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O enraizamento de novos “arranjos” para o desenvolvimento de um
sistema alimentar sustentável: atores, iniciativas e governança em Santa
Catarina
The embeddedness of "alternative assemblages" for the
development of a sustainable food system: actors, initiatives and
governance in Santa Catarina
Lilian de Pellegrini Elias1
Jurandi Teodoro Gugel 2
Walter Belik3
Resumo Embora os “arranjos” regulatórios ligados ao sistema alimentar dominante, à produção e
distribuição de alimentos, sigam buscando se ajustar aos desafios que tem enfrentado e se mantendo no protagonismo, sua legitimidade tem sido colocada em discussão. A perda de legitimidade está ligada aos efeitos negativos em termos sociais, ambientais e econômicos deste sistema. Neste sentido, surgem “novos arranjos” com o intuito de buscar a construção de um sistema alimentar cujo foco é garantir a segurança alimentar, a preservação ambiental e demais aspectos da sustentabilidade. Neste artigo pretendemos discutir os “novos arranjos”, suas potencialidades e limitações em contribuir para transformações no sistema alimentar. A partir de revisão de literatura e pesquisa documental buscamos identificar o surgimento destes “novos arranjos” no estado de Santa Catarina (SC) e sua relação com a construção de sistemas alimentares sustentáveis. Para tanto, analisamos o potencial transformativo de redes de agroecologia, cooperativas, grupos de aquisição de alimentos que envolvem produtores e consumidores, políticas públicas de aquisição de alimentos e novas formulações de instrumentos regulatórios. Foi possível identificar um potencial de construção dos sistemas alimentares em todos os arranjos mencionados e na interação entre estes arranjos.
Palavras-chave: sistemas alimentares, segurança alimentar; agricultura familiar; governança.
1 Doutoranda em Desenvolvimento Econômico, Unicamp; lilianpellegrini@gmail.com. 2 Instituto de Economia, Unicamp, belik@unicamp.br. 3 Cepa/Epagri, jurandigugel@gmail.com.
2
Abstract Although the regulatory "assemblages" linked to the dominant food system, the
production and distribution of food, continue to seek to adjust to the challenges it has faced and remain in the leading role, its legitimacy is under discussion. The loss of legitimacy is linked to the adverse social, environmental and economic effects of this system. In this sense, "alternative assemblages" arise in order to seek the construction of a food system whose focus is to guarantee food security, environmental preservation and other aspects of sustainability. This paper intends to discuss the "alternative assemblages", their potentialities and limitations in contributing to changes in the food system. From the literature review, documentary research and interviews the paper seek to identify the emergence of these "alternative assemblages" in the state of Santa Catarina (SC) and its relation with the construction of sustainable food systems. To do so, the transformative potential of agroecology networks, cooperatives, food acquisition groups, food banks, public policies and new regulatory instruments were analysed. It was possible to identify the potential of food systems construction in all the mentioned assemblages and in the interaction between these assemblages.
Keywords: food systems, food security, family farming and governance.
Introdução
1. Introdução
O sistema alimentar apresenta um período de crescentes vulnerabilidades
que inclui a obesidade, desnutrição, pobreza, fome, degradação ambiental,
escassez de recursos e mudanças climáticas. Vulnerabilidades que em muito são
de responsabilidade do próprio sistema alimentar4 (WILLETT et al., 2019, p. 2).
Dentre as externalidades causadas pelo sistema alimentar estão a degradação
dos solos em função do uso intensivo, a contaminação dos solos e da água e o
desmatamento. Estas externalidades são exemplos de ações antrópicas que
afetam diretamente o meio ambiente e tem impactos sobre as mudanças
climáticas. Paralelamente observa-se a deterioração da saúde da população,
sinais de diminuição de expectativa de vida a partir da ampliação da obesidade
junto com doenças cardíacas e diabetes relacionadas diretamente à hábitos
alimentares pouco saudáveis decorrentes do sistema alimentar atual.
A questão que se coloca é: como responder aos riscos enfrentados?
Diante deste questionamento o sistema alimentar está hoje em uma importante
4 “Because food systems are a major driver of poor health and environmental degradation”.
3
encruzilhada constituída por discussões em torno da política alimentar, políticas
públicas e sistemas regulatórios. Diversos atores sociais e seus grupos - o que
inclui grupos de consumidores, movimentos da sociedade civil, grupos
corporativos e atores políticos - estão buscando formas de solucionar tanto os
desafios urgentes quanto os desafios futuros. O resultado destes esforços tem
tomado a forma de intervenções, programas e políticas em nível nacional e
global (MARSDEN; HEBINCK; MATHIJS, 2018). Globalmente podemos
destacar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a discussão que o
envolve como resultado destes esforços.
No entanto, as políticas públicas e intervenções utilizadas como soluções
para estes desafios são tradicionalmente voltadas para produção e distribuição,
o que contempla incentivos para a intensificação produtiva e para o comércio de
produtos agrícolas. No entanto, o impulso à produção e comércio não
necessariamente são capaz de responder aos desafios impostos para alcançar
segurança alimentar, sustentabilidade e soberania alimentar (MARSDEN, 2013).
Neste contexto, um conjunto cada vez maior de atores, citados acima, vem
criando uma ideia comum de que resolver tais questões exige uma mudança
realmente transformadora nos sistemas alimentares (LANG, 2018; PLOEG,
2010).
Como “mudanças transformadoras” podemos identificar a construção de
“arranjos”5 regulatórios alternativos, como redes alimentares alternativas,
iniciativas de bem-estar alimentar, cooperativas de alimentos sustentáveis e
grupos de compra. Estes “arranjos” envolvem a sociedade civil, pequenos
negócios e agricultores, baseados em modelos de governança cooperativos e
colaborativos e são caracterizados por terem caráter local, por vezes trans-local,
5 O termo “arranjo” é uma tradução dos autores para o conceito “assemblage” discutido por
Marsden; Hebinck e Mathijs (2018).
4
e se basearem no desenvolvimento de “cadeias de fornecimento mais curtas”
entre produtores e consumidores (MCFARLANE, 2009).
No entanto, por mais que tais novos “arranjos” venham se desenvolvendo
de maneira consistente ainda não está claro se, apesar de seu potencial
transformador, estas configurações geram uma transformação efetiva no
sistema alimentar. As estruturas regulatórias dominantes, baseadas no fomento
limitado à produção e distribuição de alimentos, seguem se ajustando aos
desafios que tem enfrentado e seguem mantendo protagonismo. A geração de
mudanças efetivas requer a transformação dos “arranjos” na estrutura
regulatória dominante, enraizada e institucionalizada sem, no entanto, perder
sua integridade e autonomia.
