View
28
Download
2
Category
Preview:
Citation preview
DESPACHADO PARA A CHINA
HUDSON TAYLOR
DAVE & NETA JACKSON
CPAD
Digitalizado por Zica
www.semeadoresdapalavra.net
Nossos e-books so disponibilizados gratuitamente, com a nica finalidade de oferecer leitura edificante a todos
aqueles que no tem condies econmicas para comprar.
Se voc financeiramente privilegiado, ento utilize nosso acervo apenas para avaliao, e, se gostar, abenoe autores,
editoras e livrarias, adquirindo os livros.
Semeadores da Palavra e-books evanglicos
Todas as personalidades histricas adultas
mencionadas neste livro, assim como suas experincias, so
reais. Contudo, os relatrios ingleses somente identificam o
capito e no os demais membros da tripulao do Dumfries.
Assim, criamos um nome para o primeiro oficial e para o
camareiro negro. Para por a salvo a histria, alteramos a
ordem de alguns fatos, e o tempo transcorrido na China foi
condensado em um ano, enquanto os fatos realmente
ocorreram durante os primeiros dois anos e meio de
ministrio de Hudson Taylor naquele pas.
A corte de Hudson Taylor Maria Dyer ocorreu
essencialmente conforme descrito na histria, embora tivesse
ocorrido em Ningpo, uma cidade ao sul de Xangai.
Neil Thompson e Yang Namu, assim como suas
especficas interaes com Hudson Taylor e outros
personagens, so fictcios, muito embora um servo de Taylor
o tivesse roubado durante uma viagem ao interior.
DAVE & NETA JACKSON so casados e, juntos,
tm escrito muitos livros sobre casamento, famlia, igreja e
outros temas afins, incluindo-se: "Em Fogo, por Cristo:
Histrias do Espelho dos Mrtires", e as sries "Pet Parables"
e "Caring Parent". Tm trs filhos: Julian, o ilustrador da
srie Trailblazer (Aventura Teen, no Brasil), Rachel, que est
em uma curta misso em Honduras, e Samantha, sua filha
adotiva que cambojana e est cursando o perodo
secundrio.
Tm seu lar em Evanston, Illinois, onde so membros
ativos da Igreja de Reba Place.
Sumrio
Uma paulada na cabea ............................................. 6
A temvel luz em Holyhead .................................... 19
Bem alto, sobre o mar ............................................. 34
Ao mar! ................................................................... 53
S atiraremos em voc! No o torturaremos! ......... 69
O naufrgio do bom navio Dumfries ...................... 85
Ps amarrados e foguetes do cu ............................ 99
A tumba do morto-vivo ........................................ 114
Traio na cidade fortificada ................................ 130
A longa estrada de volta ....................................... 142
O furaco dos apaixonados ................................... 154
A passagem no Geelong ....................................... 169
Um pouco mais sobre Hudson Taylor .................. 179
Captulo l
Uma paulada na cabea
Acordei em uma cama estranha e ento me
lembrei: era o dia 19 de setembro de 1853 e eu estava
em Liverpool, Inglaterra. Tambm me lembrei, com
um profundo desapontamento, que vov Thompson
estava de cama, doente, e no poderia me levar s
docas.
Somente minha av havia ido encontrar-me na
estao de trem, na noite anterior. Depois de um
abrao bem apertado, ela explicou-me:
Eu sei, Neil, que vindo do campo, seu
coraozinho
anseia para ver os navios amanh, mas, voc vai ter
que esperar at que o capito se sinta melhor.
Tudo bem! Eu posso esperar! assegurei-lhe,
mas, na
manh seguinte, no me sentia com tanta pacincia
assim.
Meu av era um capito do mar e havia
passado a maior parte de sua vida viajando; eu s o
tinha visto uma vez, antes. Mas, agora que havia se
aposentado, me convidara a vir passar uns tempos
com ele e minha av.
"Vou lhe mostrar todos os navios do porto e
apresent-lo a todos os capites" tinha prometido
em sua carta.
No entanto, ele estava doente...
Pulei da cama e olhei para fora, pela pequena
janela redonda. Era igual a escotilha de um navio.
Um monte de coisas na casa de meus avs tinha
vindo de navios ou do mar. Havia brilhantes
lampies de lato polido do lado de fora da porta de
entrada, uma grande concha e um culo de alcance
sobre o consolo da lareira e um mapa do mundo na
parede. As vigas do teto nos quartos eram baixas e
escuras, e o "corrimo" que servia pequena escada
que levava ao quartinho, onde eu havia dormido,
nada mais era do que uma corda frouxa. Eu adorava
tudo isso. Desejava muito ir tambm para o mar,
algum dia.
A manh estava brilhante, mas enevoada. Da
minha janela, os telhados das casas da vizinhana
pareciam balsas na nvoa prateada. Logo, logo, o sol
transformaria tudo isso em um dia claro.
Por que esperar pelo vov? pensei O
mar no deve ficar to distante assim. Posso at
sentir o cheiro penetrante do ar salgado. Aposto que
posso encontrar as docas com muita facilidade!
Sem perder tempo, escapuli da casa sem que
vov me visse e andei para a zona porturia. Jamais
havia imaginado que pudesse haver tantos navios.
Passei por cerca de trinta deles grandes e
pequenos e havia mastros de navios at onde mi-
nha vista podia alcanar no rio Mersey, que era onde
ficava o porto de Liverpool.
Isso era fantstico! Eu nem podia esperar at
que vov ficasse melhor e pudesse me levar a bordo
de alguns dos navios para conhecer os capites.
Parei ao lado de um pequeno clipper
veleiro muito veloz. O nome Dumfries estava
pintado em sua proa. A tripulao parecia estar
pronta para zarpar e ento, subi sobre um barril, para
observar. Logo o sol surgiu atravs da nvoa e vi
que algumas pessoas andavam pela prancha de
desembarque. Quando alcanaram a doca, voltaram-
se e acenaram para um passageiro um homem
jovem, aparentando cerca de vinte anos o qual
permanecia parado na amurada do navio. Eu me
perguntava para onde estaria ele indo... aquele
sortudo. De repente, um oficial do navio (pude ver
que era um oficial pela farda espalhafatosa que
vestia) gritou:
Onde est o grumete? Est na hora de
zarpar e ele no est em lugar algum!
O homem chegou at a amurada e olhou para
todos os lados da doca, ento, gritou para dois
marinheiros que estavam no cais prontos para liberar
as enormes cordas que mantinham o navio preso no
ancoradouro.
Vocs a, homens! Ns estamos sem
grumete! Ele apontou com a cabea em direo
doca e disse:
Tratem disso!
Sim, sim, senhor!
Nesse momento, notei que uma das mulheres
que se encontrava na doca estava soluando e
limpando os olhos em seu leno. O passageiro
gritou, l do convs:
No chore, mame. Estarei de volta logo,
logo! Estava sentindo pena da mulher quando,
repentinamente, fortes braos me agarraram por
detrs e me puxaram do barril. Em instantes, estava
sendo carregado pelos dois marinheiros em direo
ao navio.
Sou alto para um menino de doze anos e lutei
com todas as foras, mas no consegui nada. No
podia me libertar daquele aperto to firme. Quando
senti que subamos, aos trancos, a prancha de
desembarque, comecei a gritar por socorro.
Ei, o que vocs esto fazendo com esse
menino? gritou algum.
Nesse momento, algo bateu em minha cabea
e tudo ficou escuro.
Quando acordei, pela segunda vez naquela
fatdica manh, no estava na confortvel cama de
hspedes de minha av. O lugar era pequeno e
escuro, no muito maior que um depsito de carvo.
A parte de trs de minha cabea doa muito e me
sentia tonto. No levei muito tempo para entender
que estava a bordo do Dumfries, a caminho do mar.
Deixem-me sair daqui! gritei com todas
as foras. Chamei por socorro inmeras vezes sem
obter qualquer resposta. Tentava no entrar em
pnico, mas estava mortalmente assustado. Por que
havia sido agarrado e levado para bordo? Agora eu
sabia que deveria ter esperado por vov para vir at
as docas, mas no havia feito nada de errado s
me sentara naquele barril, observando...
Ento, lembrei-me do oficial gritando que o
grumete havia sumido e dizendo aos dois
marinheiros para "tomarem conta disso"
apontando para mim! Eu estava realmente assustado.
No queria ser um grumete no agora, no dessa
maneira!
Comecei a chutar a rude parede. Talvez
encontrasse uma tbua solta ou uma porta que
pudesse abrir a pontaps. Vezes sem conta, chutei as
tbuas, gritando a plenos pulmes.
Finalmente, algum abriu a porta de minha
pequena cela e encontrei-me olhando cara a cara
para um homem africano.
Bem, bem. O que ns temos aqui? disse
ele Um clandestino, hem?
Eu estava furioso e respondi:
No sou um clandestino! Fui forado a
embarcar neste navio! Tenho que voltar para
Liverpool!
Ah! Que linda histria! rosnou o marujo
Eu digo que voc um clandestino! Saia da!
Vou lev-lo ao capito! Vamos ver o que ele diz!
Meu corao apertou. Se o oficial que tinha
visto fosse o capito, estava bem arranjado. Mas,
pelo menos eu j no estava trancado e assim segui
atrs do meu "libertador".
J no convs, todos pareciam ocupados
ajustando as velas e deixando tudo pronto para a
ao. O oficial que tinha ordenado minha captura
estava gritando ordens. Mas fiquei aliviado ao ver
que a terra no estava assim to distante.
Talvez eu possa falar com ele para me
desembarcar pensei.
Contudo, o marinheiro passou pelo oficial e
levou-me a subir alguns degraus que levavam ao
convs da popa onde o timoneiro estava segurando o
timo, a roda que guia o navio. Ao lado dele, de p,
estava um homem grande e musculoso. Pensei que
se tratasse de um outro marinheiro, todo vestido de
jeans escuros, uma grossa blusa de l e um pequeno
bon na cabea. Estava parado, com os braos
cruzados, olhando atentamente para o mar enquanto
soltava baforadas constantes de um pequeno
cachimbo.
Capito disse o marinheiro que me
trazia a reboque encontrei este clandestino aqui
no castelo da proa. Que fao com ele?
Estava espantado. Esse era o capito? Pela
primeira vez, o homem do cachimbo pareceu notar-
nos. Seu rosto era magro e enrugado e parecia ter
sido esculpido em marfim escuro. Seus olhos eram
de um azul brilhante sob as brancas e espessas
sobrancelhas. No tinha um mau aspecto, mas
certamente olhava com bastante firmeza.
