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Propriedade do CEEI/ISRI Ano XXIII, Edição Nº: 04
Novembro de 2015 Registo Nº:
109/GABINFO-DEC/2010 Maputo
Moçambique
Mensal Boletim do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais
Informação e Análise Estratégica, Nº 04, Novembro de 2015 Rua dos Desportistas, Nº 833, Prédio JAT V-1, Maputo Email: boletim.mensal.ceei@gmail.com—www.isri.ac.mz
Leia Nesta Edição
Conflitos Armados Contemporênos e Movimentos Migratórios: Entre a Emergência Humanitária e os Imperativos de Segurança
Emílio J. Zeca Pág. 03
O Dilema da Necessidade e do Medo da Imigração na Europa Ocidental Calton Cadeado
Pág. 14
Reflexões Sobre Migrações Internacionais: Causas e Objectivos – Um Olhar Comparativo Entre a Europa e África Austral
Calton Cadeado Pág. 23
As Dinâmicas das Transições Pós-Soviéticas nas Repúblicas Centro-Asiáticas Paulo Duarte
Pág. 29
Nota Editorial
A s migrações são um fenómeno cujas raízes
alcançam os antigos estágios da história
da humanidade. As mudanças globais, o
avanço tecnológico e o aumento da
interacção nas relações internacionais dinamizaram
os processos migratórios. No último século, os fluxos
migratórios internacionais desenvolveram-se no
sentido Sul-Norte, mas desde a ocorerência de
catástrofes naturais, conflitos violentos, agravamento
da pobreza e a falta de perspectivas de
prosperidade no Médio Oriente, Norte de África e
Leste Europeu, este fenómeno ganhou outra
dinâmica e direcção, onde o Ocidente, mas
concretamente, a União Europeia passou a ser o
destino previlegiado. Como resultado, estes
movimento criam um conjunto de desafios a nível
social, político, económico e securitário nos Estados
que acolhem o imigrantes.
O presente Boletim Mensal é dedicado a análise
dos movimentos migratórios contemporâneos, tendo
em conta as origens, implicações e desafios. A
publicação resulta de trabalhos de pesquisa
realizados pelos pesquisadores do Centro de Estudos
Estratégicos e Internacionais – CEEI/ISRI e
colaboradores, na sua nobre missão de disseminar o
conhecimento científico, na perspectiva de
contribuir com análises académicas de temas
candentes da vida nacional e internacional.
A presente edição do Mensal inclui um gama
de textos que versam sobre os conflitos armados
contemporênos e movimentos migratórios, tendo em
conta as quesrões humanitária em torno das
migrações e os imperativos de segurança; o dilema
da necessidade e do medo da imigração na Europa
Ocidental; e as reflexões sobre migrações
internacionais, tendo em conta as causas e
objectivos, comparando as realidades entre a
Europa e África Austral. Finalmente, foi incorporado
um texto sobre as dinâmicas das transições pós-
soviéticas nas repúblicas centro-asiáticas
Finalmente, gostaria de realçar que
aguardamos dos prezados leitores a vossa
colaboração com críticas e sugestões sobre os
conteúdos e abordagens propostas neste veículo de
comunicação e dessiminação de conteúdos
académicos.
João de Barros
(Director do CEEI/ISRI)
Ficha Técnica
Propriedade: CEEI/ISRI
Director: João Gabriel de Barros
Coordenação Editorial: Emílio J. Zeca
Revisão: Domício Chongo
Layout: Emílio J. Zeca
Redação: Emílio J. Zeca, Calton
Cadeado, Jossias Filipe e Paulo
Duarte
Impressão: Gráfica AIC
Tiragem: 350 Exemplares
Distribuição: CEEI/ISRI
2
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Introdução
A té que o mundo esteja livre de
repressão, conflito, instabilidade
política e desigualdade
económica, é certo que os
movimentos de população vai continuar.
Num mundo cada vez mais globalizado,
com fácil acesso à informação, a
comunicação instantânea e viagens mais
baratas, o número de pessoas em
movimento só pode aumentar. Não há
parte algo do globo que não é afectad
pela migração e que esteja
despreocupada com o seu impacto. As
migrações contemporâneas refletem a
natureza desigual e volátil do Sistema
Internacional e traz consigo as clivagens e
instabilidade do mundo dos pobres para
ribalta, adicionando a sensação de
privação, de instabilidade e violência do
mundo em desenvolvimento, o que levanta
questões relacionadas aos direitos
humanos, o direito internacional, soberania
do Estado, entre outras.
De acordo com a Organização
Internacional para as Migrações – OIM, o
número de migrantes internacionais no
mundo aumentou de apenas 75 em 1960,
para 191 milhões, em 2005, representando
cerca de 3.0% da população mundial.
Deste grupo, 8.7 milhões eram compostos
por refugiados de guerra. No mesmo
período, de acordo com o Alto
Comissariado da ONU para os Refugiados –
ACNUR, mais 6.6 milhões de pessoas foram
deslocadas, mas ainda vivem dentro de
seus próprios Estados (Bali, 2008:469). A
migração é um fenómeno que pode ser
economicamente benéfico, para os
Estados de envio, os de acolhimento, bem
como para o próprio migrante. O envio de
migrantes cria oportunidades para a
criação de remessas que podem ser
enviadas pelos emigrantes para os seus
Estados de origem. Os migrantes reduzem a
pressão sobre o emprego, a habitação e
outros serviços sociais. O Estado de
acolhimento beneficia da disponibilidade
de mão-de-obra a um custo razoável,
podendo assim aumentar a produtividade
nacional e crescimento económico. Os
migrantes beneficiam de melhores
condições de vida, segurança e a
possibilidade da realização de suas
aspirações. Os Estados de acolhimento
tornam-se o lar de migrantes, abrindo a
Conflitos Armados Contemporênos e
Movimentos Migratórios: Entre a Emergência Humanitária e os Imperativos de
Segurança dos Estados
Emílio J. Zeca
Pesquisador do CEEI/ISRI
Departamento de Paz e Segurança
Os movimentos migratórios são tão antigos quanto a própria vida do homem, na Terra. Estes movimentos têm desempenhado um papel importante na formação e reformulação do Sistema Internacional que conhecemos. Nas últimas décadas, as movimentações de pessoas tem ganhado destaque na agenda internacional, devidos as suas causas, sua escalada crescente e as suas consequências, sobretudo no domínio da segurança dos indivíduos, dos Estados e do Sistema Internacional. O presente artigo tem como objectivo analisar os contornos dos movimentos migratórios provocados por conflitos armados contemporâneos. A análise parte do pressupostos de que diante de conflitos armados, há movimento migratórios forçados e voluntários dentro e fora do Estado onde os mesmos acontecem. Desta feita, as pessoas que decidem imigrar, quando chegaram no Estado acolhedor, este enfrenta um dilema que resume-se no facto de acolher os imigrantes, salvaguardando os princípios e valores plasmados pelo Direito Internacional, ou encerrar as suas fronteiras, tendo em conta os imperativos de segurança pública1 e nacional2.
3
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
possibilidade para a edificação de uma
sociedade vibrante, aberta, multicultural,
multiétnica, multirreligiosa, com uma vida
cultural florescente, entre outras.
Movimentos Migratórios: Conceitos, Categorização e Dinâmicas
Os movimentos migratórios tiveram
lugar em todos os tempos e circunstâncias
da vida da humanidade. Devido a
complexidade que envolve o processo das
migrações, existem vários conceitos
propostos para explicar o mesmo. O
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
(2013)3, define migração como “deslocar-se
para outro lugar, país ou região”. No campo
das Relações Internacionais, Sousa
(2005:118) refere que as migrações são
“deslocações com carácter temporário ou
permanente de pessoas, devido a factores
de natureza económica, política ou
ecológica, que podem desenvolver-se
dentro do mesmo Estado – migrações
internas4 – ou de um Estado para outro –
migrações internacionais5”. Já Boniface
(2005:48) refere que “as migrações
internacionais podem ser difinidas como a
deslocação de indivíduos de um Estado
para outro, com a mudança do lugar de
residência e de estatuto jurídico”. Portanto,
as migrações são movimentos de
deslocação de pessoas de um lugar para o
outro, dentro de um Estado ou para outro,
devido a factores sociais, económicos,
políticos, culturais, religiosos ou de outra
natureza.
A crescente vaga de movimentos
migratórios contemporâneos, no Sistema
Internacional, pode ser atribuído ao rápido
aumento da população mundial; os efeitos
do processo da globalização que trouxe
uma revolução nas comunicações e
transporte, tornado as pessoas mais
conscientes de condições e oportunidades
que as diferentes partes do mundo
oferecem; a natureza dos conflitos
contemporâneos que criam turbulência,
instabilidade e incerteza junto dos grupos
populacionais afectados pelos mesmos,
entre outros factores.
Na base da motivação por trás da
migração Bali (2008:471) pontua que os
movimentos migratórios podem ser divididos
em duas categorias. A primeira categoria é
a dos movimentos involuntários ou forçados.
A segunda categoria é a dos voluntários ou
livres. As migrações involuntárias ou
forçadas referem-se, essencialmente, aos
fluxos de pessoas para um determinado
ponto por razões de desastres naturais,
guerras, conflitos étnicos, religiosos ou
políticos, perseguições, entre outras causas.
As migrações voluntárias podem ser
subdivididas em três categorias principais. A
primeira é migração legal permanente; o
segundo tipo é a migração legal
temporária, e inclui a maior parte das
migrações voluntárias que inclui o
movimento de pessoas para a educação,
negócios, turismo e emprego; o terceiro tipo
de migração voluntária é a migração ilegal
de pessoas de um Estado para outro, o que
pode ser temporária ou permanente.
De acordo com Jubilut e Apolinário
(2010:281)6 citado por Filho (2001)7, as
migrações voluntárias abrangem todos os
casos em que a decisão de migrar é
tomada livremente pelo indivíduo, por
razões de conveniência pessoal e sem a
intervenção de um fator externo. Aplicam-
se, portanto, a pessoas, e membros de sua
família, que se mudam para outro país em
busca de melhores condições sociais e
materiais de vida para si e seus familiares.
Essas pessoas podem ter um status de
migração regular ou irregular, em função de
sua entrada e permanência no Estado de
residência, tenham ou não sido observados
os requisitos legais previstos no Estado. Já as
migrações forçadas ocorrem quando o
elemento volitivo do deslocamento é
inexistente ou minimizado e abrangem uma
vasta gama de situações. Assim sendo, o
migrante forçado ou refugiado, terá sua
definição consagrada em importantes
Tratados Internacionais, tais como, a
Convenção Relativa ao Estatuto dos
Refugiados de 1951, o Protocolo de Relativo
ao Estatuto dos Refugiados 1967,
Convenção da antiga Unidade Africana de
1969, Declaração de Cartagena 1984 e leis
internas de Estados asilos.
Em termos de dinâmica, as migrações
contemporâneas constituem um fenómeno
planetário e “tornou-se um elemento
essencial das relações internacionais, onde
a maioria dos Estados está doravante
envolvida” (Boniface, 2005:48). Embora se
possa pensar que a migração como um
fenómeno recente da época moderna, “ela 4
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
é um processo cujas raíses alcançam os
primeiros estágios da história da escrita, e
além dela” (Giddens, 2012:467). Contudo,
com as transformações das sociedades,
desenvolvimento tecnológico e a
globalização, este fenómeno tomou
contornos diferentes, passando a ser parte
do processo de integação global, fruto dos
reflexos das rápidas e complexas mudanças
dos padrões económicos, sociais, políticos e
culturais nas relações entre as sociedades.
Um dado importante a reter é o facto destas
deslocações populacionais sempre terem
sido de carácter temporário ou permanente.
De acordo com Giddens (2012:469), “os
estudiosos da migração identificaram quatro
principais modelos de migração: o modelo
clássico – baseado em nações de
imigrantes, com incentivos e atribuição de
cidadania; o modelo colonial de imigração
– favorece os imigrantes de antigas colonias
em relação aos de outros Estados; o modelo
de trabalhadores convidados – aceitação
de imigrantes para satisfazer a demanda do
mercado de trabalho; e as formas ilegais de
migração – baseado na entrada secreta
num determinado Estado”. Tudo indica que
a dinâmica das migrações contemporâneas
são marcadas pelo terceiro modelo,
sobretudo para o Ocidente, visto que a
maioria dos Estados ocidentais tem políticas
restritivas quanto a recepção de imigrantes.
Tradicionalmente, os fluxos migratórios
internacionais desenvolveram-se no sentido
Sul-Norte. Com o fim da Guerra Fria, assiste-
se a movimentos de populações em todas
as direcções do globo. Os fenómenos
migratórios revelam-se de uma
complexidade crescente, mas é doutrina
assente que, no futuro, as migrações não
deixarão de crescer, tendo em atenção o
desequilíbrio demográfico do mundo, o
envelhecimento da população do norte e o
boom demográfico no sul; o desequilíbrio
económico e social, entre outros factores.
Desde a eclosão dos conflitos no
Afeganistão, Iraque, Líbia, Síria, Paquistão,
Somália, Nigéria, locais fustigados por
guerras, violência, pobreza e falta de
perspectivas de prosperidade, os grupos de
migrantes têm como destino privilegiado a
União Europeia e usam a rota do Mar
Mediterrâneo com pontos de entrada na
Itália, Malta e Grécia.
Os estudos contemporâneos das
migrações vieram demonstrar a
complexidade deste fenómeno, tendo em
conta os vários factores que estão por detrás
destes movimentos. Os fluxos migratórios
contemporâneos são desencadeados por
vários factores que vão desde motivações
económicas, passando pelos conflitos
armados e calamidades naturais, até as
motivações culturais, religiosas e políticas.
Todavia, as motivações económicas, os
conflitos armados e as perseguições políticas
estão entre os principais facotres que forçam
as pessoas a se movimentarem de um ponto
para o outro, na actualidade. Desta feita, “o
fenómeno das migrações tem vindo a
ocupar uma importância cada vez maior na
agenda política dos governo” (Silva,
2012:78). Mais do que agenda política, as
migrações passaram para a agenda de
segurança dos Estados, sua dimensão
política, societal, económica e até ambietal.
Movimentos Migratórios e Questões Humanitárias
Há uma relação directa entre os
movimentos migratórios e as questões
humanitárias, porque as pessoas que migram
voluntária ou forçosamente buscam
melhores condições de vida e segurança. Os
movimentos migratórios contemporâneos
lançam a discussão acesa sobre os
movimentos populacionais e as questões de
humanitárias, devido a natureza, motivações
e consequências destes movimentos no
mundo contemporâneo. Por exemplo,
enquanto que na maioria dos pontos como
África, América Latina e Ásia existe uma
considerável insegurança, violência, conflito,
repressão e privação, em contrapartida, na
Europa, América do Norte e algumas outras
áreas, como Japão, Austrália e Nova
Zelândia, as pessoas desfrutam de
prosperidade, abundância e riqueza. Desta
feita, era suposto que em locais onde há
prosperidade, abundância e riqueza
houvesse mais disponibilidade para acolher
as pessoas que são forçadas a movimentar-
se de seus locais de origem arriscando suas
vidas, em busca de melhores condições de
vida.
Contrariamente, nos últimos tempos,
milhares de refugiados e pessoas pedindo
asilo chegaram às fronteiras europeias,
fugindo de guerras, pobreza e violência, em
sua maioria, oriundos de regiões do Oriente
5
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Médio e da África. Trata-se de uma
tendência que se verificava pelo menos
desde 2008. Em 2014, o número de pessoas
que chegou à Europa em busca de asilo e
refúgio aumentou significativamente em
relação aos anos anteriores. Mais de 700 mil
pessoas pediram asilo na Europa no ano
passado, um aumento de 47.0% em relação
ao ano anterior, de acordo com dados do
Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados8. Milhares de refugiados chegam
às fronteiras europeias fugindo de guerras,
pobreza e violência, em sua maioria,
oriundos de regiões do Oriente Médio e da
África.
Mapa: Principais Rotas de Migrantes Para União
Europeia
Fonte: www.google.co.za/search?
q=Principais+rota+dos+refugiados+na+europa&newwindow
De 2008 a 2012, um grande número de
migrantes cruzaram o mar entre a Turquia e
Grécia pela chamada Rota do
Mediterrâneo do Leste. Para fazer frente a
isso, a Grécia reforçou os seus mecanismos
de controlo de fronteira com mais 1.8 mil
policiais. A área continua problemática e
aponta para incertezas relacionadas à
insustentabilidade dos esforços (gregos) e
evidências de que os imigrantes aguardam
na Turquia pelo fim da operação. Na última
década, a rota que passa pelo centro do
Mediterrâneo tem experimentado picos
periódicos no tráfego de imigrantes. Dados
do ACNUR sugerem que cerca de 25 mil
pessoas chegaram na Itália a partir do Norte
da África, em 2005. Esse número diminuiu
para cerca de 9.5 mil em 2009. Porém, em
2011, esse número voltou a crescer atingindo
a marca de 61 imigrantes. Essa escalada foi
motivada pelo conflito da Líbia, que
culminou com a queda do coronel
Muammar Khadafi. No começo da década,
a rota mais popular entre imigrantes ilegais
era entre o oeste africano e a Espanha. Ela
incluía territórios espanhóis no norte da África
como Ceuta e Melilla e as Ilhas Canárias.
Aproximadamente 32 mil imigrantes teriam
usado esse caminho, em 2006, porém o
número caiu para cerca de 5.4mil em 2011.
Os contrastes acima apresentados são
elementos marcante das divisões do mundo
actual e contribuem de forma significativa
para a massificação de movimentos
migratórios. Apesar de tais movimentos
mostrarem que os Estados Ocidentais ricos
não podem optar e manter seu isolamento e
permanecer intocados pela privação e
instabilidade do mundo em
desenvolvimento, os mesmos demonstram o
quão as questões humanitárias que o Diteito
Internacional prevê, como é o caso da
Convenção das Nações Unidas sobre o
Estatuto dos Refugiados, são ignoradas,
pondo em causa todo o humanitarismo que
devida orientar a postura de acolhimento de
grupos de pessoas que necessitam, que
sofrem perseguição devido à sua raça,
religião, nacionalidade, associação a
determinado grupo social ou opinião
política. Em situação de conflito armado, a
situação torna-se complexa, porque as
pessoas em migração tornam-se refugiados
ou deslocados de guerra.
A Convenção das Nações Unidas sobre
o Estatuto dos Refugiados de 1951 é o
instrumento internacional que rege o
estatuto dos refugiados e foi adoptada em
28 de Julho de 1951, entrando em vigor em
22 de abril de 1954. A Convenção define o
que é um refugiado e estabelece os direitos
dos indivíduos aos quais é concedido o
direito de asilo bem como as
responsabilidades das nações concedentes;
ela consolida prévios instrumentos legais
internacionais relativos aos refugiados e
CAIXA: Conceito de Refugiado
Refugiado é toda a pessoa que, em razão de
fundados temores de perseguição devido à sua
raça, religião, nacionalidade, associação a
determinado grupo social ou opinião política,
encontra-se fora de seu Estado de origem e que,
por causa dos ditos temores, não pode ou não
quer fazer uso da proteção desse país ou, não
tendo uma nacionalidade e estando fora do país
em que residia como resultado daqueles eventos,
não pode ou, em razão daqueles temores, não
quer regressar ao mesmo.
Fonte: Artigo 1° da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto
dos Refugiados de 1951, emendado pelo Protocolo de 1967.
6
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
fornece a mais compreensiva codificação
dos direitos dos refugiados a nível
internacional.
A conveção das Nações Unidas, acima
refereida, estabelece padrões básicos para
o tratamento de refugiados – sem, no
entanto, impor limites para que os Estados
possam desenvolver esse tratamento. A
Convenção deve ser aplicada sem
discriminação por raça, religião, sexo e país
de origem. Além disso, estabelece cláusulas
consideradas essenciais às quais nenhuma
objeção deve ser feita. Entre essas cláusulas,
incluem-se a definição do termo “refugiado”
e o chamado princípio de non-refoulement
(“não-devolução”), o qual define que
nenhum país deve expulsar ou
“devolver” (refouler) um refugiado, contra a
vontade do mesmo, em quaisquer ocasiões,
para um território onde ele ou ela sofra
perseguição. Ainda, estabelece
providências para a disponibilização de
documentos, incluindo documentos de
viagem específicos para refugiados na
forma de um “passaporte”.
A Convenção de 1951 relativa ao
Estatuto dos Refugiados obriga os Estados a
prover asilo e de protecção para aqueles
que enfrentam perseguição, por motivo de
religião, raça, nacionalidade ou opinião
política. Para Goodwin-Gill (1983:1) fica
implícito o pressuposto de que “o refugiado
deve ser assistido, protegido e garantido
segurança”. Na prática, a Convenção
obriga os Estados a assegurar que nenhum
requerente de asilo é enviado de volta para
qualquer Estado onde eles estão propensos
a enfrentar o perigo de vida ou liberdade,
mesmo que o seu pedido de estatuto de
refugiado seja dada a devida consideração.
O Artigo 14 da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948), refere que “todos os
indivíduos têm o direito de procurar e de
beneficiar de asilo, desde que sejam vítima
de perseguição, em outros Estado”.
O reconhecimento de um requerente de
asilo como um refugiado é uma decisão
política que depende em certa medida da
relação entre os Estados de envio e de
acolhimento. Na sociedade internacional,
há uma aceitação do direito de cada
Estado soberano de decidir por si mesmo a
quem deve ser permitida a entrada no seu
território. Assim, a questão de refugiados é
decidida pelo governo e seus tribunais. No
entanto, os instrumentos que regem os
refugiados constituem uma parte
significativa do consenso internacional sobre
o tratamento dos refugiados e estabelecem
um importante princípio universal de que a
maioria dos Estados têm vindo a aprovar, no
sentido de que as pessoas com um receio
fundado de perseguição tem o direito de
sair do seu Estado e buscar segurança
noutro onde devem adquirir o estatuto
internacional de refúgio.
Tendo em conta os aspectos acima
arrolados, constata-se que as questões
humanitárias nem sempre são respeitadas
pelos Estados de acolhimento, devido aos
imperativos nacionais, prioridades do
governo e percepção de ameaça,
vulnerabilidades ou segurança que os
movimentos populacionais proporcionam
para si. A percepção de securitização que
os governantes e as autoridades de defesa e
segurança dão aos movimentos migratórios
para os seus Estados determina a prioridade
entre as questões humanitárias em volta
desses movimentos e os imperativos de
segurança pública, nacional e do Estado,
visto que o reconhecimento de um
requerente de asilo como um refugiado é
uma decisão política do Estado que é
decidida pelo governo, tribunais e outras
autoridades relevantes. Portanto, em última
instância, cada Estado é soberano de
decidir por si mesmo a quem deve ser
permitida a entrada no seu território.
Conflitos Armados e Movimentos Migratórios Contemporâneos
Ao longo dos tempos, muitos dos
movimentos migratórios forçados de pessoas
estiveram sempre relacionados com
conflitos armados. Com o fim da Guerra Fria
e a eclosão de conflitos armados internos
violentos, grande parta da população de
Estados em conflitos foram forçados a
deslocarem-se para locais seguros. A grande
escalada de migração de refugiados de um
Estado para outro começou a suscitar
preocupações graves no domínio da
segurança humana, dos grupos e dos
Estados. O fluxo de refugiado, pela sua
própria natureza, resultante de conflito, gera
agitação e turbulência social e política nos
Estados de acolhimento. Esses movimentos
podem, por vezes, gerar instabilidade e
insegurança nos Estados de acolhimento.