Neste artigo pretendemos discutir os novos “arranjos”, suas
potencialidades e limitações em contribuir para transformações no sistema
alimentar. O intuito é analisar criticamente: (i) as oportunidades, potenciais e
barreiras das cadeias curtas e o seu potencial no desenvolvimento rural, (ii) se o
crescimento recente das cadeias curtas ou alternativas de alimentos (alternative
or short food supply chains - SFSCs) são um contramovimento de longa duração
ou são apenas iniciativas locais de curta duração.
Como fundamentação teórica nos baseamos na discussão em torno dos
“arranjos” de Anderson, McFarlane e Li (ANDERSON; MCFARLANE, 2011; LI,
2007; MCFARLANE, 2009), assim como a síntese de Marsden, Hebinck e
Mathijs (2018) da série de estudos que faz parte do projeto denominado
TRANSMANGO, projeto europeu que buscou investigar a vulnerabilidade e
resiliência dos sistemas alimentares europeus cuja discussão se coloca em
oposição à continuidade da ênfase na modernização como resposta à pobreza
e insegurança alimentar. Neste sentido, os novos “arranjos” estariam surgindo
ou sendo fortalecidos por serem respostas concretas à incapacidade do modelo
5
de governança vigente em gerar respostas efetivas à questão alimentar, o que
se agrava com a tendência de retração dos mecanismos de bem-estar social.
Marsden, Hebinck e Mathijs (2018) conceituam estes “arranjos”
alternativos considerando sua participação na criação de novos arranjos de
governança. Visto que são as falhas dos arranjos de governança vigente o
grande condutor da insegurança alimentar. Este processo é o ponto de partida
para a discussão que travamos aqui, que avança no sentido de identificar estes
novos “arranjos” no estado de Santa Catarina a partir de uma revisão de literatura
e pesquisa documental. O estado de Santa Catarina possui ampla presença de
“arranjos”, em especial na forma de organização entre agricultores, em função
de ser constituído de pequenas propriedades agrícolas e agroindustriais,
formada por agricultores e articulações locais, que a partir da pluriatividade e
multifuncionalidade proporcionam grande diversidade em termos de produção
de alimentos e serviços, como turismo e culinária regional.
Além desta introdução o artigo conta com mais três seções. A segunda
seção, se trata de uma análise do sistema alimentar e de seus “arranjos” com
foco nos “novos” arranjos ligados à construção de sistemas alimentares
sustentáveis. A terceira seção descreve os “novos” arranjos em Santa Catarina”
e a quarta seção analisa estes arranjos a partir do arcabouço teórico
apresentado na segunda seção. A última seção inclui as considerações finais.
2. O sistema alimentar
Dispomos hoje de uma crise sem precedentes de insegurança alimentar
interconectada com crises ecológica, social e política. Se trata de uma crise do
sistema alimentar em função do reconhecimento de uma multiplicidade de
externalidades negativas. Crise que em muito reflete os efeitos da grande
6
concentração do valor econômico gerado pelo sistema alimentar nas mãos de
poucas corporações de processamento, distribuição e oferta de refeições. A
concentração vem junto com processos de produção, distribuição e consumo
cada vez mais padronizados, intensivos e em grande escala.
Os efeitos da concentração da produção e do valor, padronização, escala
e intensificação da produção geram efeitos negativos diversos. No que se refere
aos efeitos ambientais negativos, consta a diminuição da disponibilidade de
recursos, diminuição da biosiversidade e disseminação de contaminação
ambiental (FAO, 2014; MARSDEN; MORAGUES-FAUS; SONNINO, 2018;
SONNINO; FAUS; MAGGIO, 2014). O recente relatório do EAT-Lancet,
Commission on Food, Planet, Health, atesta que o sistema alimentar é o “major
driver” da degradação ambiental de comprometimento da saúde da população
no mundo hoje (WILLETT et al., 2019). O EAT coloca que se existe a pretensão
de transformar a produção em sustentável até 2050 se faz necessário diminuir
em 75% as falhas no aproveitamento de fertilizantes, água e demais insumos
agrícolas. Este aumento de eficiência inclui também mitigação de gases de efeito
estufa e melhoria das práticas agrícolas.
Assim como, o modelo de produção é apontado como fator explicativo
para os surtos de doenças e pragas a exemplo da febre aftosa (MARSDEN et
al., 2010, p. 24), doença da vaca louca, tuberculose suína (ROSSI; BUI;
MARSDEN, 2019) e, mais recentemente, a nova crise em torno da peste suína
africana que em poucos meses se espalhou por todas as províncias e regiões
chinesas, assim como o Camboja, Mongólia e Vietnam e põe em risco a
disponibilidade do produto e toda a estrutura produtiva envolvida a nível mundial.
No que se refere aos sobre a saúde da população inclui-se efeitos como
obesidade, desnutrição e queda da expectativa de vida. O sistema alimentar
ligado à intensificação, padronização e escala promove a oferta de alimentos
processados que são baratos, altamente calóricos e com baixo conteúdo
7
nutricional, cujo consumo resulta em uma maior incidência de sobrepeso e
obesidade (FAO, IFAD, Unicef, WFP, 2018, pp. 27–30) e desperdício de
alimentos (BURLINGAME; DERNINI, 2012). Os hábitos alimentares são ser
reconhecidos, junto com o tabagismo, hipertensão, poluição do ar e saneamento
básico, como fatores de risco quando se discute saúde (FOREMAN et al., 2018).
Estes fatores são responsáveis por haver em algumas regiões, especialmente
nos países do Norte, desaceleração, estagnação ou até retrocesso em termos
de expectativa de vida (HIAM et al., 2018). Nos Estados Unidos se observa nos
últimos 30 anos abrupto aumento da obesidade e subsequente diminuição da
expectativa de vida em função de diabetes (STEWART; CUTLER; ROSEN,
2020). Esta tendência é ainda mais evidente quando observados dados
prospectivos para as próximas gerações, e, este movimento é relacionado aos
hábitos alimentares (MIYAMOTO et al., 2019).
Os hábitos de consumo baseados em alimentos não nutritivos e grandes
porções causam, também, o desperdício de alimentos. Este desperdício se dá
em função de uma distribuição em massa, que exige transporte de longa
distância, embalagens, refrigeradores e outros dispositivos para proporcionar
uma vida útil mais longa aos alimentos (HLPE, 2014). O resultado é uma
estimativa de que cerca de um terço das partes comestíveis dos alimentos
produzidos para consumo humano sejam perdidos ou desperdiçados
globalmente (GUSTAVSSON et al., 2011, p. 4).
