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ALUNO: WEBER SILVA CHAGAS Seminário Teológico Servo de Cristo Curso: Doutorado em Ministério Teologia da Missão A esquecida relevância da devoção na compreensão e aplicação dos conceitos de missão São Paulo, Março 2013

Artigo missão

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A esquecida relevância da devoção na compreensão e aplicação dos conceitos de missão.

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Page 1: Artigo missão

ALUNO: WEBER SILVA CHAGAS

Seminário Teológico Servo de Cristo Curso: Doutorado em Ministério

Teologia da Missão A esquecida relevância da devoção na compreensão

e aplicação dos conceitos de missão

São Paulo, Março 2013

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Não há como alcançarmos unanimidade ao nos aventurarmos a escrever sobre

qualquer tema, seja ele qual for. Vivemos não somente a era da informação como

também a da opinião. É visto como nobre ter idéias próprias e a norma quase sempre

é divergir. Pensar com a “própria” cabeça, mesmo que não acrescente nada além do

que já existe, invoca uma originalidade imaginária, quase sempre acompanhada de

uma forte dose de arrogância. Nesse contexto, encontramos crianças discutindo com

os pais sobre a melhor maneira de educar filhos e adolescentes que deixaram de lado a

famigerada forma de “rebeldia teen”, marcada por caras emburradas e bate-bocas,

para expressá-la de outra maneira: emitindo opiniões. Assim, todos têm uma opinião

para dar, a despeito da sensatez ou qualquer outro quesito que indique relevância, da

criança ao idoso-antenado; do adolescente pós-graduado em Google ao adulto que se

sente oprimido se não tiver algo a dizer baseado na última pesquisa de qualquer

universidade americana, o que querem mesmo é opinar. Essa tendência coloca a

relevância no campo das novidades e nos obriga a ouvir freqüentemente enormes

tolices, tudo em nome da opinião. O maior ônus desse comportamento são os rótulos

gerados: retrógrado; ultrapassado; fora do tempo... Infelizmente, a teologia não é um

território protegido dessa sede por originalidade, mesmo que em nome da tal se mexa

em marcos irremovíveis da fé.

Não pretendo ser original nesse artigo. Ainda me encanta os caminhos antigos.

Além disso, não me amedronta respeitá-los, mesmo sob as ameaças dos paradigmas

pós-modernos do pensamento, dos ismos que eles representam (pluralismo,

materialismo, relativismo e narcisismo)1 e das suas possíveis influências sobre a

maneira de se fazer teologia ou modelar o pensamento cristão desse tempo. Mesmo

porque, nem todo pensamento que traz a chancela teológica ou que é produzido por

teólogos pode ser chamado de cristão. Como bem disse Harry Blamires em a Mente

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Cristã: ...nossos bispos e clérigos, às vezes, estão tão famintos de teologia que

aceitam um pensamento aguçado, porém secular, sobre assuntos cristãos. Os

estudiosos, entre eles professores, bispos e deaõs, produzem muitos livros que

revelam grande conhecimento de História e de línguas2. E mais, continua Blamires: A

mente cristã sucumbiu diante das tendências seculares com um grau de fraqueza e

falta de caráter que não tem igual na história do Cristianismo [...]. Como ser

pensante o cristão moderno tem sucumbido diante da secularização.

Certamente, toda essa incurável tendência à secularização no exercício do

pensamento, acaba por produzir linhas variadas de idéias que passam longe de uma

tábua de referências cristãs, causando lentamente uma desertificação da igreja, e

inibindo tanto o surgimento quanto o desenvolvimento de pensadores que transitem

pelo Reino de Deus despertando reflexões relevantes e provocando diálogos

motivadores sobre os mais variados temas da agenda divina.

Mesmo sabendo que “o pensador cristão” é um artigo de luxo3 na sociedade

ocidental, assim como é difícil encontrar uma fruta de qualidade perdida no meio das

xepas de fim de feira, imagino que vale a pena ser confundido com um tomate podre

por alguém faminto que o levará para casa. Ortega y Gasset observaram: Pensar é

exagerar, quer você queira, quer não. Se você prefere não exagerar, precisa

permanecer calado, ou melhor, você precisa paralisar seu intelecto e encontrar

algum modo de se tornar um idiota4. Portanto, se você entender que eu fui exagerado

nas minhas defesas ou observações, considere que é para não parecer que paralisei a

minha própria consciência. Vou tentar seguir o conselho do apóstolo Pedro: Se

alguém fala, fale segundo os oráculos de Deus5. Nesse sentido, vou procurar ser o

mais bíblico possível, extraindo desse compromisso observações e provocações.

