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Livro fruto de uma série especial para a TV Gazeta, Vitória-Espírito Santo. Conteúdo do livro 10 desafios para a Gestão Pública no Espírito Santo. Caso deseje a publicação impressa pela Editora Espaço Livros, entre em contato com espacolivros@terra.com.br
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10 DESAFIOS
PARA A GESTÃO
PÚBLICA NO
ESPÍRITO SANTO E AS SOLUÇÕES APONTADAS POR
20 ESPECIALISTAS
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Carlos Tourinho
10 DESAFIOS
PARA A GESTÃO
PÚBLICA NO
ESPÍRITO SANTO E AS SOLUÇÕES APONTADAS POR
20 ESPECIALISTAS
5
Baseado na série especial da TV Gazeta "10 temas para a campanha eleitoral" (ficha bibliográfica)
6
À Márcia, pelo entusiasmo desde a primeira idéia ao
amor até o fim.
Aos meus filhos Bruno, Felipe e Sofia.
7
Aos meus pais Naya e Luiz.
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SUMÁRIO
Prefácio
Introdução
Desafio 1
Presídios e crimes, 13 Carlos Eduardo Lemos, Juiz.
André Luiz Moreira, Advogado.
Desafio 2
Tráfico de drogas e menores de idade, Patrícia Neves, Juíza.
Edinete Rosa, Psicóloga.
Desafio 3
Consultas Médicas Fernando Costa, Pres. CRM
Francisco José Dias, Médico.
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Desafio 4
Remédios de alto custo Luiz Carlos Reblin, Especialista em Saúde Pública.
Patrícia Luzia Ton, Coordenadora da Farmácia Popular
Desafio 5
Estradas Wagner Chieppe, Sindicato Transporte Cargas.
Mauro Leite Teixeira, Engenheiro Rodoviário.
Desafio 6
Imprudência no trânsito. Jaime de Angeli, Especialista em Trânsito.
Maria Cristina Carvalho, Assoc. Acidentes Trânsito.
Desafio 7
Impostos Orlando Caliman, Economista.
Luiz Cláudio Alemand, Advogado Tributarista
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Desafio 8
Turismo Cacau Monjardim, Especialista em Turismo.
Marco Azevedo, ES-Convention Visitors Bureau
Desafio 9
Analfabeto Funcional Cláudia Gontijo, prof. Especialista em Educação
Roberto Simões, prof. Especialista em Políticas Públicas
Desafio 10
Ética na Política Francisco Albernaz, Cientista Político.
Rafael Simões, Transparência Capixaba.
Considerações Finais,
11
AGRADECIMENTO
Agradeço aos meus colegas da TV Gazeta que
participaram da série especial “10 Temas para a
Campanha Eleitoral”; ao jornalista e amigo Abdo Chequer
e, especialmente, ao professor Dr. Sebastião Pimentel,
que fez o prefácio para “ontem” , aderindo ao dead-line
do jornalismo.
Também agradeço ao Sindipostos-ES, à XXX que
acreditaram neste trabalho, adquirindo exemplares
antecipadamente, o que possibilitou a produção do livro.
12
13
PREFÁCIO
Foi com grande satisfação que tomamos
conhecimento da publicação do jornalista Carlos
Tourinho.
O Brasil vive hoje um momento ímpar de sua história,
em que uma significativa transformação efetua-se: a
população está mais consciente quanto a seus direitos e
obrigações e, nesse sentido, tem possibilidade de
escolher melhor seus representantes governamentais,
dentre aqueles que melhor explicitam como farão para
atender às necessidades da sociedade. O que estamos
dizendo, em verdade, é que, hoje, se ampliam os recursos
disponíveis para que a população possa cobrar do
Legislativo e do Executivo idéias e soluções factíveis,
que mudem para melhor a vida do País.
No Brasil atual, a população cobra, reivindica políticas
sociais que não somente atendam aos anseios por infra-
estrutura física e melhores serviços urbanos, mas
também sirvam de esteio à promoção do ser humano,
garantindo-lhe o pleno exercício da cidadania.
Ao escolher dez desafios “a partir de um
levantamento sobre os pedidos mais freqüentes de
reportagens pelos telespectadores”, Carlos Tourinho
optou por dar vez a essa população, evidenciando que
14
“jornalismo é um dos termômetros das expectativas do
cidadão”. Dentre os temas indicados, a população
sabidamente optou por escolher aqueles que mais de
perto a afligem ou simbolizam sua preocupação maior,
tais como presídios x crimes; tráfico de drogas x
menores de idade; consultas médicas; remédios de alto
custo; estradas; trânsito; impostos; turismo;
analfabetismo funcional; ética na política.
Enfocam-se aqui dois pontos de vista para cada tema.
Algumas vezes eles se complementam; outras, mostram-
se discordantes. Isso, aliás, constitui-se em um dos
pontos altos do livro: o debate de idéias exige o
contraditório. Significativo, como diz o autor, é o fato
de serem apresentadas “idéias, diagnósticos que poderão
ser de grande utilidade para os gestores públicos que, de
fato, pretendem atender às necessidades do povo”.
Este é um livro otimista, porque, à luz da letra
impressa, ao refletir sobre alguns dos principais
problemas que afligem a população, permite que se pense
em sua solução. Mas não apenas é um livro otimista. Como
afirma Carlos Tourinho, trata-se, em verdade, de um
mapa que permitirá aos eleitos localizar alguns dos
anseios mais prementes da sociedade e satisfazê-los. Se
quiserem.
Prof. Dr. Sebastião Pimentel Franco
15
Professor do Programa de Pós-Graduação em História
Social das Relações Políticas da Ufes
16
INTRODUÇÃO
O que você espera dos políticos? Pouco, talvez
seja a resposta mais imediata. Porque há um descrédito
com estas instituições (Assembléia, Câmaras, Governos)
e com “eles”, principalmente. Este fato registrado por
todos os institutos de opinião pública, que têm apontado
decepção e até indiferença dos eleitores com seus
"representantes". Pouco, porque na era do individualismo
a busca por soluções coletivas tem-se mostrado cada vez
mais complexa, lenta e de pouca resolutividade. Enfim,
espera-se pouco porque a ainda recente retomada da
democracia no Brasil nos surpreendeu com denúncias,
impeachment, Cpis, cassações e muita corrupção. No
Espírito Santo, tivemos um choque de moralização nos
últimos anos, mas as denúncias ainda pipocam aqui e ali,
especialmente no âmbito do Legislativo.
Mesmo assim, o eleitor, sabiamente, gosta de
votar e não abre mão do poder de apostar no futuro, dar
oportunidade a quem acha que merece ou punir quem
considera que abusou de sua confiança. Avançamos em
muitas coisas: já temos a inflação sob controle, a classe
média - apesar da habitual reclamação - tem uma vida
melhor, comparada a de uma ou duas gerações atrás,
quando ter um carro na garagem era um luxo para
poucos. Por outro lado, temos de pagar escola particular,
plano de saúde, previdência privada, seguros e
17
dispositivos tecnológicos para a nossa segurança.
Direitos que deveríamos ter garantidos pelos impostos
que pagamos cada vez mais e nos compensam cada vez
menos. Mas acredita-se que o País avança. Mais lento do
que gostaríamos, com atalhos que preferiríamos evitar,
mas com a certeza de que não há alternativa melhor do
que insistir. E isso significa escolher bem nossos
representantes, definir prioridades e cobrar as soluções.
Nas últimas eleições (2006), fizemos uma série
especial para a TV Gazeta em que "elegemos" 10 temas
para enriquecer o debate na campanha eleitoral, época
que deveria ser de grande reflexão e crescimento da
educação política. Escolhemos esses temas a partir de
um levantamento sobre os pedidos mais freqüentes de
reportagens feitos por telespectadores. O jornalismo é
um dos termômetros das expectativas do cidadão: se as
coisas vão bem, há menos ligações, poucos pedidos. Se
vão mal...
A proposta foi a de escolher 10 temas que
fugissem do modelo clássico: saúde, educação, segurança
etc. É claro que é disso que tratamos, mas optamos por
"separar as sílabas" dessas palavras tão importantes e ao
mesmo tempo tão esvaziadas pelos discursos. Quando
liga para a redação, escreve ou nos procura
pessoalmente, o cidadão não vai reivindicar "saúde". Ele
quer consulta com um especialista da rede pública, pois
está tendo que dormir na fila. Ou vai pedir que o remédio
de alto custo não tenha o fornecimento interrompido na
farmácia do SUS. Ele não solicita "segurança": ele quer
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que o ônibus não seja incendiado e que o seu filho não
seja "fisgado" por um traficante de drogas. Pede
resoluções que lhe possibilitem fazer uma viagem
tranquila no fim-de-semana. O cidadão quer respostas
concretas para problemas da sua rotina.
No conjunto dos 10 Desafios, também estamos
falando de desenvolvimento. Por outro viés, que não a
tradicional abordagem empresarial ou sobre os planos
específicos dos governos para o setor. A soma das ações
apresentadas aqui pelos especialistas entrevistados
representa “desenvolvimento” no seu sentido mais
generoso. Ou até no sentido mais específico quando
tratamos, por exemplo, do turismo. Nesta mesma toada,
podemos entender que a temática do “emprego”, embora
não analisada separadamente, pode ser contemplada
quando se fala de melhorias em estradas, de presídios
mais seguros, de um sistema de saúde competente, de
uma atividade turística profissional, de impostos bem
aplicados ou do combate à corrupção. É sabido que o
Estado não é responsável por criar empregos, mas ao
fornecer uma plataforma que dê as condições
necessárias para a ação da iniciativa privada, ele faz a
sua parte. Em um ambiente ético e comprometido com a
boa aplicação dos recursos públicos, a iniciativa privada
sente-se confiante para investir no desenvolvimento e,
por conseqüência, gerar novas oportunidades de
empregos.
19
Este é um livro otimista. Mostra problemas, faz
cobranças, põe o dedo na ferida. Destaca alguns dos
dramas diários da nossa população. Situações-limite que,
sem pedir licença, entraram para a sua rotina. Mas a
abordagem não é de denúncia ou protesto. É uma
publicação que pretende contribuir na solução das
questões apresentadas, a partir da “doação” intelectual
de especialistas que não estão em campanha para nada,
não querem agradar a ninguém e não se ofereceram para
falar. Foram convidados, inicialmente, para a série da TV,
por mim e pela jornalista Giovana Lanna, que atuou como
produtora de pautas. São especialistas com notório
conhecimento sobre os temas propostos. Dois pontos de
vista para cada tema. Opiniões que se complementaram
na maior parte das vezes. Apresentaram idéias,
diagnósticos que poderão ser de grande utilidade para
aqueles gestores públicos que, de fato, pretendem
atender às necessidades do povo. Como disse um popular,
em uma entrevista para a televisão, "o povo não quer
nada de excepcional", ou como sintetizou uma eleitora, "o
político só deve prometer o que ele pode cumprir".
Apesar disso, ainda vimos candidato que defendeu a
utilização de "música para ativar o córtex cerebral" ou,
mais comumente, repetiu seguidamente o velho chavão de
"saúde, segurança, transporte, educação, trabalho e
moradia", ainda que o cargo que estava pleiteando não lhe
desse a possibilidade de prometer coisas do gênero.
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O cidadão tem amadurecido mais rapidamente do
que muitos de nossos políticos. É acreditando nesse
amadurecimento de ambas as partes que resolvi escrever
este livro, partindo das entrevistas da série para a tv, e
acrescentando novas pesquisas e uma ampliada
abordagem dos temas. Da proposta inicial de oferecer
uma bússola para escolher os candidatos que
apresentassem as melhores propostas, temos agora um
mapa para que os eleitos localizem algumas das
necessidades da sociedade. Para todos - políticos e
cidadãos - uma ferramenta que pode abrir caminhos.
Alguém poderá sentir a falta dos depoimentos de
nossos representantes públicos. Não, eles não escrevem
nesse livro. Estão desafiados a serem atentos leitores.
Este é o nosso objetivo.
Há uma frase comum entre os jornalistas, que
afirma que “o papel do jornalismo é afligir os
acomodados e consolar os aflitos”. Nos meus 22 anos de
profissão, tenho aprendido a entender e privilegiar os
dramas populares, a hierarquizar as demandas daqueles
que têm poucas alternativas, a respeitar o sofrimento e
a cobrar das autoridades. Ao lado de meus colegas na
redação da TV Gazeta tentamos fazer disso o nosso
exercício diário de cidadania e de compromisso com a
vida.
Este é um livro otimista porque aprendi que, para
os problemas serem resolvidos, eles devem ser expostos.
Colocados a nu. Há muita gente querendo esconder
21
problemas. As 20 pessoas entrevistadas neste livro são
otimistas.
DESAFIO 1
PRESÍDIOS X CRIMES
Ônibus incendiados, agentes penitenciários sob
constantes ameaças, assaltos para garantir o “caixa” de
pagamentos dos crimes encomendados pelos “chefes”.
Esses são alguns exemplos de uma nova modalidade de
gerência do crime organizado: o crime comandado de
dentro dos presídios.
Alguns números colaboram para entender os
motivos que têm levado os presidiários a tentar chamar a
atenção da sociedade. Em julho de 2006, os boletins de
ocupação dos presídios capixabas registravam 1.652
detentos a mais que a capacidade do sistema, que é de
3.465 vagas nas 14 unidades prisionais espalhadas pelo
Estado, incluindo aí o Manicômio Judiciário. Ou seja, o
sistema administrado pela Secretaria de Estado da
Justiça (SEJUS) contabiliza a existência de 5.117
presos. A superlotação é evidente: nesta época havia
47% de presos a mais em relação ao que o sistema era
capaz de suportar. O Estado precisaria construir mais
quatro presídios, com capacidade acima de 400 vagas
cada, somente para abrigar o excesso, considerando,
numa situação improvável, que não haveria novos presos.
22
O problema poderia ser amenizado, se não
houvesse tantos presos provisórios. Eles vêm ocupando
cada vez mais espaço nas penitenciárias. São 2.648
presos nessas condições, mais da metade (51,74%) da
lotação dos presídios. Caso todos os presos provisórios
fossem julgados e absolvidos, o sistema teria um
superávit de 817 vagas, ou seja, 23,57% da capacidade
total. Um exemplo desse desequilíbrio pode ser
constatado na Casa de Passagem de Vila Velha, localizada
no bairro da Glória. Em julho de 2006, 605 detentos
aguardavam julgamento contra 110 presos já condenados
pela Justiça. Ou seja, para cada condenado, havia cinco
provisórios.
O Governo vem acenando com a promessa de
construção de novas unidades e realizando mutirões nos
presídios para verificar quantos detentos têm direito a
algum tipo de benefício, inclusive, à liberdade provisória.
Projetos polêmicos, como o da cadeia metálica
(containeres adaptados para servirem como celas de
presos) de Novo Horizonte, município da Serra, têm sido
tentados para aliviar a crise no sistema prisional. O
Tribunal de Justiça também tem anunciado esforço no
sentido de determinar inspeções nas Comarcas para que
os juízes criminais verifiquem o andamento dos
processos dos presos. A intenção é a de acelerar a
tramitação dos processos e desafogar os presídios.
Embora o Sistema seja extremamente dinâmico e
os números oscilem diariamente, veja, para efeito
ilustrativo, a relação entre ocupação e capacidade dos
23
presídios capixabas. Os dados são de 12 de julho de
2006, fornecidos pela Diretoria-geral dos
estabelecimentos penais, órgão da Secretaria estadual
da Justiça.
DEMONSTRATIVO 1
OCUPAÇÃO DOS PRESÍDIOS NO ESPÍRITO SANTO PRESÍDIO OCUPAÇÃO CAPACIDADE DÉFICIT
IRS (Glória, VV). 216 210 6 vagas
CASCUVV (Glória, Vila Velha) 409 215 194 vagas
Casa de Passagem (Glória, Vila
Velha)
719 270 449 vagas
Casa de Custódia (Viana) 1.126 * 360 766 vagas
Penitenciária de
Segurança Média I (Viana)
237 110 127 vagas
Penitenciária de Segurança
Média II (Viana)
271 274 -
Penitenciária Agrícola (Viana) 224 195 29 vagas
Presídio Feminino (Cariacica) 279 105 174 vagas
Manicômio Judiciário (Cariacica) 81 90 -
Penitenciária regional de
Cachoeiro de Itapemirim
373 250 123 vagas
Penitenciária regional de
Linhares
335 356 -
Penitenciária regional de
Colatina
320 110 210 vagas
Penitenciária de Colatina (gestão
terceirizada)
264 268 -
Penitenciária de Barra de São
Francisco
266 120 146 vagas
Fonte: Diretoria-geral dos Estabelecimentos Penais (DIGESP), Secretaria
Estadual da Justiça, em 12/7/2006.
24
*Destes, 673 são detentos da Penitenciária de
Segurança Máxima (PSMA).
Esta situação levou os Centros de Defesa dos
Direitos Humanos da Serra, Cariacica e Vila Velha e o
Centro de apoio aos direitos humanos “Valdício Barbosa
dos Santos” a ingressarem com ação civil pública contra
o Estado do Espírito Santo pelo descumprimento da Lei
de Execuções Penais e da Constituição Federal por
manter presídios superlotados, detentos em condições
sub-humanas e uma situação de insegurança para a
sociedade. A ação protocolada no dia 21 de junho de
2006 foi apoiada pelo Movimento Nacional de Direitos
Humanos e pela Comissão de Direitos Humanos da OAB-
ES. Trata-se de um problema que vem se arrastando ano
após ano, governo após governo.
25
O juiz Carlos Eduardo Lemos, titular da 5ª vara criminal
de Vitória foi, durante quatro anos, o responsável pela
execução das penas de condenados presos. Nesta vara,
foi parceiro do Juiz Alexandre Martins de Castro Filho,
assassinado em 2003, numa trama que envolveu policiais
civis, militares e até um colega, Juiz de Direito, em um
caso ainda não concluído pela Justiça do Espírito Santo.
Carlos Eduardo Lemos tem-se destacado nas ações
contra o crime organizado e na cobrança pública de
providências por parte do Governo do Estado para
amenizar a crise no Sistema Penitenciário. Após muitas
dessas cobranças, ele teve suas funções alteradas,
passando a ser responsável pela execução de penas
alternativas (VEPENA) e perdendo o comando das
execuções penais.
A sociedade vive o terror da falta de segurança e
dos crimes ordenados de dentro dos presídios, como
os homicídios, assaltos e incêndios a ônibus.Qual é a
avaliação que o senhor faz deste quadro?
Carlos Eduardo Lemos: A avaliação feita
nacionalmente da situação carcerária do Espírito Santo é
dramática.
Atualmente temos no Estado um depósito de presos. Com
depósitos de presos vão-se criando monstros, o que
significa mais riscos para a sociedade.
26
Ninguém está dizendo que temos de passar a mão na
cabeça de bandido. Não é isso. O Espírito Santo hoje
gasta muito com o preso, mas o devolve pior para a
família, a sociedade. É preciso construir uma Política
Penitenciária para realmente tentar recuperar esse
cidadão.
O que deve e pode ser feito nos próximos anos?
Carlos Eduardo Lemos: Nosso Estado tem tudo para
dar certo, para ser um modelo positivo. A nossa
realidade é muito simples perto da complexidade de
outros Estados brasileiros. Temos sete mil presos,
contando os que estão em delegacias e presídios -
enquanto em São Paulo,, por exemplo, tem 160 mil. Eu
acho que precisamos de um Presídio de efetiva segurança
máxima – o que não temos hoje não por falta de dinheiro,
já que o Governo Federal até ofereceu condições, mas o
Estado não conseguiu local para construir. A Segurança
Máxima reprime os presos; eles precisam ter medo de
cometer crimes bárbaros dentro das unidades e de
comandar crimes que ocorrem aqui fora.
Além disso, precisamos de mais Unidades de Segurança
Média, com possibilidade efetiva para trabalho. Hoje
menos de 20% dos presos trabalham nos nossos
presídios. O ócio é a pior mazela do cárcere. E por fim,
eu acho que precisamos de investimento sério do
Governo nas penas alternativas e nas alternativas penais.
Nos últimos governos nada foi investido nessa ação. O
27
que se pratica hoje em pena alternativa é investimento
do Ministério da Justiça e do Poder Judiciário. O Poder
Executivo teria de investir nessas penas para estimular
os juízes a não mandar tantas pessoas para as cadeias.
Muitas dessas pessoas poderiam estar cumprindo penas
alternativas, lembrando sempre que a aplicação delas
exige fiscalização severa.
São propostas que podem ser executadas dentro de
um período de quatro anos?
Carlos Eduardo Lemos: Sim. Se for feito um projeto
sério, isso pode ser realizado, sim. Nos últimos anos, os
gastos foram mal planejados. E o planejamento deve
começar a partir do primeiro dia de governo, para que
possa ser executado o mais rápido possível. Agindo
assim, o Governo pode mudar a realidade em quatro
anos.
E o que cabe ao Governador, aos Deputados
Estaduais, Federais e Senadores?
Carlos Eduardo Lemos: Ao Governador cabe planejar e
executar uma Política Prisional, o que o Espírito Santo,
assim como muitos Estados Brasileiros, não tem. O que
se tem feito é reparo, reforma em presídios.
O que é uma Política Prisional?
28
Carlos Eduardo Lemos: Política Prisional é pensar o
Sistema como um todo, não só pensar na construção ou
reforma de presídio. Também na capacitação e
treinamento do pessoal que trabalha com presos, no
policiamento que faz a segurança do presídio, assistência
à família, entre outras coisas. Uma Política Prisional
avalia a alternativa dos investimentos, que podem ser
públicos ou privados. Eu já presenciei, nos últimos seis
anos, unidades sendo reformadas mais de 10 vezes e
cada vez que são reformadas, e mal reformadas, são
depredadas imediatamente após. O gasto é alto e a
situação está ficndo pior.
E o que cabe aos Deputados e Senadores?
Carlos Eduardo Lemos: Aos Deputados Estaduais cabe
repensar os orçamentos para estas pastas. Noss últimos
anos foram retiradas verbas que deveriam ir para a
Segurança Pública do nosso Estado. Então, cabe aos
Deputados Estaduais repensar estes orçamentos. Já o
Deputado Federal e os Senadores, têm de fazer
gestões junto ao Governo Federal para que, por
exemplo, não se contingencie mais o dinheiro do
Departamento Penitenciário Nacional, do Fundo
Penitenciário, o FUNPEN, que hoje tem mais de R$ 500
milhões contingenciados para o aumento do superávit
primário do Governo Federal. Isso é um absurdo, pois
retira-se dinheiro que deveria ir para a Segurança
Pública do País e o repassa para aumentar o superávit. E
29
cabe aos Deputados e Senadores lutarem para que isso
não aconteça.
O senhor acredita em mudanças, então?
Carlos Eduardo Lemos: Acredito. Nosso Estado é muito
pequeno, nosso problema é pontual. Como já disse, temos
tudo para sermos modelo, desde que se faça um
planejamento em todos estes setores. Tem de ser um
assunto de ponta de pauta. Toda a sociedade sofre. O
filho do pobre, do excluído, está morrendo enquanto está
assaltando, e o filho do rico está morrendo enquanto
está sendo assaltado. Acho que a todos interessa esse
assunto. Os políticos têm de discutir e pensar isso de
forma séria. É preciso fazer uma discussão profissional
sobre o assunto.
30
O advogado André Luiz Moreira é membro da Comissão
de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil,
seção Espírito Santo. Ele foi um dos que assinaram a
ação civil pública contra o Estado do Espírito Santo pelo
descumprimento da Lei de Execuções Penais e da
Constituição Federal. Nessa entrevista, realizada no
auge dos ataques a ônibus ocorridos em São Paulo e no
Espírito Santo em 2006, ele diz que um dos motivos do
descalabro do Sistema Judiciário está na desobediência
do Estado à Legislação que impede a mistura de presos:
“o Estado tem sido o gestor da mão-de-obra da
criminalidade”, sentencia.
Como deve ser tratada esta questão da lotação dos
presídios e dos crimes promovidos pelos presidiários
contra a sociedade?
André Moreira: Olha, como militante dos Direitos
Humanos, eu tenho alguma experiência nesta questão, e
alguma opinião formada também. Temos verificado o
descumprimento da lei, especialmente no que dispõe a
Constituição acerca da seleção dos presos, e o que
dispõe também a Legislação Penitenciária, como a Lei de
Execução Penal e várias resoluções do Conselho Nacional
de Política Penitenciária.
31
O descumprimento dessa legislação tem provocado essa
situação caótica verificada em São Paulo e no Espírito
Santo.
Esse descumprimento vem acontecendo há mais de vinte
anos. Então, a solução para o problema dos presídios
seria basicamente o cumprimento da legislação.
E é importante que essa discusão seja feita já. A
legislação nacional determina que os presos não podem
ser misturados. Por exemplo, preso provisório não pode
ficar junto com preso definitivo. Também tem de fazer a
seleção de preso por faixa-etária. Não podem ficar
juntos presos que cometeram o mesmo tipo de crime,
entre outras coisas.
Se houvesse essa seleção não teríamos esse caos que foi
instituído aí. O Estado tem sido o gestor da mão-de-obra
da criminalidade, porque coloca meninos novos juntos, em
condições extremas de convivência.. É como colocá-los
nas mãos de organizações criminosas.
O senhor acha que este assunto vem sendo tratado
de maneira correta desde as campanhas eleitorais,
tanto do Legislativo quanto do Executivo?
André Moreira: Não. A única proposta que tem sido
feita em geral é do aumento da punição, o que gera mais
superlotação e maior dificuldade do controle dos presos.
Inclusive, quando há uma rebelião, a gente percebe essa
dificuldade de controlar 700 presos onde deveria ter
32
200. A superlotação aumenta a dificuldade de se debelar
uma possível rebelião e manter a disciplina dentro dos
presídios.
Então não adianta só aumentar a punição?
André Moreira: Não, essa promessa já está
ultrapassada. Há vinte anos que ela é proposta,
executada, e não deu certo...
O que de imediato a Gestão Pública pode fazer?
André Moreira: Primeiro, saber que se trata de um
sistema complexo – nem todas as medidas estão nas
mãos dos cargos eletivos. Parte do problema está a cargo
do Judiciário, cujo gestor não é eleito pela população. E o
Judiciário tem a função de fiscalizar.
No plano do Executivo, o cumprimento da Lei que já
existe, e que é uma das melhores do mundo, é a solução.
Se o Sistema está como está, é porque a Legislação não
está sendo cumprida.
Quanto ao Legislativo, eu destaco duas questões:
primeiro, ele deve estar voltado a repensar o Sistema
Penitenciário. O Legislador deve se pautar no
acompanhamento da legislação para ver se algumas
alterações precisam ser feitas. Mas os princípios dessa
legislação que existe hoje no país, principalmente a Lei
de Execução Penal, são ótimos. Em segundo lugar, tem de
haver responsabilidade. O Legislativo não pode fazer
33
mudança no sistema penal só no calor da situação. Por
exemplo, aconteceu uma rebelião em São Paulo, então
vamos mudar o sistema... Não pode ser assim. Essa
decisão depende de um estudo, e existem pessoas
capacitadas para isso. O Legislativo pode trazer a
contribuição dessas pessoas, ter um espaço de debates
amplos. Se ele fizer isso, já estará cumprindo bem a
função dele.
O senhor disse que os políticos devem levar isso a
sério. E qual é a recomendação para o cidadão?
André Moreira: Exigir este tipo de debate e ter muito
cuidado com a promessa fácil nos períodos eleitorais. A
promessa de que somente aumentando a pena vai
melhorar o funcionamento do Sistema não procede.
Tem de se pensar nisso não como uma resposta de
primeira hora, mas pensar de forma racional, porque os
políticas que foram eleitos nos últimos 20 anos adotaram
medidas que não ajudaram a solucionar os problemas do
Sistema Prisional. O cidadão deve ficar de olho naquilo
que o político está propondo.Ele tem de pensar em
propostas racionais para a solução do problema. A
Legislação que nós temos hoje no País é uma das
melhores do mundo e ela já dá a solução e os
encaminhamentos adequados ao Sistema Prisional. Repito
que, se o sistema está funcionando mal é porque o
Governo vem descumprindo sistematicamente a lei que
trata do tema.
34
Então tem de discutir, exigir mais o cumprimento
dessa Lei?
André Moreira: Exatamente. Discutir como implementar
a Lei de Sistema Penal que diz que não se pode colocar
dentro do mesmo presídio preso provisório e preso
definitivo, por exemplo, entre outras coisas. Essa
situação facilita a criação das facções criminosas dentro
dos presídios, onde elas não deveriam estar operando,
pois no presídio o preso está sob a custódia e sob a
vigilância do Estado.
E o senhor acredita que esse caos pode ser
revertido, que a sociedade pode voltar a viver em
paz, sem essas ações criminosas como essas?
André Moreira: Certamente. E o primeiro passo é o que
falei sobre a separação dos presos. É claro que eu não
seria simplório em dizer que só isso resolveria, até
porque o problema se agravou. Mas um passo
fundamental é fazer essa seleção que determina a Lei e
criar condições dentro do Sistema Prisional, dando
trabalho e educação para o preso, porque aí você vai
afastá-lo do interesse pelas gangues e vai despertar
neles o interesse pela ressocialização.
35
DESAFIO 2
TRÁFICO DE DROGAS E MENORES
DE IDADE
Um problema para quem pensa o futuro. As
notícias mostram, a cada dia, mais jovens e adolescentes
envolvidos com crimes, incluindo aí o tráfico de drogas,
que é a porta para a maior parte das delinqüências. O
tráfico não se “emociona” com a infância. Recruta
crianças de 8, 9 e 10 anos, nas ruas e nas portas das
Escolas. Oferece balas, doces e drogas. Seduz com a
promessa de dinheiro e proteção. Um problema
gigantesco, um desafio à sobrevivência da sociedade.
Dados da Unidade de Internação Socioeducativa
(UNIS) do Governo do Espírito Santo revelam o perfil
socioeconômico dos adolescentes que estão internados
cumprindo medidas socioeducativas.
