela reunião das Altas Autoridades na
árrea de Direitos Humanos e Ministérios das Relações Exteriores do Mercosul.
6.MERCOSUL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DOS LUGARES DE MEMÓRIA
Na XIX reunião da RAADDHH se encomendou ao Instituto a elaboração de um
estudo sobre os princípios fundamentais para a preservação dos lugares onde se cometeram
graves violações aos direitos humanos durante as ditaduras militares do Cone Sul, com ajuda
dos Estados e Sociedade Civil.
A metodologia utilizada para este estudo foi elaborada e distribuído um
questionário sobre alguns temas vinculados com as políticas públicas em matérias de Lugares
da Memória. Este questionário circulou entre pessoas e instituições envolvidas com a
temática. O documento preliminar denominado “Princípios Fundamentais para as Políticas
Públicas em matéria de Lugares da Memória” foi apresentado na XXI da RAADDHH e que
posteriormente passou por um processo de consulta por seis meses, período no qual recebeu
observações, comentários e sugestões. Esta atividade se confirmou com no Plano de Trabalho
Anual de 2012.
Neste mesmo período outras duas atividades foram planejadas, uma Jornada para
correspondentes estrangeiros e jornalistas sobre os processos de verdade e justiça na região e
uma atividade sobre o Plano Condor no marco da Cúpula Social do Mercosul.
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285
Por que pensar em políticas públicas para Lugares da Memória? Primeiro, deve-se
compreender que os direitos humanos se concretizam no plano normativo e operativo por
meio das políticas públicas, derivadas das obrigações internacionais de proteção e garantia.
Políticas Públicas se concebem como uma série de normas, decisões e práticas
implementadas por diversos atores sociais tendentes a resolver problemáticas politicamente
definidas como de caráter social. (IPPDH, 2012, p. 4).
O processo de integração do Mercosul ganha com a coordenação de políticas
púbicas de Lugares da Memória, mais um instrumental para a construção de um memória
conjunta na conformação de uma identidade regional.
Para o IPPDH, os lugares de memória são “Lugares onde se sucederam os
acontecimentos, ou que por algum motivo, estão vinculados com tais acontecimentos, para
recuperar, repensar e transmitir certos fatos traumáticos do passado e que podem funcionar
como suporte ou propagadores de uma memória coletiva.” (IPPDH, 2012, p. 6)
O documento traz um marco conceitual para as políticas públicas sobre os lugares
da memória, que se embasam principalmente nas legislações internacionais que prescrevem
obrigações internacionais em matéria de luta contra a impunidade e os efeitos de reparar as
vitimas graves de violações de direitos humanos que se constituíram num padrão sistemático
e generalizado.
Nesta linha, poderíamos dizer a partir do documento que os Lugares de Memória
podem se apresentar aos Estados e sociedade do Mercosul como :a) evidência; b)como meio
de conhecer o ocorrido; c) como suporte de memória coletiva; d) como medida de reparação
simbólica e garantia de não repetição.
O documento aponta que por se tratar como evidência, os Estados devem, isto é,
tem a obrigação de investigar e sancionar as violações de direitos humanos, de forma
imparcial e efetiva orientada pela verdade e o processamento e eventual pena aos
responsáveis, se utilizando de todos os meios legais, sem poder se eximir de responsabilizar
penalmente por se tratar de direitos que são imprescritíveis e inadmissíveis. Neste sentido
tem-se no contexto do ordenamento jurídico brasileiro a decisão da Corte Interamericana de
Direitos Humanos no caso Araguaia, que reforçou estas ideias propostas pelo IPPDH quanto a
memória, verdade e justiça.
Por outro lado, o Estado Brasileiro não tem se alinhado a este tipo de conduta vide
a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto a Lei de Anistia.
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As imagens, os planos e a informação obtida nos arquivos podem contribuir para
reconstrução do modo como estes lugares da memória. A este respeito e decorrente desta
abordagem como evidência, “os Estados devem garantir para que qualquer pessoa ou
instituição com interesse legítimo possa solicitar a preservação dos lugares onde se
cometeram as violações de direitos humanos”. (IPPDH, 2012, p. 9). Ainda nesta linha, podem
requerer com a finalidade de preservação, tarefas de manutenção com o objetivo de conservar
sua estrutura edilícia e outros elementos com valor probatório.
Alguns exemplos neste sentido já puderam ser verificados no âmbito dos países
do Mercosul, como ações judiciais que tinham como fundamento prevenir a modificação ou
demolição dos lugares onde funcionaram centros clandestinos de detenção.Na Argentina,
houve a declaração de inconstitucionalidade de um decreto presidencial que ordenava a
demolição onde funcionava a ESMA, enquanto no Uruguai, se utilizaram medidas judiciais
para não mudar a estrutura dos edifícios militares do Batalhão 13º de Montevidéu e nº 14 de
Toledo. (IPPDH, 2012, p. 11)
Outra estratégia que tem sido adotada é a criação de marcos legais no âmbito
municipal, estadual ou federal de reconhecimento destes lugares como patrimônio histórico,
neste caso podemos citar os casos da Argentina e do Chile, que garantiram a intangibilidade, o
ex-centro “El Olimpo” e “Londres 38” respectivamente. (IPPDH, 2012, p. 11)
Entender os lugares da memória como meio de conhecer os fatos ocorridos,
garante que para além da dimensão individual das violações de direitos humanos, o direito a
verdade tenha uma conotação social ou coletiva, ligada ao direito dos povos a conhecer seu
passado para assim construir uma memória histórica e resguardar-se para o futuro.
Por isso, “os lugares da memória podem materializar o direito a verdade e sendo
este um direito autônomo, os Estados devem garantir sua tutela judicial, assegurando a
disponibilidade e acessibilidade de recursos adequados para que qualquer pessoa ou
instituição com interesse legitimo possa solicitar para preservar os prédios onde se cometeram
as graves violações de direitos humanos. “(IPPDH, 2012, p.13-14)
No tocante aos lugares da memória serem suportes da memória coletiva, é
importante considerar que para a construção destas políticas públicas deve se garantir a
participação da sociedade, especificamente das vitimas e seus familiares, e da comunidade
loca, porque não se trata de construir uma memória oficial do Estado.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
287
Esta frente permite prevenir que se desenvolva no âmbito dos Estados, teses
revisionistas ou negacionistas.
São instrumentos imprescindíveis para a educação em direitos humanos e
elaboração de uma pedagogia da memória, atuando assim como uma prevenção para a não
ocorrência das violações de direitos humanos.
Se alinha a esta perspectiva de compreender os lugares da memória como meio
de reparação simbólica e garantia da não repetição.Ao se construir estas medidas
administrativas e/ou legais, há um reconhecimento público do Estado de sua responsabilidade
nos fatos vinculados ao período da ditadura. Estas iniciativas vislumbram a possibilidade de
uma reparação simbólica e de um restabelecimento da dignidade das vitimas, se isso for
possível.
Ao se trabalhar este marco conceitual para a elaboração de políticas públicas de
lugares da memória, o passo seguinte é trazer alguns indicativos quanto a sua definição,
objeto, função, formato, conteúdo e desenho institucional.
A ideia dos lugares de memória deve ser pensada em conformidade com a sua
funcionalidade concreta e por isso uma definição sobre o que são e para quê, devem ser
sempre reconceitualizadas e em permanente construção.
No momento de definição dos lugares de memória, pode-se ter três concepções:
a) Lugares de Memória que são todos aqueles lugares que resultem significativos
para uma comunidade e que permitem impulsionar processos de construção de
memórias vinculadas a determinadas eventos traumáticos ou dolorosos.
b) Lugares de Memória são lugares construídos especificamente para realizar
trabalhos de memória (museus, monumentos nas ruas, e outros), mas que não tem
necessariamente um vinculo físico, emocional ou simbólico com os acontecimentos
que se buscam evocar.
c) Lugares de Memória são lugares físicos onde se cometeram graves violações de
direitos humanos(IPPDH, 2012,p.19)
Diante dessas possibilidades os Estados devem criar condições mínimas para a
identificação, sinalização e criação dos lugares de memória, inclusive aqueles lugares
ainda seguem sob o comando de instituições que foram diretamente responsáveis pelas
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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violações de direitos humanos. Estas marcas dos lugares de memória tem um efeito
externo a sociedade, mas também para dentro das instituições que estiveram envolvidas.
Quanto ao formato desses lugares de memória, há duas posições distintas trazidas
pelo IPPDH, uma que sustenta que “se deve reconstruir estes espaços tal qual foram, de
maneira de fazer presente algo que atualmente esta ausente mas que se busca invocar para
poder transmitir as novas gerações e a toda sociedade. A maioria ao contrário, entende que
se deve deixar como está, pois deve preservar o seu valor testemunhal e probatório destes
prédios.” (IPPDH,2012, p. 21)
Em relação ao conteúdo, os lugares de memória, devem estar relacionados com as
graves violações de direitos humanos ocorridas no passado, mas sob uma análise critica e
que aponte para defesa dos direitos humanos na atualidade.
Por final o documento aponta o contorno do debate quanto a gestão e
funcionamento dos lugares de memória. Aponta-se para necessidade de construção de um
marco jurídico adequado para criação, preservação, funcionamento, gestão e
sustentabilidade dos lugares de memória.
A ideia principal e comum é que “o desenho institucional deve contemplar
mecanismos de transparência, monitoramento e avaliação que permitam a prestação de
contas por parte do conjunto da sociedade.” (IPPDH, 2012,p. 22). Nesta lógica, deve se
pensar num modelo de gestão que garanta a permanência destas políticas de memória e
verdade.
Foi elencado três tipos de gestão institucional: a) lugares de memória que
funcionam sob a responsabilidade da Administração Pública; b) Lugares de memória que
estão fora da Administração pública, mas que contam com algum tipo de financiamento
público, normalmente gestionados por fundações ou organizações de direitos humanos; e,
c)lugares de memória que fazem parte da estrutura estatal, mas com gestão autônoma, o
que permite incorporar alguns graus de independência quanto a agenda dos governos.
(IPPDH,2012, p.23).
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289
7.CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diversas são as iniciativas de Lugares de Memória no Brasil, por isso a
importância destes marcos conceituais para se pensar em políticas públicas permanentes e
que garantam o Direito a Memória e a Verdade.
A principal diferença deste documento é que encerra uma pluralidade de
perspectivas de abordagem a ser pensado para cada contexto cultural e político.
Outro mérito deste trabalho vem a ser a participação da sociedade civil na
discussão destes parâmetros, os quais antes mesmos dos próprios Estados já desenvolviam
ações de memória, inclusive na construção ou preservação de lugares da resistência.
Para o Estado Brasileiro é uma oportunidade ímpar de implementar estas políticas
públicas por encontrar na sociedade ressonância desta vontade de realizar a Memória no
Pais.
Desta forma a composição do patrimônio cultural brasileiro assimila para si uma
parte da história a qual foi relegada por determinado espaço de tempo, permitindo a
imanência e permanência deste testemunho.
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291
A (DES)CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO AGRÁRIO PELO
DITADURA MILITAR BRASILEIRA
GUILHERME MARTINS TEIXEIRA BORGES
GOIÂNIA
Março/2013
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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A (des)construção de um Direito Agrário pela Ditadura Militar Brasileira
Guilherme Martins Teixeira Borges1
RESUMO
Este trabalho científico visa a refletir acerca das consequências da promulgação do Estatuto
da Terra, Lei Federal nº 4504, de 30 de novembro de 1964 em relação à própria estruturação
de um Direito Agrário, isto é, de como as premissas aclamadas pelo referido codex vieram a
construir o ramo agrarista do Direito, sendo, portanto, o marco para sua autonomia como
defendem a grande parte dos agraristas. Doutra banda, o Estatuto da Terra é fruto de um
processo histórico de balizamento jurídico único, porquanto veio à tona em um momento pelo
qual o Brasil inaugurava suas décadas ditatoriais após o Golpe de 1964. Bem por isso, surgem
as contradições que permeiam o Estatuto da Terra, ou seja, trata-se mesmo de um marco para
a construção de um Direito Agrário autônomo ou apenas serviu à desconstrução de um Direito
Agrário já existente para que os militares colocassem em prática o projeto desenvolvimentista
agroindustrial que pretendiam? Eis, portanto, as reflexões objetivadas neste estudo.
Palavras-chave: Estatuto da Terra. Direito Agrário. Governo Militar Brasileiro.
ABSTRACT
This scientific work aims to reflect on the consequences of the enactment of the Land Act,
Federal Law nº. 4504, of 30 November 1964. Aims to regarding the structure of an Agrarian
Law, ie, how the assumptions acclaimed by agrarian codex came to build the branch of law.
The Land Statute is the result of a historical process of demarcating single legal, since
surfaced at a time at which Brazil inaugurated its dictatorial decades after the 1964 coup
d'état. Therefore arise contradictions that permeate the Land Statute, ie, it is indeed a
milestone for the construction of an autonomous Agrarian Law or just served the
deconstruction of an existing Agrian Law for the military to put into practice the
developmental project agroindustrial they wanted? Those are the reflections targeted in this
study.
Key-words: Land Statute. Agrarian Law. Brazilian Military Government.
1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestrando em Direito Agrário pela Faculdade de Direito da UFG e Assessor Jurídico no Ministério Público do Estado de Goiás. Contato: [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
Em 30 de novembro de 1964, cerca de apenas oito meses após a assunção do poder
político pelos militares por meio do Golpe, foi promulgada, no governo do então Presidente
da República Marechal Castello Branco, a Lei nº 4504: o Estatuto da Terra.
Tal corpo jurídico representa para a grande parte dos agraristas brasileiros o principal
marco a fundamentar a autonomia legislativa do Direito Agrário, considerado, inclusive para
alguns, como o instrumento jurídico criador do próprio Direito Agrário, sequer podendo-se
dizer na existência desse ramo jurídico nos anos anteriores a promulgação deste codex.
Além desses fatores, vários outros também corroboram para a caracterização da
importância que teve e ainda tem o Estatuto da Terra para o Direito Agrário pátrio, o que
justifica o alvo de estudos desta pesquisa.
A par das disposições constantes na Lei nº 4504/64, é imperioso traçar um estudo
acerca das origens teleológicas deste corpo legal que, especificamente no estudo ora proposto,
seguirá pelo viés histórico de sua formação e estruturação no marco temporal compreendido
pela Ditadura Militar Brasileira, especialmente nas primeiras décadas de sua existência no
país.
Nesse sentido, analisar-se-á as origens políticos-sociais que ensejaram a promulgação
de um Estatuto da Terra logo no primeiro ano após o Golpe Militar de 1964, visando
compreender suas relações com processo de formação e consolidação dos movimentos sociais
de luta pela terra que se observava, de forma mais fortalecida, desde a década de 50, bem
como o ideal propagado acerca de uma latente necessidade de se reestruturar o espaço agrário
brasileiro, cuja vontade, conforme se explicará adiante, não partiu apenas das minorias rurais
brasileiras, mas como também dos próprios detentores das terra.
Doutra banda, observa-se que após os primeiros anos de vigência do Estatuto da
Terra, principalmente após o final do governo de Castello Branco, parece ter ocorrido uma
desvirtuação daquelas diretrizes e projetos elencados pelo codex agrário quando de sua
promulgação. O surgimento de um “novo projeto” fundiário para o Brasil almejado pelos
governos militares desenvolvimentistas fizeram com que o Estatuto da Terra passasse por uma
desconstrução de seus ideais, culminando, inclusive, com o esquecimento de parte de seu
conteúdo pelos governantes – especialmente quanto a implementação da reforma agrária – e
pela utilização direcionada ao interesse político-econômico dos militares para o espaço
agrário brasileiro, qual seja, o de formação de um complexo agroindustrial no país.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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É, portanto, no bojo dessa celeuma que se delineará as reflexões aqui propostas.
2. O PANORAMA JURÍDICO AGRARISTA PRÉ ESTATUTO DA TERRA
É na década de 50 que a discussão acerca da reforma agrária no Brasil ganha
dimensões consideráveis, a níveis de diálogos de ordens locais a nacionais. A estruturação do
território fundiário brasileiro começa a sentir os limites de um projeto de ocupação
desorganizado e aquém dos interesses sociais2 ligados à distribuição de terras, perpassando-se
desde as frustradas intenções do Regime de Sesmarias às disposições da Lei de Terras de
1850.
Não por menos, o contexto global de desenvolvimento que se erigia sob as bases de
um capitalismo monopolista-financeiro3, exigia dos demais países uma (r)evolução industrial
e tecnológica apta a inseri-los na nova ordem global das relações econômicas. O mundo vivia
a era das locomotivas, das produções e exportações em grande escala e, principalmente, da
busca por espaços que, outrora vazios, tornassem ambientes industrialmente produtivos.
Em vista disso, aquele Brasil cuja base econômica se concentrava – quase que
unicamente - pela produção agropecuarista, agarra-se a um processo de modernização,
industrialização e internacionalização econômica, social, política e até mesmo cultural.
Destarte, é nesse Brasil dos “anos dourados” que os rumos da modernização, tanto urbana
como rural, alavancam-se. A população brasileira que outrora se concentrava no campo inicia
seu êxodo para os grandes centros urbanos, ao mesmo passo em que o espaço fundiário
brasileiro vivenciava o período de expansão de suas fronteiras agroprodutoras abalizadas por
2 Importante frisar que a consideração ora apontada se refere a um projeto que efetivamente logrou êxito no Brasil. Por certo houve tentativas louváveis de uma (re)organização fundiária brasileira, como por exemplo a própria Lei de Terras de 1850 ao tentar aplicar no território brasileiro o projeto wakefieldiano de uma colonização sistemática. Entretanto, a questão fundiária encapava dimensões que fugia ao controle da própria lei, dimensões estas estabelecidas pelas práticas agrárias historicamente sedimentadas no Brasil e pela convivência de um regime de “posses” com os ditames legais impostos pelo reconhecimento e exercício do direito de propriedade. Assim, por esses e demais outros fatores que se pode inferir não ter vivenciado o Brasil um projeto de ocupação e distribuição fundiária coletivo e efetivamente organizado.
3 Segundo GOLDSTEIN, a fase capitalista denominada de monopolista-financeira, iniciada no século XX e em voga nos dias atuais, pode ser caracterizada pelos seguintes atributos: a) o desenvolvimento das empresas gigantes e a mudança da base de acumulação; b) a emergência de novas relações entre a propriedade e o controle do capital, bem como de novas técnicas de gerência; c) o desenvolvimento da indústria cultural e de sua xifópaga, a publicidade (que se torna peça fundamental no processo de realização do valor e da mais-valia), bem como do crédito e do capital financeiro; d) a extensão da educação formal tendencialmente a toda a sociedade; e) a incorporação sistemática da ciência pelo processo produtivo; f) a liberação do capital de suas limitações técnicas e financeiras ao mesmo tempo em que sua realização se torna mais problemática; e g) a internacionalização cada vez maior do modo de produção. (GOLDSTEIN, Gisela Taschner. Trabalho e dominação no capitalismo monopolista: um esboço de sistematização. Revista de Administração de Empresas. Fundação Getúlio Vargas: Rio de Janeiro, out/dez 1986.p.5).
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295
um iminente processo de industrialização do campo. É nesse momento histórico que surge o
Brasil expansionista de Vargas e sua política ocupacional da “Marcha para o Oeste”, os
“cinquenta anos em cinco” de Kubitschek e o prelúdio de um processo de construção do
complexo agroindustrial almejado pelo Governo Militar.
De conseguinte, a era desenvolvimentista brasileira trouxe à tona o celeuma que
aflige o país até os dias atuais: a dicotomia entre as políticas desenvolvimentistas/de
modernização e as políticas sociais de base. E, na tentativa de equilibrar esta balança, a
experiência pátria acabou por pesar em favor do crescimento econômico do país, na medida
em que sucumbiam os projetos de uma política pública voltada aos seus cidadãos. Tal
realidade, portanto, abriu espaço para o surgimento e afirmação dos movimentos sociais
brasileiros.
Assim, além da problemática social vivida internamente pelo Brasil, que sequer
satisfazia o mínimo social à população, haja vista ter seu foco no projeto desenvolvimentista
econômico-financeiro, diversas classes irresignadas com tais situações insurgiram-se contra a
política estatal brasileira de ordem imanentemente capitalista. Outrossim, tais classes
insurgentes foram ainda mais fomentadas pela bipolaridade político-econômica que o mundo
passava na segunda metade do século XX, fazendo com que, em sua grande parte, filiam-se
aos ideais socialistas/comunistas a fim de combater a ordem econômica.
A partir desse momento surge uma preocupação de ordem política no país: o seu
posicionamento na disputa travada entre capitalistas e socialistas durante a Guerra Fria. Os
movimentos sociais que começavam a surgir e se fortalecer passaram a representar uma
ameaça aos interesses econômicos e políticos do país, especialmente em face daquelas
categorias detentoras do processo de industrialização e modernização, tanto urbanas como
rurais.
Na seara da ocupação e distribuição fundiária pátria a questão não foi diferente. As
primeiras exigências de uma reforma agrária começavam a se firmar por meio do discurso
encabeçado pelos movimentos sociais agrários, como por exemplo, as Ligas Camponesas.
As Ligas Camponesas nasceram como a “Sociedade Agrícola de Plantadores e
Pecuaristas de Pernambuco (SAPPP)”, sendo posteriormente veiculadas pela imprensa local
como organizações rurais comunistas. Tempos depois, quando o movimento ganhava seu
espaço, o deputado estadual pernambucano, Francisco Julião, tomou frente na condução da
SAPPP, criando um comitê de apoio que envolvia diversos partidos políticos brasileiros de
cunho esquerdista (PTB, PST, UDN e PSB), e se tornando a principal liderança das Ligas.
Alfim, o movimento ganhou escopo nacional, passando a ser conhecido nacionalmente como
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Ligas Camponesas, as quais foram responsáveis por acirrados embates, principalmente sob o
manto do PCB, envolvendo os conflitos agrários no Brasil.
A notória proximidade das Ligas com os ideários comunistas, notadamente aqueles
aclamados pela política estatal cubana, fez com que o debate da reforma agrária alavancasse
no cenário político do Brasil, pois, nesse momento, vez que a reivindicação de uma (re)
distribuição das terras brasileiras não se tratava mais de uma simples política social, mas sim
de uma forma de contensão e explosão comunista no país.
Segundo REGINALDO BENEDITO DIAS, as Ligas Camponesas:
Canalizaram a luta e reivindicação pelos direitos dos trabalhadores do campo, a reforma agrária e a extensão dos direitos trabalhistas. A trajetória das Ligas caracterizou-se pela crescente radicalização de suas posições, evidenciada na defesa da reforma agrária radical e na adesão do ideário da revolução camponesa, através da estratégia de guerra de guerrilha, influência evidente da recente revolução Cubana4.
A par das discussões travadas pelos movimentos sociais agrários nesta época,
notadamente quanto à forma como se daria uma reforma agrária no país5, importa-nos, para
4 DIAS, R. B. Sob o signo da revolução brasileira: a experiência da ação popular no Paraná. – 1962/1973. Assis: Dissertação de Mestrado, 1997. p. 40.
5 Segundo a Primeira Proposta de Reforma agrária Unitária dos Movimentos Camponeses no Brasil era “o monopólio da terra, vinculado ao capital colonizar estrangeiro, notadamente o estadunidense, que nele se apoia para dominar a vida política brasileira e melhor explorar a riqueza do Brasil. É ainda o monopólio da terra o responsável pela baixa produtividade de nossa agricultura, pelo alto custo de vida e por todas as formas atrasadas, retrógadas e extremamente penosas de exploração semifeudal, que escravizam e brutalizam milhões de camponeses sem terra. Essa estrutura agrária caduca, atrasada, bárbara e desumana constituiu um entrave decisivo para o desenvolvimento nacional e é das formas mais evidentes do processo espoliativo interno”. Para superar tal situação, a proposta previa “a radical transformação da atual estrutura agrária do país com a liquidação do monopólio exercido pelos latifundiários, principalmente com a desapropriação, pelo governo federal, dos latifúndios, substituindo-se a propriedade monopolista da terra pela propriedade camponesa, em forma individual, associativa ou estatal”. Para atingir tais objetivos previam “a aplicação da legislação trabalhista; a desapropriação das terras não aproveitadas das propriedades acima de 500 hectares a partir das regiões mais populosas, das proximidades dos centros urbanos, das principais vias de comunicação e reserva de água; adoção de um plano para regulamentar a indenização por títulos federais da dívida pública, em longo prazo e a juros baixos, das terras desapropriadas, avaliadas à base do preço das terras registradas para fins fiscais; levantamento cadastral completo, pelo governo federal, estadual e municipal de todas as terras devolutas; retombamento e atualização de todos os títulos de posse de terras. Anulação dos títulos ilegais ou precários de posse, cujas terras devem reverter à propriedade pública; imposto territorial rural deverá ser progressivo, através de uma legislação tributária que estabeleça: 1) forte aumento de sua incidência sobre a grande propriedade agrícola; 2) isenção fiscal para a pequena propriedade agrícola, regularização da venda, concessão em usufruto ou arredamento das terras desapropriadas aos latifundiários, levando em conta que em nenhum caso poderão ser feitas concessões cuja área seja superior a 500 hectares, nem inferior ao mínimo vital às necessidades da pequena economia camponesa”. Torna-se importante ressaltar, que as propostas apresentadas na conjuntura pré 64, independentemente da legenda partidária ou da ideologia em jogo, apresentavam vários pontos em comum, tais como: a importância de sua execução como instrumento de desenvolvimento nacional; a questão da tributação progressiva; a mudança do dispositivo constitucional que previa o pagamento das indenizações em dinheiro; o cadastramento das propriedades para avaliar a real situação da estrutura agrária brasileira; o latifúndio como símbolo do atraso e o uso das terras devolutas. Além disso, essas reivindicações foram encampadas pelo Estatuto da Terra de 1964 já sob o governo de Castello Branco. In: STÉDILE, J.P. A questão agrária no Brasil:
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fins deste estudo, analisar as consequências dessa conjuntura político-social no bojo do
iminente Estatuto da Terra a porvir.
Paralelamente aos entraves políticos que permeavam os diálogos entres os
movimentos sociais agrários acerca da reforma agrária, uma gama de discussões passou a ser
posta em outros tantos contextos sociais de diversas categorias e classes, porquanto a temática
da reforma agrária não se reduzia a reivindicações de poucos movimentos sociais agrários,
mas já alcançava um interesse de ordem nacional e, diga-se de passagem, extremamente
preocupante para determinados grupos sociais, especialmente quantos aos interesses
econômicos que estavam em jogo:
Nunca tantas forças se manifestaram convencidas da necessidade e da urgência de uma reforma agrária. O governo, a classe política, a sociedade civil, as associações camponesas e mesmo as classes produtoras, que, em posição defensiva, aceitam já medidas de transformação social no campo. No entanto, a multiplicidade de propostas encobre interesses e compromissos de natureza diversa. [...] transformando o surto reformista em um penoso e difícil impasse6
A questão agrária ganhou mais tonicidade quando João Goulart assumiu a
presidência do país, pois as consequências da crise política inaugurada desde o governo de
Jânio Quadros e transportadas às propostas sociais das Reformas de Base de Jango foram
imprescindíveis para o posicionamento do Brasil frente à polarização político-ideológica
vivenciada após a Segunda Grande Guerra Mundial, sendo, portanto, um dos fatores que
culminou o Golpe de 1964 e todas as consequências daí resultantes, inclusive sobre a estrutura
fundiária brasileira.