7
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Muitas das vezes, isso acontece, devido aos
fluxos de refugiados, a natureza do conflito,
o nível de violência ou da repressão, bem
como as causas por que motiva o
fenómeno. Quando um Estado se torna
dispostos a ser hospedeiro de uma
população de refugiados, é provável que o
mesmo tome uma série de medidas, para
garantir que a estadia dos refugiados seja
temporária, e não se torne num potencial de
conflito e insegurança.
Em África, por exemplo, as migrações
internas e internacionais motivadas por
conflitos armados são um fenómeno antigo
e as deslocações transfronteiriças forçadas
aconteceram entre Estados vizinhos como
foram os casos Moçambique e África do Sul,
Ruanda e República Democrática do Congo
e Burkina-Faso e Costa do Marfim. Apesar
das crescentes restrições impostas às
fronteiras, deixando os migrantes numa
situação irregular, estes movimentos têm-se
mantido ou amplificado, tanto por razões
sociais e económicas, como em casos de
crise9. O continente tem, simultaneamente,
Estados de partida e de acolhimento. Certos
Estados de partida tornam-se Estados de
acolhimento, não sendo invulgar que os
Estados sejam, simultaneamente, Estados de
partida e de acolhimento para refugiados
como se verifica no Sudão ou para
trabalhadores migrantes como acontece
com a África do Sul. Os movimentos
migratórios estão a desenvolver-se e a tornar
-se mais complexos. Os destinos multiplicam-
se e os itinerários alongam-se, com um
crescente número de migrantes da África
Ocidental na África do Sul.
Fonte: http://www.acnur.org/t3/portugues/recursos/
estatisticas/
O ano de 2014 testemunhou o
dramático aumento do deslocamento
forçado em todo o mundo causado por
guerras e conflitos, registrando níveis sem
precedentes na história recente. Há um ano,
em 2013, o ACNUR anunciou que os
deslocamentos forçados afectavam 51.2
milhões de pessoas, o número mais alto
desde a Segunda Guerra Mundial. Doze
meses depois, a cifra chegou a
impressionantes 59.5 milhões de pessoas, um
aumento de 8.3 milhões de pessoas forçadas
a fugir. Durante 2014, os conflitos e as
perseguições obrigaram uma média diária
de 42.500 mil pessoas a abandonar suas
casas e buscar proteção em outro lugar,
dentro de seus países ou fora deles.
Aproximadamente 13.9 milhões de indivíduos
tornaram-se novos deslocados, em 2014.
Entre eles, 11 milhões de deslocados dentro
de seus países, um número nunca antes
registrado, e 2.9 milhões de novos
refugiados.
Dos 59.5 milhões de pessoas deslocadas
forçadamente até 31 de Dezembro de 2014,
19.5 milhões eram refugiados (14.4 milhões
sob mandato do ACNUR e 5.1 milhões
registrados pela UNRWA), 38.2 milhões de
deslocados internos e 1.8 milhão de
solicitantes de refúgio. Além disso, calcula-se
que a apátrida tenha afetado pelo menos
10 milhões de pessoas em 2014, ainda que os
dados dos governos e comunicados ao
ACNUR se limitem a 3.5 milhões de apátridas
em 77 Estados. A Síria é o país que gerou o
maior número tanto de deslocados internos
(7.6 milhões de pessoas) quanto de
refugiados (3.88 milhões). Em seguida estão
Afeganistão (2.59 milhões de refugiados) e
Somália (1.1 milhão de refugiados). Os
Estados e regiões em desenvolvimento
acolhem 86% dos refugiados no mundo: 12.4
milhões de pessoas, o número mais alto em
mais de duas décadas.
Um aspecto importante a ter em conta
é o facto de devido aos conflitos armados,
muitos refugiados e deslocados abandonam
as suas casas e a sua terra e atravessam
fronteiras, em busca de melhores condições
de vida e segurança. Enquanto uns fogem
para locais, relativamente, próximos, na
esperança de poderem regressar
rapidamente, o que faz com que não sejam
abrangidos pela Convenção de Genebra
de 1951, outro cruzam as fronteiras de seus
Estados e vão para outros Estados. Os que
Número de Pessoas Deslocadas Por Guerra
Ano Quantidade de
Deslocados
2005 37.5 Milhões
2006 39.5 Milhões
2007 42.7 Milhões
2008 42.0 Milhões
2009 43.3 Milhões
2010 43.7 Milhões
2011 42.5 Milhões
2012 45.2 Milhões
2013 51.2 Milhões
2014 59.2 Milhões
8
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
CAIXA: Protocolo Relativo ao Estatuto
dos Refugiados
Com o tempo e a emergência de novas
situações geradoras de conflitos e perseguições,
tornou-se crescente a necessidade de
providências que colocasse os novos fluxos de
refugiados sob a proteção das provisões da
Convenção. Assim, um Protocolo relativo ao
Estatuto dos Refugiados foi preparado e
submetido à Assembleia Geral das Nações
Unidas em 1966. Na Resolução 2198 (XXI) de 16
de dezembro de 1966, a Assembleia tomou nota
do Protocolo e solicitou ao Secretário-Geral que
submetesse o texto aos Estados para que o
ratificassem. O Protocolo foi assinado pelo
Presidente da Assembleia Geral e o Secretário-
Geral no dia 31 de janeiro de 1967 e transmitido
aos governos. Entrou em vigor em 4 de outubro
de 1967. Com a ratificação do Protocolo, os
países foram levados a aplicar as provisões da
Convenção de 1951 para todos os refugiados
enquadrados na definição da carta, mas sem
limite de datas e de espaço geográfico. Embora
relacionado com a Convenção, o Protocolo é
não ultrapassam fronteiras, não beneficiam
de estatuto, direitos e garantias de
protecção internacional previstas nas
convenções e protocolos que refem os
movimentos migratórios internacionais e
ficam reféns do princípio da soberania
nacional dos Estados. Este aspecto dificulta
a chegada da assistência e protecção
externas.
Movimentos Migratórios Contemporâneos e as Questões de
Segurança
Desde o fim da Guerra Fria, nos anos
1990, a desagregação de Estados Imperiais
e eclosão das chamadas “Novas Guerras”,
uma série de eventos em vários Estados têm
forçado os estudiosos a dar importância ao
estudo das migrações internacionais, nos
Estudos das Relações Internacionais. As
movimentações de alemães orientais para o
Ocidente, através da Áustria e da Hungria, a
instabilidade política em vários Estados da
África, Ásia e América Latina, os conflitos e
limpeza étnicas e religiosas, os movimentos
étnicos nos Balcãs, a ascensão de grupos
políticos extremistas, entre outros, têm
contribuído para o crescente interesse pelo
estudo dos movimentos populacionais
contemporâneos. Estes fenómenos fizeram
como que fosse desenvolvido o
reconhecimento da relação entre
migrações e a segurança nacional e
internacional. Assim, os movimentos
migratórios afiguram-se como um problema
de segurança dos indivíduos, bem como dos
Estados. Este debate enquandra-se nas
discussões alargadas10 dos Estudos de
Segurança.
Para fazer face a todos os tipos de
migrações, acima mencionadas, os Estados
desdobram-se no processo de controlo das
suas fronteiras, um elemento importante
para a salvaguarda da sua soberania que é
considerada como a característica
definidora de um Estado em nosso sistema
internacional. Tradicionalmente, os Estados
têm operado um sistema de controlo de
fronteiras, com as políticas específicas a
respeito de quem pode entrar, por quanto
tempo e em que condições ao seu território.
No que diz respeito à migração livre ou
voluntária, os Estados têm a plena
autoridade para decidir quem eles vão
aceitar como operadores ou imigrantes. Os
Estados tomam suas decisões com base em
uma variedade de critérios, incluindo o
trabalho e as competências necessários
para as suas economias, as semelhanças
culturais e étnicas com os migrantes que
chegam, entre outros. Mas quando se trata
de movimentos involuntários ou de
refugiados, existem algumas restrições sobre
a autoridade de um Estado, de acordo com
as obrigações impostas pela Convenção de
1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados.
Uma inevitável consequência a longo
prazo dos movimentos internacionais de
população, livres ou forçadas é a criação
de comunidades de minorias étnicas nos
Estados receptores. Na maioria dos Estados
de acolhimento, tornou-se claro que uma
vez que a migração tem lugar, por qualquer
motivo, e se destina a ser permanente ou
temporária, invariavelmente resulta em pelo
menos, alguns imigrantes se tornarem
cidadãos do Estado de acolhimento,
criando assim minorias culturais, linguísticas,
religiosas e, possivelmente, uma minoria
racialmente distintas. A existência e
desenvolvimento dessas comunidades têm
um impacto substancial na segurança, tanto
no sentido tradicional de segurança do
Estado contra a violência, guerra e conflito,
bem como a segurança no sentido mais
amplo da estabilidade social e prosperidade
económica e política interna dos Estados,
bem como sobre a relação dos Estados de
acolhimento com os Estados de onde essas
pessoas são originárias.
9
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Desde os acontecimentos de 11 de
Setembro de 2001, nos EUS, até ao fluxo de
refugiados para a União Europeia depois da
queda de Muhamar Khadfi e a eclosão da
guerra na Síria, reafirmou-se a relação entre
a migração internacional, em geral e
questões de segurança, em particular.
Quando se descobriu que os autores dos
atentados de 11 de Setembro de 2011 eram
imigrantes temporários ou ilegais, os EUA
começaram a tratar o seu serviço de
migração como parte de seu aparato de
segurança nacional e as políticas públicas
de segurança interna passaram a
contemplar matérias relacionadas com o
controlo e gestão dos movimentos
populacionais, visto que percebeu-se que a
migração pode representar uma ameaça
para as pessoas e os governos, tanto dos
Estados de envio, para os de acolhimento,
bem como para as relações entre estes dois
Estados (Bali, 2008:471).
Na relação entre migrações e conflitos
armados, um dos fenómenos que pode
ocorrer é o facto de as migrações terem a
potencialidade de transformar os conflitos
intra-estatais em conflitos internacionais e
poderem causar a propagação do conflito
étnico e agitação civil de um Estado para
outro. Assim, as migrações podem criar
algumas situações de conflito, incluindo a
guerra em grande escala entre Estados. As
migrações podem desempenhar um papel
no sentido de facilitar a ocorrência de várias
formas de violência política desde a guerra,
passando por revoluções e golpes de Estado
e até o terrorismo.
As comunidades migrantes tendem a
manter uma forte ligação com seus Estados
de origem. Muitas das vezes essas
comunidades envolvem-se numa série de
actividades sociais, económicas e políticas
dirigidas a seu Estado de origem. Eles usam
todos os meios à sua disposição para
influenciar os acontecimentos no seu Estado
e aproveitam o facto de estarem fora do seu
Estado de origem, pelo facto de não serem
sujeitos à sua jurisdição. Aceitação de
migrantes, num Estado, tem efeitos sociais,
político e económicos de longa duração,
visto que estes têm um potencial de
transformar sociedades homogêneas em
multiculturais e multiétnicas, através da
introdução de padrões sociais e culturais
diferentes. Os migrantes têm a
potencialidade de transformar Nações-
Estado em Estados-Nações, num momento
em que este tipo de organização social tem
dominado a grande maioria das
comunidades no sistema internacional
contemporâneo, onde verifica-se a
formação e reprodução de um “sistema
cultural e social de base territorial” (Zolberg,
1981:6), onde os seus membros são
congregados, tendo em conta a partilha de
uma história, língua, religião e cultura
comum, que os une em uma unidade
integrada coesa com um senso pertença e
partilha de uma nação.
Neste contexto, os movimentos
migratórios podem se tornar numa ameaça
para a coesão social e a estabilidade, se os
migrantes ou comunidades minoritárias são
vistos como um fardo social e económico na
sociedade. Os migrantes podem ser
percebidos como um perigo, visto que são
encarados como portadores de padrões
sociais não aceitáveis que pervertem a
sociedade. Os migrantes são percebidos
com hóstis à coesão étnica, cultural e
religiosa, visto que afiguram-se como uma
ameaça para a cultura e o modo de vida
das pessoas no Estado de destino. Quanto a
este aspecto Giddens (2012:470) refere, por
exemplo, que “a cada onda de imigração,
mudava a configuração religiosa do Reino
Unido”. Isto tende a acontecer quando um
grande número chega em um curto período
de tempo e procuram integrar-se no modo
de vida do Estado anfitrião. Desta feita, a
extensão e a natureza da integração de
uma comunidade migrante têm impactos
naquilo que Waever et al. (1993:17-40)
descreveram como “segurança societal”11,
entendida como a coesão societal ao nível
intra-estatal, entendida como salvaguarda
da identidade social e cultural das
populações e dos grupos sociais/étnicos
minoritários, bem como dos seus direitos
um instrumento independente cuja ratificação
não é restrita aos Estados signatários da
Convenção de 1951. A Convenção e o
Protocolo são os principais instrumentos
internacionais estabelecidos para a proteção
dos refugiados e seu conteúdo é altamente
reconhecido internacionalmente. A Assembleia
Geral tem frequentemente chamado os
Estados a ratificar esses instrumentos e
incorporá-los à sua legislação interna. A
ratificação também tem sido recomendada
por várias organizações, tal como o Conselho
da União Europeia, a União Africana e a
Organização dos Estados Americanos.
Fonte: www.acnur.org
10
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
políticos e do seu bem-estar económico.
Ao fortalecer um grupo de refugiados, o
Estado receptor pode perder a sua
capacidade de lidar de forma
independente com o grupo e como o
Estado de origem. Para além disso, os
refugiados tentarão influenciar as políticas
do Estado anfitrião em relação ao Estado de
envio (Weiner, 1995:139). Isso aconteceu
com os governos árabes que apoiaram os
palestinos, os paquistaneses que apoiaram a
Mujahidin, no Afeganistão e para os indianos
que apoiavam os tâmeis, no Sri Lanka. O
caso da Grã-Bretanha têm mostrado que
não é preciso um grande número de
refugiados, para terem um impacto negativo
na segurança nacional e interna do Estado
de acolhimento. A Grã-Bretanha tinha dado
refúgio a um pequeno número de altos
clérigos islâmicos carismáticos e influente
quando os mesmos procuraram escapar de
regimes repressivos do Oriente Médio. Entre
estes líderes encontra-se o Sheik Mohammed
Omar Bakhri, fundador do movimento
estudantil islâmico Al-Mohajiroun que
radicalizou jovens muçulmanos britânicos;
Abu Hamza, o veterano da guerra afegão e
extremista que converteu a Mesquita
Finsbury Park num paraíso islâmicos e um
centro de recrutamento para a Al-Qaeda;
Abu Quatada, clérigo que já foi nomeado
como líder espiritual da Al-Qaeda na Europa,
cujos discursos influenciou vários homens-
bomba europeus, incluindo Zacharias
Moussavi, envolvido nos ataques de 11 de
Setembro de 2001, e Richard Reid,
conhecido como “o terrorista do sapato”.
Esses clérigos extremistas ajudaram a
radicalizar muitos jovens muçulmanos
britânicos; recrutaram e enviaram
muçulmanos britânicos para lutar na Bósnia
e Chechénia; providenciaram viagens para
treinamento de terroristas no Afeganistão e
outros pontos de treino. Muitos deles
contribuíram, directa ou indirectamente,
para a radicalização de jovens que fizeram
explodir a rede de transportes de Londres,
em 7 de Jde 2005. A maioria dos envolvidos
no ataque contra as Torres do World Trade
Center, Madrid, Londres eram migrantes
temporários ou requerentes de asilo,
estudantes ou grupos que desenvolviam
actividades de negócios. A maioria deles era
de origem imigrante.
Não há dúvidas que “a maioria dos
Estados europeus foi profundamente
modificada pela imigração durante o Séc.
XX” (Giddens, 2012:475). Estas modificação
que não só ocorrerem nos Estados europeus
vão desde os padrões de vida, raça e
grupo. Esses movimentos levaram a
existência de numerosos grupos com
configuração multicultural. Os padrões da
migração global criaram um sistema
produzido por meio de interacções desde
níveis micros, dominados por indivíduos, até
níveis macros dominados por Estados. Desta
feita, a população humana não tem como
senão interagir e minsturarem-se moldando a
composição multiétinicas das sociedades
em vários pontos do globo. Essa situação
cria sempre uma situação de ameaça e
vulnerabilidade da coesão social,
identidade e unidade dos grupos, criando o
dilema das etnicidades e a insegurança
societal.
Mais do que a segurança societal, o
fluxo de migrantes, na Europa, ressuscita o
problema do terrorismo e grupos extremistas
que manifestão abertamente a sua posição
contra o acolhimento de pessoas em seus
territórios. Não obstante ao potencial de
ameaça e vulnerabilidade que os migrantes
que chegam a europa representam, devido
a possibilidade da sua ligação com o Estado
Islâmico e outros movimentos terroristas, nem
todos têm essa ligação e muitos necessitam
mesmo de asilo, porque fogem de locais de
conflito armado e sofrem perseguição
devido à sua raça, religião, nacionalidade,
entre outros aspectos nos locais onde se
encontravam a viver. Não se pode descartar
que o conflito na Síria continua sendo o
maior motivador da onda migratória para a
União Europeia, mas a violência constante,
no Afeganistão, Eritreia e Nigéria, bem como
a pobreza no Kosovo também têm levado
pessoas dessas regiões a procurar asilo em
Estados europeus. Portanto, qualquer
generalização com vista a hostilizar os
migrantes pode levar a erro, porque
enquanto os imperativos de segurança
ganham destaque, há situações de
emergência humanitária concretas.
Considerações Finais
Os movimentos migratórios aumentaram
de intensidade nos últimos tempos devido a
eclosão de conflito armados e a dinâmica
da globalização. Até que o mundo esteja
11
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
livre de repressão, conflito, instabilidade
política e desigualdade económica, é certo
que os movimentos de população vai
continuar. Num mundo cada vez mais
globalizado, com fácil acesso à informação,
a comunicação instantânea e viagens mais
baratas, o número de pessoas em
movimento só pode aumentar. Não há
nenhuma parte do globo que não é afecta
pela migração e que esteja despreocupada
com o seu impacto. As migrações refletem a
natureza desigual e volátil do Sistema
Internacional e traz consigo as clivagens e
instabilidade do mundo dos pobres para
ribalta, adicionando a sensação de
privação, de instabilidade e violência do
mundo em desenvolvimento, o que levanta
questões relacionadas aos direitos humanos,
o direito internacional, soberania do Estado,
entre outras.
Os movimentos migratórios
contemporâneos lançam a discussão sobre
a natureza dividida do mundo
contemporâneo. Enquanto a maioria dos
pontos como África, América Latina e Ásia
existe uma considerável insegurança,
violência, conflito, repressão e privação, em
contrapartida, Europa, América do Norte e
algumas outras áreas, como Japão,
Austrália e Nova Zelândia, as pessoas
desfrutam de prosperidade, abundância e
riqueza. Tais contrastes são o elemento
marcante das divisões do mundo actual e
contribuem de forma significativa para a
massificação de movimentos migratórios. Os
movimentos migratórios mostram que os
Estados Ocidentais ricos não podem optar e
manter seu isolamento e permanecer
intocados pela privação e instabilidade do
mundo em desenvolvimento.
No entanto, não seria apropriado ou
realista constatar que a melhoria da
segurança para os Estados seria restringir
drasticamente a migração. Em primeiro
lugar, isso não lida com o facto de
migrações e suas consequências; seria
fortemente sinalizador que os Estados
encaram a migração e os migrantes como
um problema, o que tornaria mais difícil de
alcançar níveis indesejáveis de integração
dos imigrantes, criando insegurança social;
os movimentos migratórios trazem benefícios
económicos e outros; num mundo
globalizado, as sociedades de mercado
aberto, livre vai precisar de movimentos
migratórios, para acomodar a demanda
por habilidades e trabalho e para criar o
ambiente de intercâmbio cultural,
criatividade, empreendedorismo, troca de
experiências, entre outros empresarial possa
florescer.
Portanto, uma política de imigração
equilibrada, com base nas necessidades
económicas, sociais e culturais, com regras
justas e transparentes é a chave para a
gestão da migração na era
contemporânea. Isto tem de ser combinada
com políticas que permitam oportunidades
para comunidades migrantes
desenvolverem, através de estímulos para a
sua integração, o que implica o seu
acolhimento, respeito dos seus próprios
direitos, interesses e prosperidade, sem por
em causa os objectivos e os interesses
nacionais do Estado acolhedor. Para além
disso, há necessidade de se criar
mecanismos para que os movimento
migratórios sejam ordenados e os Estados
devem ponderar entre as questões
humanitárias e os imperativos de segurança,
sem colocar em causa a sua soberania, seus
objectivos e interesses nacionais.
Notas e Referências Bibliográficas 1 A segurança pública é a função dos Estados que
consistem em garantir a protecção dos cidadãos,
organizações e instituições contra ameaças ao seu
bem-estar e a prosperidade de suas comunidades.
Em termos práticos, trata-se de um conjunto de
actividades com vista a manter a lei e ordem, bem
como a salvaguarda para que os cidadãos possam
conviver, trabalhar, produzir e se divertir, protegendo
-os dos riscos e ameças a que estão expostos. 2 Por segurança nacional, entende-se aqui uma
condição relativa de proteção colectiva e individual
dos membros de uma sociedade contra ameaças
plausíveis à sua sobrevivência e autonomia. Nesse
sentido, o termo refere-se a uma dimensão vital da
existência no contexto moderno de sociedades
complexas, delimitadas por Estados nacionais de base
territorial. A segurança nacional consiste em assegurar,
em todos os lugares, a todo momento e em todas as
circunstâncias, a integridade do território, a protecção
da população e a preservação dos interesses
nacionais contra todo tipo de ameaça e agressão
(Cépik, 2001:2-3). 3 www.priberam.pt/dlpo/migra%C3%A7%C3%A3o,
consultado em 14-12-2015. 4 Êxodo rural: deslocação da população do campo
para a cidade; migração urbano-rural: deslocação
da população da cidade para o campo; migração
urbano-urbana: deslocação de uma cidade para
outra; migração pendular: deslocação de uma
cidade para outra a fim de trabalhar, retornando no
12
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
final do dia; migração sazonal: deslocação de uma
cidade para outro num determinado período do ano. 5 Imigração: caracterizada pela entrada de indivíduos
ou grupos num determinado Estado. Emigração:
caracterizada pela saída de indivíduos ou grupos de
seu Estado de origem para se estabelecer em outro. 6 Jubilut, Liliana Lyra e Apolinario, Silvia Menicucci. O.