Em geral, o adolescente que cumpre medida
socioeducativa de internação é de família
economicamente desprovida, cuja renda, quando existe, é
resultante do trabalho informal, e varia de R$ 300,00 a
R$ 450,00. Seu núcleo familiar é concentrado em avós ou
somente na figura da mãe, residentes em bairros
periféricos e com alto índice de violência e tráfico de
36
drogas. Muitas vezes, o adolescente chega à UNIS sem
nunca ter ido ao dentista e ao médico.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (PNAD), feita pelo IBGE em 2004, o Brasil
mantém o índice de 41,4% de famílias com filhos de zero
a seis anos vivendo com até meio salário mínimo por
pessoa.
DEMONSTRATIVO 2
QUANTITATIVO DE ADOLESCENTES POR IDADE
CUMPRINDO MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DE
INTERNAÇÃO.
IDADE QUANTITATIVO
13 ANOS 1%
14 ANOS 2%
15 ANOS 9%
16 ANOS 16,5%
17 ANOS 31,5%
18 ANOS 30%
19 ANOS * 3%
20 ANOS * 4,5%
21 ANOS * 2,5%
TOTAL 100% Fonte: UNIS
* Em alguns casos o adolescente pode ficar internado até
os 21 anos (art. 2°, parágrafo único, do Estatuto da
37
Criança e do Adolescente –ECA). Nos casos expressos
em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às
pessoas entre 18 e 21 anos.)
DEMONSTRATIVO 3 QUANTITATIVO DE ADOLESCENTES POR
ESCOLARIDADE CUMPRINDO MEDIDAS
SOCIOEDUCATIVAS DE INTERNAÇÃO.
ESCOLARIDADE
QUANTITATIVO
1° ANO-ENSINO MÉDIO 5%
2° ANO– EM 1,5%
3° ANO– EM 1,5%
1° ANO- ENSINO FUNDAMENTAL 1%
2° ANO- EF 2%
3° ANO- EF 6%
4° ANO- EF 8%
5° ANO- EF 26,5%
6° ANO- EF 13,5%
7° ANO- EF 19%
8° ANO- EF 9%
ANALFABETO 1,5%
NÃO INFORMADO 5,5%
TOTAL
100%
Fonte: UNIS
38
Na observação da própria UNIS, os números
demonstram que há escolaridade baixa, com muitos
adolescentes "alfabetos funcionais”: sabem ler, mas não
conseguem compreender e interpretar textos (como
destacaremos mais na frente, dentro do tema
EDUCAÇÃO ) o que demonstra a baixa qualidade da
educação.
DEMONSTRATIVO 4
QUANTIDADE DE ADOLESCENTES QUE CUMPREM
MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE INTERNAÇÃO POR
ATO INFRACIONAL.
ATO INFRACIONAL
QUANTITATIVO
ROUBO 42%
HOMICÍDIO 27%
DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA 9%
FURTO 9%
TRÁFICO DE DROGAS 6%
OUTROS 7%
TOTAL
100%
Fonte: UNIS
39
Numa antiga casa residencial, em Vila Velha,
adaptada como sede da Vara da Infância e Juventude do
município, entrevistamos a Dra. Patrícia Neves, que
ocupa o cargo de juíza há 16 anos.Ela conhece bem a
relação do tráfico de drogas com as crianças, chama a
atenção para o número crescente de crianças e
adolescentes envolvidos com o crime no Estado e salienta
que a maioria deles é reincidente, ou seja, com passagem
anterior pela polícia. O dado mais relevante nessa
relação entre crianças e traficantes é o de que 90%
desse universo de pequenos infratores são usuários de
drogas. A juíza diz ainda que é cada vez mais comum ver
crianças de 10 e 11 anos nesse mundo das drogas e que as
idades tendem a diminuir. E faz um alerta: “até a justiça
é ameaçada. É preciso abrir os olhos agora...”
Qual é a relação que existe hoje entre a criança e o
adolescente e o tráfico de drogas?
Patrícia Neves: É uma relação que não é nova. A partir
do momento de que se divulgou uma falsa noção de o
adolescente não pode ser punido, o que não é verdade,
pois o Estatuto prevê punições; e no momento em que o
tráfico cresceu de uma forma desordenada até, a
criança e o adolescente foram utilizados como mão-de-
obra barata e facilmente reposta. Há uma questão muito
interessantes, por exemplo: o tráfico não permite a
entrada de determinadas drogas em algumas regiões, por
se tratar de drogas altamente letais, que matam muito e
40
com muita rapidez. Como o menor é substituído na cadeia
hierárquica do tráfico com muita facilidade, há muitos
anos ele é utilizado de forma desumana.
Eles são substituídos por que, em que situação?
Patrícia Neves: Eles morrem, são assassinados. Temos
situações já comprovadas em processos em que eles são
assassinados por uma dívida de 50 centavos.
Dívidas com o tráfico...
Patrícia Neves: Sim, com o tráfico. Eles morrem com
muita facilidade. Muitos simplesmente desaparecem;
muitos nós não temos a comprovação da morte, mas
estão desaparecidos, e muitos morrem em razão dos
problemas de saúde que a droga cria, o que é bem
comum.
Como o tráfico recruta esses menores?
Patrícia Neves: Ele recruta até na porta de escolas.
Oferece inicialmente doces, balas, brinquedos. E depois
criam dependência. Essa dependência está acontecendo
mais cedo, com sete, oito anos. O tráfico também
recruta em praças, ruas, festas. No momento em que
você transforma aquela criança ou adolescente em
dependente, ele entra naquela instituição criminosa, pois
41
precisa vender a droga para conseguir obter a droga que
vai utilizar.
Qual seria faixa de idade em que a criança ou
adolescente entra nesse mundo?
Patrícia Neves: Nós colocamos a situação dos aviões.
Temos os olheiros – crianças menores, de sete e oito
anos, que ficam vigiando a chegada da policia, do Juizado
ou de instituições que combatem o tráfico etc.
E aviões a partir de dez anos de idade, com qualquer tipo
de drogas.
E como é a relação dos traficantes que recrutam
essas crianças com as famílias delas?
Patrícia Neves: Nós temos tido situações em que
famílias que são maltratadas pelos traficantes, são
extremamente amedrontadas. Elas têm de vender tudo
para pagar dívida. Famílias que tem de abandonar suas
casas e entrar no programa de proteção porque são
ameaçadas.
E temos casos de famílias que são coniventes, que não se
importam com a entrada desse dinheiro ilícito na receita
familiar.
42
Como assim, como funciona isso?
Patrícia Neves: Sabem que os filhos estão praticando
esses crimes. E muitos pais que podem ser também do
tráfico e da vida criminosa, são sustentados, vivem com
aquele dinheiro.
Existe de alguma maneira uma proteção, isto é, o
menor de certa maneira se sente protegido pelo
tráfico?
Patrícia Neves: É uma relação estranha. No tráfico ele
encontra um princípio de autoridade que ele já não vem
encontrando em casa: de impor regras, limites, é uma
relação desvirtuada, promíscua. Ele se sente protegido
sim, uma proteção que ele não tem no seio familiar dele,
uma atenção.Temos a questão de casos de crianças ou
adolescentes que entram para o crime para pertencer a
um grupo social. Eles têm essa necessidade.
Dá status...
Patrícia Neves: Sim, para eles dá status. Um falso
status para nós, que estamos do outro lado, combatendo
esse mal, mas para eles dá status.
43
Está aumentando o envolvimento de crianças com o
tráfico de drogas?
Patrícia Neves: Está. Lamentavelmente tem aumentado,
até porque a gente tem de partir do principio de que o
uso do álcool leva muito facilmente ao mundo das drogas
ilícitas e é socialmente aceito. Então as famílias se
insurgem contra o Juizado quando ele faz a apreensão de
seus filhos, não uma apreensão no sentido infracional,
mas para entregar seus filhos em casa quando eles
estavam fazendo uso de bebidas alcoólicas em festas. As
famílias reclamam e perguntam se nós não temos mais
serviço, mais o que fazer, quando nós sabemos que esse
uso constante do álcool vai levar ao uso das drogas
ilícitas, é um encadeamento das coisas.
Essas crianças envolvidas têm noção do risco de
morte ou a morte já estaria sendo banalizada?
Patrícia Neves: Que a morte foi banalizada, isso é
evidente, pois a violência foi banalizada. Não há o que
discutir. Eu diria que ela tem ciência do risco da morte,
porque o entendimento da morte para a criança e o
adolescente é diferente do entendimento para nós
adultos. A criança e o adolescente têm uma visão da vida
diferente de nós. Eles têm ciência do risco, mas não a
noção real daquele risco, até porque é uma característica
44
do adolescente achar que as coisas só acontecem com os
outros, não com eles. É o caso das drogas, da morte, da
gravidez, das doenças sexualmente transmissíveis que as
próprias drogas trazem. Então, ele tem essa noção de
que acontece com o outro. Agora, um ser humano em
formação de personalidade, que não tem a maturidade
suficiente, ele tem ciência de que pode morrer, mas ele
não entende realmente a dimensão do que seja isso..
Como é a relação que vocês tem com os pequenos e
grandes traficantes? Quando a Justiça se envolve,
quando alguém é chamada à sala de audiência, como é
essa relação?
Patrícia Neves: A não ser que venha com crime de
violência contra a pessoa, já de uma forma inadaptável da
ressocialização, a nossa tentativa é sempre através de
medidas de meio aberto. Sempre buscamos o tratamento
de desintoxicação e do acompanhamento da família. Nós
temos uma dificuldade muito grande, pois não temos
locais no Estado para tratamento de desintoxicação. Em
alguns municípios há tratamento ambulatorial, mas uma
grande parcela dos nossos casos depende de internação.
E não temos como fazer isso. O nosso Juizado é o único
no Estado que tem um setor específico para usuário
dependente de drogas. Mas nós temos problemas
constantemente. Há uma demanda por semana de 20
45
pessoas que precisam de internação e não temos esse
local.
O nosso atendimento inicial objetiva o tratamento, a
ressocialização e o acompanhamento da família.
Vocês já chegaram a sofrer alguma ameaça na sala
de audiência?
Patrícia Neves: Não só nas salas de audiência, em
qualquer setor do Juizado. E não é só no Juizado.Isso é
constante. A gente vê que está havendo, até por um
afrouxamento dos valores sociais, essa perda de
sensação de autoridade. Seja do Estado, da família, dos
mais velhos, ou da própria Igreja, que está sendo
assaltada...
O Juizado não tem a prerrogativa de ser o único a
receber esse tipo de postura.
A senhora pode lembrar algum caso em que houve uma
ameaça?
Patrícia Neves: Já tivemos informação de que
traficantes adultos - e foi descoberto pelo Serviço de
Inteligência que faz esse monitoramento constante junto
ao Poder Judiciário, - tentariam invadir o Juizado para
arrebatarem menores, mas graças a Deus temos uma
proteção policial muito boa.
46
É comum o caso de família que se apóia no tráfico e
ameaça chamar traficantes para liberar os filhos da
Justiça?
Patrícia Neves: Dentro da sala de audiência não. Já
aconteceu isso com relação aos demais funcionários do
Juizado. Existe o respeito à figura do Juiz e nós também
exigimos esse mesmo respeito em relação ao
serventuário. E é lógico que quando há essa ameaça as
pessoas são encaminhadas para abertura de inquérito, já
que ameaça é um crime previsto em lei. Mas não acontece
só conosco, as denúncias mais graves dizem respeito às
áreas de Saúde e Educação, onde esses profissionais
são ameaçados. Temos de olhar a preservação da vida
desses funcionários que trabalham com o público, e em
áreas tão importantes quanto essas.
Então é comum a família se apoiar no poder do
tráfico para conseguir coisas?
Patrícia Neves: É sim, fazer ameaça, dizendo que se não
conseguir isso vai chamar o traficante para resolver a
situação... Lamentavelmente isso tem se tornando normal.
47
Como a senhora resumiria essa situação em que as
crianças são praticamente adotadas pelo tráfico de
drogas?
Patrícia Neves: Eu resumiria da seguinte forma: a
sociedade, o Estado, nós precisamos abrir os olhos de
que a área da Infância e da Juventude é a base da
pirâmide. Se ela não for bem trabalhada, se não houver
condições de trabalho aqui, nós vamos chegar aos
problemas que já vemos hoje na atualidade. O Sistema
Prisional tem um número enorme de presos com 18 a 25
anos.Temos o problema de mortalidade nesta idade,
então, a base, o investimento preventivo tem de ser
feito aqui. Nós não sabemos o que vai ser da sociedade
no futuro se não for feito um investimento em todos os
profissionais, das diferentes áreas, para estimularem
nessas crianças e adolescentes a ingenuidade e o direito
de serem crianças e adolescentes.
E o que a senhora acha que os gestores públicos
devem fazer?
Patrícia Neves: Devem debater a necessidade das
políticas não emergenciais de combate às situações de
crise, como é o caso do tráfico de drogas. Devem cuidar
da implantação de políticas que valorizem a família e a
convivência social pacífica e respeitosa, para que nós
tenhamos condições e ambiente que permitam tirar a
criança e o adolescente das mãos do tráfico.
48
Essa é a principal forma de abordar esse assunto?
Patrícia Neves: Acho que sim. Nós já temos a legislação
para penalizar. Nós temos de ter, também, mecanismos
para prevenir. Legislação para penalizar, mecanismos
para penalizar nós temos. Não temos é mecanismos para
prevenir e tratar. E é isso é que é necessário.
E isso é pouco discutido?
Patrícia Neves: A área da Infância não é muito
discutida, pois ela é muito polêmica. É uma área que traz
diversas reações. Já a área da Segurança vai ser muito
discutida mas vão se esquecer que para que haja
diminuição da insegurança, é necessário que se cuide da
criança e do adolescente.
O que a senhora espera?
Patrícia Neves: Eu gostaria, depois de tantos anos nesta
área, que nós tivéssemos mecanismos para cuidar. São os
abrigos – para aquelas crianças e adolescentes que não
têm vínculo familiar ou cujas famílias vivem da sua vida
criminosa. Locais de tratamento para internação e os
programas para acompanhamento e orientação de
famílias.Está certo? Se tivermos a condição de criarmos
recursos e escolas de atendimento em tempo integral
49
podem ter certeza de que muita coisa vai melhor, muita
coisa pode ser feita.
Isso é prioridade?
Patrícia Neves: Eu considero prioridade para a
sociedade. Não existe um país sem futuro e as crianças e
adolescentes são o futuro.
E hoje...
Patrícia Neves: Hoje a gente não vê perspectiva de
futuro com esse crescimento da utilização de crianças
pelo tráfico.
50
Doutora em Psicologia Social e professora da UFES,
Edinete Maria Rosa trabalha com crianças de rua há 20
anos, com foco na violência. Nesse tempo ela acompanhou
uma significativa mudança no imaginário das crianças da
periferia: “há tempos a gente via muita criança brincando
de polícia e ladrão e todas desejavam ser o policial,
todas brigavam por este posto. Hoje em dia o posto mais
desejado é o do bandido, que é visto como o de maior
poder...”
Para essa entrevista, a professora nos recebeu em seu
apartamento, na Praia do Canto, com vista para o morro
São José, em Vitória, onde também atua.
Como é essa relação do tráfico de drogas com as
crianças e adolescentes?
EDINETE ROSA: Cada vez com mais freqüência o
tráfico captura um adolescente ou uma criança mais
nova. A gente vê que crianças bem pequeninas de três e
quatro anos já reconhecem uma droga. E outras, de nove
e oito anos, já tem contato com o uso das drogas. Não só
o contato na casa, na região, mas já usam essa droga. E
cada vez drogas mais pesadas, não é? Há vinte anos a
gente andava no centro de Vitória, nas ruas de Vitória e
encontrava crianças que cheiravam cola de sapateiro.
Hoje crianças na mesma idade são usuárias de drogas
ilícitas mais pesadas, vamos dizer assim.
51
E também atuando no tráfico?
EDINETE ROSA: Um pouquinho maior, onze, doze anos,
já atuando no tráfico. Primeiro como ajudante, como
aprendiz, e depois assume o posto cada vez mais elevado.
Qual a vivência da senhora com crianças que fazem
parte dessa realidade?
EDINETE ROSA: A vivência é principalmente com
crianças que hoje são adolescentes, que iniciaram com o
uso de drogas, depois com o tráfico de drogas e hoje
estão cumprindo medidas sócio-educativas.
A senhora esteve pesquisando sobre essas crianças na
UNIS?
EDINETE ROSA: Em liberdade assistida e também em
privação da liberdade que seria o caso da UNIS. Um
contato direto com todas as crianças.
E o que estas crianças dizem? Porque elas foram por
esse caminho?
EDINETE ROSA: São várias as motivações. Aqueles que
já tem uma família e têm filhos, justificam pela
necessidade financeira. Outros pela facilidade com que a
droga veio. Muitos ingressaram no tráfico de drogas já
trabalhando e isso é um dado muito importante porque a
52
gente pensa que o tráfico captura as crianças que estão
a toa. Não é verdade isso. Os adolescentes ingressam
muito cedo no mercado de trabalho só que são trabalhos
mal remunerados e com pouca ou nenhuma qualificação,
como ajudante de pedreiro, entregador de revista... A
esse adolescente é oferecida uma oportunidade “melhor”
de trabalho. Eles vêem isso como trabalho também.
O que a senhora descobriu nesse contato com as
crianças?
EDINETE ROSA: Elas consideram que o tráfico
ofereceu algo melhor do que a sociedade oferece. É uma
oferta muito mais interessante apesar de todo o risco
que o adolescente sofre e ele sabe que sofre. Mas
mesmo assim ele acha que vale a pena porque passa de
um ganho de trezentos a trezentos e cinqüenta reais
por mês para dois mil reais.
E eles não se arrependem disso?
EDINETE ROSA: De forma alguma, não se arrependem.
Mesmo sabendo que a vida deles corre risco?
EDINETE ROSA: Eles têm essa noção até pelo número
de adolescentes que contam dos colegas que já foram
mortos. No depoimento deles a morte é uma coisa muito
53
presente. Eles falam de um grupo imenso de
adolescentes ao redor que já foram mortos.
Como eles se identificam nessa relação entre polícia e
ladrão?
EDINETE ROSA: As crianças quando vão brincar elas
captam as representações que existem na sociedade. Há
tempos atrás a gente via muita criança brincando de
polícia e ladrão. E todas desejavam ser o policial, todas
brigavam por este posto. Hoje em dia o posto mais
desejado é o do bandido, que é visto como o de maior
poder, maior destaque, o que tem os mais fortes meios
de domínio sobre o outro.
De alguma maneira o papel do bandido ganhou status?
EDINETE ROSA: Ganhou status, passou a ter um valor
maior que o do policial.
Como a senhora acha que esse assunto deva ser
tratado pelos gestores públicos?
EDINETE ROSA: Deve-se pensar num Programa de
Governo que valorize as políticas protetivas, adote
integralmente o Estatuto da Criança e do Adolescente,
traga diretrizes para o atendimento da criança.
Trabalhando nas políticas protetivas, consequentemente
as ações sócio-educativas não precisarão ser tão
54
aplicadas. As crianças precisam ter garantidas as
condições para o seu desenvolvimento saudável, seguro.
Dentro de uma sociedade que acolha a criança por suas
virtudes e não uma sociedade, um Governo que pense na
criança como um traficante em potencial. As políticas
devem ser direcionadas para aquilo que a criança traz de
bom, suas possibilidades de desenvolvimento.
Em outras palavras, o que deve ser feito na prática?
A senhora não defende punição para a criança
envolvida com o tráfico?
EDINETE ROSA: Deve ser feita uma política séria para
a criança e o adolescente que atenda desde às
necessidades básicas como educação, alimentação e
saúde até a aplicação de uma medida sócio-educativa.
Nessa gama de possibilidades ter uma política
direcionada às realidades locais, para a cultura da
criança, que valorize o seu espaço, o seu ambiente, a sua
escola, para que a gente não tenha crianças que precisem
de meios de transgressão para ser aceita na sociedade,
como acontece com o tráfico de drogas. Um dos motivos
que os adolescentes colocam é que eles queriam comprar
um tênis de marca, queriam comprar uma bermuda
“Ciclone”. Eles tem conhecimento dessas marcas que são
valores na sociedade, até mesmo porque isso é divulgado
pela mídia à todo momento. O apelo ao desejo é igual
para todo mundo.
55
Como se resolve isso?
EDINETE ROSA: Com a valorização de todas as formas
de viver, com todas as escolas sendo valorizadas de igual
forma. É pensar numa política que dê aquilo que o
Estatuto traz de mais importante e que não é aplicado: o
protagonismo social. É fazer da criança um sujeito de
direito, um cidadão de direitos. Isso significa dar voz à
ele para dizer “é essa política que eu quero, o
atendimento que eu quero”. Não uma política para o
jovem, mas com o jovem, não para a criança, mas com a
criança.
De maneira objetiva, o que a senhora gostaria de
ouvir dos políticos?
EDINETE ROSA: Ah, eu já ouvi isso de tantos e não
fizeram... Eu queria ouvir que a criança e o adolescente
fossem prioridades no governo dele e já demonstrasse
em seu Programa o que ele vai fazer, como vai traçar
essa política. Para ver se o seu Programa para o setor
ainda vai trazer como fundamento o antigo Código de
Menores ou se ela já traz essas concepções que são mais
libertadoras. Que são mais revolucionárias no sentido de
mudar um pouco a realidade, para que essa criança tenha
a importância que merece ter.
56
Mas o que pode ser exeqüível, pode se feito de
imediato, que leve a senhora a acreditar?
EDINETE ROSA: Por exemplo, um investimento
considerável nas Políticas básicas como Saúde e
Educação para a criança. Com um atendimento que
comece no pré-natal. Uma política séria direcionada para
a família, não só de renda, mas uma política social, o que
é imprescindível. Por exemplo, o número de crianças que
saem de casa por violência é muito maior que o número
de crianças que saem por problemas financeiros. Quer
dizer, falta o pão, mas se tem o carinho a criança está lá.
Mas se há violência, desrespeito, não só para com ela,
mas violência entre o casal, a criança não fica. Então,
precisamos de uma política que enfrente essa violência,
dando condições e oportunidades para que essa família
pense as suas relações. Não existe manual para se criar
um filho. Pensa-se que é algo natural, mas não é. Já vi
teses sobre a violência conjugal e crianças que convivem
com essa violência. E os governos ainda não se deram
conta que a violência da casa não é uma questão só
familiar.
A senhora acredita, então, que uma ação de
assistência poderia reduzir o risco de uma criança
ser “adotada” pelo tráfico de drogas?
EDINETE ROSA: Acho que sim. Não transferir a
responsabilidade para família, mas assistir a família que
57
precisa. O que é totalmente diferente de eu culpar um
pai ou uma mãe quando a criança vai para o tráfico de
drogas. Dar assistência e apoio à esta família naquilo que
ela precisa para que essa criança fique em casa.
Há necessidade de novas leis?
EDINETE ROSA: Acho que não.
Esse assunto vem sendo tratado com seriedade?
EDINETE ROSA: No papel sim. No papel temos coisas
fantásticas falando sobre a violência. Agora, os
programas em si, ainda são muito incipientes. Há pessoas
que dizem que já há muitos programas. Em 2004 foi feito
um pacto nacional para a questão da violência sexual. Mas
não é só a violência sexual, temos de pensar na violência
física e na violência psicológica também.
Nestas pesquisas que fez, que situação lhe chamou
mais a atenção?
EDINETE ROSA: Quando a gente visita as famílias a
gente vê as crianças bem cedo convivendo com o cheiro
das drogas. Ao invés de reconhecer o cheiro do leite,
reconhece o cheiro das drogas. Isso é muito
preocupante. Isso naturaliza o uso da droga, e nós
adultos é que somos os responsáveis.
58
DESAFIO 3
CONSULTAS MÉDICAS
Quando está doente, o que uma pessoa menos
deseja é sair do lugar, fazer esforço. Ela precisa de
atenção, carinho, cuidado e rapidez no atendimento. Na
Rede Pública de Saúde, as consultas com médicos
especialistas oferecem o contrário disso: filas pela
madrugada na porta de Postos de Saúde, corredores
lotados de doentes nos hospitais, pacientes sendo
atendidos no chão por falta de macas...Trata-se de um
problema com várias origens, independente do lugar no
País em que o problema esteja presente. As origens vão
do evidente descaso com as camadas mais pobres da
população (também penalizadas em várias outras
demandas sociais, como sabemos), ações mais voltadas
para a cura do que para a prevenção, deficiência nos
atendimentos básicos, prioridades orçamentárias, gestão
do dinheiro público, corrupção e até mesmo a falta de
conhecimento por parte da população em relação às
regras que estabelecem diferenças entre atendimentos
de urgência, emergência e saúde básica. Na dúvida para
onde ir, ou já sabedores do que irão encontrar no
atendimento básico, todos querem hospitais e médicos
especialistas.
No dia seis de outubro de 2006, no Pronto
Atendimento de Itacibá, em Cariacica, um aposentado
morreu durante o atendimento. Motivo: uma sobrecarga
59
na rede elétrica do Posto impediu o funcionamento de um
desfibrilador (aparelho de socorro que produz um choque
para reativar o coração) e o mais grave (se fosse possível
ser mais grave do que a própria morte) é que os
funcionários já haviam alertado seus superiores sobre o
problema. A Imprensa mostra diariamente a gravidade
da situação: pessoas que vão para a fila da Unidade de
Saúde à noite para garantir uma ficha no dia seguinte.
Quando conseguem, a ficha não é para uma consulta
imediata. Dependendo da especialidade requerida, a
consulto com o médico pode levar meses. E se o problema
é grave, como fica? A resposta pode ser encontrada nos
dias da consulta marcada: muitas vezes o paciente não
aparece. O motivo pode ser a desistência, a substituição
por outra forma de atendimento ou até mesmo pela
morte prematura do paciente, devido ao agravamento da
doença não tratada a tempo. Outra conseqüência que a
demora provoca é a superlotação dos hospitais. Sem ter
como esperar pela consulta e vendo a evolução do
problema, esse paciente acaba tendo de parar num
corredor de hospital lotado.
Na Rede Pública existem vários níveis de
atendimento. Da saúde básica, prestada pelos municípios,
ao atendimento com o médico especializado, o que é
função do Estado. Paralelamente a essas faixas, temos
os atendimentos de urgência e emergências nos pronto-
socorros que, apesar dos corredores lotados, ainda têm
se mostrado menos problemático do que as consultas com
os especialistas. Quando um paciente entra num hospital
60
com um problema realmente grave, ele pode até ficar no
corredor, mas será atendido. Basta ver os casos de
acidentes de trânsito. Assim que chegam ao hospital de
referência, o São Lucas, em Vitória, os acidentados são
imediatamente atendidos e tratados. Já para os casos
não urgentes, o procedimento correto indicado, começa
na Unidade Básica de Saúde da rede municipal. Lá, são
tratadas (ou deveriam ser) as doenças mais simples e
feita uma triagem dos casos mais complexos. Do Posto de
Saúde é feito o encaminhamento, quando é o caso, para o
Conselho Regional de Especialidades- CRE, que oferece
consultas para cardiologista, dentista, neurologista,
endocrinologista e reumatologista entre outros. E aí está
o drama: dia ou noite, a espera por uma consulta pode
levar meses. Mas o sofrimento é imediato.
61
O especialista em saúde pública, Francisco José Dias,
nos recebeu em seu gabinete, em agosto de 2006. Com
23 anos de medicina ele sempre atuou na saúde pública,
onde atualmente ocupa o cargo de Subsecretário
Estadual de Saúde. Nessa entrevista, em que fala como
profissional e não pela Instituição, aponta caminhos para
o problema das filas na marcação de consultas, mas
ressalta que essas soluções são paliativas. O que ele
defende é a mudança de foco no Sistema Público de
Saúde no Brasil, com maiores investimentos na Atenção
Básica da Saúde, caminho que nos remete aos melhores
exemplos mundo afora.
Qual a avaliação que o senhor faz do drama das
pessoas que passam horas nas filas para depois ter
de aguardar meses pela consulta com o médico
especialista na Rede Pública?
Francisco José Dias: As consultas especializadas, em
algumas áreas, ainda têm demanda reprimida por fatores
diversos. Envolve, por exemplo, o processo de formação
dos nossos especialistas. O que existe hoje ainda é um
centro de formação aleatório, com cada faculdade
escolhendo as áreas onde ela vai abrir vagas para
especialidades. Não há ainda um gerenciamento forte do
Ministério da Saúde e do Ministério da Educação, para
definir o perfil de especialistas que a gente precisa no
Sistema. Tem um outro fator que é o próprio mercado de
62
trabalho. Algumas especialidades garantem ao
profissional uma melhor condição. Aí ele não assume uma
atividade no serviço público porque não sente
necessidade disso na sua formação profissional ou
complementação salarial. Isso é evidente quando se faz
concurso público para determinadas especialidades. A
gente oferece vagas em quantidade mas não consegue
ocupar todas.
Explique melhor: os médicos não precisam ou não
querem trabalhar na Rede Pública?
Francisco José Dias: Não é que os médicos não queiram.
Existe uma realidade do mercado. Em outros Estados, a
gente sabe que pelo fato de haver uma oferta maior de
profissionais em determinadas áreas não há
estrangulamento. Nós estamos falando de uma realidade
regional, aqui no Espírito Santo. Algumas especialidades
têm um mercado muito peculiar, muito próprio. Apesar da
média salarial do País ser igual, você vai ver que em
determinados Estados, por ter um número maior de
especialistas, o Sistema Público consegue absorver estes
profissionais. Há outros que têm escassez. Os
profissionais conseguem sobreviver na iniciativa privada
e não estão receptivos a assumir um emprego público.
63
O senhor acha que há necessidade de mudanças no
Orçamento destinado à Saúde Pública?
Francisco José Dias: Tem outras variáveis, além dessa
questão do mercado. A área que a gente chama de Média
Complexidade, onde estão os procedimentos de consultas
e exames especializados, é hoje a área menos financiada
em termos de recursos públicos. A tabela do SUS
remunera os procedimentos nessas áreas com valor
considerado baixo. Isso desloca do Sistema de Saúde,
por exemplo, os Hospitais Filantrópicos, que acabam não
oferecendo procedimentos nessa área, porque
consideram que estes valores de remuneração são
insuficientes. Essa tabela é nacional, estabelecida pelo
Governo Federal, e há um movimento muito grande de
diversos atores políticos, representantes de hospitais
filantrópicos, Secretários Estaduais e Municipais de
Saúde, para que se possa fazer uma revisão dessa tabela
e torná-la do ponto de vista da remuneração do
profissional e do prestador de serviço mais atraente.