Assim, se de um lado os Ministros Militares e os antivanguardistas propunham o
veto ao mandato de João Goulart, doutra banda se observava demais setores sociais
organizados - sindicatos de trabalhadores, estudantes, intelectuais e militantes sociais - que
levantavam a bandeira constitucional em favor de Jango. De conseguinte, embora a solução
encontrada pelo Congresso Nacional ao promulgar a Emenda Constitucional nº 4/61 tenha
amenizado os fervores políticos que envolviam a presidência de João Goulart, certo é que seu
mandato fora abalizado em pilares frágeis, divido político e ideologicamente tanto pelas bases
governistas ora firmadas, como também no bojo das classes sociais brasileiras.
Tal contexto, entretanto, mesmo encampando uma paradoxal conjuntura sociopolítica
no país, foi essencial para a posterior promulgação do Estatuto da Terra, vez que será neste
Programas de Reforma Agrária (1946/2003). São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 73.
6 CAMARGO, A.A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964). In: FAUSTO, B. O Brasil republicano: Sociedade e Política (1930-1964). São Paulo. Difel, 1983. p. 201.
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instrumento legal de “dois gumes” a aposta utilizada pelos militares a fim de apaziguar a
euforia dos movimentos sociais de luta pela terra e abafar os brados comunistas que
avançavam pelo país.
Não obstante, impende ressaltar que, embora complexo e contraditório o cenário
sociopolítico brasileiro vivenciado à época, o fato é que o desejo por uma reforma agrária, ou
melhor dizendo, por uma reorganização fundiária7, era, de certa forma, convergente,
divergindo-se, porém, diametralmente quanto aos interesses políticos que cada categoria
social representava e queria para si.
Segundo MOACIR MOREIRA:
A reforma agrária tinha assumido tal força como questão política que, tal como ocorre hoje, ninguém mais ousava se declarar contra a sua realização, embora o significado da expressão fosse, é claro, antagônico em proclamações da Confederação Rural Brasileira e em manifestações de entidades de trabalhadores8.
Ademais, conforme se verá adiante, a vinda do Estatuto da Terra ao ordenamento
jurídico brasileiro durante o regime militar não fora uma contradição em face de suas linhas
ideológicas de desenvolvimento capitalista – como entendem alguns agraristas -, pelo
contrário, fora uma maneira de firmar esse próprio capitalismo, de uma vez por todas, no
espaço agrário e, concomitantemente, amenizar as ameaças comunistas advindas dos
movimentos sociais agrários insurgentes.
3. A necessidade de um estatuto agrário
A pressão inaugurada nos anos anteriores a 1964 pela nova configuração política,
social e econômica que o Brasil passava foi um dos principais fatores que corroboram para a
promulgação do codex agrarista em novembro daquele mesmo ano, haja vista que a
implementação de uma “reforma” agrária não era mais uma simples exigência social, ao seu
revés, mais que uma reestruturação fundiária clamada pelos movimentos sociais, também se
tornou uma necessidade político-econômica fomentadora do projeto desenvolvimentista dos
militares.
7 Refiro apenas a uma reorganização fundiária porque o Brasil não propusera, em seus longos anos de conflitos agrários, uma verdadeira ideia de reforma quantos às suas estruturas fundiárias. De fato, não se desejou uma quebra total com os paradigmas que regiam e ainda regem a organização das terras no país, ao seu revés, o que se buscou e ainda se busca é apenas uma reorganização da distribuição de terras e não uma ruptura abrupta com a forma até então utilizada para a estruturação fundiária do país. Por isso não me afino integralmente em usar o termo “reforma” para o Brasil.
8 PALMEIRA, M. Reforma Agrária e Constituição. Ciência Hoje, 6 (35), nov. 1997. p.p. 68/69.
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Não obstante, há de se considerar que a intenção de criar um estatuto agrário
brasileiro já vinha de longa data, desde os primórdios do período republicano. Certo que se
tratava apenas de uma intenção de se criar e não de uma necessidade como ocorreu no
deslinde da década de 60.
O Estatuto da Terra foi fruto de uma série de tentativas inexitosas a par de consolidar
no ordenamento jurídico pátrio republicano um Código Rural. A maior dificuldade era
evidenciada pela forma pela qual se daria uma reforma agrária no país:
Existiam dois problemas básicos e correlatos, que constituíam o cerne das discussões sobre a política agrária: o primeiro, relacionado com a questão fundamental de saber qual tipo de reforma agrária implementar (tendo em vista a multiplicidade de projetos que iam desde a reforma expropriatória até a capitalista, proposta pelos grupos mais conservadores) isto é, quem beneficiar, e a que nível, em detrimento de que forças sociais e políticas; o segundo, refere-se às fórmulas institucionais para executá-la através de alianças que tornem seus custos sociais politicamente viáveis.9
Portanto, conforme anteriormente apontado, o governo brasileiro também queria um
corpo legal que regulamentasse a questão fundiária do país, entretanto, pesava-se nesse
momento qual o conteúdo (leia-se aqui a base ideológica) disposta nessa lei, isto é, qual ou
quais as diretrizes que conduziriam as normas acerca da reestruturação agrária do Brasil em
um momento histórico no qual o país vivenciava uma complexidade política densificada pela
bipolaridade instaurada no mundo pela da Guerra Fria.
3.1 Os primeiros anos de Estatuto
A promulgação do Estatuto da Terra em 30 de novembro de 1964 representou um
marco para o direito brasileiro, especialmente na seara agrarista, em que inclusive foi
considerado como a insígnia da autonomia legislativa do Direito Agrário frente aos demais
ramos da ciência jurídica. Nas palavras de MARQUES10:
No plano da autonomia legislativa está a cobrança de uma legislação à altura da complexidade das relações jurídicas agrárias, adicionada das particularidades dos países explorados na ordem internacional. Essas relações sempre foram tuteladas insatisfatoriamente por outros ramos do direito, principalmente o Direito Civil, que tem seus referenciais no individualismo e na sacralização da propriedade. A Lei n. 601/1850 (Lei de Terras) veio para cobrir o vácuo legislativo deixado após a
9 CAMARGO, A.A. A questão agrária: crise de poder e reformas de base (1930-1964), op. cit. p. 193.
10 MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. 6. ed. Goiânia: AB, 2005. p. 115
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revogação do regime colonial de sesmarias, em 1822. Não era, porém, uma lei que atendia aos interesses dos camponeses pobres, pelo contrário, favorecia a concentração das terras.Um projeto de Código Rural foi apresentado pelo Prof. Joaquim Luís Osório à Câmara dos Deputados, em 1912, o qual não foi adiante. A Constituição de 1934 trouxe a competência expressa da União para legislar sobre "Direito Rural" (art. 5º, XIX, "c"). Em 1937, dois novos projetos de Código Rural, o de Favorino Mércio, apresentado perante a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, arquivado diante da competência legislativa privativa da União, e o de Borges de Medeiros à Câmara dos Deputados, que se perdeu com o fechamento do Congresso no golpe do Estado Novo de Getúlio Vargas.Apenas em 1964, com a promulgação da Lei n. 4.504, o Estatuto da Terra, que o Direito Agrário veio consolidar sua autonomia legislativa.
Na mesma linha de pensamento, enaltece o eminente agrarista PAULO TORMINN
BORGES11 que:
O Estatuto da terra é a lei agrária fundamental. Em seus 128 artigos ele fixa os rumos básicos do relacionamento entre a terra e o homem, procurando proteger este e aquele. Protege o homem, como sujeito da relação jurídica e destinatário das vantagens objetivadas pela lei. Protege a terra, porque ela é a matriz e a nutriz não só no presente como no futuro. Por isso ela precisa ser tratada com carinho, para que, na afoiteza, não se mate a galinha dos ovos de ouro.
Por certo, é inegável que o Estatuto da Terra revelou no ordenamento jurídico pátrio
inovações jamais existentes até então, ao ponto de criar institutos de ordem sociais mais
democráticos do que aqueles elencados no próprio texto constitucional de 1988, como por
exemplo, nas hipóteses de desapropriação de latifúndios12para fins de reforma agrária. Em
suma, pode-se considerar que o codex agrarista visava implementar duas metas principais e,
diga-se de passagem, inovadoras no campo jurídico agrarista brasileiro: a execução de uma
reforma agrária e o desenvolvimento industrial da agricultura.
Não obstante, por mais que o Estatuto contivesse inúmeros instrumentos capazes de
promover uma real e efetiva política de reforma agrária no país e, de certa forma, trazer
harmonização nas frentes de conflitos agrários que se tornavam cada vez mais preocupantes e
acirravam os ânimos políticos entre militantes de movimentos sociais de luta pela terra e
proprietários de imóveis rurais no país, o que se observou fora a má-utilização ou mesmo o
desvirtuamento de seus dispositivos legais.
11 BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário. São Paulo: Juriscredi. 1974. p. 58.
12 A Constituição da República de 1988, ao dispor sobre a política agrária em seus artigos 185 e 186, dispôs como objetos de desapropriação para fins de reforma agrária apenas aquelas terras tidas por improdutivas e violadoras da função social. Portanto, um latifúndio de grande extensão que seja produtivo – segundo os índices de produtividade elencados pelo INCRA- não poderá jamais ser alvo de reforma agrária. Doutra banda, previa o Estatuto da Terra a possibilidade de desapropriação de latifúndios por extensão, isto é, aquelas glebas de terra que excedessem a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, § 1°, alínea b, do Estatuto.
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301
Assim, o que se assistiu nos anos posteriores à promulgação do Estatuto da Terra fora
o aumento dos conflitos agrários, o esquecimento por parte dos governantes militares do
pequeno e médio produtor e a instauração de uma política agrária voltada para a formação do
complexo agroindustrial no Brasil e a consequente expansão do processo de expropriação dos
trabalhadores rurais das terras cultiváveis.
A razão que mais sustenta a promulgação tão às pressas do Estatuto logo no primeiro
ano do Golpe de 64, parece, à primeira vista, ser a necessidade de conter o acirramento dos
conflitos sociais e políticos que se travavam desde a década de 50 no espaço agrário
brasileiro. Bem por isso, a criação do Estatuto da Terra e a promessa de uma reforma agrária
fora a estratégia utilizada pelos governantes à época para apaziguar os camponeses e
tranquilizar os grandes proprietários de terra quanto às ameaças de invasões.
De conseguinte, somada à malfadada utilização do Estatuto nos anos seguintes se
observava a dificuldade estrutural-administrativa do governo brasileiro em relação aos
procedimentos para a aplicação e efetivação da política fundiária encampada no referido
codex. O Brasil não possuía um controle administrativo do seu espaço agrário condizente com
realidade, fazendo-se necessário a organização de cadastros, o zoneamento dos espaços
agrários, das terras devolutas, a regulamentação tributária e a operacionalização do órgão
gestor da reforma agrária que fora criado à época, o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária -
IBRA.
Em 10 de novembro de 1966, o então Presidente da República Castello Branco,
realizou um pronunciamento público discursando a respeito do Estatuto da Terra e as
dificuldades encontradas em seu governo a fim de promover uma reforma agrária no país,
que:
[...] em função de uma velha estrutura agrária muito distante de uma desejada e moderna estrutura social, de uma extensão de território em contraste com os recursos inexistentes e de uma mentalidade inadequada em muitas regiões do país.13
De certa forma, o governo de Castello Branco tentou implementar as diretrizes
propostas pelo Estatuto da Terra, utilizando seu tempo de mandato para promover uma
primeira estruturação e organização administrativa do espaço agrário brasileiro por meio dos
registros cadastrais, dos zoneamentos fundiários, da regulamentação tributária e da confecção
do Primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária. Consolidava-se, assim, o início do processo
13 CASTELLO BRANCO. Discursos Presidenciais – 10/11/1966. In: DE SALIS, Carmem Lúcia Gomes. Estatuto da Terra: origem e (des)caminhos da proposta de reforma agrária nos governos militares. Carmem Lúcia de Salis. Assis, 2008. 230f. p. 181.
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de efetivação da política fundiária brasileira, abrindo-se um caminho menos complicado para
que seus sucessores presidenciais pudessem continuar a execução das políticas fundiárias ora
iniciadas.
Entretanto, as práticas de ordem “reformistas” 14 postas em prática por Castello
Branco não eram bem vistas pela base oposicionista, isto é, pela ala política que não via com
bons olhos a consecução de um projeto de reforma agrária no país, haja vista que a vontade
preponderante dos antirreformistas, tais como Costa e Silva e Elio Gaspari era a construção de
um complexo agroindustrial com vistas a promover a ideologia desenvolvimentista tão
fortemente propagada pelos governantes militares que sucederam Castello Branco
Segundo CAMPOS:
As intenções do Estatuto da Terra foram melhores que os resultados. O trio gaúcho de presidentes militares que se sucederam – Costa e Silva, Médici e Geisel – não tinham o mesmo sentido dramático do problema de acesso à terra que tinha Castello, espectador do conflito agrário do agreste nordestino, e consciente do sonho do caboclo de uma nesga de terra perto do açude. Médici era pecuarista, habituado à grande propriedade, e Geisel, medularmente preocupado com os problemas urbanos de industrialização. [...] hoje se reconhece, na literatura econômica, que nossa falha em promover uma adequada reestruturação agrária foi um dos motivos para a má distribuição de renda no Brasil, comparativamente a dois rivais asiáticos – Taiwan e Coréia do Sul. A reforma agrária foi parte do elenco de reformas desses países na década de 60, o que só não melhorou a distribuição de renda como do poder político entre as cidades e campo, impedindo distorções de preços punitivos para a agricultura, para o subvencionamento dos consumidores urbanos15.
Não por menos, a falta de um sucessor que continuasse os projetos realizados nos
primeiros anos de vigência do Estatuto da Terra, somados à vocação de executar um projeto
desenvolvimentista no Brasil que não se voltava para o ingresso dos trabalhadores rurais, dos
médios e pequenos produtores agrícolas no campo das relações econômicas almejadas pelos
militares, fizeram com que a questão agrária brasileira se agravasse ainda mais, com o
aumento dos níveis de concentração fundiária e o acirramento dos conflitos agrários no
decorrer das décadas de 70 e 80.
4. A desconstrução do Estatuto da Terra pelos Governos Militares
A partir do ano de 1966, com a Presidência da República sendo chefiada por Costa e
Silva, é que se tem início o processo desconstrução do Estatuto da Terra. Se outrora fora
14 BRUNO, R. Senhores da Terra, Senhores da Guerra: A nova face política das Elites agroindustriais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária/UFRJ, 1997. p. 109.
15 CAMPO, R. Lanterna na Popa: Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p. 695.
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possível inferir que havia uma tentativa por parte do governo de Castello Branco em
implementar as diretrizes e projetos insculpidos no Estatuto da Terra, o que se verificou nos
anos seguintes fora seu – quase que total – esquecimento16.
As discussões que se travaram na década de 50 e mesmo no bojo do próprio pré-
projeto legislativo do Estatuto da Terra, especialmente quanto à forma de se promover uma
reforma agrária no país, bem como a execução de um programa de redistribuição das terras
ociosas e improdutivas, ou mesmo aquelas cuja extensão demonstrasse ser desnecessária em
face dos índices de produtividade, passaram a figurar às margens do projeto
desenvolvimentista que os militares deram impulsão a partir de 1967. O governo brasileiro
apresentava agora um diagnóstico diverso daquele elencado nos primeiros anos de vigência
do Estatuto da Terra, qual seja, a necessidade de se promover a industrialização do campo.
Com isso, os governantes militares abraçam a consecução de um projeto para a
construção de um complexo agroindustrial no país, ligado a um movimento de expansão das
fronteiras de produção agropecuarista por todo o território brasileiro, especialmente na região
Norte, sob o bioma amazônico. Por outro lado, na medida em que se construía o novo projeto
agrário brasileiro as tendências dos governantes militares desconstruíam a força normativa-
política que o Estatuto da Terra representou em seus primeiros anos de “vida”.
O Estatuto da Terra, portanto, só detinha interesse por parte dos militares conforme
era capaz de cooperar com o projeto de formação de um complexo agroindustrial no Brasil.
Logo, as disposições legais voltadas à organização administrativa do espaço agrário brasileiro,
ao zoneamento das terras e a execução da reforma agrária foram deixadas de lado, cedendo
lugar àquelas disposições normativas que corroborassem para o novo ideário almejado, como
por exemplo, os institutos do crédito rural, do financiamento rural, os contratos agrários de
arrendamento dentre outros.
Doutra banda, se num momento inicial de sua promulgação o codex agrário também
refletiu sua natureza conciliatória de interesses, isto é, acalmava os ânimos das reivindicações
dos movimentos sociais de luta pela terra ao mesmo tempo em que tranquilizava os grandes
proprietários de terras que se viam ameaçados pela atuação desses movimentos, tinha-se, no
meados da década de 60, uma total inversão dessa função “apaziguadora” do Estatuto.
16 Os pronunciamentos públicos dos presidentes que sucederam Castello Branco foram aos poucos suprimindo o próprio uso do termo “Estatuto da Terra” de seus discursos. Segundo DE SALES (op.cit, p. 187), a “supressão do Estatuto da Terra das mensagens governamentais representava a tentativa de transformar a teoria que fazia aos postulados de Castello em projetos práticos, reafirmando, com isso, a divergência existente entre Castello e seus sucessores, no que concerne à necessidade de uma lei que promovesse mudanças na estrutura agrária”.
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304
José Martins de Sousa, ao analisar a questão agrária durante o período da Ditadura
Militar Brasileira em sua obra “A militarização da questão agrária”, considera que a partir de
1966, especialmente no Governo Médici, que a questão agrária foi tratada como um
“problema menor”, dando-se maior peso aos interesses privados de empresas rurais que se
instalavam pelo país, principalmente na região Amazônica. Para o referido autor, “o governo
descomprometeu a Amazônia Legal como solução prevista, no encaminhamento da proposta
do Estatuto da Terra, para a questão agrária. Pode-se dizer que essas medidas constituíram
uma revogação tácita do Estatuto” 17.
Igualmente, somado ao desinteresse dos militares pós Castello Branco em promover
uma reforma agrária social, observou-se, ainda, a repressão com medidas violentas em face
dos movimentos sociais de luta pela terra. O desvirtuamento do projeto iniciado por Castello
Branco e das promessas legais advindas com a promulgação do Estatuto da Terra em 1964,
fez ressurgir os conflitos agrários ao redor do país. Os militantes de movimentos sociais, quer
em campo com as guerrilhas quer nas reuniões pacíficas que promoviam, foram tratados com
a máxima repressão ditatorial, por vezes resultando em atos desumanos, com uso da tortura
e/ou assassinatos daqueles que se insurgiam.
Com efeito, os anos posteriores à promulgação do Estatuto da Terra, ao revés de
colaborarem para a sua sedimentação no universo jurídico, bem como consolidar as bases dos
institutos nele previstos, serviram, na verdade, para desconstruir aquilo que um dia, mesmo
em uma zona de autoritarismo político, anunciava o prelúdio de uma reestruturação do espaço
agrário brasileiro.
5. Considerações Finais
Sabe-se que a estrutura da ocupação territorial brasileira, desde a época do Brasil
Colônia, fora, em grande parte, responsável pela a atual configuração da concentração de
terras e a formação dos latifúndios no país. Tal situação, no decorrer da história jurídico-
agrária brasileira fizera com que, antes mesmo de existir um direito fundamental à reforma
agrária, consolidou-se um direito à espoliação territorial, à concentração injusta da
propriedade rural e até mesmo a um colonialismo agrário em face das minorias sociais que, de
alguma forma, necessitam da terra para sua subsistência.
17 MARTINS, José de Sousa. A militarização da questão agrária no Brasil: terra e poder, o problema da terra na crise política. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1984. p. 45.
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305
E nesse contexto, por sua vez, a luta dos camponeses apresenta-se sob a forma dos
Movimentos Sociais Agrários, cujos objetivos não se resumem apenas a tentativas de resolver
a questão agrária do país, mas também se direcionam na discussão da distribuição de poder no
Brasil. Eis, portanto, que surgem movimentos sociais de luta pela terra, tais como as Ligas
Camponesas, na década de 50, e, posteriormente, já nas décadas de 70 e 80, a Comissão
Pastoral da Terra e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).
Toda essa contextualização fomentou durante os anos 50 e início dos anos 60 uma
necessidade real de ao menos tentar implementar no Brasil um projeto de reforma agrária e/ou
reestruturação do espaço fundiário. Fazia-se necessário que o país tivesse algum corpo legal
que regulamentasse de forma efetiva e condizente com a realidade agrária brasileira as
relações oriundas do direito a terra: definição do espaço agrário, classificação das terras,
execução da reforma agrária, regulamentação da tributação rural, entre outros.
Somado a isto, observa-se que a necessidade de um corpo legal desta feita também
era fruto de um complexo processo histórico das relações políticas, sociais e econômicas
existentes no Brasil. No início da década de 60, o país vivia um momento peculiar de sua
história, havia a bipolarização global entre capitalistas e socialistas, os movimentos sociais de
luta pela terra se mostravam cada vez mais organizados e mais imponentes, gerando uma
vulnerabilidade por parte dos detentores de terras do Brasil que se viam ameaçados com as
reivindicações dos militantes sociais, além da preocupação infligida à base governista
brasileira da eclosão de uma revolução comunista no país.
Assim, em cerca de oito meses de governo pós-Golpe, os militares promulgaram o
Estatuto da Terra. De fato, os dois gumes desse corpo legal conviveram harmonicamente nos
primeiros anos de Ditadura Militar, isto é, a função “apaziguadora” do Estatuto de acalmar os
ânimos das reivindicações dos movimentos sociais de luta pela terra por um projeto de
reforma agrária ao mesmo tempo em que tranquilizava os proprietários de terras que se viam
ameaçados pela atuação desses movimentos; e a função mediata de suas disposições: regular
de forma efetiva as normas sobre o espaço agrário brasileiro.
Tal contexto, entretanto, não durou por muito tempo. Mesmo trazendo institutos
inovadores e criando a possibilidade de se implementar uma reforma agrária no Brasil, o
Estatuto da Terra não era, em sua integralidade, bem visto aos olhos dos sucessores de
Castello Branco, uma vez que a sua base principiólogica de cunho reformista não vinha de
encontro ao “novo projeto agrário” que os governos militares de Costa e Silva, Médici e
Geisel desejavam: a configuração de um complexo agroindustrial no Brasil.
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De conseguinte, as políticas governamentais pós-66 voltaram-se apenas a interreses
desenvolvimentistas que, no campo, refltiu nos projetos de industrialização do espaço agrário
e na expansão das fronteiras agropecuaristas no norte do país, especialmente sobre o bioma
amazônico.
Portanto, ainda que o Estatuto da Terra contivesse instrumentos hábeis a, no mínimo,
inciar uma reestruturação do espaço agrário brasileiro, tal possibilidade foi expurgada pelos
sucessores do Governo Castello Branco, porquanto não se vinculava ao projeto almejado
pelas políticas desenvolvimentistas, ao menos em parte de suas disposições, haja vista que
institutos jurídicos como os contratos rurais, financiamento rural e a tributação fundiária
foram bem aproveitados pelos militares na consecução de seus projetos.
Dessarte, surge a partir de então a intensificação do processo de expropriação do
trabalhador das terras brasileiras, com o consequente aumento dos conflitos agrários entre as
décadas de 70 a 90, ao passo que um corpo legal que detinha uma nítida capacidade de
mudança social restou por inócuo frente aos interesses que preponderaram no deslinde das
relações histórico-políticas do Brasil, ou seja, promoveu-se a desconstrução da Lei nº 4504/64
– Estatuto da Terra.
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O ABOLICIONISMO BRASILEIRO E A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS
NEGROS LIBERTOS NA LITERATURA
THE ABOLITIONISM AND CONSTITUTIONAL IDENTITY OF AFRO-BRAZILIANS
THROUGH LITERATURE
Rafael Henrique Guimarães Teixeira de Freitas1
RESUMO Pelo presente trabalho será feita uma breve análise do abolicionismo e da identidade constitucional dos negros brasileiros no contexto histórico da proibição da escravidão, sob a perspectiva de Joaquim Nabuco. Pretende-se verificar se os negros libertos durante esse período obtiveram algum grau de identidade constitucional e, havendo, em que medida. Visando alcançar o destino pretendido, o artigo será desenvolvido mediante análise de material bibliográfico histórico/sociológico de direito e normas constitucionais. Para tanto, inicialmente será apresentada uma sucinta digressão acerca da escravidão e do abolicionismo no Brasil, com enfoque particular para o relato histórico e científico de Joaquim Nabuco na obra “O Abolicionismo”, escrita por ele no ano de 1883, buscando por a lente da investigação sob a visão de Nabuco. A análise concentrar-se-á na colheita de informações pertinentes da aludida obra para a investigação da situação da identidade constitucional dos negros ao final da escravidão, a partir do ano de 1988. PALAVRAS CHAVE: Abolicionismo. Joaquim Nabuco. Identidade Constitucional. ABSTRACT Through this work it will be made a brief analysis of abolitionism and the constitutional identity of Afro-Brazilians in the historical context of the prohibition of slavery, from the perspective of Joaquim Nabuco It is intended to verify that the Afro-Brazilians freed during this period achieved some constitucional identity and, if it exist, to what extent. In order to reach the intended destination, the article will be developed through analysis of bibliographic material about history, sociology, law and constitutional rights. To reach the intended destination, the article will be developed initially presenting a brief digression about slavery and abolitionism in Brazil, with particular focus to the historical and scientific speech of Joaquim Nabuco in the book “O Abolicionismo”, wrote for him in 1883, searching put de lens of investigation under the vision of Joaquim Nabuco. The analysis will focus on the collection of relevant information from the research work of the aforementioned situation of constitutional identity of Blacks at the end of slavery, from the year 1988. KEY WORDS: Abolitionism; Joaquim Nabuco; Constitutional Identity.
1 Mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais, Especialista em Direito Processual Civil e Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV), Professor do Curso de Direito Processual Civil da Faculdade Espírito-Santense de Ciências Jurídicas (PIO XII). Advogado.
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INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por escopo investigar o abolicionismo, a situação dos negros no Brasil
após o fim da escravatura e em que medida a liberdade propiciou a construção de uma
identidade constitucional para os libertos.
Toda a análise proposta levará em consideração a perspectiva de Joaquim Aurélio Barreto
Nabuco de Araújo, escritor, historiador, político, jornalista, jurista e diplomata, formado pela
Faculdade de Direito de Recife, nascido em Recife, PE no ano de 1849 e falecido em
Washington, EUA no ano de 19102, apresentada na obra “O Abolicionismo” de sua autoria,
publicado em 1883.
