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PREFÁCIO ....................................................................................................................... 5
1.CONSUMIDORES (CONSUMIDOS)..............................................................................................13
2.ECONOMIA POLÍTICA DA PULSÃO............................................................................................20
2.1A CANALHICE: PATOLOGIA CÍNICA DA ÉTICA............................................................................26
3.CULPA E RESPONSABILIDADE..................................................................................................37
3.1A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA....................................................................................................37
3.2OS INJUSTIFICÁVEIS.............................................................................................................46
3.2.1“Desculpe qualquer coisa”........................................................................................50
4.DO CÃO AOS CÍNICOS...........................................................................................................55
4.1O CINISMO COMO RETÓRICA: UMA RETÓRICA CÍNICA?...............................................................55
4.2A RAZÃO CÍNICA.................................................................................................................64
4.3LOCUPLETEMO-NOS TODOS...................................................................................................76
4.4ESCÂNDALOS.....................................................................................................................97
DORMIR NO PONTO ................................................................................................. 103
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 112
PREFÁCIO
O mal-estar na civilização se apresenta hoje em dia como um cinismo universal e difuso.Peter Sloterdijk, Kritik der zynischen Vernunft (1983)
depositário que tiver a chance de ficar impunemente
com o dinheiro recebido em custódia e não o fizer por
princípio —há três séculos exemplo e paradigma de
retidão na conduta— está obsoleto. O homem moral de Kant é um
otário. Não que as estacas fincadas para alicerce da ética moderna
por sua lógica de ferro pietista tenham ruído. Não, apenas diminuiu a
procura por moradia no edifício construído em cima.
O
A palavra de ordem vigente é “levar vantagem em tudo, certo?”
Ética do malandro afinada com a corrupção crônica que infesta todos
os estamentos da vida civil. Lado obscuro da fé cega de que sempre
há de haver um jeito (para driblar as regras em benefício próprio). À
lei universal internalizada do sujeito ético se substitui a paixão do
esperto em ser a exceção que confirma a regra (dos outros).
O problema é que esta exceção tornou-se regra —a da
malandragem—, e resulta difícil imaginar o que será feito dos tolos o
dia em que se realize a sonhada nação da esperteza. Vertigem desta
curiosa “dialética do malandro e do otário” —versão bufa do legado
hegeliano, mas não por isso merecedora de menor atenção— que me
5
disponho a examinar aqui. Menos para somar à legião dos
descontentes (ou seja, daqueles que chegaram tarde ao reparto do
bolo), que para demonstrá-la efeito de um discurso vigente na Kultur
(isto é, na civilização, segundo a tradução recebida) que, como
qualquer outro, determina a organização mesma dos vínculos em que
se realiza e exercita nossa subjetividade. Atendendo à forma
específica da organização que este induz proponho denominá-lo
discurso do cínico.
*
Deixo para outro lugar uma discussão pormenorizada do
conceito de discurso, aqui hão de bastar algumas considerações que
esclareçam o uso que faço dele. Esclarecimentos como subsídio ao
seguinte pressuposto: não há relação social que não esteja
determinada por um discurso.
Em As palavras e as coisas Foucault considera discurso o que
se diz. Mas o que se diz não se restringe aos atos de fala, ainda que
sempre esteja associado à linguagem. Trata-se da ordem que
organiza e circunscreve o campo da experiência e do conhecimento
possíveis. Define o modo de ser dos objetos que aparecem em tal
campo. É sempre correlativo de uma episteme que funciona como o
paradigma a partir do qual se organiza o mundo. Um discurso é um
conjunto de procedimentos de delimitação e controle, embora
também se possa falar de controle do discurso, exercido desde
6
dentro ou fora dele. A série de procedimentos mediante os quais se
traçam os limites entre o admissível e o inadmissível para
determinada cultura em tal momento histórico, constitui seu “discurso
admitido”, nome foucaultiano da ideologia.
Para o psicanalista o discurso é menos um veículo de
significados que um apelo a responder desde uma determinada
posição. Laurence Bataille1 o ilustra de um modo bonito. Quem
passeando pela margem do rio ouvir um grito de socorro estará
comprometido pelo simples fato de tê-lo ouvido, seja qual for a sua
reação ou mesmo fingindo nada ter escutado. Ainda que não haja
vivalma nas redondezas, mesmo assim, o sujeito estará implicado
perante o que Lacan denomina o Outro da linguagem. Este é o
alcance do my word is my bond de Austin.
Quanto à psicanálise, ela é um procedimento discursivo entre
outros, com a particularidade de servir para apreender como o
discurso nos determina. Tomemos por exemplo um conceito maior da
teoria, o “supereu”. Seria insensato acreditar na sua existência fora
da experiência psicanalítica, que é uma experiência de discurso. Mas
dentro dela, o que é o “supereu” senão o modelo de como o discurso
em si determina a subjetividade?
Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo número de relações [relations] estáveis, no interior das quais pode inscrever-se, claro, algo mais abrangente, que vai mais longe que as enunciações efetivas. Nenhuma necessidade destas últimas para que nossa conduta,
1 Bataille L., 1984
7
nossos atos, eventualmente, se inscrevam no quadro de certos enunciados primordiais.2
Assim se exprimia Lacan em 1955. Em 1969, o quadro destes
enunciados primordiais será descrito como uma “estrutura que
ultrapassa de longe a fala [parole], sempre mais ou menos ocasional”.
É o discurso, definido como um sistema de relações estáveis entre
significantes, que dependem da linguagem e determinam o sujeito
independentemente de fazer ou não sentido.
Na mesma época propõe distinguir quatro “discursos radicais”
do mestre, da histérica, do psicanalista e do universitário—,
verdadeiras matrizes das relações humanas como as conhecemos (e
as vivemos) em ocidente. Quem quiser aprofundar nesta teoria, lerá
com proveito O avesso da psicanálise (Lacan, 1994). Seu
conhecimento, porém, não é imprescindível para acompanhar o
argumento mediante o qual proponho acrescentar o do cínico à lista
dos discursos radicais.
*
Quanto ao cinismo (até melhor definição, confio o termo à sua
acepção corrente), para poder pensá-lo como discurso, devemos
deixar de concebê-lo como uma postura entre outras de um indivíduo
—passível de ser confrontada com princípios éticos universais—, e
passar a tratá-lo como um dos modos de estar (ser?) na civilização
que nos toca viver. Possibilidade que reflete menos uma mudança na
2 Lacan, 1978.
8
superestrutura da sociedade que uma mutação do discurso
dominante responsável pela sua infra-estrutura. Transformação
decorrente do desenvolvimento do capitalismo na alta modernidade.
A certeza de que tudo há de acabar em pizza isto é, na
confraternização dos espertos com exclusão dos lesos, por
exemplo, provaria menos o relaxamento dos costumes que a
existência de uma discursividade que ordena nossas relações mútuas
num verdadeiro círculo cínico. Este círculo é, em primeiro lugar, uma
armadilha lógica de cuja forma, descrita com fineza pelo cinema e a
literatura3, tive uma ilustração impagável no trabalhador impedido de
trabalhar pela nova Lei de Previdência, segundo a qual já devia estar
aposentado, que tampouco podia requerer a aposentadoria, porque
apenas a quem trabalha é concedido tal direito.
É, também, uma modalidade de vínculo social caracterizado
pela manipulação, sendo que, embora se acredite livre, o
manipulador não está menos preso que o manipulado na trama
instrumental. É, finalmente, (isto se deduz do anterior) uma relação
com o inconsciente tal que ele só existe para os outros, o que faz
com que o interessado se imagine autônomo, livre de qualquer outra
determinação que não a sua boa ou má vontade.
*
3 Cf. Catch 22 (Ardil 22) Jospeh Heller, para o livro; Mike Nichols, para o filme.
9
Nunca o programa kantiano de uma moral de princípios esteve
tão longe do espírito de uma época. Nunca, não obstante, a ética foi
tão citada. O que não deixa de ser coerente, porque o cinismo é a
caricatura da moral iluminista, e a prova talvez de sua impossível
efetivação. Podemos reconhecê-lo pela sua marca registrada, que
consiste em invocar normas universais enquanto se promove sua
transgressão particular. Como discurso, o cinismo consiste no
conjunto de operações que preservam oculto o hiato entre os
princípios e a prática que os contradiz.
Há de se convir que uma tirada como a de Brecht na Ópera
dos três vinténs, “O que é assaltar um banco comparado a fundar
um?”, não soa igual em lábios de um banqueiro, de um bancário ou
de um cliente. Os candidatos mais prováveis a soltar uma frase
dessas hoje em dia seriam os primeiros, sem que isso lhes impeça
em absoluto de seguir gerindo seus negócios milionários às custas
dos outros dois. Tudo se passa como se nenhum dos três fosse
capaz de renunciar à crença de que a sociedade toda é beneficiária
dos bancos, mesmo sabendo que foram criados para benefício
exclusivo dos seus proprietários. Conquanto reconheçam o interesse
particular que desmente o proclamado desinteresse universal,
continuam agindo como se não soubessem.4
4 Zizek, 1990.
10
Devemos a primeira crítica sólida deste discurso —coextensivo
do mercado globalizado, do human engeneering e da correção
política— a um filósofo dinamarquês chamado Peter Sloterdijk5. Ele
vê o cinismo como o traço distintivo da civilização ocidental; como o
modo principal de organizar as relações humanas, tanto no plano
pessoal como no institucional. Resultado, segundo diz, do fracasso
das promessas libertárias da crítica da ideologia de cunho marxista, e
da concomitante desilusão política e desencanto a respeito das suas
alternativas sociais.
Com efeito, se a ideologia é a falsa consciência (Marx) dos
indivíduos de uma determinada classe sobre as razões que os
movem, o cinismo é a falsa consciência ilustrada (Sloterdijk), que já
não será afetada por nenhuma crítica ideológica. Pois enquanto esta
oferece uma reflexão sobre as condições efetivas da realidade social
determinante da ação das pessoas, prometendo a subseqüente
tomada de consciência que permitiria sair da ilusão, o cinismo se
apresenta como uma ilusão que incorporou sua própria crítica
mantendo-se incólume.
*
O que a kulturcritik não leva em consideração, mas à
psicanálise é dado observar, é o tanto que as subjetividades são
afetadas por esta mutação discursiva, fisgadas pela satisfação
5 Sloterdijk, 1993
11
libidinal ali promovida. Fruição relativa à mencionada manipulação do
semelhante, que caracteriza um verdadeiro deleite do canalha.
Em outro lugar6, refleti sobre a mudança de status da noção de
responsabilidade decorrente da invenção da psicanálise. Como
responsabilizar-se, era a questão, por atos cujas determinações são
desconhecidas para quem os realiza? Respondia então que, longe de
servir como pretexto para sua isenção moral, o sintoma sofrido
indicava o lugar mesmo onde o paciente devia reconhecer-se, para
todos os efeitos, como agente. Era natural concluir que a ética da
psicanálise entranhava a passagem do sintoma do sujeito para o
sujeito do sintoma, mas isso deixava em aberto a pergunta pelas
conseqüências sobre as concepções canônicas da moral, que
sempre foram subsidiárias de uma psicologia da consciência. Até que
ponto, em outras palavras, a reflexão filosófica sobre a ética devia (ou
podia) contar com o inconsciente freudiano.
Que fim levou esta responsabilidade pelo próprio desejo numa
época que já incorporou (senão pasteurizou) a psicanálise, e na qual
o inconsciente é tratado como pouco menos que uma curiosidade
histórica? É com esta pergunta que me dirijo aos modernos cínicos.
6 Goldenberg, 1993
12
1. consumidores (consumidos)
N
ão há sinal mais seguro da presença de uma civilização que o lixo. A
garrafa vazia de Coca-Cola caída do avião sobre a cabeça do
aborígine (primeira cena do filme Os deuses devem estar loucos). O
que a ecologia ciência e ideologia dos efeitos deletérios do
progresso desconhece, além do fato de a natureza ser um mito
(como o Éden), é que denominamos cultura ao resultado de uma
digestão.
Freud nos familiarizou com a idéia de que as mais elevadas
produções da humanidade derivam do refugo7 e que o empenho do
homo faber se alimenta dos apetites pulsionais não aplacados8. A
transcendência do espírito não implica, contudo, que a civilização
tenha deixado para trás o esgoto do qual surgiu. Da sublimação não
resulta uma cultura sublime.
A Kultur, com efeito, não está constituída com o trigo das
ciências e das artes mas com o joio. A vulgarização de uma teoria,
por exemplo, só acontece depois de ela ter se tornado inócua para o
7 Desde os Três Ensaios..., em 1905, ou talvez antes.8 Infra p. 34 e ss.
13
progresso da disciplina. É como rebotalho do campo científico que se
incorpora à cultura, quando deixa de siderar como descoberta e cai
na vala comum do conhecimento universal. A universidade, aliás, é a
instituição encarregada de administrar esta acumulação.
Não é quando Van Gogh subvertia os cânones com telas
inadmissíveis que se verifica a equivalência entre a obra e o dejeto9.
(Talvez para o artista, mas isso lhe interessaria e a mais ninguém.) É
depois do consenso, quando a Sothesby avalia em centenas de
milhões de dólares os mesmos quadros que em vida do pintor não
valiam o preço da tela em que estavam pintados. Freud não estava
desvalorizando as obras ao mostrar sob as Belas Artes o objeto
pulsional, mas reconhecendo o valor das sobras para o desejo. Não é
este o lugar para refletir sobre o status mercantilista da arte moderna,
mas não deixa de ser um interessante problema o fato de o valor de
troca crescer em proporção inversa à potência subversiva da obra.
Qual é o valor de uso dos óleos do holandês? Por enquanto queria
apenas fazer observar que os Van Goghs são considerados “únicos”
no momento em que foram deglutidos e digeridos pela baleia de
nosso corpo (social).
Esse outro efeito da popularidade, além da rápida conversão
das obras em dinheiro, que é o esquecimento, o esgotamento da sua
capacidade subversiva, é bastante visível no mundo das letras. Os
puristas torcem o nariz para os livros populares menos pela qualidade
9 Freud, 1970. O.C., vol. 3, “Nuevas Lecciones Introductorias al Psicoanálisis” (1932), lección 32.
14
da escrita que pela facilidade com que se consomem e evacuam (o
que constitui a sua popularidade). Consideram “literatura” apenas a
escritura que resiste o leitor instigando seu desejo de dificuldade. Mas
desejo tal é coisa rara, e não acontece sem indução, já que se move
na contramão dos lugares comuns em que o ego se aboleta. O livro
que nos faz trabalhar não está ainda ou não por completo na cultura.
Joyce esperava resistir-lhe por dois ou três séculos. “Poublier10 mês
Écrits”, pondera Lacan. E discorre sobre o preço de condescender à
poubellication.11 Não que anunciar a lixeira como sina de seu livro o
tenha inibido na hora de recolher os direitos autorais. E, mais,
anunciá-lo desta sorte não foi óbice à provocação do desejo de
comprá-lo, antes pelo contrário. Enfim, tinha aprendido a lição
freudiana. E a questão não era (como não é) renunciar ao provento
mas preservar a resistência à cultura que os escritos pudessem ter.
Da sublimação, então, não resulta uma cultura sublime. E a
escatologia é a disciplina que se ocupa, na divisão enraizada em
ocidente entre corpo e alma, do bom modo de manter a psique livre
do seu soma. Basta uma greve de lixeiros, entretanto, para que se
saiba com quantas toneladas de lixo se faz o Volksgeist!
Passemos ao luxo.
10 De publier, publicar, mais oublier, esquecer.11 De poubelle, lixo, mais publication.
15
Um velho amigo, depois de anos de labuta consegue adquirir
os bens com que sempre sonhara. Os mesmos que tantas vezes
despertaram sua inveja na casa de outros. Ford, Sony, IBM, Hitachi,
Taurus 38, Chivas Regal... Para seu espanto e consternação,
descobre porém que não consegue desfrutar de nada do que tanto
desejara e com tanto esforço obtivera. Este rei Midas da periferia me
confidencia seu desespero, comparável, diz, a ter a mulher sonhada
nos braços sem conseguir penetrá-la.
Que uma mulher possa produzir tal e tamanho descalabro é
compreensível. Já algumas bugigangas inibindo seu usuário era para
mim uma novidade. Os yuppies da década de oitenta tinham me
acostumado com o investimento exclusivo na acumulação monetária,
que não se refletia necessariamente numa melhora da qualidade de
vida. O workhoolism exprimia uma forma de satisfazer-se no trabalho
enquanto reflexo de eficácia e de excelência: a conta bancária
crescendo era o efeito colateral, o signo do sucesso e o lugar de
acumulação do resto daquele gozo. Gastar o dinheiro não era porém
um problema; simplesmente não tinham tempo para isso. Meu amigo
não era contudo um workhoolic; para ele a exploração de suas forças
era um meio para subir na vida. Por que, então, não conseguia comer
os frutos? Conhecendo o pouco chegado que é a intimidades, fiquei
comovido pela sua confiança em mim e intuí quanto lhe custava dizer
tais coisas a alguém com quem não tivera uma verdadeira conversa
16
nos últimos quinze anos. Não me recordo mais o que lhe respondi
nem se tive sucesso em fazê-lo sentir-se melhor, como queria; mas
lembrei dele agora que devo escrever sobre a equação que, dizem,
representa o espírito neoliberal: tem valor porque se vende.
Meu amigo não é o cínico que, segundo Oscar Wilde, conhece
o preço de tudo e o valor de nada, mas sua inibição confirma pela
negativa a fineza da ironia do escritor. O cinismo moderno casado
com o neoliberalismo produz novas versões da fábula da raposa e
das uvas verdes porque inalcançáveis. Depois de uma diatribe
dirigida contra “a ostentação obscena das elites brasileiras” ouvi do
crítico a seguinte autocrítica: “não sei ao certo se sou um verdadeiro
socialista ou um invejoso de merda”.
Para ilustrar o divórcio entre os valores libidinais e os valores
do Eu, Freud12 conta a fábula do casal paupérrimo, com apenas um
prato de sopa rala como toda refeição, a quem aparece a fada de
plantão com sua oferta de satisfação de três desejos quaisquer.
Estava a esposa com tal e tamanha fome, que não pôde evitar-se o
desejo de um par de suculentas salsichas ao sentir o cheiro das que
o vizinho fritava, as quais no ato apareceram sobre seu prato vazio. O
marido furioso com semelhante desperdiço, teve vontade de ver as
tais salsichas penduradas no nariz dessa tola. O que lhe foi
12 Freud, 1970. Op. cit. “Lecciones introductorias al Psicoanálisis” (1916), lección 14.
17
imediatamente concedido. Enternecido, não obstante, com a imagem
de sua patroa “ensalsichada”, pediu para elas voltarem ao prato. O
que nos leva de volta ao casal unido, enfim, em torno ao desejo
realizado de... salsichas (e a uma ilustração de que o desejo é
inconsciente e faz fracassar o cálculo de custo-benefício).