Então, existe sim uma questão de financiamento do
Sistema para garantir a oferta desses procedimentos
especializados. A gente tem dados dos últimos cinco anos
aqui no Espírito Santo, mostrando que a oferta de
consultas especializadas aumentou em 30% tanto em
nível de Estado quanto de Município. Nesse período a
população não deve ter crescido mais do que 10%. Apesar
dessa ampliação da oferta, e de hoje as consultas
especializadas representarem cerca de 30% do total de
64
consultas oferecidas no Estado, ainda há estas filas.
Isso demonstra que a gente tem ainda uma baixa
resolutividade na atuação da Atenção Primária. O
esperado é que os generalistas tivessem condições de
resolver até 85% dos problemas. Isso não está vinculado
só à competência do médico mas também às condições
dadas para que ele resolva os problemas lá no Município,
como o acesso à exames e outro procedimentos para que
ele possa ter resolutividade. Esse é o enfrentamento que
tem que acontecer: melhorar a qualidade da Atenção
Primária, tanto do ponto de vista da formação
profissional quanto dos recursos tecnológicos para que
menos pessoas precisem ser encaminhadas ao
especialista.
Essas questões poderiam representar uma mudança
imediata no quadro que relatei no início dessa
conversa, das pessoas que dormem na porta das
Unidades aguardando uma ficha?
Francisco José Dias: Na verdade o País tem uma dívida
social muito grande com a nossa população. O Brasil tem
um volume muito grande de excluídos. A Saúde,
curiosamente, sofre essa pressão por ser um dos poucos
Sistemas Públicos em que a porta está permanentemente
aberta. Boa parte das demandas que entram no Sistema
Público de Saúde, e que fazem parte dessa sobrecarga,
advém de problemas sociais. Há dados da literatura
mundial que demonstram que os Serviços de Saúde são
65
responsáveis por no máximo 30% dos problemas de saúde
de uma população. E que 70% advém de outros processos
sociais como Educação, Bem Estar Social, Saneamento
Básico, Habitação etc, ou seja, estão fora do âmbito do
Serviço de Saúde. E que essas deficiências que a gente
ainda têm na sociedade para superar, acabam
sobrecarregando e gerando uma pressão imediata no
Serviço de Saúde, devido ao adoecimento maior da
população.
O que o senhor acha que os políticos devem debater
em relação a essas necessidades da Rede Pública de
Saúde?
Francisco José Dias: Eu não tenho dúvida nenhuma de
que o foco, e isso está demonstrado historicamente em
todos os países do mundo que tem bom Sistema de
Saúde, deve estar na dedicação prioritária na
organização da Saúde Primária. Se a gente não conseguir
construir no País, um Sistema Público com atenção
Primária forte, capaz de resolver problemas e que a
população acredite nessas Unidades Básicas de Saúde
como um lugar que ela vá e tenha seus problemas
resolvidos, a gente não consegue superar os problemas
que enfrenta hoje: superlotação de hospitais, de algumas
especialidades com demanda reprimida... Porque é a
Atenção Primária que vai ordenar esse Sistema.
66
E como se consegue isso?
Francisco José Dias: Desde a formação profissional de
médicos, enfermeiros, dentistas, eles tem que ser
preparados para lidar como generalistas no atendimento
à população. É uma prática profissional totalmente
diferenciada e que não é ensinada hoje nas escolas
médicas. De atendimento em longo prazo, preparação
para acompanhar pacientes de forma crônica, o trabalho
em equipe, a responsabilidade sanitária do profissional
para uma determinada população, como grupos de família,
isso tudo são inovações que ainda não fazem parte da
rotina da formação dos profissionais de Saúde. E, quem
já está no exercício, os profissionais que estão no
Sistema hoje, tem que ser requalificados pelo Poder
Público. Isso permitirá que estes profissionais se
adaptem aos novos tempos e possam exercer a atividade
deles nestas Unidades de Atenção Primária.
Há ligação desse problema com a superlotação dos
hospitais e prontos-socorros?
Francisco José Dias: Não há dúvida nenhuma. A gente
pode ter soluções imediatas, a população tem demandas
de curto prazo que precisam ser sanadas. E você pode
ter incrementos na oferta de atendimento hospitalar,
oferecer maior volume de exames... Mas todas essas
soluções são paliativas. Nenhum Sistema de Saúde no
mundo conseguiu sobreviver e ser resolutivo centrando a
67
atividade dele em procedimentos especializados e
atividade hospitalar. E o Brasil seguiu essa trajetória,
infelizmente. Da metade do século passado para cá, todo
o incremento foi dado à rede hospitalar e procedimentos
especializados. E muito pouco se cuidou da Atenção
Primária. Essa reversão começa só na década de 90 com
a municipalização e com a implantação estratégica da
Saúde da Família.
O senhor propõe uma reversão desse tipo de
pensamento para as novas administrações?
Francisco José Dias: Sem dúvida nenhuma. Quem tem a
responsabilidade de gestão pela frente, tem que ter em
mente que, por mais que se necessite de investimentos
em curto prazo para qualificar a rede hospitalar etc -é
preciso, a população precisa desse serviço - a gente tem
que ter uma visão estratégica de que essa mudança e a
reorganização do Sistema de Saúde só se dará com uma
Atenção Primária resolutiva. Tem que ser um foco de
preocupação da gestão pública.
E o cidadão tem como interferir nas políticas para a
Saúde Pública?
Francisco José Dias: A participação do cidadão na
Saúde tem espaços que vão muito além do momento
eleitoral. Existem fóruns permanentes. Hoje quase todos
os Serviços de Saúde têm seus colegiados de gestão com
68
representação comunitária. Os Conselhos de Saúde são
espaços de participação. Então, acho que a mudança do
nosso processo de Saúde da população vem também da
construção da cidadania. Se as pessoas tiverem menos
expectativa do Estado como provedor que dá as coisas,
se sentirem mais cidadãos, participarem e lutarem mais
nesses fóruns que estão abertos, no dia-a-dia, a gente
pode discutir melhor a política pública, construir coisas
resolutivas e cobrar os resultados de quem tem a
responsabilidade de administrar os recursos.
E essa discussão tem que ser assimilada pelos
políticos também?
Francisco José Dias: Com certeza, está aí também essa
questão do controle social e da participação no Sistema
Público de Saúde com seus instrumentos públicos que são
esses Conselhos e Fóruns de participação. Temos de
valorizar essa condição do cidadão mais como sujeito do
seu processo, de cuidar da sua saúde e menos paciente
(no sentido da passividade) do Sistema de Saúde. Acho
que a gente tem que ter o indivíduo participando e
dizendo, realmente, o que ele quer da Saúde. Não tenho
dúvida de que os políticos devem colocar esses pontos em
discussão. Entendo que a gente está vendo apenas a
ponta de um iceberg. E que cada fila, cada demanda
reprimida esconde por trás dela uma necessidade de
organização do Sistema de Saúde. Então, as visões não
podem ser só imediatistas. Temos de ter o foco no
69
sofrimento imediato da população, buscar a solução para
aquele problema, mas ter a capacidade de fazer essa
reflexão de que é preciso construir uma nova prática de
Saúde também.
70
Fernando Costa, médico há 25 anos, é especialista em
Pediatria e Medicina do Trabalho. Atua no Conselho
Regional de Medicina dede 1998. Atualmente é o seu
Presidente. Nessa entrevista, ele dá ênfase às questões
sindicais como salários e concursos –vistas como
propostas para redução do problema - e ressalta que,
com os salários atuais os médicos preferem ficar em
seus consultórios. Daí a falta de especialistas na Rede
Pública.
Qual a avaliação que o senhor faz dessa dificuldade
para se marcar uma consulta com um médico
especialista na Rede Pública?
FERNANDO COSTA: Essa é uma questão difícil para a
população, porque uma consulta especializada muitas
vezes demora meses, e quando se consegue, esse
paciente ainda leva quase um ano para fazer o exame
especializado caso o médico o solicite.
E qual a conseqüência dessa lentidão, dessa
dificuldade?
FERNANDO COSTA: A conseqüência é que a doença vai
agravando, a doença não espera. Como demora o
atendimento, demora o exame, esse paciente
automaticamente procura os prontos-socorros.
Precisamos de novos Centros de Especialidades em
parceria com os Municípios e que tenham resolutividade.
71
O médico que está lá tem que ter condições de trabalho,
e condições de fazer os exames que pede. Isso vai
ajudar a diminuir o fluxo de atendimento nos hospitais
públicos.
Como um especialista na área, o que o senhor acha
que deva ser feito pelas autoridades do Setor?
FERNANDO COSTA: Aumentar o investimento na
Saúde Pública; acabar com os contratos temporários,
porque são contratos precários, instituir o concurso
público e pagar um salário digno ao médico porque os
salários estão muito baixos.
Quanto ganha em média?
FERNANDO COSTA: No Estado está em torno de mil e
trezentos reais por 20 horas. É muito baixo. Para ter um
salário digno, o médico deveria ganhar igual ao que
ganham os magistrados, em torno de quinze a dezesseis
mil reais.
A proposta do senhor, então, é pela criação de novos
Centros de Especialidades e melhores salários para os
médicos...
FERNANDO COSTA: E condições de trabalho. Por
exemplo, existem poucos especialistas na Rede. Então
para ele se fixar lá tem que ter boas condições de
72
trabalho com equipamentos apropriados, exames
especializados...
O CRM tem percebido que os médicos não estão
querendo trabalhar na Rede Pública?
FERNANDO COSTA: Não é que não estejam querendo.
As condições de trabalho e os salários é que não são
atrativos. O médico acaba preferindo ficar no
consultório onde tem mais retorno.
O senhor acha que o orçamento destinado atualmente
à Saúde Pública deva ser ampliado?
FERNANDO COSTA: Já existe um projeto tramitando
no Congresso definindo um recurso fixo para a Saúde. A
União com 10% das receitas correntes, os Estados com
12% e os Municípios com 15%. Isso no mínimo. Mas acho
que deveria ser mais, em torno de 20% para os Estados e
25% para os Municípios.
O que é aplicado hoje no Espírito Santo é pouco?
FERNANDO COSTA: Já melhorou, era muito menos.
Mas precisa avançar mais. *
*O Espírito Santo, atualmente, aplica o mínimo definido
pela Constituição que é de 12%, segundo informação da
Secretaria Estadual de Saúde.
73
O senhor defende que o Estado compre serviços
particulares para complementar a Rede Pública?
FERNANDO COSTA: Sim, o Estado deve garantir a
Rede complementar, com os hospitais filantrópicos e
privados. Só os hospitais públicos do Espírito Santo não
atendem à demanda. Os filantrópicos, sozinhos, já
atendem a 70% dos pacientes do SUS **. Acho que tem
que ter essa Rede complementar.
Como Presidente do CRM como o senhor vê a situação
dessas pessoas que passam tanto tempo na fila,
muitas vezes tendo de dormir ao relento e nem
sempre conseguindo uma ficha?
FERNANDO COSTA: Eu vejo que essas pessoas estão
sofrendo humilhação e descaso. A população paga
impostos caros e tem o direito de ter um leito decente
nos hospitais e não ficar sendo atendida nos corredores.
Nós queremos o fim do atendimento médico à pacientes
nos corredores dos hospitais públicos.
**Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, os
filantrópicos atendem 70% das cirurgias eletivas. 90%
das urgências e emergências são atendidas nos hospitais
estaduais.
74
Há quanto tempo o senhor vê essa dificuldade na
Saúde Pública?
FERNANDO COSTA: Eu vou fazer 25 anos de formado.
Desde que eu entrei para trabalhar no Serviço Público,
nós estamos lutando para melhorar as condições de
trabalho, melhoria de atendimento à população e um
salário digno para o médico. Ou seja, em torno de 25
anos.
A cada nova eleição, o senhor – que é do Setor - tem
esperança que as coisas mudem?
FERNANDO COSTA: A esperança sempre existe
porque temos que pensar positivamente. E eu espero que,
como este ano os governos já estão aplicando pelo menos
o mínimo na Saúde Pública, possam, em breve, aumentar
o orçamento para área.
75
DESAFIO 4
REMÉDIOS DE ALTO CUSTO
É uma cena triste e rotineiramente repetitiva. É só
passar na porta das farmácias dos Centros Regionais de
Especialidade na Praça Costa Pereira, em Vitória ou na
Glória, em Vila Velha, além das farmácias municipais, e
ouvir as reclamações. Remédios de fornecimento
obrigatório por parte do Estado, do Governo Federal e
dos Municípios faltam nas prateleiras com muita
freqüência. E a cada vez que isso acontece, nasce um
drama: é um tratamento que corre o risco de ser
perdido, um transplante que pode caminhar para a
rejeição ou mesmo para o risco de morte. São
medicamentos de alto custo, tecnicamente chamados de
“excepcionais” que a maioria dos pacientes não tem
condições de comprar. Exemplos são os medicamentos
contra a Esclerose Múltipla, Hepatite, Alzheimer,
Parkinson, antibióticos de última geração, hormônio de
crescimento, artrites graves e colesterol alto.
Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, o
Estado fornece aproximadamente 200 tipos de
medicamentos diferentes que atendem a 210.692
pessoas. Uma despesa, que só no primeiro semestre de
2006 chegava a R$ 50 milhões de reais. Até o ano
passado a despesa era menor: R$ 44 milhões durante
todo o ano, atendendo a 148 mil pessoas. A explicação
para o enorme crescimento da demanda é uma mudança
76
determinada pelo Ministério da Saúde: agora as
farmácias públicas são obrigadas a aceitar receitas
particulares. Apesar do elevado valor despendido, o
serviço prestado é insatisfatório. Passam-se os anos,
mudam os governos e continua o sofrimento de quem
depende dos remédios da Rede Pública.
Muitas vezes, a Justiça é acionada para garantir o
fornecimento do remédio. E nestes casos o Estado se vê
obrigado a fornecer remédios que nem mesmo fazem
parte da lista dos 111 itens padronizados pelo Ministério
da Saúde. Em agosto de 2006, o Espírito Santo estava
fornecendo 117 itens de alto custo comprados por
demandas judiciais e ofíciais, as chamadas “situações
especiais”, ou seja, um número de itens superior ao da
lista padronizada. Já as Prefeituras são responsáveis
pelo fornecimento de remédios de Atenção Básica, em
complemento ao atendimento prestado nos Postos de
Saúde municipais. A prefeitura de Vitória, por exemplo,
gasta de 4 a 5 milhões de reais por ano, oferecendo
remédios para pressão, diabetes, saúde da família,
Tuberculose, Hanseníase, antibióticos mais simples e
anticoncepcionais. Para 2007 haverá novo incremento no
montante de recursos para a compra de medicamentos
de Atenção Básica, passando o custo per capita/ano de
R$ 2,00 para R$ 3,65, num financiamento compartilhado
entre os governos municipais, estadual e federal,
conforme garantiu a Secretaria Estadual de Saúde. São
medidas para tentar reduzir o tamanho do problema.
77
A falta de medicamentos tem sido tema de constantes
denúncias através da imprensa. Alguns depoimentos
relatados entre o final de 2005 e 2006 dão uma amostra
do drama.
“Dona Alzira de Souza, pensionista, mora em
Cariacica e pega dois ônibus para chegar bem cedo à
farmácia do SUS na praça Costa Pereira. Ela buscava
remédio para colesterol alto, mas voltou para casa de
mãos vazias, mais uma vez”.
Mesma situação a do “aposentado Rômulo Campos,
de 73 anos, que precisava do medicamento Atorvastatina
que custa nas farmácias comerciais R$ 105,00”.
“A estudante Lorena Valentin tem Esclerose
Múltipla. Seus sintomas, no dia que procurou a farmácia
do SUS, eram dormência nas pernas e tremedeira nas
mãos. Alguns dias ela acorda sem enxergar. Esses
sintomas só aparecem em horas como essa, em que o
remédio está em falta. Seu medicamento, o Aorez, custa
R$ 5.000,00”.
“Marlon, de quatro anos, tem crises convulsivas e
corre risco de morte. O remédio custa mais de R$
300,00 a caixa. A falta do medicamento deixa a mãe,
naturalmente, desesperada”.
O mesmo problema tem o jovem “Vinicius, de 14
anos. Sem remédio, a crise convulsiva é diária. A mãe,
Carmem Thofoli, sente-se impotente diante da situação”.
“A merendeira Marilza de Souza Abreu saiu às 4
da manhã de Conceição do Castelo e chegou a Vitória às
78
7. Veio em busca do Entropim, hormônio do crescimento,
de alto custo. Cada ampola, de uso diário, custa R$
150,00. Não há prazo para chegar o remédio. Ela volta
para a casa com o dia perdido e sem o remédio para o
filho”.
79
Luis Carlos Reblin é formado em Enfermagem pela
Ufes, especializou-se pela Escola Nacional de Saúde
Pública e concluiu mestrado na mesma área pela USP.
Além da formação acadêmica e da experiência prática,
tem grande conhecimento na gestão da Saúde Pública. É
Secretário de Saúde do município de Vitória e, há 27
anos, é funcionário de carreira da Secretaria Estadual
de Saúde onde desempenhou a função de
Superintendente de Ações de Saúde do Estado, entre
2003 e 2004, tendo sob sua gerência o planejamento da
distribuição de medicamentos de alto custo para as
farmácias do Centro Regional de Especialidades. Nessa
entrevista ele defende um novo modelo de compra para
os medicamentos e diz que a solução para o problema
depende menos de dinheiro e mais de gerenciamento.
Por quê falta remédio na Rede Pública com tanta
freqüência?
Luis Carlos Reblin: Principalmente porque há uma
deficiência quando nós estimamos a população que
precisa utilizar esses medicamentos. Não há como
calcular exatamente a quantidade de pessoas que utiliza
os medicamentos excepcionais.
80
Como é um problema que se repete há tantos anos,
por que não se tem essa estimativa e se garante esse
abastecimento permanente nos remédios utilizados?
Luis Carlos Reblin: Na verdade, nós temos um elenco
importante de medicamentos excepcionais. São mais de
220 itens. Agora, a população muda muito o seu perfil. As
doenças crônico-degenerativas, aquelas que acometem as
pessoas com avançada idade, elas estão se apresentando
cada vez com mais propriedade... São elas que vão definir
o nosso perfil epidemiológico daqui pra frente. Então, o
grupo de pessoas que precisa utilizar medicamento
excepcional cresce a cada ano e é difícil estimar esse
crescimento.
A falta dessa periocidicidade pode prejudicar
tratamentos e cirurgias já efetivadas?
Luis Carlos Reblin: A utilização do medicamento de
maneira continuada, principalmente para aqueles
pacientes que vão se utilizar para o resto de sua vida de
determinados produtos é essencial. A falta, a
descontinuidade da utilização do medicamento, traz
prejuízos sérios para a saúde dessa pessoa.
81
É um problema que merece uma atenção maior por
parte dos gestores públicos e dos políticos?
Luis Carlos Reblin: Com certeza, a utilização de
medicamentos por parte da população, merece uma
atenção especial por parte de todos os governantes. Uma
atenção para a utilização adequada, para a vigilância
sanitária sobre os medicamentos e também para a
utilização indiscriminada de medicamentos.
E o que deveria ser feito, qual a proposta do senhor
para resolver o problema da falta dos medicamentos?
Luis Carlos Reblin: Em primeiro lugar cada um tem que
definir qual é a sua base, qual o tamanho da população
local, e que tipos de medicamentos essas pessoas
precisam utilizar. Isso é feito através de uma relação de
medicamentos, uma relação -municipal ou estadual- de
medicamentos. Isso requer a reunião de especialistas
para discutir quais são as doenças que mais afetam as
pessoas, que tipos de medicamentos resolvem esses
problemas. E aí disponibilizar esses medicamentos. A
outra questão importante é a definição dos protocolos.
Protocolo significa dizer que para cada doença, para cada
agravo, há uma indicação de determinados medicamentos
a serem utilizados. E treinar os profissionais da área
pública para a utilização desses protocolos. Por fim,
manter o abastecimento, porque a grande questão do
82
abastecimento hoje seria um registro de preços a nível
nacional.
Como funciona esse registro de preços?
Luis Carlos Reblin: Registro de preços é uma modalidade
de compra usada para qualquer item de custeio, e pode
ser feita também com medicamento. Nós podemos
estabelecer um registro de preços nacional, estadual ou
mesmo a nível municipal. É basicamente um edital em que
se publica o interesse de um conjunto de compradores ou
do Estado em adquirir medicamento. O fabricante ou
fornecedor desse medicamento registra o preço dele no
processo e aí toda vez que o Estado precisar comprar um
remédio ele adquire através desse processo.
Isso deve ser implantado ou melhor gerenciado?
Luis Carlos Reblin: Isso deve ser implantado porque no
Espírito Santo, em especial, nós ainda não temos o
registro de preços na área de medicamentos para que
todos possam fazer a adesão.
Tornaria a compra mais ágil?
Luis Carlos Reblin: É um processo muito mais ágil de
aquisição e permite a reposição imediata dos itens que
vierem a diminuir no estoque ou mesmo a faltar em
determinado momento.
83
Quer dizer, então, que uma solução para esse
problema de falta de remédios de alto custo não
passa necessariamente pela falta de dinheiro. É mais
uma questão de gerenciamento?
Luis Carlos Reblin: É um problema de gerenciamento
porque os processos de compra na forma como são feitos
hoje, dificultam a reposição. O registro de preços
facilita a reposição dos medicamentos.
Gostaria que o senhor esclarecesse um pouco mais o
processo atual de compras e como deveria ser
feito...
Luis Carlos Reblin: Hoje é um processo que segue
através do pregão (uma espécie de leilão na internet). É
um processo de compra de fornecimento de um
item.Então, você faz uma agenda programada para
determinado período, ou seja, compra de uma só vez. Já
o registro de preços facilita muito porque a todo o
momento em que houver um aumento da demanda, eu vou
ao registro de preços e retomo essa demanda, busco
aquilo que está faltando para a Prefeitura ou para o
Estado, enfim.
84
E qual é a dificuldade de se implantar esse sistema?
Luis Carlos Reblin: Esse é um modelo novo que alguns
Estados tem utilizado e que algumas capitais, também. A
dificuldade é que os sistemas internos das
administrações públicas, de Estado e de Municípios,
ainda não estão adequados a esta forma. Mas estamos
buscando essa adequação porque esse é um tema
fundamental que afeta o cotidiano de todas as pessoas
85
Nossa segunda entrevistada apresenta um ponto de vista
complementar a essa discussão. Patrícia Luzia Ton,
Farmacêutica e Bioquímica, é a responsável por uma
experiência pioneira no Estado. Ela atua como
Coordenadora da Farmácia Popular de Cariacica,
inaugurada em abril de 2006, através de um convênio do
Município com o Ministério da Saúde e a Fundação
Oswaldo Cruz. A farmácia atende clientes de todo o
Estado com medicamentos vendidos a preços de custo.
Os preços são até 80% mais baratos que os do mercado.
Atualmente a Unidade é procurada por aproximadamente
400 pessoas por dia e oferece 107 itens como: remédios
para pressão, Diabete, Cardiopatia, Colesterol, pílulas
anticoncepcionais e até preservativos.
Qual tem sido a experiência da Farmácia Popular aqui
em Cariacica?
Patrícia Luzia Ton: Tem sido uma experiência boa. Tem
atendido às expectativas do Município, da Fundação
Oswaldo Cruz e do Ministério da Saúde.
E qual tem sido a satisfação de quem procura a
farmácia?
Patrícia Luzia Ton: Agradar a população é uma questão
sempre complicada. Mas acredito que temos alcançado o
objetivo e atendido de forma satisfatória.
86
Há um problema crônico hoje na Rede Pública que é a
frequente falta de alguns medicamentos distribuídos
pelas farmácias públicas do SUS e dos municípios.
Você teria alguma proposta nesse sentido?
Patrícia Luzia Ton: Uma proposta que já funciona: a
Farmácia Popular. Ela veio para auxiliar a Unidade de
Saúde, com medicamentos que nem sempre estão
disponíveis. Na Farmácia Popular a população pode
encontrar o medicamento que precisa, não de graça, mas
de uma forma bem mais barata que o preço convencional
do mercado. Acho que é uma maneira de resolver o
problema, pelo menos em parte. Minha proposta seria a
criação de novas unidades da Farmácia Popular.
Os clientes que vocês atendem aqui são os mesmos
que freqüentam as farmácias públicas?
Patrícia Luzia Ton: Também, mas não só. Temos clientes
que vem das farmácias do SUS e também outros que vem
das farmácias particulares. Temos receitas da Rede
Pública e da rede privada. Acredito que seja 50% de
cada uma dessas duas origens.
87
Considerando os tipos de medicamentos que são
vendidos aqui, a criação de novas farmácias populares
seria realmente uma solução de parte do problema?
Patrícia Luzia Ton: Sim, seria um complemento.
Principalmente no acesso da população ao medicamento
básico e essencial. A Farmácia Popular foi criada com
esse objetivo.
Pelo que você pode verificar nessa primeira
experiência, qual seria o reflexo na Saúde Pública da
criação de novas Unidades da Farmácia Popular?
Patrícia Luzia Ton: O tratamento das patologias através
de uma medicação adequada e de qualidade diminui a
lotação nos hospitais públicos. Automaticamente, você
garante melhor saúde e melhor atendimento para aqueles
que realmente precisam dos hospitais. Evita que você vá
ao médico sem necessidade. Implantar Farmácia Popular
é um dos caminhos para isso. Cariacica é o primeiro
município do Estado a ter uma Farmácia Popular ligada ao
Ministério da Saúde e estamos conseguindo um bom
resultado. Acredito que outros municípios deveriam
partir para isso também. É um assunto que eu gostaria
que fizesse parte das propostas de governo de todos os
gestores públicos sejam do Estado ou dos municípios.
88
DESAFIO 5
ESTRADAS
“O acidente aconteceu no município de Fundão e
envolveu um Escort, um caminhão e um Pálio. Três
pessoas morreram no local, entre elas a juíza Cristiane
Lobo...”. Assim começou mais uma, entre as muitas e
rotineiras reportagens, que tratam de acidentes
gravíssimos nas rodovias que cortam o Espírito Santo.
Um drama que, infelizmente, faz parte da rotina do
Estado, e já não provoca reação de surpresa na
população.
O Espírito Santo é cortado por dez rodovias
federais, que ultrapassam os 1200 quilômetros se
considerarmos as estradas prontas, em obras e
projetadas. Destas, apenas as quatro com maior
movimento são fiscalizadas pela Polícia Rodoviária
Federal, numa extensão de 763,5 km. São elas: a BR 101
que tem 458,4km, corta o Estado de Norte a Sul,
atravessa 20 municípios e, mais do que isso, é o principal
eixo de ligação do sul ao norte do Brasil; a BR 262, com
195,9km dentro do Espírito Santo, é a principal ligação
do Estado do Espírito Santo com Minas Gerais, além de
ser a grande via rodoviária de escoamento do corredor
centro-leste que segue até a divisa com a Bolívia; a BR
259, com 106,3km, sai de João Neiva, passa por Colatina,
Baixo Guandu e segue por Minas Gerais; e a BR 601, com
apenas 2,9km, mais conhecida como a “Reta do
89
Aeroporto”, em Vitória. Além destas, segundo o DNIT,
órgão responsável pela manutenção das estradas
federais, ainda há a BR 393 (Cachoeiro/Muqui); BR 342
(Nova Venécia/Ecoporanga); BR 381 (São Mateus/Nova
Venécia); BR 484 (Itarana, Afonso Cláudio); BR 482
(contorno de Cachoeiro de Itapemirim); BR 447
(projetada para ir da BR 101 até o Porto de Capuaba).
Todas estas as rodovias apresentam problemas de
conservação.
A rodovia do Contorno –trecho da BR 101- é a
mais perigosa do Estado, sendo apontada como o
principal “gargalo” do transporte rodoviário no Espírito
Santo. Ela é assim chamada por fazer o contorno de
Vitória, facilitando a movimentação de quem vem da
Bahia ou do Rio de Janeiro, ligando o município da Serra
a Cariacica, ao longo de 26km. Este trecho apresenta um
quadro de acidentes diário, geralmente de alguma
gravidade. De primeiro de janeiro a trinta e um de
outubro de 2006, aconteceram ali 401 acidentes, com 16
mortos e 227 feridos, segundo os dados da Polícia
Rodoviária Federal. Ou seja, 1,3 acidentes por dia nesse
período. O movimento na rodovia do Contorno cresce 5%
ao ano, com uma média de 15 mil veículos/dia, podendo
chegar a 25mil nos dias de pico. Especialistas ressaltam
que o movimento desse trecho da BR 101 é quase duas
vezes superior ao que seria ideal. A estrada ficou
pequena, tem poucos pontos de ultrapassagem e é
cercada de bairros residenciais.
90
Dados da Polícia Rodoviária Federal apontam que,
entre janeiro e outubro de 2006, ocorreram nas quatro
rodovias fiscalizadas 4.697 acidentes, com 2.754 feridos
e 217 mortos. Mais de 50% dos acidentes aconteceram
na BR 101.
Nas rodovias estaduais, segundo os dados da
Polícia Militar, foram 1460 acidentes entre janeiro e
novembro de 2006, com 45 mortos e 891 feridos.
Quando os primeiros dados para este estudo foram
apurados, em junho do mesmo ano, havia 870 acidentes,
com 30 mortos e 540 feridos. Ou seja, à medida que as
informações chegavam, mais 15 pessoas morreram e
outras 351 foram feridas nas rodovias estaduais.
Segundo a Secretaria Estadual de Transportes,
em janeiro de 2003, a maior parte das estradas
estaduais era ruim ou regular. Já no final de 2006, a
situação já era inversa, de acordo com os dados oficiais
(veja na tabela a seguir). Ainda assim, dos 5200Km de
rodovias estaduais no Espírito Santo, metade não tem
asfalto.