No livro Nabuco expressou sua posição política e sociológica totalmente contrária à
escravidão. Embora monarquista, defendia ferrenhamente o abolicionismo e desde antes tinha
a clara percepção de que a escravidão era o principal problema social.
Contudo, Joaquim Nabuco, tinha a clara e explícita percepção de que tornar a escravidão uma
prática ilegal não poderia ser meramente uma formalidade, uma ruptura simbólica. Inclusive,
como veremos adiante, para ele o abolicionismo não se resumia a isso.
Dentre as obras de Nabuco, “O abolicionismo”, especialmente, é mais do que uma literatura
comum. Trata-se de um relato histórico e de um prenúncio das cicatrizes que o período
escravocrata haveria de deixar no Brasil, contribuindo para isso a forma como ocorreu a
ruptura.
Embora um preconceito sobre o tema possa levar à equivocada conclusão de que o assunto em
análise estejam saturados, ao decorrer do presente trabalho veremos quão profunda e atual é a
sua contribuição. Não se trata de mera avaliação retórica e conceitual. Joaquim Nabuco
sempre foi um militante de seus ideais.
2 Em: <http://www.joaquimnabuco.org.br/>. Acesso em: 10 de fevereiro de 2013.
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310
Independentemente da discussão sobre as reais causas que levaram à abolição, ela trouxe
indubitavelmente certa medida de liberdade aos negros. Mas, é indiscutível também, que o
fim da escravidão como ocorrido gerou grandes problemas sociais. O abolicionismo não
apagou os resquícios de humilhação e injustiças dos cativeiros e do tratamento dispensados
por várias gerações aos negros na história do país.
Nesse contexto conflitante, uma questão que merece especial análise refere-se a identidade
constitucional alcançada pela população brasileira negra no pós abolicionismo. Se houve, e
em que medida esse reconhecimento se deu.
Serviram como base para confecção do trabalho: livros, artigos extraídos de revistas jurídicas,
artigo extraído da internet. Para o desenvolvimento do presente ensaio, foram consultadas a
Constituição Política do Império do Brasil de 05 de março de 1824 e a Constituição da
República dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1891.
1 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL E O ABOLICIONISMO
Não há como tratarmos do tema que alude ao ano de 1888 sem prefacialmente apresentarmos
uma brevíssima digressão histórica com o intuito de evidenciar a amplitude e complexidade
da questão e situar-nos no tempo e contexto da análise proposta.
É notório que desde o descobrimento do Brasil até a proibição da escravidão os negros foram
tratados como mercadorias, capturados e traficados da África até solo brasileiro, enquanto
colônia portuguesa e Império, para satisfazerem as necessidades de mão de obra crescentes.
Poucos, porém, tem a noção da real dimensão de tal prática e, talvez por isso, não consigam
compreender a magnitude do nefasto legado deixado.
Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 10 milhões de escravos africanos foram vendidos para as Américas. O Brasil, maior importador do continente, recebeu quase 40% desse total, algo entre 3,6 milhões e 4 milhões de cativos, segundo as estimativas aceitas pela maioria dos pesquisadores. [...] Os lucros do negócio eram astronômicos. Em 1810, um escravo comprado em Luanda por 70.000 réis, era vendido no Distrito Diamantino, em Minas Gerais, por
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até 240.000 réis, ou três vezes e meia o preço pago por ele na África. (...) Só em impostos, o Estado recolhia cerca de 80.000 libras por ano com o tráfico negreiro. Seria hoje o equivalente a 18 milhões de reais. (GOMES, 2007. p. 242-243)
Dados tão significativos, embora não justifiquem o injustificável, explicam por qual razão a
escravidão perdurou por tanto tempo, especialmente no Brasil. A economia brasileira
dependia do tráfico de escravos praticado desde o início da colonização tanto por da
necessidade da mão de obra eficiente e barata quanto por causa da movimentação financeira
que a própria atividade gerava para aqueles que a praticavam e para o próprio Estado.
A dificuldade de ruptura com e regime escravocrata marcou o Brasil ao longo de sua história.
Mesmo com pressões externas, especialmente da Inglaterra, grande mercado mercantilista em
expansão, o Brasil foi o último Estado ocidental a determinar definitivamente a ilegalidade da
escravidão. Foram vários os sinais e tentativas abolicionistas anteriores a 1888.
Em 1810, D. João firmou com a Inglaterra o compromisso de abolir gradativamente o tráfico
de escravos, mas nenhuma providência foi tomada. Anos mais tarde, em 1815, tendo o Brasil
ainda como colônia, Portugal deu o primeiro e tímido passo acenando para a inevitável
direção abolicionista ao assinar no Congresso de Viena um acordo pelo qual comprometeu-se
a não se envolver em novas negociações que tivessem como objeto a venda, aquisição ou
transporte de escravos. Mas tal acordo não foi cumprido (GOMES, 2010, p. 138).
Vislumbrando uma nova oportunidade que o contexto histórico propiciou, em 1826 a Grã-
Bretanha exigiu novo compromisso pela abolição da escravatura, como condição para conferir
apoio e reconhecimento da independência brasileira.
D. Pedro assinou em 1826 um novo acordo com a Grã-Bretanha, no qual se comprometia a extinguir o tráfico quatro anos mais tarde, em 1830. A decisão só foi oficializada por lei brasileira de 1831, que também declarava livres todos os escravos vindos de fora do império e impunha penas aos traficantes. Como nas ocasiões anteriores, não passou da promessa. Nunca se importaram tantos escravos como após esse acordo. Entre 1830 e 1839 entrariam no Brasil mais de 400.000 negros africanos. O motivo foi o crescimento das lavouras de café. As novas fazendas precisavam de braços — e o tráfico era a solução. A oferta de novos cativos foi tão grande que houve uma queda dos preços, de setenta libras esterlinas por cabeça em 1830 para 35 libras em 1831 (GOMES, 2010, p. 138-139).
As pressões internas dos senhores de engenho falaram mais alto. Como mencionado, toda a
estrutura econômica do Brasil estava escorada sob o pilar da escravidão. Romper com esse
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312
sistema mostrava-se uma tarefa complicada e espinhosa para os políticos que a essa altura não
queriam se expor e nem indispor com a aristocracia.
Internamente a questão era tratada como econômica, pouco se discutia sobre a
(des)humanidade da questão. Contestando a assinatura do tratado de 1826 o então deputado
Raimundo José da Cunha Matos conseguiu bem reproduzir a opinião da elite escravocrata.
Na opinião do político, tal compromisso revelou-se como um insulto à honra, independência e
dignidade da nação brasileira na medida em que contrariou a lei fundamental do império e
prejudicaria o comércio, a agricultura o conforto dos cidadãos e o próprio Estado. Como se
não bastasse, o deputado encerrou sua participação no debate concluindo que os compradores
de escravos, homens cristãos, estavam contribuindo com os negros, pois em verdade os
livravam “da morte ou de algum destino mais cruel do que a escravidão nas selvas africanas.
Por ‘destino mais cruel’, entendia-se na época canibalismo, idolatria e homossexualidade,
entre outros ‘horrores’.” (GOMES, 2010, p. 139).
E a partir deste dia que começou a ser traçada a história do maior expoente e defensor do
abolicionismo no Brasil. Joaquim Nabuco sequer havia nascido, mas certamente as
consequências desse debate em momento crucial para o país foram determinantes para a sua
formação política e, sobretudo, humanística.
No mesmo dia da aludida manifestação do deputado Raimundo José da Cunha Matos em
favor da escravidão um único parlamentar pôs-se a favor do tratado e abertamente contra a
manutenção da escravidão no Brasil: o paraense D. Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo
da Bahia (GOMES, 2010, p. 138-139).
Contrariando os anseios da elite D. Romualdo ganhou a antipatia da aristocracia e não
conseguiu reeleger-se. A resistência que atraiu foi tão devastadora, que atingiu seu
correligionário e protegido político no Pará, o então deputado José Tomás Nabuco de Araújo
a quem restou apenas um desprestigiado cargo de presidente da província da Paraíba. Joaquim
Nabuco, nascido 19 anos mais tarde, era neto de José Tomás Nabuco de Araújo (GOMES,
2010, p. 139).
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
313
E desde então nada se fez de concreto em favor da abolição. Para fins dos registros mais
relevantes, somente um ano após o nascimento de Joaquim Nabuco a primeira importante
medida contrária à escravidão foi tomada.
Em 1850, ainda sob constante pressão da Inglaterra, o Brasil Império aprovou a Lei Eusébio
de Queiróz que determinou o fim do tráfico de escravos. Com o término do tráfico e
deportação dos traficantes, o pensamento geral era de que o fim da escravidão dar-se-ia
gradativamente, levando-se em consideração a grande mortalidade de negros graças aos
extremos maus-tratos que sofriam. (NABUCO, 1883, p.04)
Seguramente foi uma medida importante e impactante relevando o contexto social e
econômico da época. Por essa razão, considerando a conjuntura, perdurou durante tanto tempo
como uma alternativa paliativa, mas no geral satisfatória. Mas o fato de ter sido extirpado o
tráfico negreiro em si, embora tenha significado um progresso, não determinou o
abolicionismo e, pelo contrário, incentivou os “proprietários” a cuidarem dos escravos para a
“reprodução” da “mercadoria” com o intuito de que futuramente não faltassem ou,
dependendo, que pudessem lucrar com o “comércio” interno da “mercadoria” negra.
Como consequência, ao avesso do esperado, a população negra no Brasil Império não
diminuiu drasticamente nos anos que sucederam à proibição do tráfico.
Mas um novo fato histórico externo trouxe novamente o tema ao debate. Ao fim da guerra do
Paraguai a discussão ganhou novo combustível que a fez inflamar. O fato de os escravos
terem combatido na guerra ao lado dos senhores fez com que a vontade abolicionista ganhasse
novos e importantes adeptos. Um ano após o fim da guerra, em setembro de 1871 foi
aprovada a Lei do Ventre Livre que propiciava aos filhos de escravos nascidos a partir
daquela data liberdade, desde o nascimento em tese, porquanto somente poderia ser
desfrutada após vinte e um anos completos (NABUCO, 1883, p.04).
Nesse cenário Joaquim Nabuco escreveu a obra “O Abolicionismo” traçando um completo
relato histórico sobre a questão da escravidão no Brasil, expondo a lentidão e a fragilidade das
medidas até então adotadas. Acabou por demonstrar como que a o fim da escravidão seria (e
foi) frágil no sentido de conferir identidade constitucional aos negros.
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Quatro anos mais tarde o fim da escravidão foi determinado pela Princesa Izabel por meio de
uma Lei Imperial.
Assim como previa Nabuco, os reflexos dessa política escravocrata, calculista e formalista
quanto ao “abolicionismo” gerou efeitos deletérios à sociedade brasileira que perduram até
hoje e explicam a dificuldade de propiciar à população negra uma verdadeira igualdade e
plena identidade constitucional.
1.1 O ABOLICIONISMO PARA JOAQUIM NABUCO.
Para alguns as medidas adotadas no sentido de flexibilização da escravidão tais como a Lei
Eusébio de Queiróz e posteriormente a Lei do Ventre Livre foram medidas de conteúdo
abolicionista.
Pelo contrário, todos os movimentos do Estado foram determinantes para a manutenção da
escravidão, inclusive as últimas duas leis aludidas. Para não ter que abolir decididamente a
escravidão, o Estado aos poucos e em medidas minimamente necessárias para não desagradar
a ninguém, sempre sob o direcionamento da aristocracia, sinalizou com tratados não
cumpridos e medidas paliativas que não haveria de proibir a escravidão definitivamente.
Mas há uma questão interessante sob a perspectiva de Joaquim Nabuco que antecede aos
pretensos atos de cunho supostamente abolicionistas praticados pelo Estado ao longo desses
anos: O que, então, configura o abolicionismo? Para alguns abolicionismo é qualquer
movimento que vise a proibição da escravidão, ou mesmo do tráfico de escravos. Não para
Joaquim Nabuco.
Já em 1883, antes mesmo da declaração da proibição da escravidão ocorrida em 1888,
Joaquim Nabuco conseguiu em uma frase simplificar o conceito de escravidão que permanece
atual, serve também para a escravidão do mundo contemporâneo. Com esse conceito começou
a construir a ideia de abolicionismo, palavra tão relacionada a ele ao longo de sua vida.
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315
Segundo Nabuco, o abolicionismo é acima de qualquer coisa uma opinião para a qual “todas
as transações de domínio sobre entes humanos são crimes que só diferem no grau de
crueldade” (NABUCO, 1884, p. 04).
A teoria da liberdade pessoal, aceita por todas as nações é a que Bluntschli, o eminente publicista suíço, discípulo de Sauvigny, define nestes quatro parágrafos do seu Direito internacional codificado: 1. ‘Não há propriedade do homem sobre o homem. Todo homem é uma pessoa, isto é, um ente capaz de adquirir e possuir direitos”. – 2. “O direito internacional não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos.” – 3. “Os escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito desde que pisam o solo de um Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado a respeitar-lhes a liberdade.” – 4. “O comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte alguma. Os Estados civilizados têm o direito e o dever de apressar a destruição desses abusos onde quer que se encontrem. (NABUCO, 1883, p.42)
Mas Nabuco não se limitou. Fez questão de indicar precisamente o que há de ser o
abolicionismo efetivamente. Novamente, demonstra de forma clara e direta uma compreensão
impar do momento histórico-social de seu tempo e prevê, desde aquela época, o que estaria
por vir nos anos que sucederam a Lei áurea. Nas palavras do autor, o abolicionismo
(...) não reduz a sua missão a promover e conseguir – no mais breve espaço possível – o resgate dos escravos e dos ingênuos. Essa obra – de reparação, vergonha arrependimento, como a queiram chamar – da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo. Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores (...) (NABUCO, 1883, p. 04).
O abolicionismo, portanto, não era para Nabuco sinônimo da emancipação, da liberdade
formal dos negros escravos, do fim da legalização da escravidão. A questão é mais profunda e
estava intimamente ligada ao interesse de justiça e humanidade, à determinação da igualdade
material e correção das mazelas que a escravidão haveria de deixar muitos anos após o seu
fim se nenhuma outra medida fosse tomada além da proibição da escravidão. Mas a justiça e
consciência moral não poderiam, e não podem, ser alcançadas sem que haja providência
política. E como a história nos ensinou, a profecia de Nabuco mostrou-se verdadeira.
O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durante todo o período de crescimento, e enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos do seu organismo de que a escravidão se apropriou, a obra irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos. (NABUCO, 1883, p. 04).
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Confirmando a expectativa de Joaquim Nabuco o fim da legalização da escravidão que viria a
ocorrer em maio de 1888 com a “Lei Áurea” não concretizou o abolicionismo que, como
exposto, abrange muito mais do que o fim da legalização da escravidão.
A liberdade relaciona-se diretamente com a responsabilidade coletiva, as ações políticas
podem e devem ser pensadas para a humanidade mesmo que tenha que estabelecer uma
relação de poder.
Os conceitos e as formas de liberdade são objeto de debates incessantes e apreensões
discordantes e inacabadas. A cada período da história o debate ressurge com inéditas visões
ou releituras de compreensões já admitidas.
A liberdade dialoga diretamente com a responsabilidade coletiva. Com base nisso, os atos
políticos devem ser pensados em benefício da humanidade mesmo que tenha que estabelecer
uma relação de poder.
E nessa relação, a Constituição é o meio adequado para expor a vontade geral com garantias e
deveres individuais em favor do todo coletivo. Mas para que isso ocorra, o povo deve ser
sujeito dessa constituição.
E a construção da identidade do sujeito constitucional pressupõe a inclusão do sujeito da
esfera do povo.
Baseado no relato histórico-literário de Joaquim Nabuco, o que pretendemos é constatar se os
negros, na situação em que se encontraram com a criminalização da escravidão no território
brasileiro em 1888 adquiriam em alguma medida uma Identidade Constitucional.
2 A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA
ESCRAVIDÃO
2.1 A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL E O SUJEITO CONSTITUCIONAL
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317
Traçado o contexto histórico e a construção do conceito de abolicionismo edificada por
Joaquim Nabuco, acepção lato senso a qual nos filiamos no presente trabalho, cumpre-nos a
árdua tarefa de delimitar a identidade constitucional para, somente depois, estabelecer a
situação dos negros no período que sucedeu ao fim da escravidão.
Para prosseguir nessa empreitada devemos partir do pressuposto de que a Identidade
Constitucional é algo que não pode ser simplificadamente conceituado. É, e deve sempre ser,
complexa, fragmentada, parcial e incompleta. Por isso tem que ser constantemente
desconstruída e construída novamente, principalmente em constituições escritas que não
conseguem acompanhar o dinamismo do mundo e pelas quais é possível alcançar múltiplas
interpretações plausíveis. Nas palavras de Michel Rosenfeld (2003, p.18) os próprios
constituintes devem ter “(...) a intenção de criar tão-somente o delineamento de uma moldura
capaz de satisfazer as necessidades das gerações futuras”.
No manejo adequado da Constituição enquanto moldura, a identidade do sujeito
constitucional pode ser analisada sob dois diferentes prismas: o daqueles que se sujeitam à
Constituição (súditos) e o daqueles que elaboraram a constituição. (ROSENFELD, 2003,
p.19).
Os negros no período posterior à extinção da escravidão em nenhuma medida participaram da
elaboração da constituição. Nem indiretamente. Para fins do presente estudo, então, temos que
considerar até que certo ponto os negros sujeitavam-se à constituição. Sujeição esta não
apenas relacionada aos deveres, mas sobretudo aos direitos conferidos.
Para uma análise retroativa como essa que nos propomos a realizar a atividade parece
facilitada na medida em que passado (antes de 1988), presente (ano de 1988) e futuro (1988
em diante) são supostamente conhecidos.
Temos que nos esquivar dessa armadilha. O estabelecimento da Identidade Constitucional
depende do entrelaçamento de passado, presente e futuro. Mas passado e futuro são sempre
passíveis de reconstruções, ora conflitantes. E assim, a Identidade Constitucional está
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318
propensa a alterar-se com o tempo. (ROSENFELD, 2003, p. 19). Nesse caso específico, o
presente e o futuro dos acontecimentos em foco são parte do passado. Portanto, toda a questão
pode ser revista e reconstruída infinitas vezes.
Adotadas essas cautelas, podemos partir para o cerne da questão. Embora os negros fossem
maioria numérica sempre foram vulneráveis frente às minorias da elite. O reconhecimento dos
negros com o fim da escravatura dependia, e ainda depende, de um exercício ético, pela
escolha do bem do outro, ainda que contrário ao próprio interesse, ainda que contrário ao
interesse ou ao bem daquele que exerce o poder de escolha e direcionamento político.
(KROHLING, 2011, p. 32)
Da perspectiva do constitucionalismo moderno, a ordem política pré-moderna podia evitar, sobretudo, a obsessão com a oposição entre o ‘eu’ e o ‘outro’ à medida que ela era capaz de sustentar uma visão unificada moldada pela religião, a ética e as normas jurídicas que se apoiavam mutuamente e que eram compartilhadas por todos. O constitucionalismo moderno, por outro lado, não pode evitar o contraste entre o eu (self) e o outro como uma consequência do pluralismo que lhe é inerente. (ROSENFELD, 2003, p. 18)
Ao fim da escravidão o reconhecimento dos negros somente poderia ocorrer mediante esse
comprometimento ético e, principalmente, o reconhecimento da responsabilidade de uns para
com os outros e do aglutinamento de todos para a composição do povo brasileiro.
Se não houvesse o pluralismo, não teria razão para existir o constitucionalismo. Se
hipoteticamente existisse uma sociedade plenamente homogênea, com um único objetivo
comum a todos os cidadãos e sem uma compreensão de que o sujeito tem algum direito
autêntico ou interesse diferentes daqueles da comunidade como um todo, o constitucionalismo
seria totalmente desnecessário (ROSENLFED, 2003, p. 21)
“O paradoxo é que, para legitimar o contexto social em que operamos, nós devemos, pelo
menos em parte, abandonar nossas próprias ideias, e isso é o que de fato torna as
interpretações dialéticas únicas em suas contradições” (ROSENFELD, 2004, p. 58).
Respeitadas as diferenças, o multiculturalismo pode ser visto por via do reconhecimento, sob
dois aspectos: na intimidade ou no âmbito social (MOREIRA, 2010.b, p. 18).
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319
Abraçando o Direito pelo prisma principiológico da Constituição, ampliando a sua aplicação e
abrangência, possibilita-se a reconstrução da identidade do sujeito constitucional amoldando
as ideias constituintes à proteção dos direitos fundamentais (AZEVEDO, COURA, 2010, p.
208).
No período sobre o qual nos referimos, entrementes, não havia substancialmente presente
alteridade e tampouco proteção constitucional conferida aos negros. A questão é antecedente.
Joaquim Nabuco compreendia isso e justificava a defesa pelo abolicionismo por razões
principalmente humanísticas e de moralidade social. Mas apresentou também, para aqueles
que não se comoviam, a necessidade de abolição da escravatura por questões econômicas.
A escravidão era um entrave ao desenvolvimento econômico do Brasil por impossibilitar o
seu incremento na medida em que desonrava o trabalho, impedia a imigração, desonrava o
trabalho e acabava por inibir o desenvolvimento do comércio e da indústria. Além disso,
impedia a formação de um país coeso, com identidade nacional, atrasando-o em relação aos
demais Estados sul-americanos (NABUCO, 1883, p. 48).
A questão a ser encarada adiante, então, antecede a isso. O que é preciso averiguar é se os
negros eram, e em que medida, destinatários da Constituição. Em que medida o fim da
escravidão conferiu a eles identidade. Em outras palavras, cumpre-nos averiguar se os negros
ao fim de 1888 foram inseridos na acepção de povo brasileiro.
O crucial é determinar como, e se, a Identidade Constitucional conseguiu se distanciar o
suficiente da identidade negra, sem desconsiderá-la, incorporando elementos dela, para
começar a forjar sua própria imagem a partir de então, e permanecer viável no seu próprio
ambiente sociopolítico. (ROSENFELD, 2003, p. 53)
2.2 O FIM DA ESCRAVIDÃO EM 1888 E AS CONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891
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Tomando como nossa a visão de Joaquim Nabuco, o fim da escravidão que viria a ocorrer em
maio de 1888 com a “Lei Áurea” não concretizou o abolicionismo que, como exposto,
abrange muito mais do que a extinção da legalização da escravidão.
Pela leitura da Lei Imperial Nº 3.353 de 13 de maio de 1888, popularmente conhecida como
Lei Áurea, percebe-se que a extinção da escravidão no Brasil foi um ato isolado,
desacompanhado de qualquer outra medida abolicionista.
A referida Lei foi compôs-se por apenas dois artigos, adiante transcritos
LEI Nº 3.353, DE 13 DE MAIO DE 1888
Declara extinta a escravidão no Brasil.
A Princesa Imperial Regente, em nome de Sua Majestade o Imperador, o Senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte: Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil. Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.
Na ocasião, vigorava a “Constituição Política do Império do Brazil”, outorgada em 25 de
março de 1824, pouco tempo depois da Independência do Brasil, como sabido produto de
projeto imposto por Dom Pedro I, apoiado pelo partido português, em detrimento das
tentativas do partido brasileiro de promulgar uma constituição por intermédio de uma
assembleia constituinte nacional.
Na forma do artigo 6º da Constituição de 1824, eram legalmente considerados cidadãos
brasileiros
Art. 6. São Cidadãos Brazileiros: I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação. II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os illegitimos de mãi Brazileira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio. III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em sorviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio no Brazil. IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia. V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.
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A rigor, enquanto libertos os negros no pós 1888 poderiam ser admitidos como brasileiros.
Mas será que o eram como parte do povo. O voto, por exemplo, além de censitário era
proibido aos libertos. Não poderiam ser eleitores e muito menos eleitos.
Já em fevereiro de 1891, a primeira Constituição após a proclamação da república, embora
tenha ampliado a possibilidade de voto e não referir-se a “libertos”, ainda deixou à margem
do processo de participação política os mendigos e analfabetos.
De maio de 1888 a fevereiro de 1891 as chances de alfabetização dos escravos libertos após a
extinção da escravidão eram ínfimas. Mesmo que tivesse ocorridoo maciçamente, também é
cediço que os votos eram direcionados e as eleições domadas pelas elites dominantes (“de
cabresto”). Para os negros, portanto, nenhuma chance de participação política seja de voto, de
ser votado ou de qualquer grau de representatividade.
A participação política, certamente estava muito longe do alcance dos negros no pós-extinção
da escravidão. Isso é indiscutível e as próprias Constituições já evidenciam a situação de
isolamento dos agora libertos.
A política é essencialmente desempenhada em ações e relações interpessoais. A liberdade
política só pode ser alcançada coletivamente.
Por outro lado, a identidade constitucional, poder-se-ia, ainda, ser obtida em diferente escala e
maneira pelos negros libertos nesse período pós-extinção da escravidão.
3. A IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS NEGROS APÓS O FIM DA ESCRAVIDÃO
SOB A PERSPECTIVA DE JOAQUIM NABUCO
A questão da extinção da escravidão não representou uma ruptura definitiva com a ordem
segregacionista vigente. Impossível seria que mais de três séculos de escravidão fossem
apagados com a edição de uma Lei Imperial de dois artigos, nenhuma mobilização política,
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ato Estatal ou comoção social. Não representou o surgimento imediato de uma identidade
constitucional visível e definitiva aos negros.
Como mencionado anteriormente, a consignação da Identidade Constitucional é dependente
do entrelaçamento de passado, presente e futuro. Os escravos, traficados desde a colonização
até 1850 e mantidos em cativeiro até 1888 carregaram consigo um histórico de total falta de
reconhecimento e ausência de identidade. Até então, os negros eram considerados como
mercadorias. Sequer eram tidos como sujeitos, que dirá como sujeitos constitucionais.
Enquanto escravos, os negros não faziam, expressamente, parte do povo brasileiro. Não eram,
definitivamente, cidadãos. Já nos termos da Constituição de 1891, quer sejam ingênuos, ou
libertos, aqueles que tiverem nascido no Brasil seriam cidadãos brasileiros. Ao menos era o
que estava escrito. O texto não deixa dúvidas de uma tímida evolução pretendida. Mas
também não exprime a realidade.
Para determinação do alcance subjetivo da constituição, cumpre ressaltar que a doutrina da
interpretação, para ser legítima, deve adstringir-se aos princípios fundamentais da ordem
jurídica constitucional instaurada, o que significa que os princípios gerais precisam ser
obedecidos. Todavia, nesse caso a manutenção da exclusão dos negros da delimitação de povo
obedeceu aos critérios delineados pela própria constituição, como vista, interpretada e posta
em prática na época. (VERDU, 1985, p. 115-116).
A liberdade não decorre de uma mera concessão do Estado. Está intrínseca, em verdade, à
conduta humana. Por tal razão o totalitarismo expõe-se, sob a perspectiva de Hannah Arendt
(1989, p. 443), como uma terrível violência, haja vista estabelecer o domínio de uma minoria
sobre uma maioria.
O mesmo ocorre com a escravidão. O domínio é o embrião da violência e aqueles que aceitam
essa situação não exercem a cidadania. A liberdade deve ser obtida.