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Que desafio! Pensar e falar parecem estar conectados um ao outro, todavia,

ouvimos sempre de alguém que “falou sem pensar” - enquanto eu luto na maior parte

do tempo para pensar sem falar. Acredito que é exatamente isso que o apóstolo Pedro

quis dizer com o “falar de acordo com os oráculos de Deus”: verbalizar o pensamento

sob uma sagrada inspiração divina. Em linguagem bem coloquial: se não tivermos

algo que seja realmente relevante e inspirado para dizer, devemos ficar de boca bem

fechada.

Francesc Torralba cita Ludwig Wittgenstein em seu diário filosófico, que

obedecendo a norma culta da academia, e levando a sério a exortação de Pedro,

afirma: Que sei sobre Deus e sobre a finalidade da vida? Sei que este mundo existe.

Que estou situado nele como meu olho está no campo visual. Que existe nele algo

problemático que chamamos seu sentido. Que a vida é o mundo. Que minha vontade

penetra o mundo. Que minha vontade é boa ou má. Que o bem e o mal dependem,

portanto, de algum sentido do mundo (...) pensar no sentido da vida é orar6.

Orar ajuda a pensar e modela o falar. Orar ajuda a perceber os mistérios

indefiníveis à nossa volta. Orar é a melhor maneira de modelar o pensamento dentro

das fronteiras cristãs e proteger-se da necessidade de emitir opinião. Talvez isto

ficasse melhor dito se estendêssemos a idéia para o amplo campo da devoção e da

piedade, acrescentando à oração, o exame cuidadoso das Escrituras e uma demorada

meditação em algumas de suas afirmações, que dado o seu tamanho e riquezas,

demoraríamos a vida inteira para explorar apenas uma pequena extensão da sua

exposição. É o caso do tema: missão.

O ELO PERDIDO DA MISSÃO

Page 5: Artigo missão

Sob qualquer aspecto da teologia, pensar acompanhado é bem melhor do que

pensar sozinho. Sinceramente, tenho tentado pensar acompanhado de inúmeros e

célebres missiólogos, e movido pelo profundo desejo de servir aos propósitos eternos

de Deus junto ao seu povo, cavo aqui e ali nesse rico canteiro. E como aprendo!

Como sou encorajado a pensar sob ênfases ainda encobertas ao meu conhecimento!

Poderia fazer uma lista de nomes bem conhecidos, cristãos piedosos que vêm

mentoriando o meu coração, ajudando-me a edificar toda uma expressão a respeito da

missão da Igreja. Humildemente, no entanto, sinto falta de um capítulo especial em

cada uma de suas produções e abordagens, algumas indispensáveis ao estudo

acadêmico. Esta sensação se repete livro após livro, obra após obra. Sinto falta de

uma análise sobre a importância da devoção no cumprimento da missão. E não é

apenas na esfera da academia que estamos nos esquecendo desse “detalhe”, na da

igreja local também.

Se a missio Dei é o parâmetro fundamental para os esforços de comunicação

oral e vivencial do Evangelho de Cristo; se o que se crê é que cada crente regenerado

está comissionado e encarregado de servir aos propósitos eternos de Deus junto aos

homens, devoção deveria ser o tema para o primeiro capítulo de toda e qualquer obra

no campo da missiologia. Pois, se a missão é de Deus, então ela não pode ser feita

apenas na força e determinação da compreensão pessoal, do planejamento ou com a

ajuda de qualquer outra ferramenta que carregue a marca da falibilidade humana.

