View
216
Download
0
Category
Preview:
Citation preview
As representações da cultura urbana da cidade de Belém apresentadas
nas webséries paraenses “A Solteirona” e “Sampleados”1
Victor LOPES DE SOUZA – Universidade Federal do Pará (UFPA)
RESUMO
As configurações de núcleos urbanos contemporâneos evidenciam uma pluralidade visual
materializada na comunicação imagética virtual que apontam vestígios do ethos urbano
das metrópoles. A mídia, por sua vez, materializa a arena de maior visibilidade social,
compondo assim o quarto bios da vida contemporânea – virtual – que se estabelece como
uma nova tecnologia de sociabilidade (SODRÉ, 2013), apresentando, produzindo e
reproduzindo padrões de normalidade e diferenças sociais, raciais e de gênero. Sua
abrangência é fortemente expandida pelo advento da Internet, que proporciona uma
dinâmica de convergência de mídias e rapidez na circulação de informações. Neste novo
contexto surgem as webséries, produtos midiáticos que contém traços próprios de meios
de comunicação que a antecedem, como a serialidade e fragmentação observadas em
produtos televisuais. Entretanto, incorporam outros elementos, permitindo a expansão de
universo que complementam o arco narrativo do produto inicial, isto é, o vídeo. Partindo
da observação deste novo fenômeno em criações de ficção no estado do Pará, esta se torna
a inquietação principal do autor como movimento inicial de sua pesquisa de Mestrado. O
presente artigo tem o objetivo de identificar as representações do ethos belenense nas
produções seriadas para a Internet. Elencamos como objetos de análise as webséries
paraenses “A Solteirona” (2013) e “Sampleados” (2015), ambas de grande repercursão
no estado. As duas narrativas são ambientadas na cidade Belém, porém retratam contextos
opostos. Enquanto a primeira localiza-se em um ambiente da classe média, a segunda
ocorre em locações de bairros periféricos. Utilizaremos como referencial teórico os
escritos de Canevacci (1993), Ferrara (2010) e Rodrigues (1999).
Palavras-chave: Websérie; Cidade; Representações midiáticas.
A cidade e suas relações comunicativas
Os núcleos urbanos contemporâneos evidenciam-se como espaços de
diversidade comunicativa. Percebemos este pontecial desde a sua estrutura física, que
desperta estímulos visuais (prédios, ruas, publicidade etc.) até nas relações espaço-
indivíduo que ocorrem no tecido metropolitano. Esta pluralidade visual, materiazada na
comunicação virtual via imagens, é determinada pelas relações sociais e culturais do
ambiente ao qual está inserido e, mais que isso, são fruto, como aponta Canevacci (1997),
1 Trabalho apresentado no II Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os
dias 25 e 27 de outubro de 2016, Belém/PA
dos conflitos contidos na comunicação e reciclados por esta. Portanto, a comunicação
urbana (e a mídia, que será abordada posteriormente) se mostra por “uma forte
concentração das relações de poder entre quem detém o controle das comunicações e
quem é reduzido apenas à passividade de espectador”. (p. 16)
O autor prossegue, afirmando que esta riqueza de elementos contidas nas cidades
as apresentam como polifônicas, isto é:
Uma cidade que se comunica com vozes diversas e todas copresentes: uma
cidade narrada por um coro polifônico, no qual os vários itinerários musicais
ou os materiais sonoros se cruzam, se encontram e se fundem, obtendo
harmonias mais elevadas ou dissonâncias, através de suas respectivas linhas
melódicas. (CANEVACCI, 1997. p. 15)
Esta dinâmica polifônica, cuja a comunicação aparece como elemento
hegemônico, parece pertinente para a criação de novos “mapas” da cidade. Por meio da
identificação de diferenças que, juntas, formam um grande sistema de informação, temos
a possibilidade de descrever e compreender melhor as definições metrópole.
(CANEVACCI, 1997) Porém, dadas às novas configurações tecnosociais, se faz
necessário acrescentar outras nuances.