Na percepção Arendt a identidade humana é confirmada partindo do outro. A sociedade,
coletivamente e exercendo a cidadania, deve tomar para si a liberdade e nunca esperar que ela
seja distribuída pelo Estado, à mercê de quem o governa.
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A diferença decisiva entre as “infinitas improbabilidades” sobre as quais se baseia a realidade de nossa vida terrena e o caráter miraculoso inerente aos eventos que estabelecem a realidade histórica está que, na dimensão humana, conhecemos o autor dos “milagres”, São homens que os realizam – homens que, por terem recebido o dúplice dom da liberdade e da ação, podem estabelecer uma realidade que lhes pertence de direito (ARENDT, 1997, p. 220).3
Já que o reconhecimento é um empreendimento coletivo, a determinação da relação entre
Constituição e povo requer uma análise preliminar: a definição de quem é esse povo. E,
consequentemente, deve-se determinar quem são os destinatários do discurso Constitucional.
(MOREIRA, 2010 p.119)
É difícil sustentar que os negros durante todo o século XVIII e ao menos início do século XIX
tenha sido inseridos na delimitação de povo do discurso Constitucional vigente da
Constituição de 1891.
No patamar alcançado após 1888, os negros bem ilustraram a “exclusão” da composição de
povo.
Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da população, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença física no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencial e difusamente dos sistemas prestacionais [Leistungssystemen] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que significa “marginalização” como subintegração (MÜLLER, 2003, p. 91).
O caso dos negros no Brasil em tela tem uma peculiaridade interessante quanto a esse ponto.
A vinculação dos afrodescendentes preponderantemente a determinadas áreas ocorreu
gradativamente em decorrência da exclusão, não o contrário. Como os negros atendiam
ininterruptamente seus senhores viviam com eles. Após a escravidão foram formando áreas de
ocupação nas periferias.
Como bem constata Nelson Camatta Moreira (2010.a, p. 124), essa situação acarreta uma
reação sequencial de exclusões e, da mesma maneira, a pobreza política. Mais de 120 anos
depois da Lei Áurea e ainda não conseguimos confortar e compatibilizar o abolicionismo na
forma da identidade almejada por Nabuco para os negros.
3 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 4ª ed. São Paulo: editora Perspectiva, 1997. p.220.
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324
E como se constrói uma identidade pondo os negros nas ruas desamparados, à sorte do relento
esperando a integração nacional, o reconhecimento imediato dos ex-escravos com povo
brasileiro? Por causa dos mesmos óbices o surgimento da identidade também não haveria de
aparecer plenamente como um presente da Princesa Isabel?
A formação dessa parcela da população, com a mera ruptura da escravidão sem nenhuma
outra medida aliada, propiciaria o aumento da parcela da população que embora não fossem
mais escravos, não seriam, também, cidadãos.
Essa fatia do povo vivia em condições precárias, como vassalos. Sofriam com a falta de
emprego e ficavam à mercê do que quisessem pagar os proprietários das poucas terras ainda
produtivas do interior do país. Suas condições de vida eram precárias. “Moravam entre quatro
paredes, separadas no interior por uma divisão em dois ou três cubículos infectos, baixas e
esburacadas, abertas à chuva e ao vento, pouco mais do que curral, menos do que uma
estrebaria”. (NABUCO, 1883, p. 77)
A história contada por Nabuco, conhecida por todos e estudada por pouquíssimos, demonstra
que a realidade dos negros era tão violenta nos séculos que antecederam ao ano de 1888, que
podemos concluir, de fato, que algum grau de Identidade Constitucional foi sim alcançado.
Não uma identidade obtida pelo reconhecimento na intimidade, pelo desprezo tayloriano
(MOREIRA, 2010.b, 18), mas, porque não, no âmbito social brasileiro.
Desde a captura na África até o transporte e a venda, os negros foram lançados a toda sorte de
atos desumanos. Ao chegarem ao Brasil, relata Joaquim Nabuco (1883, p. 64) que um dos
principais problemas foi da forma como se dava a reprodução entre brancos e negros, de
abastardamento destes por aqueles e da falta de formação de uma família, em quase todos os
casos.
O fim da escravidão, nesse aspecto, pôde trazer o fim da promiscuidade das senzalas,
estimulada pelo senhor no interesse da produção do ventre escravo, o fim do abuso da força
do senhor. O filho pôde, ao menos, deixar de nascer debaixo do açoite. Não seria mais
carregado pela mãe em suas costas durante a obrigatória tarefa da enxada. O fim da
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325
escravidão retiraria esse empecilho à constituição da família e acabaria com o interesse venal
dos senhores de escravos na reprodução humana (NABUCO, 1883, p. 65).
O fim da escravidão, conforme antecipou Joaquim Nabuco (1883, p. 66), poria fim também
ao “tratamento dos escravos como animais”. Durante todos esses séculos de escravidão os
negros foram tratados em muitas situações de forma pior que os animais dos Senhores. Muitas
vezes não eram alimentados e vestidos minimamente e ainda eram com frequência acoitados.
Pôr-se-ia fim, ainda, à apropriação do trabalho escravo pelos Senhores e encerraria a
submissão de uma “raça” aos caprichos da outra. Tornaria possíveis os atos de previdência, de
trabalho voluntário, de responsabilidade própria, dignidade pessoal (NABUCO, 1883, p. 65).
CONCLUSÃO
A história do escravismo no Brasil, da colônia ao império, é conto de terror entalhado no
epitáfio de milhões de negros ou na pele dos tantos outros sobreviventes.
Joaquim Nabuco, grande expoente de sua época, conseguiu transmitir em sua obra “O
Abolicionismo” parte dessa história, que acompanhou ativamente durante toda a sua vida, na
luta pelo abolicionismo.
Abolicionismo que fez questão de frisar significa muito mais do que o fim da legalização da
escravidão. Representa a luta pela correção das mazelas causadas aos negros durante séculos,
pela prevalência da humanidade, da alteridade, e a busca pela igualdade material.
“O Abolicionista” não se resume a relatar a história, embora o faça muito bem
realisticamente. É um tratado sobre as mazelas da escravidão, em todos os sentidos, uma obra
primorosa e atual ainda hoje, que dirá no ano de 1883.
Assim, os elementos do livro foram significativamente relevantes e indispensáveis para uma
adequada compreensão do fim da escravidão pela Lei Aurea, tal como realmente ocorreu.
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326
A medida decretada no ano de 1888 foi isolada e apenas sacramentou o inevitável. O Brasil,
último pais do ocidente a extirpar a escravidão autorizada pelo Estado só o fez por pressões
externas e, principalmente, pela derrocada crescente da aristocracia feudal que perdeu muita
influencia a partir da crise.
A formalização jurídica do fim da escravidão não foi de fato um processo abolicionista. Em
verdade, o Brasil demorou a ceder às pressões externas da Inglaterra e resistiu enquanto pode.
O regime escravocrata chegou ao fim por uma série de fatores, e nenhum deles compreendia o
humanismo ou a alteridade.
Mas a situação dos negros escravos era tão absurdamente degradante que a proibição da
escravidão no Brasil como medida isolada gerou em certa medida e grau uma Identidade
Constitucional aos negros que deixariam dali por diante de ser tratados ora como mercadoria
ora como animais.
Mas os reflexos dessa política escravocrata durante séculos, ávida por dinheiro e importante
para manutenção das necessidades e desnecessidades da aristocracia gerou efeitos nefastos à
sociedade brasileira que perduram.
A segregação e a desigualdade passam a ter uma nova dimensão. Com a Lei Áurea o escravo
passa a ser o negro. O preconceito e a diferenciação assumem como marca a etnia. A
sociedade permanece díspar economicamente e socialmente e intolerante em relação à
diferença de cor.
Com o fim da escravidão legalizada, como dito alhures, o negro ganhou uma pequeníssima
medida de Identidade Constitucional. Foi depositado em uma situação na qual o
reconhecimento mísero os manteve durante muitos outros anos distantes, sob controle, sem
ameaçarem o patrimônio ou intervirem na política, ambos desde sempre em poder da
aristocracia branca.
REFERÊNCIAS
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DIREITOS HUMANOS NO ESTADO DE MATO GROSSO E O TRABALHO DA
ORGANIZAÇÃO NÃO GOVERNAMENTAL CENTRO DE DIREITOS HUMANOS
HENRIQUE TRINDADE (CDHHT): UM ESTUDO DE CASO
HUMAN RIGHTS IN THE STATE OF WHOLESALE AND KILL NON-GOVERNMENTAL
ORGANIZATION OF WORK CENTRE FOR HUMAN RIGHTS HENRIQUE TRINITY
(CDHHT): A CASE STUDY
Edna Soares da Silva1 Resumo O presente trabalho é um estudo de caso da Organização Não Governamental denominada Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT) criada a partir das articulações do Movimento Popular em Cuiabá/MT nos anos oitenta, como instrumento mobilizador de luta contra a violação sistemática dos direitos humanos no Estado de Mato Grosso. Descreve-se o processo de articulação e mobilização que redundou na sua criação, retrata casos emblemáticos de violação aos direitos humanos acompanhados pela entidade e investiga as percepções dos militantes políticos que se articularam na criação do CDHHT nos anos oitenta, bem como daqueles que atuaram na entidade na década de noventa, buscando fazer um contraponto entre as duas décadas. Desse modo, objetiva-se reconstruir a história do CDHHT identificando as motivações singulares, os conflitos e os elementos de consenso que possibilitaram criação e a formação da sua identidade caracterizando os processos educativos implementados pelo CDHHT na sua atuação. Para tanto, utiliza-se como metodologia a abordagem qualitativa para compreender essas várias facetas do fenômeno e discute-se no campo teórico a categoria direitos humanos enquanto construção histórica e a educação popular em face das práticas dos movimentos sociais como instrumento para a educação para os direitos humanos. Palavras-Chaves: Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Educação Popular.
Abstract
This paper is a case study of the Non-governmental Organization named Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade (CDHHT) (Henrique Trindade Human Rights Center), created out of the articulations of the Popular Movement in Cuiabá/MT during the eighties as a moralizing instrument for the fight against systematic human rights violation in the State of Mato Grosso. On purposes of such study, this paper describes the process of articulation and mobilization that resulted in its creation, pictures the emblematic cases of human rights violations followed-up by the entity and investigates the perceptions of the political militants that have articulated themselves to create the CDHHT during the eighties, in comparison with the ones that have acted 1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso – Linha de Pesquisa Movimentos Sociais e Educação. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora do Curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Católica Rainha da Paz (FCARP), Membro do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Direito (NUPEDI) – Araputanga/MT.
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within the entity during the nineties, aiming to establish a counterpoint between the two decades. In this manner, the paper endeavors to reconstruct the CDHHT’s history, identifying the singular motivations, the conflicts and the consensual elements that allowed for the creation and formation of its identity, characterizing the educational processes implemented by CDHHT during its actuation. Therefore, the methodology employed consists of a qualitative approach aimed to understand the various facets of this phenomenon and discusses, within the theoretical field, the human rights category as a historical construct and the popular education in face of the practices of social movements as an instrument for the education in human rights. WayWords: Human Rights, Social Movements and Popular Education.
Introdução
Essa pesquisa resulta da Dissertação de Mestrado defendida em 2005 na Universidade
Federal de Grosso, Programa de Pós Graduação de Educação e Movimentos Sociais. A
motivação inicial deu-se em razão opções pessoais da pesquisadora como militante no campo dos
direitos humanos num período relativo há dois anos. O Centro de Direitos Humanos Henrique
Trindade é constituído como objeto desta pesquisa na qual a pesquisadora em questão é desafiada
a destruir e construir suas representações, bem como descobrir algumas opções e balizas teórico-
metodológicas, significativas, como educadora e militante popular, através das quais pudesse
iluminar sua intervenção e contribuição com os movimentos sociais.
A abordagem da presente pesquisa, enquanto estudo de caso, é a abordagem qualitativa na
qual a investigação se dá a partir do contato direto com o ambiente constitutivo do Centro de
Direitos Humanos Henrique Trindade: pessoas, situações, documentos, procurando evidenciar o
maior número possível de elementos configuradores do objeto em questão. Isto porque o “o
estudo de caso é o estudo de um caso” (LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 17). Ele é representativo de
uma singularidade, no sentido de que este possui um interesse próprio, um valor em si mesmo.
Destaca-se por se constituir numa unidade dentro de um sistema mais amplo (LÜDKE; ANDRÉ,
1986, p. 17) no qual uma de suas características é a necessidade de “interpretação em contexto”
(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 18), ou seja, o objeto da pesquisa é situado; parte-se da realidade na
qual ele se insere.
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1 Constituição do Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade
O Estado de Mato Grosso na década de oitenta sofre o impacto negativo do modelo de
desenvolvimento adotado pelo Governo Militar: grandes tensões no campo e na cidade
(concentração de terra) e a ação ilegal e violenta dos agentes estatais que redunda em práticas
cotidianas de violação dos direitos humanos. Pedro Casaldáliga descreve essa realidade:
Nesta(s) região(ões) retirada(s) do Brasil, os latifundiários faziam e desfaziam a bel prazer, sem precisar dar explicações a ninguém, já que tampouco ninguém os cobrava. Aqui quem tinha dinheiro comprava o silêncio, e os latifundiários, apoiados pela ditadura militar, tinham terra, dinheiro e pouca vontade de dar explicações sobre a origem de sua riqueza (ESCRIBANO, 2000, p. 24).
Nesse cenário, a Igreja do Rosário e São Benedito, uma das paróquias da Arquidiocese de
Cuiabá, que teve entre suas finalidades e projetos nos fins dos anos 70 e início dos anos 80 a
promoção e o apoio aos Movimentos Populares, catalisa diferentes forças sociais e busca se
contrapor à referida realidade. A Paróquia orienta-se à época pela chamada Teologia da
Libertação, teologia com feições latino-americanas que tem como chave de compreensão da
história e presentificação das relações das pessoas com Deus a figura do oprimido.
É constituída então uma frente em favor dos direitos humanos em MT que, em 1983 no
período de 19 a 26 de junho, realiza a I Semana de Direitos Humanos com o tema Direitos
Humanos: Direitos dos Oprimidos com o nome de Comitê Provisório de Defesa e Promoção de
Direitos Humanos. Inicia-se, assim, a trajetória do Centro de Direitos Humanos Henrique
Trindade (CDHHT) ao modo dos Movimentos Sociais, estabelecido enquanto uma “[...] rede de
interações informais entre uma pluralidade de indivíduos, grupos e/ou organizações, engajados
num conflito político ou cultural, como base numa identidade coletiva” (SCHERER-WARREN,
1999, p. 26).
A organização que a princípio é informal, com vistas a ter legitimidade no espaço público
na defesa dos direitos humanos, acaba por se definir, enquanto formato jurídico, como entidade
civil, de direito privado, sem fins lucrativos ou partidários, econômico, com sede em Cuiabá-MT.
Esta definição a inscreve no âmbito das Organizações não Governamentais (ONGs) entendidas
como: Organizações formais, privadas, porém com fins públicos e sem fins lucrativos, autogovernadas e com participação de parte de seus membros como voluntários,
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objetivando realizar mediações de caráter educacional, político, assessoria técnica [...] e desencadear transformações sociais ao nível micro (do cotidiano e/ou local) ou ao nível macro (sistêmico e/ou global) (SCHERER-WARREN, 1999, p. 55).
O CDHHT terá como representatividade da luta pelos direitos humanos a emblemática
figura de Henrique Trindade. Trata-se de um caso de violência e tortura impetrado por
fazendeiros e agentes estatais (policiais e delegado). Henrique Trindade simbolizaria a missão do
CDHHT: a denúncia da violência institucionalizada, aquela praticada por agentes do aparelho
estatal.
Conforme arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1982) Henrique Trindade foi assassinado e só
encontrado dias depois com um olho arrancado, outro furado a bala e a parte do lábio inferior
arrancada, na localidade conhecida como Capão Verde, no município de Alto Paraguai, ao tentar
reagir à invasão de sua casa pela polícia civil e por jagunços da Fazenda Coreana.
Capão Verde, segundo arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1982) era uma área de
aproximadamente quatro mil hectares onde viviam cerca de cento e setenta famílias, a setenta
quilômetros de Alto Paraguai-MT. Odomila Paimel Franco, esposa de Henrique Trindade, contou
que em 1979, três anos depois da chegada à região, começaram a ter problemas com a Fazenda
Coreana, pertencente a um senhor conhecido como “Português” que alegava ser o dono da terra.
Henrique Trindade disse que só sairia se o referido fazendeiro apresentasse a escritura da
fazenda.
O caso nunca foi apurado judicialmente, sequer identificado os culpados, apesar de eles
serem conhecidos e continuarem vivendo tranquilamente na região. Segundo um dos militantes
fundadores do CDHHT, “todo mundo” sabe quem são os assassinos de Henrique Trindade.
2 Violações de Direitos Humanos acompanhadas pelo Centro de Direitos Humanos
Henrique Trindade
O CDHHT acompanhou inúmeros casos de violência ocorridos no Estado. Neste trabalho
foram selecionados alguns, representativos dos diferentes lugares e sujeitos vitimados pela
violência no Estado: espaço urbano e rural, menores, negros, posseiros, reservas indígenas.
O primeiro é o Caso Toalha Azul que ocorreu entre outubro e dezembro de 1984, em
Cuiabá, quando sete pessoas foram assassinadas (seis homens e uma mulher) por policiais com
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um tiro na nuca, e todos, com exceção da mulher, foram encontrados com o rosto amarrado com
uma tira de toalha azul, conforme arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1982).
No desenrolar do caso, soube-se que dezenas de pessoas foram eliminadas por policiais e
os corpos jogados no “Portão do Inferno” na região de Chapada dos Guimarães-MT. Além de
policiais, ficou também caracterizado o envolvimento de políticos da região. Ademais, membros
da OAB atuaram como defensores de policiais que foram julgados, e o juiz que atuava no caso,
para não sentenciar, pediu remoção para outra Vara Criminal, segundo arquivos do CDHHT
(Cuiabá, 1982).
O segundo é o Caso Vicente Cañas. Trata-se da figura do espanhol, missionário jesuíta e
indigenista Vicente Cañas que vivia com a nação indígena Enawenê-Nawê há doze anos na
região de Juína, norte de Mato Grosso. A nação indígena se encontrava num processo de
demarcação de suas terras – a Reserva Salumã. Cañas foi encontrado morto por integrantes do
CIMI no dia 17 de maio de 1987 perto de seu barraco, às margens do Rio Juruena. Segundo um
indigenista “[...] era um elemento que dificultava a exploração dos índios, ajudava a impedir a
invasão das terras Salumã [...], denunciava o roubo da madeira [...]” (GOMES, 1987).
O terceiro é o Caso Matupá ocorrido na cidade de Matupá a 700 quilômetros de Cuiabá-
MT. No dia 23 de novembro de 1990 três assaltantes são queimados vivos por populares depois
de serem torturados por policiais. O caso conta, ao que tudo indica, com a anuência das
autoridades locais (prefeito, vereadores e delegado). O episódio é gravado por um cinegrafista
amador. Eis um trecho da gravação reproduzido pelo Jornal O Estado de São Paulo, encontrado
nos Arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1991):
Os assaltantes estão mais ensangüentados, feridos a bala, um deles com um buraco na cabeça. Alguém joga gasolina em um deles e ateia fogo. O assaltante se debate, mais gasolina é despejada, os outros dois ficam em chamas. – Quem tem um revólver aí? Ele já sofreu o suficiente – diz alguém. – Não, deixa morrer devagarzinho – responde o outro (Arquivos do CDHHT 1991).
Outro é o Caso Mata Cavalo. Trata-se dos remanescentes do Quilombo Sesmaria Boa
Vista, comunidade conhecida como Mata Cavalo formada há mais de 200 anos por escravos
alforriados e fugitivos. É uma área de 13.627 hectares de terras no município de Nossa Senhora
do Livramento-MT onde cerca de 300 pessoas mantêm resquícios da organização dos Quilombos
de acordo com os Arquivos do CDHHT (Cuiabá, 1996). O caso chega ao CDHHT em maio de
1996, por meio de três pessoas da localidade buscando fazer uma denúncia acerca da invasão das
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suas terras por fazendeiros (Militantes). No CDHHT descobre-se que há um longo processo de
expulsão dos remanescentes que vai desde a ação de despejos impetrados pela Justiça à expulsão
das terras sobre a mira de armas de fogo (Arquivos do CDHHT, 1996).
O último caso retratado é o Caso Tijucal que se desenrola no Bairro Tijucal, cujos alvos
são os adolescentes daquela região da Capital no ano de 1997. O Caso contabiliza os seguintes
dados: um adolescente morto, três sequestrados e seis testemunhas assassinadas. Em 1999, dos
três suspeitos do Caso, dois se encontravam desaparecidos ou vivendo em liberdade, e apenas o
policial João da Silva Mendes tinha sido condenado (Arquivos do CDHHT, 1999).
O CDHHT acompanhou esses casos e tantos outros desenvolvendo e articulando várias
ações, entre elas: audiências periódicas com representantes de Órgãos Governamentais de MT;
articulação junto ao Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) com diferentes
entidades pressionando os órgãos governamentais, bem como contatos com a Comissão de
Direitos Humanos da Câmara Federal, espaço de acolhida e organização dos familiares vítimas
de violência; realizando Encontros Populares de Monitoria Jurídica; denunciando os casos e os
colocando em permanente publicidade e visibilidade por intermédio da imprensa televisionada e
escrita.
Só para citar, o Caso Matupá ganhou visibilidade pública em nível nacional somente em
decorrência da ação do CDHHT, na pessoa do jesuíta, Padre José Tem Cate, que encaminhou
uma cópia da fita ao escritório do Movimento Nacional de Direitos Humanos, em Brasília, em
fevereiro de 1991(Arquivos do CDHHT, 1991). A cópia da fita com as imagens do Caso correu
pelo Brasil e pelo mundo, inclusive foi vista pelo então Presidente da República, Fernando Collor
de Mello, que ficou chocado ao ver as imagens e contatou diretamente o Ministro da Justiça,
Jarbas Passarinho, pedindo medidas urgentes para localizar os culpados (Arquivos do CDHHT,
1999).
A realidade demonstra o vácuo institucional. O Estado de Direito comprometido, pois
direitos e garantias aos direitos elementares da pessoa não são considerados como tais. Implica
então desmentir a tradicional imagem do brasileiro como “homem cordial” que encanta pela
doçura de sentimentos, pela afabilidade no trato e pela generosidade com que recebe os visitantes
estrangeiros, segundo textos da história ufanista (BENEVIDES, 1995a, p. 1).
Morgado (2001, p. 12) vislumbra essa realidade como um mal-estar na cultura brasileira:
o costume de transgredir a lei permeando as relações intersubjetivas travadas na cultura
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brasileira. Esse processo resultaria da identificação social com os modelos abusivos de
autoridade, nomeadamente aquele veiculado nas ditaduras no País e que constituíram as forças de
reserva do Exército, como as polícias militares estaduais (1976) para auxiliarem-no na repressão
à guerrilha e aos movimentos de oposição política (MORGADO, 2001, p. 31).
Nesse modelo, a força bruta e letal, abusivamente investida de autoridade estatal, fragiliza
e/ou descumpre o Contrato Social, destitui os despossuídos do direito a ter direitos (ARENDT
apud BENEVIDES, 2005b, p. 7) e revela insensibilidade com o sofrimento da vida. Um banquete
macabro, corroborado pela insensibilidade com o sofrimento da vítima (PASSOS; SATO, 2002).
Essa realidade leva a pensar no extremo a que chegou a humanidade em termos de
violações e desrespeito à dignidade humana, nas Guerras Mundiais do século XX. Auschwitz, por
exemplo, pelo seu conteúdo de desumanidade. Ilustrativo o pensamento de Adorno de que
Auschwitz2 é a própria recaída do ser humano no sentido de que a monstruosidade pode perdurar,
pode voltar a ser cometida. É o que impele os homens até o indescritível que, em Auschwitz,
culminou em escala histórica (ADORNO, 2003, p. 119).
O que fazer para combater essa realidade? Segundo Adorno, a única força capaz de
combater o princípio de Auschwistz seria a autonomia ou a força para a autodeterminação, para a
não participação. Pode-se dizer que as entidades de diretos humanos são representativas dessa
autonomia; carregam a força da não participação, pois não compactuam com o modelo abusivo
de autoridade e reivindicam, mesmo ante a debilidade da sociedade civil, o respeito às leis, o
respeito ao Contrato Social.
O CDHHT, como entidade de defesa dos direitos humanos pode-se dizer, constitui uma
das forças autônomas no Estado de Mato Grosso de não adesão ao modelo arbitrário institucional.
Desse modo, tanto nos casos descritos como em tantos outros, mediante a atuação de seus
militantes, atua na denúncia e no enfrentamento às distorções institucionais, exigindo o
reconhecimento dos direitos dos povos indígenas da região, menores, posseiros, remanescentes.
É imperativo, diante do modelo estatal arbitrário brasileiro, portanto, o reconhecimento do
campo dos direitos a cada indivíduo: o direito a ter direitos (BENEVIDES, 1995b, p. 7) que se
2 Auschwitz foi o maior campo de concentração de prisioneiros montado pelos nazistas. Construído em 27 de março de 1940 ao sul da Polônia a poucos quilômetros da fronteira com a Eslováquia. As estimativas divulgadas são de que 1,1 a 1,5 milhões de pessoas morreram em Auschwitz, 90% delas judeus. (AUSCHWITZ, 2005).
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335
inscreve em termos de direitos humanos a partir do pressuposto da tolerância e do
reconhecimento da dignidade humana.
Qual é o antídoto? Quais as estratégias que permitirão o reconhecimento da dignidade de
todos e de todas no território brasileiro, o exercício da tolerância aqui, no Estado de Mato
Grosso, especificamente? Para Adorno, o remédio é a educação, pois toda educação se opõe à
barbárie. Uma educação enquanto autorreflexão crítica que possibilite a criação de um clima
espiritual, cultural e social que não dê margem à repetição da barbárie, tornando conscientes os
motivos que levam ao horror, pois as forças contra as quais se devem lutar estão inscritas na
marcha da história, e o potencial autoritário continua bem mais forte do que se supõe (ADORNO,
2003, p. 123).
3 A Percepção dos Atores do Centro de Direitos Humanos Henrique Trindade: Anos
Oitenta e Noventa
Ademais, o trabalho retrata as percepções dos atores3 que compuseram o CDHHT na sua
trajetória, primeiramente na sua criação nos anos oitenta e na década seguinte, os anos noventa.
Procura, desta forma, manter a memória destas presenças no CDHHT, identificar as motivações
singulares, os conflitos e os elementos de consenso presentes na entidade, pois
[...] ancorar as pessoas, referi-las e circunscrevê-las nos lugares sociais delas, nos seus lugares, em suas raízes e nas suas temporalidades é reconhecê-las situadas e admirar não apenas o lugar sociocultural que ocupam, mas também a singularidade de suas presenças nestes lugares (PASSOS; SATO, 2002, p. 2).