S. (2010), A Necessidade de Protecção Internacional
no Âmbito da Migração, Rev. Direito GV , Vol.6, Nº.1,
PP. 275-294. 7 Filho, José Carlos Carvalho (2011), “Uma Visão
Humanitária sobre o Fluxo Migratório dos Países
Árabes em Conflito à luz do Direito Internacional”,
MUNDORAMA – Revista de Divulgação Científica em
Relações Internacionais, Universidade Católica de
Santos, Santos. 8 http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2015/09/
seis-perguntas-para-entender-crise-humanitaria-de-
refugiados-na-europa.html 9 http://www.alem-mar.org/cgi-bin/quickregister/
scripts/redirect.cgi?redirect=EFpZpAEEpkDmePRBDe 10 A tradicional visão de segurança está ligada
essencialmente à existência de inimigos e à
ameaças de natureza militar contra o Estado. Na
visão alargada, introduzida pela Escola de
Copenhaga – Conflict and Peace Research Institute
de Copenhaga, no final da década de 1990, a
segurança é vista tendo em conta cinco sectores ou
categorias: militar, económica, social, política e
ambiental. 11 Em Estados europeus como Grã-Bretanha, França
e Dinamarca, a comunidade muçulmana
estabelecida ao longo do tempo é substancial e
actualmente, à luz da guerra global ao terror, tem
sido vista como uma fonte de ameaça. Há cerca de
20 milhões de muçulmanos na Europa. França é o
Estado que tem os maiores números, entre 5-6
milhões, o que representa entre 8-9% de sua
população. Os muçulmanos constituem 5% da
população da maioria dos outros Estados da Europa
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13
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
O Dilema da Necessidade e do Medo da Imigração na Europa Ocidental
Calton Cadeado
Docente do ISRI e Pesquisador do CEEI/ISRI
Departamento de Paz e Segurança
Introdução
A Europa Ocidental está a registar,
de forma crescente, um declíneo
numérico na população. Isto
significa que a “Europa, no seu
todo, possui 728 milhões de pessoas. Mas, as
previsões das Nações Unidas indicam que,
em 2050, este número vai baixar para 557 ou
635 milhões. O número baixo significa que as
mulheres vão, em média, ter 1.6 filhos. O
segundo número assume que as mulheres
terão, em média, 2.1 filhos, em
2050” (Friedman, 2009: 52). Com efeito,
dados de 2007, das Nações Unidas, revelam
que 10 países da União Europeia (UE) estão,
efectivamente, a registar um declínio de
população, desde 1981. Trata-se da Hungria
(1981), da Bulgária (1986), da Estónia (1990),
de Latvia (1990), da Roménia (1991), da
Lituânia (1992), da República Checa (1995),
da Polónia (1997), da Alemanha (2006) e da
Eslovénia (2008) (Jackson and Howe, 2011:
589).
Ademais, os dados de 2007, das Nações
Unidas, indicam que, em 1950, Alemanha
estava em sétimo lugar na lista dos países
mais populosos do mundo. Mas, em 2005,
Alemanha passou para o décimo quarto
lugar e, em 2050, prevê-se que não faça
parte dos países mais populosos. A França
estava em décimo segundo lugar, em 1950.
Mas, em 2005, passou para o vigésimo
sétimo lugar e, em 2050, prevê-se que
também não faça parte dos países mais
populosos. A Itália estava, em 1950, situada
no décimo lugar. Em 2005 passou para o
trigésimo nono lugar e, para o ano 2050, as
previsões indicam que não vai fazer parte
da lista dos países mais populosos. Por último,
o Reino Unido estava na nona posição, em
1950, em 2005 passou para trigésima
segunda posição e, segundo as previsões,
em 2050, o Reino Unido também não fará
pare da lista dos países mais populosos do
mundo (Jackson and Howe, 2011: 593).
Em consequência, o declínio de
população está a criar múltiplas implicações
negativas, principalmente, do ponto de vista
económico e geopolítico. Em termos
económicos, alguns países da UE estão a
viver incertezas devido ao problema da
escassez de mão de obra barata em idade
activa para trabalhar. Em termos
geopolíticos, os países desenvolvidos [da
Europa Ocidental] estão preocupados, pois
tem a diminuição e/ ou perda de prestígio e
de influência no xadrez político-económico
global. Um cenário mais pessimista coloca o
declínio populacional como uma ameaça a
segurança pública, económica, societal e
de Estado.Esta realidade tem a ver com as
previsões de enfraquecimento do Produto
Interno Bruto (PIB); a diminuição de capital
humano nos sectores de defesa e de
segurança; e o surgimento de tensões sócio-
políticas no interior dos países desenvolvidos,
particularmente no seio da UE (Jackson e
Howe, 2011:591-593, Friedman, 2009: 52,
Adler, 2009: 99).
Assim, o declínio demográfico e as suas
múltiplas implicações negativas vão, a longo
prazo, obrigar a Europa a concentrar-se mais
em agendas endógenas do que com
assuntos exógenos, principalmente se não
forem de interesse nacional supremo – a
sobrevivência do Estado. Além disso, a curto
prazo, a procura de soluções para conter o
declínio populacional obriga a Europa
Ocidental a colocar a demografia como um
dos assuntos de topo da agenda política
individual e colectiva. Acima de tudo, os
14
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
números do declínio populacional revelam
que a Europa Ocidental está consciente de
que precisa de população para garantir a
vitalidade económica, para assegurar a
sobrevivência de alguns Estados e para
manuter o poder na esfera político-
económica global.
Segundo a Adler (2009: 98), “para
impedir a diminuição de população em
idade de trabalhar, na Europa Ocidental,
seria necessário duplicar ou triplicar o nível
de imigração”. Esta é uma opção exógena
que reflecte, de certa forma, o
reconhecimento da dificuldade em mobilizar
os jovens e os adultos, particularmente do
meio urbano e da classe média, para terem
mais filhos. A causa desta dificuldade reside
no facto de a realidade empírica mostrar
que ter e sustentar filhos, no meio urbano
europeu, representa um custo económico
que muitos não são capazes de suportar
(Friedman, 2009: 54-59), quanto mais não
seja pelo elevado peso que o estado social
está a ter com o boom de reformados que
se regista um pouco por toda a UE1. Por
outro lado, a opção pela imigração é,
igualmente, o reconhecimento de que os
imigrantes podem contribuir para conter, em
primeiro lugar, o problema da escassez de
mão de obra e, em segundo lugar, significa
confirmar a importância do imigrante nas
taxas de natalidade da Europa Ocidental,
principalmente dos árabes e dos
muçulumanos, de África e do Médio Oriente.
Entretanto, na Europa Ocidental,
particularmente na UE, a imigração é um
assunto politicamente controverso. A
controvérsia é exteriorizada pelos debates
políticos, académicos e de senso comum,
na comunicação social e revelam,
claramente, a existência de duas
perspectivas divergentes que expressam o
dilema entre a necessidade e o medo de
imigrantes. Por um lado, estão os liberais, os
defensores do aprofundamento da
diversidade e do multiculturalismo na UE.
Estes são, de certa forma, optimistas em
relação à imigração. Neste grupo conta
significativamente a opinião do sector
económico-empresarial que se ressente da
escassez de mão de obra barata, bem
como de indivíduos e de partidos políticos
que possuem um histórico de imigração. Por
outro lado, estão os conservadores, os
defensores da preservação da identidade
europeia e, por conseguinte, são pessimistas
em relação a imigração. Neste grupo que
ganhou expressão no seio da classe política
e na comunicação social.
Apesar das divergências, os liberais e os
conservadores reconhecem a
inevitabilidade das migrações,
particularmente a inevitabilidade da
imigração para a UE, devido à vários
motivos, dentre os quais os múltiplos efeitos
positivos dos processos da globalização e as
necessidades reais de população. Além
disso, ambas perspectivas não negam e
nem escondem os receios da imigração,
sobretudo, quando se registam fluxos
elevados de imigrantes de origem àrabe e
muçulumana, de África e do Médio Oriente.
Este receio foi anteriormente apresentado
por vários académicos, com destaque para
Samuel Huntington.
Com efeito, em 1996, Huntington disse
que “os ocidentais temem que estão a ser
invadidos, não por exércitos e tanques de
guerra, mas, por imigrantes que falam outras
línguas, adoram outros Deuses, pertencem a
outras culturas e temem que os imigrantes
vão retirar postos de emprego, vão ocupar
suas terras, viver [confortavelmente], na
base do seu sistema de segurança social
[sem ter comtribuido para o efeito] e vão
ameaçar o seu modus vivendi” (Huntington,
1996: 200). Nesta altura, a Europa Ocidental
estava a registar um crescente afluxo de
imigrantes, sobretudo da Europa do Leste,
facto que alimentou o dilema entre a
necessidade e o medo da imigração. Mas,
este problema foi, de certa forma,
minimizado com a adesão de alguns países
da Europa do Leste, do antigo bloco do
Leste, à UE, prevalecendo o problema dos
imigrantes de África e do Médio Oriente.
A mais recente onda de imigração de
África e do Médio Oriente, por via do Mar
Mediterrâneo, para a UE e para a“Zona
Euro”, veio reacender o dilema entre a
necessidade e o medo de imigrantes. Neste
contexto, de Janeiro a Dezembro de 2015
chegaram ao espaço europeu cerca de
906. 587 pessoas provenientes da Síria (51%);
do Afeganistão (20%); do Iraque (7%); da
Eritreia (4%); do Pakistão (2%); da Nigéria
(2%); da Somália (2%); do Sudão (1%); da
Gâmbia (1%) e do Mali (1%). Estes números
poderiam ser mais elevados se não tivessem
havido mortos e desaparecidos, cujas
estimativas chegam a cerca de 3550
(UNHCR, 2015). Esta realidade gerou, na 15
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
opinião pública europeia, uma mistura de
sentimentos de compaixão e de retórica
ambígua, por vezes, agressiva. A título de
exemplo, os liberais expressaram um
sentimento de comoção que foi acentuada
pela ampla difusão de imagens do menino
sírio, Aylan Kurdi, de 3 anos de idade, que
apareceu morto, por afogamento, nas
águas do Mar Mediterrâneo. Em sentido
oposto, os conservadores exprimiram a sua
hostilidade pública com manifestações de
rua mas, foi, sobretudo, a imagem da
camarawoman, húngara, Petra Lázsló, do
canal de televisão N1TV , rasteirando um
imigrante sírio que carregava consigo, no
colo, a sua filha menor de idade, que
revelaram a agressividade contra os
imigrantes. Por um lado, o Vaticano, através
do Papa Francisco, expressou o apelo para
acolher imigrantes. Estados como, por
exemplo, Reino Unido, Portugal, Alemanha e
Áustria aceitaram estabelecer quotas de
acolhimento de imigrantes em função da
robustez económica, do nível de
desemprego e do número de população de
cada estado. Famílias, por exemplo, na
Islándia, precionaram o seu governo a
acolher imigrantes. Por outro lado, países
como, por exemplo, Hungria, França,
Espanha e Itália colocaram reservas ao
sistema de quotas para acolher o afluxo de
imigrantes. Em casos extremos, foi visto uma
mobilização de forças militares, ameaças de
fechar fronteiras, bem como tensões e
violência nas fronteiras da Grécia, da Sérvia
e da Macedónia.
Portanto, na UE está a enfrentar uma
crise migratória que ocupa um lugar de topo
na agenda política e de segurança
individual, dos estados e da Europa
Ocidental. Acima de tudo, o dilema entre a
necessidade e o medo de imgrantes,
principalmente árabe e muçulumano, de
África e do Médio Oriente, tornou, mais do
que nunca, a securitização da imigração um
assunto que vai, a curto e médio prazo,
aparecer com regularidade, na agenda
política da Europa Ocidental.
1. Securitização
Securitização é um conceito introduzido
nos estudos de segurança internacional pela
Escola de Copenhaga, particularmente, por
Ole Weaver, nos anos 1980. Nesta altura, os
estudos de segurança estavam a enfrentar
um debate, sempre actual, entre a visão
restrita e a visão alargada de segurança.
Por um lado, a visão restrita, realista,
assumia a segurança um assunto
eminentemente centrado nas ameaças
militares externas contra os Estados. Neste
contexto, o realismo coloca a defesa da
integridade territorial, da soberania e da
independência contra ameaças militares de
Estados para Estados como o epicentro da
segurança. Nesta abordagem, a guerra é a
principal ameaça e a segurança do Estado
é vista como pré-condição para a
segurança dos indivíduos. Por outro lado, a
visão alargada de segurança, na qual se
enquada a teoria da securitização, defende
a necessidade de inclusão de actores não
estatais e, sobretudo, ameaças não militares
na abordagem de segurança2. Esta
abordagem procura demonstrar que a
protecção de actores não estatais é tão
importante quanto a protecção do Estado.
Além disso, a securitização alerta para o
facto de existirem, de forma crescente e
difusa, ameaças não militares tão potentes
quanto as ameaças militares. Com efeito, na
teoria de securitização, o indivíduo pode ser,
simultaneamente, vitima de ameaças e
fonte de ameaça contra a segurança militar
e não militar (Williams, 2013: 1-12; Collins,
2013: 1-9, Buzan e Hansen, 2009: 8-20). A
título de exemplo, grupos terroristas como o
Estado Islámico e o Boko Haram, doenças
endémicas como HIV/SIDA e Ébola podem
ser ameaças existenciais, não militares reais
e perigosas, para a sobrevivência de
indivíduos e de estados, a curto, médio ou
longo prazo.
Assim, a securitização é um processo
intersubjectivo e socialmente construido,
através do qual um determinado assunto
não militar é reconhecido como uma
ameaça existencial contra um determinado
grupo de indivíduos e ou estados, bem
como contra os seus valores centrais
(Charret, 2009: 13). Este processo consiste,
essencialmente, em convencer a elite
dirigente do Estado e o público em geral
sobre a magnitude de uma determinada
ameaça, principalmente não militar, a ponto
de exigir a tomada de medidas
extraordinárias e urgentes. Este processo é
feito pelo(s) agente(s) securizador(es),
através de uma acção discursiva que passa,
em primeiro lugar, por politizar a ameaça. 16
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Em seguida, a ameaça é gerida dentro dos
padrões normais de funcionamento do topo
dirigente da máquina governativa estatal. E,
por último a ameaça politizada é elevada a
dimensão de segurança, requerendo
acções extraordinárias e urgentes (Emmers,
2013:132-134). Isto significa que a ameaça é
percebida como algo real e existencial, pois,
de contrário, a ameaça não é matéria de
debate público frequente e, por
conseguinte, não adquire sensibilidade para
requer medidas, nem urgentes, nem
extraordinárias.
Portanto, a securitização constitui,
simultaneamente, um mecanismo e uma
condição importante para o agente
securitizador colocar certas pessoas, certos
assuntos ou entidades não militares na
categoria de ameaça existencial. Neste
contexto, a teoria de securitização salienta o
papel preponderante dos agentes
securizadores, sobretudo as elites e o poder
do acto discursivo para colocar a ameaça
não militar como uma ameaça existencial.
Isto é de tal forma importante em
sociedades democratas, abertas, pois se a
magnitude da ameaça não fôr percebida
como existencial, os cidadãos não vão
consentir sacrifícios que legitimem a
securitização, nem, tão pouco, a tomada de
medidas extraordinárias e urgetes para se
fazer face à ameaça (Emmers, 2013). Por
outras palavras, a securitização salienta o
poder da linguagem de segurança para
justificar medidas extraordinarias e urgentes,
pois psicologicamente qualquer indivíduo ou
comunidade está disposto a consentir
sacrifícios para fazer face a uma ameaça
que ponha em causa a sua existência/
sobrevivência como pessoa ou como
comunidade.
1.1. Securitização da Imigração na Europa Ocidental
Na Europa Ocidental, a imigração é um
assunto permanentemente politizado e
securitizado como uma necessidade e como
uma ameaça não-militar. Neste contexto, a
politização da imigração ocupa um lugar
destacado no topo da agenda política.
Prova disso é que a questão da imigração é,
inevitavelmente, um assunto de disputas
eleitorais.
A título de exemplo, partidos de extrema
direita estão a granhar um espaço
privilegiado na vida política de alguns países
da Europa Ocidental. Este espaço
privilegiado tem a ver com posicionamentos
públicos, nacionalistas, por exemplo, em
relação a oposição a imigração. Os casos
mais salientes encontram-se “na Alemanha,
onde o Partido Republicano obteve 7% de
votos nas eleições europeias de 1989 e 2%
nas eleições nacionais de 1990. Na França,
onde a Frente Nacional que foi
negligenciada, em 1981, subiu a sua
percentagem de votos para 9.6% em 1988 e,
a partir dai, estabilizou-se nos 12% a 15% nas
eleições regionais e nas eleições
parlamentares. Em 1995, dois candidatos
nacionalistas obtiveram 19.9% de votos e a
Frente Nacional elegeu Presidentes para
algumas Câmaras Municipais, incluindo
Toulon e Nice3. Na Itália, os votos para o MSI/
National Alliance subiram de cerca de 5%,
em 1980, para 10% a 15%, nos princípios da
década de 1990. Na Bélgica, o Bloco
Flamingo/ Frente Nacional cresceu para 9%
nas eleições locais. Em Antuérpia, o bloco
obteve 28% de votos4. Na Austria, nas
eleições gerais, os votos para o Partido da
Liberdade subiram de menos de 1%, em
1986, para 15%, em 1990 e cerca de 23% em
1994” (Huntington, 1996: 201).
Ademais, países europeus estão a criar
estruturas políticas domésticas e supra-
nacionais, para lidar com a questão de
imigração, de refugiados e de requerentes
de asílo. Este acto revela o nível de
importância política que é conferida a
imigração. Com efeito, no Reino Unido existiu
um Minister Of State (Minister for Immigra-
tion); no Luxenburgo existe um Ministry of For-
eign and European Affairs and Ministry of Im-
migration and Asylum; e na Dinamarca existe
Ministry of Immigration, Integration and Hous-
ing5. No âmbito da integração Europeia, foi
criada a European Agency for Management
of Operational Cooperation at External Bor-
ders of the Members States of European Un-
ion (FRONTEX) e a European Asylum Support
Office (EASO) para lidar com a protecção
do espaço Shengan contra todos tipos de
ameaças, inclusive migratórias. Por último, os
Estados da UE reunem-se regularmente ao
nível ministerial bilateral e multilateral,
inclusive ao nível de cimeira de chefes de
estado e de governo, para discutir o assunto
de imigração. A cimeira de Valletta, de 11-
12 de Novembro de 2015, em Malta, é um 17
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
exemplo. Além deste, existem exemplos de
reuniões bilaterais e multilaterais entre
membros da UE e de África e da UE e do
Médio Oriente cuja imigração é,
regularmente, um dos assuntos de agenda.
Em alguns casos, países da UE como França
e Espanha usaram a cooperação em
matéria de imigração como um
condicionalismo para ajuda pública ao
desenvolvimento.
Em relação a securitização, a imigração
é uma ameaça que está a ser articulada no
debate público político-académico como
uma ameaça existencial de natureza
identitária, económica e política6. Em
resposta, os Estados estão a reforçar os
poderes das entidades nacionais e supra-
nacionais que lidam com o controle
fronteiriço no Espaço Shengan. Além disso,
na cimeira de Malta, a UE aprovou fundos
equivalentes a 1.8 biliões de Euros para lidar
com a imigração africana. Em relação a
imigração proveniente do Médio Oriente,
principalmente da Síria, a UE aprovou um
apoio de cerca de 4 biliões de Euros para
ajudar a Turquia a conter a imigração. A UE
aprovou, igualmente, a intervenção de uma
frota naval multinacional nas águas do Mar
Mediterrâneo para controlar a imigração
ilegal e casos de crime transnacional que
configuram contrabando e/ ou tráfico de
pessoas.
Portanto, a imigração está no topo da
agenda política europeia e está a ser
abordada numa linguagem de segurança.
Isto significa que a Europa Ocidental está
alarmada com a ameaça da imigração.
Este alarmismo sofre oscilações em função
de ondas migratórias que desafiam a
capacidade de resposta individual e
colectiva como a que se regista desde 2014.
Desde esta altura, os níveis de importância
política e de alerta de segurança
reforçaram a percepção de ameaça de
imigração, hoje, mas, sobretudo, com o
peso da ameaça existencial, amanhã, isto é,
a médio e a longo prazo.
2. O Dilema Entre a Necessidade e o Medo da Imigração
2.1. A Necessidade da Imigração
Historicamente, a Europa sempre
precisou de imigrantes. Primeiro foram os
imigrantes, por via da escravatura, que
foram usados nos diversos sectores
económicos para produzir riqueza e para
trabalhos de saneamento do meio. Depois,
os imigrantes foram usados como efectivo
militar que combateu, por exemplo, nas
guerras mundiais. A França é o país europeu
que mais usou soldados africanos nos teatros
de guerra na Europa, cerca de 450.000 na
primeira guerra mundial (Koller, 2014:2). O
cenário repetiu-se na segunda guerra
mundial. Nestas guerras, a Europa sofreu
perdas significativas de população e sentiu,
novamente, necessidade económica de
recorrer a imigrantes. No entanto, o
ambiente de guerra fria não foi
suficientemente favorável ao investimento
na imigração. Neste contexto, a imigração
era demasiadamente selectiva e para
propósitos político e económicos7.
Na actualidade, a redução e o
envelhecimento da população estão a
tornar a imigração uma opção mais
económica, pois a redução de mão de obra
constitui uma ameaça a vitalidade da
economia de países europeus que tem
ambições de liderança mundial. Neste
contexto, a imigração é um assunto de
segurança económica em alguns países da
UE como, por exemplo, a Alemanha e a
França, onde os níveis de fecundidade ou
de filhos por mulher citua-se na faixa de 1 a 2
filhos (Friedman, 2009: 52).
No caso de Portugal, da Grécia e da
Itália, o problema reside no facto de serem
países tradicionalmente emigrantes. A título
de exemplo, em 2014, Portugal registou
cerca de 110 000 pessoas que enveredaram
pela emigração para vários pontos do
mundo8. Esta realidade, associada ao
envelhecimento da população, está a
lançar um sinal de alerta à vitalidade
económica devido a perda de força de
trabalho, de contribuintes para sustentar o
welfare state e de pessoas para garantirem
a sobrevivência de comunidades9.
Em resposta, países da Europa Ocidental
como Alemanha, Finlândia, França e Suécia,
estão a oferecer incentivos financeiros e/ou
redução de custos com cuidados materno-
infantís para as pessoas terem filhos. Esta
opção política responde, em parte, o
reconhecimento do elevado custo
económico de criar filhos nos centros
urbanos e os prejuízos que a maternidade
cria a projecção profissional de muitas 18
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
mulheres.
Contudo, nesta altura, a necessidade de
incentivos a natalidade torna-se mais
reforçada devido a opção pela
homossexualidade que, mesmo sem
estatísticas oficiais, constitui uma população
significativa. Os Estados da Europa
Ocidental, no global, respeitam esta opção
sexual em cumprimento dos seus valores
liberais. Ao mesmo tempo, reconhecem, de
certa forma, que a homossexualidade
constitui uma preocupação populacional,
pois não contribui para o rejuvenescimento
da mão de obra necessária para manter a
identidade; sustentar a vitalidade
económica; garantir a sobrevivência do
estado; e promover a projecção de poder
mundial. Em muitos casos, casais
homossexuais estão a fazer adopção de
crianças no estrangeiro, o que revela uma
forma de imigração que tem canais formais
rígidos e circuitos ilegais, que configuram
crime organizado transnacional10.
Assim, a Europa Ocidental precisa de
população. Neste momento, a Europa
Ocidental está igualmente a responder esta
necessidade de população com imigração
selectiva. Os exemplos expressivos desta
selectividade encontram-se nas áreas de
desporto e de ciência que servem para
manter o prestígio mundial e a vitalidade
económica.
Nestes casos, no futebol, no atletismo,
nas ciências aplicadas, imigrantes são
naturalizados e recebem nacionalidade em
tempo recorde para representar seleções
nacionais europeias ou fazer parte de
equipas de pesquisa e desenvolvimento.