O que foi, Jeffries? Um clandestino? Em
nome dos cus, menino, por que voc quis ser um
clandestino em um navio de ch que vai para a
China?
Eu no quis ser um clandestino!
protestei. Estava s sentado nas docas,
observando o movimento. Alguns de seus marujos
me agarraram e me carregaram para bordo sem
razo alguma. Bateram na minha cabea e me
trancaram no convs inferior.
O capito franziu as sobrancelhas.
Senhor Henson! chamou ele, dirigindo-
se ao oficial de farda espalhafatosa Sabe alguma
coisa sobre este menino?
Sim, senhor! disse Henson, enquanto
caminhava em direo ao convs da popa, com os
botes de lato de sua farda brilhando.
Eis a o nosso novo grumete!
O senhor o contratou?
Bem... ainda no tive tempo para essas
formalidades, mas o farei assim que possa...
Henson, voc raptou este menino? Eu
quero uma resposta direta!
Sim, senhor. Raptei! Nosso grumete
contratado desapareceu; j era hora de zarpar e esse
rapaz estava bem l, sentado, precisando de um
emprego...
Henson, esta a ltima vez que voc rapta
algum para o meu navio. Est entendido? Voc
nunca viajou comigo e eu estou vendo que tem que
aprender algumas coisas. Se quer permanecer como
meu primeiro oficial, melhor aprend-las bem
rpido!
Sim, sim, senhor! disse Henson com um
sorriso afetado e afastou-se.
Estava comeando a ficar preocupado.
O senhor pode me enviar de volta a
Liverpool? perguntei ao capito.
Ele sacudiu a cabea, em negativa.
No tenho meios... L ao longe, vai o
nosso barco piloto, est vendo? Eu poderia t-lo
mandado de volta nele, menino, mas agora, ele se
foi...
Olhei para trs, na direo de Liverpool, para
onde o capito estava apontando com o tubo de seu
cachimbo e vi o barco desaparecendo a distncia.
Agora sim, eu estava realmente preocupado!
No h nenhuma maneira de cham-lo de
volta?
No! Alm disso, o piloto um homem
ocupadssimo; ele no pode estar indo e vindo como
se fosse um servio de barcas!
Mas o meu av um capito! Tenho
certeza de que ele arranjar as coisas com o piloto!
Um capito do mar? Qual o nome dele?
Capito Thompson.
George Thompson?
Sim, senhor. Ele conhece todo mundo.
Tambm arranjaria as coisas com o senhor, se me
levasse de volta...
Tenho certeza de que arranjaria... a voz
do capito extinguiu-se enquanto olhava o mar mais
uma vez.
Eu olhava em torno, ansiosamente.
Que tal me colocar a bordo daquele escaler
e me devolver ao litoral? No muito longe. Eu... eu
poderia caminhar at Liverpool...
O capito franziu as sobrancelhas.
Olhe, meu filho... No h jeito... Estou
realmente muito pesaroso de voc ter sido raptado,
mas, goste ou no disso, voc ser o nosso grumete,
nesta viagem. Meu conselho que faa o melhor que
puder. Seu av ficaria orgulhoso por voc ir para o
mar.
Ento, voltando-se para o timoneiro, disse:
Um pouco mais para estibordo! No
queremos chocar-nos com o Sea Witch.
Voltei-me e vi um outro clipper, de formato
esguio, com as velas enfunadas como bales
brancos, velejando na direo oposta a nossa. Por
detrs dele, nuvens cmulos, que traziam consigo
trovoadas, velejavam l no alto do cu azul. Era
mesmo um lindo quadro, mas no estava interessado
em contemplar lindos quadros naquele momento.
Capito, por favor! gritei
desesperadamente O senhor no pode comunicar-
se com aquele navio e colocar-me a bordo, de volta a
Liverpool?
O capito franziu profundamente o cenho
enquanto observava a parede de nuvens.
H uma tempestade a caminho disse ele,
quase como se estivesse falando consigo mesmo
e quero estar fora do Canal da Irlanda quando ela
chegar. Levaria algumas horas para que se pudesse
fazer a transferncia... No temos tempo para isso...
Mas, posso fazer uma outra coisa por voc. Ele virou
a cabea para barlavento do navio e apanhou uma
trombeta de lato brilhante. Colocando-a nos lbios,
gritou:
Ei... Vocs, do Sea Witch!
Em alguns instantes, o capito do Sea Witch
veio amurada do seu navio com uma trombeta
semelhante.
Os dois navios estavam quase em direes
opostas um do outro quando ele gritou:
Al, capito Morris! Precisam de ajuda?
Que podemos fazer por vocs?
Diga ao capito Thompson, em Liverpool,
que estou com o seu neto a bordo de meu navio,
como meu grumete, e que tudo est bem!
Eu direi, capito. Faam uma boa viagem!
E com um ltimo grito e um aceno amigvel,
os dois lustrosos navios passaram um pelo outro a
no mais de seiscentos metros de distncia.
Agora, rapazinho, seu av no vai mais se
preocupar com voc!
Deveria ser grato? Minha ltima oportunidade
de voltar para casa l se ia velejando pelo plmbeo
mar em direo a Liverpool... Engoli com
dificuldade. Estava navegando para a China sem que
ningum me tivesse perguntado se eu queria ir...
Captulo 2
A temvel luz em Holyhead
No tendo nada mais a me dizer, o capito
Morris enfiou seu cachimbo novamente na boca e
voltou-se para o timoneiro.
Lutando contra as lgrimas, caminhei para a
popa do navio e l fiquei observando a trilha que a
espuma branca deixava atrs de ns, em direo a
Liverpool. Uma grande tristeza caiu sobre meu ser.
Mas, nesse instante, o vento soprou mais forte e o
Dumfries adernou perigosamente sobre seu lado.
Voltei-me bem a tempo de ver o corrimo a
sotavento, bem no meio do navio, mergulhar no mar.
Isso espantou num segundo a minha nostalgia e
agarrei-me ao cordoame que estava prximo, te-
mendo que o navio fosse naufragar.
O capito, que estava nesse momento bem
diante de mim, no necessitou de nada ou ningum
para firmar-se, mas movia-se de acordo com o
balano do navio, mantendo um perfeito equilbrio.
Em pouco tempo, o navio endireitou-se um pouco e
o capito gritou para seu primeiro oficial:
Senhor Henson, asseste os mastros do
sobrejoanete e fixe as vergas! Equilibre tambm a
vela de r! Quero avanar o mximo possvel antes
que a tempestade nos jogue em cheio contra o vento!
Alis, senhor Henson, disse o capito ao seu
primeiro oficial quando este subiu os degraus at o
convs da popa fique prevenido! Se no quiser ter
problemas comigo, veja que carreguemos tantas
velas quantas este navio possa manejar e que elas
estejam rigorosamente em bom estado. Tempo
dinheiro, senhor Henson! Tempo dinheiro! Uma
vez j fiz esta viagem em oitenta e sete dias e
gostaria de fazer at Xangai um tempo idntico.
Entendido?
Sim, sim, senhor! falou bruscamente
Henson, com o rosto vermelho e, voltando-se,
comeou a gritar ordens tripulao.
Naquela poca, eu no tinha idia do que
significavam aquelas instrues sobre as diferentes
velas, mas, num momento, os marinheiros estavam
subindo pelo cordoame e puxando vrias cordas.
Estava contente em ver tudo isso porque me parecia
que o navio se endireitaria logo e navegaria com o
convs nivelado e assim, poderamos andar outra
vez a salvo sobre ele. Porm, ao invs disso, quando
os marujos assestaram os mastros do sobrejoanete,
onde ficam as velas dos mastros mais altos, e
ajustaram as outras velas, o navio tombou
novamente, de tal modo que o corrimo a sotavento
ficou quase dentro d'gua.
Olhando em torno e vendo-me parado,
aguardando os acontecimentos, o capito deu um
largo sorriso e perguntou:
O que que h, rapaz? Assim, voc nunca
ser um marinheiro! Por que no vai em frente e
procura pelo cozinheiro. Diga-lhe que o novo
grumete e que precisa de algo para fazer.
Continuei parado, esperando. V em frente,
menino!
Ento, percebendo que eu no sabia onde
encontrar o cozinheiro, apontou para a guarita no
convs superior, bem atrs do mastro da proa.
Aquela a cozinha do navio. Ele est l!
Certo!
Caminhei, cambaleando pelo tombadilho.
No se diz "certo"! "sim, sim, senhor"!
Sim, capito.
"Senhor"! trovejou ele.
Sim, sim, senhor! tartamudeei,
finalmente, sentindo que estava quase escorregando
para o mar. Agora, a inclinao do convs j no era
to ngreme; eu brincara inmeras vezes no telhado
l de casa, que era muito mais ngreme, porm o
convs continuava se movendo com o balano do
mar e assim, meus passos eram inseguros.
Uma vez no convs da popa, segui em direo
ao lado mais alto a barlavento quando uma
onda quebrou no lado do navio e espirrou um jato de
gua salgada no meu rosto. Lembrei-me de quo
maravilhoso tinha me parecido o ar salgado naquela
mesma manh quando olhava pela janela redonda do
quarto de hspedes da casa de meus avs. As coisas
realmente haviam mudado muito, desde ento.
A essa altura, o mar estava realmente jogando
muito. A gua estava escura como lousa cinzenta e a
espuma rendada se estendia sobre toda a extenso de
sua superfcie. As nuvens, que pareciam montanhas
com os cumes cobertos de neve quando as vramos
pela primeira vez, estavam agora sobre ns, baixas,
suas barrigas escuras quase se arrastando pelas
cristas das ondas.
O Dumfries tinha trs altos mastros. Os dois
da frente tinham quatro velas em cada um deles; trs
velas bujarronas estavam assestadas no mastro
principal. O mastro da mezena (o mastro na r do
navio) possua uma grande lana, na qual, como
aprendi mais tarde, ficava a vela de r e as velas
caranguejas. Entre os mastros estavam vrias velas
de estai. Era mesmo um belo navio de cerca de cento
e vinte ps de comprimento, embora no fosse to
grande ou veloz como alguns dos navios mais
modernos.
Quando finalmente alcancei a cozinha do
navio, vi que era to pequena que nunca poderia
imaginar algum preparando comida para cinqenta
homens nela. Mas, l estava o cozinheiro, um
homem pequeno e atarracado vestindo uma camisa
ensebada, mexendo um enorme caldeiro que estava
sobre um grande e negro fogo de ferro.
Senhor disse eu o capito enviou-
me.