Jesus falou sério quando disse: Sem mim nada podeis fazer. Mas, não me surpreende

que a devoção não seja um tema relevante para uma maioria, que mesmo sem notar,

pensa e escreve sob a tutela da secularização, me dando a clara sensação de um certo

desprezo aos oráculos de Deus. John Stott, num arroubo ou quem sabe até num

desabafo a respeito dessa incurável tendência ao secularismo, nesse caso em

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particular, na área da pregação, disse: Mas se os seres humanos estão de fato cegos,

espiritual e moralmente, surdos, mudos, mancos e até mortos e, ainda, prisioneiros de

Satanás, é extremamente ridículo supor que, por conta própria e com nossa pregação

meramente humana, poderemos alcançar ou resgatar pessoas em condições

lastimável.7

Outra possível razão quanto ao esquecimento da íntima relação entre devoção

e missão, é o medo de se estar ressuscitando uma espiritualidade medieval, que dada a

tendência mencionada anteriormente, é considerada ultrapassada, e que para alguns,

equivocadamente, sugere uma relação entre devocionalidade e ócio. Portanto, como a

seara é grande e há muito trabalho a ser feito, acabam por achar que uma ênfase

devocional que apele à oração, ao jejum, meditação e contemplação, poderia criar um

exército de super soldados de braços cruzados.

Esse não é um exaustivo trabalho sobre a incompreensível tensão entre missão

e devoção. Todavia, basta um olhar nas Escrituras e na história, ainda que desatento,

para sermos não somente convencidos da necessidade de rasgarmos o coração diante

do Deus que comissiona, mas também sermos quebrantados e libertos da incurável

mania de acharmos que temos algo a contribuir para o enorme trabalho na seara do

perfeito agricultor.

Jesus, o missionário por excelência, ensinou que diante dos desafios impostos

pela própria seara, deveríamos orar ao Senhor dela. Isto porque, os desafios que

envolvem a missão não tocam questões naturais, mas sobrenaturais. Não é como se

estivéssemos a avaliar currículos ou fazer cálculos estimados. Tudo que toca a vida

não é mecânico nem previsível. Parece que jamais vamos vencer o paradigma

iluminista de enxergar tudo como se fosse uma máquina. Vida, fé, salvação, são

apenas alguns dos elementos integrados à missão e todos estão na esfera do mistério,

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do insondável, do imprognosticável e imprevisível. Nesse território temos que entrar

de joelhos.

Os argumentos endossantes do esquecimento indesculpável da dependência da

oração, apelam para a urgência: “Há muito que se fazer e poucos com quem se possa

contar”. “Gente faminta de toda espécie de alimento (natural e espiritual) não pode

esperar”. Este inegável apelo ao ativismo programável, parece ser resultado de outro

paradigma, o da produção, que também já deveria ter ficado arrumado na estante da

história, depois que Mc Gravan e suas teorias pragmáticas sobre crescimento de

igreja8 perderam força e relevância, especialmente para uma época em que as pessoas

querem enxergar na igreja, gente capaz de expor e viver com visível piedade os

mistérios de Deus. A busca é por devocionalidade profunda e não por sistemas que

formatem a Igreja como um conglomerado empresarial e reduzam a missão a uma

breve declaração de propósito. O modelo pastoral-missionário na Bíblia é Cristo e não

um dos executivos de wall street ou da Avenida Paulista.

A oração e o exame cuidadoso das Escrituras (o único documento divinamente

inspirado para o exercício da missão), diante dos modelos sedutores do mundo

corporativo, passaram a ser consideradas como práticas fora de lugar no

desenvolvimento histórico das ações missionárias; uma espécie de prática destoante

da moda, que na cabeça de alguns, fica muito bem condicionada ao paradigma

medieval de missão. Só nos esquecemos que ninguém é afetado pela mensagem

cristã, seja ao nível da proclamação ou da ação, se o Espírito Santo não convencer. A

defesa de qualquer causa coerente com o Evangelho, como: a defesa dos fracos; o

socorro às minorias oprimidas; ou a denúncia de qualquer sistema social opressivo,

estão também sob o comando do Espírito, e o mover do Espírito é incontrolável e

“implanejável”, porque como bem disse Jesus: o Espírito sopra onde quer. Com isso

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não estou sugerindo que abandonemos a construção de planos e estratégias, mas que

tenhamos a sensatez de não colocarmos nossa confiança neles. Na verdade, seria bom

que o planejamento fosse feito de Bíblia aberta e mãos espalmadas.

Este aspecto sobrenatural da missão, deveria nos estimular a depender mais de

atos da fé, expressos na solidão secreta dos nossos aposentos, do que da refinada

organização que insiste em trancar a sobrenaturalidade que envolve a

operacionalidade missionária, do lado de fora das considerações teológicas, tratando a

devoção como uma espécie de elemento fanatizante.

Podemos interpretar missão motivados por diferentes olhares, mas não

podemos achar que conseguiremos saborear o fruto divino sem uma expressa e

consagrada devoção. Pois, a seara é bem maior do que imaginamos, e apenas o

Senhor da seara domina o seu modus operandis.