Estes imigrantes estão sujeitos a políticas
bastante nacionalistas em matéria de
nacionalidade de tal forma que todos filhos
de imigrantes, independentemente do local
de nascimento ou origem dos projenitores,
passam a ser cidadãos do país de
acolhimento.
Portanto, a Europa Ocidental precisa de
população e de imigração por uma questão
de sobrevivência a longo prazo. Além disso,
a Europa Ocidental precisa de população
imigrante por causa da segurança
económica que se traduz, essencialmente,
na manutenção ou crescimento da
vitalidade da economia a curto, médio e
longo prazo.
2.2. Medo da Imigração
A imigração é retratada como um mal,
com efeito desestabilizador na ordem
pública e na segurança dos estados da
Europa Ocidental, a longo prazo. Neste
contexto, a Europa Ocidental não esconde
o medo da ameaça demográfica que a
imigração, sobretudo árabe, muçulumana,
de África e do Médio Oriente representam
para a segurança.
Com efeito, a Europa Ocidental teme
que a imigração possa representar uma
ameação não militar contra a segurança
societal, contra a segurança económica e
contra a segurança política. Por outras
palavras, estão em jogo considerações de
natureza identitária, pois a Europa Ocidental
teme que a imigração possa constituir factor
cultural, religioso e racial de arabização, de
islamização e de “africanização”. Além
disso, estão em jogo considerações
económicas, principalmente o desemprego
dos “donos da terra” e, acima de tudo,
considerações políticas sobre o controle do
poder a longo prazo.
2.2.1. Medo Identitário
O medo identitário tem uma expressão
significativa na percepção segundo a qual
os árabes e muçulumanos de África e do
Médio Oriente são tendencialmente
propensos a fazer muitos filhos. Esta
realidade é sustentada por dados
estatísticos que indicam que a “a
população muçulumana da Europa
Ocidental conta com 15 a 18 milhões de
indivíduos. As maiores percentagens de
muçulumanos, entre 6% a 8%, encontram-se
em França (5 milhões) e nos países Baixos
(cerca de 1 milhão), seguidos pelos países
com percentagens entre 4% a 6 %:
Alemanha (3.5 milhões), Dinamarca
(300000), Áustria (500000) e Suiça (350000). O
Reino Unido e a Itália também têm
populações muçulumanas relativamente
importantes (1.8 milhões e 1 milhão,
respectivamente), mas numa proporção
menor relativamente ao total (3% e 1.7%). Se
os esquemas de imigração actuais
perdurarem e se a taxa de fecundidade
superior à média dos residentes
muçulumanos se confirmar, a Europa
Ocidental poderá contar com 25 a 30
19
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
milhões de muçulumanos em 2025” (Adler,
2009:105). Nestes termos, a entrada da
Turquia na UE é vista como um factor de
expansão do islamismo e, por conseguinte,
uma ameaça para a Europa Ocidental.
Com efeito, o crescimento numérico
indica que, a longo prazo, ninguém pode
ignorar a possibilidade de em alguns países,
as maiorias (os “donos” da terra) tornarem-se
minoria. Neste caso, os descendentes de
imigrantes, ainda que possuidores de
nacionalidade do país de acolhimento
podem estabelecer vínculos identitários com
os locais de proveniência, principalmente os
árabes e muçulumanos. Estes grupos
identitários são conhecidos por serem
conservadores na preservação e na
expansão dos seus valores culturais e
religiosos. Por seu turno, os europeus são,
globalmente, liberais na sua filosofia de vida,
mas também apresentam sinais claros de
conservadorismo na preservação dos seus
valores culturais e religiosos.
Em consequência, as comunidades
imigrantes árabes e muçulumanas
enfrentam problemas de integração e
afirmação social, na Europa Ocidental. Na
maioria dos casos, registam-se comunidades
que não aderem e nem promovem a
miscegenação e sofrem de exclusão social,
pois a sociedade europeia assume uma
postura defensiva. Por conseguinte, os
imigrantes vivem em “comunidades a
parte”. O exemplo mais expressivo desta
realidade são os turcos, na Alemanha. Neste
país, os alemães frequentam discotecas
turcas, mas não convivem profundamente
nas comunidades turcas. A nível político é
possível ver alemães que atingiram posições
políticas de relevo, mas não se sentem
profundamente integrados. Os argelinos e os
senegaleses, na França, são, igualmente,
exemplos deste problema. Entretanto, a
França é um exemplo de miscegenação
que, por vezes, é difícil de digerir. Os cabo-
verdianos, em Portugal, são uma
comunidade imigrante significativa, alguns
são descendentes de mais do que uma
geração que, apesar de esforços políticos,
reclamam da qualidade de integração
social. Em consequência vivem no mundo “a
parte”. Os países nórdicos é mais facil
visualizar abertura política, mas é muito difícil
sentir a miscegenação ou a integração. Prva
disso, é difícil ver comunidades
numericamente significativas de negros,
árabes e muçulumanos a assumirem
posições de direcção no topo de empresas
estratégicas ou universidades. Portugal só
em 2015 teve a primeira mulher negra, de
descendência africana, a assumir posição
de ministra. Esta postura defensiva
representa o medo de que a minoria árabe
e muçulumana de África e do Médio
oriente, amanha poderá se tornar maioria e
proceder a arabização e a islamização da
Europa.
Em termos de segurança, os europeus
estão permanentemente preocupados e,
ocasionalmente alarmados com os números
de imigrantes. A preocupação revela o nível
de politização, pois ainda é possível
controlar os números pelo lado económico
que serve de inibidor nas opções de
natalidade. Isto faz acreditar que, mesmo os
árabes e muçulumanos de África e do
Médio Oriente, uma vez no espaço urbano
europeu serão moldados pelo contexto
económico caro a terem menos filhos. O
alarmismo tem a ver com o facto de que
nunca se deve subestimar uma ameaça,
principalmente pela incerteza. Neste caso,
os governos europeus que estão a registar
declínios acentuados de população e um
crescimento númerico significativo de
imigração árabe e muçulumana de África e
do Médio Oriente não têm garantias de que
os cidadãos europeus vão adoptar posturas
pró-natalistas para permanecerem sempre
maioria nos seus espaços e assegurarem a
prservação da identidade cultural, religiosa
e racial a curto, médio e longo prazo.
2.2.2. Medo Político
O medo polítco da imigração tem uma
forte componente de controle do poder.
Neste caso, a preocupação de fundo é
quem controla o poder? A maioria ou a
minoria? Qual é a identidade dos que vão
controlar o poder político se a Europa
Ocidental continuar a registar declínio
acentuado de população e não conseguir
controlar a imigração? Este é um medo
irreal, a curto prazo. Este irrealismo pode ser
sustentado pelo facto de Estados Unidos da
América (EUA) serem, assumidamente, um
país de imigracão, mas, nem por isso, o
controle do poder está ameaçado.
Entretanto, no caso da Europa
Ocidental, o cenário é diferente na
20
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
perspectiva de segurança a longo prazo e
não está a ser sub-estimado, pois enfrenta
um declínio populacional real. Acima de
tudo, geograficamente a Europa Ocidental
não apresenta, em termos de segurança a
mesma protecção natural que os EUA
dispões através do Ocenao Atlântico. Isto
equivale a dizer que a Eurpa Ocidental está
localizado num ponto com relativas
facilidades de acesso dos imigrantes de
África e do Médio Oriente.
Na história política mundial houve casos
de problemas político-eleitorais que
degeneraram em instabilidade por causa do
nacionalismo a volta de certas
candidaturas. Esta preocupação é,
essencialmente, uma tentativa de
salvaguardar o controle do poder contra
potenciais candidatos com origens
estrangeiras ou até agendas de longo prazo.
A Europa monárquica é exemplo destas
lutas pelo controle de poder político com
base na identidade nacionalista. Na história
actual, muitos países da Eurpa Ocidental
temem que uma eventual entrada da
Turquia na UE pode representar uma
ameaça política.
Politicamente, a Europa Ocidental teme
que esteja em curso uma política de
exportação de população. este medo não
é desprovido de fundamento, pois esta
política foi aplicada pelos europeus na
colonização. os russos aplicaram a mesma
política na antiga União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS). Hoje, a Europa
Ocidental não ignora as ameaças que são
proferidas por discursos inflamatórios de
líderes árabes e muçulumanos de grupos
terroristas geograficamente associados ao
Médio Oriente. Hoje, a Europa Ocidental
não ignora, igualmente, o facto de estar a
ser um espaço democrático onde,
paradoxalmente, estão a crescer números
de cidadão adolescentes e jovens que
expressarem simpatias por discursos radicais
e desencadeam acções operativas
terroristas.
Com efeito, em termos numéricos, os
países da Europa Ocidental temem que a
arabização e a islamização por via da
imigração constitua um mecanismo de
controle político. Isto significa que grupos
terroristas podem ameaçar ou usar o terror
para controlar politicamente o
comportamento de alguns estados
europeus. Neste caso, a Europa Ocidental
tem fundamentos para estar alarmada com
a imigração, pois os casos cotemporâneos
de ataques terroristas que ocorreram no seu
espaço tiveram directa ou indirectamente
um involvimento de imigrantes, por exemplo,
marroquinos. Na Espanha são reportados, de
forma regular, casos de detenção de
suspeitos de pertencerem a grupos
terroristas. Os ataques terroristas que
aconteceram a 11.de Março de 2004 em
Madrid, a 07 de Julho de 2005, em Londres e
a 13 de Novembro de 2015, em Paris,
também teveram a participação de
imigrantes e até de nacionais que fazem
parte de células terroristas, nomeadamente
Al Qaida e Estado Islámico.
O medo da imigração é justificado, pois
as estatístcas da UNHCR (2015) indicam 61%
homens, 23% são crianças e 15% mulheres.
Este número significativo de imigrantes
homens que, geralmente, tem dificuldades
de integração vivem num “mundo a parte”,
sentem a exclusão e tornam-se vulneráveis a
descontentamentos. Em casos extremos, os
descontentamentos foram expressos
violentamente, como aconteceu com
descendentes de argelinos nos subúrbios de
França, em 2005. Em Portugal, os
descendentes de cabo-verdianos, por
exemplo, são conheidos pelo problema de
criminalidade.
Conclusão
A necessidade e o medo de imigração
representa um dilema de curto, médio e
longo prazo na Europa Ocidental. Este
dilema ganhou um estatuto político e de
segurança que vai colocar em
permanentemente desafio a capacidade
da Europa Ocidental promover imigração
para respeitar os valores liberais e de
multiculturalismo, mas sem colocar em risco
a sobrevivência individual e colectiva. Hoje,
esta realidade está profundamente ligada a
associação que está a ser feita entre o islão
e o terrorismo.
Notas e Referências Bibliográficas 1 Segundo a European Commission (2014: 2), as
projecções indicam que a proporção de pessoas jovens
(0-14 anos), na UE e na zona Euro vai permanecer, de
certa forma, constante, até 2060, enquanto as proporção
de pessoas com idades entre os 14 e 64 anos de idade vai
ser substancialmente pequena, diminuindo de 66% para
57%. A percentagem de pessoas de 65 anos ou mais vai
21
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
subir de 18% para 28%. A percentagem de pessoas com
mais de 80 anos de idade vai, igualmente, subir de 5%
para 12% tornando-se quase igual ao número de
população jovem. 2 Esta forma de ver as ameaças tem a ver com a
abordagem sectorializada de segurança, que foi
introduzida pela Escola de Copenhaga. Segundo esta
escola, a segurança pode ser vista na dimensão militar,
política, económica, societal e ambiental. As ameaças
podem ser militares, políticas, económicas, sociais e
ambientais 3 Estas duas cidades tem uma importância política, militar
e económica na França. Por um lado, estas duas cidades
representam uma percentagem significativa das mais
povoadas da França. Toulon alberba um porto mlitar e
Nice é conhecido por estar perto do principado de
Mónaco e pelo seu valor turistico. 4 Antuérpia é, politicamente, considerada a segunda
maior cidade da Bélgica e economicamente bastante
significativa pela sua associação aos diamantes. 5 Internamente, os estados da UE avançaram
significativamente na criação de instituições académicas
e pesquisas exclusivamente dedicadas a estudar a
imigração. A Alemanha é um exemplo significativo do
quanto a (i)migração é um objecto de estudo
permanente, pois representa um dos principais países de
topo na lista de destinos de preferência dos imigrantes
provenientes do Médio Oriente, particularmente da
Turquia. 6 A Europa é o o continente que apresenta um elevado
número de instituições Think-tank, de pesquisa ligada a
imigração. Alemnaha é um dos países que se destacam
na exitência deste tipo de instituições de carácter
governamental e não governamental. 7 Em termos políticos, a imigração servia para efeitos de
propaganda e, em termos económicos, era usada para
mão de obra no processo de industrialização que estava
a crescer a um rítmo acelerado na Europa. 8 Alexandra Campos, in “Jornal Público” de 28.10.15. 9 Em Portugal o caso é mais grave, pois há evidências
Escolas estão a fechar devido a falta ou ao número
bastente reduzido de crianças para estudar. Além disso,
há aldeias que estão a ficar despovoadas 10 No entanto, a adopção está longe de ser um
mecanismo robusto para satisfazer as necessidades
populacionais, económicas, identitárias e políticas.
Adler, Alexander (2009), O Novo Relatório da CIA:
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22
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Reflexões Sobre Migrações Internacionais: Causas e Objectivos
Um Olhar Comparativo Entre a Europa e África Austral
Jossias Filipe
Pesquisador do CEEI/ISRI
Departamento de Economia e Desenvolvimento
N uma altura em que parecia estar
tudo ditto e tudo sabido sobre o
fenómeno migração, somos
confrontados com,
aparentemente, uma nova situação
calamitosa deste fenómeno que nos obriga
a parar e pensar se, de facto, sabe-se o
suficiente sobre ele, suas causas e
objectives. Num passado recente, parecia
que tal, nas condições em que era visto e
analisado por diferentes especialistas, era
uma coisa dos pobres e dos países pobres,
uma vez que a ênfase era sempre dada
para o movimento campo-cidade ou
transfronteiriço motivado pela procura de
melhores condições de vida.
Hoje, observando, sem esforço, ao que
se passa no mundo, voltamos ao princípio e
verificamos que, afinal, ainda há muito por
dizer sobre este fenómeno. O que é difícil é
saber o que dizer, que não sido já dito por
outros. Porquê, para quem e para quê dizer
o que ainda é possível e necessário dizer
sobre as migrações.
“Água mole em pedra dura, tanto bate
até que fura” é um ditado popular que
acreditamos que, nalgum momento produz
efeitos visíveis. Existem vários lugares, no
mundo, onde pedras de tamanhos e
formatos bizarros comprovam o velho
ditado. Esse facto, coloca-nos o desafio de
acreditar ou não, na possibilidade de os
politicos, governantes e gestores da coisa
pública, começarem a equacionarem e
considerarem a possibilidade da eliminação
das causas e factores que põem milhões em
movimento sem temer nem medir os perigos
que esse movimento acarreta.
Dizia, no começo deste artigo, que tudo
ou quase tudo, sobre as migrações, já tinha
sido dito. As causas, os tipos e os objectivos
das migrações, quase toda a gente
conhece. Vamos ser, por isso, repetitivos,
superficiais e incômodos para todos aqueles
que muito dominam esta matéria, mas
achamos por bem trazer, de novo o assunto
para experimentar uma análise comparativa
do que está a acontecer na Europa, com o
que tem estado a acontecer na África
Austral.
A Europa vive, hoje, um pesadelo. Está
confrontada com aquilo que, normalmente,
lia nos jornais e via nas televisões como
sendo algo normal e característico dos país
pobres de África, Ásia e América Latina,
onde, produto da incompetência e
corrupção dos governantes daquelas áreas
geográficas, as populacões, empobrecidas
e ameaçadas de morte pelas convulções
políticas e guerras, punham-se em
movimento à procura de segurança e
melhores condições de vida noutras
paragens.
Verdade ou não, o facto é que a
Europa é, hoje, uma dessas paragens que,
com dificuldades e desafios que custam,
nalgumas vezes, a própria vida, se procura
alcançar e, dezenas de milhares de pobres
já lá estão, ameaçando o sossego, a
tranquilidade e o bem estar daqueles que
viam ou ouviam falar do fenómeno como
sendo coisa dos outros e de muito longe.
Desse longe, já lá vai o tempo em que as
pessoas pensavam que o mundo terminava
onde a sua vista conseguia alcançar, no
horizonte.
Hoje, o horizonte das pessoas e do
migrante, em especial, não é, somente, o
que a sua vista consegue alcançar. As
pessoas sabem que por detrás do que se
consegue ver, no horizonte, existe vida e
melhor do que a que elas vivem, no seu
habitat. O seu sonho de melhorar as suas
condições de vida, já não é a cidade
23
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
capital da sua provincia ou do seu país, é
onde a televisão, as conversas de amigos e
as informações de jornais e revistas dizem
haver uma vida diferente e melhor.
No mundo globalizado em que vivemos,
o cinema e a televisão colocaram o mundo
ao alcance de todos. Permitimo-nos
exagerar no dizer que, as pessoas vivem,
hoje, num mundo sem fronteiras, onde o luxo
e a miséria são mostrados sem limitações,
onde as informações chegam a todos e
estimulam consumos, geram sonhos e criam
expectativas de uma vida melhor, em muita
gente. Associando tudo isto às causas reais
de uma boa parte das migrações
conhecidas, não resta outra alternativa a
uma boa parte dos migrantes, senão partir
para algures.
É lugar comum que, a natureza
humana, no geral, indica que o homem
tenta sempre procurar soluções dos seus
problemas, onde a sua cabeça indicar ser
possível encontrá-las, mesmo sabendo que
outros têm saido desses sítios à procura de
soluções dos seus, noutros lugares. É assim
que se justificam as ondas de imigrantes
desesperados do Médio Oriente e do norte
de África que pressionam os países do sul da
Europa, nomeadamente, Espanha, Itália e
Grécia, para que os deixem passar para o
centro e norte da Europa, onde pensam que
as condições sejam as melhores.
A Organização Internacional para as
Migrações1 indica que, de Janeiro a Agosto
de 2015, mais de 350 mil estrangeiros ilegais
foram detectados nas fronteiras da UE,
ultrapassando os 280.000 detectados em
2014. São contabilizadas em centenas de
milhares os migrantes que procuram a União
Europeia nos últimos anos2, numa tentativa
de busca de segurança e melhores
condições de vida. Enquanto isso, dos países
da União Europeia e por motivos similares
(busca de melhores condições de vida
noutros sítios), várias dezenas de milhares de
europeus deixam os seus países,
anualmente. O caso português3 é ilucidativo,
para se perceber a dimensão do fenómeno
e das causas prováveis.
Actualmente, os conflitos na Síria, no
Iraque e no Afeganistão, e a violência na
Eritreia, depois da instabilidade provocada
pela primavera Árabe, nos países do norte
de África, são dados como sendo os
principais motores da migração para a
Europa que tem transformado o Mar
Mediterrâneo numa auténtica vala comum4.
Os que temem o Mediterrâneo, arriscam e
tentam a perigosa rota dos Balcãs
Ocidentais, através da Bulgária, Roménia e
Hungria, na esperança de chegar a
Alemanha e outros países do Norte da União
Europeia. Desses movimentos, os dados da
OIM indica que, um total de 350 mil
migrantes chegou, este ano, nas fronteiras
da UE, dos quais, mais de 230 mil chegaram
pela Grécia, quase 115 mil pela Itália e
cerca de 2.100 pela Espanha. Dissemos tudo
isto para tentar recordar que, as migrações
do passado(do século XVI, até pelo menos
as primeiras décadas do século XX), eram,
essencialmente, no sentido Europa para
outras regiões do globo.
Hoje, com a transformação do mundo
numa aldeia global, os maiores fluxos
migratórios ocorrem no sentido inverso.
A pobreza e as guerras, tal como o dissemos,
são os principais motivos desses movimentos
migratórios. O mesmo acontece na África
Austral onde a história está repleta de
exemplos de movimentos ascendentes, a
partir da África do Sul, mas que, nos últimos
tempos, o movimento é descendente e de
grandes quantidades de pessoas que
procuram, aparentemente, melhorar sa suas
condições de vida e um bem estar, naquele
país. É lugar comum que, os factores que
propulsionam a dinâmica migratória, na
região, incluem as guerras que fustigaram
quase todos os países, até há bem pouco
tempo, as desigualdades socioeconômicas
que se vivem em cada um e entre os países
e o desemprego estrutural e conjuntural que
cresce em todos os países da região, como
um todo.
Ocorre-nos recordar que, quando, em
1994, o apartheid foi abolido na África do Sul
e os bantustões5 reintegrados na unidade
territorial sul-africana, o país parecia ressurgir
como o paraíso ou a terra prometida, onde
a paz e o bem estar seriam proporcionados
para todos. Mas, as desigualdades criadas
pelo apartheid foram tão abismais de tal
forma que, segundo análises e dados
divulgados, na ocasião, seriam necessárias
várias décadas de esforço titânico para
aproximar uns dos outros, em termos de
direitos para se conseguir introduzir níveis de
paridade nos sistemas de saúde, educação,
habitação e pensões para toda a
sociedade multirracial sul africana6.
Consciente desta realidade e do desafio 24
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
que isso representava, o governo de Nelson
Mandela decidiu e anunciou, publicamente,
que a prioridade do governo, nos anos
seguintes, seria dada à reconstrução da
sociedade sul-africana, com vista a poder
enfrentar a pesada herança do apartheid.
Para isso, um programa7 de reconstrução e
desenvolvimento seria posto em marcha. Foi
uma decisão que animou os sul africanos,
pondo-os a olhar o futuro com esperança,
ao mesmo tempo que os africanos de quase
todo o continente, olhavam para a África
do Sul como o El Dourado. A partir daí, todos
os caminhos iam dar à África do Sul.
Nos países da região, eram muitas e
dinámicas as transformações que se
sucediam, permitindo e abrindo caminho
para que uma grande avalanche de gente
fosse dar à África do Sul. Só a título de
exemplo, no Zimbabwe, onde a
independência, tinha deixado ficar para
trás, por força dos acordos de Lencaster
House, a questão da redistribuição da terra,
um dos grandes objectivos da luta de
libertação Nacional e pilar principal da
independência do território, cumprida que
tinha sido, em dobro, a clausula de
Lencaster House que proibia ao governo do
Zimbambwe de mexer com as questões de
propriedade da terra, Mugabe introduziu, à
força, o Fast Track Land Reform Programe
(reforma agrária), em Julho de 2000.
Como consequência imediata, uma
grande quantidade de farmas abandonou o
processo produtivo, levando a que, cerca
de 90% das terras da agricultura comercial,
que faziam do Zimbabwe o celeiro de África,
fossem expropriadas dos seus antigos donos
(brancos) e redistribuidos pelos novos donos
(negros). Os farmeiros brancos agastaram-se
com a posição e determinação do governo
e tentaram desacatar as ordens. Tal facto
enfureceu os nativos que instalaram uma
onda de violência que transformou os
campos de produção em campos de
batalha de tal ferocidade que, nalguns
casos, ultrapassou a dos anos da Guerra de
libertação. A partir daquele momento, o
Zimbabwe passou a viver momentos
dramáticos na sua história económica.
As farmas deixaram de produzir, os
bancos fecharam as portas ao
financiamento da agricultura e, por
arrastamento, a indústria e o comércio,
também, foram, grandemente afectados,
atirando, em muito pouco tempo, mais de
80% da populção activa, para o
desemprego. Agregando esta realidade à
decição de 1998, de colocar o exército a
intervir na operação RDC em apoio a
Joseph Kabila, a situação económica do
país colapsou.