A discussão deste novo espaço urbano, agora permeado pelas tecnologias de
mobilidade e informação, é traçada por Ferrara (2010). Seus escritos propõem a
compreensão da cidade por meio da relação que se estabelece entre redes e mobilidades,
que estão além da utilização de tecnologias da comunicação. Este novo espaço urbano
dilui as distinções dos lugares construídos pelas relações cotidianas. Agora, mobilizações
realizadas por estas novas tecnologias fazem emergir um padrão de produção e
reprodução econômica que tendem a, por exemplo, unificar padrões de consumo.
É importante, então, distinguirmos o urbano e a cidade. Entendemos, a partir de
Ferrara, o primeiro como espaço físico, aquele construído sob aspectos funcionais. A
cidade ultrapassa a materialidade física. Esta agora materializa-se de forma simbólica,
projetada para ser vista/exibida, constituída de “elementos de visualidade icônica onde se
espelham a cidade como uso e o valor da edificação de um modo de aparecer”.
(FERRARA, 2010. p. 170)
Absolutamente distinta das experiências anteriores promovidas pelo espaço
funcional ou pela cidade social, a cibercidade espanta pelas suas possibilidades
de mobilidade tecnológica, mas constitui desafio a ser experimentado para
tentar construir uma nova realidade que supere a simples produção da relação
social anterior, a fim de permitir a construção de uma nova socialidade.
Opõem-se produção e construção, duradoura relação social e socialidades
imprevistas, a cidade apropriada e a cibercidade onde nada há para ser
apropriado, visto que essa cidade não se localiza, mas se virtualiza nas simples
possibilidades dos seus lugares imprevistos e planetários. (FERRARA, 2010.
p. 175)
Esta nova configuração de cidade é classificada como errante (p. 171), pois
assim descreve-se adequadamente a capacidade de deslocar-se sem sair do lugar físico,
evideciando a mobilidade presente neste contexto no qual as imagens digitais estão
disponíveis e formam, mesmo que virtualmente, espaços fluidos e contínuos onde não há
planos e finalizações, mas possibilidades. As cibercidades, como nomeia Lemos (2007),
aglutinam, neste espaço virtual, internautas que buscam novos espaços de socialidade em
novas identidades, que tornam tênue as divisões entre ficção e realidade.
O papel mídia na contemporaneidade
Assim como a comunicação urbana, a mídia é compreendida por alguns teóricos
do campo da comunicação como o eixo de formação de diversas expressões culturais
contemporâneas. Um destes estudiosos é o sociólogo Muniz Sodré que em sua obra
“Antropológica do Espelho” (2013) exprime sobre o que ele denomina de ethos
midiatizado. Para ele, a mídia é uma nova configuração da vida que resulta em novas
formas de representação do sujeito. Baseado no pensamento de Aristóteles, que elenca
três aspectos da existência (bios) – bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos
(vida política) e bios apolaustikos (vida prazerosa) – Sodré propõe a existência de um
quarto bios, isto é, a midiatização ou tecnologias de sociabilidade. A este ele nomeia de
bios virtual ou midiático.
Muniz relaciona a existência deste novo cenário diretamente ao advento de novas
tecnologias informacionais, resultado de uma mutação tecnológica que possibilitou
hibrizações, seja de processos ou formas discursivas já existentes, o que convencionou-
se a chamar de hipertexto ou hipermídia. Nesta discussão, é central destacar que o que
caracteriza este momento não é a presença da tecnologia no âmbito social, mas a
capacidade que esta tem de anular virtualmente a relação espaço/tempo, acelerando a
circulação de produtos informacionais (culturais), que entendemos como comunicação,
agora integrante de um plano sistêmico da estrutura de poder.
Está posta, então, uma nova formalização da vida social, que introduz outras
maneiras de pensar, perceber e contabilizar o real. Na sociedade ocidental, graças às
novas tecnologias de som e imagem (rádio, TV e cinema), percebe-se um novo modelo
de autorrepresentação social (representativa-apresentativa) que possibilita ao receptor
compreender o mundo a partir de simulações de um tempo “vivo” ou real, constituindo
um outro espaço-tempo social. A lógica do mercado consolidou, por meio destas novas
propriedades técnicas, formas de sociabilidade que desenvolveram uma nova qualificação
cultural, denominada tecnocultura.