"Senhor", eu? disse o cozinheiro sem se
voltar Desde quando fui promovido a oficial? E
quem voc?
Sou Neil Thompson e no perteno a este
navio.
Ento, cai fora! grasnou ele.
Quer dizer falei, corrigindo-me. eu
realmente no perteno a este navio, mas, uma vez
que estou aqui, serei o grumete.
Ele me olhou, semicerrando os olhos.
Raptado, hem? Nesse caso, melhor
comear a trabalhar. L est um saco de batatas.
Aqui est uma faca. Comece a descasc-las!
Achei um caixote, sentei-me e comecei a
descascar as batatas. Nunca havia imaginado que
descascar batatas fosse um trabalho to duro! Mas, o
cozinheiro no me dirigiu novamente a palavra at
que eu houvesse terminado.
Na guarita dianteira no convs da proa,
tambm conhecida como castelo da proa, estavam a
cozinha e os camarotes da tripulao. Havia
escotilhas ao longo das laterais, exatamente como a
janela do meu quarto na casa de meus avs. Mas,
estava ficando to escuro l fora, que o cozinheiro
acendeu dois lampies de lato que pendiam,
balanando, das vigas do teto. Sua luz projetava
sombras estranhas que danavam pelo interior da
pequena cozinha, e os constantes estalos e gemidos
dos costados e anteparos do navio lembravam-me
que o tempo no estava nada bom.
De vez em quando, uma onda batia de
encontro s escotilhas e minha imaginao voava,
enquanto eu desejava que a tempestade ficasse to
forte que o capito tivesse que retornar a Liverpool,
temendo que fssemos pique.
Quando terminei de descascar as batatas, o
cozinheiro disse:
Ponha as cascas naquele balde e jogue as
ao mar! Quando voltar, pode comear a lavar estas
panelas!
Assim que sa para o convs, ouvi algum
grilar: "l vem ela!" No tinha a menor idia de
quem era "ela", mas, na penumbra, vi o primeiro
oficial, Henson, pulando como louco os obstculos
que encontrava em seu caminho, trepando
freneticamente pelo cordoame at ficar vrios ps
acima do convs.
Ento, eu a vi: Uma grande onda, enroscada e
cheia de espuma, estava parada bem l no alto,
acima da amurada e eu estava parado exatamente
sob ela!
Trate de agarrar-se em alguma coisa, rapaz,
ou ser varrido para o mar! gritou Henson para
mim.
Eu deveria ter-me agarrado logo onde
pudesse, mas, sendo novo no mar e sem conhecer
suas manhas, meu crebro no conseguiu trabalhar
to rpido quanto deveria. Antes que pudesse me
mover, uma muralha de gua e espuma despencou
sobre mim e levou-me de roldo, deslizando pelo
convs. Meio afogado sob a gua, eu certamente
teria sido varrido para dentro do furioso mar, quando
ca dentro de algo. Em seguida, estava rolando mais
e mais, como uma bola de boliche entre os pinos.
Notei que estava contra o corrimo a sotavento e
tentei desesperadamente agarrar-me a alguma coisa,
mas no havia nada por perto.
Ento, de repente, quase to rpido como
tinha vindo, a enxurrada se foi e eu consegui respirar
de novo.
Parei tremendo e vi que tinha rolado em todo
comprimento do convs central e, assim, ficado
contra os degraus que levavam ao convs da popa.
L de cima, o capito gritou para mim:
melhor agarrar esse balde! Ns no
temos outros! No podia acreditar no que estava
ouvindo! Quase tinha sido varrido para o mar e tudo
que ele achava para me dizer era "agarre esse
balde"? Contudo, em poucos dias aprendi que cair
durante uma tempestade era to natural para um
marinheiro que, se voc se sasse bem, no havia
mais nada com que se preocupar.
Agarrei o balde que ainda estava rolando pelo
convs, e andei de volta cozinha, to rpido quanto
podia, naquele piso oscilante. Quando bati a porta
atrs de mim para fugir da tempestade, o cozinheiro
voltou-se e disse-me:
Se vai ficar parado a, pingando como uma
lavanderia na sexta-feira, melhor torcer-se naquele
caldeiro e comear a lav-lo.
J era muito tarde e a tempestade ainda rugia,
quando a tripulao terminou de comer em turnos.
Terminei de lavar a loua da ceia e estava to
cansado que, quando encontrei um cantinho seco e
quente perto do fogo, enrosquei-me para dormir.
A despeito do navio estar jogando muito, devo
ter dormido a maior parte da noite, pois j estava
clareando o dia quando acordei com algum me
cutucando com sua bola. Era o marinheiro negro
outra vez.
Est acordado, Thompson? perguntou o
homem. E ento, sem esperar resposta, disse:
Levante-se e venha comigo. A gua est
vazando pela escotilha principal para dentro do
poro!
Guiou-me at uma pequena escada no
tombadilho, cujos degraus levavam ao prximo
convs inferior. L, acendeu uma vela fumacenta e
olhou-me nos olhos.
Meu nome Jeffries. Sou o camareiro de
bordo. disse ele enquanto se movia em direo ao
lugar onde uma cachoeira corria de uma portinhola
do convs superior e desaparecia dentro do poro,
abaixo de ns.
Segure isto! falou o camareiro enquanto
me estendia a vela e subia para ajustar a portinhola
para que parasse de verter gua. Imediatamente, a
cascata transformou-se em uma fina cortina e logo,
num fio d'gua.
Voc vai ficar no meu camarote e vai
trabalhar para mim a maior parte do tempo.
grunhiu ele. Mas, neste momento, precisamos de
todos os braos no convs. Primeiro, vou dar-lhe um
oleado.
Ele deu-me uma capa de chuva que tinha sido
oleada de maneira que se tornasse prova d'gua e
nos dirigimos para o convs.
Voc pode ajudar com as bombas!
gritou ele acima do barulho do vento. Isso no
necessita de muita percia.
No convs, era quase impossvel respirar, e as
ferozes rajadas de vento pareciam sugar o ar
diretamente de meus pulmes. Segui Jeffries at
duas grandes rodas que ficavam localizadas perto da
base do mastro principal. Havia uma grande
manivela em cada roda e dois marinheiros as
estavam virando. Substitu um marinheiro e Jeffries,
o outro.
A princpio, no parecia to duro virar as
rodas e eu estava contente de ter algo em que me
segurar e algum prximo de mim, no meio daquela
terrvel tempestade. Mas, em pouco tempo, j
respirava com dificuldade.
s vezes, vrias ondas se abatiam sobre o
nosso convs, uma aps a outra, enchendo-o de gua
do mar, at as amuradas, mas eu me segurava com
firmeza at que a inundao passasse.
Todos os outros marinheiros tambm estavam
no convs, trabalhando intensamente para conseguir
obedecer as ordens do primeiro oficial, porm, era
difcil ouvi-las com o vento rugindo e soprando
atravs do cordoame. De vez em quando, ele gritava:
Prontos para virar de bordo!
E ento, os homens corriam para diferentes
pontos.
Mas, o navio foi apanhado pelo vento
enquanto os marinheiros lutavam para ajustar as
velas. Quando as velas comearam a encher, o navio
mudou de direo e o oficial gritou:
Mudar o rumo!
O Dumfries bordejou para trs e para diante,
em cheio contra o vento, durante toda a manh e eu
podia ver que os marinheiros estavam exaustos. De
repente, Jeffries gritou, acima do barulho do vento:
Acho que no estamos fazendo nenhum
progresso!
Somente uma vela quadrada estava assestada
em cada mastro juntamente com as velas de estai e
duas bujarronas, durante toda a tempestade. O vento
era to forte que todas as outras velas haviam sido
recolhidas durante a noite para que os mastros no se
partissem. Finalmente, veio uma nova ordem:
Preparem-se para atravess-la! e um
momento mais tarde: Bombordo! Virar
bombordo! Encurtar as velas de mezena!
Uma dzia de homens correu rpido, subindo
o cordoame principal, trabalhando na mastreao
para descer as velas.
O que esto fazendo? gritei no ouvido
de Jeffries, temendo que os homens cassem no
convs e morressem, ou despencassem no mar
furioso.
Esto recolhendo as velas porque no
estamos fazendo nenhum progresso. Talvez
possamos sair do centro da tempestade por alguns
instantes. Pelo menos, isso dar aos marinheiros um
tempo para respirar!
Uma ncora foi lanada e o navio comeou a
jogar para um lado e para o outro de uma maneira
incrvel. Em alguns instantes eu estava enjoado.
Vomitei antes que pudesse chegar amurada, mas o
vmito foi imediatamente lavado por uma onda que
se quebrou e veio lavando todo o convs. Depois
disso, comecei a ter vmitos em seco, pois no tinha
comido nada desde a noite anterior.
Cometi o erro de olhar para o mar e vi uma
grande onda verde, com sua crista branca como leite,
crescendo to alta que parecia uma montanha,
escondendo de vista, o resto do tenebroso oceano.
Mais alta, cada vez mais alta, mais fina, cada vez
mais fina, sua crista cresceu e comeou a enroscar,
pronta para quebrar, at que, com um rugido, caiu
sobre o navio, mandando os marinheiros para todas
as direes. Jeffries tambm viu tudo isso e ambos
paramos de bombear e enfiamos nossos braos nas
rodas das bombas para evitar sermos varridos para o
mar.
Quando o convs secou, fui repentinamente
unido roda da bomba pelo passageiro que tinha
visto na amurada, no dia anterior. O jovem segurou
firme a roda e me deu uma ajuda no bombeamento.
Sou Hudson Taylor, gritou ele.
Seu cabelo estava colado em sua testa pela
chuva que caa.
Neil Thompson! gritei, acima do
barulho do vendaval.
Nesse momento, o navio elevou-se sobre uma
vaga quase to grande quanto a onda que tinha
anteriormente cado sobre ns e eu pude ver uma
luz, no muito longe do portal da popa. Ela brilhou
claramente contra o horizonte cinza escuro, onde cu
e mar se encontravam.
Olhem! Uma luz! Uma luz! gritei.
Era uma viso maravilhosa para mim; pensei
que ela significava amizade, ajuda, talvez mesmo
calor e abrigo da tempestade. Mas, ao olhar para a
luz, o rosto de Jeffries crispou-se de horror.
Terra! foi o clamor que ecoou acima do
barulho do vento e que foi repetido em todos os
lados do convs. Vi o capito examinar a luz com
seu binculo e ento, trovejar:
Levante alguma vela, senhor Henson! o
Cabo de Holyhead, vamos certamente bater em seus
rochedos e afundar!