A fome e a pobreza agravaram-se e no
horizonte da maioria dos zimbabweanos
apareceram dois caminhos. 1.O que levava
para o exterior, apontando a África do Sul
como principal destino, para além de
Moçambique e Botswana (foram para a
África do Sul milhões de zimbabweanos). 2. E
o que indicava os grandes centros urbanos
do país, numa migração campo-cidade,
onde o comércio informal permitia alguma
sobrevivência. Milhares de camponeses
invadiram os centros urbanos do país à
procura de melhores condições de vida.
Os arredores das grandes cidades
encheram-se de gente que, não tendo
nenhumas condições para suportar a vida
da cidade, ergueu autênticos e enormes
bairros de lata e cartão, num processo
acelerado de ruralização das cidades. O
primeiro caminho produziu, em muito pouco
tempo, a maior comunidade de imigrantes
na África do Sul, enquanto o segundo levou,
uma multidão de desempregados a
deambular pelas grandes cidades,
desenvolvendo pequenos e grandes
negócios informais no interior e nas
proximidades dos centros urbanos.
Em 2002, a União Europeia contestou a
transparência e o resultado das eleições
realizadas em Março e vencidas pelo ZANU-
PF e Robert Mugabe. Como consequência
agregada à condenação pública da
reforma agrária e da forma como esta
estava sendo materializada, decidiu aplicar
pesadas sansões contra o Zimbabwe,
considerando intolerável a violação dos
direitos humanos praticada pelo regime de
Robert Mugabe. No essencial, o objectivo
era enfraquecer o governo do presidente
Mugabe até levá-lo à resignação, para dar
lugar à oposição que era, aliás, seu alido,
inclusive, na contestação dos resultados
eleitorais. Mas as sanções não atingiram só o
governo. O país e o povo inteiro ficou
empobrecido. Mugabe não cedeu e, em
2005, o governo do Zimbabwe desencadeou
a chamada Operação Murambatsvina.
A interpretação que é dada pelos
falantes do Shona indica que se tratava da
operação limpeza, sendo, no essencial, 25
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
uma acção de retirada compulsiva das
cidades, dos populares que tinham
ocupado as ruas para desenvolverem o seu
negócio, e dos recém-construidos bairros de
lata e cartão, onde moravam, obrigando-os
a regressarem para as suas zonas de origem.
A violência com que foi conduzida esta
operação levou a debandada de muitos
zimbabweanos8 que se viram obrigados a
deixar as cidades, de volta para a sua
pobreza no campo, ou, para os corajosos e
capazes, para o caminho da emigração.
Mais uma vez, a África do Sul surgiu como
primeiro destino e, centenas de milhares de
zimbabweanos foram para lá parar.
Observadores atentos consideram que, com
a violência da reforma agrária, com a
imposição das sansões pelo Ocidente e com
a operação murambatsvina, veio o
desinvestimento e a fuga de capitais. A
situação económica do país que, na época,
já estava mal, agravou-se
consideravelmente.
A moeda zimbabweana que nascera
forte, em 1980, mergulhou num precipício de
desvalorização de que não se conhece, no
mundo, um termo de comparação9. Produto
disso, os que pareciam ser menos pobres,
viram a pobreza aproximar-se deles sem
nada poderem fazer. Os pobres, esses viam
a morte a aproximar-se lenta mas
decididamente para os tomar. São estes
ameaçados de morte que, tentando
sobreviver, emigraram para África do Sul,
Botswana e Moçambique. Para eles, o que
contava era o viver um dia de cada vez, o
que passava por não escolher o trabalho
que lhes podesse dar esse pedaço de pão.
Para eles qualquer trabalho era trabalho
incluindo o vender o que em condições
normais, não se devia vender.
Quando, em 2007, a bolha do Lemman
Brothers rebenta, nos EUA, os seus efeitos
foram sentidos em todo o mundo. Na África
do Sul a grande maioria das empresas sentiu
os efeitos da crise financeira que se instalou
e uma das medidas adoptadas para
atenuar a situação, foi o despedimento dos
trabalhdores. Muitos sul africanos foram para
o desemprego. Na época, uma avalanche
de imigrantes zimbabweanos deambulava
pelo país, procurando trabalho como quem
procura um pedaço de pão em lata de lixo.
Foi a salvação de muitas empresas que,
praticamente, obtiveram, em substituição
dos despedidos, uma mão de obra, quase
gratis. Aqui se estabeleceram e tentaram
sobreviver. Sãos estes pobres que foram
atacados, violentados e mortos por outros
pobres, acusados de roubar os seus
empregos em 2008. São estes necessitados
que, em 2015, o rei dos ZULU, Goodwill
Zwelithini acusou-os de surripiar as
oprtunidades dos filhos da terra, facto que
provocou a onda dos ataques xenófobos
que foram reportados na África do Sul em
Abril e condenados pelo mundo.
O que queremos deixar claro é que, as
nossas constatações indicam que, numa
situação ou noutra, de toda a África Austral
para África do Sul, ou do norte de África ou
Médio Oriente para a Europa, as motivações
e objetivos das migrações são as mesmas, e
parece-nos, também, que as soluções estão
nas mesmas mãos.
A pobreza não acabará enquanto as
guerras forem negócio de milhões para uns.
Como é de domínio de todos, a guerra
produz morte e as pessoas, no geral, têm
medo de morrer. Fugir da guerra significa
procurar refúgio e segurança. Significa
mudar de lugar. Significa migrar. Aquilo que
já se sabe é que o melhor sítio para se
esconder da guerra é o local onde ela é
preparada e de onde ela é levada a cabo.
Fugir da pobreza significa procurar melhores
condições de vida em outro lugar. Significa
migrar. Para as dus situações, a Europa e a
África do Sul são esses lugares. Se, para
alguns, a África do Sul já não o é, pelo
menos já o foi e, por essa via, conquistou o
estatuto. Como consequência disso, milhões
de estrangeiros, legais e ilegais, procuram
aquele país como El Dourado. É claro que
concordamos com quem discorde conosco,
porque outras causas e outros objectivos
existem que justificam as migrações para a
Europa e para a África do Sul.
É lugar comum que, no passado
recente, as migrações internacionais foram
motivadas e estimuladas pelas várias crises
políticas e económicas que o mundo viveu e
os especialistas já reportaram. Actualmente,
sabemos todos que, os ricos vão se tornando
cada vez mais ricos e os pobres cada vez
mais pobres. O que os ricos não sabem é
que os pobres já sabem porque é que são e
se mantêm pobres enquanto os ricos se
desenvolvem na riqueza, muitas vezes
subtraída aos pobres.
Não vamos, aqui, discutir as teorias de
distribuição de riqueza. É uma matéria 26
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
complexa para a qual, mesmo tendo uma
opinião, não se terá consensus nos próximos
tempos. Queremos, isso sim, repetir o que
todos sabem, dizendo que, a riqueza não
chega aos mais pobres e estes não
percebem as razões e as regras, se é que
existem, das gritantes desigualdades nas
sociedades em que vivem. Quando ouvem
falar dos níveis e rítimos de crescimento
econômico nos vários estudos que são feitos
e publicados sobre e nos seus países, vêm
sempre miragens de mudanças substanciais
nas suas vidas.
Infelizmente, o tempo passa e o que
muda é o grau da pobreza que sempre
aumenta e atinge um número cada vez
maior. A desnutrição, a falta de acesso à
água potável, à educação adequada, à
saúde, à habitação e as desigualdades no
acesso às oportunidades de emprego ou de
trabalho, são as características visíveis dessa
pobreza que estimula a vontade de emigrar
ou a violência que se vive nos vários países e
que já começa a ultrapassar os níveis do
tolerável. Dizem muitos e parece ser verdade
que os governos parecem não quererem
priorizar a solução do problema da pobreza
extrema que os países enfrentam. Os
politicos perdem muito tempo a
degladearem-se, ao invés de concentrarem
o seu saber, as suas energias e recursos para
o desenvolvimento das pessoas e países.
O neoliberalismo, que se instalou no
mundo, defende, em nome da liberdade do
mercado, da democracia e da propriedade
privada, que os recursos naturais, ainda
disponíveis, sejam de usufruto de muito
poucos, porque, segundo os ditames da
racionalidade e sustentabilidade, eles
devem continuar disponíveis para que os
muito poucos, capazes e não interessados
pelo bem estar de muitos, possam continuar
a controlar a maior parte possível da vida
social com o objectivo de maximizar os seus
benefícios individuais. É que, de acordo com
as ideias e iniciativas neoliberais que
defendem, no âmbito da prossecução e
desenvolvimento de políticas de Mercado
livre, é preciso incentivar o
empreendedorismo privado para permitir o
alargamento da escolha do consumidor,
premiando a responsabilidade pessoal e a
iniciativa empresarial nas actividades
económicas, reduzindo ou eliminando,
consequentemente, a forte intervenção dos
estados e governos, que, na sua maioria, são
considerados incompetentes,
excessivamente burocráticos e parasitários,
que não são capazes de fazer nada bem
feito, mesmo quando bem-intencionados.
Por outro lado, as novas tecnologias,
introduzidas no processo de produção,
contribuem para o aumento do
desemprego estrutural fazendo disparar o
índice da população desocupada, nos
países subdesenvolvidos, onde o índice de
crescimento populacional é elevado, factor
que perpectua os níveis da pobreza e a
quantidade dos pobres. É desta forma que
são produzidos os milhões dos que,
estatística e verdadeiramente, vivem com
menos de um dólar por dia.
Por que não equacionar a cooperação
envolvendo as populações e tendo em
conta as suas necessidades básicas e as
suas diferenças sócio-culturais, a par da
vontade dos governos de combater a
pobreza? Não temos dúvida de que isso
permitiria a participação destas nas
actividades em que, sendo elas a
determinar as suas prioridades e formas de
resolver os seus problemas, sairia toda a
gente a ganhar, incrementar-se-ia o
desenvolvimento e o combate contra a
pobreza poderia mostrar os seus resultados
concretos em pouco tempo, numa
coexistência harmoniosa entre o tradicional
e o moderno. Aliando isso à sua
monetarização, criar-se-iam vários pólos de
desenvolvimento de mercados que fariam
prosperar todas as empresas produtivas e as
de prestação de serviços, nas quais, os
empresários seriam eles próprios, num
processo dinâmico de criação de riqueza,
do melhoramento da qualidade de vida das
pessoas e do desenvolvimento de cada
local.
Ao nível da África Austral, a filosofia da
NEPAD pressupõe isso mesmo e a ideia da
integração regional, também.
Consideramos, por isso, possível viver
tranquilo e harmoniosamente numa
comunidade multiétnica e multirrácica,
fazendo valer o dito segundo o qual, a
África do Sul é uma nação arco iris onde as
cores convivem harmoniosamente ,
proporcionando à natureza um espectáculo
maravilhoso e uma lição de vida que
parece que os humanos se recusam a
aprender. “CORES DIFERENTES, TODAS
JUNTAS, FAZEM DO ARCO IRIS A COISA MAIS
BONITA DA NATUREZA”. Significa que, se as 27
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
pessoas, tolerantemente, conseguissem viver
numa comunidade multiétnica e
multirrácica, a humanidade e o planeta não
teriam os problemas com que se debatem
hoje.
Os politicos têm que crer na
possibilidade e na necessidade do convívio
de todos e querer que as pessoas tenham o
que precisam para viver em paz, uns com os
outros. O desenvolvimento dos meios de
transporte e de comunicação das últimas
décadas facilitou o conhecimento da
realidade mundial que permite o movimento
de pessoas para regiões mais distantes de
suas terras de origem. Na África do Sul, são
várias centenas de milhares de estrangeiros,
idos de várias partes do mundo, que
procuram segurançã e melhores condições
de vida, não obstante a realidade
encontrada esteja, algumas vezes, muito
longe da imaginada. Os ataques xenófobos
que os imigrantes sofreram em Março e Abril
de 2015, nas cidades de Durban e
Joanesburgo, são bem ilustrativos dessa
realdade adversa. Enquanto isso, a invasão
de imigrantes que a Europa está a sofrer,
neste momento, é uma procura de melhores
condições de vida e segurança que as
pessoas não têm nos seus países, por causas
das guerras, levadas a cabo, inclusive, pela
Europa.
O que os migrantes não sabiam é que,
nalgumas vezes, iriam confrontar-se com
manifestações de rejeição em vários países
da Europa como uma realidade para a qual
deverão adaptar-se ou lutar contra. Os
desafios enfrentados pelos imigrantes na
Europa e na África do Sul, são similares.
Exigem que as instituições das Nações
Unidas que se ocupam pelas questões das
migrações estejam muito atentas para
garantir o respeito pelos direito humanos.
Não falei nem vou falar de xenophobia, mas
é uma realidade de que não se deve
ignorer. Vai-se falar dela com muita
frequência nos próximos tempos.
Notas e Referências
1 No seu relatório de 2015. 2 O número de imigrantes que chegaram ilegalmente
ao território europeu diminuiu 49 %, em 2012 em
relação ao ano anterior, tendo o total das chegadas
ficado, pela primeira vez, abaixo dos cem mil desde
2008, refere o relatório “Annual Risk Analysis 2013” da
Frontex, agência das fronteiras externas da União
Europeia. Enquanto em 2011 um total de 141 mil
imigrantes foram detectados a tentar entrar
ilegalmente em território europeu pelas fronteiras da
UE, esse número diminuiu para 72 mil em 2012. 3 Na sequência da crise económica de 2008, a
intervenção da Troika (2011) e a tomada do poder por
um governo de direita (junho de 2011), assistiu-se em
Portugal a uma verdadeira debandada. O novo
governo (PSD/CDS-PP) tratou logo de apelar aos
portugueses para emigrarem. A 31/10/2011, o
secretário de estado do desporto, no Brasil, dirigiu-se
nesse sentido aos jovens portugueses. O primeiro-
ministro, numa entrevista ao jornal Correio da Manhã
(Dezembro) fez esta recomendação a todos os
portugueses. Os números desta debandada são
impressionantes: 2011 emigraram 101 mil; 2012 saíram
121 mil; 2013 partiram 128 mil; 2014 foram 135 mil; Para
2015 espera-se um valor muito superior. 4 Dados divulgados, pela Organização Internacional
para Migração, revelam que 2.373 migrantes e
refugiados morreram nos oito primeiros meses de 2015,
na tentativa de atravessar o Mar Mediterrâneo para
chegar à Europa. Em 2014, do fim de agosto até o fim
de dezembro, mais de 1,2 mil imigrantes morreram no
Mar Mediterrâneo, perfazendo mais de 3,5 mil
migrantes mortos na tentavam chegar a países como a
Itália, Grécia e Espanha pelo Mediterrâneo, segundo a
OIM. O número de mortos registrado no mesmo
período em 2014 foi 2.081. 5 Transkei, Bophuthatswana, Venda, Ciskei, Gazankulu,
KaNgwane, KwaNdebele, KwaZulu, Lebowa e
QwaQwa eram territories, supostamente independents,
onde o regime do apartheid tinha confinado os pretos
em função da sua lingua e cultura. Aos natives e
habitants destes territories, o regime do apartheid
retirara, desde 1971, a cidadania sul Africana. Só em
1994 é que estes cidadãos deixaram de ser estrangeiros
na sua própria terra. 8 Centro de Estudos Internacionais 2/2002: Guerra e
conflitos violentos em África, citando James Barber:
South Africa in the Post-Cold World, p. 20. 7 Reconstruction and Development Programme (RDP). 8 Dados publicados indicam que foram directamente
afectadas por esta violência,cerca de 700 000 pessoas,
e perto de 2 500 000, indirectamente. 9A inflação atingiu os 500000000000% (quinhentos mil
milhões por cento),em 2008.
28
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Introdução
E ste artigo foca as dinâmicas das
transições pós-soviéticas nas
Repúblicas centro-asiáticas,
servindo-se da transitologia como
instrumento analítico. O argumento central
é o de que as cinco Repúblicas centro-
asiáticas foram alvo de um longo processo
de transição, marcado por diferentes ritmos
e desenvolvimentos, desde o colapso da
União Soviética. Tais processos deram
origem a diferentes Estados do ponto de
vista económico, político e social, não
obstante terem como ponto de partida um
legado (soviético) relativamente
homogéneo.
De acordo com Juho Korhonen, “a
transitologia não é uma ferramenta ideal ou
objetiva para analisar a mudança pós-
socialista, mas, ao invés, dela
resultante” (2012: 73). A natureza ideológica
da queda do comunismo na Eurásia criou
um certo espaço cultural, que foi e continua
a ser definido por raízes históricas e
estruturais dialéticas, por um lado, e pela
situação contingente entre os processos
dentro das Ciências Sociais e o espaço
político dos países pós-socialistas, por outro
lado. À luz destas observações, Korhonen
conclui a propósito da transitologia que,
antes de mais, “a sua singularidade não
reside na novidade da queda do
comunismo, (…) mas na sua deslocação
específica a partir dos sistemas de
pensamento predominantes, emulando
uma logica interna contraditória” (2012: 75).
Uma vasta quantidade de artigos científicos
e monografias tem focado “os processos
multifacetados por meio dos quais os
regimes comunistas têm vindo a evoluir
rumo às democracias multipartidárias
(transição política)”, e “a privatização da
esfera económica com o objetivo de
dissolver o modelo de planeamento
centralizado e de criar um setor financeiro
baseado na propriedade privada de
recursos (transição económica)" (Petsinis,
2010: 301).
Em alternativa à observação
participante e não participante, técnicas de
difícil aplicação ao presente objeto de
estudo, recorreu-se à entrevista
semiestruturada. O trabalho de campo
Dinâmicas das Transições Pós-Soviéticas nas Repúblicas Centro-Asiáticas
Paulo Duarte
Especialista em Relações Internacionais
Doutorando na Université Catholique de Louvain
Este artigo foca as dinâmicas das transições pós-soviéticas nas Repúblicas centro-asiáticas, servindo-se da transitologia como instrumento analítico. O argumento central é o de que as cinco Repúblicas centro-asiáticas foram alvo de um longo processo de transição, marcado por diferentes ritmos e desenvolvimentos, desde o colapso da União Soviética. Tais processos deram origem a diferentes Estados do ponto de vista económico, político e social, não obstante terem como ponto de partida um legado (soviético) relativamente homogéneo. Em alternativa à observação participante e não participante, técnicas de difícil aplicação ao presente objeto de estudo, recorreu-se à entrevista semiestruturada. O trabalho de campo baseou-se em entrevistas conduzidas predominantemente na Ásia Central. O método qualitativo – através da análise hermenêutica – é a metodologia na qual se alicerça a presente investigação.
29
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
baseou-se em entrevistas conduzidas
predominantemente na Ásia Central. O
método qualitativo – através da análise
hermenêutica – é a metodologia na qual se
alicerça a presente investigação. A
propósito da entrevista semiestruturada,
Ghiglione refere que “o entrevistador
conhece todos os temas sobre os quais tem
de obter reações por parte do inquirido,
mas a ordem e a forma como os irá
introduzir são deixadas ao seu critério” (2001:
64). Contudo, alguns dos entrevistados na
Ásia Central solicitaram o anonimato ou, em
alguns casos, pediram para serem citados
como especialistas locais. Eles serão
nomeados ao longo da presente
dissertação da seguinte forma: Especialista
I1 e Especialista II2.
Acreditamos que a entrevista
semiestruturada é o método que melhor se
adequa ao problema de pesquisa na
medida em que ela privilegia o
conhecimento local, isto é, o saber baseado
na experiência no terreno, por parte de
indivíduos que residem na área ou áreas
sobre as quais se debruça a presente
investigação. Optou-se por recorrer a
especialistas de organizações não
governamentais que operam no terreno,
bem como a funcionários de Embaixadas
de países terceiros nas Repúblicas centro-
asiáticas, entre outros. Em outros casos, os
entrevistados eram da nacionalidade da
República centro-asiática em questão.
Pensamos assim que esta amálgama de
entrevistados é suscetível de oferecer um
ponto de vista diversificado sobre a
temática a analisar. Além disso, o contraste
entre a entrevista a funcionários de
Embaixadas vs a entrevista a habitantes
locais proporciona, por um lado, um olhar
de terceiros, isto é de pessoas externas à
região, acerca da mesma, juntamente com
um olhar dos próprios centro-asiáticos sobre
a realidade geográfica, cultural,
económica, política e social onde residem.
A conjuntura nas cinco Repúblicas Centro-Asiáticas
O Cazaquistão
No entendimento de Zhanat
Kurmanov3 (2011), “o Cazaquistão é um
Estado-modelo, „líder‟ regional”, que tem
atraído investimento estrangeiro, devido ao
seu “potencial energético e mineral”, por
um lado, mas também, fruto de uma
“política externa pragmática”, por meio da
qual o país tem procurado estabelecer
“uma boa parceria com outros Estados
regionais e externos à região” (como é o
caso dos Estados Unidos). Com experiência
no terreno, Michael Carter4 (2011), ex-diretor
do maior banco de investimento do
Cazaquistão (Visor Capital) sublinha que “o
ambiente de negócios no país é bastante
positivo”, sendo que na região (o
especialista inclui, também, aqui a Rússia) é,
segundo Carter, provavelmente “o melhor”.
Após a independência, em 1991, “o
Cazaquistão foi um dos primeiros e mais
vigorosos reformadores entre as Repúblicas
da antiga União Soviética” (Consultancy
Development Centre, 2012: 3). Com efeito,
nos primeiros anos da transição, o Estado
liberalizou os preços, reduziu as distorções
comerciais, e facilitou a privatização de
pequenas e médias empresas,
estabelecendo condições apelativas para o
investimento estrangeiro no setor mineral e
petrolífero (Kazakhstan Country Brief, 2006).
Segundo Zhanat Kurmanov (2011), um dos
fatores que leva as várias potências a
interessarem-se pelo Cazaquistão (além dos
recursos naturais e energéticos), é o clima
de estabilidade, a médio e longo prazo, que
o país oferece aos investidores.
No entendimento de Richard Pomfret,
“o petróleo desempenhou um papel
fundamental no desenvolvimento
económico e político cazaque”, pese
embora o regime se tenha tornado “mais
autocrático” e o sistema “mais
corrupto” (2010: 9). A reforma económica
estagnou em meados da década de 90,
sendo que, em 1995, os índices de transição
do European Bank for Reconstruction and
Development (EBRD) posicionavam o
Cazaquistão atrás quer do Uzbequistão,
quer do Quirguistão. Embora, como informa
o The Washington Times (1999), a economia
cazaque tivesse contraído
significativamente nos anos que se seguiram
à independência, tal revés não demoveu,
contudo, a atenção dos investidores
externos, pois, já nesse período o Governo
possuía uma das políticas económicas mais
vanguardistas da Comunidade de Estados
Independentes. Nos anos 1996-97, a
economia começou a crescer, apesar de 30
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
ter sido gravemente afetada pela crise russa
de 1998 (Katz e Kasera, 2007). A partir de
1999, a situação económica do país havia
regressado à normalidade.