Tenho certeza que se oferecessem a esta mesma senhora,
numa gincana dominical televisada, tudo que pudesse carregar no
carrinho durante quinze minutos no supermercado, provavelmente o
desespero em saber o que deveria querer fosse tamanho que
terminasse levando pouco mais que uma cesta básica, para se livrar
do peso da injunção. A oferta da fada Mercado, longe de ser o “abre-
te Sésamo!” da caverna dos quarenta ladrões, entregue à luxúria de
um Ali Babá, é ouvida como uma ordem incoercível; um dever de
consumir que torna as mercadorias expostas nas prateleiras objetos
ligeiramente persecutórios. A neurose obsessiva toma cada vez com
maior freqüência o caminho da paranóia.
Em todo caso, a impossibilidade de usufruir de um bem de que
se dispõe indica antes seu alto valor libidinal que o contrário; o
compromisso narcisista com ele que impede seu consumo, na
medida exata em que nos realiza como falo. Imagino que meu amigo
não podia acreditar que ele, fadado à eterna privação (“pão de pobre
cai com a margarina para baixo”), tinha sido capaz de comprar todas
aquelas coisas. Como, então, sem antes desvalorizá-lo um pouco,
18
poder desfrutar do passeio nesse carro que não-é-possível-que-eu-
possua? Mas essa é precisamente a questão: ele é que me possui.
19
2. economia política da pulsão
Nada na vida é tão caro quanto a doença e a estupidez.Freud
sociedade edificada sobre a renúncia ao prazer é uma
tese política, embora Freud não a pensasse como tal. Se,
como afirma a metapsicologia, o espírito não aspira à
realidade mas a satisfazer-se, o acesso à realidade se confunde com
o gerenciamento das pulsões, e isso é uma tese política. O Eu e o
Isso se refere à civilização como aterro do mar libidinal. Vale
observar, entretanto, que o princípio-de-realidade não visa à
abstinência mas à verdadeira satisfação —que o sujeito não se
entregue a um engodo, que não abrace a miragem ou beije a
alucinação. Seu objetivo não é a renúncia mas a perseguição dos fins
do princípio do prazer por outros meios —chorar para mamar, em vez
de contentar-se com chupar o dedo, imaginando o peito. Fantasia e
realidade não estão em lados opostos, como se costuma dizer.
A
“Na noite seguinte àquele dia de fome ouviu-se [minha filha
caçula] proferir excitada, durante o sono, Anna F.eud, Er(d)beer,
Hochbeer, Eier(s)peis, Papp.”13 O inventário recitado pela adormecida
13 (AE, 4, p. 149.) “Ana F.oid, mo(r)ango, amola, ovo, papar ”
20
não faz a triagem dos objetos da necessidade mas das iguarias
proibidas pela “polícia sanitária da família”, como se exprime Freud.
Encenação onírica dos alimentos tornados inacessíveis por obra do
discurso familiar, organizador do vínculo social da menina. As coisas
não são nomeadas ali por mero recenseamento porém indicadas
enquanto subtraídas à satisfação. E a satisfação —menos da fome
que da demanda— passa pelo Alter. (Por isso, observa Ana Costa14,
quando contraria o ideal, gozar pode não ser demasiado prazeroso.)
Entre a realidade bruta das coisas e o universo de prazer, o Lust-Ich,
está a linguagem. J’ouis-sens, brinca o francês, ao modo de nossos
concretistas15.
E o sonho da pequena Anna Freud se transforma em
paradigma de uma leitura possível da civilização. Há objetos tornados
inacessíveis pelo discurso, subtraídos à satisfação e por isso mesmo
preciosos. O diamante, por exemplo, o melhor amigo da moça —
segundo Marylin Monroe, no impagável Os homens preferem as
loiras16:
A kiss of the hand May be quite continental,But diamonds are a girl's best friend.
14 Medeiros da Costa, 1998.15 “Car ces chaînes ne sont pas de sens mais de jouis-sens, à écrire comme vous voulez conformément à l’équivoque qui fait la loi du signifiant” (Lacan, 1975, p.22). Literalmente: ”ouço sentido” ou “gozo sentido”. Mot-valise feito de j’ouis (ouço), de Jouissance (gozo) e de sens (sentido). Grosso modo: a significação substitui o gozo do corpo (o corpo goza), que depois a parasita —satisfazer-se nada tem a ver com os significantes, mas a satisfação passa pelo sentido ainda que o exceda.16 Howard Hawks. Gentlemen prefer blondes, 1953. Marylin é Lorelei Lee.
21
A pulsão —“conceito básico convencional [...], por ora bastante
obscuro, porém do qual em psicologia não podemos prescindir”17— é
descrita como a labuta que o corpo causa ao aparelho psíquico. A
energia consumida durante o labor, a libido, envolve grandezas de
natureza desconhecida e ainda incomensuráveis (Freud escreve
estas coisas pensando na mecânica dos fluídos) cuja existência ele
infere da vivência da satisfação que se trata de explicar.
Que uma “força de vida” possa constituir aquilo que aí é consumido, eis uma metáfora grosseira. Pois a energia não é uma substância que, por exemplo, bonifica ou se torna azeda ao envelhecer —, é uma constante numérica que o físico precisa encontrar em seus cálculos para poder trabalhar. […] Isso não é de minha lavra. Qualquer físico sabe […] que a energia nada mais é do que a cifra de uma constância. Ora, o que Freud articula como processo primário no inconsciente —isso vem de mim, mas podem ir lá e verão— não é algo que se cifra mas que se decifra. Digo: o próprio gozo. Nesse caso ele não constitui energia e não poderia se inscrever como tal.18
Esta opinião de Lacan sobre a energética freudiana preside sua
proposta de trocar o modelo hidráulico pelo econômico (o dos
economistas), que também segue Freud, embora isso seja menos
evidente. O “bônus de prazer” obtido mediante atividades que estão
fora de todo propósito útil, como por exemplo sonhar, fantasiar ou
brincar, é uma referência econômica e freudiana.19 A idéia de
17 Freud, AE, “Pulsiones y destinos de pulsión”. p. 113.18 Lacan, 1975, p. 34 e 1980b , p. 38.19 Freud (1925) “Algunas notas adicionales a la interpretación de los sueños en su conjunto”, in O.C., vol. XIX, A.E., p.129
22
“usufrutuário” do humor é outra20, assim como falar da renúncia ao
pulsional qualificando-a de “operação valiosa”.
Enquanto a renúncia pulsional por causas exteriores é apenas desprazerosa, a renúncia por causas interiores, por obediência ao supereu, tem um novo efeito econômico. Além da inevitável conseqüência de desprazer, proporciona ao eu um ganho de prazer, uma satisfação substitutiva, por dizer assim. O eu sente-se enaltecido, a renúncia pulsional o deixa orgulhoso como uma operação valiosa.21
Ou, ainda, notar a política dirigida para o “lucro de prazer”
imperante no isso, em oposição ao eu submetido ao princípio-de-
realidade ("Assim como o isso se dedica com exclusividade ao
ganância de prazer, o eu está governado pelo cuidado da
segurança"22). O mecanismo de formação do sonho é descrito como
uma associação comercial, na qual um sócio capitalista (o desejo
inconsciente) investe seu capital de libido no empreendimento de um
sócio executivo (o resíduo diurno), com a finalidade de fabricar
sonhos. Finalmente, um chiste é feito com representações
censuradas. O artesão aproveita para compô-las a libido que se
destinava a mantê-las recalcadas. Para o destinatário, o mesmo
montante libidinal estará liberado e há de se descarregar na
gargalhada: puro deleite. Em suma, rir de uma piada é ter ganho uma
bonificação de prazer arrancada à censura.
20 Freud (1926-27) “El humor” in AE, vol. XXI. , p. 157. 21 Moisés y la religión monoteista (1938) in O.C, Vol XXIII. AE., p. 113. 22 Esquema del psicoanálisis in O.C., vol. XXIII, AE, p. 201
23
Dos economistas possíveis, talvez pelos ares culturais de finais
da década de 60, Marx foi o escolhido, mas cumpre dizer que não se
tentou costurá-lo com Freud, contrariando usos acadêmicos em
voga23. Foi desapropriado para tentar esclarecer alguns problemas do
freudismo, especialmente a pulsão teorizada como trabalho.
O capital é “o conjunto de meios de satisfação resultantes de
um trabalho anterior; [...] o fruto de um trabalho.”24 Entre tais frutos,
como se sabe, encontra-se a mais-valia, visível —visível só depois
que Marx chamou a atenção para a assimilação fraudulenta dos
valores de troca e de uso das mercadorias— na diferença entre o que
custa um operário e o que se lucra com sua produção. Como se
exprime Quinet25, o time is money capitalista dissimula um time que
não entra no livro-caixa como money, a mais-valia.
Concebido como campo econômico, no libidinal também está
em jogo uma falsa identidade de valores, inscrita como falo. Há, com
efeito, um “valor de troca” que dá a “medida” do brilho de um objeto
para o desejo. Marylin o conhecia bem (embora sabê-lo de pouco lhe
valeu), e seu elogio do diamante nos encanta pela ironia de mostrar
que a pedra está para a moça, como ela para o milionário.
The french are glad to die for love They delight in fighting duels
23 Os interessados lerão com proveito os artigos de Askofaré e de Naveau inclusos no volume Goza! (Goldenberg, 1997b) e “O segredo da forma-mercadoria: por que Marx inventou o sintoma?” in Zizek. 1991.24 Marx, 1985.25 Quinet Antônio, 1996
24
But I prefer a Man who lives And gives Expensive jewels
O que não está dito, embora esteja insinuado, é o valor de uso
—de moça e jóia (esta libera o gozo daquela, digamos). O dote na
atualidade caiu em desuso e as mulheres recusam via de regra o
status que o discurso lhes atribuía antigamente, de representantes do
falo. Até o século dezenove, não obstante, as mulheres eram aptas
para circular, associando linhagens através do matrimônio, apenas
enquanto mantivessem seu valor fálico de troca, isto é, enquanto não
estivessem usadas (a noção de filha estragada, porquanto não mais
virgem, está menos erradicada do pensamento comum do que os
swinging sixties levariam a acreditar).
Em bom freudismo, o que faz do falo um falo é a castração,
caracterizada como interdição do objeto e conseqüente desgozar
(manque-à-jouir). A rigor, a proibição recai sobre o gozo. Como
demonstra aquela estória do judeu que vai consultar seu rabino de
urgência, porque a mulher de seus sonhos (que, incidentalmente,
deve ser gói) decidiu dar para ele logo no shabat. E o sábio, depois
de consultar a Torá: “trepar, pode; gozar, não”. Em todo caso, depois
de certificar-se de que não seja confundido com o órgão do orgulho
masculino que o representa, Freud fez do falo uma sorte de padrão
de medida virtual para os objetos da pulsão.
Já Lacan se apropria da operação crítica que permitiu a Marx
identificar a mais-valia no interior de um sistema de produção de
25
valores pecuniários para chamar a atenção para a diferença entre
valor fálico de troca e valor de uso (gozo) do objeto erótico. E se
permite a extravagância de anunciar que a Meherwert é um
Meherlust! (a mais-valia é um mais-gozar)26 Sem entrar no mérito do
alcance desta expropriação psicanalítica da lógica marxista, o que se
pretende afirmar é que assim como o modo de produção capitalista
gira em torno de um valor excedente, que não entra na contabilidade,
o aparelho psíquico se vê às voltas com um gozo excessivo,
traumático porquanto irrepresentável. Lacan dirá que se trata de
“fazer passar o gozo ao inconsciente, isto é, à contabilidade.”27
2.1 A CANALHICE: PATOLOGIA CÍNICA DA ÉTICA
[A mais-valia,] causa do desejo da qual uma economia faz o seu princípio: a produção extensiva, portanto insaciável, de desgozar [manque-à-jouir]. Acumula-se, por um lado, para acrescer os meios desta produção a título de capital. Amplia o consumo, por outro lado, sem o que esta produção seria vã, justamente pela sua inépcia em procurar um gozo no qual pudesse desacelerar.28
Ainda que o lema mais representativo da economia capitalista
seja “satisfação garantida ou seu dinheiro de volta”, ela depende, na
verdade, de que a insatisfação cresça de modo exponencial e atice o
consumo indefinidamente. Por isso Lacan dirá neste parágrafo, para
o qual o adjetivo retorcido não parece fora de propósito, que o
capitalismo produz desgozar, por só poder oferecer mais consumo
26 Lacan, 1972.27 ibid.28 “Radiophonie” in Scilicet 2/3 Paris: Seuil, 1973.
26
ainda, em vez de um contentamento que lhe permitisse deter o
círculo infernal.
Contudo, como me fazia observar Michel Sauval, o limite do
luxo está menos no lixo, resto do consumo, que na saturação. O
impossível de consumir. A missão do marketing é fabricar carência
que não acaba mais, para gerar vontade e incentivar as vendas. Mas,
como toda a produção no pode ser absorvida pelo mercado, o
desgozar encontra seu limite nas mercadorias que permanecem
encalhadas, que não se vendem. Cada uma delas corresponde a
ofertas fracassadas na sua missão de criar demanda. Assim como os
brinquedos no quarto lotado de uma criança são outras tantas
demandas fracassadas na sua missão de causar o desejo dos pais.
Freud inventou a psicanálise quando este circuito estava nos
seus primórdios, quando a moral vitoriana, rigorista, da abstinência,
da frugalidade e do trabalho se firmava concomitantemente à
revolução industrial. Ao discutir os impasses da realização da libido,
responsáveis pelo advento das neuroses, fala do veto da realidade
externa sobre esta satisfação. Ele se refere à frustrante moral
puritana e ao mal-estar decorrente de sua disciplina, mas há uma
versão interna deste veto responsável pela versagung. O supereu
que, embora se trate de uma instância do aparelho psíquico, é
transindividual porquanto constituído menos pelas intervenções
27
educativas que pelos ideais que elas veiculam, muitas vezes
inconscientes para os próprios educadores.
Lacan, em todo caso, observa que a perplexidade de Freud
frente ao paradoxo da consciência de culpabilidade tanto mais
culpado quanto mais virtuosa a conduta seria menor se
reconhecesse o supereu como um dos avatares da pulsão. Seu
travestimento metonímico disfarçado de antipulsão, que nos leva da
renúncia ao gozo ao gozo da renúncia29. A culpa insensata é a
vivência subjetiva deste paradoxo.
Quanto à frustração fundamental, ela não é responsabilidade
da educação, nem do supereu, mas da linguagem mesma, aquém de
qualquer discurso. Este da uma forma determinada cultural e
historicamente e uma figura a uma interdição inerente ao fato de
sermos falantes. O gozo, em todo caso, concerne à coletividade, não
apenas ao indivíduo.
Norberto Ferreyra pergunta (retenhamos sua pergunta) se o
analista é um gadget para seu analisando. Estará ele em série com
os eletrodomésticos? É decerto mais instigante interrogar o status do
psicanalista por este viés que considerá-lo um prestador de serviços.
29 Isso me levou em outro lugar (Goldenberg, 1991) a afirmar que uma psicanálise devia promover a interrupção deste gozo do sacrifício (do gozo).
28
Se a psicanálise fosse uma ciência, se pudesse sê-lo, então, o produto, aquilo que surgiria de uma análise, isto é, um analista [...], este produto, seria uma lathouse, ou não? Funcionaria como uma lathouse, na prática social da psicanálise, ou funcionaria de outro modo? [...] Quando falamos de sua prática, falamos de si é possível a fabricação de uma lathouse em psicanálise. Há fábricas de casos. Há fábricas de analistas? É possível uma fábrica de analistas?30
Deixemos a lathouse neologismo lacaniano sobre o qual não
vale a pena deter-se, e que se refere aos produtos da tecnologia
destinados a funcionar como se fossem objetos pulsionais artificiais: a
chupeta, enfim mas retenhamos a idéia do psicanalista como
produto artificial consumível pelo cliente. Perguntar pelo consumo não
da psicanálise mas do psicanalista, além de renovar a velha questão
de sua função como parceiro libidinal do paciente, supõe já ter uma
resposta ou, ao menos, ter feito a pergunta de como a experiência
analítica nos afeta enquanto consumidores.
Consegue, no plano da coletividade, algo além de revelar a
inércia pulsional afetando as relações sociais? A inutilidade das
campanhas contrárias ao fumo, por exemplo, são suficiente evidência
da impotência da vontade frente à chamada do oral. E não será
apelar para ela com argumentos psicanalíticos o que a tornará mais
potente.
Por outro lado, é inegável que a influência do discurso da
psicanálise sobre a cultura ajudou a minar o valor do ideais que
sustentavam as morais religiosas ou laicas que pregavam a
austeridade, a abnegação e o sacrifício. Especialmente o ideal
30 Ferreyra Norberto, 1993. P. 56.
29
religioso, desmascarado como uma ilusão ao revelar-se por trás dele
a presença da libido. Obra iluminista, a desidealização, da que podia
esperar-se uma melhor apreensão da futilidade dos sacrifícios.
Não é bem o que tem acontecido já que, por um lado, vemos
as pulsões desembestadas soltas as rédeas do ideal inoperante,
atrás dos produtos que o mercado oferece em série e que fazem do
sujeito antes que consumidor, adicto. Por outro, a crescente
martirização que dos Kamikaze à Intifada ilustra a ação nefasta de
ideais absolutos. Não apenas não refreiam o sacrifício como fazem
dos corpos invólucros descartáveis de almas militarizadas, cujo
destino se completa na sua realização instrumental como arma. E
isso, nos dois sentidos, porque o uso sistemático do estupro como
política de guerra, iniciado na contenda balcânica pelos sérvios, visa
também o corpo das muçulmanas como meio para atingir suas almas:
os seus maridos e pais estão obrigados a repudiá-las em obediência
à lei islâmica.
* * *
A pulsão sexual põe à disposição do trabalho cultural quantidades de força extraordinariamente grandes, e isto graças à particularidade, especialmente acentuada nela, de poder deslocar a sua meta sem perder, quanto ao essencial, a sua intensidade. Denominamos esta capacidade de trocar a meta sexual originária por outra meta, que já não é sexual mas que psiquicamente se aparenta com ela, capacidade de sublimação.31
31 AE, 9, p.159
30
Este é um dos poucos parágrafos em que Freud consegue
escapar das metáforas fluídas ao tratar do gozo. Mas a própria
escolha da noção de sublimação para nomear este processo parece
uma operação retórica destinada a fazer desaparecer as secreções
que lhe parasitam a prosa32. Separar-se dos humores, como passo
prévio à acessão, digamos, a posições mais elevadas. Em todo caso,
da sublimação me interessa o que a faz fracassar.
Quem melhor ilustrou o processo dentro do espírito freudiano
foi Picasso, ao revelar-se o alquimista quintessencial: qualquer merda
(sic) que fizesse voltava-lhe transmudada em ouro33. Parece oportuno
não esquecer (ele não esquecia) que naquela época Pablo já era
Picasso. Por isso não se importou quando uma turista recolheu um
desenho que fizera num guardanapo de papel, enquanto bebericava
um aperitivo em Cap D’Antibes. Mas cuidou muito bem de não
assiná-lo: a garatuja não valia nada, mas o garrancho, sim. Outro
comprovado coprófilo, que tampouco era qualquer um, Dalí, levou
aquela constatação alquímica até a excelência de vender folhas
brancas de papel com sua rubrica. O mercado não demorou a ver-se
invadido por milhares de falsos autênticos, cujo efeito a longo prazo
foi a desvalorização das gravuras dalinianas em geral. Note-se que
enquanto um retém o nome, que sabe suporte do valor de troca de
32 Em química a sublimação é a passagem do estado sólido ao gasoso sem passar pelo líquido.33 Daix Pierre, Picasso criador, Porto Alegre: L&PM, 1989
31
sua arte; o outro gasta o valor de troca do nome, deixando decair as
obras.