O feixe de luz de Holyhead, que tinha sido
uma viso reconfortante para mim, tinha se tornado
em uma temvel luz.
Se algum de vocs dois, marinheiros de
primeira viagem, sabe orar, hora de comear!
gritou Jeffries para o senhor Taylor e para mim, com
os olhos arregalados de pavor.
Captulo 3
Bem alto, sobre o mar
Para minha surpresa, Hudson Taylor comeou
imediatamente a orar enquanto girava a roda da
bomba.
Oh, Pai! orava ele em voz alta Tem
misericrdia de teus filhos! V o perigo que estamos
correndo aqui neste mar. Salva-nos de nos
despedaarmos naquelas rochas...
Jeffries tambm estava murmurando,
freneticamente, coisas como "Senhor" e "Salva-
nos"!
No sabendo o que fazer, eu tentava dizer o
Pai Nosso. No havia ido igreja com freqncia
embora minha me estivesse sempre me dizendo que
deveria ir e assim, no conseguia me lembrar da
orao toda. Mas, quando finalmente disse "Amm",
Jeffries e Hudson Taylor estavam ainda orando e
virando a manivela, virando a manivela e orando...
Fiquei surpreso ao notar que eles no estavam
recitando algumas oraes que tivessem decorado,
pois isso era tudo que eu tinha ouvido o padre dizer
na igreja.
Eles estavam falando com Deus como se Ele
estivesse ali, bem ao lado deles.
Finalmente, Hudson Taylor parou e inclinou-
se em direo ao camareiro.
Acho, realmente, que no temos nada com
que nos preocupar agora, irmo. gritou ele.
Havia um sorriso em seu rosto bonito, com
seu nariz afilado e o indcio de uma crespa barba
vermelha em seu queixo.
O que quer dizer com isso? perguntou
Jeffries ainda com o olhar apavorado.
Deus me chamou para ser um missionrio
na China, gritou Taylor sobre o barulho do vento
e se Ele me colocou aqui neste navio, porque
vou chegar l. Por isso, estou certo de que estaremos
a salvo.
O capito Morris ficaria feliz em ouvir
isso... respondeu Jeffries e um sorriso se abriu
em seu rosto ansioso.
A essa altura, estavam assestadas tantas velas
quantas o Dumfries poderia suportar em tal
vendaval, e o navio mais uma vez bordejava para
frente e para trs, tentando fazer algum progresso
dentro do vento, fazendo movimentos em
ziguezague. Aps cerca de dez minutos de bordejo a
estibordo, Henson deu ordens para que o navio
virasse de bordo e ficamos mais dez minutos
executando bordejos a bombordo. Os marinheiros
quase no tinham tempo de recuperar a respirao
aps manterem as velas em condio de
navegabilidade, antes de ter que faz-lo de novo.
Mas, quando olhei para trs em direo luz, notei
que no havamos feito nenhum progresso. De fato,
agora podia ver que a luz estava vindo de um farol
situado num ponto escarpado do litoral.
Durante toda a tarde, a batalha contra a
tempestade continuou. Por vezes, a luz de Holyhead
parecia empanada e mais distante; mas, quando se
tornava a olhar, alguns minutos mais tarde,
compreendia-se que parecera empanada por causa da
bruma ou porque rajadas de chuva haviam
obscurecido o farol.
Ns trs trabalhvamos nas bombas tanto
quanto podamos, respirando com dificuldade,
quando estvamos exaustos demais para continuar.
Em uma das vezes em que estvamos tendo um
pequeno descanso, o capito Morris se aproximou.
Pensei que ele fosse nos chamar a ateno por no
estarmos bombeando, mas, ao invs disso, ele disse:
Senhor Taylor! Agradeo por estar nos
dando uma mozinha! Realmente precisamos de
toda a ajuda possvel em uma tempestade como esta.
Fico feliz em poder ajudar! disse o
passageiro do navio Mas, no estou muito
preocupado!
Ento, contou ao capito a respeito de Deus
querer que ele fosse para a China.
Isso realmente confortador, disse o
capito, mas no se esquea do que aconteceu
quando o apstolo Paulo navegava para Roma...
O que quer dizer com isso?
Se bem me recordo o que a Bblia diz,
muito embora todos no navio tivessem sobrevivido,
o navio naufragou na ilha de Malta... E eu desejo,
muito sinceramente, que o meu navio se salve...
O capito bateu com as pontas dos dedos em
seu pequeno quepe.
Mesmo assim, obrigado pelas oraes e
pela ajuda com as bombas.
A tempestade vociferava, mas quando a
noitinha se aproximava, o sol brilhou
momentaneamente no cu ocidental. Seu brilho
pareceu dar a todos um lampejo de esperana, mas
tambm mostrou-nos a fria do temporal.
De repente, cu, mar e nuvens transformaram-
se em formas tenebrosas de cor cinza e negra, e um
perfeito preto e branco com nuances de dourado
volta dos cantos das nuvens.
Fora das nuvens ocidentais, brilhantes raios de
sol dardejavam sobre o mar, tornando o topo das
grandes ondas em cristal verde.
Olhei de novo em direo ao farol e vi, pela
primeira vez, quo traioeira era a costa. No havia
praias, somente enormes rochedos negros sobre os
quais as ondas, em incessante fria, batiam
continuamente, despejando borrifadas de gua e
espuma at a base do farol.
Por um momento, o sol mostrou-nos o farol,
como um solitrio pilar branco contra as nuvens cor
de ardsia negra. L no topo, brilhava a luz de aviso
do mesmo. No havia perguntas em minha mente.
Sabia que se estivssemos nos dirigindo contra
aquelas escarpadas rochas, o navio se partiria e, a
despeito de tudo que o senhor Taylor tivesse dito, eu
no podia imaginar que nenhum de ns sobrevivesse
ao naufrgio.
A cada bordejo que o navio dava, para diante
e para trs, perdamos mais terreno, levados pelo
vento e pelas ondas, cada vez mais para perto da
tenebrosa costa. O sol estava no ocaso e, de repente,
o cu tornou-se dourado, depois laranja e, final-
mente, vermelho.
Jeffries olhava com uma expresso de alvio
no rosto.
"Cu vermelho noite, deleite para o
marinheiro; cu vermelho de manh, aviso para o
marujo." murmurou ele, recitando um velho
provrbio dos homens do mar. Se pudermos
esperar, esta tempestade passar por si mesma. Deus
sabe que ela j durou tempo suficiente para trs
tempestades.
O mar furioso parecia o prprio inferno, em
vermelho e negro, refletindo as lgubres cores do
cu. Estvamos em nosso bordejo a bombordo e
cada vez nos aproximvamos mais de Holyhead,
quando o primeiro oficial finalmente deu a ordem:
Virar de bordo!
No, senhor Henson! gritou o capito
Morris l do convs da popa. Mantenha o rumo
onde est!
Capito, protestou o primeiro oficial
se chegarmos mais perto poderemos ser apanhados
pelas correntes e empurrados diretamente sobre os
rochedos, quando tentarmos virar de bordo!
Eu sei disso, Henson. Mantenham o rumo,
rapazes! Mantenham o rumo!
Mas, capito...
Senhor Henson! No questione minhas
ordens! Carregue o navio ou v l para baixo!
O capito voltou-se para o timoneiro:
Dois graus para bombordo, marujo!
Imediatamente, o navio respondeu e pegou um
pouco mais de vento, mas, virar para bombordo
significava que estvamos indo direto para os
rochedos. Jeffries, Taylor e eu paramos de virar a
manivela e nos mantivemos no mesmo lugar, orando
por nossas preciosas vidas.
Ele vai tentar passar! disse o camareiro
cerrando os dentes. No vejo como vamos
conseguir isso!
Ento, pude tambm compreender o que o
capito estava fazendo. Ao invs de virar de bordo e
virando alm do ponto de um novo bordejo, tentaria
achar caminho para passar um pouco mais distante
da costa, o que no havia acontecido durante todo o
dia ele ia tentar passar rente ao promontrio.
O Cabo se aproximava mais e mais. Mesmo
acima do barulho do vento, podamos ouvir as ondas
quebrando sobre as rochas e ver os borrifos que
subiam bem alto no ar e caam na costa.
Mantenham o curso agora! a nossa nica
chance, rapazes encorajava o capito. Mais
um ponto para bombordo, timoneiro!
Oh, no! pensei. No podemos chegar
mais perto! No estvamos distantes dos rochedos
mais que o comprimento de dois navios e estvamos
sendo empurrados por ondas violentas! Ento, vi que
poderamos ter uma chance. O navio se aproximou
do farol e, vagarosamente, muito vagarosamente,
passou por ele. Passou tambm pelos rochedos mais
afastados e se distanciou deles.
De repente, um grande brado de alegria
elevou-se da tripulao.
Conseguimos ! Conseguimos !
Efetivamente, a popa do navio havia
ultrapassado o Cabo de Holyhead.
No muito alm desse ponto, o vento e as
correntes mudaram de algum modo; o capito
Morris mandou que o timoneiro virasse o navio
alguns pontos para estibordo onde, pela primeira vez
desde que a tempestade irrompera, comeamos a
fazer progressos para longe da costa em direo ao
sudoeste.
Quero v-lo em meu camarote, senhor
Henson, por favor! resmungou o capito,
passando o controle do navio para o segundo oficial.
Carrancudo, o primeiro oficial o seguiu em
direo ao convs inferior.
Eu me perguntava por que ele parecia to
infeliz. Estvamos salvos da tempestade inclusive
o senhor Henson. Isso no deveria faz-lo feliz?
Naturalmente que o capito Morris havia
demonstrado que sua habilidade nutica e sua
coragem eram superiores s do primeiro oficial.
Suponho que por isso que o capito o capito!
pensei.
duro para um homem orgulhoso, como
o primeiro oficial, ser humilhado diante de toda a
tripulao! murmurou Hudson Taylor ao meu
ouvido. Era como se ele tivesse lido meus
pensamentos.
Nas semanas que se seguiram, aprendi quo
"normal" era a vida a bordo de um navio. Tnhamos
bons ventos e tempo agradvel com ocasionais
rajadas de chuva, mas nada como a tempestade
qual havamos sobrevivido no Canal da Irlanda.
Como grumete, minhas obrigaes eram
ajudar o camareiro, do qual eu gostava, e o
cozinheiro, que era um velho azedo. Foi-me dado
"alojamento" (um beliche estreito de madeira) no
camarote do camareiro que ficava abaixo do convs
da popa, onde se situavam os camarotes dos oficiais,
do capito e de alguns passageiros. Eu limpava o
banheiro dos oficiais, fazia as camas do capito e
dos passageiros todos os dias, e ajudava Jeffries a
lavar os pratos depois que os oficiais e o senhor
Taylor comiam no salo de refeies. Este, alis, era
o nico passageiro a bordo do navio e no era o tipo
de pessoa exigente, assim, no precisava passar
muito tempo servindo-o.