Além disso, a intensificação das práticas agrícolas está agravando a
mudança climática ao intensificar também o esgotamento de recursos, o uso
excessivo de fertilizantes e agroquímicos, a contaminação da água, a poluição
do ar e o desmatamento (FRIEDMANN, 2000; SONNINO; MARSDEN;
MORAGUES-FAUS, 2016). O sistema alimentar contribui com 19%–29% da
produção global de gases que contribuem com o efeito estufa produzida pelo
homem (VERMEULEN; CAMPBELL; INGRAM, 2012, p. 195) e a produção de
8
alimentos e demais produtos agrícolas consomem 70% da água doce retiradas
dos rios e águas subterrâneas6 (MOLDEN, 2013).
Os efeitos diretos em termos de produção e consumo provenientes da
crise que o sistema alimentar enfrenta são apenas parte de um quadro complexo
das crises ecológica, econômica, social e ambiental já mencionadas. Quadro
complexo cuja governança preexistente no sistema alimentar não está sendo
capaz de apresentar soluções efetivas (MARSDEN; HEBINCK; MATHIJS, 2018).
A segurança alimentar e a sustentabilidade apresentam-se em risco
crescente no avançar do século XXI. As crises ecológica, social e ambiental se
aprofundam de maneira ainda mais acelerada a partir da crise econômica. A
crise que se iniciou em 2007-08 gera efeitos encadeados sobre o sistema
alimentar no mundo especialmente no que diz respeito à prescrição de
austeridade que atinge a maioria das economias mundiais. O Brasil, em
específico, também enfrenta tais efeitos. A diminuição de recursos disponíveis
para alimentação, meio ambiente e saúde levam as externalidades do sistema
alimentar, discutidas acima, para um outro patamar de complexidade, pois, a
sustentação de ações paliativas no que diz respeito ao meio ambiente,
alimentação e bem-estar social dependiam da ação dos estados nacionais.
3. Os “arranjos” regulatórios
O termo “assemblage”, que neste trabalho optou-se por traduzir como
“arranjo” surge a partir da “assemblage theory” de Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Esta teoria inspira a análise do conjunto de projetos que coexistem e interagem
entre si, dotando as transformações - à nível local, municipal, incluindo a zona
6 “The production of food and other agricultural products takes 70% of the freshwater withdrawals from
rivers and groundwater.”
9
rural dentre outros - de forma e conteúdo que de maneira agregada são capazes
de reformular os sistemas alimentares e os regimes como um todo. A
“assemblage theory” é uma tentativa de abordar os sistemas alimentares para
além da questão social, incluindo a interação entre atores sociais e o “material”,
isto é, a interação entre alimentação, mercados, infraestrutura, sistemas de
transporte e logística.
A validade e utilidade desta abordagem é, segundo Marsden, Hebick e
Mathijs (2018), permitir uma melhor teorização e análise empírica das condições
pós-crise em torno do sistema alimentar, o que permite novos padrões e rotinas
em termos de recursos e relações sociais. Portanto, permitindo a análise da
paisagem agroalimentar a partir da coexistência de uma heterogeneidade de
“arranjos”. Os “arranjos” são dinâmicos, por vezes são contrastantes entre si,
capazes de se transformar, e, até criar novos “arranjos”.
A possibilidade de analisar tais “arranjos” permite visualizar a
heterogeneidade da paisagem agroalimentar ao longo de dois extremos,
legitimados por grupos ideologicamente opostos. De um lado, constam os
supermercados e as grandes corporações multinacionais que representam o
regime regulatório ligado à “modernização” agrícola – e denominado por Ploeg
(2008) como impérios alimentares. De outro lado, constam os movimentos e as
redes alimentares alternativas locais e trans-locais (GOODMAN; DUPUIS;
GOODMAN, 2012). No próximo item discutiremos estes dois extremos: o “velho”
e o “novo” em termos de regimes regulatórios.
O “velho” regime regulatório e sua perda de legitimidade
Os regimes regulatórios são arranjos de mecanismos de direção e
controle que influenciam a operação de um setor social específico. Estes regimes
contemplam, além das regras que orientam seu comportamento, os
10
procedimentos utilizados para sua criação e para a manutenção de sua
legitimidade; as instituições que estabelecem, promulgam e implementam
normas e os princípios e narrativas justificam sua existência. Os regimes
regulatórios não são estáticos. A legitimidade de um regime e de seus atores, as
leis, usos, costumes, contratos coletivos e outras regras, assim como sua
estrutura organizacional mudam ao longo do tempo (MAX PLANK INSTITUTE,
[S.d.]).
Na Europa pós-Guerra Fria o arranjo regulatório em torno dos sistemas
alimentares e baseado na produção e distribuição de alimentos foi moldado com
base na iniciativa privada e participação de recurso estatal para garantir acesso
à alimentação via políticas de bem-estar social (MARSDEN; HEBINCK;
MATHIJS, 2018). No Brasil, a questão alimentar, que era entendida como um
problema de abastecimento até o primeiro quarto do século XX, passa a ser
abordada como um problema de intermediação, entendendo-se que a questão
da produção estava resolvida bastava fazer com que o alimento chegasse até a
população. Neste sentido, passa a contar com um sistema regulatório voltado
para os preços e a oferta até o final dos anos 1980. Nos anos 1990 a atuação se
aproxima do modelo implementado na Europa, ou seja, ampla
desregulamentação da questão alimentar que passa a ser de responsabilidade
do setor privado (BELIK; SILVA; TAKAGI, 2005). A expectativa dos regimes
regulatórios na Europa e no Brasil são baseados na concepção de que o
crescimento econômico, ao proporcionar renda, solucionasse a questão da
insegurança alimentar a partir de mecanismos de mercado.
Na Europa, o regime baseado na desregulamentação mostra sinais mais
evidentes de esgotamento quase duas décadas a partir da crise de 2007-08 e
das decorrentes medidas de austeridade, gerando efeitos em termos de
aumento do preço dos alimentos, fome e desnutrição. No Brasil, a ineficácia do
regime em gerar respostas à questão da fome perpassa todo o período de sua
11
vigência e culmina em um novo sistema regulatório implementado a partir dos
anos 2000. Este novo sistema regulatório adotado pelo governo passa a
reconhecer o tema da fome como problema central, e, conta com um grupo de
políticas integradas através do programa denominado “Fome Zero”, programa
construído para garantir quantidade suficiente, regularidade e qualidade da
alimentação (BELIK, 2003) e pela decorrente instituição do Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN (Lei n. 11.346 de setembro de 2006).
No entanto, este novo regime regulatório acaba por passar por uma
desestruturação e culmina na extinção do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional no início de 2019 (CASTRO, 2019).