O Cazaquistão recuperou bem da
recessão económica que afetou o país no
primeiro semestre de 2009 (Asia Report
nº183, 2010). Durante a crise, “o Produto
Interno Bruto cazaque registara uma taxa
de crescimento de apenas 1,2%”, tendo o
país mergulhado na recessão “desde a
queda acentuada dos preços do petróleo e
das matérias-primas” (Banco Mundial, 2013:
para.1). A economia cazaque está entre as
10 economias mundiais que mais rápido têm
crescido, de acordo com o Fundo
Monetário Internacional (World Economic
Outlook, 2012). Segundo Roman Mogilevski5
(2012), “no Cazaquistão, tudo é
extremamente caro”, sendo que “a
qualidade dos produtos e serviços nem
sempre está em conformidade com os seus
preços”, embora este especialista centro-
asiático admita que tal tendência tem
vindo a ser combatida pelo Governo
cazaque, visto que “o país já foi bastante
prejudicado por causa dos altos preços”.
De acordo com Emílio Rui Vilar6
(2011), “o Cazaquistão é o país com as
maiores reservas petrolíferas da Ásia
Central”. Por outro lado, é a República que
detém “as maiores reservas minerais”,
designadamente, “minerais raros”, e,
“devido à sua extensão - desde as costas
do Mar Cáspio até à fronteira com a China -
é um Estado com uma posição estratégica
muito relevante” (Vilar, 2011). Além disso,
como sublinha o autor, até ao presente,
“não tem havido registo de conflitualidade
de origem religiosa”, ao invés do que se tem
verificado em outros países, como é o caso
do Uzbequistão, Quirguistão, ou, mesmo, do
Turquemenistão (Vilar, 2011). Na prática, “o
Cazaquistão tem beneficiado de uma
estabilidade política considerável, que,
todavia, poderá deixar de existir uma vez
que a sucessão do Presidente Nazarbayev
permanece uma grande incógnita” (Vilar,
2011). Não obstante esta estabilidade
política de que fala E. Rui Vilar, um outro
autor, Ariel Cohen, chama a atenção para
o facto de, desde meados dos anos 90, o
Cazaquistão ter vindo a ser “alvo de críticas
por parte do Ocidente”, entre as quais, que
“a liderança do país estaria a fazer regredir
o progresso democrático alcançado nos
primeiros anos de independência” (2008:
38).
No Cazaquistão, “o regime permanece
autocrático e os dissidentes são punidos”,
embora o Presidente Nazarbayev tenha
vindo a ser alvo de “crescentes pressões
para prestar contas sobre si mesmo e sobre
a sua entourage” (Pomfret, 2010: 17). Os
escândalos de corrupção minam o
Governo, especialmente o caso
„Kazakhgate’, relacionado com uma conta
bancária escondida na Suíça, na qual o
Presidente terá depositado mais de um
bilião de dólares em lucros provenientes do
setor petrolífero (Global Witness, 2004). De
acordo com Radio Free Europe/Radio
Liberty, “depois de vários anos de disputas
legais, julgamentos adiados e esforços, por
parte do Presidente Nazarbayev, em
controlar as repercussões políticas destes, o
escândalo multimilionário de corrupção,
„Kazakhgate‟, chegou ao fim (em agosto de
2010)” (2010: para.1).
Meruert Makhmatova7 (2011),
especialista cazaque e diretora do Public
Policy Research Center, em Almaty, refere
que o seu instituto efetuou, em tempos, um
estudo no qual concluiu que “os membros
da sociedade civil no Cazaquistão são, na
sua grande maioria, corruptos”; por outro
lado, “95% dos cazaques acreditam que a
sociedade civil é corrupta”. Estes resultados
surpreenderam a autora pela negativa,
devido às dimensões consideráveis que o
fenómeno adquiriu. Embora os níveis de
corrupção, no Cazaquistão, sejam elevados
(segundo a Transparency International 2012,
o país ocupa a 133ª posição no Corruption
Perceptions Index, cabendo à Somália o
último lugar, isto é, a 174ª posição), “os
lucros provenientes dos recursos petrolíferos,
bem como a própria distribuição destes, faz
com que as pessoas estejam relativamente
satisfeitas com o status quo” (Esengul8,
2012). Contudo, tal pode ser problemático
na medida em que, como sublinha Bohdan
Krawchenko9 (2012),“um monopólio político
tende a conduzir a um monopólio
económico, em que certos grupos
controlam determinados setores da
economia”, o que é extremamente nefasto
“para as metas económicas e para a
criação de empregos”.
A oposição tem sido conduzida por
“poderosas figuras políticas” que
“desertaram do Governo” (muitas vezes, em 31
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
resposta à “centralização do poder na
família do Presidente”) e por “homens de
negócios, que lucraram com as
privatizações dos anos 90”, e pretendem,
agora, “reforçar o „Estado de Direito‟, de
forma a proteger os seus ganhos” (Kusainov,
2003: para.15). Até ao presente, Nazarbayev
tem sido capaz de equilibrar os interesses
das várias fações que competem pelo
controlo de ativos imobiliários e industriais
(The Telegraph, 2011). Os „pesos pesados‟
da indústria e negócios no plano doméstico
cazaque começaram a manifestar
descontentamento face ao declínio da sua
influência, à medida que a Governo de
Nazarbayev reivindicava um maior controlo
económico, ao mesmo tempo que acolhia
o investimento estrangeiro nas indústrias
mais importantes (Wandel e Kozgobarova,
2009).
Segundo Ariel Cohen, “mesmo com a
sua autoridade reforçada, Nazarbayev não
destruiu a vida política do país, ao contrário
do que sucedeu em alguns Estados vizinhos,
tais como o Turquemenistão, ou o
Uzbequistão” (2008: 38). Por outro lado,
Nazarbayev também não permitiu que os
conflitos internos crescessem, ao invés do
que aconteceu no Tajiquistão, “que foi alvo
de uma Guerra Civil (1992-1997), na qual
cerca de 100 000 pessoas perderam a vida,
e, aproximadamente, um milhão de
indivíduos se tornaram refugiados e
deslocados no interior do
país” (Toshmuhammadov, 2004: 12-13).
Acrescente-se, ainda, que nenhuma
revolução derrubou o regime cazaque,
contrariamente ao que ocorreu, por
exemplo, no Quirguistão, em 2005. Para
Michael Carter (2011), Nazarbayev tem
investido numa clara política de autonomia
relativamente às grandes potências
interessadas no Cazaquistão, por meio da
qual o Presidente “procura colher os
maiores benefícios possíveis face aos
diferentes atores”. A este respeito, Carter
(2011) carateriza Nazarbayev, do ponto de
vista geopolítico, como sendo “um dos
líderes mais impressionantes dos últimos 30
anos, na forma como procura alcançar os
seus objetivos”. Não é descabido afirmar
aqui que o fator „personalidade‟ tem
desempenhado um papel preponderante
na transição política, económica e social do
Cazaquistão face à dos outros Estados da
região. Com efeito, a forma como
Nazarbayev tem definido e redefinido os
interesses do país e forjado, no fundo, a
identidade cazaquistaneza é
absolutamente notável. Utilizando a
terminologia de Hollis e Smith (1990), a
personalidade deste líder tem-se sobreposto
ao papel das „burocracias domésticas‟, à
„estrutura‟ do „Estado‟, mas também aos
imperativos da conjuntura regional e/ou
„internacional‟. Por outras palavras,
adotando uma postura „bottom-up’, isto é
de cima para baixo, a variável „indivíduo‟
adquire um peso extraordinário na
conjugação com os restantes „níveis de
análise‟ de Hollis e Smith (1990), como que
se sobrepondo ao „sistema‟ e, de certa
forma, moldando-o em conformidade com
as necesssidades e interesses do próprio
processo de construção do Estado.
A sociedade civil cazaque tem
experienciado um rápido desenvolvimento.
No período de 1995 a 2005, o número de
organizações não governamentais
aumentou de 400 para 5000 (Giffen, Earle e
Buxton, 2005). Embora muitas destas estejam
envolvidas em atividades culturais e
comunitárias, algumas têm vindo a
empenhar-se na promoção do Estado de
Direito, e em iniciativas de democratização,
muitas vezes auxiliadas por financiamento
estrangeiro e por figuras da oposição
cazaque, economicamente poderosas
(Cummings, 2005; Roberts, 2012). Também
no período de 1995 a 2005, se verificaram
mudanças profundas nos mídia cazaques,
havendo mais de 2000 órgãos de
comunicação a publicar no país, auxiliados
por várias forças políticas, incluindo a
oposição radical (Nazarbayev, 2005).
Depois de vários anos de instabilidade e
reformas administrativas, o Cazaquistão
ganhou governabilidade e ordem pública.
O Governo conseguiu realizar uma série de
reformas, revigorando a atividade
empresarial e reavivando muitos setores da
economia (Isaacs, 2010). Por outro lado, no
que respeita à situação dos direitos
humanos no Cazaquistão, Doris Bradbury10
(2011) acredita que, aqui, o balanço não é
tão grave comparativamente aos outros
países da região, embora sublinhe “a falta
de democracia e de verdade nos meios de
comunicação”. Não obstante, Michael
Carter (2011) estima que é mais fácil ser-se
jornalista no Cazaquistão do que “na Rússia,
China, Quirguistão, Uzbequistão, 32
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Turquemenistão, Tajiquistão, Afeganistão ou
Paquistão”.
O Quirguistão
Como refere João Soares11 (2011), “o
Quirguistão - curiosamente, o país mais
pequeno da Ásia Central - é o único que,
apesar dos altos e baixos, e reviravoltas
várias que tem sofrido, tem levado a cabo
um processo de relativa transição
democrática”. Em outubro de 1991, Askar
Akayev foi eleito o primeiro Presidente do
país. Enquanto ex-membro da liderança
soviética, Akayev viria a ser percebido
como “o novo líder mais democrático da
Ásia Central” (Escobar, 2005). Akayev
instituiu eleições multipartidárias e procedeu
a reformas económicas, “prometendo
transformar o país na „Suíça‟ da Ásia
Central” (Olcott, 2005: 41). Com efeito, o
Presidente estabeleceu a democracia
multipartidária e procurou o apoio de várias
organizações intergovernamentais, tais
como o Fundo Monetário Internacional ou o
Banco Mundial (Davis, 2011). Como fora
reconhecido por vários observadores, o
Quirguistão viria a converter-se,
efetivamente, na ´Suíça‟ da Ásia Central e
“Akayev fora saudado como um defensor
de uma atmosfera aberta e liberal” (BBC
News, 2005: para. 3).
Porém, o desenrolar dos
acontecimentos ditaria uma erosão
contínua das normas democráticas. Nas
eleições dos anos seguintes, a OSCE registou
várias irregularidades ao nível da votação,
passando, por exemplo, por tentativas de
suborno de eleitores, fraudes no
apuramento dos resultados, parcialidade
dos meios de comunicação estatais, e
aprisionamento de candidatos da oposição
(OSCE, 2000). As eleições presidenciais de
julho de 2005 ditaram a vitória fácil de
Bakiyev, com mais de 88% dos votos (Sari,
2012). Embora os observadores
internacionais tenham notado melhorias
consideráveis no processo eleitoral,
registaram-se, ainda, várias irregularidades.
Efetivamente, como reconhece Tiago Lopes
“apesar das altas expetativas face ao novo
regime, Bakiyev não só adiou o caminho da
liberalização como, efetivamente,
enveredou pela direção oposta” (2012: 3).
Ao longo da década de 90, o
desenvolvimento de uma sociedade
democrática no Quirguistão processou-se
em relativa sintonia com a democratização
de muitos Estados da Europa Central e de
Leste, na sequência da dissolução da União
Soviética (Engvall, 2011). Ao contrário das
outras Repúblicas centro-asiáticas que
experienciaram um período „pós-totalitário‟,
segundo a classificação de regimes de Linz
e Stepan (1996), o então recém-
independente Quirguistão era conhecido
como uma “ilha de democracia” (Lopes,
2012: 3). O país provou ser, como nota
Johan Engvall, “uma das antigas Repúblicas
soviéticas menos preparadas para se tornar
um Estado independente” (2011: 18). Por
outro lado, para os quirguizes, o colapso da
União Soviética resultou na “independência
que ninguém queria” (Engvall, 2011: 18). O
facto de o então recém-independente
Quirguistão ser, do ponto de vista teórico,
uma entidade política autónoma, possuía,
contudo, pouco significado prático, uma
vez que Moscovo havia controlado as
estruturas políticas e económicas da
República quirguize durante sete décadas
(Eshimkanov et al, 1995). Por conseguinte, o
Presidente Akayev tinha, diante de si, a
difícil tarefa de gerar instituições e políticas
capazes de resistir de forma independente
(Spector, 2004; Husky, 2004).
Segundo Eugene Huskey,
“contrariamente à tendência verificada em
outras Repúblicas centro-asiáticas, o
Presidente Akayev não poderia fazer do
Partido Comunista a base do seu apoio
institucional” (2002: 75). Por outro lado,
“embora os Presidentes Islam Karimov e
Saparmurat Niyazov tivessem herdado as
instituições tradicionais do poder intactas,
Akayev, tal como Boris Yeltsin, foi
confrontado com a necessidade de edificar
uma nova estrutura de autoridade
política” (Huskey, 2002: 75). Apesar de, no
início da governação, Akayev (1994) ter
aparentado possuir uma visão democrática
sincera para o Quirguistão, e de ter
promovido, de forma enérgica, o país
enquanto alternativa democrática na Ásia
Central, os últimos anos da década de 90
foram os do começo do “deslize
autoritário” (Aiyp, 1998: 60-61). Como refere
Chinara Esengul (2012), “Akayev e Bakiyev
priorizaram os seus próprios interesses, não
tendo realizado qualquer esforço para por
termo à corrupção”. 33
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
Enquanto Akayev permaneceu no
poder, era, de certa forma, difícil estimar
até que ponto a família presidencial
influenciava a economia. No entanto, a
situação tornou-se relativamente clara
depois da Revolução das Tulipas, quando
uma comissão reuniu uma lista, primeiro, de
42 empresas e, mais tarde, de 178 empresas
alegadamente propriedade, ou, em parte,
controladas pela família Akayev (Kimmage,
2005). As três maiores fontes de receitas - o
ouro, a hidroeletricidade e o apoio externo -
converteram-se nas principais bases de
corrupção sob Akayev. Num contexto em
que as elites políticas pensavam,
fundamentalmente, nos seus próprios
interesses, “Akayev acabou por não
conseguir inverter esta tendência”, até que,
por fim, se rendeu, também ele, aos seus
objetivos pessoais e familiares (Esengul,
2012). Os fatores políticos domésticos
acabaram por levar a melhor, ao
contribuírem para desviar Akayev do
caminho das reformas democráticas. Com
efeito, a força dos clãs e a corrupção
generalizada, no Quirguistão, foram as
verdadeiras causas que levaram Akayev a
concentrar e consolidar o poder no
Executivo (Fiacconi, 2012).
No entendimento de Chinara Esengul
(2012), “o Quirguistão da atualidade não é,
de todo, gerido com base em políticas
sólidas”. Por outro lado, “qualquer assunto é
politizado, sendo que um aspeto da
politização consiste na divisão entre o Norte
e o Sul”, que serve de instrumento para se
chegar ao poder (Esengul, 2012). Contudo,
a autora acredita que os quirguizes estão
“cansados” de “jogos políticos” e da
“instabilidade” gerada pelo “apetite do
poder”, por parte dos políticos, sendo que,
consequentemente, “a divisão Norte-Sul já
não pode mais ser instrumentalizada”, tendo
perdido o seu vigor nos últimos cinco ou 10
anos (Esengul, 2012). Por outro lado, “o
pensamento político é, atualmente, mais
forte do que há cerca de uma década”, o
que explica, segundo esta especialista, que
as pessoas já não sejam “tão facilmente
persuadidas e/ou manipuladas” (Esengul,
2012).
A Revolução das Tulipas foi,
inicialmente, percebida como um protesto
genuinamente popular contra as más
práticas da família Akayev (Escobar, 2005).
Apesar de Bakiyev ter sido eleito Presidente,
com uma vitória esmagadora, em julho de
2005, o primeiro ano depois da revolução foi
marcado por uma situação em que
nenhum grupo, muito menos um indivíduo,
foi capaz de consolidar o poder político
(Freedom House, 2012). As elites com
experiência em negócios, política, ou com
ligação a redes criminosas, constituíram
várias alianças (Artman, 2013). Não
obstante, houve pouca cooperação entre
elas, e a incapacidade de estas se
neutralizarem entre si era, na prática, fonte
de um certo equilíbrio de poder. De acordo
com Shairbek Juraev, “o impulso que levou
à queda do impopular regime de Askar
Akayev, em 2005, foi, porém, incapaz de
conduzir a uma maior
democratização” (2010: 5). Com efeito, “a
democracia permanece um conceito
alheio à cultura política doméstica
quirguize”; embora existam, atualmente,
“muitas instituições democráticas no
Quirguistão”, estas não se repercutem,
necessariamente, num “reforço dos valores
políticos liberais”; a Revolução das Tulipas
suscitou uma mudança “no governante”,
mas “não no desenvolvimento do
país” (Juraev, 2010: 5).
Depois de dois anos (de 2005 a 2007)
marcados por um equilíbrio delicado,
Bakiyev conseguiu aniquilar a competição e
estabelecer-se enquanto número um.
Bakiyev instituiu, contudo, uma cleptocracia
desenfreada. Ele e a sua família
aproveitaram-se, com efeito, dos
mecanismos e da lógica existentes na era
Akayev, levando-os a um patamar ainda
mais extremo. Segundo Johan Engvall,
“Bakiyev era ainda mais apegado ao
sistema de „venda‟ de cargos
governamentais do que Akayev” (2011: 58).
Na verdade, embora Akayev tenha
começado a construir um tal sistema,
Bakiyev tornou-o operacional” (Engvall,
2011: 58).
Sob a liderança de Bakiyev, o
Quirguistão caminhava, de forma veloz,
numa direção incerta e perigosa, minada
pela corrupção, nepotismo e, inclusive, pelo
crime, o qual era estritamente organizado a
partir do topo (Marat, 2005, 2008). O poder
político estava, em grande parte,
concentrado nas mãos dos seus familiares
próximos e, em menor grau, no resto da sua
família (Marat, 2005, 2008). Tal como Roza
Otunbaeva, havia notado antes de suceder 34
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
a Bakiyev, “atualmente, há cinco Bakiyevs a
trabalhar na Casa Branca”, nos escalões
superiores do poder, (…) Já nem falo dos
numerosos familiares que ocuparam todos
os andares da Casa Branca” (Cit. por
Engvall, 2011: 58).
À semelhança da Revolução das
Tulipas, a queda do regime Bakiyev, em abril
de 2010, alimentou a esperança de um
romper com o passado, e embarcar num
novo caminho de progresso e
desenvolvimento (Gawrich et al, 2010).
Contudo, o otimismo inicial seria,
rapidamente, substituído pelo desespero
após o grave distúrbio de junho de 2010,
quando, de acordo com as estatísticas
oficiais, vários tumultos étnicos no sul do
Quirguistão causaram 470 mortos e
desalojaram mais de mil pessoas (Kyrgyzstan
Inquiry Commission, 2010). Depois desta
tragédia, a 27 de junho de 2010, foi
aprovada, em referendo, uma nova
constituição, que instituiu um sistema político
semiparlamentar. As subsequentes eleições
parlamentares ocorreram a 10 de outubro
de 2010, tendo, na prática, sido as primeiras
eleições, na Ásia Central, a ser consideradas
„livres e justas‟ pelos observadores
internacionais (OSCE/ODIHR, 2010).
Voltando à terminologia de Hollis e
Smith, importa aqui esclarecer que
enquanto a „personalidade‟, isto é, a
„variável indivíduo‟ se sobrepôs ao „sistema‟
no caso atrás referido do Cazaquistão, a
lógica é, todavia, inversa, no caso do
Quirguistão. Ou seja, Akayev começou por
querer incutir ideais democráticos no
Quirguistão, mas quer ele, quer o seu
sucessor foram vencidos pelo peso da
burocracia doméstica e do próprio sistema,
propícios à corrupção e ao nepotismo. Não
quer dizer que estes não existam no
Cazaquistão, contudo, Nazarbayev não
colocou inicialmente a fasquia tão alta, ao
contrário de Akayev, que estava disposto a
instaurar uma cultura democrática num país
onde as sementes - quiçá fruto de um longo
passado autoritário e consideravelmente
burocrático (o homo sovieticus) - não
encontrariam terreno fértil à germinação da
democracia. Ao invés do Cazaquistão,
onde a lógica deve ser lida „de baixo para
cima‟ (pois o indivíduo sobrepôs-se às
estruturas envolventes), no Quirguistão, o
sistema venceu o indivíduo, num processo
„top-down’ (de cima para baixo).
O atual Presidente, Almazbek
Atambayev, tem procurado combater o
flagelo da corrupção. A este respeito, Jim
Nichol informa que “em meados de
dezembro de 2011, o Presidente Atambayev
decretou a criação de uma unidade
anticorrupção”, afirmando que esta
organização seria composta por “pessoas
honestas, determinadas em combater a
corrupção de alto nível que existe em todas
as esferas do Governo” (2012: 6). Por sua
vez, Chinara Esengul (2012) acrescenta que
“vários ex-parlamentares, bem como
antigos e, inclusive, novos juízes têm vindo a
ser presos”. Atambayev iniciou “um
combate sério à corrupção”, até ao
presente “bem-sucedido”, o que significa
que o Presidente é capaz de implementar
as suas políticas, não só na capital, como
também ao nível regional (Esengul, 2012).
De acordo com Chinara Esengul (2012),
“gradualmente, tem vindo a ser edificado
um poder estável. No entanto, esta
investigadora alerta para a importância de
se “diferenciar entre o que é restaurar o
poder com o objetivo de se tornar a
governação exequível”, que é o que
Atambayev tem procurado fazer, na
opinião da autora, de “autoritarismo”, cuja
natureza “é diferente” (Esengul, 2012).
Um especialista local (Especialista I,
2012), explica que o Governo quirguiz tem
procurado, de forma célere, “resolver os
problemas relativos ao défice”, com o
objetivo de manter a dívida pública baixa”,
o que lhe permite “continuar a receber
fundos internacionais”. Neste sentido, “o
Governo recorre aos dadores: o Fundo
Monetário Internacional, o Banco
Eurasiático”, de modo a obter o “máximo
de assistência possível” (Especialista I, 2012).
Embora o Quirguistão se tenha
candidatado oficialmente à União
Aduaneira, (que agrupa a Rússia, o
Cazaquistão e a Bielorrússia), autores como
Chinara Esengul (2012) acreditam que o
país é mais beneficiado se não pertencer a
esta. Para Markus Kaiser12 (2012), “estar fora
da União Aduaneira implica não mais poder
comerciar com o Cazaquistão e com a
Rússia”; por sua vez, aderir àquela levanta
“o problema das importações provenientes
da China”. Na verdade, a não-adesão à
União Aduaneira permite ao Quirguistão
continuar a beneficiar, em larga medida, da
chamada “economia paralela” (que, no 35
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
caso quirguiz, “é de 50%”, segundo Chinara
Esengul, 2012), por meio da qual “os
produtos chineses entram no país, numa
primeira fase, sendo, depois, reexportados
para a Rússia, Cazaquistão, entre outros”.
