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Lost in Jane Austen Portugal - Shortstory - Cátia Pereira Clara Ferreira Eva Sousa Fátima Velez de Castro Luan Fernandes Marina Nunes Paula Freire Sandra Freitas Vera Santos Jane Austen Portugal

Lost In Austen - Jane Austen Portugal

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Lost in Jane Austen

Portugal - Shortstory -

Cátia Pereira

Clara Ferreira

Eva Sousa

Fátima Velez de Castro

Luan Fernandes

Marina Nunes

Paula Freire

Sandra Freitas

Vera Santos

Jane Austen Portugal

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Portugal

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Às Nossas Leitoras

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Índice

Nota Prévia……………………. 6

Parte I……………………………. 7

Parte II…………………………… 8

Parte III …………………………. 12

Parte IV…………………………. 14

Parte V………………………….. 16

Parte VI…………………………. 17

Parte VII………………………… 19

Parte VIII……………………….. 23

Parte IX………………………….. 30

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Nota Prévia

Num dos muitos emails que trocamos, a Fátima sugeriu que criássemos a

nossa própria história inspirada na escrita de Jane Austen. Tal sugestão

gerou total unanimidade no grupo.

E é assim que surge o nosso Lost In Jane Austen. Uma pequena história

escrita por nove fãs de Jane Austen que, no seu amadorismo, decidiram

tentar permanecer fiéis ao estilo de Miss Austen.

Cada uma ficou responsável pelo desenvolvimento da história durante

uma semana, por isso, o rumo que tomou foi totalmente imprevisível.

Desejamos que gostem tanto do resultado final quanto nós, porque para

além de partilharmos o prazer de ler, descobrimos também que

partilhamos o prazer de escrever. E modéstia à parte, penso que não no

saímos mal!

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Parte I [Cátia Pereira]

Metade de mim é angústia, outra metade é esperança. Esta é a minha dualidade. Caminho neste corredor de infinitas portas e um sem fim de possibilidades. A incerteza é o combustível que retrai o meu interior e, em simultâneo, empurra-me para continuar a persistir. Eu queria que entendesses isto, que há decisões que têm de ser tomadas. Há que ter coragem de lutar. Espero que compreendas o que me move e o que me faz dizer-te estas coisas. É este sentimento que carrego nas mãos.

Enquanto ela escreve tudo isto pensa que os seus sentimentos e os seus pensamentos são intraduzíveis. Por muito que tente, convence-se que este conjunto de palavras não são serão inteligíveis. “Será que tu entenderás?”, questiona-se. A folha de papel não lhe responde e os seus olhos ficam suspensos no ar, perdidos. Ela olha para as suas mãos calejadas, as mesmas que escreveram aquela carta, as mesmas que trabalham arduamente todos os dias. Ela olha para as suas mãos e pensa que há certas angústias que são profundas demais para serem vividas. Caminha em direcção a janela, em direcção a si mesma reflectida no vidro e vê que a esperança impede a corrosão da dúvida mas impele-a ao desassossego.

A convicção de estar a ser prudente e abnegada acima de tudo para bem dele, foi o seu principal consolo no tormento de uma separação. E, é preciso dizer, as separações são abismos. Não é fácil abraçar a distância. Não é fácil persistir num céu sem limites. Caminhar junto, mas separado. Fixar diferentes horizontes e fazer de conta de que se trata de um mesmo horizonte. Não, não é fácil.

Encosta a mão de encontro ao vidro da janela, como quem se apoia. Fica assim imóvel durante alguns minutos. A pensar. A pensar no adeus. Nas chegadas e nas partidas. No dilatar do coração impregnado de saudade. Inspira e expira demoradamente a frase: “tu és a minha imensidão”.

Pára, olha e vê. As mãos não acreditam. Abrem a janela. Abrem a janela para ver. As mãos abrem a janela para ver e o dilatar do coração inspira e expira “tu és a minha imensidão”.

Há a angústia, a esperança, a convicção, o tormento, a separação, a distância, a saudade. E há a imensidão. Janela aberta. Coração dilatado. E há, sobretudo, as mãos que não acreditam e os olhos que param, olham e vêm.

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Parte II [Clara Ferreira]

A espera é terrível. Uma antecipação constante daquilo que se crê ser uma chegada. Augusta Ferreira estava sentada numa velha poltrona, tão velha quanto ela. Sentada apenas, já sem capacidade sequer para recordar, para viver na mente a juventude extinta por um corpo gasto. Junto a ela, numa antiga cadeira de baloiço, que rangia melancolicamente quando ia e vinha, estava Júlia, uma sobrinha neta da qual dependia inteiramente. Júlia, "era bonita, inteligente" e herdeira de uma valiosa fortuna. "Além disso, tinha vivido quase" vinte e nove anos "neste mundo, com muito pouco que a afligisse e enfadasse". Era diligente, cuidadosa e carinhosa. Conversava horas a fio com a tia Augusta colocando na voz um tom alegre e optimista, desejando poder ressuscitar daquele corpo qualquer sinal ou nuance de vida. Era com tristeza e com muito pesar que assistia àquela espera mórbida da tia, a espera de ver chegar a morte.

Tinha na mão um livro que lia com prazer. Desde que para ali fora morar, há já três anos, para cuidar da tia enferma, percorrera a vastíssima biblioteca do segundo andar que pertencera ao tio-avô do qual ela pouco ou nada lembrava. Estudara até tarde, agora escrevia livros, dois deles romances e três ensaios sobre o "tio Eça". Naquela biblioteca encontrara base, inspiração e vontade para se dedicar à tese de Doutoramento em Estudos Queirosianos. E esta era a vida de Júlia, que para ali se mudara para dedicar o seu tempo à tia que a criara a si e à irmã Cecília.

Enquanto subia as escadas da velha casa da tia Augusta, com uma pilha de livros ao colo, recordava as férias de Natal que ali passara e de como ela e Cecília corriam escadas acima escadas abaixo, importunando tudo e todos mas espalhando por toda a casa, já na altura antiga, uma estrondosa alegria. A tia Augusta decidira, há mais de dez anos, mudar-se definitivamente para ali, abandonado a casa onde ela e Cecília tinham crescido, que estava agora fechada a sete chaves à espera de ser vendida. Ela preferia infinitamente a casa de Poiares, onde passara a infância, não só pelas imensas recordações, mas também porque agora dava valor ao facto de ser uma casa de apenas dois andares e poucas escadas para subir. Ali, tinha cinco lances de escadas pela frente até chegar ao quarto que ocupava no sótão.

Imersa nestes pensamentos dispersos, Júlia deparou-se com a porta do segundo andar entreaberta. Lá de dentro ouvia um rogaçar de caneta em papel. Subiu até ao quarto para se dedicar à tese, mas lembrou-se dos óculos que deixara lá em baixo e foi com um certo mau-humor que desceu para os ir buscar. A curiosidade, contudo, obrigou-a a parar no segundo andar, a caneta já não escrevia. Espreitou e viu Cecília encostada à janela. Que estranha melancolia era aquela... Cecília andava assim há uns tempos - ela via-o, mas a intimidade entre ambas dissipara-se e já não igualava aquela dos tempos de infância. Júlia não sabia o que dizer, não sabia o que fazer.

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Mas o sofrimento em que estava mergulhado o coração de Cecília transparecia claramente por aquela imagem reflectida no vidro da janela. E embora Júlia tivesse, há muito, perdido a confiança da irmã, não podia deixar de ficar indiferente àquele estado de espírito tão sufocante. O mesmo sentimento de ânimo de que se servia para falar com a tia, foi o mesmo que sentiu e que, num impulso, a obrigou a colocar a mão na maçaneta e a empurrar a porta, para falar com Cecília, para lhe mostrar que estava ali e seria a sua eterna confidente. Mas depressa se perdeu, e num milésimo de segundo, a mão, que tão prontamente fora colocada na maçaneta, estava agora pousada no corrimão da escada e as pernas desse corpo, desciam lentamente, degrau a degrau, com passos perdidos e nos olhos desse corpo, duas lágrimas percorriam as faces rosadas. Júlia perdera muito com o seu egoísmo. Sim, ela sabia-o. E só ela conhecia o seu arrependimento.

Cecília estava deitada na cama a olhar para o tecto. Estava ali de passagem. Viera visitar a tia e a irmã e aproveitara para ficar uma semana. Júlia pedira-lhe que fosse. Há uns quinze dias atrás recebera um email da irmã, no mínimo com uns 90 centímetros de comprimento. Era fantástica a forma como Júlia escrevia tanto sem dizer nada de especial, perdida em descrições de situações triviais.