91
DEMONSTRATIVO 5
QUALIDADE DAS ESTRADAS ESTADUAIS
SITUAÇÃO Janeiro/2003 DEZEMBRO/2006
Bom estado 25% 57%
Regular 34,6% 31,2%
Mau estado 40,4% 11,8% Fonte: Secretaria Estadual de Transportes
Se fizermos uma projeção das estatísticas de
acidentes nas estradas que cortam o Espírito Santo,
sejam elas administradas pela União ou pelo Estado,
teremos um número de mortos anual próximo de 290
pessoas, o que dá uma média de 24 mortes por mês.
É bom destacar que a estatística aponta como
mortos apenas os óbitos registrados no momento do
acidente, o que exclui o grande número de vítimas que
vêm a falecer nos hospitais. Uma questão que até merece
melhor discussão, posto que maquia a verdade dos
números, amenizando a dimensão das tragédias
provocadas por essas estradas
.
92
Wagner Chieppe é Presidente do Sindicato de
Transportadores de Cargas, no Espírito Santo. Mais do
que isso, é um empresário com 35 anos de experiência
em transporte rodoviário, diretor de uma das maiores
empresas do ramo no País, a Águia Branca. Conhecedor
da logística que envolve passageiros, cargas,
funcionários, equipamentos e estradas, Wagner Chieppe
diz que a maior causa dos acidentes é a ultrapassagem
forçada e que isso ocorre porque os motoristas se
estressam e perdem a paciência. Nessa entrevista ele
elogia o plano de recuperação das estradas estaduais e
faz críticas ao modelo que está sendo proposto para a
concessão da BR 101. O empresário alerta para a
tragédia: “não se pode mais perder pessoas e valores nas
estradas”.
Qual o principal problema das estradas que cortam o
Espírito Santo?
Wagner Chieppe: Nós temos dois problemas sérios que
é a BR 101 e a BR 262. O maior número de acidentes está
acontecendo nestas rodovias, e elas têm como
característica um traçado já superado, para uma
demanda de veículos mais leves, sendo que hoje nós
temos equipamentos muito mais pesados, e um tráfego
muito maior. O último investimento que houve no Espírito
Santo foi no final da década de 60. Estamos com quase
93
40 anos sem nenhum investimento expressivo nas
rodovias, e com aumento de tráfego, principalmente no
Espírito Santo, em razão do crescimento de vários
setores da economia. E isso aumenta a necessidade do
modal rodoviário. Por mais que se queira desenvolver os
outros modais e estão se desenvolvendo, ainda assim,
cada vez mais estamos tendo um aumento de tráfego.
Qual o perfil dessas estradas?
Wagner Chieppe: As Brs federais, como a 101, por
exemplo, são pistas simples que não comportam mais a
demanda, e que sofrem com uma demora muito grande
nos investimentos. É claro que não é um problema só do
Espírito Santo, é um problema do Brasil. Não é de agora
também, é um problema que se arrasta há muito tempo...
Nós empresários apoiamos a criação da CIDE sobre
combustíveis há sete anos, acreditando que aí nós
teríamos uma solução para a falta de recursos. E nós
temos hoje aí, uma geração de oito a nove milhões de
reais para aplicação em infra-estrutura e não estamos
vendo esse recurso aplicado. Aliás, a participação no PIB
tem caído a um valor insignificante o que se aplica em
infra-estrutura. Uma hora falta projeto, outra hora é
problema de obra embargada pelo TCU e quando tem a
verba a obra acaba não saindo por alguma razão
burocrática. Então, nós entendemos que tem que ser
priorizado, não se suporta mais essa quantidade de
acidentes que estamos tendo, perdendo valores,
94
perdendo pessoas. Está difícil conviver com isso. O que
deixa a gente um pouco preocupado é com a falta de
perspectiva que temos para melhorar isso. Essa é uma
dúvida que a gente tem. Quando isso será superado?
Temos tratado desse assunto junto à bancada Federal e
junto ao Governo do Estado que tem se empenhado e
procurado conduzir o processo. Isso está se tornando
uma prioridade de todos aqui no Espírito Santo. No caso
das rodovias estaduais o processo está avançado. Os
recursos estão saindo, têm projetos, estão sendo
lançadas várias obras. Neste aspecto, no âmbito
estadual, a gente observa que a coisa está caminhando
bem. Já no federal o processo está mais atrasado. Claro
que você tem uma burocracia maior para vencer. Mas
precisa ser olhado com mais carinho. Hoje, viajar nas Brs
101 e 262 está se tornando uma opção de risco. Então
isso cria uma situação de stress, de desconforto... Você
percebe, inclusive, até um afastamento dos veículos
menores da pista porque as pessoas parecem estar com
medo de viajar.
As pistas das rodovias estaduais também são
simples...
Wagner Chieppe: São simples, mas são adequadas à
necessidade. Nas vicinais, nas estaduais, você tem um
volume de tráfego menor. O problema delas é o
tratamento do piso, melhoria de acostamento... Você tem
tanto nas federais como nas estaduais, uma questão
95
séria que é a mistura de tráfego. Em muitos trechos as
rodovias tornam-se avenidas e isso cria um impacto
muito grande. O trânsito de longo percurso se confunde
com o de curto percurso, o que é um conflito. Até a
forma das pessoas dirigirem é diferente e isso causa
muitos acidentes. É uma questão que tem de ser olhada
urgentemente. Você tem de ter vias paralelas nestes
acessos para deixar o trânsito de longo percurso
liberado. Mas o que está se vendo é o contrário. Não tem
viaduto, não tem passarela, estão colocando lombadas
eletrônicas, quebra-molas. Isso vai criando uma retenção
muito grande e aumenta o custo econômico do
transporte. Isso é o “Custo Brasil”. Cada vez mais você
tem uma velocidade econômica caindo e a conseqüência é
uma baixa produtividade.
Questões como sinalização e traçados de engenharia
preocupam?
Wagner Chieppe: Sem dúvida, esse traçado da 101 está
completamente fora do padrão. Houve muito
aproveitamento de trechos que já estavam prontos no
passado. Então, nós estamos precisando duplicar a 101 de
ponta a ponta, e a 262, pelo menos, no trecho do Espírito
Santo. No mínimo, do trecho de Venda Nova até Vitória.
Isso tem que ser feito logo. A partir de uma duplicação,
você estará incentivando, no caso da 262, até o turismo.
Isso permitiria uma captação maior de turistas para o
nosso Estado. Na questão da 101, se nós temos esse eixo
96
duplicado, seria também um fator de desenvolvimento do
Estado para o interior. E a partir do momento que você
tem isso aí, tanto no sentido norte como sul, seria muito
mais fácil instalar um fábrica em Linhares, Colatina ou
Cachoeiro. Seria um atrativo. Essas cidades não estão
nada mais distantes, do que Campinas para São Paulo.
Então, nós poderíamos ter essa mesma condição. Uma
estrada dessa, com qualidade, estaria tirando a
concentração do desenvolvimento de Vitória, que está
ficando inchada, e ajudando a distribuir esse
desenvolvimento para o interior do Estado.
Esse assunto tem sido tratado com prioridade pelos
governantes e representantes dos legislativos estadual
e federal?
Wagner Chieppe: Entendo que pelo Espírito Santo, sim.
Nós temos hoje pessoas envolvidas com isso, nós
estamos tendo uma seqüência desde janeiro de 2005,
desde quando se falou em fazer da 101 uma concessão,
começamos a debater esse assunto à exaustão. Temos
sido chamados, foram feitas reuniões em Brasília, então
tem havido um trabalho muito grande. O resultado é
muito baixo, mas temos tentado sim. Há um envolvimento
tanto da classe política quanto empresarial para dar uma
solução a isso. Houve um encaminhamento para uma
concessão. Quando fomos analisar, nós percebemos que o
investimento seria em longo prazo, e que isso poderia ser
um risco. Teríamos uma BR bem pavimentada, bem
97
sinalizada, acostamento bem feito, mas também
estaríamos pagando em seis praças de pedágio um custo
alto, considerando que não teríamos a pista duplicada
imediatamente, que é a nossa maior necessidade. Então,
entendemos que foi melhor sair. Foi positiva a atitude do
Governador de pedir para sair do processo, do lote dois
para o lote três da concessão, e tentar com o Governo
Federal os investimentos necessários para melhorar as
condições de tráfego dessa estrada. A tentativa da
concessão ainda nos trouxe um problema: a Área
Econômica do Governo Federal viu a possibilidade de
transferir esse seu custo para a iniciativa privada, com a
mudança do gestor da rodovia, e considerou que não teria
que fazer novos investimentos. Infelizmente, é assim que
pensa a Área Econômica. Numa hora em que precisaria
investir para que pudéssemos ter um pedágio mais
barato, ela agiu ao contrário. Então, foi melhor ter saído.
Temos de lutar, temos de conseguir os investimentos
para, depois, entrarmos no processo de concessão. Por
mais que isso vá gerar custos, entendemos que é a única
forma.
98
Então qual seria a melhor solução para as estradas
federais e estaduais, para resolver todos os
problemas?
Wagner Chieppe: Nas estaduais, continuar com o Plano
que está aí, para que a gente tenha toda essa malha
Rodoviária Estadual concluída e asfaltada. O que a gente
entende que em breve teremos. Isso está bem
encaminhado e acreditamos no Projeto. Nas federais,
urgentemente, um trabalho muito forte, para que a gente
possa ter a BR duplicada, urgente-urgentíssimo o
Contorno (trecho da BR 101), não esquecendo também do
trecho de Cachoeiro a Linhares. Mas temos de pensar na
Rodovia toda, para que a gente possa ter uma condição
mais confortável de trânsito.
Isso evitaria os acidentes e as mortes que temos
visto com freqüência?
Wagner Chieppe: Sem dúvida. Se você tem uma pista
bem sinalizada, com bom trabalho de acompanhamento
de velocidade, sem dúvida evitaria o que temos aí hoje. A
maioria dos acidentes que tem acontecido na BR é por
ultrapassagem forçada. É a consequência que vem
acontecendo porque as pessoas se estressam, perdem a
paciência e vão se arriscar para ver se conseguem
ultrapassar. Você não consegue entender um País que
quer se desenvolver e tem rodovias como as que nós
temos. Eu acho que elas já estão com o prazo vencido, já
99
cumpriram com o seu papel nas condições atuais. Nós
temos que vencer isso, primeiro como gargalo do
momento e, segundo, pensando no desenvolvimento.
A qualidade nas estradas está bem contemplada na
Agenda Política?
Wagner Chieppe: Sem dúvida já foi contemplada no
Planejamento Estratégico do Estado. Há um espaço muito
grande dedicado à área de logística. E um dos primeiros
pontos que temos lá é exatamente a duplicação da BR 101
e da 262. Então, acho que é uma bandeira importante que
a classe política tem que pegar, defender, para que a
gente possa resolver este impasse. Então, a Bancada
Federal tem que dar uma grande contribuição nisso,
entender melhor o que está no Planejamento Estratégico
do Plano 20-25, quais são as prioridades, e alimentar o
orçamento da União com estes investimentos. Não
podemos deixar passar essa oportunidade. Já é difícil
estando no orçamento, se não tiver contemplado é
impossível.
100
O Engenheiro Rodoviário Mauro Leite Teixeira entende
do setor como poucos. Trabalhou durante 35 anos no
DNER, atual DNIT, onde se aposentou. Na posição de
quem já acompanhou vários Governos, assistiu a criação,
a extinção e a desvirtuação de diversas políticas para o
setor, Mauro Leite acredita que só a vinculação de
impostos para a manutenção de estradas, aliada à
construção de ferrovias, pode superar os atuais
problemas e preparar o país para o futuro. Diz também
que não devemos nos iludir com a promessa de que a
concessão de rodovias para a iniciativa privada será a
solução de todos os males.
Qual a avaliação que o senhor faz da situação das
estradas que cortam o Espírito Santo?
Mauro Leite Teixeira: Eu tenho que analisar estradas
no cenário da matriz rodoviária do País. No Brasil, e no
Espírito Santo não é diferente, há uma predominância do
transporte rodoviário. Praticamente não temos ferrovias.
A decorrência disso é que as cargas tipicamente
ferroviárias são transportadas por rodovias. Citemos
exemplos aqui do Espírito Santo com produtos
siderúrgicos, indústrias e blocos de rochas ornamentais.
Essa carga inadequada na rodovia gera um problema sério
que é o excesso de peso por eixo. Então, a rodovia que é
planejada para durar um determinado tempo, com este
excesso de cargas vai durar até 60% a menos do tempo
previsto. Por exemplo, a rodovia que foi planejada para
101
durar dez anos, vai durar até quatro anos. Outro
problema sério, talvez seja o pior, é a falta de
regularidade de recursos para o setor rodoviário. Nós
temos uma malha que carece de manutenção e
conservação permanente. Isso deveria ser uma atividade
rotineira. Mas como não temos regularidade de recursos
para o setor, acaba sendo feita uma manutenção
precária. Um pequeno buraco em uma rodovia que não foi
consertado logo, acaba virando uma “panela” e
comprometendo até a estrutura do pavimento. Então,
quando você vai fazer uma outra intervenção isso vai
custar, possivelmente, três a quatro vezes a mais, do que
custaria se a intervenção tivesse sido feita na época
correta.
Por que não há essa regularidade na manutenção?
Mauro Leite Teixeira: A malha rodoviária do Brasil foi
construída a partir dos anos 40 até os anos 70, quando
existia o denominado Fundo Rodoviário Nacional. Era um
recurso cobrado no combustível, vinculado a aplicação
nas rodovias. Esse recurso era gerido pelo DNER que o
repassava para os DERs e para os municípios> Você tinha
uma regularidade de recursos e isso permitiu expandir a
nossa malha rodoviária. Quando veio a Constituição de
1988, esse Fundo foi extinto. Foi exatamente quando a
nossa malha estava carecendo de manutenção. A partir
daí, ela ficou dependendo de recursos do orçamento da
União e de emendas de parlamentares. Os recursos
102
passaram a não ser regulares. Isso causou um
desestímulo para o setor. Os problemas das rodovias no
Espírito Santo e no Brasil, vêm de longe, não são
problemas que estão acontecendo agora, são de algumas
décadas.
O senhor está propondo que um imposto já existente
seja vinculado à manutenção das rodovias ou propondo
a criação de um novo imposto?
Mauro Leite Teixeira: Veja bem, eu estou citando o
caso do Fundo Rodoviário Nacional que existiu até a
Constituição de 88. Mais recente foi criado o chamado
recurso da CIDE que é a Contribuição da Intervenção do
Domínio Econômico, um recurso também cobrado no
combustível, mas que não tem a destinação somente para
a estrada. Está previsto na lei que ele deve ser aplicado
na Área de Transporte e na questão ambiental da
exploração de petróleo. Mas, mesmo assim, é um recurso
que está destinado –também- à manutenção de estradas.
A gente defende, tem esperança, de que este recurso
passe a ser disponibilizado regularmente para ser
aplicado no setor e reverter esse cenário.
Essa falta de manutenção justificaria tantos
acidentes e mortes nas estradas como tem ocorrido?
Mauro Leite Teixeira: A experiência de quem trabalha
no setor é que o fator humano é predominante nessa
103
questão. O papel da via é suplantado pelo comportamento
e pela falta de educação do motorista. Um exemplo que
a gente pode citar aqui no Espírito Santo é o que ocorre
na chamada Reta do Aeroporto (Vitória). Lá existem
todas as condições de uma boa via: Tem tangente, tem
defensa, tem ciclovia, não tem interseções e, ainda
assim, é um dos trechos com mais acidentes.
É o conhecido abuso dos motoristas...
Mauro Leite Teixeira: Há uma desinformação. Acho que
o trabalho de educação no trânsito tem que ser
resgatado porque acho que passa por aí a solução do
problema. É claro que a via também vai contribuir. Porque
a via deve dar ao motorista condições de transitar com
conforto e segurança. A via também tem a sua parcela de
responsabilidade, mas a ação do motorista é o
predominante nesse caso.
Se todas as vias dispusessem de pistas duplas, isso
não reduziria significativamente os acidentes já que a
maior parte acontece em função de ultrapassagens
forçadas?
Mauro Leite Teixeira: Não tenho essa convicção. Esse
próprio exemplo da Reta do Aeroporto demonstra isso. A
gente tem visto acidentes em locais onde tem pista
dupla, em boas condições, e acidentes graves. Na
Rodovia do Sol, por exemplo, tem havido acidentes
104
apesar de ter as condições de segurança e conforto
adequadas. Então eu não tenho essa convicção.
Raciocinando com a realidade econômica brasileira, nós
não temos condições ainda de ter muitas estradas com
pistas duplas. Acho que o grande desafio hoje é você
manter as rodovias que já temos e ampliar,
evidentemente, onde for possível.
Retomando a questão do motorista, o senhor acha que
o álcool tem influência grande nas estatísticas de
acidentes?
Mauro Leite Teixeira: Perfeito, perfeito. Até gostaria
de citar dois fatos. Primeiro, acho que isso é um
subproduto da nossa sociedade de consumo. Quando você
liga a televisão para ver a Copa do Mundo ou o
Campeonato Brasileiro, os grandes patrocinadores são as
indústrias de Cerveja. E não vê um alerta para o
motorista não usar o álcool quando estiver dirigindo. Não
tem esse alerta. Acho que é uma questão a ser
trabalhada, onde cabe até uma legislação. Mas cito um
exemplo positivo: o Detran do Espírito Santo, com essa
campanha Madrugada Viva. Eu mesmo fui abordado no
trecho de Guarapari para Meaípe, por uma equipe do
Detran distribuindo uns panfletos educativos, alertando
que não se deve usar álcool quando se está dirigindo.
Achei isso extremamente positivo.
105
Privatização ou concessão de rodovia é uma solução?
Mauro Leite Teixeira: Essa é uma questão que a gente
tem que tentar avançar, mas não devemos nos iludir com
essa solução. No mundo inteiro a concessão de rodovias –
o termo certo é concessão porque a rodovia é um bem
público e não pode ser privatizada, ela é concedida à uma
empresa para fazer a manutenção ou ampliação durante
um período – contempla de 3 a 5% da malha. Só é
passivo de ser fazer concessão nas rodovias que tem
grande volume de tráfego. Então, é uma solução, mas é
uma solução tímida para o tamanho do problema que nós
temos.
E qual a solução que o senhor vê para as vias nas
áreas urbanas?
Mauro Leite Teixeira: Esse é um outro grande desafio
no Brasil. Hoje a via pública é quase toda ocupada pelo
carro particular. É um desafio você tentar democratizar
o espaço da via pública. Seja através do incentivo ao
transporte coletivo, seja através do incentivo ao
transporte não motorizado. Você tem que implantar
ciclovias, calçadas para que as pessoas possam transitar
com conforto e segurança. Tentar mudar um pouco esse
comportamento que temos aí hoje. Acho que o
transporte não motorizado já é mito usado hoje,
106
pesquisas demonstram isso. O Poder Público, tanto
Executivo quanto o Legislativo, tem que ter a
preocupação de criar as condições para o transporte não
motorizado.
E qual a conseqüência quando há uma mistura da via
pública urbana com a rodovia, como é o caso daquele
trecho da BR 101 na Rodovia do Contorno?
Mauro Leite Teixeira: Aquela Rodovia do Contorno já
está há um tempo precisando aumentar a sua capacidade.
Precisa até duplicar aquela via. Porque ela tem cargas
pesadas, passa em zonas semi-urbanas que possuem
conflitos com bairros populosos. Talvez seja um dos
principais problemas a ser solucionado pelos Governantes
e as pessoas envolvidas com o setor.
A questão das estradas deve ser um tema obrigatório
na agenda nacional?
Mauro Leite Teixeira: Com certeza, eu não diria nem só
estradas. A infra-estrutura do País como um todo deve
ser um tema imediatamente pautado. A responsabilidade
direta é do Executivo mas o legislativo também tem a
sua ação nesse setor. Como eu falei no início, os recursos
muitas vezes não são liberados, dependem de emendas
de parlamentares. Acho que o parlamentar tem que ter
essa visão dos problemas do setor e tentar contribuir
para a solução.
107
Resumidamente então, qual a proposta que o senhor
deixa?
Mauro Leite Teixeira: Acho que temos de perseguir
duas questões. Uma é a de disponibilizar a regularidade
de recursos para o setor. Sem essa regularidade nós não
teremos condições de manter as nossas estradas em
condições adequadas. A outra é a de tentar contemplar
também a ampliação da nossa malha ferroviária. Aqui no
Espírito Santo eu até vejo com bons olhos a disposição
da sociedade e do Governo do Estado de implantar o
ramal ferroviário sul: de Vitória até Cachoeiro de
Itapemirim e, no futuro, até o Rio de Janeiro.
Com essas duas medidas a situação no futuro será
melhor de forma significativa?
Mauro Leite Teixeira: Sim, nós estaremos perseguindo
a solução. Mas não tenho ilusão. Acho que a solução não é
de um governo só. Essa deficiência surgiu em algumas
décadas e, portanto, teremos de gastar também algumas
décadas para recuperar. Mas tem que ter uma ação
permanente e firme nesse sentido. E com certeza, é
prioridade.
108
DESAFIO 6
Imprudência no trânsito
No desafio anterior sobre as estradas,
deparamos com muitas respostas que nos transportaram
a uma outra questão, seguindo no mesmo destino, mas
por outras vias. Não há como falar dos acidentes e
mortes nas estradas sem citar a responsabilidade dos
motoristas que causam danos a si, às suas famílias e
sociedade.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA) revelam os custos financeiros dos
acidentes automobilísticos no Brasil. Informações ainda
de 2004 mostram que, somente nas estradas federais
que passam pelo Espírito Santo, o custo dos acidentes
chega a R$ 348 milhões e, nas estaduais, a R$ 109.3
milhões. No país inteiro esse custo é calculado em R$ 10
bilhões por ano. O cálculo é baseado nos serviços de
saúde como ambulância, hospitais, médicos,
fisioterapeutas, exames, remédios, perda da produção (o
trabalhador fica afastado do trabalho), danos ao
patrimônio que são os postes derrubados, as muretas
arrancadas, as fiações, gradis e todos os outros
equipamentos públicos que o motorista encontra pela
frente e leva ao chão. São mortos, feridos e prejuízos
espalhados por todas essas estradas.
Na guerra do trânsito é preciso desarmar os
motoristas. Especialistas são unânimes em defender
109
maior rigor na emissão e renovação das Carteiras de
Habilitação, a fiscalização efetiva sobre as
irregularidades cometidas nas ruas e estradas e o
combate, sem fronteiras ao uso de álcool pelos
motoristas. Estas são as ferramentas que, aliadas à
educação no trânsito, podem promover a paz e evitar
mais vítimas.
Um ponto positivo vem sendo desenvolvido pelo
Detran no Espírito Santo em parceria com o Batalhão de
Trânsito da Polícia Militar. O programa “Madrugada
Viva”, criado em 2004, já se desdobrou em dois outros, o
“Montanha Viva” e o “Praia Viva”. O programa ganhou em
2006 um prêmio nacional do DENATRAN para trabalhos
voltados à educação no trânsito. Nas abordagens, os
motoristas fazem o teste do bafômetro e, se constatada
a embriaguez, têm a carteira recolhida e pagam multas.
A Legislação estabelece que a embriaguez pode
suspender a habilitação do motorista por um período de
quatro a doze meses e, em caso de reincidência,
suspensão de até dois anos.
Já um ponto negativo, de iniciativa nacional, é a
nova redação do Código de Trânsito Brasileiro, que exclui
o crime de trânsito da condição de homicídio doloso
eventual. Antes da alteração, se o motorista embriagado
fosse o responsável por um acidente que resultasse em
morte, poderia ser condenado por até vinte anos de
prisão. O entendimento era de que, embora eventual e
sem intenção de matar, o motorista assumiu o risco
daquela situação quando optou por beber. Com a mudança
110
no texto, as prisões – que já eram raras - já não
ocorrem. E as penas mais comuns têm sido a prestação
de serviços comunitários e o pagamento de cestas
básicas.
Segundo a Polícia Rodoviária Federal, mais de 90%
dos acidentes ocorridos nas rodovias federais no
Espírito Santo são causados pelo desrespeito às Leis de
Trânsito, principalmente o excesso de velocidade e a
ultrapassagem proibida. Considerando isso, temos aí,
então, ao lado da conservação, desenho e sinalização das
estradas, um outro grande desafio: a imprudência dos
motoristas. Como controlar e impedir esses abusos?
111
A Médica Maria Cristina Santos de Carvalho é
Presidente da Associação de Medicina do Tráfego, no
Espírito Santo (ABRAMET), que estuda as causas dos
acidentes de trânsito. Especializada em Medicina do
Tráfego, um ramo da Ciência Médica, Maria Cristina é
Médica examinadora e perita de provas dos futuros
motoristas. Ela conhece com detalhes a forma como o
álcool atua no comportamento do motorista. Acha que o
Código de Trânsito deveria ser mais rigoroso e punitivo.
Ela não tem dúvidas de que a decisão de usar álcool não
pode ser pessoal: “beber e não dirigir é uma
responsabilidade social”.
Qual o peso da imprudência dos motoristas quando
falamos em acidentes e mortes nas vias urbanas e
estradas?
Maria Cristina Carvalho: Temos que começar lembrando
que o álcool é responsável por 61% dos acidentes
automobilísticos. E, além disso, o uso abusivo do álcool
está relacionado às principais causas de mortalidade
como, por exemplo, alguns tipos de Câncer, Hipertensão
arterial, Diabetes... Mas ele ganha mais impacto por
mortes violentas oriundas de acidentes automobilísticos.
112
O álcool é fator predominante nos casos em que há
falha humana nos acidentes?
Maria Cristina Carvalho: Certamente. Temos que
analisar que precisamos melhorar a educação no trânsito,
a reeducação do condutor de veículo. Precisamos também
melhorar a fiscalização e a legislação.
O que leva o motorista a ser tão imprudente, dirigir
alcoolizado, de maneira inadequada ao trânsito? É
falta de preparo já a partir da primeira habilitação?
Maria Cristina Carvalho: Nós temos de levar
informação científica para a sociedade em geral. Não há
uma correlação exata entre a quantidade de álcool
ingerida e a quantidade de álcool presente no sangue que
é a alcoolemia. Isso varia de indivíduo para indivíduo e no
mesmo indivíduo.
Por que varia?
Maria Cristina Carvalho: Vou citar alguns exemplos.
Depende da capacidade do fígado de metabolizar o
álcool, depende da velocidade com que essa bebida
alcoólica é ingerida, depende da velocidade do
esvaziamento gástrico, ou seja, do estômago. Há
variações com relação à sexo e idade. Pelo teor alcoólico
da bebida ingerida, pela combinação do álcool com
medicamentos, drogas ilícitas e, muito importante, pela
113
massa corporal. Então, nós temos como exemplo dois
indivíduos, um com cinqüenta e o outro com cem quilos.
Se estudarmos estes dois, dando a mesma dosagem de
álcool para ambos, vamos ver que o de menor massa
corporal está mais suscetível aos efeitos do álcool do
que o que tem maior massa corporal. Então, nós temos
que lembrar à sociedade o seguinte: quanto se pode ou se
deve beber antes de dirigir? O ideal é que não se possa e
não se deva beber antes de dirigir. É aquela nossa
campanha: se beber não dirija, se estiver dirigindo não
beba. A Associação Brasileira de Medicina de Tráfego
trabalha com o limite ideal de alcoolemia, que é ZERO.
Muito embora o limite legal seja de até seis decigramas
de álcool por litro de sangue. Nós temos estudos
científicos que comprovam que 2 decigramas de álcool
por litro de sangue podem diminuir a sensibilidade visual
e a percepção de distância e velocidade. Ou seja, ainda
está no limite legal, não é?
Daí vem o acidente...
Maria Cristina Carvalho: Exatamente. Então ele tem
que saber: se for beber, não deve dirigir. E se estiver
dirigindo não deve beber.
114
A senhora acha que falta fiscalização já que ainda há
tantos casos de motoristas envolvidos em acidentes
por terem ingerido álcool?
Maria Cristina Carvalho: A fiscalização agora tem sido
muito bem feita. Temos campanhas que tem tido efeito
aqui no estado do Espírito Santo. São campanhas inéditas
no País como a Madrugada Viva, Montanha Viva, Praia
Viva. Elas têm reduzido as fatalidades, seqüelas e óbitos
por álcool. Então são campanhas que nós precisaríamos
divulgá-las nacionalmente.
Tecnicamente como se prova que o motorista é
imprudente?
Maria Cristina Carvalho: São três coisas que ocorrem
num acidente, a negligência, a imprudência e a imperícia.
A falha humana está relacionada de 90 a 98% dos
acidentes automobilísticos. E o comportamento é uma
das principais causas da falha humana.
Que tipo de comportamento?
Maria Cristina Carvalho: O álcool afeta negativamente
três aspectos no que se concerne à direção veicular. O
indivíduo pode perder a autocrítica e fazer coisas que
normalmente ele não faria. Até a sobrevivência dos
envolvidos tem a ver. Para um mesmo acidente nós
podemos ter maiores seqüelas em quem usou bebida
115
alcoólica do quem em quem não usou. Afeta também o
desempenho, na medida em que pode provocar
relaxamento, melhora do humor, diminuição dos reflexos,
diminuição da percepção de distância e velocidade,
redução da coordenação motora, déficit de atenção,
tonturas, perda do equilíbrio, visão dupla, excitação,
sonolência, coma e até óbito.
Diante desse quadro, qual a opinião da Associação
diante das mudanças que foram feitas na lei,
abrandando a pena para os motoristas que provocam
acidentes?
Maria Cristina Carvalho: Nós observamos que as
mortes violentas são provocadas muitas vezes por armas
de fogo, por armas brancas, mas, infelizmente, os
veículos automotores também estão provocando mortes
violentas com um grau muito elevado. O Brasil é um dos
campeões mundiais por acidentes automobilísticos. Com
relação à legislação, o crime de trânsito tem que ser
entendido da seguinte maneira: até que ponto o indivíduo
que usou bebida alcoólica está previamente ciente de que
ele pode vir a ter essas alterações de que nós falamos?