Na cozinha, davam-me os trabalhos mais
enfadonhos, como descascar batatas e lavar panelas
e mais panelas. Parecia sempre haver alguma panela
para ser esfregada.
Mesmo quando as tarefas regulares estavam
feitas, havia lampies de lato ou botas do capito
que precisavam de polimento.
Mos ociosas so ferramentas do diabo"
dizia-me Jeffries uma dzia de vezes. No mar,
bom que todos tenham sempre o que fazer.
Podia ver que ele no estava me criticando. Os
oficiais procuravam manter todos os marinheiros
ocupados. Se os ventos estavam bons e os marujos
no precisavam estar constantemente ajustando as
velas, eles eram mandados a executar outras tarefas,
como esfregar o convs ou trepar pelo cordoame
para passar alcatro e consertar as cordas. Qualquer
mo que fosse encontrada ociosa, era rapidamente
"encorajada" a voltar ao trabalho por cascudos ou
xingamentos do primeiro ou do segundo oficial.
Era como se os sinos estivessem sempre
soando. Rapidamente, aprendi que as vinte e quatro
horas do dia, no mar, eram divididas em seis
segmentos de quatro horas cada. Durante o
segmento, um sino tocava a cada meia hora uma
vez na primeira meia hora, duas vezes na segunda e
assim por diante, at que o trmino daquele
segmento fosse anunciado por oito badaladas. O
segmento das quatro horas da tarde at s oito da
noite era dividido ao meio (o primeiro e o segundo
vigias) para permitir que todos pudessem cear.
Da mesma maneira, a tripulao estava
dividida em dois grupos. Um grupo chamado de
"vigia de bombordo" servia sob as ordens do
primeiro oficial. O segundo grupo servia sob as
ordens do segundo oficial e era chamado de "vigia
de estibordo". Quando o tempo estava bom, os
"vigias" tiravam turnos dirigindo o navio quatro
horas de servio e quatro horas fora de servio, com
exceo dos turnos da tarde e da noite quando cada
um dos "vigias" tirava turnos de seis horas corridas.
Quando o tempo estava ruim, soava o
chamado: Todas as mos ao convs!" E todos
ajudavam at que passasse a tempestade ou at que
as velas estivessem suficientemente "rizadas" (partes
amarradas e partes soltas) para superar o mau tempo.
Vendo os marujos l no alto, acima do convs,
agarrados ao cordoame quando tentavam "rizar" uma
vela sob vento forte, eu ficava nervoso, na
expectativa de que algum deles escorregasse e casse
c em baixo, morrendo da queda.
Ento, um belo dia o capito Morris me disse:
Thompson, que tal subir na guindola (um
tipo de cadeirinha) e passar alcatro em algumas
cordas hoje? Qualquer marinheiro de primeira
viagem pode esfregar panelas ou polir lato. Seu av
certamente me far passar por debaixo da quilha do
navio, como punio, caso eu passe todo o caminho
para a China sem ensinar a voc nenhuma habilidade
nutica. Jeffries, coloque-o l em cima!
Minha boca estava seca. A tal "guindola" me
parecia como o balano que eu tinha em um galho
de rvore na minha infncia, exceto por sua corda ir
l para o alto, dentro do cordoame do navio, por
meio de uma polia, perto dos mastros. Olhei para
cima, para os mastros que pareciam torres. Embora o
tempo estivesse lindo e uma brisa leve brincasse
com o mar, os mastros balanavam-se para frente e
para trs. Estava to apavorado que prestei muito
pouca ateno quando Jeffries trouxe uma velha
camisa de lona que cheirava a alcatro. Ento, deu-
me um pequeno pote de alcatro com uma escova
dentro.
Quando chegar l em cima, amarre este
cinto de segurana volta do cordoame em que
estiver trabalhando, disse o camareiro, atando
uma corda seguramente ao cinto de minhas calas.
Isto impedir que voc balance demais e
permitir que use ambas as mos para trabalhar. E
mais, quando estiver passando alcatro, no deixe
cair nem uma gota no convs c embaixo, seno
ficar a noite toda limpando-o.
Antes que eu soubesse o que estava
acontecendo, ele comeou a iar-me l para o alto,
acima do convs, na tal "guindola".
No olhe para baixo! gritou Jeffries.
Eu orava por minha preciosa vida enquanto os
marinheiros me colocavam cada vez mais e mais
alto. Quando j estava perto do topo dos mastros,
Jeffries comeou a dar-me instrues.
Comece com aquela corda do patarraz,
bem perto da sua mo direita...
No, essa a no! Essa j foi feita... Aquela
outra...
Eu me agarrava s cordas da minha
"guindola" com ambas as mos e no tinha a menor
inteno de larg-la para agarrar o pedao do
cordoame do qual ele estava falando. Mas, minhas
mos comearam a doer e eu estava dando voltas
vagarosamente, com o vento. Precisava fazer parar
aquele movimento giratrio. Finalmente, estiquei um
p e quase consegui apanhar a corda que pretendia
alcatroar. Quando passei novamente girando por
perto, usei ambos os ps e enfim, consegui.
Empurrei-me para o cordoame e me agarrei l
com as pernas enroscadas na corda.
Isso mesmo! Isso mesmo! encorajava-
me Jeffries. Sua voz parecia vir de quilmetros
abaixo de mim e o vento parecia muito mais forte l
em cima.
Agora, amarre o cinto de segurana e
poder trabalhar! Se ele pensava que eu ia largar a
"guindola" para amarrar o
tal cinto, estava maluco! Mas, aps ficar
balanando no ar durante uns dez minutos,
compreendi que a nica maneira de descer seria
executando meu trabalho. Tinha que fazer alguma
coisa! Mas, dois sinos tocaram antes que eu
conseguisse amarrar meu cinto de segurana.
Finalmente, senti-me seguro o bastante para ir
esticando uma das mos e agarrar a escovinha no
pote de alcatro que estava junto da "guindola".
Pincelei um pouco de alcatro na vela situada
logo acima da minha mo e ento, um pouco mais,
esfregando o alcatro em todos os lados da corda a
fim de proteg-la da chuva e do tempo. Logo j tinha
terminado dois ps daquele setor to longe
quanto pude alcanar naquela posio.
Pronto para mudar de lugar? gritou
Jeffries antes que eu tivesse a chance de descansar.
Sim!
Ele abaixou-me at que eu dissesse "Pare"!
Quando soaram trs badaladas, j estava
pronto para mudar de lugar novamente. Ento,
cometi o erro de olhar para baixo. Do convs, tinha
me parecido que o navio estava navegando quase
nivelado, mas, l em cima do cordoame, achei que
ele estava quase de cabea para baixo, e assim vi que
eu estava realmente sobre o mar.
Apertei com tal fora a escova no pote, que
um pouco do alcatro espirrou quando o esfregava
no "patarraz".
Ei, o que...? gritou algum l de baixo,
enquanto podia ouvi-lo praguejando e gritando mais.
Est trabalhando em algum chiqueiro? Ser
que vou ter que procurar algum poleiro de galinhas
a, sobre a minha cabea?
Olhei novamente para baixo. De alguma
forma, o vento tinha soprado uma bolota de alcatro
sobre o convs e ela tinha "aterrisado" bem em cima
da careca de um fabricante de velas.
Furioso, o homem puxou sua faca e
aproximou-se da corda que fazia subir e descer a
"guindola", onde eu estava.
Vou cortar a corda aqui embaixo e
alimentar os tubares com sua carne! gritou ele.
Eu estava tremendamente assustado, mas no
pensei que ele realmente faria isso, at que vi o
senhor Taylor atravessar o convs correndo.
Ele agarrou o brao do marinheiro e se
colocou entre a corda e a faca do homem. Ento,
disse-lhe algo que no consegui entender.
Est certo, est certo! disse o fabricante
de velas Mas, se acontecer isso de novo, ele vai
para dentro do mar! Voc me entendeu?
O homem afastou-se, praguejando enquanto
se ia.
Bem que eu disse para tomar cuidado com
o alcatro! falou Jeffries num sorriso.
Quando, finalmente, o camareiro me baixou
de volta ao convs, o senhor Taylor encaminhou-se
para mim, dando-me um tapinha nas costas.
Rapaz corajoso! disse ele com seus
olhos azuis brilhando.
Eu queria agradecer-lhe por ter vindo em meu
socorro, mas minha lngua parecia pregada em
minha garganta. No me sentia nada corajoso...
Nos dias que se seguiram, o capito mandou-
me vrias vezes subir na "guindola" at que,
finalmente, perdi o medo de ficar balanando entre o
cu e o mar. Comecei at mesmo a gostar de ficar
balanando para trs e para frente no cordoame.
O navio virou para o leste, afastando-se da
costa da Amrica do Sul e encaminhou-se para o
Cabo da Boa Esperana, contornando a parte inferior
da frica. L de cima do cordoame, eu podia ver
distncia de muitas milhas, enquanto navegvamos
dia aps dia, e, assim, fui o primeiro a avistar dois
outros navios no horizonte. Mas, a vista que eu mais
apreciava eram os golfinhos nadando por perto,
diante do nosso navio. Eles nos faziam companhia
por milhas e milhas e, ento, desapareciam por
algumas horas ou por dias seguidos at que, repenti-
namente, apareciam de novo.
Alguns dos marinheiros diziam que eles eram
outro tipo de golfinhos, mas eu tinha plena certeza
de que reconhecia alguns deles. Era reconfortante
pensar que alguns golfinhos retornavam novamente
para guiar-nos.
Captulo 4
Ao mar!
Quando contornamos o Cabo da Boa
Esperana, na parte inferior da frica, tivemos bom
tempo enquanto navegvamos pelo sul do Oceano
ndico. Navegamos at cerca de cento e vinte milhas
da Austrlia, mas, em fevereiro, assim que passamos
as ilhas da Indonsia, ocorreram dias em que
ficamos parados pela calmaria. As velas pendiam
flcidas ou se agitavam inutilmente, de tempos em
tempos, e ns amos deriva, por um quente e vtreo
mar.
Afortunadamente, uma brisa noturna soprava
com freqncia e assim nos permitia um modesto
avano, porm, uma corrente a sudoeste flua atravs
das ilhas e nos trazia de volta durante muitos dos
dias sem vento.