“É que a tecnocultura – essa constituída por mercado e meios de comunicação,
a do quarto bios – implica uma transformação das formas tradicionais de
sociabilização, além de uma nova tecnologia perceptiva e mental. Implica,
portanto, um novo tipo de relacionamento do indivíduo com referências
concretas ou com o que se tem convencionado designar como verdade, ou seja,
uma outra condição antropológica” (SODRÉ, 2013. p. 27).
Sobre esta lógica própria dos meios de comunicação massivos contemporâneos,
Scott Lash (2015) discorre sobre as suas características principais. Ao que chama de
“Teoria Mediática2”, Lash elenca quatro aspectos. O primeiro deles diz respeito à ntureza
do conteúdo: ela é essencialmente informacional. Para que ele desempenhe este papel, é
necessário que seja transmitido por um meio, no qual se configure como mensagem. Outra
característica importante é o seu modo de apresentação. Ao contrário da representação,
que surge de uma reflexão, o conteúdo informacional chega até nós e são produzidos sob
a lógica frabril, mercadológica. O terceiro ponto destacado pelo autor é o de
presentificação, relacionado ao prazo de validade da informação. Os conteúdos são
produzidos para consumo imediato e, por isto, estão em constante renovação. Esta última
característica leva ao útimo ponto: a estrutura discursiva. De acordo com o raciocínio do
autor, não há tempo para discursos. O conteúdo é produzido de forma que não exija
reflexão do receptor, pois atua em uma espécie de imediatez.
Em acréscimo às formulações dos autores supracitados, dialogamos com Jenkins
ao discorrer sobre a cultura da convergência. A esta nova conjuntura, o autor define:
Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de múltiplas
plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao
comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a
quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que
desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações
tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está
falando e do que imaginam estar falando. (JENKINGS, 2008, p. 29).
2 Nos escritos de Lash, as relações de poder existem na noção de propriedade dos meios de comunicação
massivos.
A cultura da convergência só é possível se entendermos que a fronteira entre
produtores e receptores não é mais bem definida no ciberespaço. Cada usuário pode, ao
mesmo tempo, consumir e produzir informações para terceiros que compartilham o
mesmo interesse comum, seja pelo seu computador pessoal, ou por dispositivos móveis,
leia-se smartphones ou intelifones, tablets, MP3 players ou smarts TVs. Esta nova
dinâmica cultural, também entendida por Jenkins como inteligência coletiva, define um
novo modelo de consumo. Ele afirma que ninguém é detentor de todo o tipo de
conhecimento. Cada indivíduo pode contribuir a sua maneira, associando seus recursos e
habilidades com os outros. “A inteligência coletiva pode ser vista como uma fonte
alternativa do poder midiático”. (JENKINS, 2008, p. 30).
Esta nova relação social quebra totalmente com o paradigma das relações dos
meios de comunicação de massa tradicionais com o seu público. A partir desta
perspectiva, emerge neste contexto novos produtos comunicacionais, entre eles, as
webséries.
Webséries: produtos da convergência
A discussão sobre webséries tem crescido no meio acadêmico, mas a produção
deste novo produto midiático é recente. As primeiras estórias seguindo este formato
surgiram entre os anos 1990 e 2000. Um dos estudos mais detalhados sobre estas
produções foi desenvolvido em 2008 por Nuria Lloret Romero e Fernando Canet
Centellas, no qual são propostos novos gêneros narrativos em audiovisual que estão
emergindo na rede. Eles definem as webséries como o equivalente às produções
televisivas as quais estamos habituados, só que ocupam o terreno da Internet.