Até que ponto ele é responsável pelo acidente? Ele teve
a intenção de provocar o acidente com óbito, com
seqüela? Até que ponto nós poderíamos classificar esse
crime de trânsito como um homicídio culposo? Ele já não
seria doloso? Certamente há uma diferença com relação
aos crimes de trânsito, mas nós gostaríamos que os
116
legisladores fizessem valer mais as leis e repensassem
sobre a questão do crime doloso, do homicídio doloso
para os crimes de trânsito.
A senhora acha que esse assunto tem sido tratado
com seriedade por parte dos órgãos responsáveis?
Maria Cristina Carvalho: Pode melhorar. Os acidentes
estão aumentando, estão sendo banalizados, a sociedade
já está em descrédito com relação à punição. Nós temos
que trabalhar todos os segmentos: a educação que
começa na escola e na família e a re-educação do
condutor que é muito mais complicada. Nós temos a
fiscalização e temos também a punição que deve ser
revista por meio dessa questão legislativa. As leis estão
aí e tem que ter validade. Agora, temos que trabalhar
toda a sociedade. É uma questão que envolve SUS, INSS,
superlota hospitais, é ruim para o condutor, para a
empresa onde ele trabalha, para as famílias, para as
seguradoras, para toda a sociedade. O acidente não é
bom para ninguém. A prioridade é máxima. O acidente
automobilístico tem muita magnitude, muita abrangência.
O prejuízo não é só econômico, é psicológico também.
117
E que tipo de proposta a senhora faria para combater
o problema?
Maria Cristina Carvalho: Investimento na educação do
trânsito e nas escolas. Gostaria que os legisladores
tratassem o crime de trânsito como um delito qualquer.
Certamente cada um tem a sua qualidade e a sua
característica, mas que se fizesse do crime de trânsito
um homicídio doloso.
Isso reduziria o número de acidentes?
Maria Cristina Carvalho: Reduz a impunidade e o
número de acidentes. Então, temos de ter ações bem
articuladas, envolvendo todos os segmentos. É um
problema de saúde pública, vivemos o caos. Um momento
de conturbação no Brasil e, principalmente, no nosso
Estado. E só vamos conseguir resolver isso com ações
bem articuladas. Isso começa pelo exame de habilitação,
a renovação da habilitação, pelo Médico e Psicólogo
perito, pela fiscalização, educação e re-educação.
Precisamos de mais rigor da emissão à cassação das
habilitações. Para determinados tipos de delitos, tem que
haver a cassação da habilitação. Precisamos de rigor. A
sociedade precisa ver as medidas punitivas. É uma
emergência na Saúde Pública.
118
O Coronel da Polícia Militar Jaime de Angeli é
especialista em trânsito na teoria e na prática. Foi o
criador e o primeiro Comandante da Polícia Rodoviária
Estadual, mais tarde transformada no Batalhão de
Trânsito da Polícia Militar. Reformado, é Professor de
Segurança no Trânsito em uma faculdade de Vitória.
Nessa entrevista, de Angeli surpreende dizendo que, do
ponto de vista do motorista imprudente, muitas vezes
uma pista com buracos pode ser mais segura do que uma
totalmente lisa. E é duro quando fala da falta de punição
ao motorista infrator: “as pessoas acham, as autoridades
principalmente, que o jovem infrator é um coitadinho.
Os pais ficam tentando influenciar determinada
autoridade para não punir o filho, porque é a primeira
vez... Mal sabem que agindo assim podem acabar por
enterrá-los”.
Por que acontecem tantos acidentes em vias urbanas
e estradas consideradas seguras?
Jaime de Angeli: Existe algo falso aí. Muitas vezes se
fala que a estrada é segura porque tem o piso liso que
facilita ao motorista desenvolver uma velocidade maior.
Mas quanto à segurança, ela não existe, porque quanto
maior a velocidade maior o risco de acidente. E faltando
obstáculo físico que dificulta ao motorista utilizar a
contramão, isso faz com que os acidentes aconteçam. Por
que acontecem acidentes, principalmente o acidente
119
frontal que é o que mais mata mesmo? Porque ao
ultrapassar um veículo você utiliza a contramão, a mão do
outro veículo. E como você não tem paciência, como a via
não é duplicada, como não existe canteiro central
dividindo os fluxos, a via se torna insegura. Então é falso
falar “a via é de boa qualidade”, o piso é de boa
qualidade. Pode ser de boa qualidade se você comparar
com a via cheia de buracos, mas para efeito de
segurança, não há qualidade nesta via.
Como o senhor explica, por exemplo, o aumento no
número de acidentes em vias como a Rodovia do Sol
que, inclusive, é duplicada?
Jaime de Angeli: Estatisticamente acontecem
acidentes nas vias duplicadas, mas em menor proporção,
muito menor do que, por exemplo, a BR 101, que já
deveria ter sido duplicada há muito tempo. Em qualquer
país mediano, uma via como a BR 101 já estaria duplicada.
Naquelas que são duplicadas, sinalizadas e tem um
bom piso, o problema estaria na fiscalização?
Jaime de Angeli: Sim, aí falta fiscalização. E quando há
o flagrante do erro falta punição correspondente. Aí sim,
o ciclo começa a se fechar. Então, se você tiver uma
engenharia moderna e segura, e o motorista insiste em
cometer uma infração, ele sendo fiscalizado, abordado e
120
retirado de ação de acordo com a lei, a coisa vai
melhorar.
O motorista capixaba é imprudente?
Jaime de Angeli: Todo motorista brasileiro é altamente
imprudente. A característica do nosso motorista é de
imprudência. Porque, culturalmente, nós dirigimos com
uma ação muito ofensiva. Nós queremos disputar espaço,
queremos chegar em primeiro. Nós não planejamos nossa
viagem. Nós saímos no horário, encontramos um
obstáculo, ficamos num engarrafamento por um período,
e queremos depois descontar. Aí vem o risco. Temos que
planejar nossa viagem mesmo que seja para levar os
filhos à escola. Temos que planejar porque podemos
encontrar obstáculos que nos atrasem.
E quais são as imprudências mais comuns?
Jaime de Angeli: Excesso de velocidade é a infração
que mais leva a acidentes. Porque ela leva à outras
infrações que, conseqüentemente, levam ao acidente. O
problema não é a velocidade, é o excesso. O motorista
consciente tem que identificar o que é “excesso”, na via
em que ele se encontra e as condições adversas que
interferem na sua dirigibilidade. Esse é o motorista
consciente, o bom motorista. Quando você está com
excesso de velocidade e precisa tomar uma decisão, você
121
pode não ter espaço ou tempo, e acaba se envolvendo no
acidente.
Que outras imprudências são comuns?
Jaime de Angeli: A ultrapassagem indevida. Todo mundo
já sabe: ultrapassar na lombada, na curva, quando não há
visibilidade... Se acontecer uma colisão, é frontal. E
calcule uma colisão frontal? Acontece o que está aí:
carnificina, matança. E por quê? Porque muitas vezes o
motorista está com pressa, é a história do planejamento.
Porque a via permite isso, se não permitisse não teria.
Então são vários fatores que interferem. E quando você
encontra uma via que não é segura, você tem que ter
mecanismos para chegar ao seu destino com segurança.
Então você tem que providenciar esse mecanismo.
O telefone celular é um problema tão grave como é
falado?
Jaime de Angeli: Com certeza é um problema. Ele tira a
sua atenção. Não resta dúvida e por isso é proibido. É
uma questão de educação. A pessoa tem que ter
consciência de que não deve atender ao telefone. O
celular faz parte da vida, você não vive sem ele, mas
temos de mudar o nosso comportamento.
122
E o consumo de álcool?
Jaime de Angeli: Álcool é um problema seríssimo. No
meu ponto de vista a própria lei já está errada ao
permitir que você faça uma ingestão de uma determinada
quantidade. Há muitas festas por aí, e qual o limite para
você parar de beber? O ideal é como na maioria dos
países do mundo, proibir totalmente. Quem vai dirigir
está proibido de beber. Porque, como cidadão, você não
tem mecanismos para aferir o limite. O álcool é um fator
motivante que leva à outra infração e que vai resultar no
acidente. O álcool faz você aumentar a velocidade,
forçar uma ultrapassagem de risco, entrar num
cruzamento sem observar, e aí acaba acontecendo o
acidente.
O Poder Público tem sabido coibir os abusos?
Jaime de Angeli: Não, não tem. Por exemplo, a nossa lei
de trânsito é perfeita na previsão das penalidades, nas
medidas administrativas. O problema é aplicar isso. Nós
vivemos num País onde a indústria da defesa é muito mais
forte do que aquele que existe para punir. O Código de
Processo Penal, por exemplo, facilita a defesa. E não
existe cultura no nosso País para punir. As pessoas
acham, as autoridades principalmente acham, que
“coitadinho, vamos punir?”. Os pais ficam tentando
influenciar determinada autoridade dizendo, por
exemplo, “não vão punir meu filho, porque é a primeira
123
vez”. Talvez ele deixe de punir o filho, deixando-o dois
meses sem a carteira de motorista, mas ele pode ser
punido com a morte. Então, temos que parar com essa
cultura e até incentivar o Poder Público a punir os nossos
familiares. Agindo assim, a gente evita que, amanhã,
tenha que enterrá-los.
Então, devem ser punidos com mais rigor?
Jaime de Angeli: Nem estou falando com mais rigor.
Devem ser punidas com o que está previsto hoje. Já está
bom. O problema é que, hoje, mesmo com penas leves não
acontece... Se não acontece com a pena leve vai
acontecer com a pena grave?
Qual o reflexo para a sociedade quando um motorista
que provoca um acidente e mata uma pessoa não é
punido?
Jaime de Angeli: A sociedade vê o crime de trânsito
como uma fatalidade. As autoridades também enxergam
a morte no trânsito como uma fatalidade. E tem outra
coisa, embora eu não tenha dados científicos para dizer
isso: a morte no trânsito é remunerada. Nós temos um
seguro que paga para a família daquele que morre em
acidente de trânsito. O que acontece com isso?
Acontece uma desmotivação da família em procurar por
justiça. Porque a família recebeu um determinado valor e
124
acaba não procurando os órgãos competentes para punir
aquele transgressor que matou alguém da sua família.
O senhor está se referindo ao Seguro Obrigatório?
Jaime de Angeli: O Seguro Obrigatório. A minha
experiência mostra que quando uma família toma
conhecimento de que vai receber uma determinada
quantia em função da morte de seus familiares, ela deixa
de procurar os órgãos competentes que existem para
punir aquele infrator, que matou aquele seu querido.
O senhor presenciou cenas desse tipo?
Jaime de Angeli: Com certeza. Eu já tive casos reais na
minha frente. A pessoa sorriu, saiu feliz, quando soube
que iria receber uma quantia em dinheiro porque o seu
marido havia morrido vítima de um acidente de trânsito.
Qual a opinião do senhor em relação à substituição
dos policiais militares de trânsito por agentes
municipais na fiscalização do trânsito?
Jaime de Angeli: O aumento do número de mortes
começou aí. Você não deve substituir, você deve somar.
Esse pensamento de que os agentes municipais de
trânsito iriam substituir o policial militar já mostrou que
foi um erro enorme. Não há substituição, tem que haver
parceria. A Polícia Militar é importantíssima no contexto
125
de trânsito. A Polícia Militar pode fazer trânsito e
policiamento ostensivo ao mesmo tempo. A presença do
policial na rua, fazendo trânsito, significa que ele
também está fazendo policiamento ostensivo.
O senhor é contra a municipalização do trânsito?
Jaime de Angeli: Não, eu sou a favor. Mas a Polícia
Militar tem que assumir o seu papel importante na
segurança do trânsito. Não há substituição. O Município
não substitui o Estado. Eles têm que trabalhar em
parceria. O efetivo da Policia Militar no trânsito tem que
aumentar. E isso tem de ser revisto pelas autoridades.
Na prática como o senhor gostaria de ver essa
questão da imprudência no trânsito tratada por
políticos e autoridades?
Jaime de Angeli:. Em relação às imprudências e ao uso
de álcool nossos representantes precisam apenas fazer
com que a lei seja cumprida. O problema é que os órgãos
encarregados de cumprir a lei estão atrasados, não
acompanham a modernidade da própria lei. Então, tem
que se modernizar, tem que se integrar com os demais
órgãos. Por exemplo, uma coisa muito simples que
precisamos aqui no Estado é a integração das multas com
outros Estados. Os veículos emplacados em Estados
vizinhos vêm aqui, cometem barbaridades no trânsito,
126
são autuados e nada acontece. Não pagam a multa. Isso é
o fim.
Em relação à imprudência, a proposta seria a volta
dos policiais ao trânsito?
Jaime de Angeli: Com certeza é fundamental. É
fundamental a presença da Polícia Militar no trânsito. E
como a Polícia Rodoviária Federal também deve agir mais
voltada para o trânsito. A gente sabe que a Polícia
Rodoviária Federal faz um papel importante procurando
armas, drogas, assaltantes nas rodovias. Mas também
não pode esquecer o trânsito porque as mortes que estão
acontecendo exigem isso.
Então, se há caminhos para se resolver o problema da
imprudência no trânsito, por quê isso não acontece?
Jaime de Angeli: Falta vontade política para se fazer a
coisa. O órgão que existe para ampliar penalidade tem
que aplicar penalidade. Não fazendo assim ele está sendo
omisso. É uma obrigação de todos. É o Detran, é a Polícia
Militar, é a Polícia Rodoviária Federal, são as
Prefeituras, o DNIT, o DERTES, são todos os órgãos
envolvidos no Sistema Nacional de Trânsito. Eles têm que
trabalhar de forma harmônica, integrada para atingir o
objetivo, que é o que? É Ter um trânsito seguro.
127
DESAFIO 7
IMPOSTOS
Uma coisa é certa: nunca se pagou tanto tributo
no Brasil como atualmente. Em 2004 a carga tributária
do País (somatório dos impostos, taxas e contribuições
federais, estaduais e municipais) em relação ao PIB –
Produto Interno Bruto - estava em 36,8%; em 2005
passou para 37,82% e em 2006, a estimativa era de
fechar o ano em 38,2%, segundo o IBPT*. O primeiro
semestre de 2006 bateu um recorde histórico e chegou
a 39,79% (o primeiro semestre de 2005 foi de 39,16%).
Isso significa dizer que quase 40% de tudo que é
produzido no País acabam retidos nas mãos dos Governos
para se autofinanciarem. E o retorno à população acaba
sendo frustrante, em vista do alto custo de manutenção
das máquinas públicas no País. Situação que acaba
comprometendo, também, o crescimento econômico.
O Brasil lidera o ranking dos países emergentes
que têm o maior peso de tributos sobre a Economia.
Estamos à frente da Coréia do Sul, Argentina, Chile,
México, Rússia e China. E diante dos 24 principais países
do planeta, só perdemos em arrecadação para Suécia,
Noruega, França e Itália, segundo dados do IBPT e da
Receita Federal. Já em se tratando do IDH (índice de
desenvolvimento humano), que mede as condições para a
qualidade de vida de um povo, baseado em 3 pilares:
saúde, educação e rendimentos), o Brasil ocupa o 69°
128
posto. Ou seja: pagamos como os ricos e vivemos como
os pobres.
O impacto sobre o trabalhador é gritante. Um
estudo do IBPT revela que o contribuinte brasileiro
trabalha do primeiro dia útil do ano até o dia 25 de maio,
somente para pagar os tributos exigidos pelos Governos
Federal, Estadual e Municipal. A pesquisa indica que a
tributação incidente sobre os rendimentos (salários,
honorários etc ) é formada principalmente pelo Imposto
de Renda Pessoa Física, pela Contribuição Previdenciária
(INSS, Previdências Oficiais) e pelas Contribuições
Sindicais. Além disso, o cidadão paga a tributação sobre
o consumo – já inclusa no preço dos produtos e serviços –
(PIS, COFINS, ICMS, IPI, ISS etc) e também a
tributação sobre o patrimônio ( IPTU, IPVA, ITCMD,
ITBI, ITR ). Ainda paga taxas ( limpeza, coleta de lixo,
emissão de documentos ) e outras Contribuições
( iluminação pública...). O estudo conclui mostrando que
em 2006 o cidadão teve que trabalhar 4 meses e 25 dias,
somente para pagar toda essa carga tributária.
Comparados com os dados dos anos anteriores, vemos
que o quadro se agrava refletindo no bolso do
trabalhador.
*Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário
(www.ibpt.com.br) é uma entidade privada criada em
1992, com o objetivo de difundir, apurar e comparar os
dados oficiais sobre os tributos cobrados no Brasil.
129
DEMONSTRATIVO 6
RELAÇÃO TRABALHO/TRIBUTOS
ANO DIAS DE TRABALHO (MÉDIA) PARA
PAGAR TRIBUTOS
DÉCADA DE 70 76 DIAS OU 2 MESES E 16 DIAS
DÉCADA DE 80 77 DIAS OU 2 MESES E 17 DIAS
DÉCADA DE 90 102 DIAS OU 3 MESES E 12 DIAS
PREVISÃO
2006
145 DIAS OU 4 MESES E 25 DIAS
Fonte: Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT)
A maior parte de tudo que é arrecadado vai para a
União: são os tributos federais. Ano após ano os índices
da arrecadação no País só fazem subir (veja a tabela ).
Desde 1991 o Governo criou contribuições como o CPMF,
CIDE e COFINS. Apenas o Imposto de Renda consome
6,76% do PIB. De acordo com o IBPT, os tributos
federais no primeiro semestre de 2006 levaram 69% de
tudo que foi arrecadado ( 2005=70,19%, 2004=69,88% ),
os tributos estaduais ficaram com 26% do bolo (
2005=25,64%, 2004=25,56% ) e os municipais com 5% (
2005=4,17% ).
A cada hora os brasileiros pagam cerca de R$ 90
milhões de reais de impostos. Para confirmar o
crescimento da carga, o IBPT revela que, em 2003, eram
R$ 61,47 milhões por hora. A previsão do Instituto é de
que ao final de 2006, a carga tributária per capta será
130
de R$ 4.380,00, contra os R$ 3.987,46 de 2005, o que
significa um crescimento de 9,84%. No Espírito Santo,
por exemplo, a carga tributária per capta, calculada de
janeiro a novembro de 2006, chegava a R$ 4.132,00,
conforme o impostômetro *, da Associação Comercial de
São Paulo.
DEMONSTRATIVO 7
IMPOSTO X PIB
ANO
PESO DO IMPOSTO SOBRE O PIB
1999 31,64%
2000 32,84%
2001 33,68%
2002 35,84%
2003 35,54%
2004 36,80%
2005 37,82%
2006 37,82% FONTE: Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT).
*www.impostometro.com.br (Associação Comercial de
São Paulo).
131
Um movimento liderado pela Associação Comercial
de São Paulo quer obrigar o comércio a indicar
claramente para o consumidor quanto ele paga de
tributos por cada item que compra. É uma campanha
educativa para conscientizar a todos sobre o tamanho da
“boca do leão”. Os eletrodomésticos, por exemplo, são
taxados entre 35 a 45% do preço final; um telefone
celular paga de impostos 41%; um disco cd embute 47%
de tributos; remédios, 35%,; alimentos, 25 a 30% e por
aí vai...
Qual o caminho para reduzir o tamanho do
problema que tomou conta do país, permitir o
crescimento da economia e levar o contribuinte a ter
uma vida melhor? Reduzir impostos? Cortar gastos?
Melhorar o retorno do tributo para o cidadão?
132
O economista Orlando Caliman foi Professor da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) por 30
anos. Participou como convidado da Comissão de
Tributação da Constituição de 1988. Atualmente é
Diretor-Presidente do Instituto de Pesquisas Futura. O
economista é conhecido por ser um permanente
pesquisador da realidade econômica nacional e regional
do Espírito Santo. Nesta entrevista, em sua sala na
Futura, Orlando Caliman diz que a carga tributária
brasileira, além de injusta, é burra.
Qual a sua visão sobre a carga tributária aplicada no
País?
Orlando Caliman: A carga tributária brasileira é
extremamente alta. E além de extremamente alta é uma
carga tributária burra. Burra porque onera
fundamentalmente a produção e recai mais fortemente
para as classes menos favorecidas. Ou seja, quanto mais
pobre mais paga.
Como isso acontece?
Orlando Caliman: Se você pega, por exemplo, uma
pessoa que ganha um salário mínimo. Ele vai ao
supermercado e compra a cesta básica. Em qualquer item
que ele comprar vai estar embutido o ICMS, o IPI, o
Cofins, o CPMF. Ou seja, indiretamente, ele está pagando
uma série de impostos. Como aquela compra tem um peso
133
enorme no orçamento dele que é o salário mínimo
significa que, proporcionalmente, ele está pagando muito
mais do que estaria pagando alguém com faixa de renda
mais elevada. Esta outra pessoa sente um peso muito
menor desse imposto indireto. Então, nosso Sistema
Tributário tem essa característica de aplicar uma carga
maior de impostos de uma forma indireta, do que da
forma direta como é o Imposto de Renda, por exemplo,
que é o imposto sobre o que resulta do processo
produtivo.
Então o senhor acha que deveria ser reduzido esse
imposto indireto e aumentado o direto?
Orlando Caliman: Exatamente, seria o que chamamos de
imposto mais justo. Você tributa quem tem mais
capacidade de pagar e alivia os que têm menos
capacidade de pagar imposto.
O brasileiro é um dos povos que mais paga impostos
no mundo. De que maneira essa carga tributaria
elevada se reflete na economia?
Orlando Caliman: Um dos grandes responsáveis pela
falta de dinamismo da nossa economia, a incapacidade da
economia crescer de forma mais estável, já bate nesta
questão da carga tributária. Por exemplo, ela tributa os
investimentos. Em qualquer país do mundo, mesmo entre
os não tão desenvolvidos como o Brasil, não se onera o
134
investimento produtivo. Aqui no Brasil nós tributamos,
inclusive, estes investimentos.
O senhor poderia dar algum exemplo?
Orlando Caliman: Vamos supor, você compra uma
máquina para produzir numa empresa. Está embutido no
valor dessa máquina o imposto. Diferentemente dos
Estados Unidos, da Europa, da Coréia ou mesmo da Índia,
onde você não vai ter esse tipo de ônus sobre algo que
vai contribuir para aumentar a capacidade produtiva.
Poderíamos dizer que um empresário que se
desenvolve em um país com uma carga tributária
menor, poderia enfrentar dificuldades no Brasil?
Orlando Caliman: Aliás, até o Edmar Bacha, um grande
economista, disse que se o Bill Gates abrisse a Microsoft
em São Paulo, provavelmente, ele estaria como
empresário de fundo de quintal. Por causa da carga
tributária e também da complexidade dessa carga
tributária. Um problema não só pela quantidade de
tributos como pela quantidade de Instituições que atuam
na fiscalização e no recolhimento desses impostos. É
Governo Federal, Governo Estadual, Governo Municipal.
Cada um desses, de forma diferente, tem uma estrutura
de fiscalização, o que também é um gasto. Esse é o nosso
grande problema.
135
Há limites para a carga tributária?
Orlando Caliman: Esse é um outro problema. Nós temos
uma lógica perversa. É a lógica pela despesa. Você define
a carga tributária pelo tamanho da sua despesa. Você
aumenta a despesa e depois corre atrás para pagar essa
despesa. Hoje, por exemplo, esse gasto do Setor Público
está tão alto que nem a receita está sendo suficiente
para pagar. Tanto é que hoje ainda recorre-se ao sistema
financeiro captando recurso para cobrir o déficit
público.
Deveria haver um limite legal?
Orlando Caliman: Eu acredito que deveria haver um
limite, sim, porque esta carga tributária hoje está muito
acima da capacidade do brasileiro pagar. Se você pega os
Estados Unidos, a carga tributária é de 25%. Agora,
devemos imaginar que o americano tem muito mais
capacidade de pagar do que nós aqui. Argentina, por
exemplo, tem uma carga tributária de 21% , ou seja, está
mais ou menos dentro da capacidade de pagamento deles.
Agora, o brasileiro pagar 38% a 40%. É pesado.
136
Também há um número grande de impostos
diferentes. É outro problema?
Orlando Caliman: É o problema da complexidade do
nosso sistema tributário. Você tem 3 instâncias –é um
sistema federativo: União, Estados e Municípios - e cada
uma destas instâncias tem a sua própria parte na
composição desse tributo. Praticamente 70% são
arrecadados pelo Governo Federal, 26% pelos Governos
Estaduais, 4% a 5% pelos Municipais. Essa é a nossa
lógica.
São quantos os impostos que pagamos?
Orlando Caliman: Entre impostos, taxas e contribuições
são mais de 50. Então, você imagina que cada instância
dessa tem lá a sua legislação. Você imagina 27 Estados
brasileiros tendo 27 legislações específicas de ICMS
com seus regulamentos específicos. Por exemplo: o
Espírito Santo tem a sua lei que regulamenta a cobrança
de ICMS e que é praticamente um livro de 700 páginas.
Ela é mudada a cada momento, na medida em que você
altera, por exemplo, a base de cálculo para a incidência
de ICMS, regimes especiais de tributação, etc.
137
Quem mais sofre com essa situação, o empresário ou
o consumidor?
Orlando Caliman: No fundo, os dois. Eu diria até que o
consumidor final acaba sendo mais prejudicado porque é
onde vai bater o tributo. O empresário fica no meio. A
população é quem paga o imposto. Se você pegar
determinados produtos você vê alguns que tem no preço
dele 50% de tributos. E muitos deles são produtos até
essenciais, alimentos, por exemplo. E isso, naturalmente,
onera mais a ponta do consumo do que propriamente o
empresário. O empresário é repassador: recolhe aqui e
encaminha para o Governo. Mas ele também é
prejudicado porque tem um custo muito elevado para
fazer a gestão do pagamento dos tributos. Ele tem que
atender Município, Estado, União. Cada um de uma forma
diferente. Tem que ter 3 cadastros e tem que
acompanhar isso tudo.
Falta bom-senso por parte do Poder Público?
Orlando Caliman: Na verdade, essa questão deveria ser
resolvida pela formulação de uma nova maneira de
tributar no País. Isso já foi tentado várias vezes na
constituição de 88, nós tivemos “n” propostas de
emendas constitucionais.
138
Mas os Governos têm se mostrado insensíveis?
Orlando Caliman: Insensíveis eu diria porque, como você
tem um sistema federativo, você tem por trás disso um
problema que bate, justamente, na questão do conflito
federativo. Quem tributa e quem recebe o tributo? Por
exemplo, tem uma proposta de reforma tributária que
basicamente coloca o ICMS como um tributo nacional.
Quer dizer, quem recolheria seria o Governo Federal e
repassaria para os Estados. Os Estados, logicamente, não
vão querer isso. Assim como seria também com os
Municípios, você tira a capacidade de tributar dos
Municípios. Então fica nessa discussão.
Como o senhor viu os debates em torno esse assunto
durante a última campanha eleitoral?
Orlando Caliman: Muito fracamente colocados. Deveria
ter sido mais incisivamente debatido e principalmente
incisivamente colocado em termos de propostas. Quer
dizer: que tipo de sistema tributário ou forma de
tributar que nós poderíamos ter para que o País pudesse
crescer mais? Não adianta você falar que a economia vai
crescer, falar em crescimento, sem bater nessa tecla da
reforma tributária. Assim eu acredito que seja difícil.
139
Como um especialista na área o que o senhor colocaria
em discussão, qual sua proposta?
Orlando Caliman: As propostas hoje já estão
disponíveis. É uma questão de como levá-las à frente. Por
exemplo, a questão da desoneração dos investimentos, da
produção. Durante a campanha, os dois candidatos à
Presidência, o Lula e o Alckmin, até colocaram isso nas
propostas, mas não disseram concretamente como seria
trabalhado. Porque isso implica em mudar a forma de
tributar, por exemplo, o ICMS. Ou implica em redução do
número de impostos o que, necessariamente, terá de ser
feito. Hoje você tem IPI, ICMS, Cofins, ISS aplicados
sobre o faturamento. Por que não trabalhar um imposto
único sobre o faturamento ou o valor final do produto ao
invés de fazer esse picoteamento com vários tributos em
cima da mesma base de cálculo? E, por outro lado, tentar
reforçar a idéia de reduzir os chamados impostos
indiretos e aumentar os impostos diretos. Porque quando
a carga passou de 20% para 38% nesses últimos vinte
anos o que aconteceu, quais os impostos que mais
cresceram? Foram os impostos indiretos, são mais fáceis
de serem criados. A proposta, enfim, é por um sistema
mais justo de tributação. Para que quem está ganhando
menos passe a pagar menos imposto. Ao contrário do que
existe hoje no nosso sistema tributário.
140
E se nada disso for feito?
Orlando Caliman: Naturalmente a gente vai seguir, nada
vai acabar, mas a Economia vai deixando de ter o
dinamismo necessário para se sustentar em termos de
futuro.
141
O Advogado Tributarista Luiz Cláudio Allemand,
trabalha com tributos há 16 anos e tem especialidade em
Direito Tributário, Empresarial e Processual Civil. É
membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, e foi designado pelo Presidente da OAB,
Roberto Busatto, para integrar a Comissão Especial
criada para fazer uma radiografia da arrecadação e
destinação da CPMF. Nessa entrevista, em seu
escritório, ele critica a complexa burocracia tributária
brasileira. Mas diz que não se deve pensar em cortar
tributos agora. Antes, aponta para a redução dos gastos
públicos.
Qual a avaliação que o senhor faz da legislação
tributária que temos hoje no Espírito Santo e no
País?
Luiz Cláudio Allemand: É um cipoal de regras. Você tem
algo em torno de 55 mil artigos, 33 mil parágrafos, e a
criação de 330 novas normas por ano. Isso transforma a
nossa regra tributária num verdadeiro labirinto para o
contribuinte. Isso tudo é –obviamente- manejado com
muita astúcia pelo Poder Público.
E qual a conseqüência dessa situação?
Luiz Cláudio Allemand: É o que estamos vendo hoje. Nós
temos aí um empresariado totalmente impedido de
crescer em face dessa carga tributária absurda. Uma
142
carga tributária que chega a padrões nórdicos para a
arrecadação, e se assemelha a países africanos no que se
refere ao retorno à população.