Diremos que o artista consegue que lhe financiem o gozo? Ele
se satisfaz e o espectador paga a conta: o pintor como anti-prostituta.
"A gente sabe que está na hora de se aposentar", dizia-me uma,
"quando começa a gozar com os clientes". Dalí, em todo caso, prova
que o ouro não deixa o gozo fora do jogo, como pretende uma certa
definição de profissionalismo. Ou, talvez, simplesmente prove que
Breton tinha razão quando o apelidou de Ávida Dollars.
Não é indiferente que Freud considerasse que para se poder
falar de sublimação era insuficiente transformar o modo de satisfazer
a pulsão, ainda precisava fazer desta transformação um fato social: a
pulsão transmutada devia estar, de alguma maneira, em relação com
a comunidade. Os restos do gozo do artista, suas obras, devem ainda
passar por um certo consenso social para serem consideradas "arte",
e adquirirem valor no mercado.
*
Uma vez ouvi alguém dizer numa conferência (acho que foi
Paul Lemoine) que a concepção de Freud sobre a sublimação
revelava seu cinismo. Faz sentido, porque quando se sabe (mas não
é indiferente se se diz ou não) já temos aberta a via do cínico. E
Freud conhecia o mecanismo, tanto que nô-lo revelou. O que sabe o
cínico? Que estamos separados do gozo pela linguagem. Seria uma
32
deliciosa ironia se o conceito de sublimação fosse cínico, porque o
cinismo é o oposto da sublimação. Com efeito, sublimar é fazer
passar o próprio gozo pelo crivo do “Outro” e dos ideais que este
veicula (a obra de arte como fato social), passagem que é muito
precisamente o que o cínico dispensa. Em todo caso, talvez Freud
fosse cínico, mas não era canalha.
*
Ao mesmo tempo que recomendava negá-la aos canalhas34,
Lacan fala do “saldo cínico” de uma psicanálise35. Existe uma relação
entre aquela recusa e a constatação do ganho em cinismo da
experiência analítica. Porque o cinismo a que se refere é uma
espécie de licença para desfrutar da fantasia. Suponho que era em
Diógenes que pensava ao falar desta sorte, não nos seus
contemporâneos; no gesto distintivo daqueles desclassificados
gregos de dar uma banana para as coerções sociais; na sua fama de
prescindir do Outro para se satisfazerem (em todo caso, é o que reza
a lenda —mais adiante veremos que talvez não seja bem o caso).
Aceitemos a mencionada fama enquanto discutimos as razões
sugeridas para se deixar de receber um canalha na análise.
A propósito, resulta difícil imaginar como se poderia
diagnosticar um canalha nas entrevistas iniciais, a não ser apelando à
34 Jacques Lacan, Télevision e Le savoir du psychanalyste, aula de 1/06/72. 35 “Compte rendu du seminaire sur l’acte” in Petits écrits et conferences (sem dados editoriais).
33
mais grosseira intuição, ou manifestando uma profissão de fé realista
dificilmente defensável, relativa ao que o entrevistado nos conta que
fez36. Lacan pensa, em todo caso, que viram burros37 (eis o motivo
aduzido para negar-se a psicanalisá-los). O adjetivo presta-se a
equívoco ao introduzir um duvidoso ar inofensivo, porque a
obtusidade em que se está pensando não é a de um príncipe León
Nikolaievich, mas a de um Adolf Eichmann.
Um contemporâneo bem menos eminente que Dostoievski nos
ajudará a continuar. O italiano Collodi, moralista e educador. Refiro-
me, claro está, a Pinocchio38. Precisamente ao que acontece com o
boneco animado quando, por fim, consegue livrar-se da música vã de
sua má consciência, e acaba na Ilha dos Prazeres, devidamente
convertido em burro, e tendo perdido junto com a forma humana à
que tanto aspirava, a palavra. Não sei quantos se recordam desta
desventura do filho artificial de mestre Gepetto, mas a moral da
história não deixa lugar a dúvidas: o preço a pagar por virar as costas
ao logos em benefício do gozo corporal é a submissão definitiva ao
padrone, que soube abster-se para poder arrancar mais-valia (e mais-
gozar) aos hedonistas inconseqüentes39. Não digo que Collodi esteja
36 Seminário IV As relações de objeto e as estruturas freudianas. Ou, com melhor humor, Neutralidade suspeita de Gattégno, São Paulo: Companhia das letras, 1997.37 Jacques Lacan, Le savoir du psychanalyste, op. cit., p.113. 38 Collodi Carlo(1826-1890. Pseudônimo de Carlo Lorenzini). Le avventure de Pinocchio,storia di un burattino(1883).39 O mordomo do romance de Kazuo Ishiguro, the remains of the day, com sua irremediável submissão às regras do seu Senhor, parece-me outro exemplo literário, comovente, do tênue véu que separa a obtusidade do fascismo.
34
certo, apenas que soube ilustrar a relação entre a parvoíce e o gozo
de si.
O problema está em que ao revelar o segredo: tem-se tanto
pai-patrão quanto se deseja, uma psicanálise pode inspirar alguém a
se propor a representar para os desavisados o papel de mestre dos
burros. Nada impede, segundo Pommier40, a quem terminou sua
análise, identificar-se não com o desejo que o intima, com sua causa,
mas com o Outro que fornecia a esse desejo a figura de uma
determinação. Encerrar o tratamento nesta posição implicará em
continuar atuando a fantasia de sempre, só que agora com
conhecimento de causa. Nosso homem terá adquirido mediante sua
análise um saber que lhe serve de instrumento de poder a serviço de
um Eu finalmente soberano. Saber a origem do desejo, oculta ao
neurótico, seduz o zarolho com a promessa de reinado sobre os
cegos.
Um passo apenas separa a masturbação pública dos cínicos
helenos, como ato político, da política interesseira do canalha, seu
oposto. E nada garante que não será dado. Não é necessário estar
frente a um psicanalisado para presenciar tal desfecho. Dar corpo ao
Outro41 é a derradeira tentativa de fazer existir a mãe sonhada (sinal
de que se crê nela apesar de tudo, apesar do que se imagina saber:
outra vez a questão dos burros). Canalhice e cinismo são duas
40 Gerard Pommier, 1996.41 Este Outro maiusculizado e já várias vezes mencionado, é uma ficção teórica lacaniana. Não é uma entidade real, mas isso não o impede de atuar com total eficácia. Seu segredo, em todo caso, é que não passa do corpus encarnado dos símbolos.
35
saídas possíveis em frente da evidência de que o Outro do saber não
é de nada. Não há o que esperar de seu lado.
36
3. culpa e responsabilidade
O desejo, isso a que se chama desejo, basta para fazer com que a vida não tenha sentido quando se produz um covarde.Lacan, 1960
3.1 A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA
[...] que monstro de vício é esse, que ainda não merece o título de covardia, que não encontra um nome feio o bastante, que a natureza nega ter feito, e a língua se recusa a nomear?
La Boétie, 1552 (?)
Como alguém há de querer submeter-se sem ser forçado a
isso? O espetáculo de tantos abdicando de sua independência, por
livre e espontânea vontade, como se diz, contesta per se a crença na
liberdade como condição natural do homem. Etienne de La Boétie
levanta esta lebre nos tempos da Renascença. Comemoramos o
cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948, mas o enigma continua tão fresco quanto há quatro séculos.
O simples fato de que tais direitos devam se impor à força
bastaria para lançar uma dúvida séria sobre sua reputada inerência (é
assim que começa a Declaração, conclamando a reconhecer a
“dignidade inerente de todos os membros da humana família”). A
Declaração é antes uma invenção do homem da moralidade.
37
No século dezessete, Locke formula a noção de direitos
humanos de modo filosoficamente consistente. E no dezoito, encontra
com a Declaração de Independência dos Estados Unidos de América
sua primeira aplicação política. Este último caso demonstra que,
inerentes ou não, estes direitos valem para o Homem porque uma
comunidade reunida assim o decidiu. Sua força emana da própria
declaração. E, não menos importante, porque se propõe a garantir a
sua vigência mediante a força.
Hegel criticou vigorosamente a abstração em que se funda a
filosofia dos direitos do homem, ignorante e sobranceira com respeito
ao agir concreto das pessoas. Nietzsche soube ver na lei
incondicionada a crueldade que a anima e, mais perto de nós, Lacan
propôs ler Kant com Sade, para demonstrar como um imperativo de
gozo pode reclamar, ao mesmo título que o imperativo moral, a
universalidade requerida pela idéia jurídico-política do humano.42
Vale lembrar que foi em nome dos direitos do homem que a
ONU interveio em tal nação africana com o intuito de proibir a prática
milenar de infibulação, pela qual os sacerdotes extirpavam o clitóris e
os lábios vaginais de suas púberes. Como era consensual que se
tratava de uma barbárie, ninguém —certamente, não os capacetes
azuis— antecipou que as próprias mulheres liberadas iriam se
revoltar contra seus libertadores; algumas chegando até o suicídio
para reivindicar o direito a que? à mutilação! Sem ela, com efeito,
42 Monique David-Menard, 1998
38
estas mulheres eram pouco mais do que párias na sociedade na qual
tinham crescido e pretendiam viver, porque a cirurgia em questão
valia como ritual de passagem à comunidade, e os direitos humanos
tornavam impossível este acesso.
Como foi o caso para a ONU, a intuição nos induz a pensar que
a imposição (enforcement) da Declaração deve visar os que se
arrogam o direito de oprimir os outros; em outras palavras, os
senhores. Entretanto, o ensaio curioso de La Boétie a que me referia
acima nos permite conjecturar, contra o senso comum, que talvez o
verdadeiro obstáculo para a atualização da liberdade como direito
universal esteja antes no desejo de servir que no absolutismo
excepcional dos tiranos e tiranetes.
*
Montaigne tinha a intenção de publicar o Discurso da servidão
voluntária nos seus Essais. No entanto, os huguenotes se
anteciparam e, em 1574, inseriram o texto num panfleto tiranicida.43
Montaigne vira malogrado seu projeto e decidira afastá-lo tanto
quanto possível da noite de São Bartolomeu, declarando que fora
escrito em 1544, quando La Boétie, ainda estudante de direito,
contava dezoito anos. Rara precocidade.
O manuscrito confiado por La Boétie a seu amigo parece
irremediavelmente perdido. Marilena Chauí nos dá a seguinte
43 “Amizade, recusa do servir” in Discurso da Servidão Voluntária, Marilena Chauí (org.), S.Paulo: Brasiliense, 1982.
39
cronologia: em 1546 “já não há rei de homens fracos, mas senhor de
servos que lhe dão tudo quanto pede, como num movimento
voluntário.” Em 1548, os camponeses se revoltam contra um novo
imposto, na região de Guyenne —trata-se da denominada
“gabelle“—, e, “mesmo que não o saibam, reagem contra um dos
sinais da implantação do Estado novo, pois lutam contra o fisco
moderno. O massacre dos revoltosos será sem precedentes, como
sem precedentes é o poder que enfrentam.”44 Em 1552 ou 53 La
Boétie escreve seu Discurso. Montaigne voltou a recuar a data de
composição do texto, colocando-a em 1542, para evitar que o nome
de seu amigo fosse associado ao episódio da “gabelle”.
O escrito retorna à cena política durante a Revolução Francesa
e no século XIX, retraduzido por La Mennais, no curso das lutas
proletárias. Com Marat, a obra se converte em panfleto pedagógico
para ensinar o povo a lutar contra os tiranos quer ele queira, quer
não. “A Revolução Francesa, sempre pronta a construir os ‘amigos’ e
os ‘inimigos’ do povo para lhe roubar o direito de definir os primeiros e
combater os segundos, deu a La Boétie o lugar que este se recusara
a ocupar: o de demagogo.”45
Com La Mennais, o Discurso é integrado ao panteão da
literatura democrática, servindo a uma concepção instrumental do
poder que será bom ou mau dependendo de quem o possui,
44 idem.45 ibid.
40
anulando a interrogação de La Boétie sobre a origem do próprio
poder. “O que surpreende nas ininterruptas e diversificadas
interpretações do Discurso não é tanto o modo como a obra é
interpretada e apropriada pelos leitores, mas o fato das leituras serem
possíveis apenas sob a condição expressa de não enfrentarem o
enigma proposto por La Boétie.”46 Isto é, a gênese da servidão
voluntária.
Por hora gostaria apenas de entender como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto tem vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo a contradizê-lo. Coisa extraordinária, por certo; e porém tão comum que é mais digno de lástima que de espanto ver um milhão de homens servir miseravelmente, com o pescoço sob o jugo, não obrigados por uma força maior, mas de algum modo (ao que parece) encantados e enfeitiçados apenas pelo nome de um, de quem não devem temer o poderio pois ele é só, nem amar as qualidades pois é desumano e feroz para com eles.47
La Boétie também pensava tratar-se de uma desnaturação do
homem, nascido para viver francamente. Sua questão,
aparentemente, é por que lhe aconteceu de renunciar à liberdade.
Contra a intuição de que só existe servidão pela submissão à vontade
de um mais forte, La Boétie propõe um senhor que procede do
escravo. A obediência deste não se origina na covardia, nem a
liberdade nasce da coragem. Antes de serem dois termos separados,
esta relação senhor-escravo é “interna ao mesmo sujeito —mas
46 ibid.47 Etienne De La Boétie, 1982, p. 12
41
pode-se dizer sujeito? —, ao mesmo agente —mas pode-se dizer
agente?”48.
Comentando este texto, Claude Lefort faz uma interessante
distinção entre o discurso político e o discurso sobre o político, a
propósito do feitiço de um nome como fonte do monstruoso poderio
do tirano. E aqui se trataria de captar a relação visível entre o senhor
e seu servo mediante uma relação invisível que se ata com a língua.
Ser livre consistirá em se desejar a liberdade, nem mais, nem menos.
“Apostrofando o povo, a ponto de pretender ensinar-lhe o que deve
fazer (‘Decidi não mais servir e sereis livres...’), La Boétie vem
inicialmente ocupar o lugar do senhor, esse lugar que denuncia como
efeito do desejo de servidão.”49
Trata-se pois do discurso do senhor que, ensina La Boétie,
consiste na ficção mesma da qual surge o tirano. Esta ficção é a
crença na unidade do povo. O desejo de servidão é idêntico à fábula
do povo concebido como uno. A liberdade, em compensação, diria
respeito ao retorno da pluralidade dispersa. A ilusão do povo uno
coincide, seguimos Lefort, com a separação do poder do povo,
porque esta ilusão está sustentada no que La Boétie denomina o
nome de Um, isto é, o amo. Esta seria pois a próton pseudos dos
governantes, a sociedade una. E a liberdade, “a recusa de ceder ao
atrativo da forma, do semelhante, do um [...] E como pensar que o
48 Claude Lefort, “O nome de Um” in Discurso... op. cit.49 Ibid. p. 139
42
desejo de servidão não proceda dele, capturado pelo feitiço do nome
de um.”50
*
Vivemos numa sociedade em que a escravidão não é reconhecida. É claro —qualquer sociólogo ou filósofo sabe disso—, que ela nem por isso está abolida. Isso é mesmo objeto de reivindicações bastante notórias. É claro também que, se a servidão não está abolida, ela aí está, se podemos dizer, generalizada. Os vínculos daqueles que a gente chama de exploradores não deixam de ser vínculos de servidores em relação ao conjunto da economia, tanto quanto o são os do homem comum. Assim, a duplicidade senhor-escravo está generalizada no interior de cada participante de nossa sociedade.51
O par senhor-escravo no interior de cada um será referido mais
tarde ao inconsciente freudiano (“o trabalhador ideal do capitalismo”),
e sua estrutura escrita como discurso do mestre. A relação invisível
que se ata com a língua manifesta a separação de um significante-
mestre com respeito ao corpus da língua, suportado pelo escravo —
mudo, porque assim que tomar a palavra (e vice-versa) estará
separado de seu gozo pela linguagem.
Vale lembrar que o significante-mestre emitido em direção ao
corpo (do) escravo tem a finalidade de fazê-lo andar. O mesmo dá
mestre de si mesmo ou dos outros (sou mestre de mim mesmo
enquanto outro). Graham Bell teve de ouvir, de um gentleman da
Nova Inglaterra, a quem pretendia impressionar com sua mais nova
50 ibid. p. 14551 Lacan , 1983, p. 154. Minha ênfase.
43
invenção, que o telefone lhe parecia um aparelho desprezível: “o
senhor atende à campainha como um serviçal!”
Nos antípodas desta servidão que não sabe de si, no “discurso
patente da liberdade”52, Lacan fustiga as pretensões do ego que,
desconhecendo com afinco suas determinações, reivindica o direito
do indivíduo à autonomia. “Um certo campo parece indispensável à
respiração mental do homem moderno, aquele em que se afirma sua
independência em relação, não só a todo senhor, mas também a todo
deus, aquele de sua autonomia irredutível como indivíduo, como
existência individual. Há justamente aí alguma coisa que merece em
todos os pontos ser comparada a um discurso delirante.”53 Este último
não possibilita a menor ação social, ou mesmo qualquer movimento
comunitário concreto de emancipação, ou ainda de reforma ou
mudança. Mesmo evocando a seu respeito os direitos do homem e
do cidadão ou o direito à felicidade, trata-se de um discurso “íntimo e
pessoal” que “está bem longe de encontrar em algum ponto que seja
o discurso do vizinho.”54 No foro íntimo mantemos a convicção na
liberdade de cada um, ainda que do ponto de vista dos fatos o que se
comprova é uma submissão resignada à realidade, que via de regra
contradiz a miragem libertária.
52 Seminário 3, op. cit.53 Ibid.54 Idem p. 155
44
Seguramente temos, nós, muito menos confiança no discurso da liberdade, mas logo que se trata de agir, e em particular em nome da liberdade, nossa atitude em face do que é preciso suportar da realidade, ou da impossibilidade de agir em comum no sentido dessa liberdade, tem inteiramente o caráter de um abandono resignado, de uma renúncia ao que é no entanto uma parte essencial de nosso discurso interior, a saber: que temos não só certos direitos imprescritíveis, mas também que esses direitos estão fundados em certas liberdades primeiras, exigíveis em nossa cultura para qualquer ser humano.55
Este “duplo discursivo do sujeito, tão discordante e derrisório
[...] é o seu eu. O eu de todo homem moderno.”56
*
Há um vínculo inegável entre a servidão voluntária, que deixara
La Boétie perplexo no século XVI , e a relação de cada um com a
língua que fala, qualificada por Barthes, com extrema pertinência, de
fascista.57 O simples fato de entender o que se diz já é uma
submissão. Uma vez vinda do interlocutor nos interpelar, não
podemos evitar dar à sua palavra um sentido.