“That is, fictional productions made and designed for the internet with a series
structure, multiple narrative nuclei and an array of specific rhetorical resources
that allow for the telling of fiction’s vicissitudes with the aim of capturing and
maintaining the viewer’s attention one episode at a time”3. (ROMERO &
CENTELLAS, 2008, p. 05)
A esta estrutura fragmentada, própria dos produtos televisuais, Zanetti (2013)
atribui, a partir dos escritos de Calabrse, a estética da repetição. A autora lista as
características principais destes conceitos: “a) modo de produção em série
3 “Isto é, produções ficcionais produzidas e concebidas para a internet com uma estrutura seriada, narrativa
múltipla e ordem de específicos recursos retóricos que permitem aas vicissitudes do contar estória com o
objetivo de manter a atenção do espectator a cada episódio”. (tradução do autor)
(estandartização); b) mecanismo estrutural de generalizações e textos; e c) condição de
consumo por parte do público”. (ZANETTI, 2013. p. 73-74) É importante destacar que,
além das repetições relacionadas à estrutura narrativa, consideramos também a utilização
de recursos técnicos, temáticas e ambientações.
A cada fragmento da websérie chamamos de websódios. Os websódios são
disponibilizados, em geral, semanalmente. As narrativas também agregam os recursos
on-line disponíveis, como a publicação dos vídeos em websites ad hoc, participação ativa
da audiência no progresso da estória, bem como a criação facilitada de comunidades
virtuais, que são ferramentas fundamentas na consolidação dessas estórias. (ROMERO &
CENTELLAS, 2008)
“These are spaces where the user stops being a consumer of contents and
becomes an active subject interacting with other members of the community
concerning the plot, which sometimes goes on building it one episode at a time.
The registered user has access to all the inherent advantages of the virtual
community: viewing new episodes, accessing exclusive content for members
of the community and detailed biographies of the stars, the making of, trailers,
participating in debate forums concerning the characters and the story’s
development, access to exclusive chat zones, emails and list serves...”4
(ROMERO & CENTELLAS, 2008, p. 06)
Vale pontuar que esses recursos nem sempre são oferecidos ao público em
apenas um website. Algumas produções optam por associar o YouTube com as Redes
Sociais, como Facebook e Twitter. O primeiro é usado para a hospedagem dos websódios,
bem como o registro de comentários da audiência. Os dois últimos para compartilhamento
dos vídeos, além de conteúdo extra e comentários. As produtoras também têm como
alternativa a criação de blogs em sites que disponibilizam esse serviço gratuitamente
(como o Blogger ou Wordpress) ou até mesmo a combinação de todas as ferramentas
citadas. A esta configuração, denominamos de narrativa transmídia, que consiste em
expandir “através de múltiplas plataformas midiáticas em que cada novo texto faz uma
distintiva e valiosa contribuição para o todo” (JENKINS, 2008. p,.95).
No estado do Pará, as produções de webséries iniciaram em 2010, com “Nós”,
fazendo assim ressurgir o gênero de ficção seriada audiovisual após um hiato de quatro
4 “Estes são espaços onde o usuário para de ser um consumidor de conteúdo e torna-se um sujeito ativo,
interagindo com outros membros a respeito do plot, o que às vezes resulta na construção de um episódio.
O usuário registrado tem acesso a todas as vantagens inerentes á comunidade virtual: assistir novos
episódios, acessar conteúdo exclusivo para membros da comunidade e biografias detalhadas das estrelas,
bastidores, trilers, participação em fóruns de debate sobre os personagens e o desenvolviemnto da estória,
acesso à áreas de chat exclusivas e-mails e lista de servidores”. (tradução do autor)
décadas. Em artigo de 2013, este autor listou sete produções paraenses, das quais seis
delas são ambientadas em núcleos urbanos. Este dado provocou o movimento inicial de
pesquisa de Mestrado do mesmo, haja vista o contraste com as informações listadas em
bibliografia acadêmica sobre a representação da Amazônia na mídia.
Steinbrenner (2007) detalha que as narrativas presentes no campo midiático
estão pautadas em temas ambientais. O caráter recorrente de exotismo, estranhamento e
incógnita, juntamente com o ideal de fonte inesgotável de riquezas naturais e solução de
problemas externos, invisibiliza os grupos humanos da região, em especial as populações
urbanas da Amazônia, região que vem sofrendo um forte processo de urbanização. A esta
conjuntura, a autora estabelece a contraditória relação entre centralidade ambiental x
invisibilidade urbana.