Quem sai mais prejudicado hoje com essa legislação
que existe no Brasil?
Luiz Cláudio Allemand: É o cidadão brasileiro e também
o empresário que não consegue crescer. Se não consegue
crescer, não gera empregos. Se não gera empregos, o
cidadão não consegue comprar. E se ele não consegue
comprar o que as empresas produzem, o Governo não
consegue aumentar a arrecadação de uma forma
sustentável. Então, você tem um círculo vicioso. Ao
contrário, se você tivesse uma arrecadação justa, teria
uma produção maior, que geraria emprego, o cidadão
passaria a ter salário, consumir, gerar imposto, e daí
vem um círculo benéfico. Ou seja, todo o cidadão
brasileiro perde com essa carga tributária. O País não
consegue crescer. Eu sou de uma geração que está vendo
o País patinando. O País não cresce, não gera emprego,
não gera riqueza. E os nossos concorrentes estão
crescendo. O mundo teve dois “boons” de crescimento:
na década de 70 e o Brasil não acompanhou e na década
atual. O mundo está crescendo 5% e nós temos
informações de que o PIB brasileiro está fechando em
torno de 3.5 e não vai atingir a meta de 4%.
143
E se o motivo é a carga elevada, por quê não muda?
Luiz Cláudio Allemand: Porque temos um gasto da
arrecadação irresponsável. Os nossos administradores
que são os políticos eleitos por nós não sabem gerir a
coisa pública. Não sabem porque gastam erradamente,
inescrupulosamente. Veja o caso dos “sanguessugas”.
Isso nada mais é do que uma forma atualizada de se
fazer dinheiro com o orçamento. Alguns anos atrás
tivemos o escândalo dos “anões do orçamento” e não se
resolveu o problema. A gente continua com esse ralo
aberto. É dinheiro que vai pelo ralo da corrupção. Um
dinheiro que foi arrecadado com o suor do cidadão e do
empresário, que está gerando riqueza para crescer o
País. Mas o País não consegue crescer porque esse
dinheiro não é investido.
O que o senhor pensa sobre os impostos indiretos?
Luiz Cláudio Allemand: Nessa carga tributária nós
temos aproximadamente 74 tributos entre impostos,
taxas e contribuições. Um exemplo clássico de imposto
indireto é o aplicado sobre medicamentos. Se você entra
numa loja de medicamentos veterinários você tem uma
carga tributária de 18% no remédio para animal. Mas se
você entra numa farmácia, a carga tributária é de 35%
no remédio para o Ser Humano. Há uma distorção no
sistema. Isso sem falar na alimentação que é o mesmo
problema. E os eletrodomésticos? Se você baixa o preço
144
o povo compra mais. E comprando mais, gera mais
empregos, impostos e por aí vai.
Esse assunto tem sido discutido com conhecimento
pelos políticos?
Luiz Cláudio Allemand: De jeito nenhum. Isso para mim
é triste. Essa dormência, essa falta de percepção de um
anseio da população. A população não aguenta mais pagar.
A classe média está empobrecendo. Em vez de se
resolver o problema da classe baixa e elevá-la ao
patamar da classe média, levando-a também a consumir e
pagar impostos, temos a classe média pagando sozinha
para todo mundo. É o caso da tabela do Imposto de
Renda. Foi uma forma covarde que os nossos governantes
acharam para indiretamente aumentar a arrecadação. Eu
cito um exemplo: quem hoje recebe de R$ 3 mil a R$ 3,5
mil estaria na faixa de isenção se a tabela do Imposto
de Renda não estivesse congelada. Hoje ele paga a
alíquota máxima, 27,5%.
De que maneira o cidadão pode contribuir para uma
mudança?
Luiz Cláudio Allemand: A população já começa a ficar
ciente do seu problema. Temos uma campanha em São
Paulo, capitaneada pela OAB paulista e outras entidades
de classe, chamada Olho Vivo. Essa campanha visa,
primeiro, regulamentar o dispositivo do parágrafo quinto
145
do artigo 150 da Constituição Brasileira que exige que,
assim como o preço do produto, a carga tributária
também esteja na gôndola do supermercado, farmácia,
loja. E em segundo plano, o que eu chamo de uma
cidadania tributária, acho que o contribuinte que elegeu
o administrador que faz as leis, que aumenta a nossa
carga tributária, também fiscalize esse administrador
público, para que ele gaste corretamente o dinheiro que
é arrecadado com o suor do povo brasileiro. Nós
trabalhamos hoje para poder gerar riqueza. A cada dez
reais que o cidadão brasileiro produz, quatro ficam no
cofre do Governo. É muito. É um absurdo a forma como
se tributa nesse país.
Qual a proposta do senhor?
Luiz Cláudio Allemand: Inicialmente eu gostaria de um
pouco mais de responsabilidade. Nós temos que ter
responsabilidade para administrar a coisa pública. Você
não pode ter responsabilidade com a coisa pública se
você enche a máquina administrativa com novos
funcionários a cada eleição que passa. Você não pode ter
responsabilidade com a coisa pública quando não
consegue trabalhar com metas. Tudo nesse País é de
hoje para amanhã. É imediato. É preciso ter metas,
porque sem elas não vamos conseguir resolver o problema
da carga tributária. Um exemplo é a gastança pública.
Não adianta você aumentar o gasto público, desequilibrar
a balança fiscal e querer aumentar a carga tributária
146
para cobrir esse rombo. Gostaria de ver também nossos
representantes legislativos, os Vereadores, Deputados,
Senadores, fazendo leis benéficas para o cidadão e não
benéficas apenas para o Poder Executivo. Gostaria de
ver ainda a independência do Poder Judiciário ao decidir
as questões de matérias tributárias. O Judiciário não
deve ficar preocupado com a queda da arrecadação
quando for julgar algo favorável à essa questão, como foi
o caso do Supremo Tribunal Federal no caso do Salário
Educação e com o Seguro Acidente do Trabalho.
Questões gritantemente inconstitucionais, em que o
Poder Judiciário, preocupado com a queda de
arrecadação, julgou pela constitucionalidade, provocando
mais um custo tributário para a população. Ou seja,
gostaria de ver a independência entre os Poderes, como
está no artigo segundo da Constituição. Não gostaria de
ver da forma como está, com os Poderes atrelados e
preocupados com a questão da arrecadação porque
administrar um País aumentando tributos é muito fácil.
Aumenta-se o gasto, aumenta-se tributo. Espera aí, tem
que ter um limite. E esse limite eu não estou vendo.
Uma outra proposta seria a redução imediata do
número de impostos, taxas e contribuições?
Luiz Cláudio Allemand: A redução imediata não seria
viável porque você estaria tratando de forma muito
simples um problema que não se resolve em curto nem em
médio prazo. Você teria primeiro que partir para uma
147
responsabilidade maior com o gasto público. A partir daí
você teria a possibilidade de trabalhar a redução de
alíquotas de impostos, redução da taxa de juros etc. O
problema econômico do País anda atrelado à questão
fiscal. Se você tem um gasto público muito alto você tem
que arrecadar e ainda acaba tomando dinheiro
emprestado com taxas altas de juros. Essas situações
andam em conjunto.
O grande problema, então, é o gasto público?
Luiz Cláudio Allemand: Sem dúvida. Nove em cada dez
economistas dizem: primeiro você acerta o gasto público
para começar a acertar o problema fiscal no futuro. O
outro economista diz que primeiro você tem que acertar
a taxa de juros, reduzindo-a. Tudo bem, mas para
reduzir a taxa de juros você também tem que acertar o
gasto público.
E o senhor acredita na redução do gasto público?
Luiz Cláudio Allemand: Não vejo como. Não quero ser
um visionário negativo, mas com as administrações
irresponsáveis dos nossos políticos não acredito em
controle do gasto público e, por conseqüência, em
redução da carga tributária.
148
DESAFIO 8
TURISMO
O turismo entra neste elenco de temas como uma
atividade que nasce como solução, mas que pode se
tornar um problema, se não for bem gerida. Os grandes
especialistas do assunto resumem o conceito dos bons
atributos da atividade turística, da seguinte maneira: o
turismo é bom em uma cidade quando ela é boa para os
seus moradores. Ou seja, se o lugar tem um bom
trânsito, um bom serviço de saúde e saneamento, boas
escolas e população educada, oportunidades de trabalho,
segurança para os moradores, lá haverá qualidade de
vida. Neste lugar, o turista se deslocará com facilidade,
encontrará praias despoluídas e ruas limpas, será bem
atendido por uma população consciente da importância do
turista e não será incomodado por pivetes, ladrões e
pedintes. Nesta cidade, o turista também não será
incomodado por uma multidão de vendedores ambulantes,
posto que lá as pessoas terão ocupação de trabalho e só
se dedicará ao turismo quem for do ramo. Se esse lugar
maravilhoso ainda dispuser de pontos turísticos tanto
melhor, se não, já será um paraíso...
Foi-se o tempo em que atrações naturais, praias,
monumentos históricos eram suficientes para atrair o
turista. A atividade tem vários perfis. Um deles é
espontâneo e não precisa de planejamento. Este turismo
149
é impulsionado pela proximidade, custos baixos,
facilidades e não necessariamente pela qualidade. No
Espírito Santo, podemos encaixar nestas características
os balneários como Jacaraípe, Guarapari, Piúma,
Anchieta, que são visitados por turistas de baixa renda.
Muitos viajam em ônibus de excursão, se hospedam em
imóveis alugados para grupos, trazem boa parte do que
irão consumir e, quando vão embora, praticamente não
deixam dinheiro na cidade. Deixam problemas: sujeiras e
poucas contribuições para o desenvolvimento local. Já
uma forma não espontânea de atração turística é aquela
desenvolvida por agentes captadores como, por exemplo,
os “convention bureau”, espalhados por alguns lugares do
mundo. No Espírito Santo temos o ES-Convention e
Visitors Bureau. Estes organismos disputam a atração de
grandes eventos que acabam dando um bom retorno à
atividade turística. No turismo de negócios, por exemplo,
o dinheiro gasto diariamente por um turista deste
modelo é mais expressivo que o de um turista
convencional e com um detalhe importante: o turista de
negócio costuma pedir notas de todas as despesas que
realiza, até mesmo para efeito de comprovação de
gastos junto à sua empresa. Isso representa uma boa
ajuda aos cofres públicos na hora de recolher os
tributos.
Este tipo de captação de evento turístico é
especializado e exigente. Em 2006, por exemplo, o ES-
Convention e Visitors Bureau, se candidatou a atrair um
evento esportivo internacional de grande porte para a
150
praia de Camburi, o “World Champioships Beach Ultimate
2007”. O Estado concorreu inicialmente com 12 destinos
e, ao longo da captação, foram fixados quatro destinos,
incluindo o Espírito Santo, para a realização da visita de
inspeção e uma análise técnica mais apurada do local.
Concorrências deste tipo são altamente profissionais e
conduzidas por Empresas experientes. O próprio ES-
Convention e Visitors Bureau, que trabalha há oito anos
com captação de eventos, admite que neste período
ainda não havia participado de um processo de captação
tão bem conduzido e transparente quanto este. Foram
reuniões, visitas, questionários etc. Ao final, Vitória
estava empatada com a cidade de Maceió, em Alagoas,
que acabou faturando o evento. Entre os motivos de tão
difícil disputa havia os seguintes:
A praia de Camburi, apesar de possuir a extensão
necessária, tem areia grossa, com pequenas pedras
que poderiam provocar acidentes. A Prefeitura de
Vitória se dispôs a fazer uma rigorosa limpeza na
praia, mas a comissão organizadora do evento
concluiu que ainda assim a areia continuaria com seu
aaspecto físico deficiente.
A balneabilidade das praias também foi levada em
consideração, e a praia de Vitória ficou abaixo do
esperado, quando comparada à praia de Maceió.
Apesar de os atrativos turísticos do ES terem
encantado a comissão realizadora, o destino Maceió
151
possui maior apelo turístico internacional, por estar
posicionado na Região Nordeste.
Maceió apresentou uma rede hoteleira de menor
custo em relação a Vitória, além de possuir muitas
pousadas na região próxima à escolhida para a
realização do evento.
Maceió possui três vôos charter para a Europa, o que
facilitaria o deslocamento dos participantes do
evento.
A segurança pública também foi levada em
consideração e as estatísticas de violência
observadas em Vitória foram consideradas altas em
comparação com Maceió.
A reprodução deste caso é interessante em nosso
estudo por provar como o turismo moderno é exigente e
feito por e para profissionais.
No Espírito Santo há indicações de que o assunto
começa a ser tratado com a seriedade que se impõe. Em
2004 foi lançado o Plano de Desenvolvimento do Turismo
2004-2013. Neste documento constavam políticas e
projetos elaborados a partir do Planejamento
Estratégico do Governo e alinhados com o Plano Nacional
do Turismo. Num segundo passo, foi lançado o Plano de
Desenvolvimento Sustentável do Turismo 2025 *.
*fonte: Secretaria de Estado de Desenvolvimento
Econômico e Turismo.
152
O Plano do Governo é apresentado oficialmente como
“inserido no modelo de desenvolvimento socialmente
inclusivo, ambientalmente sustentável e geograficamente
desconcentrado”. O Plano traz projetos para a
estruturação do setor: melhoria da competitividade do
arranjo produtivo através da revitalização dos centros
turísticos; melhoria da infra-estrutura; criação de
Centros de Eventos; consolidação das rotas turísticas;
qualificação de empreendedores e trabalhadores;
desenvolvimento do turismo regional; diversidade da
oferta turística e qualificação dos produtos turísticos.
O estudo mostra que o turismo capixaba se
concentra, principalmente, no segmento de mercado do
turismo de sol e mar, com as praias funcionando como
maior atrativo. No entanto, vem crescendo com o
chamado turismo de eventos e negócios.
Veja o quadro atual em ordem de importância e
dimensão para os segmentos mais expressivos:
Turismo de sol e praia
Turismo de negócios e eventos
Turismo rural/agroturismo
Turismo cultural
Turismo náutico
153
E, na seqüência, o Plano aponta os segmentos
promissores:
1. TURISMO DE NEGÓCIOS E EVENTOS
2. TURISMO RURAL/AGROTURISMO
3. TURISMO NÁUTICO
4. TURISMO DE AVENTURA
5. TURISMO CULTURAL
6. ECOTURISMO
7. TURISMO DE SOL E PRAIA
8. TURISMO DE SAÚDE.
9. TURISMO DE PESCA
10. TURISMO DE ESPORTES
O Plano de Turismo é recheado de roteiros,
estratégias e estatísticas. Se este vai ser apenas um
plano a mais, não dá para saber.Pelo menos, já se percebe
algum avanço numa atividade sempre encarada de forma
amadora e simplista.
154
Nosso primeiro entrevistado para este desafio é um
homem que já viu muitos planos e projetos terminarem
da mesma forma como nasceram. Já esteve à frente do
planejamento turístico, foi um pioneiro na atividade e é
ainda hoje uma referência quando se fala em turismo no
Espírito Santo. José Carlos Monjardim Cavalcante, o
Cacau Monjardim, é Jornalista, Publicitário,
Administrador de Empresas, Técnico em Turismo. Foi
Secretário de Comunicação nos governos Élcio Álvares,
Gerson Camata e José Moraes, Secretário de Turismo e
Comunicação na Prefeitura de Vitória, gestão Hermes
Laranja, presidiu a antiga EMCATUR (Empresa Capixaba
de Turismo) por 10 anos. Aos 73 anos é Diretor-
executivo da Fundação Jônice Tristão. Ah, e antes que
me esqueça, Cacau Monjardim também é um conhecido
frasista, autor de expressões como “capixabismo” e o
mais célebre slogan em homenagem à culinária e ao
turismo capixaba: “moqueca só capixaba, o resto é
peixada”. Nesta entrevista ele diz, entre outras coisas,
por que o turismo capixaba não faz o mesmo sucesso que
a moqueca.
Qual o raio x do turismo no Espírito Santo?
Cacau Monjardim: Pelo tempo que nós participamos do
processo turístico capixaba, é relevante destacar que o
Estado sempre teve uma certa tendência a ser um
grande pólo turístico. No entanto, nós perdemos muito
tempo com discussões estéreis. Com aquela psicose de
155
fazer projeto em cima de projeto, quando precisávamos
de ação e efetivas realizações em termos de infra-
estrutura. Nós pagamos um preço por falta de
especialização e formação profissional. É fundamental
que nós pudéssemos formar –e temos hoje como formar -
uma geração de excelente nível profissional. Essa
especialização é imprescindível ao processo de
desenvolvimento do Estado. Hoje, principalmente, nos
são lançadas algumas responsabilidades maiores do que
aquelas que tivemos no passado, quando sentimos a
degradação de Guarapari, o abandono de um produto que
só Guarapari tinha, que era a sua radioatividade
terapêutica, balsâmica e medicinal. Nós trocamos isso
por uma concorrência inútil, imprópria e que não produziu
resultado algum. Foi quando quisemos partir para um
turismo que fosse nivelado àqueles padrões de Porto
Seguro, Cabo Frio, Angra dos Reis e outras unidades,
sem termos capital, experiência e investimentos para
fazermos um processo acelerado de desenvolvimento.
Já que o senhor falou em Guarapari, qual é, ou qual
era, a vocação de Guarapari?
Cacau Monjardim: Sempre foi uma vocação turística
acentuadíssima. No litoral sul do Espírito Santo residem
75% da demanda do turismo capixaba. E para essa
região, Guarapari sempre foi o pólo de entrada. Foi o que
deu notoriedade e expressão ao turismo de nosso
Estado. Como esquecer aquelas vantagens que seu
156
produto oferecia, que era um radioclima de excelente
padrão, com altos benefícios em termos de saúde, de
preservação do vigor físico e mental? Guarapari tinha
uma água que era uma maravilha, tinha condições
terapêuticas e medicinais que justificavam já àquela
altura que o balneário partisse para a implantação de
uma Clínica Terapêutica, que fosse fisioterápica,
radioterápica...
Mas o senhor acha que ainda tem jeito de recuperar
essa vocação?
Cacau Monjardim: Acho que tem jeito e é o único
caminho que Guarapari vai encontrar para tentar
compensar no tempo e no espaço o seu prestígio passado.
É se transformar, realmente, num balneário de
expressão, em termos de conquistas de novos fluxos
turísticos da terceira idade. Seria o único no País. Então,
nós temos de ter referenciais que nos permitam fugir do
comum.
Porque o Turismo do Espírito Santo não deu certo até
hoje, embora se fale sempre do potencial do nosso
litoral?
Cacau Monjardim: Eu acredito que faltou acreditar
mais. O Turismo é um fator de desenvolvimento
econômico. Só que nós nunca acreditamos nisso. E só
agora eu sinto um esforço mais concentrado, mais
157
profissional, para transformar o Turismo, realmente,
num suporte de desenvolvimento estadual. E vou mais
longe. Nós corremos um desenvolvimento de risco.
Porque a expressão dos investimentos programados até
2012 na região sul do Estado deve gerar cerca de 100 mil
empregos. Somente em Anchieta , que deverá ter um
pólo do porte da CST de hoje com mais as usinas de
pelotização da Vale do Rio Doce, a ampliação do Porto de
Ubú, e a duplicação do mineroduto da Samarco, teremos
aí um desafio fantástico. Cabe àqueles que hoje estão
dentro do Turismo, que estão lutando para preservar
isso, policiar todos os investimentos programados para a
região sul do nosso Estado, para o nosso Estado como um
todo. Para que não tenhamos que pagar agora o mesmo
preço que pagamos quando ganhamos os chamados
grandes projetos de impacto que nos deram São Pedro
(Vitória), onde famílias disputavam com urubus o resto
de comida. Portanto, temos que equilibrar isso. Manter o
equilíbrio entre a preservação do meio-ambiente e o
processo de desenvolvimento que nos é muito caro.
Qual é exatamente esse risco?
Cacau Monjardim: O risco é transformar a região sul
num favelão homérico e histórico.
158
E o que tem para dar certo no turismo capixaba?
Cacau Monjardim: Em primeiro lugar temos que
valorizar muito a nossa Montanha. Preservar a nossa
Montanha porque é um relicário de beleza, de vivência, o
terceiro melhor clima do mundo. Está se afirmando hoje
com aquelas idéias que tivemos no passado quando
realizamos lá, pela primeira vez, o Festival Internacional
do Vinho. Meio pedante para a época, já que não
produzíamos vinho nenhum. Mas foi aquilo que deu o
toque a nível nacional, fazendo da região de montanhas
do Espírito Santo, uma região ideal para cultura das
chamadas frutas tropicais de clima frio. E a nossa
montanha hoje tem bons empresários, homens de larga
visão, que estão fazendo da região um verdadeiro
paraíso. Agora, é preciso preservar isso! Não liberar
investimentos imobiliários a toque de caixa. Cada coisa
tem o seu lugar, cada produto da região tem que ter o
seu valor. Cada um dos nossos municípios tem que
valorizar aquilo que nasceu das suas raízes. Frutos das
mãos das suas doceiras, quituteiras, dos que realmente
fazem a força da expressão dos valores municipalistas
do Estado.
Quando o senhor fala do “terceiro melhor clima” isso
é uma peça publicitária ou uma força de expressão?
Cacau Monjardim: Não é peça publicitária não! Isso é
perfeitamente provado. O engenheiro Eliezer Batista da
159
Silva é um dos que mais tem defendido essa tese com
base em estudos feitos ao longo destes últimos trinta
anos. O clima de Domingos Martins, na região de
Pedreiras, é considerado e aceito pacificamente como o
terceiro melhor clima do mundo. Nós temos a vantagem
ainda de termos como presente da natureza os nossos
colibris, as nossas orquídeas... Hoje o nosso pólo de
flores está crescendo. Daqui a pouco, quem sabe não
teremos por aqui uma Holambra, também produzindo
flores para exportação, como já começamos a fazer, é
claro, ainda engatinhando, mas nós vamos chegar lá. É só
preservar, manter as tradições e não deixar que um
cosmopolitismo acelerado faça disso uma lembrança do
passado. É preciso preservar isso.
E sobre o potencial do nosso litoral. O senhor já
falou em Guarapari. E o litoral como um todo?
Cacau Monjardim: É verdadeiramente fantástico. O
Espírito Santo tem condições excepcionais. Nós temos
em cima desse litoral a melhor culinária em frutos do
mar desse país. Isso dito por uma pesquisa do grupo
Abril, que consultou 2340 dos melhores restaurantes do
país, que apontou os frutos do mar do Espírito Santo e,
em especial, a moqueca capixaba, como o prato preferido
dessa região de freqüentadores, exigentes, viajantes,
que conhecem outras culinárias. É preciso partir para um
projeto mais arrojado que leve o Espírito Santo a um
nível de visão mais ampla além dos limites da nossa ilha.
160
Nós tínhamos que pensar internacionalmente. Na Europa
tem 15 empresas operando ferryboats, porque não o
Espírito Santo liderar um processo com a Bahia e o Rio e
fazer aí nessa região um sistema de ferryboats que sirva
ao turismo, sirva à cargas também? Viabilizar ainda um
sistema aquaviário que seja misto, também servindo de
turismo. Por quê não enfrentar com os olhos no futuro, a
necessidade de lutar para transformar Vitória num ponto
especial para receber “caravans”? Nós temos o Espírito
Santo no meio do litoral do país. Muitos vêm do exterior
para fazer campismo de alto padrão, de motohomes,
caravans... Esse é um turismo de alto poder aquisitivo.
Porque não transformar Vitória num porto de entrada
disso para o país? Estamos entre o Norte e o Sul. Daqui
o turista pode sair para conhecer o litoral todo e ainda o
Planalto Central. Hoje, se você chegar de motohome ou
de caravan para viajar pelo Brasil, vai levar em média 20
dias para liberar o seu ingresso. Na Inglaterra você leva
vinte minutos.
Vitória não se enxerga como ilha, turisticamente?
Cacau Monjardim: Não. Vitória pagou aquele tributo de
ficar acanhada, ser aquele velho presépio de
antigamente, isso deve ter dificultado os nossos
administradores de levantarem a viseira e encararem o
oceano como maior profundidade. O Espírito Santo
precisa despolarizar, quer a Grande Vitória, quer o nosso
interior, para fazer um desenvolvimento equilibrado.
161
Precisamos manter nossas populações no interior do
Estado e não trazê-las para a capital, criando condições
para isso. É louvável que hoje se faça uma administração
séria, profundamente identificada com essas aspirações
que temos de preservar. Você só ama aquilo que conhece,
então, é fundamental que nós capixabas conheçamos bem
o Espírito Santo com todos os seus municípios. Eu tive a
felicidade de ter descoberto isso há 30 anos e continuo
dentro destes mesmos propósitos.
Quando o senhor destaca as belezas do Espírito
Santo e, em especial a do nosso litoral, o senhor
considera que elas sejam suficientes para ser um
diferencial já que o Brasil possui um grande e belo
litoral?
Cacau Monjardim: Sim, desde que encontremos bons
referenciais para nos situar dentro deste litoral. Até
hoje estamos brigando por um centro de convenções e de
eventos. Vemos que o programado para Vitória continua
se arrastando em debates administrativos e
burocráticos e aquilo que deveria estar pronto já para
2007 foi reprogramado para 2009. Então isso atrasa o
esforço que está sendo feito.
Falta infra-estrutura para o Estado?
Cacau Monjardim: Claro. Vai nos faltar daqui a pouco
rede hoteleira, por isso é importante que essas redes
162
que estão vindo de fora venham mesmo com suas
técnicas e visões profissionais. Precisamos transformar
o Espírito Santo numa nova imagem. O Estado mudou de
escala e é preciso que nós capixabas entendamos isso.
Mudamos de escala.
Com essa nova imagem o senhor acha que os agentes
de turismo deveriam “vender” o Espírito Santo pelo
Litoral ou pela Montanha, preferencialmente?”.
Cacau Monjardim: Deveriam vender o Espírito Santo
como o maior pequeno Estado do mundo. É uma atração.
Nosso turismo de negócios está crescendo. Você sabe
que para São Paulo se afirmar, o pessoal vai lá pela alta
produtividade de seu parque empresarial e industrial.
Nós temos um parque aqui que poderia ser explorado, ser
uma grande atração, e tentar fazer com que o
empresário que vem aqui trabalhar e investir prorrogue o
seu tempo de permanência no Estado. Nós temos que
saber conquistá-los. Seja através de uma boa mesa, de
belas paisagens, de manifestações culturais, artísticas e
folclóricas... Valorizar isso. Fazer disso o nosso banco de
investimento. Nós temos que criar um banco de
investimento turístico capaz de motivar e diferenciar o
nosso turismo dos demais Estados criando marcas
próprias, coisas próprias, referenciais próprios.
163
Esse tema vem sendo bem discutido aqui no Estado?
Cacau Monjardim: Infelizmente, não. Você vê que os
vários Governos falam muito em turismo. É a simpatia de
falar em turismo. Mas quando chegam ao Poder pouco ou
nada fazem pelo turismo. Seriam muitos poucos os nomes
dos Governadores que emprestaram ao turismo uma
certa importância. Eu destacaria a preocupação de
Christiano Dias Lopes, quando criou a Emcatur, a
preocupação do Elcio Álvares, quando deu curso à
Rodovia do Sol, ao doutor Arthur Carlos Gerardt Santos
, que também deu grande apoio à Emcatur... Mas não
tivemos continuidade. No entanto, pudemos participar do
crescimento da Bahiatursa, quando se implantou, com um
estatuto que era cópia fiel do estatuto da Emcatur. Só
que eles tiveram o Antonio Carlos Magalhães e a
continuidade administrativa.
Qual a proposta do senhor para dinamizar o turismo
do Espírito Santo?
Cacau Monjardim: O turismo hoje é uma coisa
fantástica. Precisamos fazer com que esse tremendo
potencial seja encarado com responsabilidade e,
sobretudo, como fator de desenvolvimento econômico.
164
Que ações objetivas o senhor sugere?
Cacau Monjardim: Criar uma infra-estrutura com os
padrões de turismo de primeiro mundo, com boas
rodovias, transporte, profissionalização, opções, custos...
Tentar nivelar os nossos custos. Já tivemos os menores
custos do país e estamos perdendo essa característica.
Temos também de valorizar os nossos produtos e
implantar pólos de atração turística no sul e no norte, em
torno da lagoa Juparanã.
O que falta para que os agentes de turismo vendam
melhor o Espírito Santo, oferecendo nosso Estado nos
pacotes turísticos?
Cacau Monjardim: O Espírito Santo precisa ser mais
agressivo em termos de marketing. Temos de vestir a
camisa, partir e ir conquistar nichos de mercado. Isso é
feito com um certo acanhamento, falta de recursos.
Então tem que haver, realmente, uma política para isso.
Eu acredito que agora, no curso desse processo de
desenvolvimento para os próximos 20-25 anos, cabe
colocar o turismo na escala das grandes preocupações do
Estado. O turismo é um instrumento social, de geração
de empregos, de valorização da cultura, das raízes e do
passado. Paul Valèry disse que uma das coisas mais
importantes do mundo foi a invenção do passado e do
futuro. Temos que nos valer da experiência do passado e
ingressar no futuro vestidos a rigor.
165
O senhor fez frases famosas como “moqueca é
capixaba, o resto é peixada”. Qual a importância
desta frase?
Cacau Monjardim: Continuar fazendo da moqueca uma
autêntica moqueca capixaba. Essa frase transformou-se
num símbolo de simpatia cuja veracidade tem sido
testada e provada. Porque se fosse só uma frase, já
teria desaparecido.
166
Marco Antonio Cypreste de Azevedo é profissional do
turismo dos novos tempos. Engenheiro Civil e
Administrador de Empresas, já foi Diretor-presidente
do Acquamania (parque aquático), Diretor-comercial do
Hotel Fazenda Flamboyant, membro do Conselho
Nacional de Turismo entre 1998 e 2001 e, pela segunda
vez, é o Presidente do ES-Convention e Visitors Bureau,
entidade criada em 22 de maio de 1998 que já captou ou
apoiou mais de 240 eventos regionais, nacionais e
internacionais. Esta entrevista, como não poderia deixar
de ser, foi num lugar apropriado ao assunto: a pérgula da
piscina do Hotel Hostess Costa do Sol, em frente à Praia
da Costa, em Vila Velha. Marco Azevedo é direto e sem
rodeios quando diz, por exemplo, que “não queremos ser
visitados por turistas que não convidamos...”.