Tinham-se afastado há uns cinco, seis anos. Uma separação natural e lenta. Nesse tempo Júlia vivia demasiado para si e, inconscientemente, esquecia-se daqueles que a rodeavam, e aos poucos, o desconhecimento tornou-se numa estranheza e as duas irmãs que antes haviam sido unha com carne, eram agora duas parentes que se encontravam nas festividades e cuja conversa passava pouco além de temas superficiais, não obstante de Júlia dar sempre as essas conversas, um ânimo e alegria forçados como se tudo estivesse na mesma. Era uma máscara estranha a que a irmã usava, um optimismo ilusório ou uma ilusão forçada.

Júlia nunca o conhecera. Contar-lhe agora qualquer coisa sobre a separação entre ela e ele seria, para além de esquisito, totalmente deslocado. Como poderia ela condensar em palavras a imensidão daquilo que sentia? Além disso a sensibilidade de Júlia parecia sedimentar-se toda nas páginas dos livros que escrevia. E há muito que ela se cansara da máscara do belo sorriso da irmã e, julgava Cecília, que pouco mais ela lhe tinha para oferecer.

E foi neste turbilhão de pensamentos, que saltavam de Júlia para ele, que Cecília finalmente adormeceu. No relógio piscavam três horas da manhã quando Cecília se levantou e dirigiu à secretária retirando da gaveta uma folha onde escrevinhou:

«Tive pavor de esquecer a tua voz gasta pela maré e por isso, em sonhos, voei até ao mar e distingui as tuas feições no vento, senti que te entranhavas suavemente no vazio da minha alma. No corpo, mantive o sabor a maresia dos teus lábios. Guardo-te

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serenamente nos confins lentos da minha recordação, no constante vai e vem das ondas que recuam para poder seguir em frente.»

Quando se voltou a deitar, nem a almofada poderia abafar o som peculiar de quem chora e naquele coração mergulhado em mágoa uma frase entoava como consolação "O curso do amor sincero nunca é sereno".

Júlia, recebeu na tarde do dia seguinte, a Senhora Aurora, uma antiga vizinha e velha conhecida da família - que na intimidade da casa e dentro das quatro paredes, era chamada por Dona Rata, o seu apelido de solteira do qual tanto a tia Augusta se ria. Júlia recebia-a com toda a simpatia que lhe era possível. Ultimamente frequentava muito a casa pois viera viver para junto do filho e então as visitas à tia Augusta eram um enorme entretém para ela e um gigantesco alívio para o filho, mas um tormento para Júlia. A dona Rata era uma mulher inconveniente que falava pelos cotovelos, criticando mais do que aprovando. Sabia ferir susceptibilidades como ninguém e achava que tinha sempre razão, e já ninguém a contradizia pois a idade é um posto.

Sempre gostara de Cecília, aquela jovem menina de cabelos doirados que lhe levava as arrufadas pela altura da Páscoa, a mando da tia Augusta, num grande cesto de verga quase maior que ela, alimentando a gulodice à dona Rata. Cecília nunca a confrontara com nada e suportava como ninguém os seus inoportunos monólogos sem denotar qualquer espécie de cansaço ou irritação. Já Júlia sempre fora mais traquina, e quando era pequena era terrivelmente impaciente, incapaz de ficar quieta enquanto ela falava. E a falta de consideração era algo que a dona Rata não podia permitir, nem a uma criança de sete anos. Por isso, na sua escala de consideração, Júlia não ocupava nenhum lugar cimeiro. E, embora sendo agora adulta e suportando com certo nível as inconveniências da dona Rata, era incapaz de esconder a sua impaciência e, a partir de determinada altura, as pernas cruzavam e descruzavam com demasiada rapidez. E a dona Rata via-o e por isso, provocava-a ainda mais, ou com a mobília que se via claramente que não estava a ser convenientemente cuidada:

- E olha que é mobília de extrema qualidade, se não for encerada pelo menos uma vez por mês podes ter uma infestação de térmitas e isso seria profundamente desgostoso para a tua tia, que tanto gosta de ti, Julinha. Júlia, atrás dela, enquanto se dirigiam para a sala de estar, revirava os olhos e meneava a cabeça.

Se não era com a mobília era com o estado civil de Júlia que ela considerava muito pouco apropriado para uma jovem da sua idade:

- Como é possível que a Julinha ainda não tenha casado... bem sei que a competência para dona de casa é muito pouca e isso afasta muitos dos melhores jovens casamenteiros... mas pelo menos não é feiazinha de todo, não é assim? Olhe para o exemplo da minha Elvira ou da minha Conceição, bem sei que ainda possuem o brilho da juventude, mas têm só menos dois anos que a Julinha e já casadas com dois moços de muito boas famílias, pena que a Julinha não tenha essa sorte... mas também a

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escrever livros... em que é que a Julinha estava a pensar quando se meteu nisso! - e dito isto, olhava expectante para Júlia, sugando todas as expressões que mostrassem o impacto que as suas palavras tinham tido.

Esta inspirava e tomava o seu ar mais calmo e solícito respondendo: - "Eu não possuo nenhum dos estímulos que levam as mulheres a casar. Ainda se me apaixonasse, seria diferente... Mas eu nunca me apaixonarei: não está no meu feitio nem na minha natureza. Nem julgo que o esteja alguma vez".

Dona Rata olhava para ela incrédula, virando-se para a tia Augusta, murmurando: - Esta juventude... mania das independências Augusta, fosse no nosso tempo...! Mas Augusta, já ouviste falar da Romaria da Nossa Senhora da Piedade deste ano? Nem sabes quem eu vi por lá... lembras-te da Leonor, a que casou com o Alfredo da indústria das alcatifas? Pois bem, ... ...

A conversa foi longa. Incluiu uma ou duas vezes Cecília, perguntando-lhe pelo emprego, mas nada mais. Foi com alívio que Júlia a viu ir embora enquanto acenava à porta com a irmã.

- A dona Rata não tem remédio! - foi a frase em tom sarcástico que Cecília deu à irmã.

- Intratável, insuportável, odiosa... ! - e mais alguns insultos que Júlia foi discorrendo enquanto subia as escadas. Aquela mulher tirava-a do sério...

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Parte III [Eva Sousa]

É tudo tão mais fácil quando se é criança...

As crianças amam sem conceituar, não pensam no que devem sentir, limitam-se a sentir. Julgam com os olhos e o coração e muito menos com a razão. No fundo não se cresce...complica-se!

Em Cecília esta é uma verdade particularmente presente! Ela não podia casar com ele, amava-o de todo o coração, mas a vida não tomou esse caminho! Não é também que fosse impossível, mas na sua cabeça era-o...

Ela não era a pessoa que deveria ser. Ser-lhe-ia impossível não o amar, mas eram tão diferentes. "Toda a gente sabe que um homem solteiro em posse de boa fortuna é considerado um bom partido para casar", e ele era-o. Ele, na cabeça dela era perfeito! Como atingir o que se esperava dela, ela era apenas uma rapariga confusa, uma boa rapariga mas tão cheia de inseguranças. Não lhe parecia que o amor dele fosse sincero, não que o pudesse julgar por falta de sinceridade, mas como acreditar que alguém assim a pudesse desejar para si? E a distância... Ele não ia aguentar a distância!

Se o amava, e ela amava, fez o que devia, libertou-o!

Agora remoía nisso... porquê? Porquê ser infeliz quando a felicidade estava a uma chamada de distância! Não ela não ia ceder, era fraqueza, ela não era fraca, era constante e sólida. Talvez em demasia. Sempre lhe fora difícil entender o mundo das palavras, o mundo no qual Júlia vivia perdida. Não! Ela era uma mulher pragmática, vivia e trabalhava com factos concretos. Era economista, o mundo das palavras não era definitivamente o seu.

Talvez por isso o amor a tenha tocado de forma tão inesperada. Sempre achou que encontrasse alguém por conveniência, que neste mundo moderno não havia espaço para o amor, que o casamento e as relações eram contractos... Mas todo este cinismo de pensamentos não se coadunava com o que o seu coração sentia... Um amor forte e transbordante, correspondido!

O que a impedia? Não, eles eram demasiado diferentes. Ele era perfeito, ela não!

Nunca ninguém entendia esta ideia de Cecília, como era possível que alguém tão inteligente se visse de forma tão deturparia. Ela era bonita, tinha um corpo equilibrado, era refinada e elegante, tinha sido educada com valores e conceitos que não passam de moda, ou que pelo menos não deveriam, no entanto toda esta fé do

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mundo nela não era suficiente para que se sentisse em si própria como completa e suficiente.

Henrique era o exemplo do que um homem normal deve ser. Talvez não. Não existem Hoje no mundo homens como Henrique, ou os que existem estão disfarçados, não é politicamente correcto ser-se um homem normal.

Henrique era culto e inteligente, mas descontraído. Era uma pessoa confiante, extrovertido, tinha amigos e gostava de futebol!

Para Henrique o mundo era um local simples e fácil.

Pelo menos antes deste afastamento de Cecília, porquê? Será tão complicado assim? Não fazia sentido na sua cabeça que as pessoas criassem muros que não existem.