Tal dissonâcia apresentada anteriormente ajuda a formular o objetivo principal
deste artigo, que busca identificar as representações da cultura urbana da cidade de Belém,
que surgem como novos elementos formadores deste ethos, idealizado por Sodré (2013).
Para análise, elencamos duas produções ambientadas na cidade: “A Solteirona” (2013) e
“Sampleados” (2015).
“A Solteirona”, “Sampleados” e representações da cultura urbana
Para iniciarmos a análise, é necessário, primeiramente, contextualizarmos os
arcos narrativos das duas produções escolhidas. A primeira delas – “A Solteirona” – é
uma comédia de situação que narra a vida de Mariana, moradora de Belém que tem de
superar o término do relacionamento no dia em que comemoraria aniversário de namoro.
A estória é livremente inspirada no seriado de televisão estadunidense “Sex and the City”,
que retrata a vida de quatro amigas bem sucedidas de Nova Iorque que vivem em um
mudo de luxo e relacionamentos com homens bonitos. Em “A Solteirona”, Mariana tem
dois amigos: Pati, que opta por manter relacionamentos efêmeros e Guto, homossexual.
A produção tem uma temporada com oito websódios, que duram de 3 a 18 minutos.
Já “Sampleados” é um projeto acadêmico que tem o objetivo de relembrar
músicas do ritmo musical tecnobrega que foram sucesso de público com estórias contadas
a partir da união de fragmentos de diversas canções, resultando em um mash up.
Diferentemente da primeira produção, “Sampleados” não tem um único arco narrativo.
Cada websódio apresenta uma estória distinta, cujos temas escolhidos figuram a
reconciliação de um relacionamento complicado, namoro proibido, roubo e festas. A
produção tem cinco partes que duram, em média, cinco minutos.
A análise destas duas produções está balizada no modelo metodológico proposto
por Massimo Canevacci. Em “A Cidade Polifônica”, o autor defende que a polifonia está
no objeto e no método – a comunicação urbana. É nesta multiplicidade de vozes que
converge o paradigma inquieto que compõe a cidade. Esta abstração epistemológica das
formas-cidade e emoções do perder-se urbano dão origem a um mapa da cidade que,
logicamente, não coincide com o seu território. (p. 17) A partir dos escritos de Bateson,
Canevacci propoõe a construção de um mapa a partir da técnica da montagem,
considerando as diferenças urbanas e “modelos urbanos que comunicam analogias e
contrastes, repulsões e atrações, conflitos e junturas”. (p. 138) Isto implica dizer que o
resultado aqui contido representa uma visão particular, subjetiva do autor.
Para isto, serão recolhidos “fragmentos de comportamento” (frames) que,
mesmo que aparentemente divergentes, dialogam e, portanto, é função do analista inserir-
se, observá-las e desvendá-las. Entendemos os frames a partir dos escritos de Adriano
Duarte Rodrigues (1999).
Às fronteiras do quadro ou do contexto situacional do Lebenswelt dão os
anglosaxónicos o nome de frame ou de quadro do sentido. É por isso que, para
o homem, não é apenas o meio ambiente que constitui o quadro em que se
desenrola a sua experiência. Abarca igualmente o conjunto das marcas por ele
próprio projectadas para delimitar a sua prórpia experiência, o seu Lebenswelt.
(RODRIGUES, 1999. p. 8)
Só é possível utilizarmos o termo frame quando entendemos que estes são
fronteiras de compreensão da experiência humana, isto é, um conjunto de instâncias que,
inseridos em uma delimitação de práticas significantes, compõem um mundo próprio e
indicam padrões de razoabilidade. Partimos do pressuposto de que as obras audiovisuais
são produtos de criação conjunta, resultado deste frame que denominamos “Belém”, ou
seja, é um produto originado na cidade, produzido e, agora, analisado por habitantes dela.
Para este artigo, selecionamos alguns frames dos websódios. Optamos por
analisarmos ambientes externos, nos quais construções da malha urbana estão evidentes.
