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THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014. A ditadura militar como tema: uma radiografia da produção acadêmica sobre a ditadura militar brasileira Alejandra Estevez Fabiana Bandeira Introdução Às vésperas do 50º aniversário do Golpe de 1964, em meio a grandes transformações urbanas para sediar a Copa do Mundo da FIFA, o Brasil vive hoje um momento de intensas transformações políticas. À medida que se configura um novo cenário político brasileiro, de multidões de manifestantes nos grandes centros urbanos 1 , de ciberativismo 2 e da ampliação da discussão pública e da ação do Estado a respeito de temas como os direitos humanos no país, as contradições do estabelecimento do Estado democrático parecem mais evidentes. Há, nesse sentido, uma crescente polarização política, evidente nos debates públicos, na imprensa e nas respostas do Estado às ações da sociedade civil. Em meio aos preparativos para receber dois dos maiores eventos do calendário esportivo mundial, parte da população protesta contra a ação do Estado nas transformações urbanas e contra a repressão policial às manifestações, comparando a ação das instituições policiais à repressão dos tempos ditatoriais, empunhando cartazes de ―Ditadura nunca mais‖, entre outros. Outra parcela da população entende a efervescência política como caos social e reedita valores e práticas de meio século atrás, com seus cartazes de ―Intervenção militar já‖ e suas convocatórias de ―Marchas com Deus pela família‖. 1 Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas tenham comparecido à manifestação da Avenida Presidente Vargas, que saiu da Igreja da Candelária em direção à sede da Prefeitura do Rio de Janeiro, em 20 de junho de 2013. Neste mesmo dia, 388 cidades também se manifestaram. Desde meados daquele ano, centenas de eventos públicos de protesto foram realizados nas principais cidades do país. O aumento das passagens de ônibus na maioria das capitais e os gastos públicos com a Copa do Mundo da FIFA 2014 foram os primeiros temas das grandes manifestações. Ao longo de algumas semanas, uma miríade de pautas políticas mobilizaram eventos de repúdio, não apenas nas capitais. Ver http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de- maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm . 2 Entendemos por ciberativismo a forma de participação política realizada por indivíduos através de ações em ambientes virtuais, suportados via Internet, como os seguintes exemplos: as organizações de petições públicas ou abaixo-assinados; o envio de informações, notícias e debates realizados via listas de e-mail, redes sociais (como Orkut, Facebook e outros); os "twitaços" (envio massivo de mensagens através de uma grande quantidade de usuários da rede social Twitter a uma pessoa ou organização, como forma de protesto); organização coletiva de eventos fora das redes sociais, com data e local de encontro, com o objetivo de manifestação política, utilizando- se dos recursos disponíveis no aplicativo de Internet. Para saber mais sobre ciberativismo e sua relação com as jornadas de manifestações políticas, cabe a leitura de MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e a mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013.

A ditadura militar como tema: uma radiografia da produção acadêmica sobre a ditadura militar brasileira

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THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

A ditadura militar como tema:

uma radiografia da produção acadêmica sobre a ditadura militar brasileira

Alejandra Estevez

Fabiana Bandeira

Introdução

Às vésperas do 50º aniversário do Golpe de 1964, em meio a grandes transformações

urbanas para sediar a Copa do Mundo da FIFA, o Brasil vive hoje um momento de intensas

transformações políticas. À medida que se configura um novo cenário político brasileiro, de

multidões de manifestantes nos grandes centros urbanos1, de ciberativismo

2 e da ampliação da

discussão pública e da ação do Estado a respeito de temas como os direitos humanos no país,

as contradições do estabelecimento do Estado democrático parecem mais evidentes. Há, nesse

sentido, uma crescente polarização política, evidente nos debates públicos, na imprensa e nas

respostas do Estado às ações da sociedade civil.

Em meio aos preparativos para receber dois dos maiores eventos do calendário

esportivo mundial, parte da população protesta contra a ação do Estado nas transformações

urbanas e contra a repressão policial às manifestações, comparando a ação das instituições

policiais à repressão dos tempos ditatoriais, empunhando cartazes de ―Ditadura nunca mais‖,

entre outros. Outra parcela da população entende a efervescência política como caos social e

reedita valores e práticas de meio século atrás, com seus cartazes de ―Intervenção militar já‖ e

suas convocatórias de ―Marchas com Deus pela família‖.

1 Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas tenham comparecido à manifestação da Avenida Presidente Vargas,

que saiu da Igreja da Candelária em direção à sede da Prefeitura do Rio de Janeiro, em 20 de junho de 2013.