O cenário mundial pós-crise de 2007-08 vigente é de aumento dos preços
dos combustíveis e dos alimentos, instabilidade internacional nos mercados de
alimentos e austeridade. Nestas condições, as estruturas regulatórias dos
sistemas alimentares, que já se mostravam vulneráveis em função de não
apresentarem soluções contundentes para a crise ambiental e ecológica passa
a contar com a crise social e econômica. As reformulações destes “velhos”
regimes regulatórios não se mostram suficientes para evitar e reverter a
fragilização resultando em uma perda de sua legitimidade.
As estruturas dominantes passam a buscar uma nova roupagem para
reverter esta perda de legitimidade. Por um lado, via redução dos custos com o
intuito de manter a oferta de alimentos baratos, o que pode ser denominado
como um estreitamento da margem econômica na agricultura, ou “price-
squeeze” (PLOEG et al., 2000). Por outro, via adoção de princípios sustentáveis,
de economia circular e outras estratégias que podem ser consideradas
mecanismos de “greening”(GALLI; BRUNORI, 2018). No entanto, tais
estratégias – e outras mais que vêm sendo buscadas – não tem se mostrado
suficiente para recobrar a legitimidade do modelo. Isto pode ser observado por
duas óticas: a do consumidor e a do produtor.
12
A partir da perspectiva do consumidor existe uma ampliação da
preocupação da população em relação à ecologia, saúde e bem-estar animal.
Apesar das mudanças de comportamento dos consumidores dependerem do
contexto em que o consumidor se insere, aspectos de seu cotidiano e percepção
de qualidade, a tendência geral é de ampliação da demanda por produtos
voltados para aspectos ecológicos e sociais.
A partir da perspectiva do produtor existe um esgotamento do modelo
agrícola vigente. A lógica econômica da “modernização” é de sustentação da
renda agrícola a partir do crescimento da produção total e do aumento da
eficiência nas técnicas de produção, desta forma o seu avanço gera efeitos a
exemplo da:
- Pressão contínua e crescente sobre as rendas agrícolas (PLOEG et al., 2000);
- A necessidade de investimento contínuo em novas tecnologias para garantir
uma queda contínua nos custos de produção, requisito para se manter
competitiva – denominado "technological treadmill” (COCHRANE, 1993);
- Ampliação da necessidade de investimentos decorrentes de novas demandas
por qualidade, por novos mecanismos de logística (a exemplo do mercado
online), boas práticas e a devida rotulagem (a exemplo dos selos fairtrade e
rainforest), novas regulamentações ambientais, padrões de bem-estar animal e
medidas sanitárias, que também gera pressões sobre o custo sem,
necessariamente, aumentar receitas – o que por vezes é denominado “regulatory
treadmill” (WARD, 1993).
Os aspectos acima mencionados fazem com que respostas
convencionais, pautadas na intensificação dos mecanismos da “modernização”,
tenham resultados cada vez mais restritos. Nestas condições tem-se construído
“novas” respostas pautadas em aspectos como:
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- O desenvolvimento de práticas ligadas a multifuncionalidade do rural, incluindo
a diversificação em novas atividades, manejo da natureza, da paisagem e
agroturismo (OOSTINDIE, 2015; SCHNEIDER, 2003);
- Novas formas de redução de custos a exemplo das “cooperativas ambientais”,
que permitem ações conjuntas em relação à sustentabilidade ecológica e
negociação conjunta por políticas mais compatíveis com as realidades locais
(RENTING; PLOEG, 2001), e da “certificação participativa” que coloca sob
responsabilidade coletiva a qualidade do produto a ser oferecido sem
necessidade de arcar com os custos de uma terceira parte (FRANCISCO;
RADOMSKY, 2009);
- Aumento do valor agregado dos produtos agrícolas, a partir da produção
agrícola artesanal, regional, agroecológica e orgânica, incluindo processamento
destes produtos, a ser vendidas em “novos” canais de comercialização com
destaque a venda direta ao consumidor. As possibilidades de ampliação do valor
a ser absorvido pelo agricultor é possível a partir de uma ampliação da
percepção das insustentabilidades do sistema alimentar atrelada ao surgimento
de uma “nova” demanda ligada a mudança de hábitos de consumo que ganha
força nas últimas década e vem sendo denominada como “quality turn”
(GOODMAN; DUPUIS; GOODMAN, 2012).
Podemos observar, portanto, por um lado, a perda de legitimidade dos
“velhos” regimes e de sua incapacidade de reverter tal cenário. Por outro, consta
a abertura de espaço para “novos arranjos regulatórios”, com suas “novas”
respostas a partir de redes alternativas de alimentos (RAA)7, iniciativas de bem-
7 Alternative Food Networks (AFN)
14
estar alimentar, cooperativas de alimentos sustentáveis e grupos de
compradores (MARSDEN; HEBINCK; MATHIJS, 2018).
Os “novos arranjos regulatórios”
Os novos e alternativos “arranjos” constituem um igualmente novo
paradigma de plataformas de transformação, distinguidas como locais onde
ocorre a reconstrução do sistema alimentar, e, são construídas sobre um
conjunto diversificado e fragmentado de atores e iniciativas, e, arranjos de
governança. O grande objetivo dos novos “arranjos” é solucionar a insegurança
alimentar em termos locais e regionais, garantir soberania alimentar, bem como
tendo, muitas vezes, seu desenvolvimento direcionado a aspectos ecológicos e
sustentáveis (MARSDEN; HEBINCK; MATHIJS, 2018). Estas “novas” estruturas
mostram ser capazes de gerar soluções para os problemas centrais em torno da
segurança alimentar e, do sistema alimentar como um todo, e, vem avançando
de maneira consistente ao longo do tempo (GOODMAN; DUPUIS; GOODMAN,
2012). Contemplam um conjunto de princípios muito mais holístico, diverso,
ecologicamente correto e nutricionalmente robusto, em torno do qual as
sinergias entre segurança alimentar, sustentabilidade e soberania podem ser
novamente recriadas e ativamente reconectadas.
Os “arranjos” contemplam as 'Redes Alimentares Alternativas' (RAA), e,
as cadeias curtas ou alternativas de alimentos (alternative or short food supply
chains - SFSCs). As SFSCs incluem agricultura orgânica, produção de qualidade
e vendas diretas e cobrem a interrelação entre atores que estão diretamente
envolvidos com a produção, consumo e processamento de novos produtos
alimentares (RENTING; MARSDEN; BANKS, 2003).
Os atores envolvidos fazem parte da sociedade civil, de pequenas
empresas independentes, são agricultores e proprietários de terras, e se
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baseiam em modelos de governança cooperativos e colaborativos. Os “arranjos”
unem estes atores em torno de uma associação de práticas e relações da
produção, consumo e distribuição de alimentos, conectando consumidores com
produtores e processadores de alimentos, bem como cidades e países e o global
com o local. Os elementos que compõem os “arranjos” são heterogêneos, e
podem ser humanos e/ou não-humanos, orgânicos e inorgânicos, técnicos e
naturais (ANDERSON; MCFARLANE, 2011).