Esses atores experimentam um estranhamento ou uma indignação diante da percepção de
como eram (e são) tratadas as questões relativas aos direitos humanos, sobretudo na década de 80
no Estado de Mato Grosso quando da formação do CDHHT. As violações ocorriam, sobretudo,
enquanto violência física: espancamento, tortura e morte se apresentando de forma muito visível
no campo e na cidade. De modo que, segundo um dos militantes “[...] uma certa indignação assim
contra as injustiças. Crimes – por exemplo – Matupá, mexeu muito. E não se falava de outra
3 Utiliza-se neste trabalho os termos sujeito social e ator como sinônimos para nomear os militantes que atuaram na entidade nas décadas de oitenta e noventa.
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336
coisa se não era de Matupá. E nem dormir de noite a gente dormia. Foi um trauma na vida da
gente assim”.
Desta forma, os atores dos anos oitenta destacam a insegurança do grupo diante do
aparelho repressor do Estado ainda sob os auspícios da Ditadura Militar; a presença de agente da
Segurança infiltrado no CDHHT; o medo e o desconhecimento dos direitos e garantias da pessoa
por parte daqueles que eram vítimas da violência; a força das igrejas (Paróquia do Rosário e a
Comunidade Luterana de Cuiabá) que ofereciam respaldo ao trabalho de denúncias da entidade,
bem como os conflitos suscitados por estas questões, entre outras.
Nos anos noventa, as questões levantadas retratam outra realidade vivida na entidade. Por
exemplo, a entidade nesta década está bem-estruturada, com projeto financeiro internacional,
sede própria, uma equipe atuando em tempo integral, não mais voluntária. Os atores nessa década
apontam as seguintes questões: acham que o CDHHT “atirava pra todos os lados” necessitando
trabalhar com ações específicas; personalismo (o CDHHT é visto a partir de uma pessoa); a
dependência de projetos financeiros para funcionar; fazendo o papel do Estado; saudosismo dos
anos oitenta (denúncia pela denúncia); boicotes: há quem se sinta dispensado depois de anos de
dedicação ao CDHHT. Como grande destaque, o desenvolvimento Projeto Educar em Direitos
Humanos e Cidadania realizado em duas Escolas Estaduais em Cuiabá, com duração de três
anos.
Percebe-se que o processo interno da entidade é por vezes contraditório e conflituoso.
Mas, nas duas décadas, os atores vivem as problemáticas que constituem o repertório do CDHHT
com expressividade e não como meros coadjuvantes, sendo interlocutores com poder de
influência e decisão (GOHN, 1997, p. 258).
No entanto esse processo possibilita a construção da identidade do CDHHT e o projeta no
espaço público mediante a criação de um imaginário social de unicidade, uma totalidade (GOHN,
1997, p. 253). A identidade do CDHHT é construída então na somatória das suas práticas, das
articulações, descenso e consenso que o representa como uma frente de unidade (GOHN, 1997, p.
262).
Todo grupo ou movimento social lembra Gohn (1997, p. 253), tem uma base referencial
comum. No caso do CDHHT, é aquela costurada pelo desejo de seus atores de mudança do
quadro político e institucional do Estado de Mato Grosso com relação aos direitos humanos. Essa
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base se dá a partir dos elementos de consenso – aglutinadores de forças – da violência
institucional e da educação popular.
A Educação Popular vai constituir o elemento qualificador da trajetória do CDHHT. A
preocupação principal da entidade é no sentido de promover uma educação em direitos humanos
e assim contribuir para a formação da cultura de respeitabilidade dos direitos fundamentais e da
tolerância no Estado de Mato Grosso. Isso porque a educação tem um papel fundamental na “[...]
formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos
valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da
paz [...] (BENEVIDES, 1995c, p. 1)”.
O próprio espaço do CDHHT se constitui, na percepção dos atores da entidade, em uma
sala de aula de valor inestimável, na qual se educa e se é educado. Um espaço em que se aprende
com a vida, com as relações, com a convivência, com o outro: saber conviver com o diferente,
com o diverso, com as contradições, ter que enfrentar, posicionar-se e defender posturas. Na
percepção do militante: [...] pra mim pessoalmente, eu cresci muito nessa caminhada, porque
você bota a cara no mundo, você entra num outro cenário que não é dentro da Igreja. De certa
forma te encoraja e te tira essa ingenuidade igrejal que a gente tem [...]”.
4 A Categoria Direitos Humanos: Tolerância e Reconhecimento da Dignidade Humana
Direitos Humanos é a categoria sobre a qual se assenta o universo constitutivo do
CDHHT. É uma categoria pertencente ao universo liberal, mas que se inscreve nas práticas dos
Movimentos Sociais, pois as diferentes reivindicações dos Movimentos são sempre portadoras de
direitos humanos. Caracterizam-se por ser não algo dado, mas constructos, por emergirem
gradualmente das lutas que o ser humano trava por sua própria emancipação e das transformações
das condições de vida que essas lutas produzem (BOBBIO, 1992, p. 32).
É um dos caminhos do reconhecimento da dignidade humana e da tolerância. Tolerância
compreendida enquanto a virtude de uma sociedade pluralista e democrática, na qual se impõe
não somente a aceitação de valores e interesses divergentes numa dada sociedade, mas,
sobretudo, a exigência e o respeito à diversidade dos grupos sociais. Afirma, assim, a necessidade
de cada grupo ter efetivamente garantidos os direitos estabelecidos na constituição e nas leis
(BARRETO, 1997, p. 7). Quanto à dignidade humana, da origem da palavra é possível extrair a
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ideia essencial. Dignus, em latim, adjetivo ligado ao verbo defectivo decet (é conveniente, é
apropriado) e ao substantivo decor (decência, decoro). Dignidade significa dar à pessoa humana
um tratamento apropriado, adequado, decente. É o atributo essencial do ser humano,
independentemente das qualificações específicas de sexo, raça, religião, nacionalidade, posição
social ou qualquer outra.
4.1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Cidadã
A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um marco de proporções inigualáveis na
afirmação dos Direitos Humanos, considerando que pela primeira vez na história a comunidade
humana busca construir um consenso para formular um código universal de valores. Um código
de tolerância e, sobretudo, do reconhecimento da dignidade humana como valor fundante,
inserto já no primeiro parágrafo do preâmbulo da Declaração:
Considerando que o reconhecimento da dignidade humana inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (COMISSÃO DE DIREITOS HUMANOS, 1998, p. 2).
Trata-se de uma resposta afirmativa em escala mundial ao desastre da Segunda Guerra
Mundial e à experiência totalitária contra os horrores do nazismo e do stalinismo. Adotada em 10
de dezembro de 1948, com a aprovação unânime de 48 Estados, tendo apenas 8 abstenções, a
Declaração tem o significado de um código e plataforma comum de ação que se estende “[...] não
somente a Estados, mas a todas as pessoas de todos os Estados e territórios, mesmo aos não
signatários da Declaração” (ARZABE; GRACIANO, 2005, p. 1).
No Brasil a questão dos Direitos Humanos ganha contornos bem-definidos, pois, além da
problemática social e econômica, a experiência do regime militar protagonizou um universo de
casos de violação aos direitos humanos perpetrado contra estudantes, intelectuais, líderes de
trabalhadores e representantes da Igreja Católica entre outros que, de alguma forma,
apresentavam reação e resistência ao regime repressivo (PIOVESAN, 2000, p. 257).
O processo de redemocratização do Brasil, porém, inseriu novamente o país na arena
internacional de proteção dos direitos humanos, culminando com a Constituição de 1988 como a
Carta democrática a tutelar a dignidade da pessoa humana: os direitos e garantias fundamentais
(PIOVESAN, 2005, p. 5-6).
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339
No entanto, como ressalta Benevides (1995b, p. 6), “[...] a violação sistemática de direitos
humanos em nosso país, em todas as áreas, é incompatível com qualquer projeto de cidadania
democrática”, pois não há efetivamente, como está posto, o correspondente entre o previsto na lei
e a realidade em face dos direitos humanos. A existência formal dos direitos humanos não é
suficiente para que esses direitos sejam concretizados.
4.2 Educação para os Direitos Humanos: a Educação Popular
Para que os Direitos Humanos sejam concretizados, resulta imprescindível uma educação
que possibilite aos sujeitos o conhecimento e o (re)conhecimento como sujeitos portadores de
direitos, como processo de tradução, de garantia desses mesmos direitos, pois, como bem
assevera Demo (1999, p. 22): “Pior que a fome, é não saber que a fome é imposta e representa
fonte de privilégios para alguns”. Esta realidade é o não-ser, a desumanização denunciada por
Paulo Freire (1987, p. 30): “[...] vocação negada na injustiça, na exploração, na opressão, na
violência dos opressores, mas que pode ser afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta
dos oprimidos na recuperação de sua humanidade roubada”.
A educação para os Direitos Humanos deve, sob pena de não ser sequer educação, supor
uma pedagogia, na qual o oprimido possa ter condições de “[...] reflexivamente, descobrir-se e
conquistar-se, como sujeito de sua própria destinação histórica [...] em que tenha condições de re-
existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida, saber e poder
dizer a sua palavra” (FREIRE, 1987, p. 9-13). Portanto pressupõe uma pedagogia política,
segundo este autor.
Enrique Dussel, ao debater a ética da libertação, afirma explicitamente que o modelo
educacional da ética para a libertação é a pedagogia de Paulo Freire. A educação para os Direitos
Humanos, nessa direção, trata-se de uma escolha que trilha os caminhos da Educação Popular
que, segundo Brandão (DOIMO, 1995, p. 129), [...] é o nome dado [...] a todo tipo de prática de mediação que promove ou assessora os movimentos populares [...], cuja teoria, desde Paulo Freire, faz a denúncia dos usos políticos da educação opressora e cuja prática converte o trabalho pedagógico do educador em favor do trabalho político dos subalternos.
Assim sendo, no cenário brasileiro, os Movimentos Populares e as ONGs comparecem
como os atores que, na perspectiva da educação popular, abrem trilhas e caminhos, mediante a
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tolerância e a exigência de dignidade humana questionam a realidade de desigualdade e
exclusão, rumo à ampliação do espaço democrático como proposta de inclusão de todos e do
respeito ao pacto comum.
Por outro lado, a possibilidade de organização e a conquista dos direitos humanos, não
obstante a existência destes nos preceitos legais são um processo contínuo, sempre descortinando
novos direitos, uma vez que os direitos humanos são “[...] por definição, uma utopia em marcha,
um desafio permanente, uma obra sempre em construção, sempre inacabada, [e] exigem que a
dinâmica para a sua implantação e seu aperfeiçoamento seja feito na sociedade organizada
(KRISCHKE, 1995, p. 4)”.
Conclusão
O presente trabalho buscou descortinar a trajetória do CDHHT, retratando as articulações
do movimento popular em Cuiabá que redundou na sua criação, e relatando os casos de violações
acompanhados pela entidade. Os casos são reveladores da desmedida violência na atuação dos
agentes estatais, evidenciando a ausência das garantias legais mesmo em relação ao campo dos
direitos elementares preconizados pelas promessas liberais, dos direitos individuais como o
direito à vida, à segurança, à integridade física, à liberdade.
Outrossim, retratou a percepção dos atores que militaram no CDHHT nas décadas de
oitenta e noventa, revelando que a entidade, assim como todo movimento social, não é um espaço
homogêneo e harmonioso como aparentemente se projeta no espaço público. Esta realidade, na
leitura desta pesquisadora, constitui o panorama de inconsistência, mas também de vitalidades do
CDHHT, pois é na despolarização da hegemonia de um único grupo ou tendência que conflitos
em certa quantidade podem constituir, em boa parte, o motor da dinâmica social.
Os atores, cada qual, carregam um projeto para o CDHHT sob uma perspectiva de olhar o
mundo singular e único, inspirados por valores que precisam de interlocução. Assim cada um ao
seu modo buscou dar sentido à sua vida pela direção político-pedagógica na qual acreditara ser a
melhor para o CDHHT.
A realidade do não respeito à dignidade humana (foi) é o conteúdo capaz de potencializar
ações e congregar esforços para que se construísse uma entidade capaz de denunciar as
arbitrariedades no campo dos direitos humanos e afirmar-se enquanto discurso libertário e
emancipatório que pretende ser caixa de ressonância da sociedade civil. Não há como negar que o
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CDHHT tem sido o fermento no mínimo problematizador da questão da dignidade e da
respeitabilidade da pessoa humana no Estado de Mato Grosso.
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Entre o passado e o futuro: o atual enfrentamento dos crimes perpetrados na
Ditadura Militar
Between past and future: the current face of the crimes perpetrated in the Military
Dictatorship
Evandro Charles Piza Duarte1
Resumo: O presente artigo objetivou questionar a interpretação dada à Lei nº 6.683/79,
Lei da Anistia, pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da ADPF nº 153.
Diante das teses e dos argumentos jurídicos expostos durante o julgamento do STF,
realizou-se uma análise da condenação do Brasil frente a Corte Interamericana de
Direitos Humanos no Caso Gomes Lund (2010) e do significado da nova argumentação
jurídica utilizada pelo Ministério Público Federal ao denunciar o coronel de reserva do
Exército Sebastião Curió, responsável pela repressão à Guerrilha do Araguaia, sob o
argumento de crime permanente. Dessa forma, questionou-se a respeito do significado
da verdade e do esquecimento para as instituições públicas do Brasil, principalmente o
poder judiciário.
Palavras chave: ADPF 153; ditadura militar; crime permanente
Abstract: This present paper aims to question the interpretation of the Amnesty Law
given by the Brazilian Supreme Court in judging ADPF 153. Given theses and legal
arguments set out by the Supreme Court, there was an analysis of the Brazil's
condemnation in Inter-American Court of Human Rights in Gomes Lund´s Case (2010)
and the significance of the new legal argument used by federal prosecutors to accuses
the Colonel Army reserve Sebastian Curió, responsible for repression of the Araguaia
Guerrilla, on the grounds of permanent crime. Therefore, if questioned about the
meaning of truth and oblivion for public accuses of Brazil, especially the judiciary.
Keywords: ADPF 153; military dictatorship; permanent crime
1 Professor Adjunto da Universidade de Brasília (UnB) - [email protected]
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1. Introdução
O presente estudo visa questionar a interpretação dada à Lei nº 6.683/79, Lei
da Anistia, pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153.
Proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil e levada a plenário no ano de
2010, a ADPF 153 buscou obter o reconhecimento da inconstitucionalidade da anistia
concedida aos agentes públicos estatais ao cometerem crimes de natureza comum, tais
como os homicídio, lesões corporais e desaparecimento forçado contra opositores ao
regime, durante a Ditadura Militar brasileira. Nesse sentido, objetivava a OAB, ao
ajuizar a ação, limitar a abrangência do termo “crimes conexos” presente no parágrafo
1º do artigo 1º da Lei.
Diante da decisão do STF, que manteve a interpretação segundo a qual a
anistia contemplava e beneficiava os agentes da repressão, realizou-se uma análise do
Caso Gomes Lund (2010), o qual levou à condenação do Brasil perante a Corte
Interamericana de Direitos Humanos. A sanção, que dentre outros termos, impõe a
responsabilização do Estado brasileiro pela tortura, sequestro e desparecimento forçados
de militantes de esquerda pela participação na chamada Guerrilha do Araguaia, deu
ensejo à uma nova postura do Ministério Público Federal, na tentativa de continuar o
debate sobre a ditadura militar no âmbito do Judiciário brasileiro.
Através da denúncia do Coronel de reserva do Exército Sebastião
Curió, agente responsável pela repressão à Guerrilha, o MPF inaugurou nova estratégia
para a retomada da discussão sobre os crimes cometidos durante a ditadura no âmbito
do judiciário. Sem desconsiderar a decisão do STF, ao mesmo tempo em que dá
respaldo à condenação do Brasil pela CIDH, o MPF coloca em pauta novamente as
consequências do período ditatorial para a soberania popular brasileira, reafirma o
direito à justiça, memória e verdade como uma garantia basilar da democracia, e
problematiza a centralidade da necessidade de uma real Justiça de transição no Brasil.
2. O Golpe de 1964 e a Ditadura Militar brasileira
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Em 1º de abril de 1964, desencadeado pelo então general Olympio Mourão
Filho, triunfou o golpe militar que instaurou uma ditadura que vigeu durante 21 anos e
deixou marcas profundas e ainda não cicatrizadas na história social e política brasileira.
Descrita por seus agentes, por um lado, como uma medida defensiva para
afastar a suposta ameaça comunista que rondava o país, e por outro, como a única
maneira de pôr fim às também supostas pretensões ditatoriais do então presidente
democraticamente eleito João Goulart, os militares utilizaram-se, durante a tomada de
poder e por todo o período de dominação, de escusas e argumentos como os de
assegurar a defesa e garantia dos direitos e liberdades individuais, bem como proteção
do país e da democracia brasileira, para tentar legitimar a ditadura e às violações
impostas (PEREIRA, 2010).
Em audiência celebrada no dia seguinte ao golpe, aproveitando-se da ida de
Goulart a Porto Alegre a fim de comandar a resistência, o presidente do Congresso,
Moura Andrade, declara vaga a presidência da república diante da forjada justificativa
de “abandono” pelo presidente em exercício (utilizando-se, como escusa, de
interpretação extravagante ao art. 79 da CF vigente), e a entrega ao presidente da
Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli. Em 11 de abril de 1964, o Congresso
elege o general militar Humberto de Alencar Castelo Branco para a presidência da
república, o qual toma posse no dia 15 do mesmo mês.
Estava, oficialmente, iniciado o legado ditatorial militar no Brasil.
Dado o golpe, os direitos civis e políticos foram paulatinamente fragilizados
e reduzidos, deixando a sociedade civil a mercê dos arbítrios dos aparatos estatais da
repressão, os quais, revestidos por uma capa de legalidade, se faziam conhecer através
dos Atos Institucionais (AI’s) editados pelos presidentes militares que se sucederam no
comando do país.
Através destes mecanismos foram cassados os direitos políticos, por um
período de dez anos, de líderes e ativistas, intelectuais e militares contrários ao regime.
Foi também abolida a eleição direta para a presidência da República, dissolvido o
multipartidarismo em detrimento do bipartidarismo, bem como foi concedida ao
presidente a prerrogativa de dissolver o parlamento, decretar estado de sítio, intervir nos
estados, restringir o direito de opinião e nomear juízes de tribunais superiores a fim de
garantir a convergência ideológica entre os julgadores e os algozes do povo.
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Acerca deste último ponto, cumpre destacar que o costumeiro antagonismo
entre autoritarismo e legalidade, na especificidade do caso da ditadura militar brasileira,
é relativizado.
Grande parte dos estudos sobre o tema enfoca a análise do autoritarismo
partindo da premissa de que regimes despóticos chegam ao poder pela via da força e
que, por isso, não contam com o Direito para manter-se ou legitimar-se. No Brasil, ao
contrário, justamente por se utilizarem, no mais das vezes, de julgamentos políticos para
perseguir e condenar os opositores do regime, os militares se valiam dos ares de
aparente legalidade dos tribunais e juntas militares (ou tribunais civis, com a presença
de juízes militares requisitados) para neutralizar seus opositores, ao mesmo tempo em
que em que se amparavam na imagem de segurança e respeito à legalidade, oriunda da
utilização sistemática do poder judiciário na prática de perseguição política e ideológica,
para rechaçar denúncias de práticas de autoritarismo (PEREIRA, 2009).
Se, por um lado, tais procedimentos cumpriam a função de transmitir a
mensagem de segurança e legalidade, ainda sob o prisma do argumento de proteção dos
“cidadãos de bem” da ameaça terrorista/comunista subversiva, por outro, o julgamento
aberto, desvelado, também fazia as vezes de servir como um aviso, um prelúdio do
destino daqueles que se contrapunham à ordem vigente. A imposição do medo era usada
como arma política.
Além disso, a legislação anterior à guerra era muito vaga na descrição de
atividades como “subversão”, “ofensa a autoridade” e similares, o que implicava na
obrigação de os juízes interpretarem tais conceitos, servindo, assim, como verdadeiros
legisladores da repressão. Ao tomar tais decisões, os magistrados exerciam seu papel
criador, redesenhando e reestabelecendo os limites entre o licito e o ilícito, criando um
sistema jurídico dotado de muitas características novas – e, sem dúvida, mais
repressivas.
A partir dos julgamentos e da elasticidade conferida à interpretação das leis,
os tribunais moldavam suas acusações de acordo com as mudanças na sociedade,
abarcando quase todos os comportamentos que, em questão de horas, tornavam-se
condenáveis por serem considerados, a partir daquele momento, “subversivos”. Essas
características “permitiram ao regime coletar informações sobre as opiniões da
sociedade, facilitaram a cooperação dentre e entre as instituições militares e permitiram
ao regime modificar seu governo progressivamente” (PEREIRA, 2009, p.218).
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Com isso, no Brasil, a Constituição não chegou a ser suspensa em sua
integralidade, tendo sido atropelada, paulatina e seletivamente, por meio dos atos
institucionais (AIs) e das demais formas de dominação dos instrumentos de poder e de
mando, tais como o Judiciário (com seus Tribunais Militares e intervencionismo de
juízes militares em tribunais civis), o Legislativo (por meio dos intitulados “Senadores
Biônicos”, frutos do Pacote de Abril, oriundo do decreto do AI-5) e, principalmente, do
Executivo e seus desmandos. “Ela (ditadura constitucional) permanece prisioneira do
círculo vicioso segundo o qual as medidas excepcionais, que se justificam como sendo
para a defesa da constituição, são aquelas que levam à sua ruína” (AGAMBEN, 2004,
pag.20)
Nas palavras de Anthony Pereira (2009, p. 208), “[...] a forma institucional
da repressão pode influenciar de maneira importante as tentativas pós-transição de se
fazer justiça de transição”. Não por acaso, o Brasil foi o país que menos viveu a
construção de uma justiça de transição dentre os países do Cone Sul, justamente porque
o seu autoritarismo, durante o regime, tomou ares de legalidade. Assim, continuou a ser
constantemente legitimado por uma parcela (em sua maioria, militar) da população que
insiste em considera-lo, ainda que contraditoriamente, como democrático.
A partir de 1974 é possível vislumbrar o início da abertura do regime. Ainda
que no desenrolar deste processo situações como a imposição de eleições indiretas para
governadores e senadores (um terço destes), além da eliminação da exigência de dois
terços dos votos para aprovação de reformas constitucionais, em 1978, possa aparentar
um recrudescimento da ditadura vigente, este retrocesso não interrompeu o processo de
abertura. Também ano 1978, diminuiu-se a censura prévia, aprovou-se a volta de
exilados políticos e revogou-se o AI-5, além de ter sido restabelecido o habeas corpus
para crimes de natureza política (CARVALHO, 2012).
Dentre as muitas hipóteses levantadas para explicar a iniciativa do próprio
setor militar para iniciar a abertura política no país, razões como a influência da Crise
do Petróleo, em 1973, e o consequente início do fim dos anos do “milagre econômico”
são costumeiramente apontados. A imagem já desgastada da corporação militar, afora as
inúmeras iniciativas populares que exigiam o fim da censura, da tortura, e explicações
acerca do paradeiro dos desparecidos políticos, se multiplicavam e ganhavam cada vez
mais apoio e repercussão dentro e fora do país.
Nesse contexto, durante o governo do general João Batista Figueiredo foi
votada a Lei nº 6683, Lei da Anistia. Polêmica, estendia a absolvição a ambos os lados
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do embate, isto é, tanto aos opositores do regime que praticaram crimes políticos na luta
pela derrubada da ditadura militar, quanto aos agentes de repressão estatal que
prenderam, torturaram e mataram os “subversivos”.
Com uma redação obscura, sem referir-se diretamente à tortura e aos
desaparecimentos forçados, práticas recorrentes no cotidiano das forças armadas contra
seus opositores, os militares utilizam-se, mais uma vez, da aparente licitude oriunda do
emprego de mecanismos legais para impor medidas que visavam camuflar seu
autoritarismo.
Sob a aparência de benevolência e complacência, a fim de assegurar suas
vestes de legitimidade, a Lei da Anistia igualou as ações de repressão e de resistência,
colocando num mesmo patamar os torturados e seus algozes, ambos anistiáveis por
ambos serem considerados, ambos, culpados. Esqueceu-se, porém, que
(...) as polícias militares, encarregadas do policiamento ostensivo,
tinham sido colocadas sob o comando do Exército durante os
governos militares e foram usadas para o combate às guerrilhas rurais
e urbanas. (Estas) tornaram-se completamente inadequadas, pela
filosofia e pelas táticas adotadas, para proteger o cidadão e respeitar
seus direitos, pois só viam inimigos a combater. A polícia tornou-se,
ela própria, um inimigo a ser temido em vez de um aliado a ser
respeitado. (CARVALHO, 2012, pag. 194.).
Como justificar, diante do costumeiro argumento de que “os dois lados não
eram compostos por santos, e ambos erraram”, que os atos daqueles agentes do Estado,
que por sua natureza são encarregados da proteção e defesa dos cidadãos e da
democracia, possam ser equiparados aos dos cidadãos que, diante da ação absurda de
um Estado autoritário, rebelam-se? “Quando o Estado se transforma em Estado ilegal, a
resistência por todos os meios é um direito. Neste sentido, eliminar o direito à violência
contra uma situação ilegal gerida pelo Estado significa retirar o fundamento da
democracia”. (SAFATLE, 2012, p. 246).
Os que reagem ao autoritarismo e à violência estatal injustificada de um
Estado ilegal não podem ser encarados como outsiders (BECKER, 2008). Devem ser
vistos como aqueles que exercem um dos maiores direitos do ser humano livre,
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
349
fundamento de toda democracia real: “o direito de dizer ‘não’, nem que seja por meio de
armas.” (SAFATLE, 2012, p. 248).
Contrariamente a todos os argumentos levantados acerca da impossibilidade
de uma equiparação plausível entre os atos dos agentes de ambos os lados da repressão,
foi promulgada, e vigora até hoje, a Lei da Anistia.
Diante de seus muitos e nefastos efeitos, um dos mais gravosos pode ser
apontado como a perpetuação da prática de tortura estatal e a sua impunidade.
No Brasil, à diferença de outros países da América Latina, a polícia
mata mais hoje, em plena democracia, do que no período militar. Mata
porque pode matar. Mata porque nós continuamos a dizer “tudo bem”.
Pouca gente se dá conta de que a tortura consentida, por baixo do
pano, durante a ditadura militar é a mesma a que assistimos hoje,
passivos, horrorizados. Doença grave, doença crônica [...]. (KEHL,
2010, p. 18).
Não por acaso, “a inexistência de uma justiça de transição é fator a justificar
o grave quadro de violações de direitos humanos no Brasil, sobretudo no que se refere à
prática da tortura e à impunidade que a fomenta.” (PIOVESAN, 2012, p. 105). Sem
nunca ter sido debatida pelo povo, sem nunca ter sido revista e alterada em sua essência,
frente a permanência imutável da Lei da Anistia de 1979, o Brasil segue privado de uma
verdadeira justiça de transição. Segue privado de um real e necessário confronto com
seu passado, a fim de enterrar seus mortos e ressuscitar suas lembranças.