Este imperativo pode vir dos líderes da comunidade, mas
também dos enunciados que presidem nosso nascimento, e nos
quais temos aprendido a reconhecer o supereu. Penso nas três
fadinhas dizendo seus votos sobre o berço da princesa, e na quarta,
a que roga a praga (talvez a mais importante: sem ela, não haveria
estória para contar); ou numa cena do filme de Lang, O testamento
do Dr. Mabuse: ao se mexer na maçaneta da porta do chefe, ouvia-se
55 ibid.56 idem57 “Mas a língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.” Roland Barthes, Aula, São Paulo: Cultrix, p. 14. Trad. Leyla Perrone-Moisés.
45
sua voz proibindo o ingresso. Quem fizesse ouvidos moucos e
continuasse o gesto, porém, entraria sem ser barrado, já que o quarto
estava vazio e his master’s voice era desencadeada por um
mecanismo de gravação acoplado à maçaneta. Nada impedia a
passagem, só a obediência devida à palavra do Outro; o desejo, de
se acreditar no mestre.
3.2 OS INJUSTIFICÁVEIS
De nossa posição de sujeito, somos sempre responsáveis.58
Lacan, 1965
Não podemos imaginar a pulsão sem atribuir-lhe ipso facto um
objeto. Esquecemos que este fora interposto, jogado como pasto,
para domesticá-la. É a educação. Aquém do objeto, que reputamos
natural por puro preconceito, a pulsão é uma konstante kraft que
exige “uma alteração do corpo sentida como satisfação.”59 Eis a meta
interna de toda e qualquer pulsão, reduzir o estímulo na fonte, na
zona erógena.
Uma vez tomada nas redes das normas, entramos nos
paradoxos do supereu, que engorda com a satisfação pulsional
renunciada (triebversicht). Satisfazer-se da abstinência. Evocaremos
a auto-flagelação dos penitentes? O resultado é uma culpa que
aumenta com a virtude, até tornar o virtuoso imperdoável. A fruição
58 Lacan, 1966, p. 85859 Sigmund Freud, Nuevas conferencias de introducción: “Conferência 32” in O.C.
46
pulsional deslocada suporta a consciência moral. As exigências desta
mal disfarçam a cruel morbidez em que se motivam.
Podemos caracterizar o perverso como alguém tomado de um
modo absoluto pelo seu objeto. E se o neurótico se encarniça com ele
é menos pelos motivos altruístas que costuma invocar que pela sua
necessidade de neutralizar o insuportável gozo do semelhante. Se
alegar o sofrimento que sente por não conseguir se conter, quando se
lhe apresenta o objeto de seus apetites, não é um argumento
convincente para isentar o perverso de culpa. Tampouco se vê como
qualificar moralmente os diferentes objetos nos quais sua pulsão se
satisfaz, a não ser pelas conseqüências sobre terceiros, cujos direitos
devem ser protegidos. Em Seven (filme de cujo diretor esqueci), um
assassino serial se empenhava, com ânimo purificador, numa
cruzada contra aqueles que se entregavam de modo ostensivo a uma
das sete formas de satisfação, não por acaso denominadas pecados
capitais. Ele, que se considerava um puro, descobre que merece
morrer por ter incorrido no pecado da soberba.
Resulta, portanto, curioso constatar a animosidade dos
psicanalistas contra aqueles que podem reputar de perversos, e seu
consenso quanto à sua inanalisabilidade. Dizem que não chegam à
consulta, e quando o fazem é para fins insofismáveis, em nada
relacionados à renúncia a seus vícios. Dizem também que se
47
interessam pelo terapeuta só para desafiá-lo e sentar sobre ele.
Chamar um colega de perverso é a pior injúria que um psicanalista
pode conceber; a única que sabe afetará o outro, como a um italiano
ser xingado de cornudo. A perversão se apresenta como um limite,
senão para a psicanálise para o psicanalista (o outro seria a psicose).
Tenho comigo que este anátema sobre os perversos é fruto das
mesmas dificuldades neuróticas com o gozo que os pacientes de que
tratam.
Eu diria que estes sujeitos regidos pela pulsão podem procurar
um analista, sim, e não apenas por exibicionismo, ou para fazê-lo de
bobo. Podem dirigir-se a um consultório quando precisam
testemunhar do que não conseguem evitar fazer; quando deixam de
precisar uma justificação e querem responder por isso. Decerto, não
são poucas as dificuldades clínicas envolvidas em casos desta
índole, e merecem ser abordadas com cuidado, mas alguém que se
dirige a nós sem esperar absolvição ou redenção, em posição de
imperdoável, revela uma coragem ética perante a qual resulta difícil
invocar qualquer critério a priori para virar-lhe as costas.
Acredito que ao referir-se à perversão como o negativo da
neurose, Freud estava pensando no comportamento do perverso
como figura da própria pulsão, cuja característica é, de um lado, um
“não poder abster-se”; e, do outro, um “não poder responder por
isso”. Falamos de pulsão, com efeito, quando o sujeito do direito está
48
eclipsado, não digo abolido, porque a exigência de Freud é que ele
advenha precisamente ali60.
É claro que tocamos num assunto espinhoso, porque tratamos
de condutas que rompem com o decoro e os bons costumes —sem
mencionar os crimes. Está em jogo a ordem pública, e o risco
iminente de uma devassa sobre o sigilo profissional. Porque ao tratar-
se do mau comportamento, o campo de ação dos psiquiatras se
encavala com o da polícia e o dos juízes. A noção chave neste ponto
é a imputabilidade; a decisão sobre a responsabilidade do indivíduo.
O perpetrador da falta deve ou não responder pelo que fez? Justifica-
se o castigo? Para o laudo psiquiátrico, sadio significa passível de
punição.
Com freqüência, esta confusão entre doença e
irresponsabilidade, resulta numa catástrofe subjetiva para o
criminoso, que perde, junto com o castigo, a significação de seu ato.61
Entendo por irresponsabilidade, que os outros decidam em meu
lugar; deixar de ser um sujeito do direito. Miller62 observa ali a própria
definição do totalitarismo —que outro escolha por mim.
Responsabilidade será, pois, a capacidade de responder.
*
60 Wo es war, soll ich werden61 Leia-se o depoimento de Louis Althusser, declarado inimputável pelo assassinato de sua mulher Hélène. Althusser, 1994.Também o ensaio de Freud, Varios tipos de caracter descubiertos por la labor analítica, de 1916, especialmente “Los que fracasan al triunfar” e “El criminal por sentimiento de culpabilidad” in AE62 Miller J.-A., 1998
49
Quanto ao canalha, que pode ou não ser um perverso, sempre
tem uma desculpa à mão pelo que fez ou deixou de fazer. Em
polêmico artigo sobre a perversão, Durval Checchinato63 vale-se da
autoridade de Safouan para fundamentar sua recomendação de
recusar nossos serviços profissionais aos perversos. Acredito que ele
se refira aos canalhas, porém, tomar por canalhas todos os perversos
me parece excessivo.
Seja como for, o psicanalista só pode dirigir-se ao sujeito como
imputável. É a condição da nossa experiência, que o outro possa
responder pelo que diz e faz. O Neurótico está governado pelo
sentimento de culpabilidade, mas também de irresponsabilidade.
Digamos que um depende da outra. Por não saber como e sobre o
quê responsabilizar-se se encontra sempre sob o jugo da culpa. Da
sua dívida impagável deriva a sempiterna necessidade de justificar-se
e de convocar-nos como cúmplices ou juízes (dependendo da
estrutura). Dirige-se a nós para que justifiquemos sua conduta, para
que a “freudexpliquemos”. O canalha permanecerá neste ponto. O
neurótico (mas também o psicótico ou o perverso), não; não
necessariamente.
3.2.1 “Desculpe qualquer coisa”
Never complain, never explain.Disraeli
63 Checchinato, 1997.
50
Os animais não se preocupam com o sentido da vida, apenas
vivem. Em todo caso, é o que acreditamos. São difíceis de interrogar.
O problema ético não nos concerne por estarmos vivos, mas por
poder pensá-lo. François Jacob64, Ilya Prigoyine65 e Jacques Monod66
demonstraram que estamos por um triz e que não há progresso. Tudo
que aconteceu, inclusive nós mesmos, foi por acaso.
Thornton Wilder67 narra a história do “Irmão Juniper”,
testemunha da queda de uma ponte pênsil cheia de passantes no
Perú. Dedica a vida a tentar captar nas biografias dos mortos o
desígnio divino que os perdera, enquanto ele, pecador, que optara
por atravessar o rio pela beirada, fora poupado. Perguntar pela graça
já é uma resposta, porque significa que há uma razão. Pitágoras
inventou a filosofia para conhecê-la. Tinha vontade de compreender e
explicar tudo. Da nossa parte, vivemos, ao menos desde Leibniz,
governados pelo princípio de razão suficiente, que diz nada ser por
acaso e tudo dever-se a uma causa.
Menos o sujeito, que é contingente (uma vez que ele está lá,
podemos rastrear sua origem, mas nada o predestinava a lá estar), e
por isso se espanta. Acaba neurótico pela teimosia em acreditar que
há razão para tudo, menos para ele. A propósito, o inconsciente
64 François Jacob, 198365 Ilya Prigoyine, 199766 Jacques Monod, 1971 67 Thornton Wilder, The bridge of San Luis rey, London: Penguin, 1987
51
prometido pelo analista ao analisando (“fale sem pensar, tudo terá um
sentido...”) é o retorno da sua insensatez ao princípio de razão
suficiente. Um bom motivo para amá-lo (e para permanecer em
análise sine die). A invenção da neurose é a mais popular das
versões modernas da procura pela justificação da existência.
Embora solidária do discurso médico, a neurose é uma paixão,
no sentido cristão do termo. Um apelo justificador endereçado ao
Outro —invocado mediante todas as figuras do perdão. Desde um
banal “estou atrasado”, até um refinado “perdoa-me por me traíres”,
passando pelo impagável, e muito brasileiro, “desculpa qualquer
coisa”. Aliás, não conheço fórmula mais bela da posição neurótica
que esta expressão que, a guisa de despedida, declara a assunção
antecipada de culpa por... qualquer coisa!
O sofrimento pede uma testemunha. Fazer-se ouvir —pelo pai,
no caso do Crucificado: “Senhor, Senhor, por que me abandonaste?”.
E por falar em pai, ao Libertador, General Don José de San Martín,
atribui-se uma máxima pedagógica que reza: “serás o que devas ser,
ou então não serás nada”. Só um militar e um herói poderia doar à
História injunção tão sinistra. O neurótico, especialmente o obsessivo,
mas não apenas ele, está convicto de não ser nada por nunca ter
conseguido ser o que devia. Se enxugarmos as lamúrias de todos os
consultórios ao seu comum denominador diremos que o neurótico
52
sofre porque ainda não é; porque sempre não é, ou não é
suficientemente; porque já era; porque foi e quer ser novamente;
enfim, porque o ser lhe falta.
O obsessivo cuida de manter-se culpado, em falta. Ou então,
quem manca é o Outro, e se trata de histeria. Duas estratégias para
encontrar uma razão da falha inexplicável na ordem das coisas, que
somos, e que nos revela sem propósito. A sem-razão está na entrada
de qualquer consulta ao analista: deixei minha família por aquela
ordinária; sacrifiquei minha poupança em vão; padeço por nada. Se
tudo correr bem, descobrirá que sua vida é um acidente (mesmo e
sobretudo tendo sido uma criança bem planejada pelos pais). Estar
aqui porque sim, por nada em especial, é nisso que consiste a falha
no ser do sujeito, ela própria injustificável. A única e inalienável
particularidade que possui é sua pena. Mais nada. Sua esquisitice é
sua diferença específica e seu único patrimônio. O modo como falha
em “ser” é tudo que tem para justificar uma existência, de qualquer
ponto de vista, insensata. Quem sabe a melhor definição para a
famigerada assunção da castração seja esta: abrir mão do defeito
como brasão, suportar-se injustificável.
53
Acaso quando falamos de cura por acréscimo estamos desprezando o sofrimento humano? [...] Já temos ao alcance da mão o que é preciso tomar para dormir. Quem sabe dentro em breve saberemos agir diretamente sobre os centros bioquímicos da dor. E talvez se encontre a molécula da esquizofrenia. O nirvana se aproxima a grandes passadas. Supor que isso tudo será possível a curto prazo me parece muito mais interessante que dizer: não, jamais! Entretanto, uma vez que se encontrem os centros da dor e se saiba operar diretamente sobre eles, a vontade de justificação não desaparecerá. Antes pelo contrário, para o neurótico justificar-se por não sofrer é ainda mais difícil. Ao invés do que se supõe, nada disso anuncia o desaparecimento da psicanálise, dado que a verdadeira questão é se se pode curar ou não a justificação.68
“Curar a justificação”, uma bom comentário da injunção que
Lacan não se importaria de ver qualificada como terrorista, e que
colocamos em exergo: “De nossa posição de sujeito, somos sempre
responsáveis”. Refugiar-se no determinismo inconsciente pode ser o
último álibi para não ter que responder pela esquisitice e encontrar
uma razão de ser. Nenhum determinismo fará dele um inocente,
porém. Eis o terrorismo psicanalítico: engajar o sujeito no seu
determinismo inconsciente. A neurose é uma escolha ética. Um
paciente deve abandonar seu analista convicto disto.
68 Jacques-Alain Miller, 1998, p. 89
54
4. do Cão aos cínicos
Cada século, e o nosso sobretudo, precisaria de um Diógenes; mas a dificuldade é encontrar homens com a coragem suficiente para sê-lo, e homens com a coragem de agüentá-lo.
D’Alembert, Essai sur la sociéte dês gens de lettres (1759)
Cinismo é a arte de ver as coisas como são em vez de como deveriam ser.Oscar Wilde, Sebastian Melmoth (1904)
4.1 O CINISMO COMO RETÓRICA: UMA RETÓRICA CÍNICA?
certo que a figura de Diógenes com seu báculo, trouxa e túnica
puída pode parecer remota para nós.ÉNão obstante o movimento Cínico não apenas durou quase um milênio na antigüidade, como também gerou um notável leque de formas literárias que sobreviveriam a cultura clássica [...] A natureza do ‘movimento’ assim como sua longevidade pedem uma explicação. Cinismo não foi uma ‘escola’: os filósofos cínicos não davam aula num local específico, nem encontramos entre eles qualquer acadêmico sucedendo outro como cabeça de uma instituição [...] O que temos aqui podemos entendê-lo melhor não como escola, mas como um movimento filosófico e até cultural que, embora fosse bem diversificado, permaneceu fiel ao exemplo de Diógenes —a seu modo de vida e princípios filosóficos do modo como foram interpretados ao longo dos séculos. É portanto fácil entender que há diferenças significativas entre Diógenes mesmo, cujo alvo e audiência era a mui culta sociedade do classicismo grego tardio (no século quarto a.c.) e aqueles bandos de Cínicos que vagavam pelas ruas de Alexandria ou Constantinopla nos tempos do império Romano reclamando-se dele como mestre e modelo.69
69 R. Bracht Branham, 1996, p.2
55
Sócrates afirmava ser melhor sofrer um mal que fazê-lo e
Hannah Arendt faz observar que embora ele nunca o tenha
demonstrado de modo convincente, o impacto deste aforismo sobre
as condutas como preceito moral é incontestável; “esta sentença se
tornou o início do pensamento ético ocidental.” Os diálogos
platônicos, continua, nos mostram uma e outra vez quão paradoxal
era esta oração e quão fácil era refutá-la, e as vezes que de fato fora
refutada na ágora. Sempre que tentara prová-la, tanto amigos quanto
adversários saíam céticos quanto à justeza da demonstração. Como
veio a adquirir o grau de validade que tem em nosso pensamento
hoje? “Obviamente, isto aconteceu em virtude de uma forma digamos
inusual de persuasão; Sócrates decidiu apostar sua vida nesta
verdade —para dar o exemplo, não quando apareceu perante o
tribunal ateniense mas quando se recusou a fugir da sentença de
morte.”70 Em suma, esta proposição se torna verdadeira e passa a ter
o peso que conhecemos só depois que as testemunhas do seu ato
voltaram sideradas para casa e contaram a performance ética
exemplar do filósofo.
Este estilo ético-retórico performativo passou de Sócrates a seu
contemporâneo Diógenes, e permaneceu no cerne do movimento
Cínico até os romanos. Segundo Barry Allen podemos considerar
esta demonstração socrática da proposição: “é melhor sofrer o mal do
que fazê-lo” como uma das primeiras contribuições a um gênero que
70 Hannah Arendt, 1993, p. 247
56
Diógenes nomearia formalmente e incorporaria ao ensino Cínico: a
chreia.71 Eram tiradas curtas, afiadas, inteligentes, com valor de
aforismos e com freqüência acompanhadas de uma performance em
ato. Como a entrada de Diógenes no contrafluxo, enquanto o público
estava deixando o anfiteatro depois da peça, com o intuito de poder
responder à inevitável pergunta sobre o que estava fazendo com:
“Isto é o que tenho feito a minha vida toda.”72
Platão, o aristocrático metafísico, era a antítese de um Cínico.
Seu paradigma era a filosofia como theoria e o filósofo como
espectador da eternidade; Diógenes era um desclassificado que
propunha a filosofia como improviso frente à contingência, a
adaptação ao que desse e viesse e o filósofo como um bobo da corte.
Diógenes teria concordado com William James em que “A verdade é
o que é bom de se acreditar” —entendendo-se como verdadeiro, o
que funciona.
Quando seu exílio o trouxe a Atenas, Diógenes tentou arranjar
alojamento como qualquer um teria feito. Foi só depois de não ter
conseguido nada que improvisou a idéia de viver dentro de um tonel
de vinho, como um cachorro (D.L. 6:23). Primeiro ele devia tornar-se
a personagem da qual Alexandre “O Magno” diria que se já não fosse
Alexandre “O Magno”, adoraria ser um Diógenes, para que aquela
solução prática da falta de moradia adquirisse a significação de um
71 Barry Allen, 1995, p.5072 Diogenes Laertius, Lives and opinions of famous philosophers, 6:64
57
desafio à cultura convencional (nomos) e fosse lembrada como um
dos atos fundadores do Cinismo.
*
Kunikos quer dizer “como um cão” (em inglês se diria: doglike).
Parece que ser chamado de cachorro (kuón) não tinha, na
antigüidade clássica, a conotação que tem hoje. Talvez adquiriu ali,
na Grécia e em Roma, sua posterior significação de desprezível. Não
sei; o caso é que naquela época não estava de modo algum
associado à subserviência abjeta da denominada “fidelidade canina”.
Kunikos se referia aos seguidores de Antístenes, Diógenes e sua
turma. E nenhum deles se caracterizava pela submissão, muito pelo
contrário. Cínico era sinônimo de insolência e deboche de tudo o
estabelecido pela cultura em matéria de conduta, aparência,
linguagem e princípios.
Praticar o Cinismo —ser um cachorro—, passou a significar
viver de acordo com as circunstâncias que nos tocam viver. No caso
de Diógenes, no exílio, tanto literal quanto metaforicamente. Quando
um imprudente o reprovara por se ter feito expulsar de Sínope ele
gritou enfurecido: “Foi assim que me converti num filósofo, seu
imbecil miserável!” (D.L. 6:49). Com esta resposta ele transforma num
ato de desafio voluntário a exclusão involuntária que sofrera quando
foi forçado a expatriar-se. Assumir o acaso como sua sina lhe permite
dizer que da filosofia tinha aprendido a “estar preparado para
58
qualquer tipo de sorte” (D.L. 6:63). Sorte, tuké, a mãe da invenção
Cínica.