Dentre as características mais comuns dos “arranjos” destacam-se seu
caráter local, e por vezes trans-local, baseado em cadeias curtas de
comercialização entre consumidores e produtores e por não serem organizações
corporativas (MCFARLANE, 2009). Assim como, sua continua reconfiguração
(“reassembling”) entre novos, velhos e diferentes recursos, ideias, elementos e
discursos gerando novas práticas e expressões que integram projetos humanos
e não-humanos, realidades naturais e sócio-materiais (LI, 2007).
No entanto, apesar da perda de legitimidade por parte dos “velhos”
regimes e da ampliação da presença destes “arranjos”, aqueles permanecem
sendo dominantes no que diz respeito ao sistema alimentar. Diante da
persistência destes “velhos” regimes surge o questionamento de se os novos e
alternativos “arranjos” são capazes de gerar efetiva transformação (MARSDEN;
HEBINCK; MATHIJS, 2018).
A percepção de Marsden, Hebick e Mathijs (2018) é a de que o avanço
nos “novos arranjos regulatórios” depende da capacidade de adaptação e ajuste
das estruturas regulatórias dominantes e da capacidade dos “novos arranjos” de
se tornarem a estrutura regulatória dominante. Assim como, a transformação dos
“novos arranjos” em estruturas dominantes só seria possível a partir de seu maior
enraizamento e institucionalização, sem que sua integridade e autonomia sejam
comprometidas.
16
A partir da discussão em termos de “novos arranjos” este artigo pretende
evidenciar o potencial transformador destas configurações no que se refere ao
sistema alimentar. Para tanto no próximo item consta o suporte empírico para a
discussão a partir de uma descrição e análise dos principais “arranjos”
encontrados em Santa Catarina (2018).
4. Os “arranjos” em Santa Catarina
Em Santa Catarina os “novos arranjos regulatórios” se manifestam a partir
de formas muito diversas que incluem diferentes modelos de interação entre
produtores, consumidores e instituições governamentais, gerando diferentes
modelos de governança. Dentre os principais “novos arranjos” que se formam
em Santa Catarina ou em muito afetam as relações na região constam: redes de
agroecologia, cooperativas, grupos de aquisição de alimentos que envolvem
produtores e consumidores, políticas públicas de aquisição de alimentos e novas
formulações de instrumentos regulatórios.
- Redes de agroecologia: A Rede Ecovida de Agroecologia atua no Rio
Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná e é uma rede horizontal e
descentralizada composta por grupos informais, associações e cooperativas de
agricultores agroecológicos. A Rede é responsável por articular conexões entre
produtor e consumidor, organizações não governamentais e demais instituições
(REDE ECOVIDA, 2019).
- Redes de cooperação: Em Santa Catarina existem, de acordo com o
Censo Agropecuário, 91.307 estabelecimentos cujos agricultores são
associados a alguma cooperativa, associação ou entidade de classe – o que
representa 49,9% do total dos agricultores do estado. 63.647, ou 34,8% do totak
dos estabelecimerntos catarinenses, são associados a alguma cooperativa, em
contraste no Brasil como um todo 11,4% dos agricultores são associados a
17
cooperativas. Santa Catarina fica atrás apenas do RS em relação a proporção
de agricultores que são associados a alguma cooperativa, associação ou
entidade de classe. Entre os estabelecimentos catarinenses que possuem
agricultores associados a cooperativas 85,8% são estabelecimentos de até 50
hectares. As cooperativas em Santa Catarina podem ser caracterizadas pela
ampla presença da agricultura familiar, são em maioria cooperativas de
agricultores familiares, ou seja, cooperativas que possuem em maior parte
agricultores familiares como cooperados. Assim como, o estado dispõe de
inovações em termos organizacionais como os agrupamentos de cooperativas
denominadas cooperativas centrais e as cooperativas descentralizadas. Outra
modalidade de cooperativa que tem notoriedade no estado são as cooperativas
de agricultores orgânicos e agroecológicos. Nos itens seguintes abordaremos
cada um destes modelos. Emtre as cooperativas da agricultura familiar, um
exemplo é a Cooperativa de Produção Agropecuária Conquista,
Cooperconquista, do município de Garuva localizado no Norte do estado de
Santa Catarina. A Cooperconquista, que atua na produção de hortícolas, figura
em pesquisa feita em 2015 como fornecedora para a alimentação escolar do
município de Joinville, município vizinho de Garuva. O abastecimento ocorre
semanalmente com entregas ponto-a-ponto, ou seja, a cooperativa é
responsável por levar os alimentos até as escolas municipais de Joinville –
município com maior população de Santa Catarina, com cerca de meio milhão
de habitantes. A capacidade organizacional da cooperativa chama a atenção em
função de que trata-se de uma organização com poucos associados, contempla
apenas 13 famílias de agricultores. A Cooperconquista conta com apoio de
cooperativas aliadas, como a Coopaville, a Cooperdoche (cooperativa regional)
e faz parte da Cooperativa Central de Reforma Agrária de Santa Catarina
(CCA/SC) (ELIAS, 2016). A Coperconquista é um exemplo entre inúmeras
pequenas cooperativas que tem como principal intuito o fortalecimento dos
agricultores familiares e sua inserção nos mercados. Em pesquisa do Centro de
18
Socioeconomia e Planejamento Agrícola do estado de Santa Catarina observa-
se como principal motivação da associacao entre agricultores a venda de
produtos, processados e in natura (MARCONDES et al., 2012). Dentre as
cooperativas agroecológicas, foram identificadas 15 organizações de
agricultores com direcionamento ecológico no trabalho de Ferrari (2011), com
destaque para duas: A Associação dos Agricultores Ecologistas das Encostas
da Serra Geral (Agreco) e a Cooperativa Ecológica de Agricultores, Artesãos e
Consumidores da região Serrana (EcoSerrra). A Agreco, situada na região Sul
Catarinense, surge em 1996 em resposta aos desafios de inserção e
permanência nos mercados diante da crise que se abateu sobre a agricultura a
região na década de 1990. O objetivo primeiro da organização era propiciar a
venda conjunta de produtos da região para uma rede de supermercados da
capital do estado, Florianópolis. O que se seguiu foi o avanço da Agreco para
venda e processamento de produtos orgânicos e o desenvolvimento de
atividades para além da agropecuária, com destaque para o turismo rural e para
a unidades de capacitação. No ano de 2005 surge a cooperativa
CooperAgreco.A EcoSerra surge em 1999 em Lages entre os agricultores que
em conjunto participavam de uma feira no município e com apoio do Centro
Vianei de Educação Popular. O objetivo da criação da cooperativa se concentra
na viabilidade de escoamento dos produtos para centros urbanos, como