Foi durante esse tempo, quando havia horas
livres no convs (no se pode esfregar o convs dia
aps dia), que vim a conhecer melhor o passageiro
do navio.
Hudson Taylor tinha pedido permisso para
fazer um culto aos domingos, no convs. O capito
Morris, Jeffries, o camareiro africano, e o carpinteiro
do navio, apoiavam entusiasticamente o servio
religioso e dele tomavam parte, sempre que o tempo
permitia.
Tambm assistia aos cultos porque gostava de
Hudson Taylor, de Jeffries e do capito. Porm, bem
poucos marinheiros participavam. Se acontecesse de
estarem no convs, alguns paravam e ouviam sem
fazer cara de tdio. Mas, se estivessem dormindo,
jogando damas ou qualquer coisa desse tipo, eles
no se mexiam para ao menos "ir igreja", mesmo
quando Jeffries ou Taylor os convidava.
Aquilo me surpreendia. Aprendi que a
Inglaterra era um pas cristo, assim, pensava que a
maioria dos marinheiros fosse crist. Mas, vivendo
junto deles naquele navio, to intimamente, comecei
a ver a diferena entre as pessoas. Alguns homens,
naturalmente, zombavam de qualquer crena em
Deus. Eu esperava por aquilo e assim no me
surpreendia. Mas, a maioria simplesmente no se
importava... Muito embora tivessem nascido em
lares cristos e sido batizados, alguns haviam se
casado na igreja e, provavelmente, teriam seu
funeral nela... Eles se diziam "cristos", porm na
sua grande maioria no tinham nenhum desejo real
de "tomar a sua cruz e seguir Jesus" como bem
disse o senhor Taylor.
Isso fez com que eu comeasse a pensar. Se
fosse falar a verdade, eu tambm era essa espcie de
"cristo". Sentindo-me um tanto culpado, assisti
fervorosamente a todos os cultos que o senhor
Taylor fez no convs.
Um dia, Hudson Taylor pregava sobre o
terceiro mandamento. "No tomareis o nome do
Senhor Deus em vo". Jamais havia pensado sobre o
que significava usar o nome de Deus em vo. Os
marinheiros do Dumfries costumavam falar uma
penca de coisas sujas e eu bem sabia que era errado
falar qualquer dos palavres que eles diziam. Mas,
Taylor explicou que dizer "Oh, Deus" ou chamar
"Jesus Cristo", pedindo ajuda, poderiam ser oraes
curtinhas, se estivssemos mesmo falando
seriamente com Deus. Mas, se no estivssemos
falando realmente com Deus, ento isso era usar o
seu nome em vo.
Quando eu pensava sobre isso, podia ver que,
sempre que a maioria dos marinheiros diziam
aquelas palavras, eles no estavam falando com
Deus; s usavam o seu nome para expressar
surpresa, desgosto ou ansiedade. Pela primeira vez,
compreendi o mandamento e decidi ser mais
cuidadoso com a maneira de falar. No tinha certeza
de que isso significava ser um cristo como Hudson
Taylor ou o capito Morris, mas no havia nenhuma
razo para ser rude com Deus. E, a final de contas,
quem sabe se algum dia eu poderia realmente pre-
cisar dEle?
Certa manh de domingo, ainda quente, as
correntes ocenicas haviam nos levado,
perigosamente, para perto do litoral norte da Nova
Guin. Durante o culto do senhor Taylor, notei que o
capito parecia preocupado e, freqentemente,
deixava nosso pequeno crculo para olhar para o
lado do navio.
Taylor tambm notou e, aps a orao de
encerramento, disse:
Qual o problema, capito? O senhor
parece preocupado...
E estou, senhor Taylor. A corrente muito
rpida por aqui e, no muito distante, h uma linha
de recifes. Sem uma brisa, logo estaremos sobre
eles, e a ponta de um recife de coral pode fazer um
buraco no casco do navio, da mesma maneira que os
rochedos de Holyhead.
O capito voltou-se e gritou para um dos
homens que subisse ao cordoame com um culo de
alcance e observasse os recifes. Passou-se uma hora
sem vento e, de repente, o homem gritou:
L esto eles! A cerca de quatrocentos
metros a r! Todos correram at a amurada para dar
uma olhada, mas, no pudemos ver nada. Passados
uns dez minutos, o capito Morris perguntou ao
vigia do cesto da gvea se estvamos nos
aproximando dos recifes.
No h dvida quanto a isso, senhor.
Vocs j podem v-los a olho nu agora.
Olhei para onde ele apontava e pensei poder
ver uma clara risca verde na gua, onde as ondas
estavam mais planas.
Senhor Henson disse o capito ao
primeiro oficial lance ao mar um escaler e ponha
nele todas as mos que possam empunhar um remo!
Pode ser que consigamos rebocar o Dumfries e
coloc-lo a salvo!
O escaler, com dois homens em cada remo,
esforou-se para rebocar-nos durante uma hora.
Talvez tenham impedido a nossa aproximao dos
recifes, mas ainda podamos ver que estvamos
perdendo terreno. A linha de recifes na gua estava
agora muito visvel e no distava mais do que uns
cem metros da embarcao.
De repente, movendo-se ao longo da verde
linha de recifes, vi uma sombra cinza. Pisquei,
pensando que o brilho do sol estava perturbando
meus olhos. Porm, nesse momento, um dos homens
gritou:
Tubares! Tubares!
A perspectiva de um naufrgio num recife em
guas calmas no parecia ter aborrecido muito a
tripulao, mas a presena dos tubares modificou
tudo.
O pnico parecia espalhar-se por todo o navio.
Alguns homens comearam a desamarrar os botes
salva-vidas.
At que eu d a ordem de abandonar o
navio, esses botes ficam onde esto! rugiu o
capito. Toquem neles novamente e mando-os
para o convs inferior!
Olhei fixamente as formas cinzentas. Os
tubares mediam cerca de cinco a seis metros de
comprimento. Ocasionalmente, uma barbatana
triangular quebrava a superfcie da gua, fazendo
correr um calafrio em minha espinha.
O capito Morris chamou de volta o escaler e
voltou-se para Hudson Taylor.
Precisaremos do escaler e de todos os botes
salva-vidas se qualquer um de ns quiser sobreviver
a isto. Fizemos tudo que podia ser feito. Agora, s
nos resta esperar. Espero que, de algum modo, o
senhor ainda possa chegar China...
Ainda no tentamos tudo, disse o
senhor Taylor.
No?... o capito levantou as
sobrancelhas E o que foi que deixamos de
tentar?...
H pelo menos quatro de ns, a bordo, que
so cristos! disse Taylor calmamente. Que
cada um de ns v para o seu camarote e concorde
em orar, pedindo a Deus que nos mande uma brisa.
Ele tanto pode nos mandar a brisa agora, como ao
pr-do-sol.
O capito esfregou o queixo.
Concordo! disse ele e saiu procura do
camareiro e do carpinteiro.
No gostei de ser deixado de fora, mas seus
atos deixaram claro para mim o que eu j comeara
a compreender: Eu no tinha decidido no ser um
cristo, contudo, realmente nunca tinha decidido
seguir a Cristo.
O primeiro oficial franziu as sobrancelhas
quando viu o capito e os outros desaparecerem no
convs inferior. Ento, voltou a olhar para os
tubares na gua. Contei trs deles patrulhando os
recifes de coral, nadando de um lado para o outro,
como se estivessem sabendo que estvamos indo
para l e esperassem fazer de ns sua prxima
refeio. Para frente e para trs... Para frente e para
trs...
De repente a voz de Hudson Taylor soou atrs
de ns.
Senhor Henson, acho que melhor abaixar
os cantos das velas principais para que possamos
pegar o vento.
E por que devo fazer isso? bufou o
primeiro oficial.
Porque estivemos orando, homem, e estou
certo de que Deus mandar uma brisa
imediatamente. Mas devemos estar preparados!
Henson olhou ceticamente para as velas.
Tambm olhei e pensei ter visto as velas do mastro
principal que so chamadas de "reais"
comearem a tremer.
Est vendo? O vento est chegando!
disse Taylor. Olhe as "reais"!
"Patinhas de gato", somente bufou o
oficial, referindo-se aos pequenos sopros de vento
que brincavam com as velas como se fossem
"patinhas de gato" no mais calmo dos dias.
"Patinhas de gato" ou no, abaixe as velas,
homem, ou bateremos nos recifes!
Com um olhar surpreso para o rosto de
Taylor, o oficial deu a ordem. To logo as velas
drapejaram, encheram-se de vento. Com um bem-
vindo rangido dos costados, o Dumfries, vagaro-
samente, comeou a mover-se para frente, e no
mais deriva.
Obrigado, meu Deus! gritou o capito
Morris, vindo de seu camarote de volta ao convs.
Para assombro de todos, a brisa se manteve
at que passssemos pelas Ilhas Palau e ficssemos
bem distantes de qualquer outro perigoso recife.
Numa quarta-feira, 1 de maro de 1854,
finalmente lanamos ncora no porto de Xangai,
China, e eu estava ansioso para desembarcar.
Estivramos no mar por cinco meses e meio.
O jovem senhor Taylor apareceu no convs
com suas vrias malas e caixas, olhando
ansiosamente para todos os lados do agitado porto e
do ainda mais fervilhante litoral. Fez questo de
apertar a mo de toda a tripulao e de agradecer-
lhes pela viagem. Eu sabia que alguns deles
pensavam que ele era um tanto maluco, mas a
maioria tinha aprendido a respeitar o inexperiente
missionrio.
Quando Taylor aproximou-se de mim,
brinquei com ele, dizendo:
No diga adeus! Nos veremos em Xangai!
Mas no contava que o capito fosse um
desmancha-prazeres.
Sinto muito, Thompson, interrompeu-
nos Xangai uma cidade terrvel e cruel; no
lugar para um menino andar solta. Voc ter que
ficar a bordo do navio. H um monto de trabalho
para voc fazer aqui.
Ele voltou-se para ajudar Hudson Taylor a
descer a escada de corda para o escaler que o levaria
costa.
A raiva fervilhou dentro de mim. Eu tinha
sido raptado e levado ao mar por vinte e trs
semanas e sonhava em sentir terra firme sob os ps.
Sabia que ningum podia inquirir o capito, mas no
pude me conter. Assim que o escaler afastou-se do
Dumfries, puxei a manga do senhor Morris.
Fui raptado e trazido para bordo deste
navio contra a minha vontade! protestei. O
mnimo que o senhor poderia fazer era dar-me a
liberdade, agora que estamos em um porto!