Cecília fora sempre sua amiga, uma amiga muito querida, mais tarde começaram a namorar, anos a fio estiveram juntos. Ele não sabia viver sem ela, e agora era-lhe pedido que o fizesse! Cecília via sempre o lado negro das coisas, e essa falta de esperança face à vida divertia-o, ajudava-o a encontrar o seu lugar na vida dela. Ele sentia-se necessário para a fazer feliz. Para tudo o resto Cecília era auto-suficiente, a morte dos pais ensinou-a a ser capaz, adulta, responsável! Vivia num mundo em que não havia espaço para incertezas.

Ele queria tanto derrubar estes muros, construir um futuro, queria tomar Cecília para si e ser feliz num conjunto! Dar-lhe um pouco daquilo que lhe faltava… Para Henrique a divisão entre os géneros fazia sentido, ele acreditava que"no casamento um homem deve prover" o suporte "a uma mulher, e esta deve tornar a casa agradável".

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Parte IV [Fátima Velez de Castro]

Cecília e Henrique eram, aos olhos dos outros, o par provável. Dos outros e deles próprios, embora Cecília tentasse a todo o custo, mentindo a si mesma, alimentar justificações puramente especulativas, que no fundo não tinham base de verdade. De facto faziam um casal perfeito, um belo conjunto quer em termos físicos, quer na questão do carácter e da sensibilidade.

A decisão de abandonar a relação tinha sido ela a impor. E sabia que ele nunca se iria conformar. Porém um certo silêncio fazia-a vacilar nesta convicção, acreditando aos poucos que de facto tudo estava consumado e jamais se voltariam a encontrar. Teria ficado eternamente no silêncio, não fosse a visita à sua tia, à sua irmã e a convivência social com D.Rata. Mas há coisas que não se podem evitar, especialmente quando se estabelecem relações familiares e de amizade com determinadas pessoas.

Pudera ela evitar, e talvez nunca tivesse sido alvo da tremenda maldade que lhe estava a destruir por completo todas as suas esperanças. Naquela tarde, quando Eduardo a procurara, Cecília não pôde imaginar o motivo que o leva a estabelecer tal contacto. Na verdade só se tinham falado brevemente, uma só vez, quando lhe foi apresentado como irmão de Henrique. De facto eram idênticos, muito bem-parecidos no rosto e em termos físicos, porém completamente diferentes em termos de carácter. O bom e o mau, o preto e o branco, a claridade e a escuridão, afastando dois irmãos que, tendo em os mesmos pais, eram em tudo diferentes.

Naquele fatídico fim de dia, em que Eduardo a procurou no parque, usou todas as armas da sedução para lhe captar a atenção, utilizando para isso palavras enganadoras contra o seu próprio irmão. Vendo que não conseguira o intento, e apercebendo-se do pavor que causava a Cecília, abriu o jogo e, com toda a frieza que se consiga imaginar, assegurou-lhe que eliminaria o irmão se o casamento se consumasse. Havia alguém que pretendia Henrique, alguém poderoso e com influência, que persuadira Eduardo a afastar Cecília do caminho para poder conquistar Henrique. Com isso, o irmão traidor ganharia uma fortuna, que era tudo aquilo que lhe interessava na vida. Ela sabia que a ameaça era séria e que ele faria o que fosse preciso para conseguir o intento.

Perante o perigo, como podia Cecília não sacrificar o seu amor?

A tia de Cecília tinha uma autêntica adoração por Luluzinho, um aristocrata meio falido que frequentava os meios mais reputados da região. Lucrécio José Marinho de Sousa Alves e Telles de Mendonça ostentava o brasão de família no seu dedo anelar,

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enquanto enrolava o bigode com a outra mão. Isto se não tivesse na sua frente comida, pois aí esquecia todos os pergaminhos, embora fosse melhor que assim estivesse, pois qualquer tipo de conversa acabava sempre com a intelectual piada “… mas ele não tem personalidade jurídica”. Isto sem contar com a falta de cultura geral, com as discussões completamente ignorantes. Demasiado mau para ser verdade! A tia queria que Cecília o conhecesse melhor, pois dizia que “dois jovens como vocês não devem estar privados de uma certa intimidade”. Às vezes pensava se seria melhor ir pelo caminho mais fácil...

Fora há uns anos pretendente de Júlia, mas alguma coisa se tinha passado. Algo muito grave. A tia e D.Rata bem tinham indagado, mas nada conseguiram descobrir. Tanto que se cansaram e desviaram os seus alvos de coscuvilhice noutras direcções. Diga-se grave porque era algo que destabilizava completamente Luluzinho, ao ponto deste fugir a meio de uma refeição, só porque soube que Júlia iria entrar na sala. Cecília notara na irmã algo estranho, um secretismo que as afastava, que as deixava constrangidas na mesma casa.

Haveria alguma relação com o telefonema misteriosos que ela recebia, impreterivelmente, às 17:00?

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Parte V [Marina Nunes]

E enquanto pensava na sua irmã e nos estranhos telefonemas e no afastamento de ambas Cecília olhou-a... Júlia estava sentada no jardim em mais uma das suas leituras e Cecília notou o seu olhar vago e o quanto estava a demorar a virar a página... Será que a sua irmã tinha um segredo como o dela, que lhe tirava a concentração e o sossego porque o coração latejava de dor o dia todo? Seria a sua racional irmã capaz de se ter entregado a um amor sem limites? E daí pensou em algo que ainda não tinha pensado: Como estaria Henrique? O que estaria a pensar nesse momento? Como estaria ele a ver toda aquela situação? Será que ele estava a sofrer ainda? Ou já lhe teriam aberto novas perspectivas? Nem queria imaginar tal coisa...

Sentado na sua cadeira com o computador aberto à sua frente, olhava a avenida lá fora. As pessoas andavam apressadas de um lado para o outro. Uma menina de longos cabelos corria sorrindo e olhava o relógio... Provavelmente corria feliz para um encontro... Duas mulheres seguiam lado a lado a conversar: gesticulavam e riam... Um homem caminhava olhando o céu com olhar triste... Uma criança brincava na beira do passeio com um carro... Tinha um chapéu verde que lhe caía constantemente para a frente e que deixava caído continuando a empurrar o carro que ia contra os postes que se colocavam no seu caminho e só aí levantava o boné, que minutos depois voltava a cair... A mãe estava sentada no banco perto da criança e sorria ao olhá-lo... e ele viu o amor daquela mãe naquele olhar... Como via amor nos olhos de Cecília sempre que estavam juntos e próximos. Como é que ela podia ter mudado tanto, tão repentinamente? O amor que tinha por ela era puro, sincero, forte... Não era só algo carnal que poderia ter com qualquer mulher bonita que lhe despertasse a atenção, era uma simbiose perfeita... mesmo os defeitos dela eram adoráveis... Enlouqueciam-no por vezes mas, no final, eram adoráveis. Sempre tinha confiado nela e nos sentimentos dela. Era uma mulher forte, de convicções, de crenças mas sempre disponível para aceitar novos "pontos de vista"... E agora tinha acabado com a relação como se esta tivesse sido um "capricho" que terminou... Precisava de tempo e espaço para pensar o que fazer e tirar elações de tudo o que se tinha passado e decidir a sua vida, mas os constantes compromissos que o seu irmão andava a arranjar e o trabalho não lhe deixavam tempo para nada. Estava a pensar em tirar umas férias sem aviso prévio e desaparecer sem dizer a ninguém para onde ia. Sim... era isso que ía fazer: resolver 2 ou 3 questões importantes e partir... Só tinha de encontrar o sitio perfeito para puder escapar... Avisaria a caminho...

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Parte VI [Luan Fernandes]

“Mas que lugar poderia ser este?”. Henrique questionava-se. Com certeza, seria longe de seu irmão e de sua inconveniente amiga, Bárbara, que impunha a sua presença a todo custo. Que mulher desagradável e fútil! Ter dinheiro facilita a vida em vários aspectos, pode até aproximar pessoas, porém é difícil produzir relacionamentos verdadeiros. E parece que seu irmão e Bárbara tentavam lhe mostrar que possuir fortuna era sinónimo de felicidade constante. Como estes dois o irritavam ultimamente. E ainda havia a dor da saudade que sentia de Cecília...

De repente, ocorreu-lhe uma ideia: e se fosse procurar Cecília novamente? Sim! Era isso! Iria atrás dela, ao invés de fugir de seus problemas. Ele iria ao encontro dela na tentativa de argumentar a favor do amor que os unia. Ela iria ouvi-lo, talvez sua surpreendente resolução de por fim a relação fosse dissipada quando a tocasse novamente. Um sentimento de esperança o invadia. Decidido, Henrique pegou a chave do carro e saiu.