O que é o Convention Bureau e porque foi criado no
Espírito Santo?
Marco Azevedo: É uma fundação. Uma entidade que tem
por objetivo a atração de negócios com foco no turismo.
O “convention” é uma entidade que já existe no mundo há
mais de cem anos, e o objetivo é criar essas demandas
turísticas. Em todos os sentidos que se fale em turismo:
negócios, eventos, lazer, religioso... Tudo isso congrega
as atividades do convention. É uma entidade privada, sem
participação do governo do Estado, nem dos municípios.
Estamos com oito anos de Convention Bureau. É um nome
167
internacional, de fantasia, que facilita o acesso de
pessoas do exterior que podem pesquisar em nosso site.
Qual tem sido o resultado da atuação aqui no Estado?
Marco Azevedo: O que permitiu a criação do Convention
foi o crescimento da oferta hoteleira da cidade. Com
isso, nos organizamos em torno de todo o trading
turístico: agências de viagem, hotéis, empresas de
eventos, profissionais liberais que interagem nessa área,
que criaram essa organização. Temos mais de 340
eventos realizados, temos um turista de eventos de
negócios gastando aqui por dia, cerca de trezentos e
trinta reais, e somos responsáveis por 10% do
crescimento do fluxo turístico na Grande Vitória.
O turismo do Espírito Santo é apontado como uma
atividade que não decolou. Qual a avaliação que o
senhor faz disso?
Marco Azevedo: Fala-se muito do potencial turístico do
Espírito Santo e basta ver os resultados que temos
obtido. Temos uma das melhores taxas de ocupação
hoteleira do Brasil, aqui na Grande Vitória. Temos um
gasto médio, diário e individual, alto. O que precisamos
fazer com o Espírito Santo é levar todas as regiões a
participarem desse desenvolvimento, que se aproximem
do que é Vitória e Vila Velha hoje. Hoje nós temos um
modelo que se repete pelo nosso litoral sul e norte com
168
um turista que não atende aos princípios da auto-
sustentabilidade social, econômica e até ambiental. Esse
turismo tem que respeitar isso. Fala-se muito que o
turismo não polui, mas polui. Então, esses dois trechos do
litoral estão precisando de uma assistência maior para
que possam acompanhar o desenvolvimento da capital. E
temos também a questão da região de montanhas, que
atrai um turista mais local. Tem um grande potencial de
crescimento, mas temos de cuidar para que esse turismo
também seja auto-sustentável. Para que a região não
seja transformada numa favela.
Nessa visão mais técnica do turismo o que o senhor
aponta como algo que não deu certo e precisa ser
mudado?
Marco Azevedo: O Espírito Santo paga um preço pela
localização geográfica dele. Aquilo que era uma vantagem
competitiva no passado quando o turista se deslocava
principalmente de automóvel e ônibus, deixou de ser
vantagem para nós. Outras regiões se desenvolveram
com novos equipamentos, novos hotéis, resorts, uma
estrutura mais organizada no marketing, e nós ficamos
para trás, não acompanhando esse desenvolvimento. Essa
proximidade fez com que o nosso litoral sofresse com a
grande quantidade de turistas nos períodos pequenos do
ano. Esse modelo pode ser visto em Guarapari e todas as
cidades do nosso litoral. Precisamos trabalhar a
quantidade de carga que essas cidades podem receber.
169
Não podemos mais trabalhar o turismo nessas cidades
como quantidade. Temos que qualificar o turista que nos
visita. Acho que esse é o grande ponto.
O turismo de negócios é para a Grande Vitória e o de
lazer para o restante do litoral?
Marco Azevedo: O turismo de negócios da Grande
Vitória é fruto, principalmente, das nossas indústrias:
CST, Vale, Aracruz, Chocolates Garoto... Isso fez com
que tivéssemos um fluxo de negócios aqui. Junto a isso
entramos com o turismo de eventos. Mas podemos
trabalhar esse turismo de eventos, também, nessas
outras regiões. Na região das montanhas temos um
projeto junto ao governo que é o “portal do futuro” que é
contemplado com um centro de convenções. A própria
Guarapari tem outro projeto do Governo na região do
clube Siribeira, dentro do projeto de recuperação da
cidade, um projeto para um Centro de Convenções para
mil e duzentas pessoas. Isso vai facilitar para que a
gente tenha um fluxo anual, mais contínuo. Porque ficar
trabalhando apenas com a sazonalidade, nos leva àqueles
grandes problemas de sempre. Por quê não qualificamos a
mão de obra? Mas quem é que vai qualificar um
funcionário que só trabalha um mês por ano? Esses são
alguns dos desafios que a gente tem.
170
Temos ainda espaço para o turismo de lazer ou só há
projetos para o turismo de negócios e eventos?
Marco Azevedo: Nós temos um resultado muito
interessante nisso aí. Eventos semelhantes aos
realizados em outros lugares, quando vêm para Vitória
recebem uma quantidade maior de inscrições. Nós temos
um lado muito forte nessa área de lazer. Uma pessoa
quando vem para um evento em Vitória traz sempre um
acompanhante. Então isso potencializa o nosso
desenvolvimento. Isso deve ser trabalhado nessas
regiões. Mas como trabalhar isso na parte do ano em que
não aparecem os turistas de lazer? Temos terceira
idade, turismo religioso, Passos de Anchieta que é um
projeto importante. A realização de eventos pode ajudar
a todas essas regiões a terem um fluxo permanente. E
até um fluxo interno. Atraindo também turistas das
nossas divisas com Minas, Rio e Bahia, mas dentro
daquele princípio: turista com auto-sustentabilidade.
Temos que definir qual o turista que queremos. Porque,
senão, seremos visitados sempre por um turista que não
convidamos.
Isso depende basicamente de quem: operadoras,
Prefeituras?
Marco Azevedo: É um ponto difícil. Mas tem que ser
trabalhada a união de todos. O Estado tem mostrado
isso. A “intervenção” em Guarapari serve como um
171
laboratório para outras ações desse tipo. Os municípios
devem se preparar para fazer adesão à estes projetos.
Temos que qualificar o empresário. Na nossa região de
litoral temos um empresário que ainda não está
qualificado para participar desse mundo globalizado com
toda essa concorrência que existe. Então tem que
preparar ele, e depois preparar a equipe dele. E a
questão municipal: temos que escolher melhor os nossos
prefeitos. As nossas regiões do litoral ainda estão
naquela parte antiga do turismo onde se pensa que
quantidade é o que vai dar resultado, e não é. Precisamos
de um turista de qualidade.
Então, deve-se repensar essa forma que foi adotada
até hoje?
Marco Azevedo: Ela não foi pensada. Essa forma vem
acontecendo. Precisamos falar, vamos parar aqui agora e
perguntar: como é o turismo hoje? Não adianta
enchermos as nossas cidades de turistas e no final
ninguém sai ganhando. A população local não ganha, o
meio-ambiente é depredado, o empresário local não
consegue sobreviver, novas empresas não são criadas,
não geram imposto. Para que vamos querer esse fluxo
turístico? Essa é a questão. O turismo virou uma ciência.
Não é mais feito empiricamente, faz um hotel e pronto.
Não. Veja as grandes redes de hotéis de hoje, tem
escritórios no mundo todo. Como o pequeno hoteleiro
hoje vai poder participar desse mundo? Então existe a
172
questão da união. Ele tem que estar unido à sua região, o
Estado tem que participar é muito importante também a
participação do Sebrae nesse processo.
A mudança desse perfil basicamente no litoral não
pode gerar uma imagem antipática da cidade com os
turistas que sempre freqüentaram aquele balneário?
Marco Azevedo: Eu tenho ouvido o governador falar
sobre isso, dizendo que não se faz uma omelete sem
quebrar os ovos. Precisa reorientar. As cidades no mundo
todo vêm mostrando isso. Veja o exemplo de Veneza, a
cidade cobra ingresso das pessoas. Exemplos no Brasil: o
balneário de Camboriú (SC), controla o fluxo turístico.
Vai uma excursão para a cidade? Então, se cobra uma
taxa, tem um período que pode ficar, precisa dizer onde
os turistas ficarão hospedados. O Estado que tem o
poder de fiscalização também tem que fiscalizar os
hotéis para ver se estão dentro dos padrões... Enfim, é
um trabalho conjunto e ninguém vai vencer esse desafio
se não for em conjunto.
Nas montanhas o turismo já está nascendo de
maneira mais racional ou também precisa rever suas
diretrizes?
Marco Azevedo: Eu acho que a montanha pegou um bom
momento. Nós despertamos antes na montanha do que no
litoral. Lá os prefeitos já estão compreendendo isso
173
melhor. Já se trabalha os Pdms (plano diretor municipal)
da região, já se tem um projeto preparado por uma
grande empresa de auto-sustentabilidade para a região.
Acho que vamos conseguir salvar a montanha. Não vamos
precisar errar lá também.
Esse é um tema político?
Marco Azevedo: Lógico. O turismo é um grande gerador
de receita, renda, emprego. No futuro os empregos vão
estar mais nessa área de lazer, diversão, turismo. Veja
os investimentos que são feitos hoje em Catar,
Andorra... Os investimentos são grandes nessa área.
Acho até que estão se preparando para quando acabar o
petróleo... Vamos preparar também o Espírito Santo e
fazer com que todos que estão aqui hoje participem
desse desenvolvimento.
Além do Executivo, o Legislativo também deve se
envolver com esse “mutirão”?
Marco Azevedo: Acho que os três Poderes estão
envolvidos nisso. Quando há uma invasão numa região nós
precisamos do Poder Judiciário. Precisamos de decisões
firmes. Se não, como vai ser? Estamos falando da
construção de uma nova usina siderúrgica na região de
Guarapari e Anchieta. Mas não precisamos sofrer o que
já passamos da vez anterior. Esse desenvolvimento
desordenado, invasão de terras, criação de favelas, a
174
violência explode. Acho que já aprendemos, não é? Todos
têm consciência disso. A auto-sustentabilidade, hoje, é
tema nas empresas, no Governo... O Legislativo também.
Existem leis importantes para serem votadas. Veja por
exemplo a questão das férias escolares. A Lei Rouanet
foi um grande avanço no Brasil, mas não atende mais as
nossas necessidades do momento. Nós tiramos o mês de
fevereiro das férias escolares. Para que a indústria do
lazer e do divertimento se desenvolva precisamos voltar
com esse mês de férias, pensar num novo calendário
escolar durante o ano, aumentar a carga horária diária,
incluir alguns sábados durante o ano para compensar e
ganhar um mês de férias a mais. Nos grandes países é
dessa forma. É na Europa, é nos Estados Unidos. O Brasil
precisa acordar para esse lado.
Qual o desafio para revitalizar o turismo no Espírito
Santo?
Marco Azevedo: Resumidamente, essa re-estruturação
das cidades com vistas ao desenvolvimento sustentável,
centro de convenções, o aeroporto de Vitória e qualificar
o nosso turista. Tem uma coisa que nós sempre brigamos
que é a questão da imagem. Durante anos, o Espírito
Santo passou sendo mal visto pelo Brasil inteiro como
uma região de violência. Mas o Estado mudou nos últimos
anos. Temos um Estado novo. A violência é um problema
mundial que precisa ser controlado. Hoje a divulgação da
nova imagem do Estado não é só para atrair fluxo
175
turístico. É também para atrair novos moradores de alta
renda, de empresas para negócios principalmente na área
de serviços. Trabalhar a imagem do Espírito Santo como
um lugar bom para se divertir, para morar e para
investir. Acho que esse é o nosso grande desafio.
Se tivesse que escolher apenas um ponto para
privilegiar um início de trabalho, qual seria a sua
escolha?
Marco Azevedo: Um plano de metas. Temos um
Planejamento Estratégico já feito. Então, escolheria
algumas metas para os próximos quatro anos e privilegiar
isso aí. Então, criar uma nova imagem para o Espírito
Santo no Brasil e no mundo. Essa questão de qualificar o
turista... É difícil você pegar uma coisa só. Não tem uma
única bala que vá matar esse monstro, não tem.
Para ficar mais claro: quando o senhor fala em
melhorar a imagem do Espírito Santo, como fazer isso
diante de fatos que nem sempre são positivos?
Marco Azevedo: Marketing! Você tem que explorar
seu lado positivo. Lado negativo todo mundo tem.
Violência, que é o calcanhar de Aquiles, é uma
característica mundial. Temos que agir para que isso não
cresça, para que controlemos o problema, mas temos de
divulgar nosso lado positivo. Poxa, esse lugar é lindo, não
é? Temos tudo para desenvolver o turismo aqui. Muito
mais do que já é.
176
DESAFIO 9
ANALFABETO FUNCIONAL
Numa palestra no Município capixaba de Nova
Venécia em 2006, o Educador e Psiquiatra paulista Içami
Tiba disse que a implantação do Sistema de Progressão
Continuada, que não deixa alunos reprovados nas escolas,
“está criando delinqüentes”. Neste encontro com
professores da Cidade, ele fez uma analogia entre a
ética e a educação e pediu aos professores uma atitude
de mudança, “arranjando um jeito de transformar
informação em conhecimento”. O Educador conclama
professores a dar novos passos, convictos de que o que
aprenderam na faculdade não será suficiente, sem
atualização, e pede aos pais que exijam mais de seus
filhos que estão “se tornando irresponsáveis na casa e na
escola”.
O debate sobre os rumos da Educação tem
ocupado cada vez mais espaço em jornais, revistas e
livros. Num seminário promovido pelo jornal O Estado de
São Paulo, o tom foi o mesmo. O Economista e Mestre em
Educação, Cláudio de Moura e Castro, articulista da
revista Veja, com mais de 30 livros publicados, expôs o
problema: “o acesso ao ensino básico cresceu de modo
espetacular no Brasil. Mas a qualidade dele nos põe na
rabeira do mundo”. Segundo ele, o problema da Educação
Brasileira não é o que se faz de errado hoje, mas o que
se deixou de fazer por quatro séculos e meio.
177
De fato, o acesso à educação fundamental
melhorou nos últimos 10 anos. 90% das crianças entre
sete e quatorze anos já estão dentro da Escola, na
chamada universalização do acesso. O analfabetismo
diminuiu, mas uma nova questão ganhou destaque: a
qualidade do ensino. E um conceito começa a ser cada vez
mais debatido: o analfabeto funcional. Trata-se de uma
pessoa que freqüentou os bancos escolares em até
quatro anos, mas tem dificuldade de interpretar textos,
ter acesso à vida digital e até manusear um simples caixa
eletrônico. O conceito foi adotado pela ONU justamente
para a pessoa que, mesmo sabendo ler e escrever frases
simples, não possui as habilidades necessárias para
satisfazer às demandas do seu dia-a-dia e se
desenvolver pessoal e profissionalmente.
Os dados estatísticos da inclusão no ensino, nos
últimos anos, podem parecer positivos por terem
reduzido as taxas do analfabetismo clássico. Mas
tornam-se negativos, quando identificamos as
dificuldades do analfabeto funcional.
Recentemente o Ministério da Educação criou
algumas ferramentas para aferir a qualidade do que anda
sendo ensinado nas escolas brasileiras.
178
ENADE: O Exame Nacional de Desempenho de
Estudantes tem o objetivo de aferir o rendimento
dos alunos dos cursos de graduação em relação aos
conteúdos programáticos.
ENEM: Exame Nacional do Ensino Médio. É um exame
voluntário. Foi aplicado pela primeira vez em 1997.
PROVA BRASIL: Foi idealizada para produzir
informações sobre o ensino oferecido por municípios
e escolas, individualmente, com o objetivo de auxiliar
os governantes nas decisões e no direcionamento de
recursos técnicos e financeiros para a melhoria do
ensino. A primeira edição foi em 2005.
No Prova Brasil, em 2006, o Espírito Santo foi o
Estado do Sudeste com o pior desempenho em
matemática e língua portuguesa nas turmas de quarta
série de escolas públicas. Em língua portuguesa os
estudantes do Espírito Santo tiveram 176,14 de média. O
primeiro lugar no sudeste é de Minas Gerais, com 182,13,
seguido do Rio de Janeiro com 178,40 e São Paulo com
178,19.
Em matemática, os alunos capixabas tiveram 182,85 de
média. A maior pontuação, mais uma vez, foi de Minas
Gerais, com 190,48; seguido do Rio de Janeiro com
184,44 e de São Paulo com 183,60.
Apesar do baixo desempenho, os resultados capixabas
ainda estão acima da média nacional.
179
O Especialista em Políticas Públicas Roberto Garcia
Simões, Engenheiro Civil por formação e Professor
Universitário há 25 anos, é um pesquisador dos
problemas da Educação brasileira, em especial do
Espírito Santo. Ele pede o envolvimento de toda a
sociedade para as questões do sistema educacional. Diz
que os políticos têm se mostrado mais interessados na
aprovação em massa dos alunos por questões eleitorais,
ainda que a qualificação seja prejudicada. Para a
aprovação acelerada, segundo Simões, foram criadas
várias iniciativas, entre elas, a possibilidade de um
estudante poder cursas duas séries em apenas um ano. O
que, na opinião do professor, será prejudicial no futuro
porque melhora os índices, mas piora a formação. Nesta
entrevista, em seu gabinete na Universidade Federal do
Espírito Santo, Roberto Simões diz que aprova as
avaliações que estão sendo feitas para medir a qualidade
do estudo. Diz que o ENEM e o Prova Brasil são bons
exemplos para que se possa medir o desenvolvimento e o
aprendizado do aluno. Mas reprova os administradores
públicos que ainda acreditam que bom projeto para a
educação é “edificar prédios bonitos e dotá-los de
computador”. “É preciso valorizar, também, a beleza do
professor bem preparado”, sentencia.
180
Se os índices mostram que o acesso à educação
melhorou, por quê a qualidade não acompanhou?
Roberto Garcia Simões: Em primeiro lugar porque esse
acesso se deu de forma muito concentrada. Numa década
nós universalizamos o acesso à educação de sete a
quatorze anos e esse fato fez com que perdêssemos a
qualidade que existia antes com a baixa quantidade.
Agora chegamos à alta quantidade –90% estão nas
escolas - mas o grande desafio é a qualidade. No ensino
infantil e no médio nós ainda padecemos de quantidade e
de qualidade.
Como a gente pode constatar que a qualidade piorou?
Roberto Garcia Simões: Isso é constatado nos exames
nacionais de avaliação, como o “Prova Brasil” e o “Enem”
que é o exame nacional de ensino médio. O “Prova Brasil”
mostra, por exemplo, no caso do Espírito Santo, que no
ensino médio em Vitória, a escola particular que obteve o
melhor desempenho, chegou a 70 pontos em 100. E a pior
escola do Estado, localizada no extremo norte, em ponto
belo, não chegou a 30 pontos. A gente vê que predomina
uma desigualdade de oportunidades. A prova mostrou
também que, dentro de um mesmo município, tomamos
como exemplo Vitória, a diferença entre a escola pública
que teve o maior número de pontos - a de Jardim da
Penha -, e a que teve o menor número de pontos - a de
São Pedro-, a educação não está contribuindo para
181
reduzir as desigualdades sociais. Então, nós temos que
tratar a educação de uma forma que ela –efetivamente-
contribua com conhecimentos, habilidades, mas que
também tenha o papel de evitar que dentro de uma
mesma rede de ensino não haja tanta diferença.
E por quê isso acontece? Por quê há tanta diferença
numa mesma rede de ensino?
Roberto Garcia Simões: As situações sociais são
diferentes, os contextos são diferentes. Em vez de
dotar a escola mais necessitada com o docente de maior
capacitação, uma atuação de políticas públicas integradas
nesse bairro mais pobre, para que os alunos tenham um
reforço em todos os sentidos, isso não acontece. Ele tem
o mesmo tratamento que tem o aluno num bairro de
maior renda. Tratando desiguais de forma igual, o
resultado na educação acaba sendo esse, uma assimetria
no acesso ao conhecimento.
Qual a relação dessa situação com o conceito do
analfabeto funcional?
Roberto Garcia Simões: Nós estamos nos deparando
agora com o analfabeto funcional. Antes tínhamos o
analfabeto clássico. Com esse processo crescente de
alfabetização e de inclusão quantitativa nas escolas, nós
estamos chegando a uma situação que mesmo aquelas
pessoas que completaram os quatro anos básicos de
182
estudo, não sabem ler nem escrever. E isso faz então
com que, muitas vezes, esses números que mostram o
crescimento do acesso, que as pessoas estão mais na
escola, que reduziu o analfabetismo, isso tenha que ser
relativizado. Agora os desafios são outros. Esse que
aprendeu as noções básicas precisa aprender a ler um
texto, interpretar, saber tomar as decisões relacionadas
à sociedade, ao seu voto, e para tudo isso ele precisa ter
conhecimento.
Ele não consegue fazer isso?
Roberto Garcia Simões: Não consegue fazer porque,
mesmo aqueles que estão chegando à oitava série, o
conhecimento que tem, corresponde à quarta série. Ou
seja, precisamos diminuir essa idéia de que a aceleração
de turmas e a progressão a qualquer custo dos alunos na
escola, para manter índices “positivos”, pode estar
revelando um grande “negativo” do ponto de vista da
qualidade do ensino.
O senhor então é contra esse sistema de aprovação
automática e de aceleração do aluno?
Roberto Garcia Simões: Sem dúvida. Nós precisamos
não é reprovar por reprovar. Mas também não podemos
achar que aprovar por aprovar esteja contribuindo no
processo de formação de um cidadão que precisa ter o
183
conhecimento que uma sociedade requer. E ser for
necessária, a reprovação é um “mal” muito importante.
Como um Especialista em Políticas Públicas, o senhor
diria que o analfabeto funcional causa um mal à
sociedade?
Roberto Garcia Simões: O analfabeto funcional tem
total dificuldade de relacionamento na sociedade. Não é
que o problema esteja com ele, isso é um problema de
toda a sociedade que está concentrado nele. Ele tem
dificuldades para pegar um ônibus, para participar do
processo eleitoral, para influenciar uma decisão que lhe
interessa. Tudo isso ele tem dificuldades. O repertório
dele é mínimo, e sendo mínimo ele não consegue
distinguir entre o que está colocado para fazer uma
opção, seja ela econômica, social, política ou institucional.
Como ele reage nas eleições e após as eleições?
Roberto Garcia Simões: Todo cidadão que tem poucos
recursos de conhecimento não consegue avaliar uma
proposta que está sendo feita, cobrar uma proposta com
maior qualidade, ou até uma explicação melhor. Muitas
vezes esse reducionismo das propostas apresentadas
pelos políticos é para atender a essa baixa formação do
entendimento na sociedade. Muitos deles dizem isso:
“para uma sociedade que tem baixo conhecimento, as
propostas não podem ser requintadas”. Veja bem que,
184
também quando ele chega ao poder, muitos não fazem
muito para melhorar essa educação, porque essa
educação baixa favorece a sustentação de determinadas
práticas políticas clientelísticas, inadequadas à
sociedade.
O gestor público entende de Educação?
Roberto Garcia Simões: O gestor público tem uma visão
dominante de que Educação é só construir prédios
bonitos e, agora, colocar laboratórios de informática.
Tudo isso é importante, necessário, mas o básico é a
formação e a capacitação dos docentes, de forma
continuada, com um bom conhecimento, uma boa relação
com os alunos. Principalmente, associar políticas públicas
que favoreçam o bom desempenho das famílias para que
elas tenham uma renda básica, que se traduza em
condições que sirvam de apoio ao filho. Ou seja, não
basta só ter a visão física da beleza dos prédios, é
preciso também ter a visão da beleza de um bom
professor, uma boa professora, ensinando
adequadamente para os alunos e alunas e interagindo com
eles.
O senhor acha que a sociedade e a família entendem
dessa forma ou ainda preferem os belos prédios?
Roberto Garcia Simões: Nós precisamos ser
reeducados para aprender. Nós devemos também
185
valorizar não só a apresentação de que eu construí dez
prédios, melhorei cinco escolas, como fala a grande
maioria dos políticos. É fundamental saber quantos
docentes foram efetivamente capacitados. Qual a
perspectiva de melhora do salário do profissional e em
quanto tempo isso tudo se dará. Não podemos imaginar
que a cada quatro anos tenha uma nova proposta para a
educação. Precisamos de um projeto de longo prazo para
a Educação e que tenha continuidade. Que todo esse
processo comece já. Não se pode fazer mágica da noite
para o dia, mas precisamos saber que com esses salários
dos docentes, com essa estrutura das escolas –sem
bibliotecas, sem valorizar o que é central na educação -
nós não caminharemos. Com belos prédios, mas com
pobreza do ponto de vista do que interessa à educação.
A Educação não é sempre apontada como prioridade
pelos políticos?
Roberto Garcia Simões: A gente nota que, no palanque,
o social é prioridade. No Palácio, no Poder, o econômico é
que ganha a prioridade. Essa dissociação faz com que o
social, de fato, fique subordinado ao econômico. O ideal
é que haja uma interação, com o econômico servindo para
se dar conta desses desafios. Penso que o fundamental é
que a gente tenha uma ação que transforme essa carga
tributária, esses impostos, em resultados para a
sociedade. Se eu pudesse contribuir, diria que a tônica é
que nós demandássemos além de condições físicas
186
adequadas, uma avaliação do ensino. Cada um tem que
saber qual a avaliação da escola do seu filho, seja ela
pública ou privada, qual o caminho que ela está tomando
para melhorar. Isso requer uma política de longo prazo
para cada escola que não pode ser mudada a cada eleição.
Qual, então, a proposta do senhor para melhorar a
qualidade da Educação?
Roberto Garcia Simões: Uma avaliação ampla de cada
escola. E que essa avaliação ampla seja fundamental para
subsidiar a definição de um projeto para estas escolas,
com os investimentos necessários. Portanto, a minha
proposta é avaliação com projeto de investimento numa
visão de longo prazo.
Avaliação complementar a que já é feita hoje, como o
Enem, por exemplo?
Roberto Garcia Simões: Nós temos que nos valer do
Enem, do Prova Brasil, mas tem avaliações
complementares que tem de ser feitas em cada escola.
Essa avaliação tem que ouvir a sociedade, especialistas
de fora, enfim, combinar diferentes instrumentos para
que a gente possa ter uma base para entender que a
mudança na Educação não se dará no âmbito do Poder
Federal, Estadual, Municipal, mas no âmbito de cada
escola. Mas para que cada escola mude é preciso de
outras questões mais gerais como as condições universais
187
de ensino que são o salário do docente, a biblioteca, a
capacitação, as políticas integradas. Mas o centro,
repito, é a avaliação na escola.
188
Cláudia Gontijo é coordenadora do Curso de pós-
graduação da UFES em Educação. Especialista em
alfabetização de crianças é responsável pela disciplina
de Alfabetização. Para ela o analfabetismo funcional é
resultado da falta de uma política educacional séria. Diz
que não existe comprometimento com o sistema que
engloba alunos, professores e família e que este
triângulo é tratado separadamente, de forma isolada.
Segundo ela, os problemas do uso da leitura e da escrita
já estão chegando à Universidade. Cláudia Gontijo diz
que a universalização do ensino criou uma nova situação
na sala de aula. Os professores têm que lidar com um
novo mundo, mais complexo, com contradições sociais, e é
preciso ajudar o professor nisso: “Precisamos de um
professor mais bem preparado para lidar com os diversos
problemas e situações que surgiram com a vinda das
classes menos favorecidas para a escola”. Nessa
entrevista Cláudia Gontijo deixa claro que o maior
desafio da educação é o desequilíbrio social.
Quais são os principais problemas da Educação hoje
no País?
Cláudia Gontijo: O principal problema é que o sistema
educativo brasileiro continua produzindo analfabetos e
analfabetos funcionais.
189
E o que é, na visão da senhora, o analfabeto
funcional?
Cláudia Gontijo: O analfabeto funcional é justamente
aquela pessoa que apesar de ter passado pela escola
ainda não consegue fazer uso da escrita nas diversas
situações sociais. Não consegue fazer uso da leitura e da
escrita na vida. Não consegue fazer um requerimento
para reivindicar um direito seu, tirar um dinheiro no
caixa eletrônico, escrever textos, ler textos mais
complexos, são diversas as situações em que a pessoa
ainda não aprendeu. Essa pessoa é um analfabeto
funcional. E o sistema educativo tem, atualmente,
produzido analfabetos funcionais.
Por quê?
Cláudia Gontijo: existe uma série de razões. Desde
razões pedagógicas até e, principalmente, a falta de
políticas públicas que privilegiem a Educação neste País,
sobretudo no ensino fundamental. Mesmo que hoje nós
tenhamos na legislação vigente, na Constituição
Brasileira e no próprio Plano Nacional de Educação, o
prescrito de que o ensino fundamental é prioridade,
infelizmente, ele ainda não é prioridade. Porque falta
uma política de valorização do magistério, faltam
condições para o desenvolvimento de um trabalho de
qualidade. O que houve no Brasil nos últimos anos foi uma
expansão quantitativa. Hoje você tem como índices do
190
MEC que praticamente toda a população tem acesso ao
ensino fundamental. Mas esse avanço quantitativo não foi
acompanhado de uma melhoria qualitativa da educação e
de políticas públicas que garantissem essa qualidade.
O problema do Brasil é o problema do Espírito Santo
também?
Cláudia Gontijo: No Espírito Santos os problemas em
algumas situações e em alguns municípios parecem ser
mais sérios. Porque o Espírito Santo tem índices de
analfabetismo maiores que em outros Estados da região
Sudeste.
Por quê isso acontece aqui?
Cláudia Gontijo: as causas são diversas. A gente tem
visto em algumas situações, tentativas de melhorar a
Educação, tentativas de estabelecimento de certas
políticas, mas o que se observa é que são políticas que
tem um caráter exclusivamente compensatório e que não
tratam as questões cruciais da Educação. Então, você
tem políticas como da progressão continuada que foram
pensadas para solucionar o problema do fracasso escolar.