Muitos achavam o Cínico um exibicionista, puído e arrogante,
cujo único motivo era chamar a atenção para sua pessoa e esmolar
com maior eficácia.73 O lema de “viver conforme a natureza”, para
quem está no meio da cidade, significa dormir ao relento e esmolar
para comer. Rejeitar o trabalho, contudo, era também dizer “não” ao
tipo de vida considerado produtivo pela sociedade. Recusar a
sujeição às regras sociais e à autoridade constituída. Em todo caso, o
valor central do Cínico não podia ser a autosuficiência (autarkeia) de
que era acusado —ninguém é mais dependente dos outros que um
mendigo—; tampouco a “natureza”, se esta for tomada como um
princípio racional, equivalente ao logos, como era para os Estóicos,
mas a liberdade e sobretudo a liberdade de palavra (parrésia). A
autarkeia era74 uma fantasia dos cidadãos, presos às leis que
constrangem seus movimentos e apetites e acendem seus sonhos de
liberdade.
Quase tudo que temos sobre Diógenes nos vem de fontes
indiretas. Os diálogos de Platão e as anedotas relatadas por
Diógenes Laércio no século três de nossa era, setecentos anos
depois dos fatos. Uma coisa chama poderosamente a atenção nestes
73 Sayre, citando D.L. 6:64 “Estes atos podem ter sido o exibicionismo de um egotista ou as tentativas de chamar a atenção e lhe dar uma oportunidade de pedir contribuições”.74 E é: o filme Easy Rider de Dennis Hopper, atesta sobre este sonho, caro à contra-cultura. Ser livre, como um mendigo, das correntes da sociedade. Na primeira cena, depois de vender droga para poder viajar, e antes de por o pé na estrada, os amigos jogam seus relógios fora.
59
relatos: trata-se de uma retórica, e de uma retórica performativa. F.
Sayre, que não gostava nem um pouco do Cão, escreve: “Isto parece
confirmar que a pretensão Cínica de serem sábios não estava
baseada no aprendizado. Os Cínicos estabeleciam sua sabedoria
superior criticando e denunciando outras pessoas.”75 O que Sayre não
percebe é que semelhante estilo não se deve à preguiça ou à má fé,
mas à estrutura mesma do discurso de Diógenes76, que intervém
sobre o discurso dominante da Polis grega —sustentado pelos outros
—, com o intuito de virá-lo pelo avesso. Talvez a única resposta à
pergunta insistente sobre por que fazia o que fazia, fosse “porque
sim”. Cabe conjecturar se os motivos filosóficos invocados pelos
historiadores não são outras tantas tentativas de justificar,
mascarando-o —bem à moda da racionalização obsessiva—, o gozo
lúdico que parecia comandar os atos do Cão.
A falta de vergonha característica dos Cínicos (anaideia) pode
também ser pensada como uma categoria retórica: mostrar o corpo
ingovernável, estragando a vã pretensão de domínio da educação
civilizada77. Comer, escarrar, defecar e urinar em praça pública; assim
como masturbar-se à plena luz do dia, seriam modos de lembrar que
os apetites são naturais e não há, em princípio, melhores que outros.
É a cultura que inventa hierarquias entre diferentes desejos e
75 The Greek Cynics, Baltimore (1948) 76 Não vou chamá-lo “discurso do cínico” porque reservo esta denominação para o cinismo moderno, como veremos mais adiante. Se fossemos tomar a licença de pensar o discurso de Diógenes com nossas próprias categorias, eu o denominaria discurso do histérico. 77 Esta parece uma crítica a Aristóteles avant la lettre.
60
considera apropriado ou não satisfazê-los. Diógenes parece se
propor a uma sorte de deseducação de esfíncteres: a rebelião do
infans que interpela seus educadores. Era um exibicionista, sem
dúvida. Mas era apenas isso? Diógenes parece ter conseguido fazer
de sua pulsão escópica uma arma, um instrumento ético de
comentário sobre a natureza humana e suas limitações.
A popularidade que chegou a ter este movimento, que se
encheu de imitadores do estilo do mestre, permite conjecturar que, se
fez escola, não foi pelas suas idéias mas pelo afinco com que violava
as regras tanto tácitas quanto explícitas que governam nosso
comportamento.
Começando pelo uso da linguagem.
A parrésia, a língua solta, a liberdade de opinião, era um direito
dos cidadãos livres num estado democrático e um dos privilégios do
aristocrata. Diógenes se reclamava dela do ponto de vista de um
indigente, de um não cidadão. Esta licença da língua, quando
aplicada sobre os poderosos podia custar ao linguarudo um severo
castigo e até mesmo sua vida. O confronto de Diógenes com
Alexandre e outros poderosos deve ser visto deste ponto de vista.
Parece que o Cão fazia questão de ser (e era) irritante, mas
todos lhe concedem um senso de humor ímpar. A pantomima, a
sátira, o chiste, o deboche, a blasfêmia, enfim, a dessacralização dos
ritos numa sociedade como a grega, organizada pelo mito e pelo rito,
61
representava uma verdadeira subversão dos valores morais que
sustentavam o laço social e um desafio à autoridade que dificilmente
podia ficar impune.
Desde o início: seu exílio de Sínope por desfigurar a moeda
corrente da cidade (parakaratein to nomisma). A tradição antiga
sustenta que Diógenes foi forçado a exilar-se porque seu pai, Hiceias,
“era o custódio do dinheiro do estado e desfigurou as moedas” (D.L.
6:20). Sempre se pensou que se tratava de um mito, até que recentes
descobertas arqueológicas revelaram a existência de moedas com a
efígie desfigurada, datando do ano de 350 a 340 a.c.78 Não está claro
se foi ele ou seu pai e para que eles teriam feito isso. Uma versão
sustenta que Diógenes tentava salvar o crédito de Sínope tirando de
circulação moeda falsa. Seja como for, este incidente severamente
punido proveu os Cínicos com sua mais poderosa metáfora.
Desfigurar a moeda corrente passou a significar a tentativa Cínica de
pôr fora de uso os falsos valores do pensamento convencional e do
comportamento reputado como civilizado.
Este dizer “não” à Polis está presente na identificação que
Diógenes fazia de si mesmo como kosmopolités, cidadão do cosmos.
Aristipo, segundo Xenofonte, mantinha sua liberdade não se
trancando numa politeia, porque todo governo exercido desde fora lhe
parecia ser “contra natura”. Trata-se antes de “liberdade de” que de
78 R. Bracht Branham, “Defacing the Currency: Diogenes’ Rhetoric and the invention of Cynicism” in The Cynics, op. cit. p. 90 n.30.
62
“liberdade para”. A alternativa era permanecer xenos, estrangeiro. A
pátria do Cínico é uma pátria “moral”, aquela que funda com seus
atos, porque se alguém pode viver como Cínico, a Terra inteira é seu
lar.
Em todo caso, a retórica Cínica —cujas figuras principais são o
exemplo e o entimema— inclui uma dimensão performativa e deve
responder aos seguintes critérios: pragmatismo, improviso e humor.
Paradoxo, surpresa, humor negro ou escatológico não deixavam de
ter um fundo de seriedade ética incontestável. Por exemplo tomar os
termos convencionais da língua e demonstrar que estão sendo mal
aplicados ou que seu verdadeiro sentido está sendo esmagado pela
hipocrisia. Desfigurar a moeda também se refere ao valor
convencional das palavras e das expressões de uso corrente. Seja
como for, parece que Diógenes não atacava os princípios da
moralidade popular mas as convenções, no que elas tinham de
hipócrita e de inconsistente. Ele não suportava ver as mesmas regras
sendo invocadas ao mesmo tempo para proscrever e prescrever a
conduta imoral; e a prática sancionando o que o preceito proibia.
Curiosamente, estas atitudes dúbias e fingidas, alvo dos Cínicos da
antigüidade, são precisamente as que definem o cínico no sentido
moderno.
63
4.2 A RAZÃO CÍNICA
Mundus vult decipi, decipiatur ergo.
Desde o século dezoito a crítica literária ou de costumes,
primeiro, e o vulgo, depois, lançam mão da figura e dos motivos
Cínicos, assim como de sua retórica, para debochar dos novos
valores que o Iluminismo introduzira na cultura. O descaro em falar
sobre coisas relativas ao sexo; a conduta desavergonhada; o
tratamento satírico de assuntos sérios ou um insultuoso sarcasmo ou,
ainda, uma gélida indiferença aos valores universais, eram tidos
como decididamente Cínicos. Sobretudo quando se tratava de
criticar a cultura e elogiar o retorno à natureza e o afastamento da
civilização. Sempre que se invocasse o Cinismo, durante o Século
das Luzes, ele era confrontado com a razão, valor supremo do
Iluminismo. O Cinismo era mostrado como o lado obscuro da Razão;
o fracasso do Iluminismo.
*
Até o século dezenove o alemão deixa cair em desuso a
palavra Cynismus e a substitui pela distinção entre Kynismus —que
designa exclusivamente a filosofia de Antístenes e Diógenes e seus
sucessores clássicos— e Zynismus como o nome de uma atitude que
não reconhece nada como sagrado e que insulta os valores,
sentimentos e o decoro provocativamente, com mordente sarcasmo.
64
“Cínico”, com maiúscula, denota o movimento iniciado na Grécia
antiga, e “cínico”, com minúscula, se refere a esta última acepção,
moderna.
Com Nietzsche, que não conhecia a diferença entre os termos,
se inicia a passagem do Cinismo (Kynismus) para o cinismo
(Zynismus). E se inicia a partir do momento em que ousa contestar a
verdade como um valor em si a verdade tida pelos filósofos como
um bem supremo em toda evidência. Para ele, desejar a verdade
precisava de justificação, não era uma tendência natural do espírito
que procura a luz. E sua conclusão de que a vontade de verdade é
antes de mais nada vontade de potência foi um verdadeiro escândalo.
Ele aprendeu com Schopenhauer o quanto o sarcasmo e a
sorna podem ser prazerosos; descobriu o Cinismo como uma postura
além do bem e o mal, como um jogo do espírito livre. O Cínico expõe
a natureza do homem, coberta pelo moralismo e a vergonha; por isso
é mais honesto que o homem moral79. “Cinismo é a única forma na
qual o homem comum chega perto da honestidade.”80
O neo-cinismo nietzschiano é o principal modelo da atualização
literária e da espetacular recepção do Cinismo antigo em tempos
recentes81. A Crítica da Razão Cínica de Peter Sloterdijk (1983), por
exemplo, foi o maior best-seller de um livro filosófico na Alemanha
79 Não disse “o moralista”, porque este é um hipócrita (hipocrisia, do grego hypokrisis, desempenhar um papel teatral).80 Além do Bem e o Mal.81 Creio que este boom editorial deve ser posto em correlação com outro, ainda mais recente; o dos livros esotéricos de Paulo Coelho e Cia. e os manuais de auto-ajuda; verdadeiros contra-pontos do Cinismo antigo.
65
desde 1945.82 Também aqui podemos ver a diferença entre Cinismo e
cinismo, usada como crítica do Iluminismo e da razão.
O moderno cinismo é a falsa consciência ilustrada. É a consciência infeliz modernizada sobre a qual o Iluminismo trabalhou tão em vão quanto eficazmente. Esta consciência aprendeu a lição do Iluminismo sem realizá-la, sem poder realizá-la. Em circunstâncias ao mesmo tempo confortáveis e miseráveis, esta consciência já não é afetada por qualquer crítica da ideologia; sua falsidade está reflexivamente resguardada.83
Entre a mentira —vontade perversa de ludibriar o outro— e o
erro —a equivocação mecânica que não compromete a boa fé do
sujeito—, a ideologia aparece como um erro obstinado, um desejo de
enganar-se, um sonho consentido. Encontramos no capítulo 23 de O
Capital a fundação dos alicerces teóricos para uma crítica da
ideologia. Esta consiste em revelar a ilusão por trás daquilo que
parece a realidade objetiva; mostrar que nada tem de objetivo e que é
a interpretação singular de uma classe ou de uma pessoa que passa
como verdade universal. Por isso Marx podia dizer, com Cristo, “não
sabem o que fazem”84. No caso de Cristo, se trata dos pecadores para
os quais solicita divino perdão. No de Marx, dos proletários, que
devem ser ilustrados acerca das determinações reais e os
verdadeiros pressupostos da ideologia burguesa que sustentam como
própria, assim como do seu real status social, com o intuito de
deixarem de estar sujeitos a esta ideologia.
82 Cf. Bracht-Branham R., “The modern reception of Cynicism” in The Cynics, op. cit. p. 363.83 Sloterdijk. 1989.84 Em O Capital: Sie wissen das nicht, aber sie tun es, “não sabem, mas estão a fazer”.
66
O próprio conceito de ideologia comporta uma sorte de
ingenuidade constitutiva: o desconhecimento dos pressupostos que
orientam nossas convicções; a divergência entre a realidade social e
nossa representação dela; em termos de Marx, nossa falsa
consciência dela. O trabalhador pode acreditar na ficção do livre
mercado de trabalho que faz parte do mito das liberdades
democráticas. Uma crítica do mito deverá demonstrar que a crença
na livre escolha oculta que o operário não pode deixar de optar sem
morrer de fome; a sua é uma escolha forçada. A finalidade da crítica
ideológica é pois dissolver a ideologia criticada; ela se pretende
performativa, não apenas informativa ou constatativa de um estado
de coisas; se trata menos de saber que de fazer.
Ora, a razão cínica apertaria em mais uma volta o parafuso da
concepção marxista de ideologia. O cínico conhece muito bem a
diferença entre a representação ideológica da realidade social e esta
última. Por isso mesmo, porque disso se beneficia, insiste em manter
a mistificação. “Sabem perfeitamente o que fazem, mas ainda assim
continuam a fazer”. A razão cínica deixou de ser naïve, estamos
cientes do interesse particular por trás da universalidade ideológica,
mas achamos boas razões para continuar mantendo esta última. Não
é o proletário, mas o próprio capitalista que aprendeu a lição de Marx.
A leitura sintomal do texto ideológico, confrontando-o com seus
pontos cegos, que ele deve recalcar para organizar-se e preservar
67
sua consistência, será ineficaz porque a razão cínica inclui esta
leitura por antecipação85. Ainda no assunto liberdade do trabalho, é
óbvio que teria sido inútil fazer a crítica ideológica do lema escrito às
portas de Auschwitz: Arbeit Macht Frei. Será que alguém deixava de
saber que esse alto princípio, “o trabalho libera”, não se aplicava aos
prisioneiros do campo de concentração? Cínico é pois um discurso
que usa a verdade (o lema é verdadeiro) como uma cortina de
fumaça, para melhor ocultar o sentido contrário dos atos do agente
desse discurso (no caso, a finalidade do campo de extermínio). O
cinismo é a antítese de seu próprio idealismo: ao mesmo tempo
ideologia e máscara com que esta se disfarça. Menos
dramaticamente, denominamos cínico àquele sujeito que se
reconhece capitalista no bolso e socialista no coração. Nietzsche, que
se inspirara nos antigos Cínicos, inventou um modo novo de dizer a
verdade que, contra ele, deu origem ao tratamento funcional da
verdade, próprio dos cínicos modernos: servir-se dela para mentir
melhor.
Misto de altivez e baixeza, de bom senso e desatino. Diderot, Le Neveu de Rameau
Para Diderot, o Cinismo de Diógenes não apenas representava
um ideal moral e filosófico, como também uma possibilidade satírica e
bem humorada. Possibilidade desenvolvida como nunca alhures em
85 Zizek Slavoj, 1995.
68
“O sobrinho de Rameau” —denominada “Sátira Segunda” porque
segue à “Sátira Primeira”, opúsculo escrito em 1775— onde ele
coloca o problema do desdém e da vileza. Só por isso “O sobrinho de
Rameau” é o livro fundamental do cinismo moderno.
O Cínico da antigüidade era o protótipo do desprezo nos dois
sentidos do termo, ativo e passivo. Era um gênio em exprimir
desdém,e, ao mesmo tempo, o paragão de tudo que fosse
desprezível. “Ele era especialmente forte quando se tratava de
exprimir seu desprezo por outros”, lemos sobre Diógenes (D.L. 6:24).
O sobrinho mostra um ethos do desprezível, se podemos dizer assim.
Vive sua existência vil consciente, aberta e ativamente. Eclipsado
pelo seu tio, um famoso músico francês da época, não aceita não ser
ele também um gênio. Ele é um não-gênio das artes, das letras e da
moral; nem mesmo no crime ele é genial. Entretanto, de certo modo,
ele pode aspirar a ser a paródia do gênio e até um gênio da paródia
—da pantomima. Ele se gaba de ser engenhoso pelo menos nesta
área: um desprezível genial.
O cinismo do sobrinho constitui a antítese do moralismo
unilateral do bom moço. Cinismo era o necessário antídoto para isso,
tanto quanto para as tendências sentimentalonas e lamurientas.
Através dele o Iluminismo percebe o pesadelo que mina seu otimismo
moral. Este pesadelo consiste na revelação de que a pessoa
totalmente esclarecida pela razão, liberada de todo preconceito, não
69
é a encarnação do mais puro ideal de humanidade, mas um
desiludido, insensível e desprezível cínico a la Rameau.86
Louva-se a virtude, mas dela se foge [...] A virtude faz-se respeitar, e o respeito é incômodo. A virtude faz-se admirar, e a admiração não é divertida [...] Felizmente não careço ser hipócrita; já há tantos, de tantos matizes, sem contar aqueles que o são consigo mesmos [...] E o amigo Rameau, se um dia se metesse a desprezar a fortuna, as mulheres, a boa mesa, o lazer, e se pusesse a catonizar, que seria? Um hipócrita. É preciso que Rameau seja o que é: um patife feliz no meio de patifes opulentos, e não um fanfarrão de virtudes ou mesmo um homem virtuoso, roendo sua côdea de pão, solitário ou na companhia de mendigos.87
*
Marcus Teixeira cita88 uma notícia sobre uma escola de classe
média/alta de Brasília que perante a óbvia caducidade pragmática do
ditado segundo o qual o crime não compensa, decidiu convocar uma
reunião de pais para discutir a conveniência ou não de educar as
crianças para o sucesso...
Pouco importa se os diretores da escola se dispunham realmente a seguir tal opção: a simples colocação do dilema “educar para honesto e fracassado ou corrupto e bem-sucedido” seria simplesmente impensável há uma geração. Que mudanças —culturais, políticas, subjetivas...— ocorreram nesse intervalo para que aceitemos hoje em dia com naturalidade esse tipo de discussão? Às mudanças nos laços correspondem mudanças subjetivas?