Enquanto isso, na casa da Tia Augusta, o silêncio reinava. Tia Augusta cochilava serenamente em sua cadeira de balanço. Júlia, em seu quarto, relia um livro deitada em sua cama. Cecília ouvia uma música de Chico Buarque, cujos versos intensos de sentido e no baixo volume declaravam:

“... Ah, se ao te conhecer Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios Rompi com o mundo, queimei meus navios Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós nas travessuras das noites eternas Já confundimos tanto as nossas pernas Diz com que pernas eu devo seguir...”.

A aparente calma do ambiente não era reflexo dos sentimentos contraditórios e turbulentos que dominavam duas de nossas personagens: Júlia e Cecília. Apenas, Tia Augusta tinha a mente em repouso. Júlia pensava na solidão que a consumia ultimamente. Mesmo tendo a presença constante da Tia, sentia falta da convivência com outras pessoas, de se distrair um pouco, de se desligar da sua rotina. Estava também preocupada com o status atual de sua relação com a irmã, ambas muito distantes uma da outra e sem tentativas de reaproximação. Sentia-se triste, cansada, insatisfeita com as metas que tinha traçado para a sua vida.

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Já Cecília curtia uma saudade intensa da vida que teve que abdicar. Será que algum dia esta tempestade irá passar? Experimentava uma sensação de desespero, queria tanto conversar com alguém. Pensou em Júlia, mas sempre a via absorta em seus pensamentos e estudos, focada em suas prioridades e com aparente indisponibilidade para conversas. A letra da música aflorava mais angústia em seu espírito.

De repente, a campainha tocou. Tia Augusta acordou assustada. “Seria novamente a D. Rata?”, pensou Júlia irritada e desceu as escadas para atender a porta.

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Parte VII [Paula Freire]

Júlia abriu a porta e à sua frente encontrava-se um homem bonito e bem apresentado. Rapidamente percebeu, pelo rosto preocupado e pela leve agitação que deixava transparecer, que se devia tratar de Henrique. Este, impaciente, informou-a que desejava falar com Cecília. Júlia hesitou por um instante mas, desviando-se, escancarou a porta para o deixar entrar. Levou-o até à sala de estar, em cuja decoração sobressaía a cadeira de baloiço da Tia Augusta, e pediu que aguardasse um instante enquanto ia chamar Cecília, dizendo-lhe que ficasse à vontade.

Enquanto subia as escadas até ao segundo piso, reflectia sobre aquele homem que parecia tão diferente do irmão. Ficou a conhecer Eduardo no dia em que ele veio conversar com Cecília e logo ali o detestou. Algo naquele homem a tinha deixado inquieta. Um arrepio atravessou-lhe o corpo quando passou junto da sala em direcção ao terraço e o viu conversar com a irmã. Não percebeu o que conversavam, mas aquela estranha inquietação não mais a largou até ao dia em que se voltaram a encontrar. Aquele fatídico encontro.

Ao passar pelo quarto da Tia Augusta, esta chamou-a para se informar de quem as visitava. Júlia informou-a de que se tratava de Henrique e pediu-lhe que voltasse a descansar. Preocupava-a a aparência cada vez mais débil da Tia. Parecia-lhe que naquela semana a sua saúde se tinha debilitado subitamente. Só quando via Cecília é que a sua tez se iluminava. Via-se a felicidade bailar-lhe os olhos.

Bateu à porta e logo ouviu os passos de Cecília. Informou-a de que Henrique se encontrava na sala e que lhe queria falar. Júlia reparou como Cecília estremecera. Olhou-a com um ar apreensivo mas a irmã tentou recompor-se e nada mais disse do que um agradecimento.

- Cecília... se... se precisares de alguma coisa, estou aqui... desculpa...

- Obrigada, Júlia! Não vou precisar de nada. - Informou prontamente Cecília. Aquele não era o momento para conversarem. Todavia, ficou feliz pela abordagem da irmã. Seria um primeiro passo para uma longa conversa. Ambas estavam a precisar de se reencontrarem. Afinal, se a Tia Augusta morresse, elas só se teriam uma à outra.

Quando desciam as escadas, a campainha voltou a tocar.

- Deixe-se estar, minha tia. - Disse Júlia no tom mais doce que encontrou ao passar novamente pelo seu quarto, verificando que esta fazia um gesto para se levantar. Pediu licença para encostar a porta e desceu.

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À porta estava Eduardo. Cecília estava pálida e Júlia quase pressentiu que a irmã ia desmaiar. Ela própria gelou quando viu a figura do homem que nos últimos dias a perseguia.

- Ora ainda bem que a encontro, Cecília! Venho saber como tem passado - foi avançando Eduardo num tom firme e seguro. No entanto, é com a sua irmã que quero mesmo falar, se não se importa. Perdoe-me a indelicadeza de não lhe prestar atenção, mas, como sabe, sou um homem muito ocupado.

- Claro!... foi a resposta de Cecília

- Não me convida a entrar, Júlia?

Júlia não respondeu, limitando-se a fazer um aceno com a cabeça o que Cecília, no meio os turbilhão de sentimentos que a assaltavam naquele instante, pôde ainda perceber. Estava atordoada. Henrique estava na sala ao lado e ela não sabia o que fazer. Sem dar tempo às irmãs, Eduardo dirigiu-se para a sala confiante. Esta confiança deu lugar à surpresa. Não estava à espera de encontrar Henrique naquela casa. O nervosismo que o invadiu foi percepcionado pelo irmão.

- O que fazes aqui? - Perguntou Henrique tentando esconder a fúria que tomava agora conta do seu espírito. Havia algo que não estava a fazer sentido naquela história toda. Mas não teve sequer hipótese de perguntar mais nada. Cecília dirigiu-se-lhe com uma voz fria e calma e pediu-lhe que saísse e que nunca mais voltasse àquela casa onde já não era bem-vindo. Informou-o que apenas tinha descido para que a irmã não fosse a mensageira de algo que só ela lhe podia dizer.

Henrique saiu magoado, ferido e, acima de tudo, furioso. Percebeu a palidez e o nervosismo nas duas irmãs e em Eduardo. Era evidente que ele tinha alguma coisa a ver com tudo isto. Haveria de saber o que era e resolveria tudo. Nesse mesmo instante uma luz de esperança voltou a aquecer o seu coração. Ficava com a certeza de que nada tinha feito para afastar Cecília. Algo a tinha afastado dele. E tinha a ver com o seu irmão. Estava certo disso.

A resolução de tirar uns dias de refúgio estava agora ainda mais firme. Iria para Paris e não diria nada a ninguém. Em vez de seguir para casa, seguiu para o escritório e no caminho telefonou para Ana, a sua secretária, que há muitos anos trabalhava consigo, e pediu-lhe que fizesse alguns telefonemas. Quando chegou, já uma grande parte dos assuntos daquela semana e da seguinte se encontravam reagendados. O facto de não ter encontrado quaisquer obstáculos por parte dos clientes tinham-no animado. Era profissional e exigente consigo e com os seus colaboradores e não gostava de faltar com a sua palavra. Entretanto, Ana, já lhe havia reservado o hotel e conseguira um bilhete numa companhia de low cost. Partiria no dia seguinte.

A perspectiva de estar longe do irmão e destes últimos acontecimentos ajudaram a que se acalmasse. Já em casa reflectia em tudo o que tinha presenciado e não

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conseguia perceber exactamente o que se passava. Sabia que o irmão não era boa rês e conhecia bem Cecília. Percebera a sua inquietação quando a vira entrar na sala, embora esta não combinasse com o tom de voz com que lhe falara. Estes dias em Paris serviriam para se concentrar apenas e só na forma de agir. Não iria ficar muito tempo. Estava certo de que reconquistaria Cecília e de que casaria com ela. Esta era a sua maior determinação. Não por teimosia, mas por amor. Cecília encantara-o com a sua sensibilidade e com a sua inteligência e ele sabia que ela era a mulher da sua vida.

Entrou no avião e o seu pensamento viajou até ao passado. Estava em Paris com Cecília, a jantar no Sena, junto à Torre Eiffel... Naquele verão apenas a melodia do amor e a confiança dos seus afectos os inundavam.

Júlia sentia-se esmagada. A sua objectividade e racionalidade tinham sucumbido perante a malvadez intrépida daquele homem odioso. Eduardo... o seu nome causava-lhe náuseas. Por mais que pensasse não conseguia descortinar um plano para proteger a irmã e para se soltar da manipulação a que estava a ser sujeita. E se contasse tudo a Cecília? Será que ela acreditaria? Talvez Henrique a pudesse ajudar pois percebera imediatamente que este era bem diferente do irmão e conseguira ler nos seus olhos o amor verdadeiro que sentia pela irmã.