Caso o Quirguistão adira à União
Aduaneira, passaria a haver um controlo
alfandegário e, consequentemente, um
imposto sobre os produtos chineses, o que
prejudicaria, de forma considerável, os
negociantes quirguizes, que tanto
dependem deste comércio com a vizinha
China. Quer uma, quer outra escolhas são,
ambas, “indesejáveis”, sendo que a opção
ideal “seguir adiante”, não é, contudo,
possível, “porque a União Aduaneira existe”,
e inclusive, confere “um certo poder e
margem de manobra à Rússia de Putin”
face aos Estados da região (Markus Kaiser,
2012). Como explica Chinara Esengul (2012),
“embora o maior parceiro comercial do
Quirguistão seja, desde há muito, a Rússia,
nos últimos anos, porém, a China tem-se
revelado, na prática, o principal parceiro
comercial dos quirguizes”.
Consequentemente, a posição do Governo
quirguiz tem consistido em “manter-se
politicamente do lado da Rússia, Quirguistão
e Bielorrússia”, embora, do ponto de vista
económico, tenha vindo a solicitar a
compreensão destes face à sua “relação
preferencial com a China” (Esengul, 2012).
De acordo com um especialista local,
que solicitou o anonimato, o Quirguistão
depara-se com uma “situação complexa”,
pois “não tem, praticamente, o que
exportar, ao contrário dos cazaques, dos
turquemenos ou dos uzbeques” (Especialista
II, 2012). Por outro lado, os quirguizes não
podem voltar-se, apenas, para um ator.
Neste sentido, recorrem à Rússia, à China,
entre outros, dependendo, com efeito, da
“boa vontade dos estrangeiros” para
sobreviver (Especialista II, 2012).
Se há algum modelo que os quirguizes
gostariam de seguir, é o do Cazaquistão
(Especialista II, 2012). Existe, curiosamente,
“um maior respeito por Nazarbayev no
Quirguistão, do que no Cazaquistão”: a
imagem de um homem forte, as decisões
que ele toma, colhem, de facto, a simpatia
de um número significativo de quirguizes
(Especialista II, 2012). Contudo, a liderança
política no Quirguistão é assaz fraca e
instável, pouco ou nada comparável, por
conseguinte, ao caso do Cazaquistão.
Portanto, para gerir o país, “o Governo tem
de buscar um consenso”, sendo este, na
prática, “muito difícil de alcançar” no
Quirguistão (Especialista II, 2012). E não se
trata, apenas, de dificuldade de consenso
entre os cinco principais partidos políticos
quirguizes, pois dentro de cada um deles é,
ainda, preciso contar com a existência de
várias fações rivais entre si. Acrescente-se,
por outro lado, o facto de, frequentemente,
os políticos privilegiarem os seus objetivos
individuais, em detrimento dos interesses dos
partidos que representam. Neste sentido,
“os próprios partidos tornam-se
ingovernáveis”, sendo, na prática,
“altamente complexo prever como é que
eles se irão comportar ou
evoluir” (Especialista II, 2012). Tudo isto
explica que qualquer tentativa de levar a
cabo um bom trabalho seja,
consideravelmente, difícil (Especialista II,
2012).
O Uzbequistão
Embora a evolução dos
acontecimentos, no Quirguistão, possa ter
alimentado uma grande expetativa de
democratização para aquele país, no
período que se seguiu à independência das
Repúblicas centro-asiáticas, o mesmo não
se verificou em relação ao Uzbequistão
(Burton, 2004). A análise da transição do
Uzbequistão para um Estado pós-soviético,
foca, por necessidade, e, quase
exclusivamente, a figura de Islam Karimov,
mais concretamente, os fatores que o
levaram a concentrar o poder nas suas
mãos (Melvin, 2000). Ao contrário da maioria
das antigas Repúblicas soviéticas, nas quais
os Governos se tornaram, apesar do
autoritarismo, “mais „democráticos‟ e menos
capazes de controlar a oposição social”, a
estrutura política do Uzbequistão e o seu
nível de controlo governamental,
permanecem, “praticamente, inalteráveis
desde a era soviética” (INS Resource
Information Center, 1994: 1; Adams, 2005;
Lopes, 2011).
Islam Karimov, o primeiro e único
Presidente uzbeque desde o colapso da
União Soviética, é um comunista tecnocrata
de formação, escolhido por Gorbachev
para liderar a República uzbeque durante a
era da Perestroika (Gleason, 1997). Mais
36
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
novo do que Gorbachev, “Karimov era visto
como o seu apparatchik no
Uzbequistão” (Plater-Zyberk, 2003: 3).
Quando Gorbachev foi nomeado
Presidente do Presidium do Soviete Supremo
da URSS, Islam Karimov foi designado para
uma posição semelhante no Uzbequistão.
Por outro lado, “quando Gorbachev
transferiu os poderes decisórios dos órgãos
do Partido Comunista para as estruturas
estatais, Karimov, com o beneplácito de
Moscovo, fez o mesmo ao nível da
República” (Plater-Zyberk, 2003: 3). Portanto,
temos aqui um caso em que Karimov
começa por ser fruto das „estruturas‟, o tal
apparatchik de Gorbachev, mas
progressivamente vai invertendo a lógica
„top-down’, de que nos falam Hollis e Smith
(1990), para ser ele a sobrepor-se a essas
estruturas até chegar ao „sistema‟ e,
curiosamente, acabar por se sobrepor a ele
também, senão mesmo, confundir-se com
este. De facto, quer o Uzbequistão, quer o
Turquemenistão (como se verá mais à
frente) são os dois casos-extremo na Ásia
Central, no sentido em que o indivíduo
modela as estruturas literalmente à sua
„imagem e semelhança‟, governando
praticamente sem limites, e conferindo,
inclusivamente, ao sistema contornos de
excentricidade, como foi o caso de Niyazov
no Turquemenistão (e, em menor grau, do
seu sucessor Berdymuhammedov).
Na sequência do referendo acerca da
independência (“uma mera formalidade,
visto que a União Soviética havia
colapsado”), que trouxe Karimov ao poder,
em 1991, este reprimiu, agressivamente,
toda a oposição política (Commission on
Security and Cooperation in Europe, 1991:
1). Karimov fora eleito, através de uma
“maioria esmagadora”, Presidente do país
(Commission on Security and Cooperation in
Europe, 1991: 1). Depois de ter eliminado os
rivais reformistas dentro do seu próprio
partido, no início de 1992, e após o então
Vice-Presidente Shukrullo Mirsaidov ter
pedido a demissão, Karimov forçou os
líderes do Birlik e do Erk ao exílio (“tendo os
seus seguidores sido silenciados”), e
aniquilou, efetivamente, os partidos (Polity IV
Country Report Uzbekistan, 2010: 2). Desde
então, “apenas os partidos da oposição
„pró-governo‟ (por estranho que possa
parecer) têm sido autorizados a disputar as
eleições” (Quillen, 2006: 41).
As eleições, no Uzbequistão, são
acontecimentos cuidadosamente
orquestrados que, pouco ou nada,
proporcionam em termos de escolha
eleitoral genuína (Merritt, 2004; Lopes, 2012).
Desde a independência do país, em 1991,
até ao presente, nenhumas eleições foram
consideradas livres e justas pela
Organização para a Segurança e
Cooperação (OSCE) na Europa. Por
exemplo, no que respeita à eleição
parlamentar de 2009, o relatório final da
OSCE referia que a organização “nunca
levou a cabo uma verdadeira e completa
missão de observação eleitoral, no
Uzbequistão, devido à inexistência de
condições mínimas para a realização de
eleições democráticas” (OSCE/ODIHR
Election Assessment Mission Final Report,
2010: 1).
A falta de oportunidades políticas tem
gerado apatia nos eleitores uzbeques, ainda
que os números oficiais do Governo refiram,
com frequência, que a participação
eleitoral é superior a 90% (Olimov e
Fayzullaev, 2011). O ramo executivo domina
os ramos legislativo e judicial. Por
conseguinte, “o Parlamento faz pouco mais
do que servir como „carimbo‟ à vontade do
Presidente”; da mesma forma, “o sistema
judicial funciona como mecanismo para
reprimir os oponentes do
Presidente” (Pannier, 2012: 597). Apesar de o
Uzbequistão possuir o maior exército da Ásia
Central, as autoridades uzbeques
consagram mais atenção e recursos
financeiros às forças de segurança internas,
pois consideram as ameaças domésticas
como sendo mais graves para a
manutenção do regime, do que as que
provêm do exterior (Peyrouse, 2010). O novo
ambiente geopolítico na Ásia Central, na
sequência do 11 de setembro de 2001,
trouxe uma esperança renovada à
realização de reformas várias no
Uzbequistão. Não obstante, apesar dos
crescentes esforços diplomáticos, o país tem
resistido a uma política de abertura face ao
Ocidente (Hall, 2007).
O caráter ditatorial do Governo de
Karimov deve-se, fundamentalmente, a
fatores domésticos, entre os quais se
destaca a política de clãs (The Daily Star,
2011; Malashenko, 2012). Embora o
Uzbequistão seja um dos países mais
homogéneos da Ásia Central - 80% da sua 37
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
população é composta por uzbeques; os
restantes 20% incluem russos (5.5%), tajiques
(5%), cazaques (3%), e outros - à
semelhança da maioria dos Estados da
região, a identidade nacional é
complicada pela interação de clãs e etnias
(World Fact Book, 2012). Como nota Collins,
“o regime de clientelismo na Ásia Central
está, em grande parte, ligado à tradição da
política de clãs (klannovaya
politika)” (2002:16). Esta é, com efeito, um
fator importante nas decisões de política
doméstica do Uzbequistão (Collins, 2004).
Acrescente-se que a disputa de influência
entre os clãs mais importantes
desempenhou um papel fundamental na
ascensão de Karimov ao poder, pouco
depois do colapso da União Soviética
(Kangas, 2002; Saidazimova, 2005).
Apesar de Karimov exercer,
oficialmente, o controlo do país, a realidade
é que o poder está dividido entre vários clãs
importantes (Fedorov, 2012). É a
competição entre o clã de Tashkent e o de
Samarkand (os dois mais poderosos) que
determina a situação política no
Uzbequistão e, no entendimento de Collins,
“limita a capacidade de Karimov consolidar
o seu regime autoritário” (2004: 251). A
relação entre o Presidente e os vários clãs é
de natureza simbiótica (Fedorov, 2012). Por
um lado, se os clãs dependem do
patrocínio do Presidente para acederem
aos recursos e à riqueza, Karimov, por sua
vez, necessita do apoio dos clãs para se
manter no poder. Segundo Frederick Starr, o
Presidente Karimov compreendeu que abrir
as portas do Parlamento a determinadas
figuras “poderia fornecer um contrapeso às
contínuas aspirações dos clãs, famílias, e
magnatas” (2006: 20). Tal veio, na verdade,
reforçar o poder do Parlamento, embora
Karimov entenda esse reforço como “um
pequeno preço a pagar se isso contribuir,
na prática, para aumentar a sua margem
de manobra face aos poderosos clãs e
famílias que o colocaram no poder” (Starr,
2006: 20). No entanto, o Presidente tem
procurado enfraquecer a influência dos
clãs, como atesta, aliás, o testemunho de
um ex-Embaixador britânico no Uzbequistão,
Craig Murray. Segundo este, “existem várias
pessoas que costumavam pertencer à
oligarquia… Existiam algumas centenas de
famílias muito ricas que, realmente,
beneficiavam do sistema. Esse círculo
tornou-se cada vez menor à medida que
Karimov o foi restringindo à sua família
direta” (Radio Free Europe/Radio Liberty,
2006: para. 6).
A influência do Islão na política
doméstica uzbeque é importante, embora,
em geral, não possa ser considerada causa
da repressão da oposição política de
Karimov (Poujol, 2005; Olimova e Tolipov,
2011; Khalid, 2003; Karagiannis, 2006). Os
partidos políticos de orientação religiosa
foram proibidos pela Constituição uzbeque
no final de 1991 (Human Rights Watch,
2010). No entanto, especialistas como
Alexey Malashenko acreditam que, de
futuro, “Tashkent terá de prestar mais
atenção à tomada de poder por parte de
correntes islamitas, em vários países”, bem
como ao “aumento do impacto geral do
fator islâmico na política
internacional” (2012: 7). Não é de excluir,
por conseguinte, a possibilidade de o
Governo uzbeque vir a adotar uma
estratégia “mais pragmática” face à
oposição islamita, reconhecendo, não
obstante, a existência de uma „ala
moderada‟”no seio desta (Malashenko,
2012: 7).
No que à economia diz respeito, o
Presidente Karimov tem elogiado o sucesso
económico do Uzbequistão, de forma a
reforçar a imagem do regime, quer a nível
interno, quer no estrangeiro (Uzbekistan
National News Agency, 2012). No âmbito de
uma missão de avaliação económica no
Uzbequistão, em novembro de 2011, o
Fundo Monetário Internacional (FMI)
sublinhou o início de um crescimento
robusto no país, a partir de meados da
década de 2000. De acordo com o FMI, “o
PIB do Uzbequistão aumentou [ao longo dos
últimos seis anos], a um ritmo de 8.5%
anualmente”, o que é “superior à média de
crescimento para a Ásia Central” (Press
Release, 2011: para. 2). O Governo uzbeque
publicou estas e outras estatísticas
semelhantes nos meios de comunicação,
controlados pelo Estado, no sentido de
demonstrar a prosperidade económica do
país, comparativamente a muitos outros
países do mundo, e desacreditar o
descontentamento face ao regime. Não
obstante, um especialista local (Especialista
II, 2012) sublinha que “embora tenha sido,
outrora, o entreposto mais rico da Ásia
Central, uma fonte cultural, com o maior 38
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
aglomerado de população [da região], o
Uzbequistão é, hoje, um “Estado falhado”.
Na base desta constatação, este
especialista aponta alguns motivos. Por um
lado, “o poder e a influência do
Cazaquistão aumentaram
consideravelmente” (Especialista II, 2012).
Por outro lado, “os uzbeques não têm
aproveitado, de forma eficiente, os recursos
de que dispõem”, e, uma vez que “cada
um dos seus vizinhos é um inimigo do
passado”, o Uzbequistão “não desenvolveu
a rede de gasodutos da forma mais
desejável e proveitosa” (Especialista II,
2012). Por conseguinte, em tudo isto existe
“um misto de nacionalismo e paranóia”,
bem como “dois Estados bastante isolados:
o Uzbequistão e o
Turquemenistão” (Especialista II, 2012).
O Turquemenistão
Segundo Jim Nichol, “quando o
Turquemenistão conquistou a
independência, na sequência da
dissolução da União Soviética, no fim de
1991, o antigo Presidente da República e
chefe do Partido Comunista turquemeno,
Saparmurat Niyazov, permaneceu no
poder” (2012: 1). Este viria a ser, depois,
reeleito Presidente em 1992, quase por
unanimidade, sendo que um referendo, em
1994, alargou o seu mandato até 2002
(Associated Press, 1992; Freedom House,
2011). Em dezembro de 1999 “o Khalk
Maslakhaty (órgão legislativo supremo)
modificou a Constituição de forma a
conferir a Niyazov o estatuto de Presidente
vitalício” (Norman, 2007: 30). Porém, já a
Constituição de maio de 1992 havia
concedido poderes esmagadores a
Niyazov, enquanto Chefe de Estado e de
Governo (BTI Turkmenistan Country Report,
2012).
A governação de Niyazov uma foi das
mais autoritárias do mundo, tendo o seu
regime sido altamente corrupto e
responsável por graves violações dos direitos
humanos. Não surpreende, portanto, que
Freedom House (2012), uma organização
não governamental, tenha classificado o
país como “o pior dos piores” do mundo em
termos de liberdades políticas e civis, entre
Estados como o Sudão, a Coreia do Norte e
o Uzbequistão. Por outro lado, o regime
restringiu, fortemente, o contato dos seus
cidadãos com o estrangeiro. A este respeito,
como sublinha Slavomír Horák, “a
singularidade do Turkmenbashy, e a cultura
política que este fundou, assentavam num
isolacionismo tanto ao nível doméstico,
como externo”, os quais, aliás, ainda hoje se
mantêm (2012: 371). No entanto, a
exportação de petróleo e gás natural
haviam, efetivamente, sido os únicos setores
em que o Turquemenistão se esforçara por
um maior envolvimento internacional.
Todavia, como referem Slavomír Horák e Jan
Šír, “mesmo nesta área (energética) em que
Niyazov estava disposto a cooperar com o
estrangeiro, Moscovo detinha os trunfos,
controlando, na prática, todas as rotas de
gás natural provenientes do
Turquemenistão” (2009: 45).
De acordo com Slavomír Horák, o
Turquemenistão tem sido entendido “como
um dos regimes mais peculiares do espaço
pós-soviético, e um dos mais próximos do
ideal totalitário”, reunindo as caraterísticas
da ideologia de Estado omnipresente, do
aparelho de Estado altamente repressivo,
do controlo do poder por um único partido,
do domínio total sobre os meios de
comunicação e a economia, concentrados
em torno da figura hegemónica do
Presidente (2012: 372). A nível institucional, o
antigo Presidente Saparmurat Niyazov
detinha todas as competências-chave no
Turquemenistão, tendo, inclusive, criado
uma espécie de „reino‟ para si próprio (Ash,
2006). Com efeito, Niyazov rebatizou o mês
de janeiro em homenagem a si próprio, e o
de abril em homenagem à sua mãe; proibiu
o ballet, o uso de dentes de ouro, e a
música gravada; ordenou a construção de
um lago em pleno deserto e uma estância
de esqui em colinas sem neve, na fronteira
com o Irão (BBC News, 2006).
Niyazov viria a falecer, de forma
inesperada, em dezembro de 2006, tendo
sido sucedido por Gurbanguly
Berdymukhamedov, eleito Presidente no
início de 2007 (The New York Times, 2006). A
campanha presidencial de 2007, e o seu
resultado, assemelhavam-se a um guião
bem escrito, que realçava as tradições
políticas turquemenas e os padrões
estabelecidos pelo Turkmenbashy (OSCE,
2007). Como constata Tiago Lopes, “as
eleições no Turquemenistão parecem-se
mais a um concurso de desfile do que a um 39
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
ato político realmente significativo
(…)” (2011: 9). Elas “não são percebidas
como um mecanismo para captar a
vontade da sociedade civil”; ao invés, “são
encenadas para fortalecer a liderança já
estabelecida, através de atos públicos
(quase) unânimes e
homogeneizados” (Lopes, 2011: 9). No seu
discurso de tomada de posse, a 14 de
fevereiro de 2007, Gurbanguly
Berdymukhamedov comprometeu-se a
continuar a fornecer gás natural,
eletricidade, sal, gasolina, pão subsidiado e
habitação à população, e a apoiar a
política externa do antigo Governo
(Financial Times, 2007). Efetivamente, como
atesta Roman Mogilevski (2012), os
turquemenos beneficiam de “eletricidade
barata, bem como de gasolina quase
gratuita”, e, “se a conjuntura económica
lhes continuar a ser favorável, tal é suscetível
de se prolongar por muito tempo”.
De acordo com Slavomír Horák e Jan Šír,
“o novo regime político, no Turquemenistão,
necessitou de apenas um ano para
estabilizar completamente”: neste curto
período de tempo, “o Presidente
Berdymukhamedov consolidou a sua
posição enquanto líder supremo do país”,
tendo eliminado “todos os seus potenciais
rivais” no seio das “elites
turquemenas” (2009: 94). Por outro lado,
segundo Horák e Šír, “se compararmos a
base do poder dos dois Presidentes”,
verificaremos que “o novo Presidente confia
mais em indivíduos da sua região natal, e na
sua família” (2009: 94). Estas pessoas
obtiveram “uma série de cargos e funções”,
embora “não necessariamente os mais
importantes”, no próprio Governo, bem
como no seio da vasta burocracia estatal
(Horák e Šír, 2009: 94).
Para especialistas como Alex Norman,
existem alguns sinais de que com
Berdymukhamedov “a mudança pode
acontecer” (2007: 35). A este respeito, o
sucessor de Niyazov prometeu reformas
sociais significativas, ao afirmar querer ser
Presidente de um Estado democrático,
onde as pessoas ricas vivem e trabalham (Al
Jazeera News, 2007). Regressando, ainda, a
Norman, “esta aparente mudança na
ideologia social representa uma evolução
considerável face ao antigo regime, que se
orgulhava do isolacionismo, da supressão
da diferença e dos dissidentes” (2007: 35).
Não obstante, estes eventuais sinais de
mudança não convencem Roman
Mogilevski (2012), para quem o
Turquemenistão atual permanece uma
espécie de “mais do mesmo”, embora
“numa vertente mais soft”. Como explica o
especialista, “os turquemenos nunca se
comparam com países que não
conhecem”, sendo “raros” os que “visitaram
a Europa ou a Rússia”; eles comparam-se,
ao invés, “à forma como os uzbeques
vivem”; eles “têm conhecimento que nós
[quirguizes] vivemos em clima de
permanente turbulência e regozijam-se de
não passarem pelo mesmo” (Mogilevski,
2012). De certa forma, “os turquemenos
beneficiam de estabilidade”. No que à
política externa diz respeito, Chinara Esengul
(2012) não acredita que Berdymukhamedov
opere mudanças substanciais face ao
regime precedente. Contudo, uma das
poucas diferenças a salientar reside na
essência da autoridade. Ou seja, o regime
de Berdymukhamedov carece de “um
patrocínio externo forte” (Horák e Šír, 2009:
16). Com efeito, “enquanto Niyazov foi
estabelecido e, depois, protegido, também,
por Moscovo, especialmente no início da
sua governação, Berdymukhamedov conta,
sobretudo, com uma base de apoio
doméstica” (Horák e Šír, 2009: 16; Peyrouse,
2012).
Segundo Denison, a governação de
Niyazov ficou marcada por “um culto de
personalidade francamente ridículo”, e pela
“promoção implacável de uma nação
forjada, literalmente, à sua própria
imagem”, os quais contribuíram para erodir
“os símbolos visíveis da herança soviética no
Turquemenistão” (2003: 59). Todavia, após a
morte de Niyazov, o Presidente
Berdymukhamedov tem-se revelado, ao
mesmo tempo, pragmático e cauteloso,
vindo a desmontar, gradualmente, os velhos
conceitos ideológicos, sem causar grandes
ruturas. Neste sentido, “são preservados
elementos-chave e instituições do antigo
regime, suscetíveis de reforçar a ideologia
do regime atual” (United States Commission
on International Religious Freedom, 2009:
para. 39). O que distingue, principalmente, a
governação de Berdymukhamedov da do
seu antecessor, reside, no entanto, na
menor ênfase atribuída ao culto da
personalidade (Edgar, 2004). De facto, por
ora, Berdymukhamedov parece pouco 40
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
interessado em “evocar a natureza divina
da presidência, ou outras manifestações
extremas do culto da
personalidade” (United States Commission
on International Religious Freedom, 2009:
para. 39).
Berdymukhamedov “eliminou as
práticas mais excêntricas ligadas ao culto
da personalidade do anterior Chefe de
Estado” (Olcott, 2011: 6), demolindo, por
exemplo, algumas das estátuas de Niyazov,
embora o “manual espiritual” do antigo
líder, o Rukhnama, continue a ser de leitura
obrigatória nas escolas (Bohr, 2010: 544).
Para se distanciar, progressivamente, da era
Turkmenbashy, o atual Governo procurou
desenvolver uma nova ideologia. De facto,
Berdymukhamedov inventou o conceito de
“Era de Grande Renascimento” (Beýik
Galkynys) do Turquemenistão, na sequência
da “Idade de Ouro dos Turquemenos”,
promovida pelo Türkmenbaşy (U.S.