Florianópolis e São Paulo. As cooperativas centrais, por sua vez, têm como
intuito gerar uma rede de cooperação ampla para fortalecimento dos cooperados
e das suas respectivas cooperativas. Foram identificadas em pesquisa realizada
em 2016 (ELIAS, 2016) a existência de três cooperativas centrais, UCAF
(Unidade Central Das Agroindústrias Familiares), Cecaf (Central das
Cooperativas da Agricultura Familiar) e CCA (Cooperativa Central de Reforma
Agrária de Santa Catarina). A Cecaf e a UCAF contemplam cerca de 100
cooperativas, superando 10 mil agricultores associados cada uma. Estas
cooperativas apresentam capacidade organizacional para atender demandas de
19
grande porte e que exigem entregas pulverizadas, o que inclui compras
institucionais da alimentação escolar que exigem entregas diárias e
descentralizadas (ELIAS, 2016; PETTAN, 2004). A UCAF atua em conjunto com
a APACO (Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense) e tem
sede em Chapecó. Segundo Pettan (2004, p.65) a associação tem como
resultado a articulação para resolução conjunta de problemas, os quais,
individualmente, seriam de difícil superação. A organização atua na mediação
entre agricultores e órgãos públicos, consumidores e fornecedores; na promoção
de serviços – o que inclui apoio técnico, via contrato próprio ou apoio de órgãos
públicos; no marketing através da marca “Sabor Colonial”, comercialização e
logística dos produtos dos cooperados; gestão da qualidade e inspeção
avalizados via código de barra; além de suprir a concorrência entre agricultores
e suas organizações. A Cecaf (Central das Cooperativas da Agricultura Familiar)
possui a capacidade de articular agricultores de todo o estado. A Central possui
um espaço onde possui atendimento ao público e dá suporte ao agricultor
familiar no acesso às vendas para demandas institucionais. De acordo com a
gerência da Cecaf a comercialização de produtos com destino ao PNAE prioriza
os agricultores familiares associados mais vulneráveis e não efetua cobrança
operacional para prestar este serviço de intermediação entre agricultor e
prefeituras (ELIAS, 2016). A Cooperativa Central de Reforma Agrária de Santa
Catarina (CCA/SC) é uma entidade que assume a representação política e
jurídica de 13 cooperativas e associações, incluindo a marca Terra Viva Produtos
da Reforma Agrária. A Cooperativa Central surgiu em 1996 e em 2016 anuncia
ter ofertado uma variedade de 18 produtos, que inclui leite e derivados, geleias,
conservas e peixes, para 1.700.000 (TERRA VIVA, 2016).
- Grupos de compras: entre os grupos de compra constam as Células de
Consumidores Responsáveis e o Comunidade Sustenta a Agricultura. As
“Células de Consumidores responsáveis” (CCR) são “arranjos de compra e
venda direta de alimentos orgânicos por pedido antecipado”. A iniciativa é um
20
projeto de extensão coordenado pelo Laboratório de Comercialização da
Agricultura Familiar (LACAF/UFSC) e busca promover a aproximação entre
grupos de agricultores e de consumidores. O intuito é ampliar a produção e
consumo de produtos orgânicos e não-convencionais a preços justos. O modelo
de compra e venda é baseado em compras pré-programadas o que significa que
a produção é inteiramente destinada ao consumidor, reduzindo, desta forma o
desperdício. O combate a perda e desperdício de alimentos permitiu que o
projeto fosse premiado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) (LACAF/UFSC,
2019). O "Comunidade que Sustenta a Agricultura" (CSA) representa um
modelo de agricultura e distribuição de alimentos orgânicos que tem como intuito
encurtar as distâncias entre consumidor e produtor. O modelo funciona de forma
que os consumidores se comprometem a comprar com regularidade uma
determinada quantia de produtos, e, ao mesmo tempo, contam com o
compromisso da oferta de alimentos de qualidade. O modelo CSA que tem suas
raízes na década de 1970 no Japão, chegou ao Brasil tendo o apoio do Ministério
da Agricultura, e contempla atualmente 400 famílias. O intuito do CSA é
promover um desenvolvimento agrário sustentável, que atua de forma a proteger
a natureza e a cultura local. Em Santa Catarina existem 8 locais envolvidos com
o CSA distribuídos em 8 municípios, incluindo Florianópolis, Blumenau, Joinville,
Tijucas, Itajaí, Santo Amaro da Imperatriz, Itapema e Jaraguá do Sul (CSA
BRASIL, 2019).
- Bancos de alimentos: O Mesa Brasil é uma rede nacional de bancos de
alimentos e colheita urbana que surge em 2003 como um programa do Serviço
Social do Comércio (SESC). O intuito é "contribuir para a segurança alimentar e
nutricional de pessoas em vulnerabilidade social, mediante a distribuição de
alimentos doados por parceiros, o desenvolvimento de ações educativas e a
promoção da solidariedade social em todo o país”. O Programa faz parte da
Rede Brasileira de Bancos de Alimentos e é certificado pela Global Foodbanking
Network (SESC, 2019a). Em Santa Catarina o programa atua em cinco
21
municípios, Chapecó, Lages, Blumenau, Joinville e São José. Um total de 3 mil
tonadas de alimentos passaram pelo Mesa Brasil de Santa Catarina em 2017 e
beneficiaram 448 instituições sociais distribuídas em 70 municípios catarinenses.
No ano de 2018 apenas em São José, onde o Mesa Brasil funciona dentro do
Ceasa, os boxistas e produtores rurais doaram 1.332 toneladas de frutas,
legumes e verduras (FLV) ao Mesa Brasil, um Programa de Segurança Alimentar
e Apoio Social que atua no combate à fome e ao desperdício de alimentos desde
2003 (SESC, 2019b).
- Políticas públicas de aquisições de alimentos: No ano de 2002 cria-se
no Brasil o PAA, um mecanismo de compras governamentais voltado para a
aquisição de alimentos da agricultura familiar com o intuito de estimular e
fortalecer estes agricultores. "A compra de produtos da agricultura familiar visa
garantir renda a este segmento de produtores, ao mesmo tempo em que poderá
melhorar as condições de alimentação das pessoas que se encontram em
situação de vulnerabilidade social ou em situação de insegurança alimentar"
(MATTEI, 2007). O mecanismo de compras governamentais é considerado um
dos mais “poderosos instrumentos que os governos têm à disposição” para gerar
incentivos às produções com atenção à forma em que o alimento é produzido,
sua origem e valor nutricional. Desta forma “serviços” prestados por estas
produções, como “serviços” ambientais e em termos de saúde pública, recebem
o devido incentivo (MORGAN; SONNINO, 2010). Em 2009 o Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), criado em 1950 e que hoje é um
programa hoje universal, atua em todos os municípios brasileiros, se transforma
em um mecanismo de compras governamentais de incentivo à agricultura
familiar, agricultura orgânica e grupos de quilombolas, assentados e indígenas.