Os olhos do capito Morris se estreitaram e
seu rosto tornou-se severo.
Eu disse, permanea a bordo, e isso tudo!
Ele voltou-se e se foi, andando altivamente.
No podia acreditar! No ir a terra firme?
Mais uma vez senti-me como se fosse um
prisioneiro.
Ficar ancorado no porto de Xangai o qual
nada mais era do que uma larga curva do sujo rio
Whangpoo foi muito pior do que estar no mar.
A monotonia de permanecer a bordo, algumas
vezes quase sozinho, exceto por dois ou trs
marinheiros que ficavam de vigia, tornou-me mais
nostlgico do que nunca.
Jeffries e o cozinheiro no me davam muito
trabalho para fazer e, assim, tinha tempo de sobra
para olhar para aquele extico mundo, ali quase ao
meu alcance. Dzias de outros navios l estavam
ancorados, at mesmo alguns navios de guerra in-
gleses, e, entre ns, navegavam os sempre presentes
"juncos chineses, tentando nos vender arroz quente,
vegetais, frutas estranhas e peas de pano para os
marinheiros estrangeiros. Eu olhava atentamente as
barcaas acostadas aos grandes navios, que os
carregavam de ch e outras mercadorias que
deveriam ser vendidas na Inglaterra ou na Amrica.
Interminveis dias se passaram, mas nenhuma
barcaa acostou no Dumfries.
Onde est nosso carregamento de ch?
perguntei a Jeffries uma certa noite quando retornou
ao navio.
No conseguiremos nenhum carregamento
de ch! resmungou ele.
Mas, por que no?
H uma guerra comeando em Xangai!
Uma guerra? Com quem? No vejo
nenhum navio de guerra ingls fazer nada ...
Jeffries olhou para mim com ar desgostoso.
No essa espcie de guerra... uma coisa
de chineses... Um grupo de rebeldes chamados "Os
Turbantes Vermelhos" est tentando dominar a parte
chinesa da cidade. No esto incomodando os
estabelecimentos ingleses, caso contrrio, voc ento
veria aqueles homens de guerra dos navios ingleses
carem sobre eles.
Mas o que que isso tem a ver com o
nosso ch?
Suponho que a luta tenha alterado as rotas
comerciais chinesas, e assim os plantadores no
podem embarcar todo o ch necessrio pelo rio.
Com menos ch, os preos sofrem alta para o que
est em disponibilidade, e agora mesmo os preos
esto to altos que a companhia no ter nenhum
lucro. Sendo assim, teremos de esperar. Pode ser que
as coisas fiquem melhores em alguns dias.
Senti como se algum tivesse me dado uma
paulada na cabea. Isso no estava acontecendo!...
queria ir para casa e aqui estava eu, pregado na
China e, ainda mais, sem permisso de deixar o
navio...
Passaram-se mais alguns dias e nada de ch.
Ento, numa bela manh, Jeffries contou-me que no
dia seguinte teramos carga a bordo s que no
seria ch.
Aiken & Companhia, os proprietrios do
navio Dumfries, tm escritrios aqui em Xangai,
disse-me ele. O agente conseguiu para ns um
carregamento de seda e outras mercadorias que
devero ser levadas para So Francisco. Acho que
aqueles californianos enriqueceram tanto com o seu
ouro que agora querem se vestir na moda riu
sarcasticamente.
Pode ser que quando retornarmos a
Shangai, daqui a seis meses ou mais, o preo do ch
j esteja baixo e, assim, a Aiken poder ter lucro
com ele. Quem sabe? assim, o negcio da
navegao...
Quase desmaiei, suando frio! Trs meses para
ir at a Amrica e mais seis meses para voltar
China. Ento, se tudo corresse bem, outros cinco ou
seis meses para ir de volta Inglaterra. E at poderia
levar mais tempo! Eu no podia esperar tanto!
Seriam quase dois anos! J estaria com quatorze
anos quando conseguisse chegar em casa! Minha
vida me havia sido roubada porque um primeiro
oficial impaciente no fora capaz de encontrar o seu
grumete a tempo de o embarcar!
Quando pensava nisso, ficava com raiva at
mesmo do capito. Ele bem que poderia ter-me
enviado de volta para Liverpool quando constatara
que eu fora raptado, parando seu navio o tempo
suficiente para que eu fosse colocado a bordo do Sea
Witch.
Mas, ao pensar no Sea Witch, tive uma idia.
O porto estava cheio de outros navios. Um deles
tinha que estar indo diretamente de volta
Inglaterra. E se eu desertasse do navio e
comprasse passagem em outro clipper? pensei.
Porm, no tinha dinheiro para fazer isso. Ento,
porque no me alistar em outra tripulao?
Isso poderia funcionar, mas era uma coisa
muito perigosa! Eu havia escutado um monte de
histrias terrveis sobre ferozes capites que
flagelavam sua tripulao em alto mar. Afinal, tinha
que admitir que a vida a bordo do Dumfries no fora
to ruim assim...
Mas... dois anos? Definitivamente no poderia
esperar tanto tempo! Assim, decidi arriscar e pular
do navio na primeira oportunidade.
A chance veio logo depois das trs badaladas
do primeiro turno de vigia. O nico homem de
servio fora at a cozinha para buscar algo para
comer. Eu estava na amurada a estibordo quando um
"junco" chins passou to perto de ns que eu po-
deria, facilmente, ter pulado para bordo. Ao invs
disso, pendurei-me sobre a amurada e esperei at
que ele tivesse se afastado e ento, deslizei de
mansinho, bem quieto, para a gua. Com algumas
poucas braadas, nadei para detrs do "junco" e
agarrei-me a uma corda que pendia na gua suja.
Pendurei-me na corda e fui sendo rebocado
para longe do Dumfries, em direo cidade de
Xangai... E tambm em direo a um futuro muito
incerto.
Captulo 5
S atiraremos em voc! No o torturaremos!
O "junco" chins que havia me rebocado
atravs das guas barrentas do porto de Xangai,
naturalmente, no ancorou na doca da parte europia
da cidade, mas, no setor chins. Escorreguei da parte
traseira do pequeno barco com seu leque marrom,
guisa de vela, e nadei at a margem, cheia de lixo
derramado, que ficava sob algumas lojas que se
debruavam no rio, sobre palafitas.
Quando rastejei para fora da gua, ensopado e
cheirando mal, devo ter me parecido com algum
monstro de lama, saindo do pntano. Passei pelas
lojas que se localizavam na zona porturia e entrei
numa estreita e ventosa rua, caminhando em direo
ao norte e esperando poder encontrar a parte
europia da cidade. A rua estava cheia de gente e,
para minha surpresa, nem me notaram, mas eu
certamente notava tudo e todos. Tudo era to
diferente...
Longos rabichos negros escorriam pelas
costas de todos ali. Todos usavam uma tnica longa
e solta sobre calas largas. Alguns puxavam
carrinhos de duas rodas carregados de mercadorias
diversas, e outros levavam aos ombros uma longa
vara com cestas de alimentos ou baldes de gua em
cada ponta.
Aps alguns momentos, notei algo incomum.
Naquele empurra-empurra, no havia mulheres na
rua. Ento, vi uma mulher e uma menina mais ou
menos da minha idade, trabalhando em uma espcie
de barraca no mercado. Porm, a primeira coisa que
notei nelas foram os pequenos e incertos passos que
davam quando andavam. Parei e pude ver o porqu.
Ambas tinham ps de criancinhas, pequeninos ps
calados em sapatilhas pretas. Isso era uma coisa
muito estranha, realmente a mais estranha que eu
tinha visto. Provavelmente um defeito de
nascena pensei.
As lojas e as construes me pareciam muito
frgeis. Algumas eram feitas de ripas de bambu
tranadas juntas; outras pareciam ser cobertas por
papel colorido, atravs do qual podia-se ver a luz,
brilhando l dentro.
Continuei meu caminho atravs da alvoroada
multido e passei por prdios que pareciam ser feitos
de materiais mais firmes. Eram cobertos de telhas
com os quatro cantos virados para cima. Quando
olhei mais atentamente, na opaca luz do anoitecer,
pude ver um drago entalhado na extremidade de
cada canto virado para cima, nos telhados, o que os
fazia parecer muito assustadores.
Nesse momento, vi uma outra mulher
andando com os mesmos pezinhos, arrastando os
passos. Seus ps eram tambm muito pequeninos.
Isso muito estranho! pensei.
Cheiros exticos e uma encantadora e
saltitante msica flutuavam atravs do ar
enfumaado, enquanto as refeies da noite eram
preparadas em foges de carvo. Notei ento que
estava faminto, mas precisava encontrar depressa o
setor europeu da cidade.
Afastei-me ainda mais do porto, em direo
ao norte e, de repente, as ruas ficaram desertas. As
poucas pessoas que via corriam de um edifcio para
o outro aps perscrutar a rua, olhando para todos os
lados, e fitando o cu que escurecia.
Fiquei nervoso e comecei a andar mais rpido.
Quando passava por um muro de pedra, dois homens
muito fortes me agarraram e me puxaram para um
beco estreito. Empurraram-me de encontro ao muro
e comearam a gritar comigo em chins. Sacudi a
cabea e gritei:
No entendo! No entendo!
Tentei me livrar e escapar, porm eles me
espremeram de tal modo contra o muro que me
tiraram a respirao.
Vindo de um lugar qualquer, um outro homem
apareceu. Estava vestido em um uniforme militar,
com uma vistosa espada pendente de seu lado. Com
um aceno de suas mos, fez com que os dois
bandidos se retirassem. Respirei aliviado quando ele
ficou de p diante de mim, com as mos nos quadris
e um ar carrancudo e frio em seu rosto.
Voc espio! disse ele com um gesto de
seu cavanhaque em minha direo.
No, no! Sou somente um marinheiro, um
marinheiro ingls, um grumete!
Voc espio! disse ele novamente, em
ingls.
No era uma pergunta, era uma afirmao!
No, parecia mais com um veredicto dado por um
juiz.
Voc espio dos Turbantes Vermelhos!
Com um gesto silencioso, mandou que os dois
bandidos me agarrassem de novo.
No, esperem! Eu sou um grumete! O
grumete do navio Dumfries. Ele est ancorado l no
porto. Posso mostr-lo a vocs!
Os homens agarraram-me um por cada brao e
seguiram o oficial.
Vocs esto enganados! Como posso ser
um espio?
V! Voc confessou! Disse: "Eu ser um
espio"! Muito bom! S atiraremos em voc! No o
torturaremos! disse o oficial por sobre o ombro.