Foi arrancada destes pensamentos pelo toque do telefone. O seu coração deu um pulo e as suas mãos começavam a suar. Tinha quase a certeza de que era ele. Júlia atendeu com a voz quase apagada mas do outro lado soou uma voz feminina que pedia para falar urgentemente com a senhora dra. Cecília. Júlia ficou aliviada. Correu a chamar Cecília.

Um cliente francês com quem deveriam fechar um negócio na semana seguinte estava renitente em celebrar o contrato. Necessitavam agora da sua perícia enquanto economista e grande conhecedora daquela vertente da empresa para reavaliar a proposta. O melhor, diziam, era que a equipa responsável por aquele projecto se deslocasse à sede da empresa do cliente, em Paris, por se tratar de um cliente importante que não poderiam perder. Ficou então combinado que sairia no dia seguinte, no voo das 10h30. A reunião teria lugar às 16h00, no escritório principal da empresa, nos Campos Elísios. Isto dar-lhe-ia margem para se instalar no hotel e rever alguma nota que achasse mais importante debater. Este telefonema veio retirar-lhe um pouco da angústia causada pelos acontecimentos anteriores. A cabeça estava agora ocupada com estratégias e planos para debater no dia seguinte.

Às vinte horas desceu para jantar e informou a tia e a irmã que se iria ausentar por dois ou três dias. No entanto, como a semana a que se dispusera ali passar ainda não tinha terminado, voltaria para ficar mais uns dias. Esta notícia alegrou a tia e acalmou o coração de Júlia. É sempre um tormento ver uma irmã sofrer mesmo quando a ligação de infância parecer ter-se desvanecido. Quando este existe na infância, raramente se quebra para sempre.

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Sozinha no seu quarto, Cecília era agora um rosto de angústia e tristeza. O seu reflexo na janela devolvia-lhe a figura de uma mulher arrasada pelo sofrimento. Tinha dificuldade em reconhecer-se. A lembrança de que há exactamente um ano tinha estado em Paris, para onde seguiria no dia seguinte, vincavam ainda mais a sua tristeza. Não conseguia adormecer. Os seus pensamentos oscilavam entre a vivência daquela tarde e os dias passados em Paris, no Verão passado, com Henrique.

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Parte VIII [Sandra Freitas]

Cecília fechou os olhos e sentiu-se adormecer.

- Nunca deixarei de te amar. És a mulher que sempre procurei e quis - era Henrique quem a observava com carinho e lhe dizia estas palavras - Nunca te vou deixar. Nunca me deixes - pediu.

Cecília quase gemeu, evitando um soluço. Estavam os dois em Paris, sentados numa esplanada junto aos Campos Elísios. Sorriu e pensou que estava tudo bem, que tudo estava resolvido. Já não existia Eduardo e as suas maquinações sórdidas, nem Bárbara e a sua arrogância e futilidade. Apenas eles e o seu amor que vencera aqueles obstáculos.

Sorria agora, com a cabeça apoiada no ombro de Henrique, segura nos seus braços e sentindo-o sólido e relaxado nos seus. Abriu os olhos devagar, aspirando o cheiro dele que adorava. Todavia, assustou-se com a visão à sua frente. O sorriso desvaneceu-se dos seus lábios e a tensão e melancolia voltaram ao seu rosto. Não estava nos braços de Henrique. Sonhara. Sonhara com um tempo feliz, um ano atrás, no mesmo lugar para onde se dirigia agora. Paris, a cidade do amor, que era agora para ela apenas mais uma cidade... cheia de recordações que era agora obrigada a esquecer.

Com o desgosto espelhado no olhar e tentando controlar o coração que batia descompassado, olhou à sua volta apenas para se descobrir na realidade, no ambiente fechado da cabine do avião que a levava a Paris, sem o cheiro de Henrique. Olhou através da minúscula janela para o céu imenso pontilhado por pequenos pedaços de algodão branco. O sol brilhava e ela ia para Paris. Mas não existia alegria nela; apenas amargura e tristeza. A jovem mulher que viajava ao seu lado, sentada na coxia, mexeu-se e tossicou, distraída na leitura de um livro. Cecília observou-a discretamente e a sua atenção prendeu-se no livro que ela lia.

"Frederick Wentworth usara tais palavras, ou outras semelhantes, mas sem nenhuma ideia de que elas lhe seriam transmitidas. Achara-a tristemente mudada e, no primeiro momento em que tinha sido interrogado, dissera o que sentia. Não perdoara a Anne Elliot. Ela maltratara-o, abandonara-o e decepcionara-o; e, pior ainda, ao fazê-lo demonstrara uma fraqueza de carácter que o seu temperamento decidido e confiante não podia suportar. Renunciara a ele para condescender com outros. A sua atitude fora o resultado de excessiva persuasão. Tinha sido fraqueza e timidez".

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"Persuasão" de Jane Austen, reconheceu Cecília, desviando o olhar ao ver que a sua companheira de viagem notava, com um sorriso, a sua curiosidade pelo livro. O livro preferido dela e de Júlia, durante a adolescência e grande parte da sua juventude. Tinham-no lido e relido e conheciam o texto todo quase de cor, partilhando sempre a mesma cópia que acabara gasta e evidenciando anos de manuseio.

Júlia. Tinha-lhe perguntado sobre a sua relação com o irmão de Henrique, Eduardo, mas ela mostrara-se esquiva, murmurando apenas que era um conhecido da faculdade que necessitava de ajuda com uns trabalhos. Cecília não acreditara mas também não insistira. Estava demasiado cansada, demasiado triste e, agora, demasiado ocupada com o trabalho que tinha de preparar para a reunião em Paris. Quando voltasse, as coisas teriam de ser esclarecidas. Tudo mesmo. Até a sua relação com ela pois queria reaver a sua cumplicidade e amizade.

E Jane Austen?! E Anne Elliot?! Não conseguia deixar de pensar no pouco que lera, momentos atrás. Oh, Meu Deus, e se estivesse a cometer um erro tal como Anne? E se estivesse a dar ouvidos a outros em vez de ouvir o seu próprio coração e as palavras de Henrique? Eles tinham tudo para ser felizes. Tudo neles podia dar certo desde que não se perdessem pelo caminho. E, toda aquela situação era uma perdição para eles. Perder-se-iam um do outro e perderiam sobretudo um amor cuja essência e força dificilmente reencontrariam novamente. Tinha de agir. Tinha de lutar. Há evidentemente angústias profundas demais para serem vividas. E esta era uma delas. A angústia da separação, do amor perdido, da sensação de impotência. Escutou por momentos o coração dele e soube, como deveria ter sabido há já mais tempo, que ele preferiria o amor dela, a presença dela ao seu lado, do que uma vida de riqueza e desafogo financeiro.

Sentiu uma força desconhecida até então dentro se si. Eduardo e Bárbara que se cuidassem. Ela ia lutar por aquilo que era seu. E Henrique era seu. De corpo e alma. Assim como ela só a ele pertencia. De corpo e alma.

Entretanto, em Poiares, Júlia acabava de se escapar para a biblioteca. Dona Rata tinha chegado para uma visita à Tia Augusta e ela, alegando uma súbita dor de cabeça, retirara-se para o seu refúgio no segundo andar, deixando as duas senhoras a conversar na sala de estar do primeiro andar.

- Vai para os livros, com toda a certeza, Dona Augusta - ouvia Júlia à medida que subia a escadaria para o segundo andar - Se ao menos procurasse um trabalho normal e digno como o de Cecília. Pobrezinha, não sei onde vai parar; assim, com aquela idade, sem marido ou namorado ou emprego..

Mas Júlia fez por esquecer aquelas palavras. Tinha outros assuntos bem mais importantes e bem mais graves em que pensar. Já na biblioteca, percorreu distraída as prateleiras dos livros, procurando uma resposta para aquilo que, incessantemente, lhe

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remexia o espírito e a mente. Por mais que pensasse, por mais que tentasse arranjar uma solução, não conseguia desfazer-se daquele tormento.

Sentiu subitamente que fixava o olhar num determinado volume arrumado numa das prateleiras mais baixas. Apurou mais a visão e leu o título do livro na lombada: "Persuasão" de Jane Austen. Retirou-o de entre os demais livros e descobriu com prazer o mesmo volume que ela e Cecília tanto tinham adorado, anos atrás. Anos longínquos, em que eram as melhores amigas e inseparáveis. Que saudade tinha desse tempo! Talvez se ainda tivessem essa confiança, nada daquilo se estaria a passar.

Folheou rapidamente o livro deixando que o seu odor lhe preenchesse as narinas; um odor que sempre gostara, a antigo, a livro. Era quase tão agradável quanto o seu estojo de escola; cheiro a lápis, a conhecimento, a descoberta, a amigos. Abriu-o totalmente quando se deparou com a sua parte favorita: a carta do Capitão Frederick Wentworth a Anne Elliot, confessando-lhe novamente o seu amor. "...Ofereço-me de novo a si com um coração que ainda é mais seu do que antes, quando o despedaçou há oito anos e meio..."