Por questões de estrutura, definimos três categorias para reflexão, bsseadas nas categorias
propostas por Canevacci: a) arquitetura, paisagismo, urbanismo; b) comunicação
publicitária; c) cores da cidade.
a) Arquitetura, paisagismo, urbanismo
Consideramos aqui os elementos construídos da malha urbana. Casas, prédios,
parques, ruas, monumentos e qualquer outro tipo de construção estão englobados nesta
categoria. Estas construções, sozinhas, não representam instâncias comunicativas, mas
inseridas no contexto de visualidade das cidades, podem indicar enunciados. Sobre este
aspecto, Ferrara destaca:
A competição pela construção do edifício mais alto do mundo caracteriza a
cidade que, mimetizando-se ao redor do mundo, apresenta o mesmo ícone:
verticaliza-se para fazer ver, através da altura, o prestígio e os poderes político
e econômico. A verticalidade reproduz um valor emblemático que define a
cidade contemporânea, supera os antigos padrões da estabilidade construída e
anuncia outra contradição do espaço na cidade. (FERRARA, 2010. p. 170)
O primeiro frame apresentado nesta análise traz uma cena de “Sampleados”. Na
cena, visualizamos três personagens em uma sacada de um prédio inserido em uma rua
com construções irregulares. Mais ao fundo, vemos prédios que se sobressaem na
paisagem pela altura. Neste contexto, percebemos a relação de status explanada por
Ferrara. As altas construções, símbolos do poder contemporâneo, estão distantes,
evidenciando uma desigualdade social entre o espaço protagonista – dos personagens – e
o coadjuvante – dos prédios. É possível, então, que os atores estejam inseridos no
ambiente de baixo poder aquisitivo. Os prédios irregulares contribuem para a ideia de
desconforto, instabilidade, abandono, perigo. Nota-se também a ausência de espaços
verdes, compostos por árvores, canteiros, etc. Mesmo com algumas cores, nota-se a
predominância do cinza, o que invoca a sensação de sujeira.
Figura 1 – Frame do episódio 1 de “Sampleados”
Diferentemente da websérie anterior, “A Solteirona” apresenta um ambiente
mais colorido. Este vestígio nos remete à afirmação de Canevacci de que é possível
realizarmos a distinção de classes dos bairros pela quantidade de cores no ambiente. Ao
passar pelo bairro do Jardins, em São Paulo, o autor descreve o quanto o lugar é repleto
de cores, enquanto as redondezas é inundada por um branco sujo. A quantidade de árvores
imponentes nas ruas também o impressiona.
Figura 2 – Frame do episódio 7 de “A Solteirona”
Seguindo esta mesma lógica, entendemos que as personagens da websérie
habitam um bairro de maior poder aquisitivo. Em paralelo a primeira imagem, o ambiente
é composto por diversas áreas verdes e as construções repletas de cores vibrantes. Ao
contrário do primeiro frame, este é dominado por construções simétricas, desde as casas
até as vias, transparecendo um ambiente estável e salubre. Faz-se pertinente citar que a
Belém, apelidada de cidade das mangueiras, ao contrário da alusão que seu codinome
faz, apresenta a mesma realidade que São Paulo, uma cidade onde a arborização é restrita
e o verde é um indicativo das diferenças sociais.
b) Comunicação publicitária
A obra de Canevacci afirma que a publicidade é uma fonte inesgotável e
renovável de comunicação urbana. Fazem parte deste grupo os diversos suportes de mídia
ao ar livre: outdoors, letreiros luminosos, cartazes, intervenções etc. Consideramos estes
suportes de caráter legal, uma vez que recebem autorização dos espaços onde comunicam.
Sugerimos também que sua produção advém de grupos sociais privilegiados. (SODRÉ,
2006) Seu objetivo principal é a venda, mas seu papel ultrapassa esta função.
Neste sentido, a publicidade não é unicamente um tipo de “filosofia
pecuniária”, como foi definida por um antropólogo clássico (J. Henry, 1966),
mas é também, e até principalmente, um sistema comunicativo que orienta a
ação, estratificando por segmentos sociais (razão pela qual cada qual vê a “sua”
publicidade. (CANEVACCI, 1997. p. 184)
Assim sendo, as cidades, na sua configuração visual/apresentativa, orientam os
sujeitos à novos padrões de comportamento por meio da sua dinâmica em rede.