Diante desse processo complexo e contraditório, a palavra anistia, segundo
CUNHA (2012), contém em si dois sentidos: o de reminiscência, a cumprir o papel de
manter sempre vivo na memória o passado, e o outro, de amnésia, que, ao contrário,
sugere o olvido, perda total ou parcial de memória. Diante desse binômio (esquecimento
e lembrança), essa equação está em permanente embate, já que possibilita concepções
oposta e excludentes de anistia: uma delas, entendida como resgate da memória e direito
à verdade, como reparação histórica, luta contra o esquecimento e recuperação das
lembranças; a outra, vista como esquecimento e pacificação, como conciliação nacional.
Diante dessa antítese, seguimos sentindo os efeitos de uma Anistia imposta
de maneira verticalizada, fruto de um questionável e questionado “acordo” entre
torturadores e torturados, vítimas e carrascos.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
350
Sobre o dia 28 de agosto de 1979, não olvidemos que:
O ‘esquecimento’ da tortura produz [...] a naturalização da violência
como grave sintoma social no Brasil. [...] A polícia brasileira é a única
na América Latina que comete mais assassinatos e crimes de tortura
na atualidade do que no período da ditadura militar. A impunidade não
produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma sinistra
escalada de práticas abusivas por parte os poderes públicos, que
deveriam proteger os cidadãos e garantir a paz. (KEHL, 2012, pag.
124)
3. ADPF 153 e a Lei da Anistia
3.1. Petição inicial da OAB
Passados quase trinta anos de sua promulgação, ressurge, no âmbito do
Judiciário, a discussão acerca da Lei da Anistia.
Proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB
em 21 de outubro de 2008, a ADPF 153 surge como forma de problematizar os efeitos
da ditadura militar para a real implementação da democracia no Brasil e delimitar o
alcance de seus termos.
Tendo como requisitos para sua propositura a necessidade de ser utilizada
de maneira subsidiária, objetivar se opor à ameaça ou lesão a preceitos e garantias
constitucionais, bem como tratar de ato normativo e suscitar relevante controvérsia
constitucional (BARROSO, 2004), a OAB pretendeu fazer o órgão máximo de
deliberação jurídica do país enfrentar, de frente, as controvérsias de uma Lei que se
afirma democrática, mas viola, sob inúmeros pontos de vista, preceitos constitucionais
basilares.
Em sua argumentação inicial, a OAB questionou a interpretação dada ao §1º
da Lei da Anistia, verbis:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
351
Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. (grifos aditados)
Por considera-lo redigido de forma intencionalmente obscura, a fim de
incluir sub-repticiamente, no âmbito da anistia criminal, os agentes públicos que
comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos ao regime militar,
sustentou a OAB a inépcia jurídica do parágrafo.
Segundo sua interpretação, não seria possível falar de conexão criminal
simplesmente porque não houve conexão entre os crimes políticos cometidos pelos
opositores do regime e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da
repressão.
É irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. A conexão só pode ser reconhecida nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns perpetrados pela mesma pessoa (concurso material ou formal) [...] No caso, portanto, a anistia somente abrange os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, de crimes comuns a eles ligados pela comunhão de objetos. É fora de qualquer dúvida que os agentes policiais e militares da repressão política, durante o regime castrense, não cometeram crimes políticos. (REF, INICIAL)
Nas palavras de Mirabete,
Os crimes políticos lesam ou põem em perigo a própria segurança interna ou externa do Estado.[...] São crimes políticos os que lesam ou expõem a perigo de lesão “I- a integridade territorial e a soberania nacional; II- o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; e III- a pessoa dos chefes do Poderes da União.
Partindo dessa interpretação, os agentes públicos que mataram, torturaram e
violentaram opositores políticos não praticaram crimes políticos, pois não atentaram
contra a ordem política e a segurança nacional. Justamente ao contrário, sob o pretexto
de defende-la, praticaram crimes comuns contra aqueles que se rebelaram contra a
ordem imposta.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
352
Conforme PIOVENSAN (2012), a insustentável interpretação de que, em
nome da conciliação nacional, a Lei de Anistia seria uma lei de ‘duas mãos’, a
beneficiar torturadores e vítimas é fruto de uma equivocada leitura dessa expressão
‘crimes conexos’ constante da lei. Não se pode falar em conexidade entre os fatos
praticados pelo delinquente e pelas ações de sua vítima. A anistia perdoou as vítimas e
não os que delinquem em nome do Estado.
Outra imprecisão levantada pela OAB refere-se à utilização do termo
“crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”, também contida no
parágrafo primeiro da Lei. Ao referir-se, em abstrato, a qualquer situação que venha a
ser interpretada de tal forma, deixa a Lei lacunas abertas para arbítrios do poder
Judiciário, que teve oportunidade de se valer do julgamento pessoal do juiz, frente ao
caso concreto, para condenar ou absolver um acusado a seu bel prazer. “Ou seja, quem
anistia, nessa hipótese legal definida, é o próprio juiz.”
Além disso, a Ação questiona a legitimidade de uma Lei da Anistia que, à
época de sua votação, tinha um Congresso composto por um terço de seus membros
eleitos sob o placet dos comandantes militares. “Ela foi sancionada por um Chefe de
Estado que era General do Exército e fora guindado a essa posição não pelo povo, mas
pelos seus companheiros de farda” (REF, inicial)
Já reconhece a Corte Americana de Direitos Humanos, cuja jurisdição é
aceita pelo Brasil, que é nula e de nenhum efeito a auto-anistia criminal decretada por
governantes, o que retiraria toda a legitimidade da Lei da anistia de 1979, promulgada
por um ditador militar, sob o aval de Congresso viciado e corrompido.
[...] as leis de ‘autoanistia’ perpetuam a impunidade, propiciam uma injustiça continuada, impedem às vítimas e aos seus familiares o acesso à justiça e o direito de conhecer a verdade e de receber a reparação correspondente, o que constituiria uma manifesta afronta à Convenção Americana. As leis de anistia configurariam, assim, um ilícito internacional e sua revogação uma forma de reparação não pecuniária.” (pag. 101, PIOVESAN)
Por fim, fazendo menção à falácia do suposto "acordo" que permitiu a
transição do regime militar ao Estado de Direito, questiona-se: quem negociou o dito
acordo? Para quem foi dada a procuração para falar em nome do povo brasileiro, das
vítimas e de seus familiares?
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
353
Fazendo alusão à Kant, termina por decretar: “a pessoa humana não pode
servir de meio para a obtenção de qualquer finalidade, pois ela é um fim em si mesma.
Portanto, tem dignidade, não um preço.” (REF, inicial)
Assim, no pedido, requerer a declaração de que a anistia concedida aos
crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes
da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar, e o não acolhimento
da Lei pela Constituição de 1988. Com isso, mais do que criminalizar os agentes da
repressão, almeja-se um obter do Judiciário, de maneira última e inquestionável, o
reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas atrocidades cometidas durante o
período de ditadura militar, o direito à justiça e memória em nome dos mortos, bem
como iniciar, finalmente, a real transição para a democracia e a verdade.
3.2: Julgamento da ADPF
Sob a relatoria do Ministro Eros Graus, o julgamento da ADPF 153 teve
início no dia 28 de abril de 2010, tendo contado com os votos de sete dos nove votos
contrários à ADPF, e dois deles favoráveis ao acolhimento das pretensões da arguente.
Em seu relatório, refutando as alegações e pedidos da OAB, Eros Grau
inicia sua argumentação com a defesa da tese de que a anistia de fato resultou de um
acordo, uma verdadeira transação entre a população civil e o governo militar, e, a seu
ver, nos exatos termos de sua promulgação.
O ministro, utilizando-se de parecer do Procurador Geral da União, afirma
que:
É evidente que reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia não significa apagar o passado.[...] Romper com a boa-fé dos atores sociais e os anseios das diversas classes e instituições políticas do final dos anos 70, que em conjunto pugnaram – como já demonstrado – por uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, significaria também prejudicar o acesso à verdade histórica.
Acerca da questionável autoanistia, completa:
Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
354
angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em torno dos subversivos.
Com tal alegação, a manifestação do ministro Eros Grau vai ao encontro da
hipótese corrente, valorizando a justificativa de um pacto conciliatório que,
concretamente, até viabilizou a transição para a democracia de forma pacífica, porém
esquece-se do preço que foi pago para tal. Em sua sentença, não deixa de expor “sua
fragilidade ao sustentar a hipótese de que não haveria alternativas ou ponderações sobre
outras possibilidades no tratamento da questão; aliás, tal epílogo no Brasil resultou em
flagrante descompasso com os demais países que enfrentaram transições semelhantes na
América Latina”(CUNHA, 2010, p. 40).
Reafirmou-se, assim, a tese central e excludente do dueto social e ideológico
desarmônico que vigia entre torturadores e torturados. Ao reduzir a questão da
impunidade em relação aos torturadores, o STF nivelou-os ao mesmo patamar de suas
vítimas. “Noutros termos, a anistia advinda desse processo de (re)conciliação que
norteou o processo histórico brasileiro pode até ter evitado rupturas, mas não foi,
necessariamente, expressão de justiça.”(CUNHA, 2012, p.40).
Na mesma linha de raciocínio, a Ministra Carmen Lúcia, em seu voto,
afirma que o julgamento da ADPF deveria se restringir a analisar a extensão da
questionada expressão “crimes conexos”. O direito à verdade, o direito á história e o
dever do Estado brasileiro de investigar, encontrar respostas, divulgar e adotar as
providências sobre os desmandos cometidos no período ditatorial não estavam em
questão.
Como separar os questionamentos? Como questionar a extensão da Lei da
Anistia, sem considerar a necessidade de resposta aos anseios, sufocados há quase trinta
anos, por verdade, justiça e memória?
Ao traduz o anseio do (re)conhecimento de graves fatos históricos
atentatórios aos direitos humanos, o resgate histórico das violências vividas no passado.
Serve tanto ao propósito de assegurar o direito à memória das vítimas, quanto o de
confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a repetição de tais práticas.
“O direito à verdade assegura à construção da identidade, da história e da memória”.
(PIOVESAN, 2012, p.104)
Em outro voto sintomático, a Ministra Ellen Gracie faz um discurso
sobre a relação em memória, anistia e esquecimento.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
355
Em suas palavras,
o pedido alternativa de interpretação conforme que retirasse do âmbito
de abrangência da lei os atos praticados pelos agentes da repressão
tampouco pode ser atendido. Anistia é, em sua acepção grega,
esquecimento, oblívio, desconsideração intencional ou perdão de
ofensas passadas. É superação do passados com vistas à reconciliação
de uma sociedade. E é, por isso mesmo, necessariamente mútua. É o
objetivo de pacificação social e política que confere à anistia seu
caráter bilateral. A esse respeito, Plutarco dizia ‘uma lei que determina
que nenhum homem será interrogado ou perturbado por coisas
passadas chamada Anistia, ou lei do Esquecimento” (p.152)
Não considera, com isso, que “esse passado que insiste em perdurar de
maneira não reconhecida no presente, que se mantém como dor e sofrimento, esse
passado não passa. (...) O silencia sobre os mortos do passado, da ditadura, acostuma
silenciar sobre os mortos e os torturados de hoje.” (GAGNEBIN, 2012, p.185).
Ao afirmar que
Não se faz transição, ao menos não se faz transição pacífica, entre um
regime autoritário e uma democracia plena, sem concessões
recíprocas. Por incômodo que seja reconhecê-lo hoje, quando vivemos
outro e mais virtuoso momento histórico, a anistia, inclusive daqueles
que cometeram crimes nos porões da ditadura, foi o preço que a
sociedade brasileira pagou para acelerar o processo pacífico de
redemocratização, com eleições livres e a retomada do poder pelos
representantes da sociedade civil. (p.153)
O STF, na figura da Ministra Ellen Gracie, sentencia, mais uma vez, a
verdade do Brasil, e a verdade dos mortos e torturados pelo regime militar, à outra
morte. A morte do simbólico, diante da imposição do esquecimento.
Reafirmando o oblívio do outro, impõem-se-lhe, mais uma vez, e
reiteradamente, outra forma de violência, que perpetua aquela sofrida nos porões da
ditadura, pois
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
356
o totalitarismo é fundado nesta violência muito mais brutal do
que a eliminação física: a violência da eliminação simbólica.
Neste sentido, ele é a violência da imposição do
desaparecimento do nome. No cerne de todo o totalitarismo,
haverá sempre a operação sistemática de retirar o nome daquele
que a mim se opõe, de transforma-lo em um inominável cuja
voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto
de referência alguma. (SAFATLE, 2010, p. 238)
4. Crimes Permanentes e a Virada Argumentativa – Uma Análise do Caso
Sebastião Curió
4.1 A nova postura do Ministério Público Federal – contextualização geral e o
respaldo na discussão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Diante desse contexto, passa-se a analisar como o Estado brasileiro, por
meio do Ministério Público Federal, interpretou e deu prosseguimento a decisão da
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o Caso Gomes Lund, de 24 de
novembro de 2010, ainda que estabelecido a declaração de constitucionalidade da Lei
da Anistia promovida pelo Supremo Tribunal Federal.
A decisão da CIDH parte de demanda da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, perpetrada em nome das pessoas desaparecidas na Guerrilha do
Araguaia e seu familiares, contra a República Federativa do Brasil. O pedido se referia à
responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento
forçado de camponeses e membros do Partido Comunista do Brasil resultante de
operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 (CIDH, p. 03 e 04).
Conforme relatório da Comissão, citado na decisão da Corte, a necessidade
de responsabilização se dá em um contexto no qual:
[...] em virtude da Lei No. 6.683/79 […], o Estado não realizou uma
investigação penal com a finalidade de julgar e punir as pessoas
responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 vítimas e a
execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva […]; porque os
recursos judiciais de natureza civil, com vistas a obter informações
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
357
sobre os fatos, não foram efetivos para assegurar aos familiares dos
desaparecidos e da pessoa executada o acesso a informação sobre a
Guerrilha do Araguaia; porque as medidas legislativas e
administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o
direito de acesso à informação pelos familiares; e porque o
desaparecimento das vítimas, a execução de Maria Lúcia Petit da
Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à
verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal
dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada. (CIDH, p. 03)
É em vista desses acontecimentos que a Corte norteia sua análise do caso e
estabelece o marco referencial de sua decisão. Assim, no parágrafo terceiro dos pontos
resolutivos da sentença, é declarada que as disposições da Lei de Anistia brasileira não
são adequadas à Convenção Americana, carecendo de efeitos jurídicos. Portanto, as
disposições que impediam a investigação e sanção de graves violações de direitos
humanos não poderiam continuar servindo de obstáculo à persecução penal de crimes
relacionados ao contexto da Ditadura Militar.
Além de estabelecer a condenação do Estado brasileiro pelo
desaparecimento forçado, pela violação dos direitos ao reconhecimento da
personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal, à liberdade, pelo descumprimento
da obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direito
Humanos, pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (CIDH,
p. 114), pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão e pela
responsabilidade de diversas outras transgressões aos direitos fundamentais, a sentença
da Corte Interamericana dispôs sobre a obrigação de o Estado brasileiro “conduzir
eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente
caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e
aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja (...)” (CIDH, p. 115).
Portanto, a condenação do Estado brasileiro pela Corte se dá poucos meses
após a decisão do Supremo Federal que declarou a constitucionalidade da Lei da
Anistia. Neste sentido, altera o quadro normativo sobre o qual as instituições e órgãos
brasileiros devem atuar. Com a exigência de uma nova postura do Brasil, o Ministério
Público Federal reorienta sua estratégia de interlocução com o poder judiciário no que
toca os crimes cometidos durante o período da Ditadura Militar.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
358
Para tanto, a rearticulação estratégica do MPF se baseou em reuniões de
trabalho do próprio Ministério Público, assim como em atividades realizadas pelo
Ministério da Justiça e o ICTJ – Centro Internacional para Justiça de Transição, os quais
propuseram a realização do I Workshop Internacional sobre Justiça de Transição. Esse
evento teve o objetivo de debater questionamentos cíveis e criminais acerca do
cumprimento da decisão da CIDH e analisar experiências bem sucedidas de justiça de
transição na África do Sul, no Chile e na Argentina. O espaço contou com a presença de
especialistas dos três países citados e produziu diversas conclusões, que podem ser
encontradas no documento n.2/2011, aprovado pela 2ª Câmara de Coordenação e
Revisão da Procuradoria Geral da República.
Neste relatório, fica expressa a orientação do Ministério Público Federal de
dar cumprimento ao estabelecido na decisão da Corte Interamericana de Direitos
Humanos, promovendo atos e diligenciais, assim como dando início à investigação
criminal tendo como objetivo a responsabilização dos agentes pelas condutas violadoras
de direitos humanos. Tal entendimento fica claro no item 18 do documento n.2/2011,
que diz:
Em síntese, o Ministério Público Federal, no exercício de sua
atribuição constitucional de promover a persecução penal e de zelar
pelo efetivo respeito dos poderes públicos aos direitos humanos
assegurados na Constituição, inclusive os que constam da Convenção
Americana de Direitos Humanos e que decorram de decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, está vinculado ao cumprimento
da decisão da Corte, enquanto permanecer válido e não for declarado
inconstitucional o reconhecimento da jurisdição da Corte (MPF, 2011,
p. 06).
Reforçou-se, portanto, a ideia de que o Direito Penal é um instrumento
essencial para a proteção de direitos humanos fundamentais e de que o não
cumprimento da decisão da CIDH representa uma afronta ao Estado de direito (MPF,
2011, p. 08), afirmando-se a necessidade de desencorajar a cultura de impunidade. Para
concretizar esses objetivos, estabeleceu-se a persecução penal como o instrumento
essencial para evitar a perpetuação dos efeitos do legado autoritário da Ditadura sobre
as vítimas e sobre a sociedade (MPF, 2011, p. 08 e 09).
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
359
E é dentro desse contexto que surge a nova orientação de atuação do
Ministério Público em relação a que tratamento deve ser dado aos crimes cometidos
durante o período militar. Perante uma situação na qual a decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos cobra uma atuação e uma resposta do Estado
brasileiro, mas que por outro aparece a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a
ADPF 153/2008, que mantém como constitucional a Lei da Anistia, o MPF se vê em
um momento no qual lhe é exigido uma mudança de estratégia interpretativa perante o
quadro normativo e jurisprudencial brasileiro.
Assim é que, após a avaliação da escassez de instrumentos e óbices jurídicos
utilizados em outros países, assim como as maneiras encontradas para superá-los, o
Ministério Público Federal achou forma para conciliar a decisão proferida pelo STF
com aquela estabelecida pela CIDH. Para tanto, aprofundou-se a análise sobre a
natureza jurídica permanente de certas condutas ilícitas promovidas durante a Ditadura
Militar (MPF, 2011, p. 09).
Conforme fica claro no item 27 do referido documento, a Lei de Anistia não
deve ser barreira para a persecução penal no que toca os crimes de sequestro devido à
sua natureza particular. O documento assim aduz:
Registrou-se, a propósito, que o ponto resolutivo 3 da sentença da
Corte declarou expressamente que as normas da Lei de Anistia
brasileira “não pode seguir representando um obstáculo” para a
investigação dos fatos relacionados ao crime permanente de
desaparecimento forçado nos episódios da Guerrilha do Araguaia, e
“tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de
outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na
Convenção Americana ocorridos no Brasil.”(MPF, 2011, p. 07 e 08)
Portanto, diante de uma conjuntura na qual a decisão da Corte
Interamericana estabelece a obrigação de agir do Estado brasileiro no que toca as
violações de direitos humanos no período militar, o Ministério Público encontra um
caminho para que se possa realizar a persecução penal dos tipos penais de sequestro,
qual seja, a alegação de que são crimes permanentes e que, por isso, continuam a ser
realizados no presente, não sendo abarcados pela extinção de punibilidade da Lei da
Anistia ou pela prescrição.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
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4.2 Sebastião Curió e a Guerrilha do Araguaia
Para analisar essa virada hermenêutica existente na prática penal do
Ministério Público, cabe conhecer melhor a atuação de Sebastião Curió, Major do
Exército e maior responsável pelas perseguições realizadas no contexto da chamada
Guerrilha do Araguaia.
Ocorrida na região conhecida como “Bico do Papagaio”, sudeste do Pará
com divisa para o Tocantins (estado do Goiás na época), a Guerrilha do Araguaia
iniciou quando os primeiros militantes do Partido Comunista do Brasil (PC do B)
aportaram na região por volta de metade da década de 60 (PEIXOTO, p. 480). Teve o
seu término por volta do ano de 1974 por meio de ofensiva do Estado brasileiro e
abatimento dos últimos guerrilheiros.
Ao chegar na região do “Bico do Papagaio”, o PC do B instalou-se em áreas
próximas ao Rio do Araguaia, tendo em vista a organização de mobilização rural de
resistência ao governo militar. Tal movimento tinha inspiração no levante oriental que
culminou na Revolução Chinesa de 1949, fomentando e ensejando a luta por uma
democracia popular no Brasil (PEIXOTO, p. 482). Para alcançar esse objetivo, os
guerrilheiros procuraram reunir o maior número de simpatizantes, estabelecendo
relações com os moradores locais. Além disso, adquiriram conhecimento da região e se
esforçaram para adquirir novos membros.
Visando enfrentar essa situação, a partir de 1972 o exército brasileiro
iniciou diversas operações na região, que no início não foram bem sucedidas. Visando
melhorar a eficiência do combate, as forças armadas realizaram minucioso
planejamento de informação sobre os guerrilheiros, coletando dados e infiltrando
agentes na sociedade local. Essa operação de inteligência tinha o objetivo de conhecer o
cotidiano dos militantes, assim como suas relações com a população da região. Foi
assim que o exército levantou as características dos grupos guerrilheiros, descobriu a
localização de seus alojamentos e desvendou os moradores que colaboravam com os
integrantes do PC do B.
Essa fase se deu dentro da estratégia da Operação Sucuri, que constituía-se
no mapeamento e coleta de informações sobre as condições dos militantes e que foi
realizada através do disfarce dos militares. Chamados de “doutores”, o exército
brasileiro conseguiu se aproximar e abrir caminho para violenta repressão sobre a
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
361
guerrilha, na qual se destacou o denominado “Dr. Luchini”, agrônomo do Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que era na verdade Sebastião
Rodrigues de Moura, o famoso major Curió (PEIXOTO, p. 482).
Com o término da Operação Sucuri e início da Operação Marajoara, inicia-
se a fase de maior repressão à Guerrilha, notabilizada pela sua extrema e sistemática
violência, sobre a qual o Estado brasileiro perpetrou as mais diversas perseguições e
violações aos direitos humanos. É nesse momento que o exército se afasta
deliberadamente e completamente de qualquer quadro normativo vigente, criando
verdadeiro estado de sítio sustentado por agressões físicas e psicológicas. A abrangência
da repressão não se limitou aos guerrilheiros do Partido Comunista, pois se estendeu
abertamente à população local, que até hoje sofre reflexos diretos da suspensão
democrática vivida no período da Ditadura Militar.
A barbárie, que foi desde as costumeiras torturas do período ditatorial à
decapitação de militantes presos, fica expressa na base de Xambioá, verdadeiro campo
de concentração delimitado por arames farpados, em que os presos dormiam no chão e
vivam em uma área denominada curral (PEIXOTO, p. 487).
Pois é neste contexto que atuou Sebastião Curió, que foi designado pelo
exército para atuar como comandante operacional da última fase de repressão à
Guerrilha. Como chefe da Operação Marajoara, o Major ordenou e participou da
execução do sequestro de Maria Célia Corrêa (Rosinha), Hélio Luiz Navarro de
Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antonio de Pádua (Piaui) e Telma
Regina Cordeira Corrêa (Lia) (MPF, 2012, p.02), segundo a petição inicial do
Ministério Público Federal.
Praticadas sob o pretexto de “combate ao comunismo” e de “defesa da
pátria nacional”, as operações capitaneadas pelo Major utilizaram do aparato material
do exército e institucionalizaram verdadeiros atos criminosos, como a tortura, o cárcere
privado e o sequestro. Assim, Sebastião Curió, como chefe operacional da Operação
Marajora, é notoriamente conhecido como responsável pela detenção ilegal e graves
violações dos direitos humanos, sendo, hoje, processado pelo MPF por promoção do
sequestro qualificado, privando as vítimas de liberdade em caráter permanente,
conforme será visto no tópico seguinte (MPF, 2012, p. 05).
4.3 A petição inicial do Ministério Público Federal e sua argumentação jurídica
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
362
É diante desses fatos históricos e atuando dentro do quadro normativo
fornecido tanto pela decisão da Corte Interamericana como pelo Supremo Tribunal
Federal, que o Ministério Público Federal, no dia 23 de fevereiro de 2012, ajuizou
denúncia contra Sebastião Curió Rodrigues de Moura pela privação – mediante
sequestro – em caráter permanente da liberdade de 5 militantes da Guerrilha do
Araguaia.
A ação do MPF, em conformidade com a orientação exposta no documento
n.2/2011 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria Geral da República,
fundamenta-se na permanência dos crimes cometidos pelo Major, os quais estariam
sendo praticados até os dias de hoje devido a falta de prova em relação ao término da
execução de cada delito.
Antes de adentrar na argumentação realizada pelo Ministério Público
Federal, cabe esclarecer o conceito de crime permanente, cerne da fundamentação
persecutória. Segundo Cezar Roberto Bitencourt, crime permanente:
(...) é uma entidade jurídica única, cuja execução alonga-se no tempo,
e é exatamente essa característica, isto é, manter-se por algum período
mais ou menos longo, realizando-se no plano fático (e esse fato exige
a mantença do elemento subjetivo, ou seja, do dolo) que se justifica
que sobrevindo lei nova, mesmo mais grave, tenha aplicação imediata,
pois o fato, em sua integralidade, ainda está sendo executado.
(BITENCOURT, p. 173)
O crime permanente ocorre, portanto, quando a sua execução se prolonga no
tempo, existindo a ideia de que o agente, a cada instante, enquanto durar a permanência,
está praticando atos de execução (GRECO, p. 110). Dessa maneira, a execução e a
consumação do delito acabam se confundindo, como ocorre, por exemplo, com o crime
de sequestro.
No que toca a qual lei deve incidir sobre o crime dessa natureza, mais uma
vez cabe citar os ensinamentos de Bitencourt ao comentar a incidência do diploma legal
mais atual, ainda que mais grave, caso ele tenha entrado em vigor antes de cessar a
permanência da infração penal, ou seja, antes de cessar a sua execução:
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
363
Mas o que acabamos de dizer nada tem que ver com o princípio
constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave (art 5º, XL,
da CF), pois se trata, em verdade, da incidência imediata de lei nova a
fato que está acontecendo no momento de sua entrada em vigor.