O PNAE segue a mesma linha do PAA ao buscar valorizar aspectos do processo
produtivo e dos grupos envolvidos neste processo com o intuído de gerar
inserção destes nos mercados. Neste sentido, o PAA e o PNAE criam mercados
que podem ser considerados “aninhados”, ou seja, cria-se um mercado exclusivo
22
para um grupo específico de agricultores ao aumentar a demanda por alimentos
frescos, saudáveis, orgânicos, priorizando compras locais que geram
desenvolvimento local e benefício ao meio ambiente (PLOEG, 2011). Além do
incentivo direto à produção, o PNAE se destaca ao apresentar um potencial de
ruptura que contempla, além da criação de mercados “aninhados”, uma
mudança na ‘dieta alimentar’. A alimentação escolar atinge no Brasil 90% do total
dos alunos brasileiros, 42 milhões de pessoas que representam mais de um
quinto da população brasileira8. A grande abrangência do programa pode fazer
com que este seja considerado um instrumento de mudança de hábitos
alimentares, indo de encontro com a ações de marketing que incentivam o
consumo de produtos pouco saudáveis por crianças e adolescentes, públicos
mais suscetíveis a influências externas (BOONE, L.; KURTZ, 1998; REZENDE,
1989; SOUSA JUNIOR; CARNEIRO, 2013).
- Slow Food: O movimento Slow Food “promove projetos voltados à
salvaguarda da agrobiodiversidade, segurança e a soberania alimentar e a
nutrição a nível mundial” e vem atuando intensamente na elaboração de ações
em território brasileiro e catarinense. Desde 2004 o movimento atua junto ao
governo brasileiro no desenvolvimento de um trabalho de sustentação e
valorização dos produtos típicos e de qualidade nos territórios rurais brasileiros.
No ano de 2015 o Ministério do Desenvolvimento Agrário e o Movimento Slow
Food estabeleceram cooperação com o intuito de “adensar e integrar políticas
públicas para promover e apoiar a preservação e a valorização dos alimentos
típicos nos territórios onde se concentram os Agricultores Familiares e
Assentados da Reforma Agrária em todo o Brasil” (MDA, 2017). Neste sentido,
o movimento atua, na promoção de “mercados solidários, circuitos curtos,
valorização dos produtos da socioagrobiodiversidade e dos produtos locais;
8 A projeção do IBGE para a população brasileira em 2014 é de 202 milhões (IBGE, 2013). O Programa Nacional de
Alimentação escolar atingiu, em 2014, 42,3 milhões de alunos (FNDE, 2015).
23
valorização da produção artesanal e extrativistas; valorização dos alimentos
bons, limpos e justos”, assim como, “mapear atores que poderiam se integrar à
rede” (CEPAGRO, 2019).
- Marco legal: mudanças regulatórias: Mudanças no que tange à
regulamentação vem se desenvolvendo a partir de esforços de atores da
sociedade civil e instituições interessadas no sentido de facilitar o
desenvolvimento dos mercados para produtos da agricultura familiar, produtos
artesanais, orgânicos e agroecológicos. Neste âmbito, a produção orgânica se
destaca por acumular esforços que culminam na Lei dos Orgânicos estabelecida
em 2003. A evolução das discussões sobre a produção orgânica no Brasil gerou
uma inovação organizacional importante que é a certificação participativa, onde
grupos de agricultores assumem responsabilidade coletiva de certificação
mútua, o que gera a superação o obstáculo do custo do pagamento de
certificação via terceiros. O marco legal participativo contribui para a
"consolidação" de um sistema de produção sustentável (ou mais sustentável)
O potencial transformativo dos novos “arranjos” em Santa Catarina
Marsden, Hebinck e Mathijs (2018) identificaram “arranjos” a partir da
seleção de casos em três tipos de arranjos de acordo com seu propósito: (1)
reforçar os direitos alimentares de grupos vulneráveis; (2) reconectar
sustentabilidade e saúde; (3) reconstruir os sistemas alimentares a partir de
novas sinergias entre rural e urbano. Em Santa Catarina esta categorização é
útil por contemplar todos os “arranjos” mencionados anteriormente. Os bancos
de alimentos, as cooperativas centrais, as redes de agroecologia e as políticas
públicas de aquisição de alimentos como forma de atender a população
vulnerável (1). Os bancos de alimentos atuam a partir da doação de alimentos,
gerando efeitos positivos em termos de segurança alimentar. As cooperativas
centrais, as redes de agroecologia e as políticas de aquisição de alimentos
podem ser incluídas neste item ao contemplarem iniciativas para integrar
24
produtores aos mercados, formando uma rede de proteção que visa ampliar a
renda no campo. As redes de agroecologia, as cooperativas, os grupos de
compras e as políticas públicas promovem a narrativa que unifica saúde e
sustentabilidade (2) ao promover a produção agroecológica e orgânica e a
valorização das cadeias curtas de comercialização entre produtores e
consumidores, alimentos regionais e artesanais.
A reconstrução dos sistemas alimentares (3), foco deste artigo, pode ser
identificada em todos os arranjos mencionados. As redes de agroecologia e
cooperativas promovem o empoderamento e capacitação do agricultor para
buscar os mercados urbanos, fazer novas parcerias e fortalecer sua presença
no sistema alimentar. Os grupos de compras aproximam consumidores e
produtores promovendo laços mais intensos de confiança e reciprocidade. Os
bancos de alimentos, em especial aqueles que envolvem diretamente os
produtores rurais como é o caso do Ceasa-SC, proporciona menor desperdício
e maior participação dos produtores e distribuidores na busca por soluções para
a questão alimentar. Por fim, as políticas públicas ao priorizar agricultores
familiares e produção agroecológica e orgânica promove e reforça a presença
destes agricultores e produtos nos mercados (ELIAS, 2016).
As diferentes formas de novos “arranjos” constituem uma nova
configuração do sistema alimentar, com enfoque na questão alimentar e na
efetiva solução para seus problemas fundamentais que incluem a fome e a
desnutrição. No entanto, apesar do surgimento de uma grande diversidade de
“arranjos”, seriam estes suficientes para gerar mudanças efetivas no sistema
alimentar?