Leu-a e releu-a como fazia antigamente e lágrimas ameaçaram brotar dos seus olhos, não pela intensidade emocional da carta mas pela saudade que sentia da irmã e do tempo em que se sentavam na relva do jardim e declamavam aquelas palavras de cor, sem precisarem sequer do livro. Nessa altura, ambas ansiavam pelo amor, por um amor igual ao de Anne, por alguém que as amasse como Wentworth amava Anne.

Até que ela conhecera Luluzinho. Ou melhor, até que ele a conhecera a ela. Parte da sua inocência, parte da sua crença nos homens e no amor acabara quando ele entrara na sua vida. Ninguém sabia pois nem à irmã se atrevera a contar e, infelizmente, fora por volta dessa altura que ambas se começaram a afastar.

Como que lendo-lhe os pensamentos, o seu telemóvel tocou. Júlia olhou de imediato para o grande relógio de parede da biblioteca. Cinco horas da tarde! Era de uma precisão extrema. Meu Deus, quando acabaria aquele suplício? Estava a ficar tão cansada daquela situação. Colocou o livro novamente na prateleira e, sem grande vontade, dirigiu-se para o telemóvel que deixara na mesa de centro.

- Olá - cumprimentou sem expressão na voz.

Ouviu aquela voz nauseante no outro lado da linha e teve vontade de desligar. Contudo, não podia. Simplesmente, não podia. Estava muita coisa em jogo.

Eram quase dez horas da noite e Júlia ajudava a Tia Augusta a deitar-se quando um barulho fora da casa lhes chamou a atenção. Era o motor de um carro que cessou o seu rufar logo que elas apuraram o ouvido.

- Quem será a esta hora da noite? - questionou a Tia Augusta na sua voz débil e arrastada, já coberta com o seu cobertor favorito que cheirava a lavanda e a lavado.

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- Vou ver, Tia Augusta - disse Júlia, apagando a luz do candeeiro - Durma que deve estar cansada. ("Da Dona Rata", pensou divertida).

- Tem cuidado - balbuciou a velha senhora antes de se aconchegar para dormir - A esta hora pode ser qualquer um.

Júlia sorriu enquanto encostava a porta do quarto da tia, sabendo que esta provavelmente já dormia. A medicação punha-a logo no conforto do sono.

Desceu a escadaria, algo apreensiva, não porque tivesse medo mas porque pensou reconhecer o barulho do motor do carro; caro, topo de gama. Só podia ser ele.

Não se enganou. Quando abriu ligeiramente a porta da frente para descobrir de quem era a sombra que aguardava lá fora, ele espreitou e sorriu forçadamente, as sobrancelhas levantadas como que para surpreendê-la.

- Boa noite, minha querida Júlia - disse com voz falsamente melosa - Vim terminar a nossa conversa. Ontem não tivemos oportunidade de falar dado que estava com visitas.

Ela abriu mais a porta sem, no entanto, lhe dar espaço para entrar.

- Não vejo que mais tenhamos para falar - argumentou defensiva - Além disso, isto não são horas para visitas desse género.

- Desse género!?... - Surpreendeu-se Eduardo - Ora, cara Júlia, quem a ouvir, vai pensar outras coisas bem mais maliciosas acerca de nós os dois. Vá lá, seja simpática e deixe-me entrar.

Ela afastou-se hesitante e deixou-o finalmente entrar. Não tinha outra solução. Sabia que não tinha. Aquele homem era maquiavélico e perigoso e ela não queria mais problemas com ele; tão pouco ver o seu lado zangado ou violento. E, tendo em conta que se encontrava praticamente sozinha naquele imenso casarão, não teve outra alternativa.

- Obrigado - agradeceu ele, dirigindo-se imediatamente para a sala de estar. Ali chegado, recostou-se de imediato na melhor poltrona que encontrou, cruzou as pernas e preparou-se para acender um cigarro.

- Agradecia-lhe que não fumasse dentro desta casa - disse Júlia tentando soar altiva.

Eduardo parou os seus movimentos, sorriu sarcasticamente e guardou a cigarreira novamente no bolso do casaco de corte elegante e caro.

- Muito bem - disse calmamente - Pensou na minha proposta?

Júlia olhou-o. Já o conhecia como sendo um homem que ia directo ao assunto, que não se refugiava em subterfúgios nem em divagações para chegar ao que pretendia.

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- Deixou-me pouco para pensar...

Ele riu.

- Lamento, mas já não disponho de muito tempo. E não gosto de florear as questões. As coisas são como são.

- Ou como o senhor as quer...

Ele riu novamente.

- Exacto. Como eu as quero. E como eu as vou ter... - acrescentou, desta vez sério e com os olhos levemente ameaçadores.

Quando Eduardo foi embora, Júlia subiu ao seu quarto e, mesmo sem se despir, atirou-se para a sua cama e, pela primeira vez em dias, expressou livremente a sua frustração e a sua impotência perante a situação. Chorou até que o sono finalmente lhe roubou o desespero e sabendo que não tinha como fugir daquela situação.

Cecília não se tinha arrependido por ter alargado o seu tempo de permanência em Paris por mais um dia. A verdade era que precisava pensar, colocar as suas ideias em ordem e definir exactamente aquilo que faria para conseguir solucionar aquela estranha situação sem causar grandes males a alguém. Muito especialmente a Henrique. Henrique. O seu Henrique. Ansiava pela hora de o reencontrar, de lhe pedir perdão pelas suas últimas atitudes e por lhe explicar as razões do seu comportamento nos últimos tempos. Estava muito optimista. A reunião do dia anterior tinha corrido muito bem e o tempo em Paris convidava ao passeio e à descontracção. Saíra do hotel logo pela manhã para poder caminhar pelos Campos Elísios, recordando com saudade e carinho todos os momentos que ali passara com ele. Na mão segurava um exemplar francês de "Persuasion" pour Jane Austen que adquirira, momentos atrás, num quiosque ali perto. Tencionava oferecê-lo à sua irmã logo que as duas conversassem e colocassem a sua relação no mesmo patamar em que a tinham deixado anos atrás. Júlia adorava o idioma francês, que fazia parte da sua área de estudos, e sabia que ela ambicionava um exemplar daqueles na língua do amor, como tantos lhe chamavam. Cansada de caminhar, sentou-se num banco de jardim, um daqueles onde, no dia anterior, tinha estado, nos seus sonhos, a relembrar Henrique. Aconchegou a bolsa no seu colo e abriu o livro exactamente na página que desejava. Inconscientemente, sentiu que alguém se sentava ao seu lado mas não prestou sequer atençao. Deixou que a sua mente e o seu espírito divagassem livremente por entre a beleza daquelas palavras há tantos anos escritas. "Je ne puis me taire plus longtemps. Il faut que je vous écrive. Vous me percez le cœur! Ne me dites pas qu’il est trop tard! Que ces précieux sentiments sont perdus pour

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toujours. Je m’offre à vous avec un cœur qui vous appartient encore plus que lorsque vous l’avez brisé il y a huit ans. Ne dites pas que l’homme oublie plus tôt que la femme, que son amour meurt plus vite. Je n’ai jamais aimé que vous. Je puis avoir été injuste, j’ai été faible et vindicatif, mais jamais inconstant. C’est pour vous seule que je suis venu à Bath, c’est à vous seule que je pense; ne l’avez-vous pas vu? N’auriez-vous pas compris mes désirs? Je n’aurais pas attendu depuis dix jours, si j’avais connu vos sentiments comme je crois que vous avez deviné les miens. Je puis à peine écrire. J’entends des mots qui m’accablent. Vous baissez la voix, mais j’entends les sons de cette voix qui sont perdus pour les autres. Trop bonne et trop parfaite créature! vous nous rendez justice, en vérité, en croyant les hommes capables de constance. Croyez à ce sentiment inaltérable chez F. W. Il faut que je parte, incertain de mon sort: mais je reviendrai ici, ou j’irai vous rejoindre. Un mot, un regard suffira pour me dire si je dois entrer ce soir ou jamais chez votre père". Era espantoso como, fosse em que língua fosse, aquelas palavras eram sempre capazes de a tocar e de a fazer sentir-se leve e tranquila. E faziam-na lembrar-se dele; de como quase deixara fugir um grande amor como o de Anne e Frederick, o tipo de amor que tanto desejara. Isso fê-la pensar em Henrique com saudade, tanta saudade que lhe pareceu sentir o seu cheiro perto dela. Discreta e silenciosamente aspirou aquele aroma que julgava fruto da sua imaginação. No entanto, parecia-lhe tão real, tão presente no ar, à sua volta, que se sentiu tonta. - Não me digas que é demasiado tarde, que sentimentos tão preciosos morreram para sempre! - disse a voz ao seu lado, em português, citando algumas das palavras que estivera a ler. Uma voz que lhe era demasiado familiar e demasiado querida. Uma voz que lhe fazia falta. Rodou devagar a sua atenção para a voz e, mesmo antes de prender os seus olhos nos dele, soube que era Henrique. Não se moveu. Ele sorria-lhe, um pouco hesitante. Fechou o livro no seu colo e sorriu-lhe de volta, sem deixar de o olhar, como se temesse que ele fugisse ou que fosse novamente uma partida da sua mente. - Henrique - murmurou - És mesmo tu? Que fazes aqui, em Paris? Ele continuou a sorrir-lhe, mais tranquilo, pois sentiu-lhe a voz afável e calma. Ainda se recordava da sua frieza e distância quando a vira a última vez, em Poiares. Todavia, algo mudara nela. Reconhecia naquela mulher, ali sentada ao seu lado, num banco de jardim, nos Campos Elísios, em Paris, a mesma mulher que amava desde há muito tempo. Deixara de a reconhecer naqueles últimos tempos, contudo ela voltara. Era a sua Cecília novamente. O seu sorriso dizia-lhe que sim. - Medito - disse meio a brincar - E tu?