Henri Nowen diagnosticou muito bem as tendências humanas na nossa

sociedade (a grande seara) e mostrou as dimensões do nosso desafio, afirmando que

ela parece cada vez mais cheia de pessoas temerosas, defensivas e agressivas,

agarrando-se ansiosamente às suas propriedades, inclinadas a olhar ao redor com

suspeitas, sempre à espera de que um inimigo apareça e cause algum dano. Mesmo

assim, essa é nossa vocação: converter o hostis em hospes, o inimigo em convidado,

e criar o espaço livre e sem medo, no qual a irmandade pode formar-se e ser

experimentada em sua plenitude9. Nesse ambiente, qualquer aproximação é

interpretada como invasão, e os cristãos, vistos como uma grande ameaça. Sejamos

humildes para reconhecermos que Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham

os que a edificam10. Precisamos desesperadamente de uma revisão operacional das

ações missionárias, sob a pena de cooperarmos mais para o recrudescimento das

resistências ao Evangelho do que com a sua proclamação.

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O que nos leva a crer que poderemos vencer a relutância do outro com boa

intenção e um bem desenvolvido plano de ação? A missão precisará sempre contar

com o fator sobrenatural, e este sempre surgiu quando os seus comissionados

clamaram por ajuda e intervenção, ou seja, incluíram “ingenuamente” a oração no

roteiro das ações missionárias. Mesmo que consideremos que o grande objetivo da

missão não seja a conversão do outro e que inclua outros detalhes, como: diálogo

interreligioso, ação político-governamental, participação em comissões de mediação

de conflitos, defesa dos direitos humanos ou iniciativas de proteção do meio-

ambiente, qualquer um que não cair de joelhos cometerá o mais fundamental de todos

os erros.

Eu não estou levantando a suspeita de que gente engajada “profissionalmente”

na missão não ora, estuda e medita nas Escrituras. O que estou ressaltando é que toda

teologia da missão que não considerar a devoção, por mais relevante que seja o

diálogo que se faça com outras ciências - como a psicologia, a sociologia e as diversas

ciências sociais -, sem devoção o diálogo será sempre infrutífero e incompleto. Pois,

passará a idéia de que a hostilidade do mundo à Cristo e aos seus ensinos, pode ser

enfrentada com argumentos inteligentes, ações caritativas ou uma boa leitura histórica

da evolução (ou seria involução?) dos processos interpretativos da missão.

EXTREMOS IMPRÓPRIOS

A história da criação em Genesis 1 e 2, deixa claramente revelada a imagem

do Deus que faz. É Ele quem atua e intervém. Foi assim em meio ao ato gracioso de

trazer unidade e ordem ao caos inicial. A cena que antecede à de Deus atuando

através dos seus atos criadores no Gênesis, foi escrita por João no seu primeiro

capítulo, ao descrever a divindade como uma comunidade de ação, afirmando que no

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princípio era o verbo, o verbo estava com Deus e o verbo era Deus11. Esta coerente

apresentação de Jesus inserida na história da criação, apresenta-nos o Senhor como

aquele que faz. Ele está em missão, e todos aqueles gerados por seu ato redentor na

cruz, também fazem parte dessa comunidade missionária, a comunidade do “verbo”,

eleita e vocacionada para colher a seara madura.

Essa vocação é tão forte e evidente, que as vezes confundimos os papéis: ao

invés de submetermo-nos ao Deus que faz, queremos fazer apesar dele. Tal tendência

pode nos colocar num extremo muito perigoso: o de acharmos que missão é uma

tarefa de controle e operação da comunidade. Vamos definitivamente entender uma

coisa: é sempre Deus quem faz. Qualquer outra abordagem e interpretação é temerosa

e passível de correção.

A postura para com a oração e os atos devocionais secretos no exercício da

missão, tem a ver como se enxerga essa questão bíblica. Os que acreditam que missão

é uma cadeira que envolve apenas o estudo do comportamento religioso na história,

farão uma linha cronológica e estudarão as tendências, comportamentos e posturas

para com a ação missionária dentro de um determinado período de tempo; os que a

vêem como a percepção da operação divina na busca pelo homem em todo lugar,

independentemente de raça ou qualquer outro parâmetro, e os redimidos por Cristo

como seus cooperadores, estes dependerão mais da oração e da devocionalidade. Mas,

o perigo dos extremos está sempre presente: seja na ênfase absoluta no planejamento

e na reflexão que deságua numa fria operação de conquista religiosa; ou na total

ausência de ação para com uma humanidade moribunda, ignorando o vale de

profunda dor no qual ela se encontra, para se refugiar numa espécie de devoção

escapista, sugerindo que nada precisa ser feito a não ser orar. Sinceramente, nem uma

coisa nem outra.