Segundo Marsden, Hebinck e Mathijs (2018) os “novos” arranjos só
podem apresentar um real potencial transformador se forem capazes de
enfraquecer o sistema dominante de governança. Não parece possível, gerar
transformações efetivas se a narrativa permanecer distante dos preceitos da
25
segurança alimentar, e voltada para a preservação ambiental e proteção social.
O desenvolvimento de “arranjos” em Santa Catarina não significa,
necessariamente, que estes possuam um potencial de transformação que gere
mudanças efetivas no estado. Marsden, Hebinck e Mathijs (2018) colocam que,
como pré-condição para identificar tais mudanças efetivas, o regime regulatório
deve ser capaz de enfrentar múltiplos fatores de mudanças na paisagem que
afetam sua habilidade de sustentar sua legitimidade em termos de política,
tecnologia, regulação de mercado e confiança do consumidor; e se empoderar
de “arranjos” que para que se coloquem como alternativa viável ao regime
dominante.
Para os novos “arranjos” alimentares construírem uma legitimidade e se
tornarem mais empoderados e potencialmente transformadores, as evidências
sugerem quatro áreas de ação e oportunidade (MARSDEN; HEBINCK;
MATHIJS, 2018): (i) Os “arranjos” devem ter uma participação mais proativa
como parte de uma governança alimentar mais reflexiva, estratégica e
deliberativa para se tornar mais empoderadas e potencialmente transformadoras
e obter maior reconhecimento e oportunidades de fazer parte das estruturas
preexistentes de tomada de decisão: multinível, quadros regulatórios e políticas
públicas; (ii) unificação entre lobbies agrícolas e os movimentos alimentares
alternativos seguindo preceitos de segurança alimentar e nutricional associados
à melhoria da qualidade do alimento, biodiversidade, saúde e bem-estar. Desta
forma torna-se torna possível incluir agricultores convencionais e suas
organizações, que hoje são profundamente dependentes do regime regulatório
convencional; (iii) desenvolvimento de infraestruturas sociais e físicas como
unidades de processamento e distribuição - denominado de “missing middle” - e
programas governamentais de aquisição de alimentos mais decentralizadas e
baseadas e cadeias mais curtas de oferta de alimentos. Estas infraestruturas e
aquisições dariam suporte aos desafios de inserção nos mercados visto que os
26
“arranjos” alimentares alternativos são distintos em parte por ter uma produção
e localização geográfica bem distribuídas (ao invés de concentradas), o que
dificulta o atendimento da demanda dos centros urbanos; e, (iv) por fim, se faz
necessário que as agências governamentais estabelecidas, em todos os níveis,
passem a ter uma visão reflexiva do futuro dos sistemas alimentares em suas
áreas e regiões; criem plataformas para reunir os atores em todas as arenas de
governança; e, que, os “arranjos” alternativos que vem se proliferando alcancem
os princípios necessários para integrar com confiança e legitimidades as arenas
de governança já estabelecidas.
Neste sentido, a diversidade, dinâmica e entrelaçamento dos “novos
arranjos” catarinenses os colocam como alternativa viável para ocupar um
espaço cada vez mais amplo no sistema alimentar catarinense. O primeiro item
(i) é contemplado pelas mudanças regulatórias e políticas públicas criadas para
dar suporte ao desenvolvimento de redes alternativas de alimentos; o segundo
(ii) a forte interação das cooperativas, sejam centrais, da agricultura familiar ou
agroecológicas, com os mercados – em muito em função da oferta destes
produtos nas grandes redes varejistas – demostram a unificação de alguns
preceitos de qualidade; (iii) o terceiro contempla as políticas públicas, com
destaque ao PAA e PNAE já citados, e a estrutura desenvolvida pelas
cooperativas e demais redes de cooperação entre agricultores, que incluem
estrutura logística, de processamento e produtiva. O potencial transformador
pode, portanto, ser identificado em Santa Catarina.
5. Considerações finais
O sistema alimentar encontra-se envolto em diversos embates
constituídos por discussões em torno da política alimentar, políticas públicas e
sistemas regulatórios. Nesse sentido, diversos atores sociais têm buscando
formas de solucionar tais desafios. Tradicionalmente, as políticas públicas e
27
intervenções utilizadas como soluções para estes desafios são direcionadas
para produção e distribuição, o que não necessariamente é capaz de responder
à governança que requer ações que abarquem em conjunto a segurança
alimentar, sustentabilidade e soberania alimentar (MARSDEN, 2013). Neste
contexto, tem-se fortalecido a ideia comum de que a resolução de tais questões
necessariamente para por uma mudança nos sistemas alimentares e isso inclui
a construção de novos “arranjos”, tais como: redes alimentares alternativas,
iniciativas de bem-estar alimentar, cooperativas de alimentos sustentáveis e
grupos de compra.
Este artigo buscou trazer elementos que contribuem com a busca pelas
respostas de questões centrais sobre a diminuição da legitimidade dos sistemas
de governança estabelecidos e o surgimento desses novos “arranjos”. Como
estas relações se desenvolverão? Os dois sistemas de governança
permanecerão incompatíveis e em contestação e competição permanente? Será
que o Sistema dominante internalizara de forma radical os efeitos das
externalidades negativas ecológicas e metabólicas? Veremos todo o Sistema
mudar em direção à ecologia e nutrição e se tornar centrado na política
alimentar? Veremos o crescimento de novos “arranjos” desempenhando o papel
de reconstrução dos sistemas via processos e práticas locais e translocais?
Toda esta discussão requer o reconhecimento das estruturas estatais
estabelecidas de que não é possível continuar marginalizando as preocupações
em relação à política alimentar ou limita-la a estreitas especificações setoriais ou
científicas (MARSDEN; HEBINCK; MATHIJS, 2018). Os “arranjos” alimentares
precisam deixar de ser vistos como uma solução paliativa para cobrir uma
brecha9 aberta por formas de governança dominantes que se mostram pouco
efetivas. Para que isto se torne mais transformativo é preciso envolver uma
9 “filling in the gap”
28
reorganização mais pragmática de regras, regulações e relações de poder, uma
governança mais reflexiva para re-desenhar e re-construir os futuros da
alimentação.
No estado de Santa Catarina os “novos arranjos” identificados
apresentam diversidade, dinâmica e abrangência que demonstram potencial
transformador. Os “novos arranjos” abrangem tanto “arranjos” ligados à
organização dos agricultores, organização dos consumidores, formas
sustentáveis de diminuição do desperdício e suporte à segurança alimentar,
assim como existe um suporte por parte de mudanças de regulação que abrem
espaço para o desenvolvimento de novas estratégias que contribuem para a
construção de um sistema alimentar sustentável. Este texto se propôs a
apresentar tais “arranjos” que requerem pesquisa mais aprofundada para
evidenciar ainda mais suas potencialidades.
29
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