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- Vim em trabalho - disse apressadamente - Quer dizer, ontem estive em trabalho. Hoje, penso que... medito - disse com um sorriso suave e cúmplice. Ele tomou-lhe as mãos por sobre o livro depositado no seu colo. - Diz-me que é aqui, longe de tudo e de todos, que me vais explicar o que está a acontecer - pediu ele, com os olhos quase suplicantes - A minha vida tem sido um inferno sem ti, estes últimos tempos. Não sabes o que me tem doído estar sem a mulher que amo sem ao menos saber porque fui rejeitado. Cecília pareceu pensar nas palavras dele. Depois levantou uma mão e acariciou-lhe o rosto, ainda para se certificar de que ele era real. - Tens razão - disse - como posso eu ter rejeitado a minha alma, o meu coração,... a minha vida? - baixou o rosto, tomou-lhe uma das mãos e levou-a aos seus lábios como que para pedir o seu perdão. Ele sorriu enternecido e com a outra mão afagou-lhe o cabelo, forçando suavemente o seu rosto para cima, para olhar para ele. - Há uns tempos atrás, num destes mesmos bancos, nesta mesma cidade, pedi-te para nunca me deixares - relembrou-lhe - E não vou permitir que o faças porque sei que me amas tanto quanto eu te amo a ti. Não sei o que se passou, - continuou - mas deve ter sido algo grave, e penso que tem a ver com o meu irmão Eduardo. E, talvez não agora, talvez não hoje, mas eu quero que me contes tudo. E acredita que vamos resolver isso de forma a que nenhum de nós saía magoado... ou separado - tomou o rosto dela entre as suas mãos - Nunca mais me quero separar de ti. Enfeitiçaste-me a alma e o corpo. Cecília deixou finalmente a cabeça repousar no ombro dele e deixou-se abraçar. Henrique era agora real e por mais que ela julgasse estar a sonhar, ele estava ali, era real e não ia desaparecer num qualquer sonho. Apertou-o contra si e soube que nunca mais se iriam separar. No entanto, no seu subconsciente, algo insistia em angustiá-la. Eduardo e as suas exigências macabras; Bárbara e a sua petulância; Júlia e a sua relação com Eduardo. E ainda aquele estranho e insistente telefonema que a irmã continuava a receber diariamente às 17horas. Ainda havia muito a resolver. E seria difícil. Mas agora estava com Henrique e juntos saberiam combater e lidar com o que viesse a acontecer.

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Parte IX [Vera Santos]

Augusta Ferreira deixou o mundo dos vivos ao fim de sessenta e cinco anos de vida. Nunca tinha casado ou tido filhos, as suas sobrinhas Júlia e Cecília eram na falta destes, as parentes mais próximas.

Augusta estava numa idade em que os amigos e família começavam a rarear. Por isso o seu funeral foi pouco concorrido, alguns familiares, todos já em segundo e terceiro grau de parentesco, a amiga que mantinha desde a sua juventude, D. Rata, Luluzinho e alguns vizinhos.

A Tia Augusta nunca gozara de boa saúde e com o passar dos anos foi definhando. Assim, as duas irmãs não esperavam que ela chegasse à idade do avô (pai da tia Augusta), que vivera até à bonita idade de 90 anos e sempre a respirar saúde… Mas mesmo assim sentiram e muito a morte da tia.

Júlia ficara abalada quando ao entrar no quarto da tia com o pequeno-almoço, como era hábito, se apercebeu que ela já não tinha vida. Tinha-se sentado pacificamente na beira da cama e chorado. Foi lentamente inundada por recordações felizes dos tempos em que tudo parecia mais fácil do que naquele momento. Chamou a D. Lúcia, a mulher-a-dias que naquele dia viera fazer as limpezas. A mulher, fiel servidora da casa há muitos anos, chorou num pranto contido a boa senhora que se fora tão jovem, pois quando temos a mesma idade de quem morre, eles para nós são também jovens.

Júlia, mais calma, chamou a 112 já não vinha socorrer ninguém, mas era necessário transportar o corpo para o hospital, chamar a polícia, vir o delegado de saúde que pronunciaria a Tia Augusta como morta. Júlia não tinha ideia do que aconteceria a seguir e não se lembrando de nada nem ninguém apenas se lembrou do número das emergências que marcou.

Uma hora mais tarde, Júlia telefonou à irmã. Cecília estava nesse momento com Henrique a passear junto ao Sena e a trocar com este juras da amor eterno, como se estivessem num filme romântico. Cecília veio então no primeiro voo para Portugal e Henrique nunca deixou de estar a seu lado. Henrique sentia a dualidade de sentimentos próprios de quem se sente o homem mais feliz da terra e o abalo pela morte de alguém. Ele mal conhecia a Tia Augusta, mas sofria pois sabia o quanto Cecília amava a tia.

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Após o funeral, Júlia retirou-se para o seu quarto e Henrique e Cecília sentaram-se na sala de estar. Eram cinco horas e Cecília lembrando-se do que acontecia sempre aquela hora sentiu-se inquieta, quando o velho relógio parou as badaladas que anunciavam ouviu ou imaginou ouvir o telemóvel da irmã a tocar. Perguntou a Henrique se ele ouvira o telemóvel a tocar, porém ele não entendeu e pensado que ela estava a falar do telemóvel dele, assegurou-lhe que o tinha desligado.

- Não o teu o da minha irmã.

- Não conheço o toque dela – disse ele esboçando um leve sorriso.

Por um segundo, Cecília hesitou deveria ela contar-lhe sobre o telefonema? Ou tentar averiguar mais? Decidida a começar de novo, sem enganos ou mentiras, Cecília contou-lhe.

Foi com muito esforço que Henrique não desatou à gargalhada, não havia motivos para preocupações na sua opinião, todos os dias o telemóvel do seu colega de trabalho Paulo tocava por volta das seis, era a sua namorada. Possivelmente Júlia tinha um apaixonado.

Cecília não acreditava que fosse esse o caso da irmã, reparava como ela ficava tensa, nervosa. Por isso achava que não podia ser um telefonema de amor, mas não disse nada.

Júlia pensou em não atender, mas sabia que se não o fizesse o telemóvel iria voltar a tocar.

- Minha querida, pensava que não ia atender!

- Estava ocupada - foi a resposta seca de Júlia.

- Sabe, hoje vi algo que não gostei. Sabe do que falo?

- Calculo que não tenha gostado de ver o seu irmão agarrado à minha irmã?

-Exacto, a minha querida está a faltar ao combinado.

- E como espera que eu cumpra o combinado?

- Ora, Júlia, tanta imaginação nos livros que escreve e tão pouca na vida real?

Júlia suspirou e voltou a suspirar, antes de dizer:

- Afinal o que tem contra a minha irmã, tirando o facto de ela ser pobre?

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-Somente isso, o meu irmão podia unir-se a uma mulher rica e não empobrecer ao lado de alguém não tem fortuna de família.

- Acho que desta vez não vai conseguir separá-los!

- Minha querida, sabe que se isso não acontecer quem sofre é a sua irmã. Já sabe, seja uma boa colaboradora e todos ficamos a ganhar. Se fosse uma mulher bonita sugeria que seduzisse o meu irmão, mas tendo tão poucos atractivos duvido que consiga. Júlia, devia ter cultivada beleza e não a mente, os homens não gostam de mulheres inteligentes!

Júlia estava tão habituada a ser insultada por Eduardo que estas palavras já não a magoavam. Todos os dias ele telefonava e certificava-se que ela cumpriria o combinado.

- Sabe, Júlia, tenho pena que você não seja como o Luluzinho. Ele soube jogar este jogo e você está sempre a hesitar.

- Claro, ela precisa do seu dinheiro para continuar a jogar e a pagar a mulheres que lhe aqueçam a cama à noite.