“Mobilizar-se através de equipamentos tecnológicos permite fazer do espaço urbano e do
seu território o local de atividades de produção e reprodução da economia, do capital e
do consumo”. (FERRARA, 2010. p. 167)
No contexto de “A Solteirona”, o consumo aparece como elemento fervilhante
no arco narrativo. Na imagem abaixo, vemos anúncios publicitários, exposição de
mercadorias, elementos que indicam um padrão de comportamento do conjunto de
personagens integrantes da estória. Além de roupas, no desenrolar da websérie nota-se
outras atividades de consumo, como à ida a restaurantes, festas de gala, usufruto de
automóveis e viagens.
Figura 3 – Frame do episódio 6 de “A Solteirona”
Em “Sampleados”, nota-se no ambiente a ausência das mídias publicitárias. Nas
ruas as quais os personagens transitam, percebemos que o grupo ao qual as personagens
representam são desestimulados ao consumo ou possuem ferramentas distintas daquelas
que percebemos como formais.
Figura 4 – Frame do episódio 1 de “Sampleados”
c) Cores da cidade
Como já exposto anteriormente, as cores detém poder comunicativo no ambiente
urbano. Sua natureza é artificial, isto é, todas elas foram determinadas pelo homem
urbano. Existem cores que até podem ser associadas a determinadas cidades.
(CANEVACCI, 1997) Em seu trabalho sobre São Paulo, Canevacci destaca a dicotomia
entre policromia e monocromia da cidade. Porém, salienta uma uniformidade, que dirige-
se ao indistinto. Nesta observação, a cor torna-se a característica mais evidente.
São Paulo é uma mancha cinza-clara. Esta é a regra cromática escolhida ou
imposta à cidade, uma regra que se torna mais evidente quando se atravessa
um parque, ou os bairros elegantes, nos quais o vermelho “tradicional” das
árvores teimam em mostrar as possibilidades diferentes. (CANEVACCI, 1997.
p. 199)
O autor conclui que esta a cidade denota tristeza, monotonia. São Paulo, que tem
um movimento intenso de trabalho, mas evoca um clima contraditório ao seu humor,
graças a sua paleta de cores.
Figura 5 – Frame do episódio 8 de “A Solteirona”
Já as webséries aqui analisadas apresentam uma configuração diferente. As cores
têm tom vibrante e evocam a sensação de alegria e animação e que Belém é uma cidade
que vive uma dinâmica social intensa. Reiterando o já dito, a presença do cinza aponta
para um constraste. Mesmo com a riqueza cromática, o ambiente de “Sampleados” pode
ser traduzido como sujo, abandonado. Este aspecto a distingue do espaço de “A
Solteirona”, que se mostra asséptico, estável.
Figura 6 – Frame do episódio 5 de “Sampleados”
Considerações finais
As dinâmicas da comunicação urbana abrem um leque de possibilidades nos
estudos sobre representação do ambiente amazônico. Elenco, abaixo, alguns caminhos
para os quais nossa pesquisa pode seguir.
O primeiro ponto a destacar é o contraste entre as representações midiáticas
exógenas e endogénas sobre Amazônia. Enquanto a primeira categoria, como discute
Steinbrenner (2007), apresenta um espaço onde há a predominância de recursos naturais
e invisibilidade das populações urbanas, a segunda propõe o oposto: grupos sociais
dinâmicos e heterogêneos que coexistem neste ambiente que convencionamos chamar de
cidade. Portanto, entender estas novas formas de representações sociais na mídia
amazônica emerge como um dos problemas de pesquisa principais do autor deste artigo.