Neste mesmo dia, 388 cidades também se manifestaram. Desde meados daquele ano, centenas de eventos

públicos de protesto foram realizados nas principais cidades do país. O aumento das passagens de ônibus na

maioria das capitais e os gastos públicos com a Copa do Mundo da FIFA 2014 foram os primeiros temas das grandes manifestações. Ao longo de algumas semanas, uma miríade de pautas políticas mobilizaram eventos de

repúdio, não apenas nas capitais. Ver http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-

maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm .

2 Entendemos por ciberativismo a forma de participação política realizada por indivíduos através de ações em

ambientes virtuais, suportados via Internet, como os seguintes exemplos: as organizações de petições públicas ou

abaixo-assinados; o envio de informações, notícias e debates realizados via listas de e-mail, redes sociais (como

Orkut, Facebook e outros); os "twitaços" (envio massivo de mensagens através de uma grande quantidade de

usuários da rede social Twitter a uma pessoa ou organização, como forma de protesto); organização coletiva de

eventos fora das redes sociais, com data e local de encontro, com o objetivo de manifestação política, utilizando-

se dos recursos disponíveis no aplicativo de Internet. Para saber mais sobre ciberativismo e sua relação com as

jornadas de manifestações políticas, cabe a leitura de MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e a mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013.

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Há apenas algumas semanas antes do 31 de março, data oficial de aniversário do golpe,

percebemos o retorno (ressignificado ou apenas repetido) de argumentos presentes na crise

política dos últimos meses do governo João Goulart, evidenciando semelhanças entre o

contexto pré-golpe e o atual3. Soma-se a isso a votação do Projeto de Lei nº 499/2013, que

define e tipifica o crime de terrorismo4. Surgido no contexto das manifestações políticas e

votado a poucos meses da realização do campeonato mundial de futebol, o mesmo pode ser

interpretado como uma atualização ou substituição da Lei de Segurança Nacional, a n°

7170/19835, medida de recrudescimento repressivo frente aos protestos populares.

Tanto a polarização ideológica quanto a retomada de instrumentos do passado

ditatorial – sejam dispositivos legais, conceitos ressignificados, ―palavras de ordem‖ – para as

manifestações populares, nos indicam que a ―guerra pela memória‖ está nas ruas. O campo de

disputas em relação ao passado recente do Brasil, principalmente no que diz respeito à

ditadura militar, está aquecido e vem sendo abastecido por uma grande quantidade de

documentos sensíveis: relatos de memória, relatórios, matérias jornalísticas, documentários e

produção de pesquisa acadêmica.

Como já chamaram a atenção os historiadores do tempo presente nos anos 1980, os

eventos traumáticos possuem um caráter ―interminável‖, isto é, revivem constantemente um

―passado que não passa‖ devido à permanente reelaboração das memórias. Sendo assim, a

memória transformada em trauma serve de matéria-prima, em última instância, para a

construção do conhecimento histórico sobre tais acontecimentos e períodos de exceção,

deixando evidente a interligação entre História e Memória, sobretudo no caso da História do

Tempo Presente.

Este artigo se propõe, através de um levantamento de teses e dissertações brasileiras, a

pensar o campo de estudos sobre ditadura militar na sua trajetória temporal, distribuição

regional, produção temática e área disciplinar, com destaque para a História. Tomando como

referência o ano de 2004 e os debates então realizados por ocasião dos 40 anos do Golpe,

3 A tentativa frustrada de ressignificar as marchas da família com Deus – reunindo não mais de 700

manifestantes em São Paulo e um número ainda menos expressivo em outras capitais – mostra que a intervenção

das Forças Armadas não possui capilaridade social. Em pleno ano eleitoral, estas iniciativas visam atacar diretamente o governo petista. Chama igualmente a atenção o alto número de policiais que estiveram presentes

na manifestação em São Paulo: 900 policiais para 700 manifestantes, segundo dados publicados pela Folha de

São Paulo. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/03/1429580-marcha-da-familia-com-deus-

reune-cerca-de-500-pessoas-no-centro-de-sp.shtml (Acessado em 22/03/2014).

4 Retirado de http://oglobo.globo.com/opiniao/conceito-de-terrorismo-11887565 (Acessado em 18/03/2014).

5 Em outubro de 2013, dois jovens paulistas, supostos envolvidos na depredação de uma viatura policial foram

presos com base na LSN, tendo a prisão relaxada dias depois pela Justiça. Disponível em:

http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-10-09/justica-paulista-manda-soltar-ativistas-detidos-com-

base-na-lei-de-seguranca-nacional. (Acessado em 17 /03/2014).

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quais foram as mudanças e continuidades ocorridas no espaço de uma década? No contexto de

abundância documental e aceleração do ritmo de produção e circulação da informação sobre

ditadura militar, quais as transformações no interesse acadêmico?