Por que seria inaceitável esta discussão? Uma escola
brasiliense contemporânea há de funcionar segundo a lei de Gérson,
como o resto das instituições, começando com a família-tipo. Só os
86 Heinrich Niehues-Pröbsting, “The modern reception of Cynicism: Diogenes in the Enlightenment” in The Cynics, op. cit. p.353.87 Diderot, “O sobrinho de Rameau” in Os Pensadores, S.Paulo: Abril, 1987, p. 5788 “O espectador inocente” in Goldenberg, 1997
70
brasileiros temos o privilégio de ter este princípio enunciado (por um
jogador de futebol durante um comercial da TV; anunciação que teria
sido do agrado de um Artaud) muito embora ele possa ser passado
salva veritate para qualquer sociedade tocada pelo espírito neo-
liberal. O enunciado: levar-se-á vantagem em tudo.
Como toda lei que se preze, a de Gérson é universal (esta se
baseia numa divisão da sociedade em duas classes, uma das quais
deve ser vazia: os homens de sucesso e os outros), o que nos leva a
pensar que, por lógica, o malandro de hoje será o cretino de amanhã
e vice-versa. Porque não existe esperto sem um tolo em virtude de
quem o primeiro pode realizar-se como tal.89 Se todos fossem
malandros, como manda a lei de “levar vantagem em tudo”, quem
sobraria para o papel de otário? Alguém precisa bancar o trouxa para
a lei poder ser cumprida —já que a esperteza não é um predicado
que concerne ao ser, mas é relativa aos atos de um sujeito... de levar
vantagem sobre outro. O que nos leva a concluir que quem acredita
estar levando vantagem em tudo, não se dá conta de que talvez
nesse momento esteja sendo passado para trás sem o saber. Sem
poder saber: a crença na sua malandragem faz dele o melhor otário.
Stanislaw Ponte Preta, com fina ironia, notou o paradoxo
inerente à corrupção generalizada e lançou uma máxima:
"restabeleça-se a moralidade ou então locupletemos-nos todos". Vale
89 Como tampouco há corrupto sem corruptor, fato que passa sob silêncio em todas as denúncias por corrupção a que nos temos (mal) acostumado ultimamente.
71
a pena observar que enquanto o “levar vantagem em tudo”, de
Gérson, é cínico, o "locupletemos-nos todos", de Ponte Preta, é
irônico. Retenhamos esta diferença.
O que poderíamos dizer sobre a segunda questão que Teixeira
levanta, sobre as mudanças subjetivas correlativas à organização das
relações sociais pelo discurso do cínico? Em primeiro lugar, no que
tange à verdade, o cínico não se engana quanto a Papai Noel; nada
espera dele, nada há de sacrificar-lhe e não precisa ser um menino
bem comportado o ano inteiro. O lema de Lord Beaconsfield lhe vem
a calhar: “Nunca reclamar, nunca explicar”. Vindo do campeão do
imperialismo britânico do século XIX, não se pode dizer que se trate
de um conselho ineficaz. Disraeli sabe que a verdade não tem fiador
fora da palavra de quem a enuncia, e em virtude disso pode permitir-
se agir sem prestar contas a ninguém. Sabe, também, que a fonte de
sua autoridade e a garantia de seu poder radicam na crença dos
outros em tal poder.90
Em segundo lugar, precisamente por estar advertido sobre a
natureza ficcional do Outro, o sujeito não precisa crer em outra
realidade que não a de sua própria satisfação. “Sou minha pulsão”,
diria o cínico se pudesse (se tal identificação não fosse inconsciente).
No que se revela distinto do perverso, que bota sua pulsão a serviço
do Outro. Tampouco está interessado em teorizar o gozo, como o
90 Como vimos (supra, 3.1), sem falar em Maquiavel, também Etienne La Boetie sabia isso, e desde o século dezesseis.
72
histérico. De quem o cínico se aproxima é do canalha, que também
está ciente de que o Outro não existe, a não ser como miragem do
neurótico.
A distância cética que o cínico mantém em relação à ordem
simbólica, embora lhe permita servir-se dela como meio de
manipulação dos outros, não o protege do retorno de sua própria
crença inconsciente, por pouco que uma coincidência da ficção com a
realidade faça dele o bobo enganado na casca do ovo. Octave
Mannoni, num texto já canônico91, cita das Memórias de Casanova (o
que nos leva de volta ao século das Luzes) o episódio magnífico em
que durante a mistificação de três crédulos —na qual Casanova se
fingia de feiticeiro para tirar um sarro da superstição alheia—, uma
tempestade que estourou bem na hora dos falsos rituais o deixou
paralisado de pavor. O terror não se devia à tempestade em si —ele
não era disso—, mas ao retorno de sua própria credulidade
(recalcada) na magia, que considerava crendice dos outros.
Hanna Arendt (1993) reconta a anedota medieval sobre o
sentinela que deu um falso alarme para rir do susto dos camponeses,
e que foi o último a correr para dentro dos muros da cidade, como
ilustração da sua tese de que não há engano (deception) sem auto-
engano (self-deception). Derrida, de quem se pode dizer muita coisa
menos que não manja de teoria psicanalítica, frisou durante uma
91 Octave Mannoni, 1968, “Je sais bien, mais quand même”.
73
conferência em São Paulo92 que mentir a si-mesmo não passa de uma
quimera. Não se mente senão ao outro, ou a si próprio enquanto
outro. O mentiroso não pode deixar de saber que mente, certo, mas
não necessariamente sabe tudo sobre aquilo que crê, como
acabamos de demonstrar.
Incidentalmente, este descrédito da verdade permite refletir
sobre a espera da opinião pública de que tudo, como sempre, termine
em pizza. A chave está no “como sempre”, que afirma menos a falta
de fé nas instituições que a esperança de que tudo termine em pizza
mesmo; para poder-se continuar a fruir, por procuração, da
transgressão dos envolvidos. As mui criticadas e não menos
invejadas “elites” designam, na boca do povo, os chosen few que
podem estar à margem da lei impunemente. Em suma, o eleitor
deseja antes de mais nada poder continuar acreditando no sucesso
(pessoal) de seus representantes; que nunca o representam tão bem
como quando roubam para si próprios em nome do bem comum. Por
isso é uma cega estratégia denunciá-los para evitar sua reeleição;
porque, para começar, é precisamente por terem demonstrado que é
possível livrar-se do peso da lei paterna impunemente, sem culpa,
que são votados.
*
92 Derrida, 1996.
74
Pelo que sabemos dele, é possível conjecturar que o Cão fosse
um histérico avant la lettre, cujo carisma fez escola e, como era de se
esperar, gerou uma legião de imitadores, que durou mais de mil anos
—o que não está nada mal, se comparado com a vida média de
nossas estrelas atuais. Podemos chamar “cãonismo” o movimento
criado pelo seu estilo de interpelação do Amo da cidade.
Não há nada em comum entre o discurso de Diógenes, que
depende do discurso dominante para existir como tal, e o moderno
discurso do cínico, fechado em si próprio, que não responde a
nenhum outro e não depende do desejo de ninguém. Enquanto o
primeiro floresce numa sociedade aristocrática escravagista, o último
é relativo às relações capitalistas de produção e ao Estado
democrático. Se o primeiro revela a incidência do desejo de um só
sobre os significantes-mestre (nomos) de todos, o segundo se
caracteriza precisamente por neutralizar a incidência do desejo dos
que entram em seu aparato. Nem por serem agentes deste discurso,
nossos inspirados malandros regidos pela lei de Gérson, são mais
livres que suas vítimas, os otários (cujo lugar, como vimos, estão
sempre aptos a ocupar).
75
4.3 LOCUPLETEMO-NOS TODOS
O brasil, numa velha crônica de Fernando Sabino, é o país onde há leis que pegam e leis que não pegam. Atualmente, a nação ampliou essa capacidade: há escândalos que pegam e outros que não pegam. O próprio Collorgate foi um escândalo que caiu sob medida para a classe política e o empresariado que estavam descontentes com o presidente que eles haviam colocado no poder.
Assim escreve Carlos Heitor Cony93. E Luís Nassif94:
Na relação dos vícios públicos, não há nenhuma diferença substantiva entre todos eles (os denunciadores vociferantes em nome da ética na política) e Collor. A escala era maior porque Collor tinha a Presidência da República. E a ação menos discreta, porque o presidente deixou-se cercar por um bando de amadores deslumbrados. Por isso, a cada dia que passa, mais acredito em dois fatos. Primeiro: em relação à exploração dos favores do Estado, são todos farinha do mesmo saco. Segundo: o que derrubou Collor foram suas qualidades. Os vícios foram apenas o álibi para impedir mudanças, não para implantar a virtude pública.
Um ex-funcionário de um dos últimos governos militares me
relatava a empáfia com que sua filha o chamou de fracassado por ter
sido o único dentre seus colegas em não sair do poder de mãos
cheias. Ele não encontrou palavras para responder. Ainda as procura.
A revolta da filha pela escolha do pai, de não aproveitar a
função pública para seus interesses privados, mostra que ela entende
esta opção como inibição. Uma fraqueza moral. Em suma, uma
covardia. Um abismo se abre na ética sob nossos pés, cuja vertigem
não deveria obscurecer-nos a crueza da revelação: entre pai e filha
93 Folha de São Paulo, 21/12/9494 Folha de São Paulo, 19/12/94
76
não há um mal-entendido apenas, há duas realidades diferentes; a da
filha está organizada pelo discurso que denomino “do cínico”. Resta
saber se se justifica, e até que ponto, elevar o status do cinismo
contemporâneo a uma discursividade.
*
A data de inflexão do cinismo moderno seria 1914, efeito da
desagregação da civilização burguesa ocasionada pela grande
guerra. Ao menos, é a conjectura de Sloterdijk, que não vejo por que
não aceitar sem mais. À sua caracterização —um idealismo que
passa como antítese de si próprio (uma ideologia disfarçada de anti-
ideologia)— temos acrescentado duas notas, que parece oportuno
discutir agora em conjunto. A destituição do ideal, e a dominância do
objeto. Já nos referimos à primeira ao discutir a falsa consciência
“esclarecida”. Discutimos a segunda quando argumentamos sobre o
consumismo que consome o consumidor.
Leôncio Martins Rodrigues escreve o seguinte sobre "nossas
elites":
Supõem-se que sejam principalmente os empresários e os ricos, talvez os militares. Obviamente, das "nossas elites" estão excluídos os membros de alguma elite que denunciam as outras elites e que, pela mágica da retórica, ficam livres de culpa e responsabilidade.95
95 Folha de São Paulo, 20/12/94
77
A questão da denúncia da corrupção alheia será retomada
depois, agora desejo me deter em "nossas elites". Um dos
ensinamentos que podemos tirar da pandemia de crises ocasionada
pela migração dos treze trilhões de dólares-andorinha é que o lucro
não se origina mais só na esfera da circulação de mercadorias. O
capital financeiro está relacionado de modo indireto com as fontes de
trabalho e suas vicissitudes. Os debates originados no Brasil durante
a CPI que sepultou o governo Collor mostrou às claras a origem do
lucro que interessa: o desvio dos fundos existentes por mãos hábeis.
Não é mera casuística, estes eventos acontecem no quadro de uma
discursividade não mais fundada no recalque do significante de um
gozo impossível, mas que o postula como possível... para alguns. A
Mãe sonhada deixou de estar interditada, apenas virou um bem de
troca. E a realização do incesto é apenas uma questão de poder
financiá-lo.
“Ele quer o telefone dela. Ela só quer o dinheiro dele”, lia-se no
espaço dos classificados do jornal; no mesmo tom realista dos
cavalheiros que preferem as louras, que preferem seus diamantes
(sempre Marylin). Nada está interditado quando tudo se intercambia.
Ora, a categoria determinante de uma subjetividade organizada
nestas coordenadas já não seria o desejo, mas a inveja (o que talvez
78
devesse levar-nos a reler algumas teses de Melanie Klein com outros
olhos).
O discurso do cínico agencia relações entre privadores e
privados; os que têm os meios de satisfazer-se e os que não. E de
novo somos levados em direção a "nossas elites". Os que nos privam
do quinhão de gozo a que teríamos direito, não fosse pela sua
predação. As tais elites não têm nome, podem ser todos e ninguém.
E suspeito que a irmandade dos despossuídos em sua miséria é lábil
e passageira, porque a inveja costuma ser desmentida (nenhum ideal
se alimenta com ela). Não espanta portanto a proliferação de
relações paranóicas entre colegas e vizinhos. Roubar é apenas
reaver o que meu irmão tirou de mim, e cuja posse direito nenhum me
reconheceria (a lei também existe para a conveniência de "nossas
elites"). No fundo, falamos de um universo onde cada um está por si
e Deus... Ora, qual é o lugar de Deus, nesta estrutura em que não
mais se interpela o mestre, como na histeria, negocia-se com ele uma
percentagem do que deve retornar-lhe na próxima volta do mercado?
Jurandir Freire Costa fez, num artigo jornalístico, um apelo
ético à política, no ponto em que ela é cínica por sua relação à
economia de mercado.
79
Nas democracias parlamentares ocidentais, a economia devorou a vida social e dá o golpe de misericórdia na vida política [...] A atividade econômica não se auto-regula eticamente; tem de ser regulada pela ética política. Se subordinamos os valores aos interesses, temos como conseqüência o cinismo, a violência, o vandalismo e a destruição de qualquer ordem social democrática.96
Concordo. Apenas não acredito, como Freire Costa, que a
subordinação do desejo à demanda —dos valores aos interesses—
seja o erro de uma falsa consciência, que uma crítica esclarecedora
pudesse corrigir. Não se trata do cristal ideológico deformando a
realidade, mas de uma nova realidade sustentada pelo discurso do
cínico.
Por tratar-se da manifestação desta estrutura de enunciação
veiculada pela mídia, não me parece interessante censurar o
"gersonismo" em nome de uma moral qualquer, racional ou não. O
problema da lei de Gérson é condenar-nos a ficar reduzidos a nossos
respectivos egos, sem qualquer outra determinação. Eu, e eu apenas,
posso levar vantagem em tudo. Entende-se: às custas de algum outro
eu. Só nos resta, como preconizava aquela escola brasiliense citada
por Teixeira97, reconhecer nossa condição de mercadoria a aprender a
negociar e mesmo a vender caro o Eu.
*
De que lado estão nossas lealdades? Somos agentes do estado e das instituições? Agentes da ilustração? Ou, quem sabe, do capital monopolista? Ou agentes do próprio interesse vital que, secretamente, cooperamos com o estado, as
96 Folha de São Paulo, 15/10/9497 Supra p. 75
80
instituições, a ilustração, a antiilustração, o capital monopolista, o socialismo, etc., em amarrações duplas que mudam continuamente, e que depois disso tudo esquecemos o que "nós mesmos" tínhamos que procurar naquela empreitada?
Sloterdijk ,1983.
O preso número 40087-083 da penitenciária de Allenwood,
Pensilvânia, está ali por ter vendido à KGB tudo o que sabia enquanto
funcionário do primeiro escalão da CIA. Até o nome das fontes
americanas infiltradas nos serviços soviéticos. Em conseqüência, dez
delas foram executadas. Não pretendo ocupar-me aqui com a
personagem ou com os crimes que se lhe imputam, mas com o teor
da entrevista que deu à revista Time.98
Procurando o lado “humano” da reportagem, já que sabe
estarem-lhe vedados outros caminhos, o jornalista inquere pelos
sentimentos do condenado em relação à sua pena (cadeia perpétua).
Obtém a resposta que merece: “O sr. sabe, as sentenças são
políticas nesses casos. Veja o caso dos Rosenberg. A meu ver eram
culpados. Mas será que mereciam ser executados por isso?
Provavelmente não.”
Nada obtendo do lado do castigo, o repórter se volta para o
lado do crime. Motivos. Seus esforços são recompensados pela
entrega de um dos sete pecados capitais, a cobiça. Não sem um
saboroso adendo. “O senhor não cogitou outras soluções para
resolver seus problemas financeiros?” Resposta: “Sim, roubar um
98 Reportagem de Aldrich Ames para Time, nov. 10, 1995. E reportagem p/ Vincent Jauvet do Le Nouvel Observateur, reproduzida em 27/03/95 na Folha de São Paulo.
81
banco, por exemplo. Eu tinha muitas idéias muito confusas, escolhi
aquela que me pareceu mais fácil.”
Apenas uma resposta parece tocar uma nota discordante nesta
reportagem marcada pela previsibilidade do monstro que conta todos
os detalhes sórdidos à opinião pública: “Por que eu me atirei no
abismo? Nove anos depois, ainda não sei exatamente por quê.”
Não é de hoje que existem traidores, mas a traição concebida
como um ofício sim é recente. A espionagem se liberta
definitivamente da servidão a uma "causa nobre", para passar a ser
uma instituição "objetiva" do poder —como a polícia ou o exército—,
seja qual for a ideologia que sustenta o regime de plantão, depois do
tratado de Yalta.
Na crônica definitiva da Guerra Fria não faltará, seguramente, o
nome de Ian Fleming. O gênero do qual ele é um dos fundadores está
esgotado, por falta de inimigo. Gorbatchev é responsável, de certo
modo, pela aposentadoria de James Bond. Nunca refletimos o
suficiente sobre a instituição das agências de espionagem. Elas
empregam ou criam traidores (ou patriotas, o que no fundo dá no
mesmo, porque se trata de indivíduos cujas ações encontram-se
justificadas a priori, pela submissão a um traço ideal que os isenta de
qualquer responsabilidade desejante), assim como outras gerenciam
modelos ou arrumadeiras. São instituições do Estado e enquanto tais
82
só existem por obra de um discurso. Trair deixou de ser uma decisão
contingente e conjuntural, para se tornar uma necessidade imposta
pelo discurso que faz dela ofício.
Em 96, entrei por acaso numa palestra em andamento sobre
ética e política, ministrada por um filósofo de Quebec cujo nome não
guardei. Com certa inspiração maquiavelista ele dizia o contrário do
que pensa Freire Costa, que a ética nada tem a ver com a política. A
mentira, por exemplo, seria uma das ferramentas do político, e
espera-se dele que saiba usá-la direito, isto é, que minta bem.
Embora, a princípio, a figura do homem da CIA pareça saída de
um romance de Graham Greene, na truculência de sua atitude não
existe rasto do inegável humanismo dos traidores de Greene ou de
André Malraux. Em romances como O Fator Humano ou A condição
humana, o gesto traidor vem sempre acompanhado de um dilema e
de uma angústia que não disfarça o sofrimento de quem trai (seu
casamento, sua pátria, sua fé religiosa, a amizade, a família...).
Imoral, fascinante e, sobretudo, impune, o Ripley de Patrícia
Highsmith está mais perto de alguém como Ames que de
Raskolnikoff. Entretanto, se os leitores ficam divididos entre a
repugnância e o fascínio diante dos crimes de Ripley, o sentimento
reservado ao agente duplo é do mais vivo repúdio. Por que?
83
A desarmonia mesma orquestrada por esta reportagem já é um
começo de resposta. Maniqueísta, a opinião pública abre com a voz
do repórter cantando o tema do confronto entre o Bem e o Mal. O
depositário infiel de valores inegociáveis, entretanto, não deixa ouvir o
lamento do traidor arrependido mas a récita pragmática do detentor
de uma mercadoria perecível, a informação privilegiada, que precisa
ser desencalhada antes de se tornar inútil. O repórter pede conflitos
morais; o entrevistado entrega problemas domésticos (precisava
pagar a pensão da ex-mulher). A coda: a ironia reveladora do cinismo
da reportagem: “[Sempre farei a mim mesmo essa] pergunta
teológica: por que vendi minha alma ao diabo?”