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Adoraria poder enxergar uma sincera dependência de Deus e ouvir sobre a

lembrança de que a primeira coisa a se fazer, seja lá como for que entendamos a

missão da Igreja, é orar ao invés do usual e popular “deixa-com-a-gente”. Tenho

dialogado informalmente com um grande número de colegas que já me declararam

terem medo de que as necessidades sejam desprezadas e substituídas pela passividade

de um gênero de oração que paralisa. Eu não me refiro a isso. Refiro-me a voltarmos

e avaliarmos a maneira, mesmo rudimentar, dos apóstolos cumprirem o mandato

divino. Consultar e examinar as origens poderia nos ajudar a encontrar o norte.

O NASCEDOURO DA AÇÃO MISSIONÁRIA APOSTÓLICA

Quando Jesus foi assunto aos céus, a única certeza que os crentes tinham era

de que deveriam fazer discípulos de todas as nações. Fundamentalmente, ensinar era

preciso, e o modelo de Jesus era: proclamando com a boca e a vida, pregando e

atuando para a Glória de Deus. Nessa altura, ninguém sabia nada, nem tinha um plano

mirabolante para cobrir o mundo com o Evangelho. Tiveram que aguardar e orar. A

resposta veio pelas vias da perseguição, do sangue derramado dos primeiros mártires

e da dispersão de uma boa parcela da comunidade de Jerusalém (At 8:1-8). Assim, da

forma menos previsível, deu-se o primeiro impulso missionário da era cristã. O sinal

foi a intolerância e a violência. Estaria Deus utilizando hoje da mesma estratégia? Se

sim, quais seriam os sinais orientadores presentes na sociedade? A Igreja está atenta

para os diferentes comportamentos e diferentes reações do mundo para com a

mensagem da cruz? Não creio que sim, nem creio que os apóstolos conseguiram

avaliar missão sob este ponto de vista. Mesmo assim, eles reagiram.

O Evangelho chega em Antioquia, é ali onde pela primeira vez os discípulos

são chamados de “cristãos”12. Formou-se uma igreja de judeus helenistas convertidos:

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gente desintoxicada da idéia judaica de que as nações deveriam vir à Israel para

contemplar a glória de Deus; gente que estava acostumada a ir, e agora tinham como

motivo a ordem de Jesus. Nasce a primeira igreja missionária com judeus

discriminados, judeus que eram considerados de “segunda classe”, talvez para mostrar

que Deus ainda continua a escolher as coisas fracas e a propor caminhos improváveis.

Lucas nos informa em Atos 13, que ali formou-se uma notável liderança,

composta de pessoas cujos dons eram reconhecidos. Profetas e mestres destacavam-se

entre os demais. Estes responsáveis líderes reuniam-se para orar e jejuar,

demonstrando possuir uma sensibilidade incomum. Parecia ser uma prática regular, o

que deveria funcionar para nós como um paradigma inflexível da missão. Foi nessa

incubadora aquecida pela devoção que os primeiros missionários da era apostólica

foram gerados, homens que mais tarde seriam rotulados em Tessalônica como: estes

que abalaram o mundo13. Pode parecer ingenuidade infantil, mas eu creio na

eficiência do processo devocional desenvolvido em Antioquia e estabelecido pelos

apóstolos na proto-comunidade em Jerusalém, quando ordenaram os primeiros

diáconos, com o fim de dedicarem-se à oração e ao ministério da Palavra14. Eu creio

nesse processo simples e é disso que sinto falta nos relevantes trabalhos acadêmicos

da teologia de missão: oração.