Department of State, 2011: 12). O culto da
personalidade do Presidente
Berdymukhamedov tem vindo,
gradualmente, a tornar-se o alicerce da
nova ideologia turquemena (à semelhança
do que acontecia, também, com o seu
antecessor) (IDASQ, 2010). Ele, o “grande
reformador”, tem, desde então, sido
oficialmente denominado de “Pai Fundador
e Líder da Era do Grande
Renascimento” (Horák e Šír, 2009: 6). Depois
de ter assumido o poder,
Berdymukhamedov adotou um “título
honorífico - Arkadag - ou seja, „protetor‟,
que pressupõe a missão de preservar a
identidade turquemena” (Goudsmits, 2012:
6). Tal conceção da política, mesclada com
caraterísticas de idolatria religiosa e de
missão salvífica, ajuda a compreender por
que é que o Turquemenistão tem sido
entendido como “o pior cenário de
desenvolvimento [no espaço] pós-
soviético” (Norman, 2007: 19).
No entendimento de Horák e Šír, “o
culto de Berdymukhamedov é inevitável na
presente atmosfera de subserviência ao
líder da República” e, em geral, “à
instituição da liderança (serdarçylyk) na
sociedade turquemena” (Horák e Šír, 2009:
41). Com efeito, a cultura política no
Turquemenistão favorece o culto da
personalidade enquanto fator de validação
e legitimação do regime no poder (Hiro,
2009). Para Slavomír Horák, “o caráter de um
líder permite moldar a cultura política,
especialmente quando esse líder é o „Pai
Fundador‟ de um país recém-
independente” (2012: 372). É, em geral,
“expetável que os sucessores do primeiro
líder se comportem de forma semelhante
aos seus antecessores”, muitas vezes,
“apenas com pequenas alterações no
estilo, devido à existência de diferenças no
contexto social” (Horák, 2012: 372). Por
conseguinte, os contornos bizarros e
excêntricos que restam do culto do
Turkmenbashy ainda são importantes para
Berdymukhamedov, uma vez que ao serem
totalmente abolidos, poderiam causar
graves ruturas na sociedade (Coleman,
2013). Daí Horák e Šír estimarem que
“Berdymukhamedov não será, certamente,
tão excêntrico como o seu antecessor”, mas
irá, contudo, “permanecer relutante face a
um reformar demasiado do sistema atual,
uma vez que, ele próprio, beneficia das suas
principais caraterísticas” (2009: 95). Resta
saber até que ponto o Presidente
turquemeno está disposto a adotar mais
medidas repressivas para preservar o atual
clima de estabilidade. O que é claro, no
entanto, é que não será possível alterar, no
imediato, a mentalidade quer da elite, quer
da sociedade turquemenas (Peyrouse,
2012).
Horák e Šír estimam que “serão
necessárias, pelo menos, uma ou duas
gerações para uma eventual liberalização
do regime”, e que o “Turquemenistão
atravessará um período difícil, no qual um
sistema político autoritário é suscetível de
prevalecer (ainda) durante algum
tempo” (2009: 95). Essa é, também, a
opinião do jornalista Arkady Dubnov, um dos
especialistas mais reputados acerca da Ásia
Central, que considera que a era
Berdymukhammedov tenderá a manter-se
por muito tempo ainda (NewEurasia, 2012).
Alexey Malashenko admite que “o
entendimento de Dubnov é o mais
acertado, pois a sociedade turquemena
ainda não está preparada para protestos
em massa” (2012: 10). Contudo, uma visão
oposta é partilhada, por exemplo, pela
norte-americana Crude Accountability,
segundo a qual, “mais cedo ou mais tarde o
Governo de Berdymukhammedov
confrontar-se-á com os problemas que
levaram os regimes de Ben Ali, Mubarak e
Khadafi ao colapso” (2010: 36). A questão, 41
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
segundo Alexey Malashenko, é se os
acontecimentos irão tomar “o cenário -
mais suave - o da Tunísia”, ou se tenderão a
seguir “o caminho da Líbia” e “evoluir para
uma guerra civil” (2012: 10). Ora, para este
especialista, “em termos de organização, a
sociedade turquemena assemelha-se mais
à sociedade líbia”, embora os líbios vivam
num “ambiente geopolítico completamente
diferente” do dos turquemenos
(Malashenko, 2012: 10).
O Turquemenistão tem permanecido à
margem dos processos políticos e culturais
mundiais desde há décadas, pelo que
“uma hipotética revolução não seria
suscetível de alterar, radicalmente, os
valores dominantes e a cultura política [no
país]” (Malashenko, 2012: 10). Desta forma,
para Malashenko, “o „sol de
Berdymukhammedov‟, e o „sol da ditadura‟
tenderão, na verdade, a brilhar ainda
durante um tempo
considerável” (Malashenko, 2012: 10). Por
conseguinte, para Horák e Šír, “a evolução
para uma forma de autocracia menos
severa é possível, apenas, numa perspetiva
de longo prazo”, sendo que “a
democratização não parece ser uma
opção realista com os quadros atuais, que
muito dificilmente tenderão a prescindir do
poder de que dispõem” (2009: 95). Segundo
Alexey Malashenko, “Berdymukhammedov
pressente que não será, provavelmente, um
segundo Turkmenbashi” e, em todo o caso,
“não tenciona sê-lo, preferindo cultivar a
imagem de um „déspota liberal‟” (2012: 5).
Uma outra questão que importa
salientar, aqui, é a da identidade nacional,
uma vez que esta tem servido de pretexto, e
simultaneamente, conferido legitimidade às
políticas isolacionistas e autocráticas quer
de Niyazov, quer de Berdymukhammedov
(Horák, 2012). Tendo a identidade
turquemena sido “essencialmente edificada
sob a liderança soviética, através de uma
fórmula artificial, com uma orientação pró-
Moscovo”, uma das primeiras inovações [de
Niyazov] foi renovar a “ênfase nos laços
primordiais que ligam os turquemenos
étnicos, muitas vezes, a governantes míticos
bem conhecidos na história e folclore
turquemenos” (Denison, 2009: 1173). Na
prática, “a identidade, ou, para sermos
precisos, a falta de um perfil identitário
consolidado no Turquemenistão, originado
pela desunião tribal do país, tem sido um
dos determinantes mais influentes para
explicar o sistema político centralizado e
repressivo, bem como a sua extraordinária
resistência” (Matveeva, 1999: 32). Como
explica Tiago Lopes, “a idolatria do
Presidente, que se assemelha a um
semideus vivo, é percebida como o melhor
mecanismo para garantir a lealdade, a
estabilidade e o conformismo, em vez de se
confiar em instituições voláteis, como as
eleições, que se baseiam na livre vontade e
na capacidade de depor líderes que
possuem um vínculo mítico com o passado,
e uma importante missão no
presente” (2011: 11). Não surpreende, por
conseguinte, que “a manutenção de uma
presidência semidivina” se baseie num “jogo
duplo”, que “requer políticas inteligentes
para homogeneizar os cinco clãs do
Turquemenistão, sem, contudo, os unir
demasiado” (Lopes, 2011: 11).
Abordemos agora, de forma sucinta, a
transição da economia turquemena. Para
Roman Mogilevski (2012), “o Turquemenistão
é [geograficamente] um grande país, com
poucos habitantes e vastos recursos
naturais”. Embora fosse, do ponto de vista
histórico, uma das Repúblicas mais pobres
da ex-URSS, o Turquemenistão experienciou
um crescimento rápido no final da era
soviética, baseado na exportação de
algodão e de gás natural (Coleman, 2013).
A construção do canal de Karakum,
iniciada na década de 50, contribuiu para
um aumento significativo da superfície dos
campos de algodão (Kim, 2012). Nos anos
80, o setor do gás natural foi modernizado,
tendo a sua produção progredido de forma
célere. A transição dos preços soviéticos
para os preços mundiais proporcionou
maiores ganhos comerciais ao
Turquemenistão do que a qualquer outro
Estado pós-soviético (Tarr, 1994). Porém, “a
infraestrutura herdada orientou as
exportações energéticas exclusivamente
para a Comunidade de Estados
Independentes, sendo que, devido a um tal
monopsónio, depressa se verificariam
atrasos nos pagamentos” (Pomfret, 2010:
12). O Turquemenistão ainda chegou a
cortar o fornecimento de gás natural a
clientes devedores, entre março de 1997 e
janeiro de 1999 (Turkmenistan - Country
Watch Review, 2013).
A economia turquemena permaneceu,
no essencial, por reformar. O recurso a 42
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
“políticas agrícolas repressivas”, aliadas a
uma pobre gestão, levaram a
produtividade do setor algodoeiro a cair
muito mais do que no vizinho Uzbequistão, e
a uma diminuição acentuada das receitas
de exportação, ao longo dos anos
90” (Pomfret 2008: 1). Por sua vez, o setor
energético turquemeno esteve sob
apertado controlo presidencial, tendo a
produção de gás natural sofrido uma
redução bastante significativa durante a
década de 90. Por outro lado, pouco ou
nada foi feito com vista à exploração do
potencial das reservas offshore do país
(EBRD Transition Report Update, 2009).
Apesar de os dados económicos
relativos ao Turquemenistão serem os menos
confiáveis de qualquer economia em
transição, é, porém, claro para qualquer
observador que as condições económicas
do país sofreram uma deterioração
considerável - “muito aquém, inclusive, das
restantes Repúblicas centro-asiáticas” -
depois da independência, especialmente
fora da capital (Crude Accountability, 2009:
8). Embora R. Mogilevski (2012) reconheça
que o Turquemenistão dispõe do potencial
para ter um padrão de vida idêntico ao do
Cazaquistão (que é apontado como
modelo regional), na prática, “[os
turquemenos] vivem uma vida mais pobre”,
sendo que “a médio prazo”, o autor
acredita que “a situação tem tendência a
manter-se”.
O Tajiquistão
As duas décadas de independência do
Tajiquistão têm sido marcadas por violência,
pobreza, liderança autocrática, e
vulnerabilidade estratégica (Heathershaw,
2011; Hodizoda, 2010; Heathershaw e
Roche, 2011; Markowitz, 2012; Roche, 2010).
O inverno de 1992 foi caraterizado por uma
acesa Guerra Civil, que é, muitas vezes,
entendida como “uma disputa inter-regional
por poder e recursos” (Ewoh, Nazarova e Hill,
2012: 2) entre o Governo, dominado pelo
Kulyabi, um clã tradicional do Tajiquistão, e
pelo United Tajikistan Opposition (Brown,
1997; Atkin, 1997; Baev, 2007). A Guerra Civil,
de 1992 a 1997, foi, segundo Anna
Matveeva, “o conflito mais letal do espaço
pós-soviético, à exceção da
Chechénia” (2009: 168). Durante os
combates foram destruídas estradas, pontes
e outras infraestruturas, sendo que muito
está, ainda, por reparar. Em 1994, as Nações
Unidas intervieram, facilitando as
negociações de paz até 1998, ano em que
foi assinado um acordo por ambas as partes
(GlobalSecurity.org, November 1, 2010).
A partir de 1997, as políticas
governamentais aparentaram ser bastante
liberais. Segundo Richard Pomfret, “o
Governo cortejou as instituições financeiras
internacionais, tendo seguido, em grande
medida, as suas recomendações, embora a
concretização destas políticas tenha sido
fraca, particularmente no fim dos anos 90,
quando o Governo central não controlava,
ainda, a totalidade do território
nacional” (2010: 11). No pós-setembro de
2001, o Presidente Rahmon tornou-se mais
assertivo na repressão da oposição interna
(Human Rights Watch, World Report 2013).
Com efeito, segundo Jim Nichol, “desde o
fim da Guerra Civil, em 1997, o Presidente
tem vindo a reforçar o seu regime
autoritário, e a marginalizar a
oposição” (2012: 2).
No poder desde 1992, “o Presidente
Emomali Rahmon, antigo comunista da era
soviética, que privilegia o secularismo e um
executivo forte, permanece popular entre a
maior parte da população, à exceção dos
islamitas, de uma minoria jovem, e dos
intelectuais” (Foroughi, 2012: 535). O apoio
popular ao Presidente baseia-se no
“pragmatismo”, mas também no
reconhecimento de que “apesar dos
problemas socioeconómicos do país, hoje o
Tajiquistão goza de um nível de segurança e
paz, completamente diferentes (para
melhor, naturalmente) dos do tempo da
Guerra Civil” (Foroughi, 2012: 535). Para
Anna Matveeva, “dado o historial ambíguo
do regime tajique pós-guerra”, devemos
questionar-nos sobre “o nível real de
legitimidade de que este beneficia entre a
população” (2009: 167). A especialista
começa, então, por explicar que “num
ambiente marcado por eleições falsas,
meios de comunicação não-livres, e receio
do aparato de segurança, é difícil ter-se a
certeza do que a população
pensa” (Matveeva, 2009: 167). Por outro
lado, o temor da Guerra Civil ainda está
muito presente na memória das pessoas. O
regime é “digno de confiança” por “ter
terminado a guerra, proporcionado 43
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
estabilidade e, inclusive, um crescimento
económico modesto” (Matveeva, 2009:
167). Como tal, não obstante “a insatisfação
generalizada face ao Presidente, à sua
política, à corrupção do Governo e ao
desperdício de dinheiro”, seria “demasiado
redutor” concluir que “o regime é
ilegítimo” (Matveeva, 2009: 167). Com
efeito, após cinco anos de guerra, os
tajiques estão seriamente empenhados em
consolidar e estabilizar as instituições.
O Presidente Rahmon tem, de forma
bem-sucedida, sabido aproveitar o
nacionalismo e, até certo ponto, a religião
como forma de conquistar eleitores, manter
o poder e assegurar a estabilidade
(Foroughi, 2012: 535). Descritas como “uma
paródia” pelo líder do Partido Comunista da
oposição, as eleições parlamentares de
2010, no Tajiquistão, demonstraram a
ausência de progresso na adoção das
normas democráticas, cerca de duas
décadas depois da independência
(Hamrabaeva e Olimova, 2010). O
Parlamento Europeu e a OSCE, que haviam
enviado 279 observadores eleitorais para o
Tajiquistão - ainda que alguns argumentem
que tal fora um desperdício de recursos,
com um custo estimado de 2 a 3 milhões de
dólares - relataram, mais tarde, que as
votações não cumpriram muitos dos […]
padrões internacionais estabelecidos para
as eleições democráticas (OSCE/ODIHR
Election Observation Mission Final Report,
2010). Em 2011, o sistema multipartidário
tajique revelou-se, em grande parte,
superficial, uma “ilusão democrática”
destinada ao consumo de ocidentais
ingénuos (Sodiqov, 2011).
Nos últimos anos, o Governo tajique tem
procurado neutralizar os seus oponentes
islamitas (inclusive os que operam de modo
legal), criando leis com o objetivo de limitar
e controlar as atividades dos grupos
religiosos, e, sobretudo, para “conter o
crescimento do Islão radical” (Mukhtorova,
2012: para. 1). A intensificação da
islamofobia, no Tajiquistão, tem sido alvo de
duras críticas por parte da comunidade
islâmica, que acredita que tais medidas
antirreligiosas e imprudentes apenas
gerarão revolta, como se verificou, por
exemplo, no caso da Tunísia ou do Egipto
(Iran English Radio, 2011). Entre outros
aspetos, o Governo designou 2009 como o
ano do Imomi Azam (o Grande Imã), e, em
2011, estabeleceu planos para construir “a
maior mesquita da Ásia Central”,
financiada, sobretudo, pelo Qatar, com um
custo de “100 milhões de dólares”, e
capacidade para “115 000 fiéis” (EurasiaNet,
2011: 2).
Os anos de guerra e a expansão do
narcotráfico prejudicaram o
desenvolvimento da sociedade civil (Ewoh,
Nazarova e Hill, 2012). Por sua vez, a
performance económica, na década de 90,
foi desastrosa (UNESCO, 2012-2013). A falta
de oportunidades económicas conduziu a
uma forte emigração, sobretudo para a
Rússia. Porém, o facto de as remessas dos
emigrantes tajiques se apresentarem,
essencialmente, sob a forma de numerário,
não-declarado, “é difícil estimar o quanto
estas contribuem para as receitas” do seu
país de origem (Justino e Shemyakina, 2012:
11).
O Tajiquistão difere, entre outros
aspetos, dos seus vizinhos centro-asiáticos
na medida em que não possui largas
reservas de gás natural e/ou petróleo,
devendo, por conseguinte, basear-se na sua
própria economia e no auxílio de terceiros
para sobreviver (Blakkisrud e Shahnoza,
2010). Apesar do consistente crescimento
económico anual, desde 1997, a
desigualdade de rendimentos, no
Tajiquistão, continuou a aumentar, com
tendência a aproximar-se dos níveis pré-
soviéticos (World Bank, 2011). Embora o
crescimento médio anual do Produto
Interno Bruto, durante o período de 2007 a
2011, tenha sido de 6,5%, este feito,
aparentemente impressionante, é fruto de
um crescimento económico sem
desenvolvimento, e de um capitalismo sem
democracia (The Economist, 2011). O
crescimento económico do país deve-se,
não às políticas macroeconómicas
recomendadas pelo Fundo Monetário
Internacional que, no entanto, foram
seguidas, mas, principalmente, às
importantes remessas enviadas pelos
trabalhadores tajiques (“na maioria, não-
qualificados”) que residem no estrangeiro e
“ajudam a nação a
sobreviver” (Abdrakhmanov, 2007: 29). Por
outro lado, “um número não identificado de
cidadãos tajiques vive das receitas
provenientes do tráfico de estupefacientes,
o que significa que a República depende,
em grande parte, da economia paralela, 44
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
para o seu progresso
económico” (Abdrakhmanov, 2007: 29).
Contudo, note-se que “já durante os
tempos soviéticos, o narcotráfico assumia
proporções consideráveis no
Tajiquistão” (Esengul, 2012).
Como refere Payam Foroughi, “o
Tajiquistão permanece altamente
dependente da Rússia - embora numa
relação errática - em praticamente tudo,
desde o emprego, até, por exemplo, às
importações (cerca de 90%) de
combustíveis”, enquanto Moscovo, por sua
vez, dispõe de autorização do Governo
tajique para fazer do país “uma base para
os seus 5 500 soldados” (2012: 536).
Em termos de política externa,
Dushanbe persegue objetivos puramente
pragmáticos, ao convidar os atores
geopolíticos a participar nos projetos
económicos domésticos. De facto, segundo
Kirill Nourzhanov, “mesmo um país fraco,
como o Tajiquistão, possui uma série de
metas a alcançar num sistema anárquico”,
sendo que “o teor geral do seu discurso de
política externa é, claramente,
realista” (2012: 365). No geral, como observa
Askar Abdrakhmanov, “o Tajiquistão
constitui um fenómeno bastante
interessante”, um exemplo de “uma política
doméstica pragmática” e de “uma política
externa com um rumo equilibrado”, que
“deveria receber mais atenção” (2007: 37).
Notas Finais
Traçou-se um perfil, não exaustivo é
certo, mas que, na medida do possível,
facilitasse a compreensão das realidades
sociais, políticas e económicas de cada um
dos Estados que compõem a região.
Verificou-se que todas estas Repúblicas que
integram a região comungam de um
presente relativamente recente (cerca de
duas décadas de independência)
enquanto Estados autónomos, pese embora
tenham diferido quanto ao rumo das suas
políticas, autoritarismo, desenvolvimento, e
forma de lidar com os desafios resultantes
do colapso da União Soviética.
Embora localizadas num mesmo espaço
regional, as várias unidades, neste caso, os
Estados que a compõem, estão longe de
formar um todo homogéneo suscetível, à
partida, de facilitar a compreensão dos
processos e realidades políticas,
económicas e culturais a um qualquer
curioso pela região. Ao invés, elas tendem a
confundir um espírito impreparado e
ingénuo que possa querer vislumbrar
realidades e mundividências semelhantes
em Estados que seguiram caminhos
diferentes, findo o fator agregador, isto é, a
União Soviética. Por outro lado, e segundo
esta ordem de ideias, sublinhe-se que
“qualquer consideração geral em matéria
de política sobre a Ásia Central deve tomar
em conta a natureza dos regimes no poder,
bem como os interesses específicos de
cada um deles” (Esengul, 2012). Se, por um
lado, é demasiado evidente que o papel
da liderança é importante, por outro, a
relação pessoal entre cada um dos líderes
não deixa, também ela, de ser
fundamental.
Num espaço onde nada está definido e
tudo se joga, persiste uma certa nostalgia
geral, mais ou menos evidente, no Homo
Sovieticus (fruto de uma mesma cultura e
dotado de uma personalidade singular)
face aos tempos de ouro em que ele não
tinha de se preocupar com nada, visto que
o „sistema‟ se encarregava de tudo.
Contrariamente ao passado, os
„emancipados‟ centro-asiáticos estão, hoje,
entregues a si próprios, filhos da Ásia
Central, uma sub-região desprovida de
acesso ao oceano, mercê da „boa
vontade‟ da cooperação dos Estados
vizinhos, entre os quais uma Rússia e uma
China, para acederem ao resto do mundo.
E, é interessante notar como os próprios têm
consciência da sua posição de
dependência face a esta „boa vontade‟
alheia, como atesta o desabafo de Meruert
Makhmatova (2011), investigadora
cazaque: “não somos jogadores principais,
mas parte do jogo”. Contudo, uma parte
importante, capaz, também ela,
paradoxalmente, de frustrar as ambições
das potências externas, em resultado do seu
poder funcional. Atente-se, por exemplo, na
singularidade da política uzbeque, umas
vezes pró-russa, outras contra, o que faz de
Karimov um parceiro imprevisível,
dependendo dos interesses que melhor
convêm ao Uzbequistão.
Em suma, as Repúblicas centro-asiáticas
são, hoje, marcadas por diferentes tipos de
transformações políticas, económicas e
sociais, diferentes ritmos, diferentes 45
CEEI/ISRI, MENSAL, Ano XXIII, N˚ 04
conceções sobre o significado do devir
histórico. Elas convergem na vontade de
maximizar os benefícios decorrentes dos
grandes e pequenos jogos regionais, mas
demonstram muita incapacidade em
estabelecer estratégias comuns e cooperar
para a resolução dos grandes e pequenos
problemas regionais.
Notas e Referências Bibliográficas
1 O especialista em questão exerce funções no contexto da
diplomacia norte-americana no Cazaquistão. 2 O especialista em questão exerce funções no contexto da
diplomacia norte-americana no Quirguistão. 3 Kurmanov, Zhanat (2011). Entrevista pessoal. Almaty. O
autor é um reputado economista no Cazaquistão. 4 Carter, Michael (2011). Entrevista pessoal. Almaty. 5 Mogilevski, Roman (2012). Entrevista Pessoal. Bishkek. O
autor é um conceituado investigador quirguiz. 6 Vilar, Emílio (2011). Entrevista Pessoal. Lisboa. O autor é ex-
Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian. 7 Makhmatova, Meruert (2011). Entrevista Pessoal. Almaty. 8 Esengul, Chinara (2012). Entrevista Pessoal. Bishkek. A autora
é uma conceituada investigadora quirguize. 9 Krawchenko, Bohdan (2012). Entrevista Pessoal. Bishkek. O
autor é Diretor da University of Central Asia. 10 Bradbury, Doris (2011). Entrevista Pessoal. Almaty. Ex-
Diretora da American Chamber of Commerce no
Cazaquistão. 11 Soares, João (2011). Entrevista Pessoal. Lisboa. Alto
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O “Mensal” é um boletim informativo do CEEI/
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Internacionais do Instituto Superior de Relações
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