Assim, não é a lei nova que retroage, mas o caráter permanente do
fato delituoso, que se protrai no tempo, e acaba recebendo a incidência
legal em parte de sua execução e a expande para toda sua fase
executória; (...) (BITENCOURT, p. 173)
É esse o entendimento expresso na Súmula 711 do STF, a qual estabelece
que “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a
sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”. Na medida em
que o crime permanente se apresenta como uma única conduta, constante em
determinado lapso temporal por ter como objeto a manutenção do estado consumativo
(ZAFFARONI, p. 618), não faz sentido algum pretender que fragmento da conduta seja
punido por determinada lei, deixando o restante para ser punido por outra lei. A Súmula
711, portanto, é mais do que acertada no que toca a disposição sobre crime permanente
– em que pese o mesmo não poder ser dito sobre os crimes continuados –.
Tendo em mente essa conceituação e a aplicação temporal da norma nos
casos de crimes permanentes, clareia-se o posicionamento e a fundamentação da ação
ajuizada pelo Ministério Público Federal contra Sebastião Curió. Argumentando que o
Major, no exercício de suas funções, “participou de atos de sequestro e maus-tratos das
cinco vítimas, seja diretamente, ou, de forma mediata, determinando que terceiros sob
seu comando o fizessem”, sendo também autor intelectual das principais ações
criminosas cometidas pelos militares na fase mais repressiva da Guerrilha, a denúncia se
focou na permanência do crime de sequestro realizado por Curió, já que não houve
prova de cessação dos atos delituosos.
É neste sentido o seguinte trecho:
No particular, nota-se ser irrelevante, para fins da imputação penal, a
suspeita de que as vítimas tenham sido executadas ou, pelo decurso do
tempo, estejam mortas. O fato concreto e suficiente é que – após a
privação da liberdade das vítimas adiante especificadas – ainda não se
sabe o paradeiro de tais pessoas e tampouco foram encontrados seus
restos mortais.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
364
(...) Não existe sequer indício material indireto da morte,
prevalecendo, dessarte, a permanência destes sequestros. (MPF, 2012,
p. 06)
Assim, a partir do momento no qual o Supremo Tribunal Federal decidiu
que os crimes de tortura, cometidos durante a Ditadura Militar, são regulados e
abarcados pela anistia concedida pela Lei nº 6.683/79, não sendo, portanto, de tratados
internacionais e das posteriores disposições constitucionais que estabelecem, entre
outras medidas, a insuscetibilidade de graça e anistia dos crimes de tortura, o Ministério
Público Federal encontrou nova maneira de enfrentar a impunidade dos delitos
praticados por agentes estatais no período militar. A continuidade da execução dos
crimes de sequestro faz com que eles sejam regulados pelo atual quadro normativo
vigente, conforme dispõe a Súmula 711 do STF, retirando-os do contexto hermenêutico
de aplicação ou não da Lei da Anistia.
Portanto, ainda que integrada à nova ordem constitucional, a Lei nº 6.683/79
nada poderia fazer para impedir a persecução penal dos crimes permanentes de
sequestro. Novamente, cabe citar a fundamentação utilizada pelo Ministério Público
Federal na petição contra Sebastião Curió, que assim aduz:
Deste modo, à falta de certeza sobre a morte das vítimas sequestradas
e desaparecidas, vez que não houve identificação de seus restos
mortais, nem há prova da morte por outro meio suficiente e capaz de
determinar as circunstâncias desses eventos (corpo de delito indireto),
descabe presumir que as cinco vítimas referidas nesta denúncia
tenham sido mortas (executadas) ou que tenham falecido por causas
naturais. Há apenas a certeza da ocorrência dos sequestros qualificado,
ainda em execução, pois que se trata de delito de caráter permanente.
(MPF, 2012, p. 22)
Conforme o relatado na petição inicial, tal argumentação, inclusive, já foi
utilizada pelo próprio Supremo Tribunal Federal em dois pedidos de extradição (Ext.
974, j. 06/08/2009 e Ext. 1150, j. 19/05/2011), que, coincidentemente ou não, estão
relacionados ao período ditatorial latino-americano. Nestes casos, o STF deferiu os
pedidos de extradição do major Manuel Juan Cordero Piancentini e do major Norbeto
Rául Tozzo, para a República da Argentina.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
365
Em relação ao primeiro caso, o major Manuel Cordero, militar uruguaio, foi
extraditado para a Argentina devido a realização de um sequestro de um menor durante
a Operação Condor. Já Norberto Tozzo é acusado de envolvimento no Massacre de
Margarita Belén de 1976, ocorrido na província do Chaco, que levou a execução de 22
jovens peronistas. Dentre esses militantes, até hoje não foram encontrados 4 deles, o
que levou Tozzo a ser extradidado para a Argentina para ser julgado pelo crime de
sequestro qualificado (ARAS).
Em ambos os casos, o Supremo Tribunal Federal teve que usar da técnica
argumentativa e jurídica para sair das alegações de atipicidade (do delito de
desaparecimento forçado) e de prescrição (do crime de homicídio). Para tanto, utilizou-
se da fundamentação encastelada pelo Ministério Público Federal na atual petição
contra Sebastião Curió, ou seja, partindo da técnica que vai ao núcleo duro da conduta,
o STF decidiu que o desparecimento forçado equiparava-se ao crime de sequestro –
vítimas desaparecidas que, no entanto, não tiveram seus corpos encontrados –, no qual
a privação da liberdade continua até os dias de hoje. Devido a natureza permanente
intrínseca do crime de sequestro, não ocorreu, portanto, a prescrição da pretensão
punitiva, já que o termo inicial se dá justamente com a cessação da permanência
(ARAS).
É dessa maneira que o Ministério Público finaliza a fundamentação de sua
persecução penal, afastando a acusação tanto da prescrição penal como do marco criado
pela Lei da Anistia:
Por tais motivos – mais detidamente analisados na cota introdutória
desta denúncia – descabe falar em exaurimento do sequestro e,
consequentemente, de ocorrência de prescrição ou extinção da
punibilidade pela anistia, haja vista que cuida a presente de crimes de
caráter permanente cujo curso do prazo prescricional sequer se iniciou
e, uma vez que ainda em consumação, não são compreendidos,
portanto, pelo marco temporal previsto na Lei de Anistia de 1979.
(MPF, 2012, p. 22)
(...) O elemento concreto desta denúncia é a comprovação da ilícita
privação da liberdade das cinco vítimas, mediante cinco atos de
sequestro, o qual perdura até a atualidade e implicou em grave
sofrimento físico e/ou moral às vítimas, em razão dos maus-tratos a
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
366
que foram submetidas. Tais condutas estão tipificadas no artigo 148, §
2º, do Código Penal brasileiro. (MPF, 2012, p. 23)
O que se nota, portanto, é que as criatividades discursiva e jurídica foram e
estão sendo utilizadas para contornar os aparentes empecilhos normativos. Em um
primeiro momento, foi o próprio Supremo Tribunal Federal que levou a cabo uma
hermenêutica alternativa para não deixar impunes agentes estatais do período militar,
ainda que de outros países. Mas agora, e contra decisão do próprio STF, são outros
órgãos do Estado brasileiro que fazem da argumentação do crime permanente uma
forma de enfrentar o passado ditatorial latino-americano, dando cumprimento a decisões
internacionais e retificando o compromisso social de não esquecimento. Diante desse
quadro, cabe, por fim, perguntar em que medida essa nova fundamentação avança na
efetivação da justiça de transição brasileira e se, por outro lado – com o esquecimento
da centralidade da aprovação da Lei da Anistia e com a argumentação usada para
sustentar sua adequação à “ordem” pela mais alta corte do país – ela não representa
mais uma vez o enfrentamento surdo de órgãos que insistem em não entender o
contexto ditatorial brasileiro.
5. Conclusão – se memória de um lado, esquecimento do outro:
Com a alegação de crime permanente, o Ministério Público Federal vai
conseguindo fazer importante abertura em um dos poderes mais conservadores no que
toca a questão da justiça de transição. No entanto, diante de tal alternativa
argumentativa, cabe perguntar em que medida a fundamentação sobre a permanência
dos delitos ajuda a trazer, para a centralidade das instituições públicas, o debate sobre a
verdade, a memória e a participação do Estado. Mais especificamente e neste sentido,
surge também o questionamento sobre o real compromisso do poder judiciário com o
enfrentamento de questões pendentes do nosso passado.
Segundo Paulo Abrão e Marcelo Torelly, a justiça de transição, processo
promovido pelas instituições públicas em períodos pós-ditatoriais, apresenta quatro
grandes dimensões, quais sejam: promoção da reparação às vítimas; fornecimento da
verdade e construção da memória; regularização das funções da justiça e re-
estabelecimento da igualdade perante à lei; e reforma das instituições perpetradoras de
violações contra os direitos humanos (ABRÃO e TORELLY, p. 27)
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
367
Tendo como base esses quatro objetivos, que podem ser aferidos em maior
ou menor grau dependendo do período histórico, do contexto social e da instituição
analisados, clareia-se a conjuntura da justiça de transição no Brasil. Nota-se,
principalmente nos últimos anos, um aumento do poder público no que toca a efetivação
da memória, da verdade e da reparação em relação aos atos cometidos no período
militar. Isso pode ser notado, para além dos debates levados a cabo pela Comissão da
Anistia, as ações da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da
República – como o lançamento do livro “Direito à Verdade e a Memória” e a própria
mobilização social e institucional em torno da ADPF 153 (ABRÃO E TORRELY, p.
38), com a criação da Comissão Nacional da Verdade, fundada em novembro de 2011.
Todas essas medidas mostram, em alguma medida, o comprometimento
institucional, principalmente do poder executivo, com a promoção das referidas quatro
dimensões da justiça de transição. No entanto, o mesmo avanço não pode ser visto por
parte do judiciário, que ainda se mostra resistente ao enfrentamento necessário,
principalmente em relação aos casos de responsabilização dos agentes estatais. Neste
contexto, a argumentação utilizada pelo Ministério Público, ainda que fundamentada
sobre o resgate de determinados fatos, não consegue fazer penetrar, no âmbito dos
tribunais, duas importantes dimensões da justiça de transição: o fornecimento da
memória e da verdade com a subsequente, ou concomitante, reforma das instituições
violadoras de direitos humanos.
Isso se deve ao fato de que, ao trazer para o presente determinados crimes,
afasta-os de sua contextualização e do seu liame histórico, ainda que decisoriamente ou
argumentativamente. Por mais que o Ministério Público se esforce para reconstituir, em
sua petição inicial, o momento e o estado das coisas nos quais os crimes se iniciaram, a
decisão se baseará na permanência do crime nos dias de hoje, não o articulando com a
suspensão jurídica institucionalizada pelo próprio Estado que ocorria durante o período
da Ditadura Militar. O crime é punido pelo que ele “é” hoje, não pelo que ele “foi”
naquela determinada circunstância. Não há, portanto, uma assunção, por parte do
judiciário, de que a responsabilidade dos agentes estatais se deve pelo próprio estado de
exceção criado pelos agentes políticos, mas sim porque o crime permanece até o
presente, merecendo um resposta do Estado.
Assim, o judiciário mais uma vez concebe a ditadura militar a partir do
“esquecimento” e não da reconstrução da memória para que se tenha uma real noção do
nosso presente. Mantém-se, novamente, distante de todo o debate produzido pela
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
368
sociedade civil e partes do poder público. Tão concepção é assim problematizada por
Paulo Abração e Marcelo Torelly:
É evidente que já de muito foi superada a idéia de que “anistia”
significa “esquecimento”, tanto na sociedade civil, que consigna no
movimento de luta pela anistia o início do processo de
redemocratização brasileira, quanto nos debates legislativos e ações
do Executivo, que passaram a tratar a “anistia brasileira” ou como ato
de reconciliação (legislativo) ou de pedido de desculpas oficiais do
Estado pelos erros que cometeu (executivo). A anistia como
esquecimento resta afirmada apenas no poder judiciário que, por
natureza, é o poder mais conservador da República, e por setores da
academia com dificuldades em dialogar com a realidade concreta,
fixando-se a conceitos estanques e, claro, finalmente, por aqueles
setores mais reacionários da sociedade politizada, que simplesmente
não aceitam a anistia enquanto conquista democrática e
ideologicamente não admitem o dever de reparação aos perseguidos
políticos ou o consideram indevido, por ainda dialogarem com uma
idéia pouco democrática de espaço público que confunde “resistência”
com “terrorismo”. (ABRÃO e TORELLY, p. 34)
Essa postura contribui muito pouco para uma nova cultura política e jurídica
sobre o assunto, pois apesar de se fazer uma brecha para a discussão das violações de
direitos humanos no seio do poder judiciário, ainda se trabalha de forma desarticulada
os elementos da justiça de transição. Os votos dos ministros na ADPF 153, de certa
maneira, refletem um desapego ao contexto histórico de institucionalização sistemática
da tortura, do desaparecimento forçado e do sequestro como maneiras utilizadas pelo
Estado brasileiro como formas de se obter a “verdade”. E esse desapego reforça a
construção de uma memória, ou política do esquecimento, social e institucional que não
contribui para o próprio poder judiciário admitir que as violações de direitos humanos
são inadmissíveis em qualquer contexto.
Neste sentido, as palavras de Maria Rita Kehl são emblemáticas e – por
que não? – proféticas:
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
369
Não há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a
política do silêncio e do esquecimento, que empurra para fora
dos limites da simbolização as piores passagens da história de
uma sociedade. Se o trauma, por sua própria definição de real
não simbolizado, produz efeitos sintomáticos de repetição, as
tentativas de esquecer os eventos traumáticos coletivos resultam
em sintoma social. Quando uma sociedade não consegue
elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a
memória do evento traumático, esse simulacro de recalque
coletivo tende a produzir repetições sinistras (KEHL, p. 126)
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371
LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA E VITALICIEDADE DOS MINISTROS DO STF: UMA ABORDAGEM A PARTIR DE ESTUDOS DE OSCAR VILHENA E GERMANO
SCHWARTZ1
DEMOCRATIC LEGITIMACY AND LIFELONG TERM OF THE SUPREME COURT
JUSTICES: AN APPROACH BASED ON THE STUDIES OF OSCAR VILHENA AND
GERMANO SCHWARTZ
Roberto Carlos Rocha Kayat2
Gabriela Vieira Leonardos3
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. O Supremo Tribunal Federal: 1964/1988 2.1. O Supremo
Tribunal Federal durante o Regime Militar 2.2. O Supremo Tribunal Federal e as
Diretas Já 2.3. O STF na Constituição de 88 e a politização da Justiça no Brasil 3. A
inadequação do sistema de composição e da vitaliciedade dos ministros do Supremo
Tribunal Federal e a proteção dos Direitos Fundamentais 4. Considerações Finais
5. Referências Bibliográficas
RESUMO: O presente trabalho examina dois casos julgados pelo STF à época do movimento
das Diretas Já, com o objetivo de aferir eventual descompasso entre o decidido pelos
ministros de então e o momento político vivido à época, a refletir grave problema de
legitimidade na atuação da Corte. A partir daí, o estudo questionará hipoteticamente a
possibilidade de tal situação se repetir no Brasil atual, em decorrência de três fatores
cumulativos: o protagonismo político do STF pós-88, a manutenção da vitaliciedade dos seus
integrantes e a crescente longevidade da população brasileira, com impactos na estruturação
1 Este artigo foi elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento
das Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito e ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pela concorrência do Edital nº 9 de 2011 (Processo nº E-26/111.832/2011) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concorrência do Edital Universal de 14/2011 (Processo n° 480729/2011-5) 2 Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Advogado da União. Professor de Direito Constitucional da Universidade Cândido Mendes. E-mail: [email protected]. 3 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Email: [email protected]
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
372
do serviço público em geral e do Supremo em particular. O resultado da análise critica a
manutenção da vitaliciedade dos ministros.
PALAVRAS CHAVE: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL; LEGITIMIDADE;
VITALICIEDADE
ABSTRACT: This paper examines two cases decided by the Supreme Court at the time of
"Diretas Já", in order to assess the possible mismatch between the Justices decisions and the
political moment at those times, reflecting the serious problem of legitimacy in the
performance of the Court. From there, the study tried to question hypothetically the
possibility of such a situation be repeated in Brazil today, due to cumulative three factors: the
political leadership of the post-88 STF, the maintaining of the lifelong term of its members
and the increasing longevity of the population, with impacts on the structuring of the public
service in general and particularly in the STF. The result of the analysis criticizes the
maintaining of the lifelong term of the Supreme Court Justices.
KEYWORDS: SUPREME COURT; LEGITIMACY; LIFELONG TERM
1. Introdução
O presente trabalho tem como objeto os julgamentos proferidos pelo STF no Habeas
Corpus nº 61920/84 e no Mandado de Segurança Nº 20444/84, impetrados quando o Brasil
vivia o movimento das Diretas Já. Indagar-se-á até que ponto as indicações dos Ministros da
Corte, feitas por militares em um contexto político anterior, exerceram influência negativa no
desfecho de questões jurídicas importantes para o período da transição democrática, o qual vai
de 1979 (governo de João Batista Figueiredo) a 1985 (eleição de Tancredo Neves pelo colégio
eleitoral). Tratava-se de ocasião em que se ensejava clara e facilmente aferível ruptura da
ordem jurídica anterior, razão pela qual os dois casos escolhidos permitem uma avaliação
objetiva do problema.
Pergunta-se se, e em que medida, a composição do STF, naquele momento crucial
para o restabelecimento da democracia, não estaria mais refletindo o novo momento político
pelo qual passava o Brasil. A partir do observado naqueles casos, investigar-se-ão os
problemas que eventuais descompassos de legitimação da Corte Maior podem acarretar para a
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
373
ordem democrática hoje em dia, num contexto de agigantamento das atribuições do STF, a
partir da Constituição de 88, e considerando a tensão entre a vitaliciedade dos Ministros e o
princípio republicano de alternância dos atores políticos no poder, situação que pode ganhar
contornos cada vez mais agudos em razão da questão demográfica – crescente longevidade da
população – a qual tem efeitos no estabelecimento das regras atinentes ao estatuto jurídico dos
agentes públicos, dentre os quais os membros da Corte. Neste sentido, já existem propostas de
alargar o limite etário da aposentadoria compulsória no serviço público para 75 anos de idade,
sendo que a mais concreta delas é a PEC nº 42/2003, especificamente dirigida aos Ministros
do STF.
O STF indubitavelmente tem figurado como verdadeiro ator político a partir dos
contornos institucionais que lhe foram dados pela CRFB/88. Tal cenário, somado ao
incremento da expectativa de vida, impõe a necessidade de pensar se a opção pela
vitaliciedade dos Ministros do Supremo é a mais apropriada para a nossa realidade.
Para tal análise, tomaremos as obras “Supremocracia” de Oscar Vilhena Vieira e “A
(In)adequação do Sistema de Composição e da Vitaliciedade dos Ministros do Supremo
Tribunal Federal e a Proteção dos Direitos Fundamentais” de Germano Schwartz e Diego
Dezorzi como marco teórico a partir do qual introduziremos a questão da longevidade como
elemento adicional de reflexão, e no contexto de um problema específico apontado pelo
projeto de pesquisa em questão, no âmbito da Teoria das Instituições: o fato delas muitas
vezes não responderem legitimamente às demandas sociais em sua atuação.
2. O Supremo Tribunal Federal: 1964/1988
2.1 O Supremo Tribunal Federal durante o Regime Militar
Entre 1964 e 1985, o Brasil viveu sob um regime militar que conferiu amplos
poderes ao Executivo, em detrimento das atribuições institucionais do Legislativo e do
Judiciário. Durante o período, medidas de cerceamento do Supremo Tribunal Federal
enfraqueceram o papel da Corte, a exemplo do que ocorreu com o Congresso Nacional,
fechado mais de uma vez por determinação do Executivo.
O primeiro presidente militar, general Castelo Branco, tomou posse em 1964 e, logo
quando empossado, visitou a sede do STF, sendo recebido pelo Ministro Álvaro Moutinho
Ribeiro da Costa, então presidente da Corte. Em seu discurso, o presidente Ribeiro da Costa
demonstrou que o Supremo estava disposto a colaborar com o novo governo e acrescentou
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
374
que, em momentos de crise, era necessário fazer sacrifícios constitucionais em nome da
democracia. (PERGORARO, 2006, p. 35)
Entretanto, as reiteradas violações aos direitos fundamentais cometidas pelo Estado
geravam inúmeras ações a serem julgadas pelo STF. Questões relacionadas à liberdade de
expressão tornaram-se motivo de intensa divergência entre os ministros, que passaram a
apresentar muitas justificativas de claro caráter político-ideológico em seus votos.
Já a partir de 1964, verificaram-se casos em que o STF decidiu contrariamente aos
interesses do governo militar. Um deles foi um julgado de 24 de Agosto de 1964, relativo a
professor que, através de panfletos, manifestava-se contra o regime. No julgamento do habeas
corpus do professor Sérgio Cidade de Resende, discutia-se a liberdade de expressão e de
cátedra, defendida pela Constituição de 1946. Em julgamento conturbado, o HC foi por fim
concedido, indo claramente contra as diretrizes dos militares, causando instabilidade e
irritação dentro do governo.
Aos poucos, no entanto, casos semelhantes deixaram de ser julgados pelo STF e
passaram a ser julgados na Justiça Militar, a partir do alargamento da competência desta
última por parte do Ato Institucional nº 2. Esvaziava-se, assim, o Supremo, e as interferências
constantes do governo nos trabalhos da Corte tornavam as relações institucionais cada vez
mais conturbadas. (PERGORARO, 2006, p. 35)
Uma primeira abordagem do silêncio da Corte frente às violações ao texto
constitucional e aos princípios democráticos leva a pensar que as medidas tomadas pelo
Executivo para enfraquecê-la foram a única determinante dessa tímida atuação. Entretanto,
como pode ser visto pelo gesto do presidente do Supremo, Ministro Álvaro Moutinho Ribeiro
da Costa, o apoio e concordância com o regime já eram presentes entre os ministros desde o
início, não podendo as medidas de cerceamento institucional ser consideradas isoladamente
enquanto fator motivador da anuência ou da omissão da Corte.
Em vez disso, devem-se analisar quais outros fatos exerceram influência no
comportamento passivo do STF. De 1964 até 1985, por exemplo, trinta e dois ministros foram
nomeados por presidentes militares por meio de emendas que visavam alterar o número de
integrantes da Corte (PERGORARO, 2006, p. 40). Havia, portanto, predominância de
“adeptos” ao governo militar dentro da mais alta instância jurisdicional do país, visto que as
nomeações ficavam a cargo das pretensões dos presidentes militares, dado o histórico de
ínfima participação do Senado na escolha, em razão deste, historicamente, apenas ratificar a
indicação do presidente da república, salvo situação excepcional ocorrida durante o governo
de Floriano Peixoto, nos idos da República Velha.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
375
2.2 O Supremo Tribunal Federal e as Diretas Já
O último dos generais presidentes, João Batista Figueiredo, assumiu em março de
1979, em meio a uma difícil conjuntura política e econômica. Figueiredo acelerou o processo
de abertura “lenta e gradual”, iniciado no governo anterior de Ernesto Geisel, por meio de
transformações institucionais, tendo a mobilização da sociedade civil contribuído fortemente
para o avanço do processo de abertura política. Dentre os marcos desse período, têm-se a
aprovação da “Lei da Anistia”, que concedeu anistia política aos cidadãos punidos pelos Atos
Institucionais, e a promoção de uma reforma partidária, reestabelecendo o pluripartidarismo
no Brasil, na tentativa de garantir a vitória do governo nas eleições de 1979, através da
dissociação das forças partidárias de oposição.
Em 1982 houve eleições diretas. No Congresso, o PDS (antiga ARENA, partido da
situação) elegeu a maior bancada, e a oposição (PMDB, PP, PTB, PDT e PT) triunfou nas
eleições para governadores. Logo em seguida, a campanha pelas “Diretas Já” surgiu,
reivindicando eleições diretas também para presidente da República, que aconteceriam, a
princípio, por via indireta, em 1985. (PERGORARO, 2006, p. 39)
A campanha foi fruto da proposta de emenda à Constituição do deputado federal do
PMDB Dante de Oliveira, e recebeu largo apoio da sociedade civil. O uso maciço da TV na
política foi um dos marcos do movimento, que reuniu mais de um milhão pessoas em
comícios na Candelária, no Rio de Janeiro, e no Vale do Anhangabaú, em São Paulo. As
manifestações populares eram televisionadas e o desejo da maioria dos brasileiros pela volta
das eleições diretas para presidente era inegável.
Para impedir o televisionamento da votação da Emenda, o governo militar baixou o
Decreto n. 89.566 de 18.4.1984, impondo medida de emergência na capital federal e
municípios adjacentes. A medida se justificava pela “necessidade de preservar a ordem
pública na área do Distrito Federal, ameaçada de grave perturbação”, como previa o decreto
editado. Tais medidas coercitivas eram autorizadas pela Constituição de 67/69 no artigo 155,
o qual previa que o “Presidente da república, para preservar ou, prontamente, restabelecer, em
locais determinados e restritos a ordem pública ou a paz social, ameaçadas ou atingidas por
calamidades ou graves perturbações que não justifiquem a decretação dos estados de sítio ou
de emergência, poderá determinar medidas coercitivas autorizadas nos limites fixados por § 2º
do artigo 156(...)”.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
376
Assim, baseava-se o decreto nas alíneas do artigo 156, parágrafo segundo, o qual
dispunha sobre o estado de sítio, para garantir a censura aos meios de telecomunicação, que
estariam impossibilitados de realizar a transmissão da votação da emenda Dante, e evitar uma
mobilização ainda maior da população.
É nesse contexto que foram impetrados o habeas corpus número 61.920 e o mandado
de segurança número 20.444, levados à apreciação do STF em 24 de Abril de 1984, dia em
que ocorreria a votação da Emenda no Congresso Nacional.
Na primeira ação, o HC 61.920-7/DF, os impetrantes Osvaldo Gomes e Clésia Pinho
Pires alegaram que o decreto presidencial era fruto de ilegalidade e abuso de poder.
Argumentaram que a medida de emergência era prevista pelo artigo 81, inciso XVI, da
Constituição de 67/69, dispositivo constitucional “não auto-executável”, no entender dos
autores, “ao contrário do que ocorre com o estado de sítio e o estado de emergência, que são
definidos nos parágrafos do art. 156, que lhes determina as condições e o regulamento”
Pode-se questionar a fundamentação jurídica do pedido. As medidas de emergência
foram previstas pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978, cuja redação4 expressamente
4 Art. 81. Compete privativamente ao Presidente da República: (.............) XVI - determinar medidas de emergência e decretar o estado de sítio e o estado de emergência; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) (............) Art. 155 - O Presidente da república, para preservar ou, prontamente, restabelecer, em locais determinados e restritos a ordem pública ou a paz social, ameaçadas ou atingidas por calamidades ou graves perturbações que não justifiquem a decretação dos estados de sítio ou de emergência, poderá determinar medidas coercitivas autorizadas nos limites fixados por § 2º do artigo 156, desde que não excedam o prazo de 60 (sessenta) dias, podendo ser prorrogado uma vez e por igual período.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 1º - O presidente da república, dentro de 48 (quarenta e oito) horas, dará ciência das medidas a Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, bem como das razões que as determinaram. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 2º - Na hipótese da determinação de novas medidas, além daquelas iniciais, proceder-se-á na forma do parágrafo anterior. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) (............) Art. 156 - No caso de guerra ou a fim de preservar a integridade e a independência do País, o livre funcionamento dos Poderes e de suas instituições, quando gravemente ameaçados ou atingidos por fatores de subversão, o Presidente da república, ouvindo o conselho de segurança Nacional, poderá decretar o estado de sítio.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 1º - o decreto de estado de sítio especificará as regiões que essa providência abrangerá e as normas a serem observadas, bem como nomeará as pessoas incumbidas de sua execução. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 2º - O estado de sítio autoriza as seguintes medidas coercitivas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) a) obrigação de residência em localidade determinada; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) b) detenção em edifícios não destinados aos réus de crimes comuns; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) c) busca e apreensão em domicílio; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) d) suspensão da liberdade de reunião e de associação; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) e) intervenção em entidades representativas de classes ou categorias profissionais; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978)
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
377
remeteu a regulamentação da medida de emergência às mesmas especificações estabelecidas
para o estado de sítio, o que coloca em xeque a argumentação de que a medida de emergência
seria “não auto-executável”, “ao contrário do que ocorre com o estado de sítio e o estado de
emergência, que são definidos nos parágrafos do art. 156, que lhes determina as condições e o
regulamento”.