Sinceramente, não sei de onde vem o medo de abraçar as vias práticas da fé e

definitivamente rendermo-nos ao caráter sobrenatural da missão. Será porque soa

anti-intelectual? Será porque parece ser simples demais? Seja porque for, o fato é que

temos mergulhado numa aridez preocupante, e tudo que traz o rótulo “missionário”

vem se transformado em esforço individual ao invés de comunitário. Não seria

oportuno juntarmos aos nossos bem preparados gráficos e estudos antropológicos, um

pouco mais de oração e observação? O mundo muda e mudará, mas consideremos que

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as necessidades humanas são as mesmas e que pessoas continuam a sofrer pelas

mesmas razões desde sempre.

A DEPENDÊNCIA SOBRENATURAL DOS PRIMEIROS MISSIONÁRIOS

Olhando o livro de Atos, o único documento histórico inspirado para

compreendermos a operação apostólica na missão, temos a nítida impressão de que

ninguém sabia ao certo o que fazer. Sob a comissão de sair pelo mundo fazendo

discípulos de todas as nações, seria natural vê-los com um cajado nas mãos e um par

de sandálias nos pés, prontos para seguir, no entanto, até a primeira viagem de Paulo,

não havia qualquer tentativa de organização para cumprir a ordem de Jesus. Parece-

me que a resolução dos apóstolos em Atos 6:3, 4, foi mais uma reação do que uma

tentativa consciente de prover a comunidade de alguma organização. Mas, é inegável

que tomaram a decisão de ordenar diáconos, para que pudessem consagrar-se à oração

e ao ministério da palavra (At 6:4). Esta defesa da devoção deveria funcionar para nós

como um paradigma inviolável da missão, mesmo porque, a decisão de defender tal

propósito de consagração, resultou num crescimento da palavra de Deus, numa

multiplicação do número dos discípulos, incluindo entre estes os menos prováveis

como os sacerdotes (At 6:7).

Esta decisão apostólica de priorizar a devoção, abriu caminho para os

desdobramentos que sucederam, inclusive para que o Evangelho se deslocasse do eixo

sul para o norte de Israel, chegando em Samaria, sob a instrumentalidade de um dos

diáconos ordenados naquele primeiro grupo de supostos líderes locais em Jerusalém,

Filipe (Atos 8:4-8). Sugiro que pensem que a devoção apostólica foi usada por Deus

tanto para proteger a primeira comunidade quanto para expandi-la. Deveríamos olhar

para esse fato como uma verdadeira manifestação da graça divina entre homens

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inexperientes e pouco preparados para criarem um plano missionário eficiente.

Mesmo assim, não me parece que eles tenham cometido um erro ou que tenham

exagerado na dose. Eles nos mostraram que quando não sabemos ao certo o que fazer,

o que é a regra na maior parte do tempo, devemos reunir os que têm o poder de

decisão e orarmos.

Falando a aproximadamente 600 clérigos em Londres, em 1979 – disse John

Stott em Eu creio na pregação – Billy Graham disse que se voltasse à estaca zero no

ministério faria duas mudanças. Os ouvintes pareciam assustados. O que ele queria

dizer? Primeiro, continuou, estudaria três vezes mais do que fizera. Aceitaria menos

convites para pregar. “Preguei demais”, disse ele, “e estudei insuficientemente”. A

segunda mudança é que dedicaria mais tempo à oração15. Estou certo de que uma

coisa é ouvir isto de mim, um ilustre desconhecido que jamais reclamou do seu

anonimato e que já vai adentrado em três décadas de operação pastoral, outra coisa é

ouvir isto do maior evangelista do século XX. Entretanto, não me parece que ele

tenha dito nada de incomum. Grande parte dos que estão empenhados em cumprir a

missão, sentem-se devedores no âmbito da devoção. Há pouca ou nenhuma

mobilização consciente, quer da igreja ou dos pastores, semelhante aquela que os

apóstolos tiveram, para protegerem o tempo de oração e exame cuidadoso da Palavra.

Todos parecem ter um bom plano. Em linguagem bem simples e direta, sobram

palavras, idéias, opiniões e cafeína em qualquer reunião de qualquer junta

missionária, ao passo que falta um tom sábio e humilde que sugira as vias da devoção.

O resultado é o aumento da irrelevância, seja lá a definição de missão que cada um

carrega consigo.