Por último, o papel dos meios de comunicação nas dinâmicas das cidades surge
como outro ponto de reflexão. O conceito de cibercidade porpõe a sua existência além
das fronteiras físicas. Estes novos espaços, permeados pelos processos de sociabilidade
promovidos pelas neotecnologias, rompem com a relação espaço/tempo anteriormente
estabelecida e aceleram a circulação de informações. Tal dinâmica é materializada pela
mídia, o bios vitual (SODRÉ, 2013), que agora integra as estruturas de poder e formaliza
um novo padrão de vida social. Logo, estudar as narrativas contemporâneas na Amazônia
é perceber os contrastes e tensionamentos das relações entre os grupos urbanos, aspecto
fundamental para problematizarmos as questões comunicacionais midiáticas na
Amazônia contemporânea.
Referências
Bibliográficas
CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da
comunicação urbana. Tradução Cecília Prada. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
FERRARA, Lucrécia D’Alessio. A mobilidade como contradição do espaço urbano.
In: Revista MATRIZes Ano 4, Volume I. Disponível em:
http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/viewFile/38280/41093. Acesso em: 27. jul.
2016.
JENKINS, H. Cultura da convergência. Tradução Suzana Alexandria. São Paulo:
Aleph, 2008.
LASH, Scott. Teoria mediática. In: LASH, Scott, Crítica de La información. Buenos
Aires: Amorrortu, 2005, p.119-138.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Experiência, modernidade e campo dos media.
Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/rodrigues-adriano-expcampmedia.pdf.
Acesso em: 27. jul. 2016.
ROMERO, Nuria Lloret; CENTELLAS, Fernando Canet. New stages, new narrative
forms: The Web 2.0 and audiovisual language. Disponível em:
https://www.upf.edu/hipertextnet/en/numero-6/lenguaje-audiovisual.html. Acesso em:
01. jun. 2013.
SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede.
8ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.
STEINBRENNER, Rosane Albino. Centralidade Ambiental x Invisibilidade Urbana
(ou os novos “fantasmas” da Amazônia). In: XII Encontro da Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Disponível em:
http://unuhospedagem.com.br/revista/rbeur/index.php/anais/article/viewFile/3438/3368.
Acesso em: 27. jul. 2016.
ZANETTI, Daniela. Webséries: narrativas seriadas em ambientes virtuais. In: Revista
GEMInIS – Ano IV, Volume I. Disponível em:
http://www.revistageminis.ufscar.br/index.php/geminis/article/view/128/100. Acesso
em: 01. jan. 2016.
LOPES DE SOUZA, Victor. Webséries como produtos de ficção seriada no Pará. In:
XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Manaus/AM. Disponível
em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2013/resumos/R8-1744-1.pdf. Acesso
em: 31. set. 2013.
SODRÉ, Rachel Fontes. A comunicação na cidade: polifonia e produção de
subjetividade no espaço urbano. In: XXIX Congresso Brasileiro de Ciências da
Comunicação – UnB. Disponível em:
http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/resumos/R1072-1.pdf. Acesso em:
27. jul. 2016.
Vídeo
EPISÓDIO 6 - O Jantar Romantico. In: A Solteirona. Direção: Nigel Anderson; Saulo
Sisnando. Alt Produções, 2013. 14’26”. Disponível em: https://youtu.be/ox7G0Iddhmg.
Acesso em: 01. jan. 2016.
EPISÓDIO 7 - Como resolver um problema amoroso de maneira civilizada. In: A
Solteirona. Direção: Nigel Anderson; Saulo Sisnando. Alt Produções, 2013. 6’26”.
Disponível em: https://youtu.be/HDOQUIZJdZE. Acesso em: 01. jan. 2016.
EPISÓDIO 8 - Tudo se resolve no fim. In: A Solteirona. Direção: Nigel Anderson;
Saulo Sisnando. Alt Produções, 2013. 14’22”. Disponível em:
https://youtu.be/4TZhQZ494mY. Acesso em: 01. jan. 2016.
EPISÓDIO 1. In: Sampleados. Direção: Leonardo Augusto. Platô Produções, 2015.
3’46”. Disponível em: https://youtu.be/WfFgjRGoLXw. Acesso em: 01. jan. 2016.
EPISÓDIO 5. In: Sampleados. Direção: Leonardo Augusto. Platô Produções, 2015.
5’31”. Disponível em: https://youtu.be/i-a58JJPhBk. Acesso em: 01. jan. 2016.
Recommended