O agente joga o jogo do jornalista, como antes jogara o dos
espiões. Não fala de seu ato em nenhum momento, a não ser talvez
quando confessa não ter a menor idéia do motivo pelo qual fez o que
fez —ele chama isso “pular no abismo”, mostrando o eclipse do Eu
que acompanha todo ato digno desse nome: o agente só vem a saber
o que fez depois de tê-lo feito. Este especialmente consiste em
subverter a determinação recebida do discurso dominante como
funcionário da CIA.
Com efeito, ele teria podido resguardar sua consciência moral
da mentira e do engano intencionais, alegando servir uma causa
superior à que amarrava sua fé jurada. Causa que subordina todas as
outras (o amor, a amizade) como valores em si. Abandonar este
84
guarda-chuva moral sem abrigar-se sob outro ideal alternativo é o ato
pelo qual é condenado. Quando resolve trair os traidores, Ames
desmonta a ficção que legitima as ações da CIA, e não permite a
mais ninguém continuar acreditando nos interesses americanos como
valores em si. Ames —e é nisso que me interessa— conjuga o verbo
"trair" de modo intransitivo. Sem que ele o tenha premeditado,
todavia, seu ato revela a verdade do discurso a que servia até então:
a mentira. A verdade é a mentira.
*O mentiroso chama o mentiroso de mentiroso Sloterdijk (1983)
Que a realidade seja um dos gêneros da ficção é a verdade
recalcada em qualquer discurso. Ou melhor, não há como saber que
realidade e fantasia são indiscerníveis para cada um de nós. Entendo
que esta exclusão é a condição de estrutura para se poder acreditar
nos valores, como quer Freire Costa.
Já esta discursividade teratológica que denomino cínica não
barra nada. Libera os portões e torna supérflua a crença, mostrando
que nossos vínculos mais prezados são pura enganação. Não este
ou aquele vínculo, mas todo e qualquer relacionamento é uma farsa
consentida. O professor finge que ensina; o aluno, que aprende; o
85
pai, que manda; o filho, que obedece. Nada temos a esperar do lado
do mestre, e parece melhor calcular o jogo no plano do colega.
Saber que todo discurso não passa de convenção, entretanto,
não faz do cínico um canalha. A fraude começa quando passa a tirar
proveito da credulidade neurótica; quando cede à tentação de
manipular o outro. A canalhice é uma patologia do ato. Relativa ao
discurso do cínico, sim, mas não se confunde necessariamente com o
cinismo em si.
Assim como na saída dos túneis do Rio existem placas
lembrando os motoristas de desligar as luzes que acenderam
enquanto atravessavam o morro (“Luzes, esqueceu?”), pelas
estradas brasileiras prolifera uma placa com uma curiosa exortação:
“Acredite na sinalização”. Por um lado é uma modulação paternal da
retórica do senhor que, em vez de ordenar pura e simplesmente,
explica que suas diretrizes são para nosso bem. Mas também se trata
do reconhecimento oficial, quase uma confissão, do que todo mundo
pensa sobre seus governantes e seus políticos.
A empáfia irremediável de alguns homens públicos se
manifesta na freqüência com que optam pelo estratagema de
confessar a verdade para melhor ocultá-la. Uma recente (1998)
campanha para governador apostou em usar a (má) fama do
candidato —“rouba, mas faz”— como lema para sua candidatura.
86
Não se tratava, decerto, de uma confissão pública ou de um ato de
contrição cristão, mas dos marqueteiros reconhecendo a circulação a
boca pequena de um traço pelo qual o político enquanto execrado em
público é admirado em secreto. O cálculo em jogo é mais ou menos o
seguinte: todos roubam, este pelo menos deixará feitas algumas
estradas, pontes e túneis (ou, então, toda palavra oficial é mentirosa,
nós pelo menos temos a honestidade de dizê-lo na cara, etc.).
Constatar isso no universo do político, foi-me dito, é covardia.
O que acontece se nos voltarmos, por exemplo, ao universo das
belas artes? Numa galeria de São Paulo, depois do vernissage de
uma exposição de provocativo título, alguém escrevera no caderno
para comentários: “Você é a maior cara-de-pau. Te adoro.” Um
incidente relacionado com esta mostra, denominada O corpo do
delito, dá mais uma volta de parafuso naquela resenha crítica. Os
detalhes me escapam, dá-se, porém, que o radialista e deputado
Afanásio Jazadji —oportuno guardião da moral, dos bons costumes e
da pena de morte— propôs uma ação contra a artista por roubo,
falsidade ideológica, incitação ao crime ou qualquer coisa do estilo.
As peças expostas ali eram talheres, guardanapos,
travesseiros, bandejas, e outros objetos retirados dos aviões de
passageiros, montados em diferentes arranjos. Havia, por exemplo,
uma dúzia de saquinhos para vômito (sem usar, infelizmente)
pendurados através de um fio, como bandeirinhas de festa junina.
87
Cada coisa tinha seu preço; muitas delas ostentavam a tarja de
“vendida”.
A artista se defendeu da invectiva alegando que as aeromoças
deram-lhe aquelas coisas todas (ao que o censor retorquiu que as
funcionarias não podiam dar o que não lhes pertencia, pois era
propriedade da empresa aérea). Mais tarde, porém, a defesa lançou
mão de argumentos mais elaborados, como a liberdade de criação e
os ready-mades. O zelo comovente do representante do povo pelo
patrimônio das companhias aéreas foi recompensado com alguma
publicidade para seu nome e o rápido arquivamento de um processo
com o qual ninguém estava seriamente interessado. Em todo caso,
mesmo após o fracasso da cruzada moralizadora poderia o tribuno ter
dito, como outro censor, este, romano, a propósito de um mal poeta
acusado de traição: “é inocente? então matem-no pelos versos que
escreve!”
Como nada disso foi proferido, nunca saberemos o que se
poderia opor a estas obras a título de argumento estético. Sobra
apenas a frágil comparação com o gesto de Duchamp, como se não
houvesse entre ambos sessenta anos passados e um abismo
cultural. Em todo caso, não sendo de estética que aqui se trata, o que
a artista deixou de dizer pode ser de tanto interesse quanto o omitido
pelo seu censor, a saber, que o fato de terem sido adquiridos pelos
88
compradores bastava para elevar os utensílios furtados à categoria
de arte.
Cumpre observar que tanto o comentário no caderno de
presença quanto o incidente com o paladino da verdade fazem parte
da obra mesma. Não lhe são exteriores, como o escândalo em
relação a Oscar Wilde, Céline ou Flaubert. Resta perguntar se as
obras são maiores ou menores que seus efeitos colaterais (no caso
do cinismo, limitam-se a estes efeitos). Perduram depois do
escândalo ou se esfumam com ele?
A literatura não está menos exposta a cair em tentação que as
artes plásticas. Vejamos, senão, um romance que nos é proposto,
sem qualquer escândalo, e com plena aceitação do público. Romance
cujo título não é menos instigante que o da exposição que acabamos
de comentar, e como o dela não deixa de denunciar o discurso a que
pertence. Elogio da mentira99 se chama, e sua forma é certeira não
apenas em elogiar a mendacidade, mas em mentir. Falo, com efeito,
de um livro que mente.
Transvestido de paródia de thriller —a trama é uma mistura
escrachada de Doublé Indemnity, de James Cain, com A Grande
Arte, de Rubem Fonseca—, aproveita para satirizar a literatura
menor: as novelas de banca de jornal, os livros de auto-ajuda e de
esoterismo: filões editoriais mais ou menos impudentes, como se
escarnecer dos outros bastasse para ficar livre de suspeita sobre a
99 Elogio da mentira, Patrícia Melo, São Paulo: Companhia das letras, 1998.
89
própria bastardia. Assim, no subplot, um editor recebe de um escritor
as sinopses para os best-sellers sob encomenda que publica. Aprova
algumas, recusa outras, mas não reconhece nenhuma delas pelo que
são: resumos de obras de Põe, Chesterton, Camus, Dostoievski,
Highsmith, Agatha Christie, Zola, Shakespeare, entre outros.
O alvo da ironia não é o leitor, contudo. Mesmo se não matar
as charadas ocultas nas sinopses, por nunca ter lido Crime e Castigo
ou O Estrangeiro, ainda assim, poderá rir do tolo do editor, que fatura
com livros mas pouco se importa com a literatura. Mais adiante
receberá dicas neste sentido. Porque não se supõe que ele seja
como o editor fictício, mas como a própria autora: intelectual,
moderno, informado e de interesses suficientemente amplos para
apreciar os clássicos sem torcer o nariz para um bom policial. Há
epígrafes eruditas no começo dos capítulos indicando nesta direção;
balizas sobre a maneira como a autora espera ser vista. Tal qual o
título, oficiam de metalinguagem para não confundir os diferentes
níveis de leitura e determinar o alcance da sátira.
Todavia, será que o livro que lemos —seja na forma ou no
conteúdo— se interessa pela literatura? Este ponto é problemático
porquanto convida ao truísmo da ausência de escritura sobre gostos.
Com prudência, digamos que estamos perante um fake que se finge
de fake, para fazer-nos acreditar que temos um original entre mãos.
90
Mente falando a pura verdade. Trata-se, portanto, de um livro
perfeitamente engajado no espírito dos tempos.100
Um artigo de Renato Janine Ribeiro101, comentando um
escândalo palaciano no primeiro escalão do governo, resulta muito
esclarecedor. Ele compara um tema caro ao presidente da república,
Fernando Henrique Cardoso, a ética da responsabilidade, a uma
moral abstrata baseada em princípios.
O presidente costuma recorrer a Max Weber para dizer que a ética do político não pode ser a mesma do cientista. Este último pode adotar uma “ética de princípios”, medindo seus atos por valores quase puros (como o compromisso com a ciência), a salvo de toda negociação que pareça sórdida. [...] O político será julgado por seus resultados, não por seus princípios. Assim ninguém terá pena dele se fracassar [...] Se adoto a ética dos princípios, a derrota não importa muito. Até fortalece a alma, assegura minha dignidade pessoal. Mas, quando sigo uma ética “de resultados”, tenho de vencer; perdendo, não posso pedir compreensão.
Adotar uma ética pragmática não me parece cínico. Cínico é
invocar, como foi feito no caso discutido, a ética de princípios como
argumento exculpatório quando a outra, de responsabilidade, dá em
fracasso. No quadro da luta política, a oposição ao governo se
concentrou na ética dos princípios (para lançar suspeitas sobre o
“caráter” do funcionário),
100 Não há de ser desmerecedor para Patrícia Melo ou Jac Leirner afirmar que estes trabalhos que colocaram no mercado são produtos do discurso do cínico. Trata-se apenas de reconhecer sua adequação a um gênero originado por uma estrutura. Sou alheio a outras obras destas artistas, e nada me leva a supor que a pendente cínica seja para elas forçada, irreversível ou a única possível.101 Folha de São Paulo, caderno “Mais!”, 13/12/98
91
a qual, se é inegavelmente digna no plano pessoal, pode ser desastrosa na gestão da coisa pública. Por isso, nem a oposição, uma vez no poder, poderia segui-la integralmente. Aos olhos de muitos, a ética da responsabilidade aparece como uma indecência, o que ela não é, e não como o que é: uma ética menos ciosa dos princípios, mas nem por isso leve de portar, porque é implacável com quem não consegue gerar os efeitos prometidos.
Quem opta por atropelar os princípios éticos visando a
determinado fim, não pode, depois que quebra a cara, refugiar-se na
honestidade privada. Sem entrar no mérito da discussão sobre os
meios e os fins, o insucesso permite qualificar o político de gestor
ineficiente, não necessariamente de desonesto. Sua decência
privada, porém, não faz dele um gestor eficiente da coisa pública,
nem serve como justificativa pelo seu fracasso.
Outro funcionário, de outro governo, é alvo do interesse da
mídia escrita . Seus afazeres como torturador a serviço do Estado
terrorista, decorrente do AI-5, são matéria jornalística. Trinta anos
depois e anistia mediante, o corajoso jornalismo investigativo da
revista Veja102 é posto a serviço do exibicionismo de um obscuro
militar, “agente da repressão” durante os Anos de Chumbo. Também
aqui meu comentário está centrado na entrevista em si, não nos fatos
nela expostos.
Pergunta — Vi nos processos na justiça militar. E, pela quantidade de presos que o citaram, o senhor é o agente da repressão que mais praticou torturas. É verdade?
102 Entrevista do tenente (1968/71) Marcelo Paixão de Araújo para Veja. Ano 31, no49, 9 de dezembro de 1998.
92
Resposta — Sim. Todos os depoimentos de presos que me acusam de tortura são verdadeiros.
Pergunta —O senhor fez isso cumprindo ordens, ou achava que deveria fazê-lo?
Resposta — Eu poderia alegar questões de consciência e não participar. Fiz porque achava que era necessário. É evidente que eu cumpria ordens. Mas aceitei as ordens [...]
Depois, passa a explicar os diversos métodos. Entre eles, o
afogamento.
[...] É como um caldo, como se faz na piscina. Era eficiente. Mas eu não gostava. Achava que o risco era muito alto. Afogamento não era a minha praia (risos). A geladeira, uma câmara fria em que se coloca o preso, não funcionava em Belo Horizonte. Era muito caro. O que tinha era o trivial caseiro. O menu mineiro.
O que tinha no menu mineiro? Pau-de-arara; a lata (o torturado
de pé numa lata); a palmatória; o telefone (corrente de baixa
amperagem e alta voltagem)... “Eu gostava muito de ligar nas duas
pontas dos dedos [...] O sujeito fica arrasado.”
Pergunta — O senhor já reencontrou alguma pessoa que torturou?
Resposta — Sim. Eventualmente eu encontro ex-presos meus, inclusive os que apanharam. E o relacionamento não é muito ruim, não. Não é aquele negócio de dar beijinhos e abraços. Mas é um relacionamento de respeito. Há pouco tempo, aqui em Belo Horizonte, encontrei o Lamartine Sacramento Filho, que é professor em uma faculdade local. Segurei ele no ombro e disse: ‘Você não me conhece, não?’ Ele levou um susto. Aí eu disse: ‘Você está bom?’ Ele disse que sim e não quis mais conversa. Mas também não passa batido, não (risos). Não deixo passar batido (sério).
[...] Vou lá, coloco a mão no ombro e digo: Não me esqueci de você, não. Você lembra de mim? Estamos aí. A vida continua.
[...] Uma das minhas meninas estuda direito na PUC. Há um ano, um débil mental falou para toda a sala
93
que o pai dela tinha sido do Dói-Codi, que torturava gente, esse tipo de coisa.
[...] Eu nunca escondi as coisas. Nunca disse a elas que fui um santinho. [...] Elas ficaram um pouco chocadas e disseram: ‘Pai, já sabemos, mas agora pára’. Não queriam mais detalhes.
Pergunta — O senhor sofreu algum tipo de crise de consciência em função da tortura?
Resposta — Isso sempre deixa dramas na gente. É uma coisa pesada. Não é bom tratar um semelhante dessa forma. Você não quer aproveitar e comer um biscoitinho? [...] Mas não me arrependo de nada do que fiz.
Pergunta — O senhor faria tudo outra vez?
Resposta — Se achasse que não havia outro caminho para livrar o país do comunismo, sim. Mas, em princípio, não. Porque a tortura, ou, eufemisticamente, o interrogatório por meios violentos, que não precisa necessariamente ser a porrada, causa um desgaste muito grande. Nunca me neguei a torturar alguém, porém só fazia quando havia necessidade. Mas a brincadeirinha não tem a menor graça, viu (risos)
Disse que me interessava a entrevista em si. O fato social do
“órgão” que se finge de isento e dá lugar ao deboche do carrasco
seguro de sua impunidade. Seria um erro fascinar-se pela hipocrisia
do testemunho ou pela sordidez das cenas descritas. O discurso do
cínico é a entrevista mesma, não a desfaçatez do entrevistado (que,
na minha opinião, mereceria antes o esquecimento, já que não a
punição, que a notoriedade da manchete).
Pergunta — Por que o senhor só resolveu dar esse depoimento agora?
Resposta — Porque ninguém me havia perguntado sobre isso antes.
94
O cinismo consiste na própria operação jornalística que se
torna instrumento da zombaria das vítimas políticas agora e sempre
em posição de gaiatos: mudas quando suas vozes incomodavam o
regime da ditadura; mudas, ainda, quando suas vozes não
interessam o mercado editorial. A discursividade cínica não é a fala
de um ou de outro, mas o conluio entre a dita opinião pública e o
órgão que a representa, supostamente. Este é o serviço que a revista
presta à sociedade civil: lembrá-la de sua impotência. Antes e agora.
Vale a pena, contudo, ocupar-se da leveza com que o
perpetrador se permite contar os fatos mais sórdidos. Leveza que não
seria possível se a narração acontecesse em outro regime discursivo.
Esta posição narrativa, que poderíamos denominar “celestial”, porque
se fala de cima, do ponto de vista dos anjos, permite descrever os
procedimentos dos tormentos infligidos em civis com objetividade
técnica. A crônica dos bombardeios, denominados “cirúrgicos”,
durante a Guerra do Golfo adotou, talvez por força do discurso, este
estilo narrativo. Faz parte deste último oferecer um biscoitinho a seu
interlocutor durante a exposição; ou avizinhar-se a “seus presos” (sic)
nas ruas de Belo Horizonte para lembrá-los de que ele (ainda e
sempre) está aí... Na opinião de alguns, para continuar mortificando
suas antigas vítimas, a título pessoal, em tempos democráticos:
lembrando-as de quem tinha (e tem) a força; na de outros, porque se
95
trata da manifestação do espírito carnavalesco do homem brasileiro.
Tudo seqüestro, flagelo, estupro da mulher, roubo sem mágoas.
“Nada pessoal.”
O traço cínico de estilo está precisamente em falar como se se
estivesse enunciando desde um lugar neutro, anônimo, sem qualquer
implicação pessoal. A função de atormentar às pessoas seria uma
ocupação como tantas outras; mais aborrecida, talvez, porém sem
involucrar o funcionário em seu desejo. Por isso, o gracejo “afogar
pessoas não é a minha praia” não é irônico, mas cínico (a ironia
supõe uma identificação possível entre os interlocutores de que o
cinismo prescinde). Os coqueiros, as areias brancas e as águas
rumorejantes, evocatórios de um sítio bom para estar —embora o uso
habitual, negativo, da expressão não oculte um certo racismo cordial
(vgr. os “baianos” de quem queremos distância), desprovidos de
seu valor metafórico mediante sua literalização, evocativa do risco de
alguém se afogar numa praia, tem a função de fazer-nos esquecer
que os porões da ditadura não eram precisamente um mar de rosas
(para dizê-lo com o clichê que merece). Por isso, também, o colega
da filha que anunciara em público a ocupação pregressa do pai
merece o qualificativo de “débil mental”, porque no seu discurso a
verdade sobre a tortura, digamos, não morre na praia.