No, no! protestei, lutando para
libertar-me. Ele tinha entendido mal. Mas, quanto
mais eu lutava, mais firme os bandidos me
seguravam e mais rpido andvamos.
De repente, ouviu-se o som de um assobio no
ar, seguido por uma tremenda exploso na casa bem
atrs de ns. O deslocamento de ar atirou-nos ao
cho. Aturdido, olhei em torno e vi que o homem
que havia ficado entre mim e a exploso estava
seriamente ferido pelos fragmentos de rochas que
voaram para todos os lados. Seu corpo havia servido
de escudo para mim, livrando-me de ser ferido.
Um outro assobio soou sobre nossas cabeas e
metade da rua, atrs de ns, explodiu. Ento, ouvi o
rudo das armas de fogo em algum lugar mais
adiante.
Na confuso, compreendi que ningum mais
estava me segurando. De um salto, levantei-me e
comecei a correr na direo de onde viera. Virei a
primeira esquina, depois uma outra e me deparei
com um grupo de soldados que estavam junto a um
canho postado na rua. Uma tremenda exploso
irrompeu logo que o canho atirou, bem acima da
minha cabea. O som do deslocamento de ar deixou
meus ouvidos tinindo. Cambaleei alguns passos de
volta e, ento, girei e corri em outra direo.
Corri, corri, at que sa em uma outra rua,
onde pessoas andavam livremente.
Eu ainda podia ouvir as bombas que os
canhes atiravam e o r-t-t dos rifles soando a
distncia. Mas, estava completamente perdido.
Fique calmo, fique calmo... dizia para mim
mesmo.
Calculei que o tiroteio no podia vir do porto
ou do norte, pois era l o setor europeu. Assim
sendo, a luta tinha que ser ou no oeste ou no sul.
Supus que viesse do oeste e assim comecei a
caminhar na direo em que eu pensava que
estivesse o norte.
As ruas no setor chins de Xangai no eram
em linha reta, assim, quando o tiroteio parava por
uns breves minutos, era preciso se ter muita cautela.
Depois de duas ou trs voltas, estava novamente em
dvida sobre para qual lado ficaria o norte.
Finalmente, atravessei uma ponte sobre um canal ou
rio e cheguei a um lugar que era, obviamente, o setor
europeu.
Fiquei to surpreso com o que encontrei, tanto
quanto ficara com a cidade chinesa. Esperava
encontrar somente alguns rsticos prdios de
madeira como uma espcie de posto avanado do
governo. Ao invs disso, encontrei casas feitas de
tijolos com esplndidos jardins, duas altas igrejas e
vrios espaosos prdios do governo, com trs ou
quatro andares.
Era noite, mas as luzes dos edifcios e os
lampies das ruas davam um suave calor ruidosa
comunidade. Havia muito poucas carruagens
puxadas por cavalos nas ruas, mas os cidados locais
deslocavam-se muito rapidamente se no mais
rapidamente ainda em vistosas cadeirinhas
carregadas pelos velozes coolies chineses, uma
espcie de trabalhador braal.
Marinheiros, muitos deles falando alto e j
parcialmente bbados, vagavam em pequenos
grupos, de taverna em taverna.
Senti-me bem por estar outra vez em um
ambiente familiar, mas logo me lembrei de que no
tinha lugar para ficar nem dinheiro para comprar
comida. Os prdios do governo bem como as filiais
dos escritrios de vrias companhias de navegao
estavam todos fechados, assim, no haveria, naquela
noite, oportunidade de conseguir um lugar em um
navio que se dirigisse a Londres.
Estava parado na porta de uma taverna,
olhando e pensando em algum meio de conseguir
algo para comer, quando ouvi vozes atrs de mim.
Ei! L est o nosso grumete, Thompson!
disse um deles.
Voltei-me e vi que os marinheiros eram da
tripulao do Dumfries e, bem no meio deles, estava
Henson, o primeiro oficial.
O que que voc est fazendo aqui?
perguntou-me Eu pensei que o capito havia dito
que voc ficasse a bordo do navio!
No esperei ouvir mais nada. Voltei-me e
corri.
Atrs dele, rapazes! Ele desertou do navio!
Corri trs quarteires com os marinheiros em
meus calcanhares. Eu bem poderia meter-me entre
as pessoas e as cadeirinhas, mais rpido que eles,
mas no sabia quanto mais conseguiria correr. Foi
ento que virei a esquina e encontrei-me numa rua
estreita; uma carroa carregada de feno estava se
deslocando vagarosamente a minha frente. Parei de
correr quando a idia brilhou em meu crebro. Pulei
para a traseira da carroa, puxando meu corpo para
cima. Rapidamente, mergulhei no feno e fiquei l
quietinho.
Para onde ele foi? perguntou um dos
marujos que estava a no mais que um brao de
distncia de mim. A carroa chiava, um tanto
vagarosamente, sobre a rua calada de pedras
arredondadas.
Voc o viu? perguntou outro.
No! Mas ele tem que estar aqui por perto!
era Henson. Ei, vocs a, procurem entre esses
edifcios. Ento, vejam se ele foi para aquele bar l
atrs, na esquina. E voc, disse ele para um outro
marinheiro corra l para frente e veja se consegue
v-lo!
Vagarosamente, a carroa se movimentava,
levando-me para a segurana. De repente, parou.
Oh, no! pensei. Agora eles vo me
pegar, com certeza! Ande, ande! Oh, motorista, por
favor ande!
Mas a carroa continuava parada.
Ele no est aqui dentro, senhor disse
um dos marinheiros enquanto se reuniam em torno
da parte de trs da carroa. Logo, outros chegaram
para dar conta da procura.
Aqui! Saiam do caminho, rapazes! O
homem quer colocar algum feno para dentro de seu
alpendre! Mas, primeiro, reviste aquele alpendre,
Barclay.
Ouvi o condutor puxar um forcado, um tipo
de garfo grande de ferro, da parte dianteira da
carroa. Em seguida, "zing", o garfo zuniu dentro do
feno, bem pertinho de mim. Meu corao quase
parou de bater. Ou seria furado com aquele garfo ou
ento seria exposto diante da tripulao do Dumfries
como desertor.
J estava quase desistindo do meu esconderijo
quando Henson falou:
Quando ns pegarmos aquele garoto eu
vou enforc-lo no lais de verga! Ningum deserta de
um navio e vive para contar a faanha!
O que quer dizer com isso? No somos da
armada de sua majestade! disse uma outra voz.
Desertar de um navio no uma ofensa que esteja
sujeita pena capital. Os tripulantes fazem isso a
toda hora!
No quando sou eu o primeiro oficial do
navio! Venham, vamos embora! Ns ainda o
pegaremos!
"Crunch"! O forcado mergulhou
profundamente no feno, bem perto da minha cabea.
Dois de seus grandes dentes ficaram um em cada
lado de minha mo e jogaram um pouco do feno
para o alto, e ento pude ver as estrelas brilhando no
cu. Mas ainda estava paralisado de medo.
Nesse momento, ouvi que os marujos se
arrastavam de volta, andando pela estreita alia,
resmungando uns com os outros.
Enquanto eles estavam olhando para outro
lado e antes que o condutor voltasse para retirar
outra garfada de feno, rastejei e pulei pela lateral da
carroa.
Temendo mais a tripulao do Dumfries que
todo o exrcito imperial chins, decidi retornar
cidade chinesa, mantendo uma distncia segura de
qualquer soldado. Mas, no havia ningum
procurando especificamente por mim l, como
Henson fizera no setor europeu. De fato, ningum
parecia querer me aborrecer no setor chins, exceto
quando me atrevia a ir perto demais da rea de luta.
Naquela noite, dormi nos degraus frios de um
templo budista, com um grande dolo colocado bem
no alto acima de mim. De manh, estava dolorido,
entrevado e to faminto, que pensei estar perto de
morrer de fome. Alguns fiis colocaram tigelas de
arroz e vegetais perto dos ps do Buda. Uma outra
mulher de andar arrastado estava com eles. Comecei
a imaginar se todas as mulheres chinesas tinham ps
de bebezinhos.
Quando os adoradores se foram, fui investigar
o tipo de alimento que eles haviam deixado. Talvez
eu possa comer um pouquinho dele. pensei.
Mas sempre havia pessoas por perto, ento
conclu que os alimentos eram uma oferta ao dolo.
Tentei mendigar, fazendo vrios gestos com
as mos para tentar me comunicar, dizendo que
queria algo para comer. Muitas pessoas se recusaram
sequer a me prestar ateno, porm, algumas outras
riam e me encorajavam a fazer mais. Eles
provavelmente pensavam que eu estava dando um
espetculo, mas ningum me deu comida.
tarde, voltei zona porturia, onde pude ver
o Dumfries ancorado no porto. Uma barcaa estava
acostada em sua lateral, colocando carga a bordo.
Logo, logo, o navio estaria zarpando.
Considerei, pensando comigo mesmo, que talvez
devesse ir ao consulado ingls, caso quisesse voltar
ao Dumfries. Certamente as autoridades me
protegeriam de ser enforcado e eu realmente no
pensava que o capito Morris permitisse isso, de
modo algum. Porm, eu de fato no queria perder
mais seis meses no mar enquanto o Dumfries
navegasse para So Francisco, na ida e na volta.
No! decidi Vou esperar at que ele se
faa ao mar. Ento voltarei ao setor europeu da
cidade e procurarei um emprego em um navio que
esteja se dirigindo diretamente para a Inglaterra.
Mas, oh... eu estava com tanta fome...
Ento, quando estava olhando para os navios
no porto, ouvi uma jovem voz dizer:
Voc, ingls?
Voltei-me e vi uma sorridente menina chinesa
mais ou menos da minha idade. Notei seu sorriso,
porque a maioria dos chineses no sorriam com
muita facilidade.
Sim, eu sou ingls.
Estava agradecido por encontrar algum
qualquer pessoa que no estivesse me
ameaando, perseguindo ou troando de mim.
Qual o seu nome?
Mim... Ingls...
O que?
Voc... mim... ingls!
Tateamos, tentando falar um com o outro por
uns momentos, at que consegui compreender que
ela queria que eu lhe ensinasse ingls. Ento, tive
uma idia. Com muita dificuldade, consegui mostrar
que ensinaria ingls a ela em troca de comida.
A menina pareceu ficar encantada com a idia
e apressou-se, acenando para mim com sua
mozinha para que eu a seguisse. A primeira coisa
que notei foi que ela no tinha os ps pequenos
como todas as outras mulheres chinesas pareciam
ter. Apontei para seus ps e fiz com as mos um
sin
Recommended