- Já que a Júlia não sabe o que fazer, eu arranjarei um plano, aguarde as minhas instruções.

Júlia lamentava ter um dia confiado em Luluzinho. Estava apaixonada e o amor deixou-a cega para tudo. Ele acabara por se revelar um canalha, e além disso vendera o segredo que ela lhe confiara a Eduardo. Ela era capaz de perdoar todos os defeitos e más acções dele, mas trair assim a sua confiança, isso nunca! E assim Júlia perdera um homem que nunca a amara e mergulhou numa profunda tristeza que ninguém à sua volta percebia.

Na manhã seguinte ao enterro da Tia Augusta, a D. Rata apresentou-se em casa da amiga com o pretexto de vir buscar o livro de receitas da falecida. O livro era lendário entre a família e amigos pois apesar da pouca saúde a Tia Augusta cozinhava divinamente. Júlia e Cecília nunca mostraram talento especial para a culinária, sabiam cozinhar alguns pratos básicos e nenhum mais elaborado. O correcto seria dizer que elas desenrascam-se na cozinha.

Júlia estava ausente de casa e Cecília desconhecia esta herança de que falava a D. Rata. Assim, Cecília ligou à irmã que confirmou a vontade da tia e disse-lhe onde estava o livro. Ao tirá-lo da gaveta da mesa de cozinha, as folhas espalharam-se todas pelo chão. Cecília apanhou uma e verificou se estava numerada. Não estava. Teriam as receitas uma ordem? Verificou novamente a ver se via uma data e perante mais esta falha, enfureceu-se por a tia guardar dentro de uma capa um monte de folhas soltas em vez de ter um caderno.

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Nesse momento, a D. Lúcia entrou na cozinha, nunca tinha tocado no livro mas sabia que a tia Augusta organizava as receitas por categorias, entradas, pratos de peixe, pratos de carne, sobremesas…

Cecília agarrou nas folhas todas e levou-as para o seu quarto e lá começou a organizar. Ela podia ter dado o livro conforme estava, mas sabia que a D. Rata não tardaria a fazer comentários sobre o assunto. Informou a D. Rata do sucedido e pediu-lhe que voltasse mais tarde, ela não ficou convencida, pois achou que aquilo era truque para não lhe darem o livro e ao sair planeou voltar ao início da tarde e falar com Júlia que sabia ser mais fácil de manipular.

Ao fim de alguns minutos, Cecília percebeu que apenas algumas folhas, aquelas que se tinham espalhado, estavam desalinhadas. Calculou que o resto estivesse no sítio. Mas mesmo assim verificou até à última folha e viu que esta era uma carta.

Cecília começou a ler:

Querido Zé,

A Cecília começou ontem a escola. Ainda me lembro do dia em que nasceu, era muito pequena e os médicos temiam que não sobrevivesse. Só a Deus devemos agradecer a graça por ela ter sobrevivido. A sua saúde é de ferro e isso alegra-me. Recordo muitas vezes os dias em que a peguei nos meus braços e a chamei de filha. Agora já não posso fazer isso. Entristece-me saber que ela pensa que eu sou apenas a tia, uma tia doente. Sei que me ama, mas o amor de mãe dá-o a outra.

Passados estes anos todos, sinto remorsos de não ter lutado pela minha menina e ter aceitado que ela seja criada como filha do meu irmão e não minha.

Nada parece mitigar este meu sofrimento, apenas estas cartas onde escrevo, cartas que nunca irás ler. Ainda ontem deixei uma no teu túmulo, pareço uma criança que escreve ao pai natal… Mas são estas cartas que me dão algum alento, o tema Cecília é proibido…

Cecília reconhecera a letra da tia, não estava datada e notava-se que ao escrever a tia tinha derramado algumas lágrimas. Era claramente uma carta não terminada.

Cecília releu a carta várias vezes até se certificar que lera correctamente. Filha da tia! Filha e não sobrinha. Era uma descoberta extraordinária. Aquilo explicava a condescendência que a tia tinha com ela, muito mais do que com Júlia. A diferença entre ambas!

Júlia bateu à porta do quarto da irmã para a informar que o almoço estava na mesa. Cecília deixou-a entrar e partilhou com ela a descoberta.

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Júlia desatou num pranto que nada parecia acalmar, por fim Cecília também chorou. Júlia acabou por lhe contar tudo o que até ali ocultara. Ela sabia, ouvira uma conversa entre os pais e a tia Augusta. A pior parte ainda estava para vir, Júlia dissera a Luluzinho e este vendera o segredo a Eduardo, contou dos telefonemas, contou como ela tinha sido ameaçada e o pior era que tinha dito coisas a Cecília para a dissuadir de voltar para Henrique e também fazer ao mesmo com ele.

- Cecília, quando tu te separaste do Henrique ele procurou-me e ameaçou contar-te. Por isso eu disse-te tanta vez que seria melhor não lutar por ele. Não eram tanto as ameaças de morte que me preocupavam, mas sim que descobrisses a verdade.

- Como é que nunca me disseste nada.

- Eu descobri porque ouvi uma conversa, como já te disse.

- Quem era o meu pai?

- Depois de os nossos pais morrerem, eu falei com a tia, ela pediu que nunca te contasse, sabia que te irias sentir enganada. Eu sei que ela amava o teu pai, engravidou antes do casamento. Infelizmente, ele morreu num acidente. Sabes que há muitos anos era vergonhoso engravidar fora do casamento. O avô não concebia que a filha fosse mãe solteira. Por isso o pai acedeu criar-te como filha. Nunca planearam contar.

- Mas como contaste ao Luluzinho e não a mim?

- Eu comecei a perceber que ele era mau carácter, mas apaixonada como estava, não terminei o relacionamento e continuei com ele. Isso só me fez infeliz. E um dia bebi muito, queria mesmo esquecer e acabei por confessar a verdade. Era um peso demasiado grande para continuar a carregar sozinha e a bebida soltou-me. Ele e o Eduardo conhecem-se das mesas de jogo. Um dia o Luluzinho, depois da nossa separação soube que o Eduardo não queria que tu visses o Henrique e então contou-lhe a verdade a troco de dinheiro. Também me pediu a mim, mas tu sabes que eu nada tenho. Então Eduardo começou a dar-lhe dinheiro em troca do silêncio dele. Para te proteger da verdade acabei por aceitar todo este horror. Fiz coisas horríveis.

Após estas palavras Júlia caiu num pranto e Cecília apenas abraçou e tentou consola-la. Ela sentia-se traída e enganada por ter vivido uma mentira aqueles anos todos, mas os seus sentimentos não eram nada perante aquilo que Júlia sofrera e também Cecília chorou por tudo aquilo.

Três anos após a morte da tia, Júlia escreveu um longo e-mail à irmã, já não eram e-mails relatando situações triviais com antigamente, mas sim tudo aquilo que acontecera desde o último e-mail e um ou outro comentário mais trivial, porque também de trivialidades vivem as pessoas.

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Cecília e Henrique acharam melhor afastar-se do país e tinham encontrado na Inglaterra rural o refúgio perfeito. Compraram uma casa e tinham-na transformado num muito aprazível Bed&Breakfast, à boa maneira inglesa.

A D. Rata continuava a visitar Júlia, mas na falta da tia as suas visitas eram mais curtas e espaçadas, mas nunca deixava de as fazer porque não podia perder a oportunidade para saber o que se passava na casa.

Há cerca de dois meses, completamente falido, Luluzinho suicidara-se deixando para atrás uma vida indolente e muitas dívidas para os familiares pagarem.

Eduardo ainda tinha tentado separar o irmão de Cecília, mas todos os planos tinham sido frustrados. Era agora presidente da junta de freguesia de Poiares e muito popular entre os seus eleitores. Sonhava com uma Câmara, depois, ser Primeiro-ministro e um dia, Presidente da República, eram voos altos, mas ele era paciente e sabia jogar o jogo sujo da política.

Júlia tinha vencido no ano anterior um importante prémio literário e isso trouxera-lhe mais visibilidade, ainda não vivia da escrita, mas sabia que um dia isso iria acontecer. Num encontro literário conhecera João que era tudo aquilo que Luluzinho não era. Apesar das hesitações, dos medos, Júlia acabara por sucumbir e era agora uma mulher feliz. Podia ser mais se vivesse perto da irmã, doía-lhe que ela não estivesse mais perto. Felizmente a distância era mitigada por longos e-mails, mensagens no facebook, conversas através do Skype.

Júlia clicou no enviar do programa de e-mail e sentiu-se feliz por haver tanta tecnologia que aproximava quem estava longe. Até ao fim do dia Cecília iria responder. Se fosse noutros tempos, escreveria uma carta e esta demoraria muitos dias a chegar a Cecília e outros tantos a chegar a resposta.

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[Fim]