Na década de 80, por exemplo, 50% das crianças que
entravam na primeira série eram retidas na primeira
série, existia uma cultura da reprovação. Não aprendeu
no final do primeiro ano, o aluno é reprovado. O sistema
de ciclos, ou bloco único, implementado no Espírito
191
Santo, acabou tentando resolver essa questão do
fracasso escolar. Contudo, essas questões, se não
acompanhadas de um trabalho sistemático com as
crianças que apresentam alguma dificuldade na escola, e
com a formação dos professores que devem atuar junto
à essas crianças, acabam mascarando uma realidade e
aumentando os índices de aprovação. Na verdade não
solucionam os problemas de aprendizagem.
O que é a progressão continuada?
Cláudia Gontijo: A progressão continuada às vezes é
confundida com a progressão automática. Antigamente,
ao final de cada série o aluno era avaliado para ser
aprovado ou reprovado. Dependia do rendimento desse
aluno. Com a progressão continuada não existe mais a
reprovação ao final de cada ano escolar. Ou ela poderá
ocorrer ao final de um ciclo de estudos que pode durar
de dois a quatro anos, ou a reprovação pode nem ocorrer.
Na verdade, a progressão continuada rompeu com a
cultura da reprovação que era forte no meio educacional.
Mas na forma como foi implantada, sem
acompanhamento, ela acabou não se realizando. Então ela
virou uma progressão automática no sentido de
regularizar o fluxo escolar, de garantir que as crianças e
adolescentes passassem pela escola, sem que houvesse
uma preocupação de fato com a garantia da
aprendizagem.
192
Isso acaba dando resultados positivos para as
estatísticas, mas negativos com a educação dos
alunos?
Cláudia Gontijo: Exatamente. As estatísticas vão bem,
as crianças passam pela escola. A questão grave e
fundamental da Educação hoje é como garantir que as
crianças aprendam na escola. E essa é uma questão que
nenhuma dessas políticas que foram implantadas,
progressão continuada, ciclos, entre outras, não
conseguiram dar conta disso.
A progressão continuada agravou o problema e
permitiu o surgimento do analfabeto funcional?
Cláudia Gontijo: Eu não sei se a progressão continuada,
sozinha. Eu sei é que a progressão continuada, sem um
trabalho de acompanhamento, não vai solucionar o
problema. Mas não é ela em si. Porque a questão não é de
progressão, não é de reprovação. A questão de se ter
políticas que incidam em projetos e programas que não
sejam de caráter compensatório que reflitam
efetivamente sobre a aprendizagem. E sobre a própria
formação do professor. Um problema que atualmente é
complicado, e vem se complicando cada vez mais. Os
professores, diante de seus salários, cada vez tem mais
carga horária e menos condições de se dedicar ao
trabalho com suas crianças.
193
Esses problemas que a senhora relata na formação
escolar chegam à Universidade?
Cláudia Gontijo: Chegam até a Universidade. Na própria
Universidade Federal do Espírito Santo a gente percebe
nas salas de aula os problemas de uso da leitura e da
escrita. Algumas pesquisas, como as feitas na UFMG e na
UNICAMP, com candidatos ao vestibular tem verificado
as dificuldades que os candidatos tem de se expressar
por meio da escrita. Falta-lhes conhecimento da língua e
conhecimento de mundo.
É o analfabeto funcional?
Cláudia Gontijo: Exatamente. É aquele que não sabe
fazer uso da escrita nas diversas situações sociais. Não
sabe escrever um bilhete, não saber fazer um pedido por
escrito, lê textos, mas não consegue compreender, não
consegue fazer uma leitura crítica dos programas de
governo e das promessas dos políticos à luz das suas
necessidades e das necessidades sociais. Não consegue
interpretar e isso acaba levando que as pessoas às vezes
elejam candidatos que menos condições tem de
constituir, por exemplo, políticas educacionais
importantes.
194
Quer dizer, então, que o problema acaba se
refletindo na escolha dos nossos representantes na
política?
Cláudia Gontijo: Certamente. Porque uma das coisas que
precisamos aprender é fazer uma leitura crítica daquilo
que nos é transmitido. Em todas as situações: pela mídia,
nos palanques pelos candidatos... E para isso é necessário
ter uma leitura crítica, e quando não se tem acaba-se
elegendo pessoas que vão legislar ou governar em
benefício próprio ou de grupos privilegiados. A Educação
é sempre um tema importante em período de eleição.
Pena que seja só em período de eleição. Veja que é uma
bandeira importantíssima. Todos os políticos e
candidatos, de forma ou de outra, mencionam a Educação
em seus Programas, mas, pelo que tenho observado,
dificilmente essas questões se concretizam. Acho até
que isso não diz respeito à falta de verbas para a
educação. Existem verbas. A Constituição já define o
quanto deverá ser aplicado em Educação, mas existem
problemas como, por exemplo, a corrupção que impede o
uso adequado das verbas na Educação.
E qual a proposta da senhora?
Cláudia Gontijo: Acho que é preciso criar uma cultura
onde se acredite que as pessoas são capazes de
aprender. E muitas vezes não aprendem porque vivem em
situações de desigualdade que impedem que as pessoas
aprendam. E que se estabeleça nesse País, de fato, uma
195
política de valorização do magistério. Isso está
relacionado à implementação de planos de cargos e
salários e às condições materiais dentro da escola. Essa
é a questão central. A aprendizagem inicial do professor
deve ser seguida de uma formação continuada,
permitindo à esse professor refletir sobre o seu
trabalho, responder as demandas sociais e os problemas
que se apresentam diariamente na sala de aula.
Precisamos de reformas estruturais nesse país. Tratar o
problema da desigualdade. Para que as pessoas tenham
acesso aos bens materiais e simbólicos. Nenhuma política
educacional vai se sustentar enquanto não tivermos
políticas que tratem da questão da desigualdade social.
Então, a questão da valorização do magistério e as
desigualdades sociais se cruzam?
Cláudia Gontijo: Precisamos de um professor mais bem
preparado para lidar com os diversos problemas e
situações que a vinda das classes menos favorecidas para
a escola trouxe. Enquanto o professor era uma elite
social e cultural e as crianças também, era mais fácil ser
professor e lidar com as questões educacionais. Com as
políticas de expansão do acesso escolar, precisamos lidar
com uma diversidade de crianças e pessoas que chegam à
escola e garantir que elas aprendam a cultura, o
conhecimento científico, o conhecimento valorizado. E
que essa aprendizagem levem essas crianças a exercer
de fato a cidadania.
196
DESAFIO 10
ÉTICA NA POLÍTICA
O que é Ética na Política? Num primeiro momento,
de forma bem simples, poderíamos dizer que é a condição
primordial para que tenhamos tudo aquilo do que falamos
até agora: atendimento médico, remédios, uma sociedade
segura, crianças longe da contravenção, impostos justos
e gastos públicos sob controle, atividades econômicas
desenvolvendo-se de maneira correta e produtiva, verbas
para a Educação, estradas seguras etc. Enfim, sem ética
na política, não construímos e não avançamos como
sociedade justa e humana e veremos as noções de
civilidade se perderem perigosamente no tempo e no
espaço. O escritor e teólogo Leonardo Boff escreveu que
“não se pode construir nenhuma sociedade minimamente
humana assentada sobre a falta de cuidado, de justiça e
de igualdade (...) Esse é o caso do Brasil. A justiça e o
cuidado são os bens mais escassos em nossa história
política”. *
*fonte: Seção Opinião, Jornal A Gazeta (Vitória-ES),
outubro de 2006.
197
A maneira como muitos políticos têm agido
provoca o desinteresse do povo para com a política. Em
alguns casos isso pode ser proposital. No livro “O que é
participação política”, do jurista Dalmo Dallari,* há uma
citação do francês Marcel Merle, sobre a
despolitização: ”o desinteresse pregado por motivos
táticos é baseado na intenção de afastar o povo das
decisões políticas. (...) Através de um trabalho de
propaganda tentam difundir a idéia de que o povo não
pode e não quer perder tempo com problemas
políticos.(...) Dessa forma o povo sente que não influi (...)
E deixa o grupo dominante governar como quiser, sem
nenhuma responsabilidade“.
No Espírito Santo, por doze anos seguidos, a
partir de 1990, a falta de ética prevaleceu na política,
num enredo que se difundiu pelas várias esferas do
Poder Público. A partir das eleições de 2002, a situação
começou a mudar.
*Coleção Primeiros Passos, Abril/Brasiliense, página 85.
198
Hoje, comemora-se a vitória de várias batalhas.
Mas alguém se arriscaria a dizer que a Ética prevalece
nas relações políticas, de modo geral? Afinal, de
mensalões federativos a mensalinhos estaduais, a política
prossegue como meio de ascensão social de muita gente
descomprometida com a vida pública.
Não será nesse espaço que iremos dissecar o
conceito da Ética, até porque já existe uma farta e bem
elaborada literatura a respeito, mas poderíamos
reproduzir aqui as palavras de um dos mais conceituados
jornalistas brasileiros do passado, Cláudio Abramo, que,
ao falar sobre ética jornalística disse: “onde entra a
ética? O que o jornalista não deve fazer que o cidadão
comum não deva fazer? (...) A ética do jornalista é a
ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para
o jornalista (...)”.* Com os políticos não pode ser
diferente. Portanto, um cidadão, um eleitor, sabe muito
bem o que pode e o que não pode . E roubar é uma coisa
que não pode!
*Livro A Regra do Jogo, Companhia das Letras, página
109.
199
O Cientista Político Francisco Albernaz formado pela
Universidade de Sorbonne, em Paris, é Professor do
Departamento de Ciências Sociais da UFES, há 15 anos.
Especializado em Comportamento Político, Políticas
Públicas e Teoria Política, lamenta que o assunto “Ética
na Política” seja muito debatido às vésperas das eleições
e pouco lembrado depois. Para ele, os escândalos que
envolvem o meio político comprometem a legitimidade
das instituições e a confiança do cidadão. E assim, passa-
se a não acreditar nas autoridades, o que é grave. A
falta de confiança, segundo o professor “pode se
generalizar para toda a sociedade (...). Para você fazer
um contrato, estabelecer relações positivas entre
eleitor e político, só na base da confiança. A confiança é
fundamental para o funcionamento das instituições”.
O que há com a ética dos políticos no Brasil?
Francisco Albernaz: Nos últimos anos assistimos a um
triste espetáculo de ver políticos transgredindo fatos
básicos da moral e da ética. E isso tem grandes
implicações na legitimidade das Instituições Públicas
brasileiras. Nós precisamos de novas políticas públicas
após as eleições. De novas Políticas Públicas que devem
ter nas Instituições autoridade e legitimidade.
200
Os escândalos na política têm desestimulado o
eleitor?
Francisco Albernaz: No último processo eleitoral houve
uma enorme apatia do eleitor. Pontos importantes sobre
as reformas que o Brasil precisa não apareceram nas
campanhas. Não foram discutidas nas conversas de rua
pelos cidadãos e nem pelos políticos. Isso é muito grave.
Será que os políticos não discutem as reformas nas
campanhas porque elas não despertam o interesse do
eleitor?
Francisco Albernaz: Eles acreditam que estes temas
não dão voto. Eles têm uma estratégia eleitoral baseada
em pontos que eles supõe que dêem votos.
Que Reformas deveriam ser feitas?
Francisco Albernaz: Uma Reforma Política, uma
Reforma Fiscal consistente, uma Reforma Tributária,
Reforma Administrativa, um Plano de Segurança Nacional
e para os Estados. Essas questões não apareceram com
clareza e não mobilizaram o eleitor.
201
E o senhor acha que o eleitor sentiu falta dessas
discussões?
Francisco Albernaz: Se estas temáticas tivessem
aparecido, com certeza despertariam o interesse do
eleitor porque isso mexe com o seu dia a dia. O eleitor
tem uma percepção a partir do seu cotidiano.
As pesquisas mostram ao longo dos anos a falta de
credibilidade dos políticos. Qual o reflexo dessa
situação na hora em que o eleitor tem que ir às
urnas?
Francisco Albernaz: Existe uma coisa muito importante
na política que diz que se os políticos não estão
respondendo às demandas e necessidades e está havendo
corrupção na política, você passa a se desinteressar da
mesma. Você se frustra com a política e fica esperando
acontecer alguma coisa, alguma mudança para voltar a se
interessar. Então, vive-se um momento de apatia e isso é
muito grave.
O senhor defende o voto obrigatório?
Francisco Albernaz: Sem dúvida alguma. No Brasil o
nosso colégio de eleitores se forma nos anos 50 e só
cresce a partir dos anos 70. O cidadão brasileiro não
tem o sentimento de pertencer à uma República no
sentido da coisa pública. O ato de votar lembra que ele
202
precisa participar da coisa pública. É um pequeno
aprendizado. É um mínimo de aprendizado que faz com
que ele veja que é através da participação política dele
que se pode mudar o quadro que está aí.
As coisas seriam mais claras para o eleitor se os
Partidos Políticos fossem fortes e houvesse a
fidelidade partidária?
Francisco Albernaz: Sim, a gente precisa de uma
Reforma Política para que os Partidos tenham força e o
eleitor identifique a identidade desses Partidos. Se você
acredita num Partido você vota nos candidatos do
Partido. O custo para você obter informação para avaliar
um político cai enormemente.
Está faltando ideologia no discurso político?
Francisco Albernaz: Os Partidos têm que ter identidade
e é preciso construir esse discurso ideológico. Um
desses discursos ideológicos pode ser baseado na ética,
outro na questão do emprego, em questões como preço,
nas políticas públicas, na questão do imposto. Pode-se
construir em torno desses temas um discurso ideológico.
Amarrar esse discurso, dar um nome a ele, para que
possa ver e perceber com mais facilidade, tendo menos
“custo” na hora de escolher um político. Ter um discurso
ideológico é fundamental, mas é preciso construí-lo e nós
ainda não conseguimos isso.
203
Como o senhor imagina essa relação entre o candidato
e o eleitor num cenário em que predomine a
fidelidade partidária?
Francisco Albernaz: A gente tem que fazer com que o
eleitor faça o controle dos políticos, o controle dos
Partidos. Se você estabelece o voto distrital, você tem
possibilidade, na sua micro-região, de conhecer mais de
perto o seu representante e poder puni-lo caso ele não
haja bem eticamente ou não tenha uma ação consistente
com o que você esperava. Precisamos criar instituições
para facilitar esse controle. A democracia precisa de
elementos de controle de quem você elegeu.
Qual a importância de se discutir a ética?
Francisco Albernaz: É absolutamente fundamental. Se
os políticos transgridem regras morais e éticas que o
eleitor percebe como sendo suas, do seu dia a dia, isso
mancha também as instituições. E isso vai criar na
sociedade um grave problema de legitimidade e
autoridade nas instituições. E de confiança dos
indivíduos nessas instituições. Isso pode se generalizar
para toda a sociedade, esse ambiente de desconfiança.
Para você fazer um contrato, estabelecer relações
positivas entre eleitor e político, só na base da
confiança. A confiança é fundamental para o
204
funcionamento das instituições. Sem confiança a política
torna-se complicada, custosa e muito conflitiva.
E a gente vive a falta de confiança?
Francisco Albernaz: Sem dúvida alguma. O momento da
falta de confiança do eleitor em relação aos políticos e
às Instituições é muito alto. Talvez até mais alto do que
as pesquisas mostram. E é fundamental reconstruir esse
quadro de confiança. Infelizmente eu não vejo como, em
curto prazo, isso possa acontecer. E, por outro lado, a
gente precisa que isso aconteça rapidamente para fazer
as mudanças que o Brasil necessita para voltar a crescer.
A falta de ética gera escândalos, corrupção. Qual a
relação disso com a economia. Qual o prejuízo que a
falta de ética causa ao povo?
Francisco Albernaz: Tendo ética e moral, quem está no
poder vai ter condições de fazer as mudanças. Fazendo
mudanças, você ajuda o país a crescer, cria emprego. As
Políticas Públicas num ambiente de confiança vão ser
mais eficientes. Vão atingir mais o cidadão. Um Programa
como o Bolsa Família, por exemplo, terá menos falcatruas
em quem vai receber essas bolsas. A ética vai permear
toda a relação do cotidiano entre os indivíduos, entre os
indivíduos e as empresas e entre os indivíduos e a
política. Por isso que ela é fundamental.
205
E o senhor acha que o político, de um modo geral,
tem noção dessa abrangência da questão ética?
Francisco Albernaz: Ele tem noção da ética para o
outro. Para ele não necessariamente. Porque a
preocupação fundamental dele é se eleger. Grande parte
dos políticos no Brasil usa a política como estratégia de
mobilidade social. A política para eles é uma forma de
melhorarem de vida, melhorarem seus patrimônios. É o
primeiro objetivo. Ele pode pregar para o outro a ética,
para ele o que vale é a política do salve-se quem puder
para melhorar seu padrão de vida, como os estudos sobre
o patrimônio dos políticos têm provado. Então, é preciso
que os eleitores tenham conhecimento maior das ações
dos políticos para penalizá-los. Para puni-los quando eles
transpõem pontos fundamentais da ética em sociedade.
Qual o melhor momento para se discutir a ética?
Francisco Albernaz: Antes da campanha, na campanha e
depois. Precisamos retomar no Espírito Santo aqueles
movimentos pela ética na política para se criar um
constrangimento para os maus políticos. É preciso que
eles saibam que, se transgredirem, serão punidos. Que
existe um ambiente em torno deles que não permite que
ele faça isso. Assim você cria um ambiente na sociedade
que os vá punir. Essa punição pública antecipa as
questões processuais. Os políticos vão saber que suas
carreiras dependem da sua ética.
206
Este constrangimento público seria uma espécie de
ameaça “no ar” para os políticos?
Francisco Albernaz: Sim, e é fundamental. Saber que
vou perder votos por transgredir, que vou perder minha
carreira política, que minhas ambições políticas não vão
acontecer, é fundamental para eu me comportar como é
necessário.
E como se estabelece esse clima de desconforto para
os políticos?
Francisco Albernaz: Primeiro é retomar os movimentos
sociais que colocaram a ética na agenda da sociedade.
Segundo, que a Imprensa permaneça com esse grau de
liberdade. Terceiro, que o Ministério Público tenha mais
possibilidades de apurar as irregularidades, a falta de
ética, até o fim. Com esses três pontos acredito que os
políticos vão pensar duas vezes antes de transgredir os
princípios fundamentais. Punição, discussão na mídia e
participação popular. Com isso teremos possibilidade de
construir um país com menos falcatruas, mais ética,
instituições funcionando e impactando o cotidiano do
brasileiro.
207
O senhor acredita que o cidadão esteja
amadurecendo?
Francisco Albernaz: Sem dúvida alguma. A memória
política existe mesmo que num primeiro momento não
apareça. Estamos formando uma memória por demandas
de comportamentos éticos. Num outro momento, se
algum candidato que foi eleito agora cometer alguma
transgressão, haverá uma grande força pedindo a
punição. Essa memória é história. Isso é fundamental
para avaliar e para construir uma cidadania brasileira. E
nós estamos construindo a nossa memória nesse
momento.
208
O Professor Universitário e Historiador, Rafael Simões
é membro-fundador da ONG Transparência Capixaba,
criada em novembro de 2001, não por acaso a data em
que se comemora a Proclamação da República. O objetivo
da Instituição tem sido o de simbolizar a ética e a
transparência no meio social e político do Espírito Santo.
Para ele, os maus exemplos dos políticos contribuem para
uma espiral negativa em que uma coisa vai piorando a
outra, até terminar num voto sem qualidade e
preocupação. Ele se diz impressionado com o tamanho da
descrença de alguns eleitores que já não impede que,
mesmo políticos comprometidos com uma má imagem,
consigam se reeleger. E critica a forma como o brasileiro
se relaciona com os políticos: “nós temos uma relação
dúbia com os políticos no Brasil. Por um lado, num
ambiente privado a gente fala mal deles, mas quando a
gente encontra o político na nossa frente parece que
estamos diante de um semideus”. Como mudar isso? É o
que ele mostra nessa entrevista.
Qual a importância de se discutir a ética na política?
Rafael Simões: Enquanto nós tivermos um sistema
político comprometido com comportamentos antiéticos,
acabamos não conseguindo fazer as discussões
fundamentais, então, temos de retomar a discussão ética
para limpar o campo e retomar as discussões efetivas
dos problemas brasileiros.
209
Isso vem sendo discutido?
Rafael Simões: Os políticos têm se esforçado pouco por
isso. Tem feito muitos discursos genéricos. As várias
organizações da sociedade e a Imprensa é que tem
chamado a atenção para isso. Penso que, de alguma
maneira, estamos avançando. E avançando não com
discursos genéricos. Estão aparecendo idéias, propostas
concretas. Um exemplo é o nosso caso da Transparência
Capixaba que lançou termos de compromissos para todos
os que se lançam como candidatos a cargos políticos. Não
ficamos nas generalidades. A gente consubstancia a ética
na política de forma concreta: Projetos de Lei que devem
ser apresentados, idéias para serem concretizadas.
O senhor poderia explicar melhor o papel da
Transparência Capixaba?
Rafael Simões: A “Transparência” é uma ONG fundada
em 2001 e o nosso papel é o de contribuir para a
discussão da transparência pública, do controle social, do
combate à corrupção e, lógico, tudo isso embasado por
uma postura ética no sistema político.
210
Quais são os principais problemas que a falta de ética
na política e a corrupção tem causado à vida pública?
Rafael Simões: Esse crescimento desmesurado da
corrupção causa vários problemas. Um é a perda de
investimentos sociais, por estar desviando recursos
públicos para fins privados. Você perde competitividade,
aumenta o chamado “Custo Brasil”. Perde referência de
padrões éticos e morais, o que acaba te fazendo ficar,
muitas vezes, perdido: “isto é certo, não é certo?” “É
justo fazer isso, não é justo?” Isso confunde a cabeça
do próprio cidadão que, no dia a dia, ao se ver diante de
dilemas éticos acaba adotando a postura do “todo mundo
faz isso, porque eu não vou fazer também?” Então, a
falta de ética no sistema político brasileiro tem essas
conseqüências nocivas para a nossa vida moral, ética,
social e econômica.
O cidadão fica confuso?
Rafael Simões: O cidadão se encontra muito confuso.
Além de toda essa situação, nós temos uma falta de
punição. Um elemento importante para a gente readquirir
confiança no sistema político brasileiro, no aparelho do
Estado brasileiro. O certo seria que todas as denúncias
fossem logo apuradas e com punição dos culpados. Mas a
gente vê muita postergação, lentidão, e isso cria um
sentimento de que vale tudo, de que alguns podem tudo
211
nesse País, outros não podem nada e tem que sofrer as
conseqüências negativas desse sistema político.
O eleitor está confuso?
Rafael Simões: Sim, está confuso. Vemos que várias
organizações e Instituições como a Igreja, a OAB, a
“Transparência”, vários movimentos têm feito campanhas
de esclarecimento, isso ajuda um pouco, mas a situação é
muito difícil. Acaba criando o sentimento de que político
é tudo igual. E isso é falso. Os maus políticos, os que
estão envolvidos em esquemas de corrupção, é que
querem implantar essa visão de que todos os políticos são
iguais.
O Presidente Lula falou em seu primeiro mandato que
todo mundo faz caixa dois. É este o caso?
Rafael Simões: Exatamente. “Caixa dois todo mundo
faz... Tudo mundo desvia recurso... Todo mundo pratica
nepotismo...” Tudo vira comum e o cidadão acaba se
perdendo. Não devemos acreditar nisso. Devemos ter
uma preocupação em escolher bem os candidatos, definir
quais são os nossos interesses, o que a gente acha
importante para a vida social e a partir daí verificar o
padrão ético, a vida pública desse candidato e escolher
bem. E aí é importante não só escolher bem como
também acompanhar o mandato dessas pessoas. Ter um
212
trabalho permanente de acompanhamento, de cobrança
dos políticos que se elegem.
Muitas vezes vimos que as discussões éticas se
limitam à época das eleições...
Rafael Simões: É uma discussão que deve ser
permanente. Deve durar toda a nossa vida, na verdade.
Porque você vai sempre atualizar as questões. É lógico
que a ética tem um aspecto conceitual, teórico, mas do
ponto de vista do cidadão e seu cotidiano, a sua relação
com o sistema político, nós vamos sempre atualizando
isso. E, portanto, é uma discussão permanente. Lógico
que na medida em que a gente resolver todas essas
dificuldades atuais, a questão da ética pode passar para
um segundo plano, sempre presente, mas em segundo
plano, pois vamos ter outras prioridades. Mas nesse
momento é –com certeza- uma prioridade fundamental.
O voto vem sofrendo um processo de desvalorização
devido aos escândalos?
Rafael Simões: Você vê que nessas últimas eleições os
analistas falaram muito que a campanha estava morna. É
claro que um aspecto disso é que estamos nos
acostumando a ter eleições e a vida democrática vai se
sedimentando. Mas outra razão fundamental é essa, é
esse sentimento de que os políticos são iguais, que a
possibilidade de mudança não existe, de que eu não posso
213
fazer nada com o meu voto. Mas isso é falso. Nós
podemos mudar as coisas com o voto e também com a
ação do cidadão, cobrando.
Para se sair do estado de desânimo que tipo de ação
deve ser adotada?
Rafael Simões: O eleitor deve ter essa preocupação em
acompanhar a vida pública dos políticos e suas propostas.
Nas eleições, por exemplo, temos de ver se a proposta
do candidato é adequada ao cargo que ele está
disputando. Muitas vezes ele faz uma proposta que não
vai poder executar, ele é candidato ao Legislativo e
promete uma ação que é do Executivo, isso é muito
comum. Outra questão que deve ser lembrada é se
existem recursos para que determinada proposta seja
colocada em execução. Eu posso como candidato
prometer a felicidade geral para o ano que vem. Mas será
que existe recurso para isso? Então é pensar bem isso e
perguntar ao candidato: de onde vem o dinheiro? É
possível fazer isso no seu mandato? Questionar os
candidatos. Nós temos uma relação dúbia com os
políticos no Brasil. Por um lado, num ambiente privado a
gente fala mal deles, fala que todos são iguais,
corruptos... Por outro lado, quando a gente encontra o
político na nossa frente a gente assume outra postura.
Parece que estamos diante de um semideus. Devemos
desmascarar essa relação. É lógico que devemos tratá-
los com todo o respeito, como todas as pessoas, mas
214
devemos questioná-los sobre os motivos da proposta, das
ações etc. o político tem que ser questionado, afinal ele é
um servidor público, é um representante da sociedade.
Os políticos de modo geral entendem dessa forma,
estão dispostos a serem questionados?
Rafael Simões: Normalmente não. Mas acho que, ao
longo desses últimos anos, com a ação forte da Imprensa
e dos movimentos organizados da sociedade civil, temos
criado um novo padrão. Então, vejo que alguns políticos
modernos já se acostumaram com esse novo modelo de
relacionamento. Insisto, tratar com urbanidade, mas
questionando. Assim, na medida em que vamos criando
esse novo padrão, temos condição de abolir essa política
personalista, em que o político se acha o dono do Poder.
Na verdade ele está ali para representar a sociedade.
A ética deve ser tratada com o mesmo destaque que
as questões mais objetivas como Saúde, Segurança,
Educação, Moradia?
Rafael Simões: Acho que sim. Nós avançamos muito,
premidos por todas as denúncias e escândalos, mas
precisamos criar um espaço próprio para o debate da
ética e de questões concretas de comportamento ético.
Não só num aspecto conceitual. A sociedade não admite
mais alguns comportamentos. A gente vê isso
continuamente sendo expresso pelos cidadãos quando são
215
entrevistados nas ruas e através de pesquisas de opinião.
O sistema político tem que refletir isso. Não pode fazer
de conta que é uma onda passageira de protestos e
reclamações. Nós devemos ter um espaço permanente
para o debate da ética conceitual e das ações concretas
relacionadas ao comportamento público.
Que propostas concretas o senhor teria para vencer
esse desafio?
Rafael Simões: Um aspecto fundamental dentro de
nosso padrão de comportamento ético é o que se chama
de Reforma Política. E aí nós temos algumas medidas
como a fidelidade partidária, responsabilidade dos
Partidos pelos mandatos, fim do voto secreto nos
parlamentos e reforma do sistema eleitoral brasileiro. O
voto proporcional me parece ultrapassado. Penso num
voto distrital misto com listas nacionais. Financiamento
público de campanha é uma outra questão central, com
controle social desse financiamento. Reformulação do
chamado horário eleitoral gratuito, que efetivamente não
é gratuito, porque tem toda uma renúncia fiscal.É
preciso uma remodelação do horário eleitoral gratuito.
São todos aspectos que vão colocar nosso sistema
político sob mais controle e, portanto, com uma postura
mais ética em relação ao que a sociedade dele espera.
216
O senhor acredita numa „transparência“?
Rafael Simões: Acredito. Nós aqui na “Transparência”
lutamos por isso. A transparência é um dos aspectos
centrais para tornarmos o sistema político no Brasil mais
ético. Transparência, controle social, educação e punição.
Um sistema político ético é uma base fundamental para
que esse sistema consiga, efetivamente, representar os
mais diversos interesses da sociedade.
217
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cidadão capixaba tem praticado o exercício da
cidadania e percebido que os fatos de um passado
recente deixam a lição de que os tempos futuros vão
exigir, cada vez mais, o envolvimento de todos nas
soluções que afetam o coletivo, cada um contribuindo
com seu esforço, talento e ousadia. Os 20 entrevistados
deste livro foram exemplos disso. Você, leitor, é outro.
“Não há mais passageiros na espaçonave Terra. Somos todos tripulantes dentro dela”. Marshall Mcluhan, teórico da Comunicação (1911-1980)
Para os gestores públicos - comandantes de nossa
espaçonave - fica a responsabilidade de honrar a sua
missão. E é em forma de idéias que este livro contribui
para a solução de problemas que ainda sufocam o bem-
estar da população. Cabe a esses gestores buscar o
melhor caminho.
“Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe para onde ir”. Sêneca, filósofo romano (40 A.C. - 65 D.C.)
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