Tenho ouvido uma infinidade de teorias que tentam apontar as causas dessa

postura irrelevante da Igreja para o cumprimento da suprema ordem de ser sal da

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terra. Entre as mais relevantes estão: as que apontam para a crise de integridade pela

qual passa a liderança cristã; as que ressaltam a ausência de compaixão pelos

excluídos; e as que enfatizam a surdez da igreja aos gemidos atordoantes dos

esquecidos. Mas, não seria tudo isso resultado de uma pregação, ou que seja de uma

operação eclesial, que não torna Deus conhecido? Pois, ausência de integridade, de

compaixão e de sensibilidade missional, são frutos de um abandono das vias

devocionais, da prática cristã de encontrar-se secretamente com o Pai. A verdade é

que estamos pagando muito caro por estas posturas pouco inteligentes.

Mike Breen, um britânico que vive nos EUA, onde lidera o 3DM, um

movimento de discipulado bíblico, em artigo intitulado Obituary for the American

Church [Obituário da igreja americana], publicado na revista americana Mission

Frontiers e mencionado na revista Ultimato (Março-Abril / 2013), revela que os

cânceres que comem a relevância da igreja naquele país são: a sede de pastores por

tornarem-se célebres; o desejo desenfreado por consumo religioso e a competição

entre igrejas. Se mal pergunte, esses sonhos vazios e posturas carnais são alimentados

por quê? Não é por um mundo sem Deus, vazio e distante da Verdade? Mas, por que

uma Igreja atrela seu vagão a uma composição reconhecidamente decaída? Por que a

sedução mundana e pragmática exerce tamanho fascínio sobre aqueles que

supostamente foram alcançados pela louca mensagem da cruz, que por si mesma

argumenta contra a sede de poder, o consumismo e a competição?

Ainda não vimos tudo que o pragmatismo religioso e a total ausência de

devoção pode causar à Igreja. Mas, toda esta desorientação para com a missão e este

violento desfiguramento do Cristianismo, deveriam ser o bastante para voltarmos a

ocupar o espaço vazio dos nossos quartos secretos. Enxergaríamos com mais nitidez

os sinais presentes na nossa geração, ocuparíamos espaços, passaríamos a ouvir os

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gemidos dos fracos e anunciaríamos o Evangelho com maior sensibilidade, se

déssemos à devoção o mesmo valor que os apóstolos. Para os que pensam que tudo é

missão, nada fariam, nem mesmo servir às mesas, sem oração; para os que acreditam

que a missão resume-se à proclamação, não ousariam sequer abrir a Bíblia quanto

mais subir ao púlpito sem suplicar a graça divina antes de cada oportunidade.

Como disse no início, não tive, como ainda continuo não tendo, a pretensão de

ser original. Sei que apontar para a devoção como sendo a porta de entrada para o

exercício vocacional de todo e qualquer ministério, parece ser irrelevante, mas em

tempos de esquecimento espiritual, ameaças secularizantes e agressividade liberal, faz

bem voltar ao início. Mesmo porque, como já dizia os nossas avós: precaução e canja

de galinha não fazem mal a ninguém.

Page 17: Artigo missão

Bibliografia

1. Stott, JOHN – O discípulo Radical – 2011, Viçosa, MG, Ed. Ultimato 2. BLAMIRES, Harry – A mente Cristã – 2006, São Paulo – SP, SHEDD PUBLICAÇÕES 3. BLAMIRES, Harry – A mente Cristã – 2006, São Paulo – SP, SHEDD PUBLICAÇÕES 4. TORRALBA, Francesc – Inteligência Espiritual – 2012, Petrópolis – RJ, Editora Vozes 5. 1 Pedro 4:11 6. TORRALBA, Francesc – Inteligência Espiritual – 2012, Petrópolis-RJ, Editora Vozes 7. STOTT, John – Eu creio na pregação – 2003, São Paulo-SP, Editora Vida 8. McGravan – Principal personagem de um movimento que ficou conhecido como CRESCIMENTO DE IGREJAS, cujos trabalhos foram desenvolvidos no Fuller Theological Seminary, e que foram divulgados pelos escritos do Dr. Peter Wagner. Longe de ser uma unanimidade o Movimento de Crescimento das Igrejas tem sido duramente criticado por seu pragmatismo, ou seja, os fins justificam os meios na busca pelos resultados. Fonte: www.lideranca.org 9. NOWEN, Henri – Crescer, os três movimentos da vida espiritual – 2011, São Paulo-SP, Paulinas 10. Salmos 127:1 11. João 1:1-3 12. Atos 11:26 13. Atos Atos 17:6 14. Atos 6:3, 4 15. STOTT, John – Eu creio na pregação – 2003, São Paulo-SP, Editora Vida