Contudo, a proibição da transmissão televisiva da emenda Dante alcançaria todo o
território nacional, e poder-se-ia, aí sim, discutir eventual violação ao disposto no art. 155,
que limitava as medidas de emergência a locais “determinados e restritos”. Contudo, o
Supremo evitou tal discussão ao apegar-se a vício de índole puramente processual: declarou
não conhecer do pedido do habeas corpus, em razão de o coator ter sido o Comandante Militar
do Planalto, nomeado pelo decreto presidencial como executor das medidas de emergência, e
não o Presidente. Dessa forma, aduziu o tribunal que o Comandante não se enquadrava nos
casos em que competia originariamente ao STF o julgamento de habeas corpus, previstos na
Constituição da República de 67/69, no seu artigo 119, inciso I, alínea “h”, não estando,
portanto, sujeito à jurisdição do Tribunal.
Poderia o STF ter conhecido do Habeas Corpus de ofício, ao menos para debater a
respeito do eventual desrespeito aos termos do artigo 155.
Atacando de modo específico a questão da concessão de efeitos nacionais a medida
de emergência, foi impetrado o MS nº 20.444/SP por Geraldo Forbes, editorialista do jornal
“O Estado de S. Paulo”, economista e empresário. No artigo 155 da Constituição de 67/69,
restava claro que as medidas de emergência deveriam ser restritas a locais determinados.
Muito embora o decreto em questão especificasse o Distrito Federal e outros municípios do
entorno aos quais se aplicava a medida, em realidade censurava todo o território nacional,
f) censura de correspondência, da imprensa, das telecomunicações e diversões públicas; e uso ou ocupação temporária de bens das autarquias empresas públicas sociedades de economia mista ou concessionárias de serviços públicos, bem como a suspensão do exercício do cargo, função ou emprego nas mesmas entidades.(Incluída pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 3º A duração do estado de sítio salvo em caso de guerra, não será superior a 180 (cento e oitenta) dias, podendo ser prorrogada, se persistirem as razões que o determinaram. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 4º - O decreto de estado de sítio ou de sua prorrogação será submetido, dentro de 5 (cinco) dias, com a respectiva justificação, pelo Presidente da República ao Congresso Nacional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 5º - Se o Congresso Nacional não estiver reunido será convocado imediatamente pelo Presidente do Senado Federal. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 6º - Durante a vivência do estado de sítio e sem prejuízo das medidas previstas no artigo 154 também o Congresso Nacional, mediante lei, poderá determinar a suspensão de outras garantias constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978) § 7º - As imunidades dos deputados federais e senadores poderão ser suspensas durante o estado de sítio por deliberação da Casa a que pertencem. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 11, de 1978)
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378
através de dispositivo que estabelecia que “as gravações em vídeo-tape realizadas na área e
nos Municípios a que se refere este artigo deverão ser, antes de transmitidas, examinadas
previamente pelo órgão competente do Departamento da Polícia Federal”, o que implicara
censura e gerara restrição de liberdades em regiões do país que não se encontravam sob os
efeitos da medida de emergência.
Contudo, o ministro Moreira Alves, relator, decidiu que a “impetração ataca
inequivocamente ato normativo em tese”, que seria o decreto presidencial, e que a Corte não
poderia conhecer da impetração, pois, de acordo com a súmula 266 “não cabe mandado de
segurança contra lei em tese”. No mais, repetiu-se o argumento utilizado no caso
anteriormente exposto: “O ato cuja realização se quer impedir é da competência de autoridade
que não é o Presidente da República e que não se acha arrolada no inciso I, letra “i”, do artigo
119 da Constituição Federal”. O mandado de segurança foi indeferido por unanimidade.
No entanto, a competência para determinar medidas de emergência era privativa do
Presidente da República, nos exatos termos do artigo 81, inciso XVI, da Carta de 67/69.
Como aponta Oscar Vilhena, ao contrário do que sugeriam as reiteradas decisões do STF, não
haveria, “portanto, [...] possibilidade legal de as medidas serem de responsabilidade de outra
autoridade que não o Presidente (Art. 81, XVI, CF 1967/69).” (VIEIRA, 2002. apud.
PERGORARO, 2006, p. 43)
Quanto à suposta impetração contra lei em tese, o voto do Ministro Relator apenas
apontou, laconicamente, que
“A presente impetração ataca inequivocamente ato normativo em tese
(Decreto 89566, de 18.04.1984). Com efeito, sustenta ela, em última
análise, a inconstitucionalidade dos dispositivos desse Decreto que
dizem respeito à censura de meios de comunicação.”
O julgado limitou-se a estabelecer que a impetração “atacava lei em tese”. Não
elucidou por quais motivos assim decidiu. Em princípio, seria necessária ao menos uma
análise mais detalhada dos argumentos do impetrante para se chegar a tal conclusão
peremptória, ainda mais se levarmos em conta que a jurisprudência do STF posiciona-se no
sentido do cabimento do mandado de segurança contra decreto, desde que este apresente
efeitos concretos, não se aplicando, nesta hipótese, a súmula nº 266.
Assim, vislumbra-se, nos casos em comento, um Supremo que, por detrás de um
biombo de questões formais, protegeu ao máximo a figura do presidente da República,
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
379
olvidando direitos de liberdade de expressão, de informação e de locomoção que estavam
sendo restringidos em virtude do cumprimento do decreto presidencial em questão, em afronta
à Constituição vigente à época.
Observando-se o quadro de ministros do STF no ano de 1985, percebe-se que todos à
época da votação dessas ações haviam sido indicados por presidentes militares: Djaci Falcão,
por Castello Branco; Soares Muñoz, Cordeiro Guerra, Moreira Alves, Décio Miranda e Rafael
Meyer por Ernesto Geisel; Néri da Silveira, Oscar Corrêa e Alfredo Buzaid por João
Figueiredo.
Uma análise mais profunda nos leva a perceber, portanto, que uma das causas para o
comportamento da Corte poderia decorrer do alinhamento ideológico de seus ministros com o
regime. A postura do Supremo perdurou até os tempos democráticos e foi especialmente
visível nesse momento de ruptura com a ordem política militar. Com o governo já
enfraquecido e sem tantas limitações e restrições impostas pelos AIs, o STF teve grandes
oportunidades de atuação em prol da abertura política e da transição para a democracia. No
entanto, assumiu reiteradas vezes postura retrógrada e inconsistente com as mudanças
clamadas pela população, já no fim do regime.
Nesse sentido, aponta Vilhena (VIEIRA, 2002. apud. PERGORARO, 2006, p. 42)
que “o Supremo colaborou para a transição no ritmo estabelecido pela agenda do Planalto. Em
diversos episódios onde se buscou o Supremo, tiveram os litigantes suas pretensões frustradas
por um tribunal submisso à vontade dos militares.” Portanto, o processo de sucessão do
Presidente ocorreu com o aval do STF e como fora desejada pelos militares: eleições indiretas
limitadas ao Colégio Eleitoral.
A falta de sintonia entre os ministros do Supremo e o momento político que vivia a
sociedade, muito visível naquele momento de transição, era, ao menos em parte, fruto direto
das indicações políticas feitas pelos presidentes militares, consubstanciando-se assim um
grande descompasso entre a composição da Corte e a realidade política corrente, daí advindo
forte crise de legitimidade. Estaríamos livres de tal problema nos dias de hoje?
2.3 O STF na Constituição de 88 e a politização da Justiça no Brasil
Após a promulgação da Constituição de 88, o STF passou a figurar no centro do
nosso sistema político. Embora tenha desempenhado um papel importante nos regimes
constitucionais anteriores, como na Primeira República ou no início do período militar,
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
380
quando ainda proferia decisões contrárias ao governo, não há como se comparar tais situações
com a atual proeminência que possui a Corte.
Ao contrário do papel secundário que lhe era atribuído no momento histórico
imediatamente anterior (final do regime militar), viu-se, no Brasil redemocratizado, um
paulatino deslocamento da autoridade política do sistema representativo para o Judiciário. A
expansão da autoridade dos tribunais, entretanto, não é um fenômeno exclusivo do Brasil e é
objeto constante de estudos e pesquisas que procuram compreender o avanço dos tribunais em
detrimento dos parlamentos e a influência do direito sobre a política.
Muitos enxergam a ampliação do papel do direito e do judiciário como uma
decorrência da retração do sistema representativo, ineficaz na tarefa de produzir a justiça e a
igualdade social, ideais tão caros à ordem constitucional democrática. Outros veem o controle
de constitucionalidade, importado dos Estados Unidos para o Brasil, como fator crucial para
esse deslocamento de poder em direção ao Judiciário. Oscar Vilhena pondera nesse sentido:
“Este processo de expansão da autoridade judicial, contudo, torna-se
mais agudo com a adoção de constituições cada vez mais ambiciosas.
Diferentemente das constituições liberais, que estabeleciam poucos
direitos e privilegiavam o desenho de instituições políticas voltadas a
permitir que cada geração pudesse fazer as suas próprias escolhas
substantivas, por intermédio da lei e de políticas públicas, muitas
constituições contemporâneas são desconfiadas do legislador, optando
por sobre tudo decidir e deixando ao legislativo e ao executivo apenas a
função de implementação da vontade constituinte, enquanto ao
judiciário fica entregue a função última de guardião da constituição. A
hiper-constitucionalização da vida contemporânea, no entanto, é
consequência da desconfiança da democracia e não a sua causa.”
(VIEIRA, 2008)
“Desconfiança da democracia” é um aspecto interessante a ser apontado e que
poderia ser colocado como mais um fator para a proeminência do STF no caso brasileiro. Em
momentos de transição, as constituições em geral buscam demarcar as diferenças entre o
regime deposto e aquele que pretendem instaurar. No caso do Brasil, a Constituição de 88,
tendo como objetivo o restabelecimento da democracia no país, previu formalmente em seu
texto diversos direitos fundamentais individuais, coletivos e difusos. Ademais, dotou os
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
381
tribunais de especiais poderes para defendê-los e criou novos meios para reclamar as suas
eventuais violações, que poderiam ser cometidas pelos poderes públicos ou por particulares.
Essa hiperconstitucionalização brasileira, singular em termos de proteção a direitos e de
atribuições dadas ao Supremo, poderia ser vista, portanto, como um reflexo da “desconfiança”
de uma nova e recém instaurada ordem democrática. (VIEIRA, 2008)
Assim, a constituição transcendeu os assuntos puramente constitucionais e passou a
regular relações sociais, econômicas e públicas, tornando todos esses assuntos “matéria
constitucional” e dando ao corpo político pouco espaço para atuação. Nas palavras de Oscar
Vilhena,
“a constituição de 1988, mais uma vez preocupada em preservar a sua
obra contra os ataques do corpo político, conferiu ao Supremo Tribunal
Federal amplos poderes de guardião constitucional. Ao Supremo
Tribunal Federal foram atribuídas funções que, na maioria das
democracias contemporâneas, estão divididas em pelo menos três tipos
de instituições: tribunais constitucionais, foros judiciais especializados e
tribunais de recursos de última instância.” (VIEIRA, 2008)
A Constituição de 88, portanto, através da ampliação das atribuições do STF,
redefiniu seu papel no sistema constitucional, garantindo-lhe grande influência na política do
país. A constitucionalização de inúmeros temas, a ampliação do rol de autores legítimos a
propor Ações Diretas de Inconstitucionalidade, a criação da Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão e o Mandado de Injunção são exemplos dessa ampliação
de competências do STF que geraram um inchaço do Judiciário e consolidaram sua posição
de importância no cenário político nacional. Um verdadeiro player político.
Um bom exemplo da influência das decisões do STF no processo político pode ainda
ser visto nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade, por meio das quais se estabelece
uma cooperação entre Governo e Supremo Tribunal Federal. Esse tipo de ação permite que o
Supremo suspenda o controle de constitucionalidade por via difusa, declarando a
constitucionalidade de uma norma que tem a sua legitimidade questionada e combatida nos
tribunais inferiores. Essa atribuição dá ao STF o poder de assegurar a governabilidade e o
cumprimento de uma norma editada pelos poderes representativos, tornando a norma imune a
qualquer impugnação por parte dos cidadãos.
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
382
Ao exercer o controle concentrado de constitucionalidade de matérias de patente
relevância, corrigindo e até mesmo anulando escolhas políticas fundamentais exteriorizadas
pela produção do Legislativo, representante da vontade geral, o Supremo assume
inegavelmente um papel destacado no cenário político nacional. (VIEIRA, 2008)
Cabe ressaltar que, apesar de todas as mudanças aqui mencionadas, o sistema de
nomeação dos ministros do STF permaneceu o mesmo na nova Constituição. Previsto no
artigo 1015, a nomeação se dá pelo Presidente da República, dentre cidadãos com mais de
trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação
ilibada, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
Esta tendência da jurisdição constitucional do STF, cada vez mais invasora da esfera
política dos poderes eleitos, estimularia o Presidente da República a escolher os Ministros
pelo critério político partidário, de modo a garantir a chancela do STF às decisões políticas
tomadas pela Presidência. Esse aspecto da politização da justiça pôde ser claramente
percebido durante o regime militar, muito embora ocorresse sob outros moldes, e é patente até
hoje.
Durante o período de transição política analisado, percebeu-se no Brasil uma clara
dissonância entre os ministros do Supremo e as demandas da população naquele particular
momento da história. Com a promulgação da Constituição de 88, e a assunção de papel
político pelo STF, a manutenção da forma de nomeação dos ministros para a Corte e a
vitaliciedade do cargo de Ministro, tal problemática perenizou-se em nossa realidade. O
questionamento em torno da adequação de ministros nomeados em outros momentos
políticos, econômicos e sociais para o julgamento de questões que demandam um
reconhecimento de novos valores e de uma nova realidade será sempre levantado. Quando se
tem uma forte atuação política da Corte, como atualmente ocorre, o problema da vitaliciedade
de seus membros se agrava ainda mais.
“No exercício destas funções que lhe vem sendo atribuídas pelos
distintos textos constitucionais ao longo da história republicana,
ousaria dizer, emprestando a linguagem de Garapon (1996), que, nos
últimos anos, o Supremo não apenas vem exercendo a função de órgão
de "proteção de regras" constitucionais, face aos potenciais ataques do 5 Art. 101. O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Parágrafo único. Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.
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383
sistema político, como também vem exercendo, ainda que
subsidiariamente, a função de "criação de regras"(GARAPON, 1996);
logo, o Supremo estaria acumulando exercício de autoridade, inerente
a qualquer interprete constitucional, com exercício de poder. Esta
última atribuição, dentro de um sistema democrático, deveria ficar
reservada a órgãos representativos, pois quem exerce poder em uma
república deve sempre estar submetido a controles de natureza
democrática (DAHL, 1989).” (VIEIRA, 2008)
Faltaria aos ministros do STF, portanto, legitimidade democrática para agirem em
substituição aos atores políticos eleitos, como tem ocorrido após 88. Além de não serem
eleitos pela população, são vitalícios em suas funções. A composição do Supremo e sua
adequação a nossa realidade devem ser, portanto, questionados, inclusive na medida em que a
longevidade cada vez maior da população em geral tem reflexos na composição do serviço
público.
3. A inadequação do sistema de composição e da vitaliciedade dos ministros do
Supremo Tribunal Federal e a proteção dos Direitos Fundamentais
A composição das cortes constitucionais é apontada pela doutrina como fator
legitimador das suas decisões. Fala-se da perda de legitimidade do STF em virtude de
inúmeros aspectos; porém, faz-se necessária inicialmente a divisão entre legitimidade de
origem e legitimidade de exercício. (SCHWARTZ; DEZORZI, 2010, p.187) A primeira se
refere a toda à credibilidade da instituição e à forma de seleção dos magistrados. Em última
análise, reside na soberania popular, pois é proveniente do Poder Constituinte originário,
como ressalta Favoreu (2004, p. 34), e deve-se ao fato de seus membros serem designados por
autoridades democraticamente eleitas. A legitimidade de exercício, por outro lado, implica a
existência de uma distância segura do Tribunal em relação à vinculação partidária, devendo
seus membros ser neutros e livres de influências partidárias. Implica ainda a observância dos
requisitos mínimos para a nomeação, bem como as garantias que lhes são outorgadas e as
limitações que lhes são impostas.
O formato de indicação política dos ministros do STF é alvo de diversas críticas por
permitir um vínculo indesejado entre o Supremo e o chefe do Executivo, prejudicando a
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 30 - Justiça de Transição: Verdade, Memória e Justiça
384
neutralidade de atuação da Corte e atacando diretamente a sua legitimidade de exercício.
Assim, torna-se necessária a fixação de parâmetros a serem observados nessa escolha
subjetiva do Presidente, com o intuito de garantir, tanto quanto possível, uma legitimidade de
exercício ao Tribunal.
A fixação de idade mínima e máxima para o exercício do cargo, além da exigência
de capacitação técnica e de diversidade cultural têm sido os pontos mais adotados como
limitação ao poder de seleção. A idade mínima se explica pela necessidade de experiência que
o cargo demanda, enquanto a idade máxima é comum em países que estipulam uma
aposentadoria compulsória e se explica pela perda de dinamicidade exigível para o
desempenho das funções. A exigência de capacitação técnica é a mais eficaz das medidas
contra a influência política que órgãos e grupos de interesse podem exercer no momento da
indicação. (SCHWARTZ; DEZORZI, 2010, p.185)
Devido à grande amplitude das competências que são atribuídas ao Tribunal, e por
este ser encarregado de julgar matérias constitucionais ligadas a princípios, direitos
fundamentais e cláusulas abertas, torna-se indispensável uma Corte de composição plural,
capaz de olhar de forma mais ponderada uma sociedade multicultural. A diversidade na
composição do STF é, portanto, o último fator que costuma figurar como limitador da
discricionariedade do chefe do Executivo no momento da indicação (SCHWARTZ;
DEZORZI, 2010, p.185) É um aspecto que não deve ser olvidado por ser de particular
importância para um país plural como o Brasil.
Esse pluralismo desejado para o Supremo Tribunal Federal poderia ser tido como
lato sensu, subdividindo-se em três outros aspectos: pluralismo stricto sensu,
representatividade e complementaridade. O primeiro consistiria em “evitar o predomínio de
uma única tendência política na composição da corte, visto que conduziria a uma
homogeneidade do seu posicionamento com o do governo e comprometeria sua capacidade de
controle”. O segundo, por sua vez, se relaciona com a representatividade de minorias e
apresenta-se como a necessidade de que as várias tendências e segmentos da sociedade
estejam contemplados no Tribunal, considerando as diversidades linguísticas, étnicas e
religiosas de cada grupo. O terceiro, por fim, procura garantir uma composição de membros
oriundos de diversas atividades profissionais (juízes, advogados, professores, entre outros)
para assegurar a multiplicidade de experiências e horizontes. (SCHWARTZ; DEZORZI,
2010, p.189)
Todos esses aspectos ligados ao pluralismo (lato sensu) conferidores de legitimidade
de exercício ao Supremo, ainda que plenamente implementados, são contudo eclipsados pelo
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mandato vitalício dos ministros. A vitaliciedade, ao impossibilitar uma renovação regular do
quadro do tribunal, faz com que as modificações na conjuntura política não sejam
acompanhadas por modificações na composição interna do Tribunal, o que pode levar a
resultados negativos, como vimos nos dois casos analisados. Os ministros do STF, por mais
que componham um quadro marcadamente plural, representativo e complementar, não são
imunes à passagem do tempo e à dinamicidade das forças sociais. A disparidade entre suas
decisões e os anseios sociais eventualmente passará a ocorrer, causando uma perda de
legitimidade de exercício, como ocorreu no Brasil no período de 1979 a 1985. E tal
disparidade é diretamente proporcional ao crescimento da expectativa de vida da população,
que refletirá no aumento médio da duração dos mandatos dos ministros do STF.
Nesse sentido, temos a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 42 de 2003,
prevendo aumento do limite da aposentadoria compulsória dos Ministros do STF para 75
anos. A proposta foi aprovada no âmbito do Senado e, atualmente, encontra-se em tramitação
na Câmara dos Deputados, com chances reais de aprovação.
4. Considerações Finais
Em razão da atuação política do STF, a forma de escolha de seus ministros ofenderia
as ideias básicas de democracia, que repousam no governo da maioria, na periodicidade dos
governantes e na participação popular. Considerando que o Senado historicamente não atua de
modo a questionar uma indicação presidencial, faz-se necessário pensar em outros meios de
composição do STF de forma que a nomeação não seja unicamente dependente da vontade do
Presidente para se concretizar. A maior independência e participação popular na formatação
subjetiva seriam meios, ao lado da possibilidade de implementação de mandatos temporários,
de conferir maior legitimidade ao Tribunal, instituindo a rotatividade no poder como manda o
princípio republicano.
A vitaliciedade dos ministros é um fator agravante dessa problemática, pois vai de
encontro a qualquer princípio de alternância no poder. Nesse diapasão, o presente trabalho
levanta ainda uma outra variável essencial para essa análise: a questão demográfica e o
aumento da expectativa de vida do brasileiro.
Dada a crescente expectativa de vida da população brasileira, é cada vez mais
provável que os ministros permaneçam ativos e com saúde em seus cargos até a data limite de
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seu exercício. A análise das Tábuas de Mortalidade (IBGE) 6 para o total da população
brasileira, entre os anos de 2006 e 2011, para ambos os sexos, mostra que o aumento da
expectativa de vida ao nascer foi acompanhado por um aumento da expectativa de vida em
todas as faixas etárias. Para fins específicos dessa pesquisa, tomou-se como foco o período
compreendido entre as idades mínimas e máximas possíveis para a nomeação de um ministro
(35 a 65 anos de idade).
Dentro dessa limitação etária, observou-se que um ministro nomeado aos 35 anos,
em 2006, teria expectativa de vida de mais 41,5 anos. De maneira sempre ascendente ao longo
dos anos, em 2011 esse número chegou a 42,2 anos, sobrevivendo-se até os 77,2 anos. Já um
ministro nomeado aos 65, teve sua expectativa de vida aumentada de 17,5 em 2009 para 17,9
em 2011, podendo, portanto, sobreviver até 83 anos de idade. Considerando a idade média de
nomeação para ministros do STF 52 anos 7, tem-se, nessa idade, segundo os dados do IBGE
para o ano de 2011, uma expectativa de vida de mais 27,5 anos. Em média um Ministro do
STF viveria, portanto, até 79,5 anos.
Desse modo, mostra-se extremamente preocupante a proposta que surgiu dentro do
próprio Supremo para aumentar a idade de aposentadoria compulsória para 75 anos,
materializada na PEC 42. Vivemos frequentemente momentos de transição decorrentes de
“rupturas” de paradigmas sociais antes tidos como inquestionáveis (caso das uniões
homoafetivas levado à apreciação do STF, por exemplo) de forma que quanto mais tempo um
ministro permanecer na Corte, maiores serão as chances de suas concepções de mundo e a
realidade corrente vivida pela população entrarem em choque.
Tendo como base a idade de aposentadoria compulsória atual (70 anos) e tomando
como exemplo o Ministro Dias Toffoli, cuja posse se deu em 2009, aos 42 anos, pergunta-se
como estará o Brasil em 2037, ano em que o ministro compulsoriamente será aposentado.
Será o mesmo capaz de se renovar, continuamente, enquanto magistrado e enquanto ser
humano, de forma a produzir, pelos próximos 28 anos, decisões adequadas à realidade social
vigente em cada momento até lá?
Impossível prever a exata resposta dessa questão. No entanto, vale refletir: há exatos
28 anos o Brasil vivia o ano de 1985. Em meio à votação das Diretas Já, vivia o indeferimento 6 Em cumprimento ao disposto no Art. 2o do Decreto no 3.266, de 29 de novembro de 1999, o IBGE divulga, até o dia 1º de Dezembro, anualmente a Tábua Completa de Mortalidade para o total da população brasileira, referente ao ano anterior. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/tabuadevida/2011/default.shtm 7 Através da média aritmética das idades dos atuais ministros do STF à época de suas nomeações. Dias Toffoli,
42 anos; Celso de Mello, 44 anos; Marco Aurelio Melo, 44 anos; Gilmar Mendes, 47 anos; Joaquim Barbosa, 49 anos; Carmen Lúcia, 52; Ricardo Lewandowski, 58 anos; Luis Fux, 58 anos; Rosa Weber, 63 anos; e Teori Zavascki, 64 anos.
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dos habeas corpus e mandados de segurança impetrados pela oposição contra o decreto
presidencial n. 89.566. O mundo, em 1985, vivia sob a ameaça nuclear da Guerra Fria; a
América Latina vivia sua “década perdida” na economia; a Microsoft lançava o Windows 1.0
como seu sistema operacional e a comunidade global era alertada, pela primeira vez, para a
existência de um buraco na camada de ozônio.
Possivelmente um ministro nomeado à época, com 42 anos, e tendo ainda 28 anos
pela frente, não produziria decisões adequadas ao Brasil de 2013. Somos atualmente um país
politica e economicamente estável, com uma democracia consolidada; inserido numa
revolução tecnológica em que se discutem os direitos à informação, à privacidade e à
liberdade de expressão, agora aplicados ao mundo virtual; somos parte atuante numa corrente
mundial de conscientização e proteção ao meio ambiente, com uma Constituição garantidora
de direitos difusos a um meio ambiente equilibrado. E talvez a maior diferença entre todas
essas: somos, 28 anos depois, um país que tem a dignidade da pessoa humana como base
principal de nossa ordem constitucional.
Dessa forma, sendo o STF inequivocamente um ator político após 88, tanto quanto os
Poderes eleitos, deve se sujeitar ao Princípio Republicano - mandatos fixos e rotatividade no
poder. E a questão demográfica aqui levantada impõe que se faça tal opção o quanto antes, de
modo a se evitar déficits de legitimidade semelhantes ou mesmo mais graves que os
verificados quando da votação da Emenda Dante de Oliveira.
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