Quanto ao remorso, sempre evocado pelos princípios de uma
moral judeo-cristã, ele está fora do jogo. Por que se arrependeria, se
96
o que está em pauta não é seu ato, mas o resultado de não sei quais
condições sócio-politicas na década de sessenta, ou, então, a
educação na família-tipo, ou o dever de um oficial do exército? Zizek,
falando dos skin-heads, o diz com elegância103: (um argumento como
o de Araújo) “é uma mentira ainda que —ou antes, precisamente
enquanto— factualmente verdadeiro: suas asserções são
desmentidas pela sua própria posição de enunciação, pela postura
neutra, desengajada em que a vítima consegue dizer a verdade
objetiva sobre si mesma.” O que está em jogo no discurso do cínico
é a revelação pura e simples de um mecanismo de manipulação.
Revelação que em outras circunstâncias históricas produziria um
escândalo senão uma subversão e que hoje permite-se mostrar as
molas de seu funcionamento, sem afetar em nada sua eficácia.
4.4 ESCÂNDALOS
De fato, por que há tão poucos escândalos na era do cinismo?
Ou melhor —já que a mídia mal consegue dar vazão à quantidade de
denúncias relativas a desmandos de toda índole—, por que nossos
escândalos são tão pouco escandalosos? Ou ainda (e pela última
vez), por que tudo (quase) sempre termina em pizza?
Alain Didier-Weill faz umas observações instigantes acerca do
assunto durante uma conferência de florido título: “Ele sabe que (eu
103 Slavoj Zizek, 1996, p. 199
97
sei que (ele sabe que (eu sei)))”.104 Para que se constitua um
escândalo, como no caso de uma tempestade, devem somar-se
vários fatores concorrentes. Mais precisamente, dois eventos são
necessários. No primeiro, acontece um vazamento —para a
imprensa, ponhamos— deitando a público a mentira de um alto
funcionário do Estado. Podemos encolerizar-nos, espantar-nos ou
permanecer afetadamente impávidos, mas, seja qual for nossa
resposta à notícia, ainda não se trata de um escândalo. Para tanto faz
falta um segundo acontecimento que deve somar-se ao primeiro;
este, sim, resulta suficiente para desencadear a tempestade com
todas as conseqüências. Falo da confissão.
Com sagacidade, o conferencista nos remete à declaração de
amor e... ao Manual dos Inquisidores. Conforme explica o reverendo
Eymerich (1376), o desassossego do inquisidor não está motivado
pela culpa do acusado, que ele conhece de antemão, mas pela sua
aquiescência. A missão do inquisidor é “forçar o herege a revelar os
erros, convertendo-os em verdade, para que o inquisidor possa dizer
como o Apóstolo: ‘Homem astuto que sou, conquistei-vos pela
fraude’.”105 Antes de proceder à tortura, e lembrando que ninguém está
isento dela (omnes torqueri possunt), o religioso acha bom lembrar
que “sua finalidade é menos provar um fato do que obrigar o suspeito
104 Didier-Weill, 1988, p. 164.105 Eymerich, 1993, p. 123
98
a confessar a culpa que cala.” E deve proceder-se de tal forma que o
acusado “saia saudável, para ser liberado ou para ser executado.”106
Quanto à declaração amorosa, Didier-Weill se arma com uma
peça de Marivaux, para mostrar como, mesmo sabendo por terceiros
que tem um pretendente apaixonado, que está a par, por sua vez,
(graças aos mesmos terceiros, ou a outros) do fato de a amada
conhecer seus desvelos amorosos, ainda assim, nada acontecerá
enquanto o galã permanecer em silêncio. Se não tomar fôlego e
confessar de viva voz ou de próprio punho o que todo mundo sabe
nada será consumado. Enfim, como escreve o jesuíta Francisco de la
Peña, num adendo ao manual de Eymerich: “louvo o hábito de
torturar os acusados, principalmente nos dias atuais (1578), em que
os infiéis se mostram mais cínicos que nunca.”107
Não é necessário que se trate de um crime, como demonstra
quem declara seu amor. Confessar a verdade será sempre confessar
uma mentira, no mínimo porque a demora em declarar-se escondia o
fato de haver uma confissão a fazer!108 Em todo caso, para que algo
aconteça, isto é, para que haja um escândalo (ou um romance), não
se trata de confirmar uma informação mas de reconhecer-se
devassado pelo saber do outro, nesse momento vivido como
absoluto.
106 Ibid, p. 211.107 ibidem.108 Didier-Weil, op. cit.
99
Duas amigas se despedem. Uma delas tem a intenção de
reiterar à que fica a recomendação que lhe fizera, de pregar na porta,
antes de sair, um bilhete destinado ao namorado desta, de quem é
colega. Entretanto, em vez de dizer “não esquece de deixar o
recado”, diz: “não esquece de deixar o Ricardo”. Poderia ter sido um
gracejo —não era nenhum segredo a sua admiração pelo namorado
da outra (isso já se viu antes)— por que, então, ela enrubesceu no
instante do lapso? Se fosse chiste poderia ainda fingir algum controle
de suas (piores) intenções, manter a pos(s)e do Eu. Do modo como
aconteceu, só lhe resta perguntar: “quem disse isso?” A formação do
inconsciente irrompe à sua revelia para mostrá-la, durante um átimo,
nua perante a amiga, devassada, sem poder-lhe ocultar mais nada. É
sua vergonha, a mesma que nos faz relutar na hora de reconhecer
que quem nos telefona nos surpreendeu dormindo, isto é, indefesos,
expostos, com a dentadura postiça no copo sobre o criado mudo,
digamos.
O filho de um casal divorciado pediu ao pai, que raramente o
visitava e cujo telefone desconhecia, que lhe permitisse inserir o
número na área secreta da agenda eletrônica da mãe, cuja senha de
acesso só ele, o filho, conheceria. Era um voto de confiança que este
homem, enquanto pai, não podia recusar (mas recusou).
Enfim, o que há de escandaloso na assunção do mentiroso —
não da mentira, mas do fato de ter mentido—, é que ao ser
100
despojado de seu segredo ele se torna transparente sob o olhar do
Outro (o panopticon imaginado por Bentham e que me fixa desde
todas as partes, como Deus). Isso era o que este menino oferecia,
mais do que pedia, ao pai —além da presença de seu nome na mãe
—: um pouco de privacidade. Um lugar lá fora resguardado de suas
vistas, opaco, onde poder esconder-se. Não é pois suficiente afirmar
que o Senhor tudo sabe e tudo vê, ainda é preciso que o pecador se
disponha a abrir, como se diz, as janelas da alma, confessando-se
perante seu representante fora do Éden.
O cinismo, por sua vez, abomina o escândalo. O cínico dará
tudo menos sua confissão. E a impunidade será a regra apenas
enquanto o imputado não se veja levado a reconhecer perante a
opinião pública o fato de ter algo a esconder. O que fez do “caso
Lewinski” um escândalo não foram os bilhetes galantes, o vestido
inseminado ou o charuto (decerto, cubano e ilegal; quesito não
esclarecido pelos íntegros senadores), impudico brinquedo nas
pudicícias da estagiária na Casa Branca. Tampouco foi o presidente
dos Estados Unidos ter traído os votos dos eleitores e os outros.
Escandaloso foi ele ter vindo a público para reconhecer que mentira.
Porque, conforme a lei do discurso do cínico, o réu confesso há de
ser execrado, como o estrangeiro que passou a ser, para coesão da
comunidade agora unida contra ele.109 E se for crucificado o será não
109 Cf. Goldenberg, 1998.
101
por ter faltado com o princípio, digamos, de veracidade, mas por ser
incapaz de continuar mentindo em seu nome.
102
dormir no ponto
“É dando que se recebe” São Francisco de Assis (1182-1226)
“É dando que se recebe”Roberto Cardoso Alves, deputado, PMDB-SP.
(1927-1996)
“Não costumo quebrar a cabeça com a questão do bem e do
mal”, confessa Freud ao pastor Pfister,
porém tenho achado pouco “bem” nos seres humanos em geral. De acordo com minha experiência, a maioria deles não vale nada, pouco importando se adotam publicamente esta ou aquela doutrina ética, ou absolutamente nenhuma. O senhor não pode dizer isso em voz alta, talvez nem sequer pensá-lo, ainda que sua experiência de vida não possa ser muito diferente da minha.110
A despreocupação de Freud decorre da incapacidade do
método para indicar onde está o bem, não é sinal de sua indiferença.
É a psicanálise que não se pronuncia, não o psicanalista que se crê
no limbo dos justos.
E se não há discurso do psicanalista no totalitarismo, é menos
por ideologia que pelas condições de possibilidade da psicanálise que
pede um Estado de direito. Um Estado onde a servidão voluntária
110 Freud-Pfister. Correspondencia 1909-1939.
103
seja obra do conflito pulsional com as defesas, não resultado do
despotismo de um tirano. Quanto ao psicanalista, ele deve aderir à
ética comum dos cidadãos, e em nenhuma circunstância conhecer o
inconsciente pode tornar-se o fundamento para uma isenção moral.
Foi apresentado, perante um grupo de analistas vienenses, um caso de abuso por parte de um analista; depois de muitos debates em torno das origens psicológicas da falta ética desse colega, Freud encerrou o assunto em pauta declarando: “Tudo isso pode muito bem ser, mas uma falta de ética não se torna moralmente nada melhor por ter fundamentos psicológicos”.111
Freud gostava de citar o escritor F.T. Vischer, segundo o qual a
moral é evidente por si mesma. “A indignidade dos seres humanos,
inclusive dos analistas, sempre me impressionou profundamente,
mas por que motivo as pessoas analisadas seriam de um modo geral
melhores que as outras?”112
Excelente motivo para negar a psicanálise aos velhacos.
Recomendação que não há de ser tomada, em nenhum caso, como
uma pauta técnica, visto que a velhacaria não é uma estrutura clínica.
Cada analista decidirá, segundo seu critério, se irá equipar alguém
que “não vale nada” com um instrumento poderoso de manipulação.
Tal critério não consta de nenhum manual, e não será aprendido
durante a análise, mas na vida. “Existem tanto pessoas saudáveis,
como pessoas não saudáveis, que não valem nada na vida. Os que
não valem nada não são indicados para a análise, nem este método é
111 Entrevista de Helene Deutsch a Paul Roazen in Roazen ,1978, p. 139.112 Jones apud Roazen p. 177.
104
aplicável às pessoas que não vão em busca de tratamento
compelidas por seus próprios sofrimentos […]”113
*
Deixando os que não valem nada entregues à sua sorte (Freud
recomendava embarcá-los para “algum pais latino-americano”!114),
vamos à máxima que aparece como epígrafe deste último capítulo.
Então, será que sua excelência o deputado diz a mesma coisa que o
santo quando o cita (se não me engano, durante a negociação para
conceder ao presidente Sarney cinco anos no poder, em vez de
quatro)? Claro que não, mas a manha de sua intervenção consiste
em que este detalhe não possa ser levantado. O político cobre com o
manto da generosidade franciscana o “toma lá, dá cá” de sua gestão
interesseira, de modo a que o prestígio da máxima como verdade
universal, abstrata, e independente das condições de sua
enunciação, sirva como garantia de sua retidão. O cinismo não é
propriamente imoral, mas colocar a moralidade mesma a serviço da
imoralidade. Sua astúcia consiste em fazer a probidade servir a
desonestidade; a moral ser o álibi da locupleção e a verdade, a
melhor maneira de mentir115. Nada melhor para isso do que fazer
esquecer que a posição de quem enuncia desmente seu enunciado.
113 Freud, apud Roazen, p. 161.114 Correspondência Freud/Weiss115 Cf. Zizek. Op. cit. p. 74
105
Talvez a resposta mais interessante —contemporânea do
desfecho da negociação, que, como se recordará, foi favorável ao
governo (do que se deduz, conforme a lógica do deputado, que o
presidente deve ter dado, já que recebeu), veio de um grafite nos
muros do Rio glosando este modo de fazer política. “É dando que se
dá”, dizia. Feliz ironia da obscenidade dos zeladores da res publica,
vistos como prostitutas, e dos cidadãos, essas eternas crianças
abusadas pelos seus responsáveis.
É pouco? É pouco, é quase nada. E mais, corre o risco de não
passar de um desabafo, talvez mais espirituoso, mas não menos
inconseqüente, e com isso participar do conformismo triste do resto
dos logrados. Este disparate tem, não obstante, a virtude de entregar
o jogo do cínico, mostrando a enunciação non sancta que o orador se
empenha em ocultar por trás do santo enunciado. O grafite mostra
um que não condescende à farsa; que recusa o papel de otário sem
por isso cair no cinismo. Um que sai, de certo modo, do círculo cínico.
A propósito, a palavra “círculo” pode levar a pensar que
estamos no dilema do ovo e da galinha. Não estamos, o tolo vem
antes. O círculo se corta (quando se corta) do seu lado. Sair da
tontice ou, como se diz, não “dormir no ponto”, não implica contudo
virar logrador, a não ser, claro, no discurso do cínico. O “ponto” em
que se adormece, aliás, é o colo protetor do pai providente. O
106
salvador da pátria que imporá, finalmente, a ordem e o progresso que
nosso brasão promete em vão ("Existe um povo que a bandeira
empresta / Pra cobrir tanta infâmia e covardia!..."116). A boutade de
nossa democracia não ser parlamentarista mas paternalista vai nesse
sentido e é condizente com o esquecimento, devido talvez a anos de
ditadura, de que os eleitos para gerenciar a coisa pública são os
depositários de um poder que não lhes pertence e pelo qual devem
prestar contas a quem de direito. Haja visto nossa falta de espanto,
as omissões dos prepostos revelam antes nossa delegação do poder
que sua prepotência. Delegação que, é bom notar, não os torna
menos representativos, porque representam perfeitamente a crença
numa providência que não se abala pelo fato de ser financiada pelos
contribuintes.
Em vez de vigiar aqueles que designamos para administrar as
riquezas da comunidade, dormimos como crianças em noite de Natal.
E como crianças fingimos acreditar que são Papai Noel, esquecendo
que nós os vestimos com roupa vermelha e barbas de algodão. Nada
têm pois de surpreendente tantos olhos fechados frente às
malversações obradas por funcionários escolhidos para velar
enquanto cochilamos.
*
116 Castro Alves, Poesias Escolhidas, p. 335
107
Parafraseando Breton (le dur désir de durer), Lacan dizia que o
desígnio da psicanálise era inspirar o duro desejo de despertar117.
Declaração forte e que visa o ponto em que a realidade se confunde
com a fantasia, velando o real. O despertar que o psicanalista almeja
resulta da rasgadura do véu da Phantasien, suporte do desejo do
sujeito. Ou, de modo mais pedestre, de aperceber-se que um ditado
como “ver para crer” parece incontestável na medida exata do
desconhecimento do “crer” que suporta desde sempre nosso “ver”.
Que a psicanálise esteja sendo bem sucedida em seu propósito
no plano individual está sujeito a discussão, mas nem o mais
delirante dos utopistas se atreveria a estender este propósito ao
plano comunitário. Não há despertar coletivo. Sobretudo porque o
tecido da fantasia que precisa ser rasgado é o forro do eu de cada
um, e a angustia de descobrir que “quem sabe de mim, não sou eu”
provoca uma imediata corrida ao pai (qualquer pai) para garantir a
própria filiação, isto é, um lugar no mundo. O “ponto” a que me referia
acima.
Em que pese o cuidado de não exportar conceitos para fora do
campo em que foram criados e se mostram eficazes (quase sempre
uma desgraça), é difícil esquecer o que a psicanálise ensina defronte
a certos avatares da vida republicana. Tomemos a descoberta de que
a demanda de justiça pode ser reconduzida a sentimentos primários
de inveja, eles próprios originados na insatisfação inerente à nossa
117 Resposta a uma pergunta de Marcel Ritter in Petits écrits et conferences (sem dados editoriais)
108
condição de falantes (supra p. 29). Segundo este ponto de vista, a
sociedade fraterna é uma comunidade de privados, unidos pelo pacto
implícito de ninguém ter direito a regalias. Ninguém, a não ser o rei,
claro, ou quem fizer as vezes de exceção que confirma a regra. O
intolerável do gozo do próximo está na evidência de ele não se abster
do mesmo que eu (assim se define, aliás, um estrangeiro: não se
privar do mesmo que o resto). A sua infâmia consiste em me lembrar
a carência.
Quem vê isso tudo confirmado cotidianamente em sua clínica,
dizia, não pode deixar de espantar-se (para ficar em nossa história
recente) com a escolha de um slogan como “um brasileiro igual a
você”, numa campanha empenhada em eleger um ex-operário como
presidente da república. O cálculo político é sempre incerto, mas que
efeito pode esperar-se de uma consigna que se choca do modo mais
evidente contra a espera popular por um messias? Um partido que
aspira a fazer acordar o eleitorado do sonho contumaz que o faz votar
contra seus próprios interesses, simplesmente fecha os olhos para a
mensagem que parece brilhar no verso de sua palavra de ordem:
“quem quer ser governado por um coitado feito eu?”
Já os interessados em lucrar com o sono popular, digamos, vão
direto ao outro lado da moeda e usam a corrupção mesma como
propaganda. Eles sabem que o apelo eleitoral de um “rouba, mas
faz”, por exemplo, está antes do lado do “rouba” que do “faz”. Apelo
109
ironizado por Ponte Preta, quando deplora o fracasso da regra moral
conclamando à corrupção generalizada “restabeleça-se a
moralidade ou então locupletemo-nos todos”. Mas a sua ironia faz
mais do que prantear a indecência, interpreta (no sentido psicanalítico
do termo) o sonho de um Robin Hood que restabeleça a justiça, não
tanto dando-me o que me falta como tirando do vizinho o que lhe
sobra. Tomar o “locupletemo-nos todos” neste sentido seria benéfico
para a causa do “restabeleça-se a moralidade”, porque implica
reconhecer que a inveja me concerne. E talvez tal reconhecimento
ajude a tornar desnecessário votar num candidato proposto ao lugar
da exceção, um candidato a roubar impunemente, não para mim, mas
em meu lugar, e ao qual servirei de idiota útil.
Resta a pergunta de se fazer política para uma comunidade
atravessada pela inveja e não para um povo de santos obriga a
escolher a via do cínico.
A razão cínica não cria nem a invocação ao pai além da lei,
nem o torpor que lhe é consubstancial, mas se nutre deles.
Permanecer indiferentes à impunidade ou considerar o cinismo parte
do folclore equivale a servir-lhe voluntariamente de suporte. Oferecer-
se como instrumento do gozo imaginário dos corruptos. Rendição que
demonstra menos a empáfia deles que a debilidade ética de quem
consente. Decerto, há razões históricas para esta tendência à
servidão voluntária, que pode ser rastreada até a colônia e nada deve
110
ao discurso do cínico, que lhe é posterior. Este último, não obstante,
finca suas raízes onde quer que tais condições estejam dadas.
Cresce e floresce no meio desta nostalgia do pai, que já nos
empurrou para braços militares e nos de todo tipo de aventureiro que
sustente uma retórica messiânico-autoritária. Como no conto de
Borges, alguém nos está sonhando e a irresponsabilidade de não
fazer nada nos tranqüiliza e nos adormece118.
118 Tomás Eloy Martínez, El sueño argentino. BsAs: Planeta, 1999. P. 127.
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