Vivemos atualmente um contexto altamente favorável para a pesquisa sobre o regime

repressivo instaurado no Brasil entre 1964 e 1985. Do ponto de vista político, as experiências

de outros países do Cone Sul como a Argentina e o Chile6, somada à pressão internacional da

Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2010, contribuíram para o avanço das

investigações sobre acontecimentos e períodos obscuros da recente história nacional. O

esclarecimento da ―verdade‖ vem sendo perseguido por um número cada vez maior de atores

sociais envolvidos com a temática: advogados, políticos, jornalistas, historiadores, cientistas

políticos, sociólogos etc.

Nas universidades e centros de pesquisa do país, observamos um aumento

significativo na produção acadêmica em geral7, destacando-se algumas áreas do conhecimento

no que diz respeito ao tema ―ditadura militar‖. Após a abertura de parte importante dos

arquivos da repressão, como é o caso da documentação produzida pelos Departamentos de

Ordem e Política Social (DOPS) do Rio de Janeiro e de São Paulo, depositadas e

disponibilizadas pelos respectivos arquivos públicos estaduais, as possibilidades de pesquisa

se expandiram significativamente. Após um longo embate travado por historiadores e

sobretudo pelo CONARQ, documentos antes considerados sigilosos deixaram de ser restritos

ao público, beneficiando, entre outros interessados, os historiadores. O Brasil torna-se, após

2011 com o coroamento dessa disputa materializada na Lei de Acesso à Informação, um dos

maiores acervos públicos de documentos anteriormente classificados como sigilosos

produzidos durante o regime militar (FICO, 2012). Esse ―terreno fértil‖ para a produção

acadêmica na última década propiciou o incremento na produção universitária (aqui

6 Na Argentina, apesar dos militares terem garantido a autoanistia pouco antes de devolverem o poder aos civis,

em 1983, tal ―perdão‖ foi imediatamente revogado pelo presidente civil Raúl Alfonsín. Este processo foi

marcado por uma série de retrocessos e avanços na legislação e nas punições aos violadores dos direitos

humanos, porém sem dúvida representou avanços muito mais significativo que no caso brasileiro: mais de 800

pessoas enfrentaram processos por violações aos direitos humanos. No Chile, mesmo durante a vigência da Lei

de Anistia, imposta pela ditadura de Pinochet em 1978, foi possível que vários crimes cometidos durante a ditadura fossem transferidos de tribunais militares para tribunais civis, a fim de garantir maior transparência e

imparcialidade no julgamento. Mesmo não sendo criada no imediato pós-golpe, como aconteceu na Argentina, o

Chile gestou a sua Comissão da Verdade e Reconciliação em 1990 por decreto presidencial, logo após a saída de

Pinochet do governo. Tal como no Brasil, recentemente a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA

declarou a lei de anistia do governo Pinochet sem validade, baseado no princípio do direito internacional que diz

que os Estados não podem utilizar sua legislação interna como desculpa para descumprir obrigações

internacionais.

7 De acordo com nosso levantamento, identificamos 360 D&T produzidas após o ano 2000 em um total de 405

D&T produzidas desde os anos 1980, ou seja, cerca de 90% da produção acadêmica sobre o tema.

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considerada a partir das teses e dissertações), principalmente na área de História8. Somado a

isso, os pesquisadores de ―ditadura militar‖ contam hoje com abundante e variada literatura

sobre o tema, tendo sido boa parte dela produzida nos últimos 15 anos, ainda que apenas

muito mais recentemente alguns ―mitos‖ e interpretações venham sendo descontruídos a partir

de pesquisas empíricas realizadas em sua maioria por historiadores.

Ao longo da última década acompanhamos, enquanto estudantes e pesquisadoras da

História do Tempo Presente, o tema ―ditadura militar‖ no Brasil se reposicionar no campo,

passando a ser um tema célebre, aguçando a curiosidade dos jovens pesquisadores e servindo

como fator de atração para estudantes comparecerem a palestras e cursos, seja no cotidiano

das graduações em História, seja nos eventos acadêmicos. Embora esse processo interno do

meio acadêmico dos historiadores tenha contribuído para aumentar significativamente a

quantidade de trabalhos e, logo, de conhecimento sobre o assunto, não logrou o mesmo êxito

com outros setores da sociedade.

O trinômio verdade-justiça-reparação, mobilizado no processo de superação das

violências ditatoriais e seus crimes contra a humanidade, adquiriu uma particularidade no caso

brasileiro: as políticas de reparação receberam uma atenção especial por parte do Estado,

enquanto os princípios de verdade e justiça ficaram em segundo plano, sob a justificativa da

garantia da coesão nacional. Desde 1995, iniciado no governo Fernando Henrique Cardoso,

teve início um longo processo de indenização material às vítimas ou familiares das vítimas do

regime militar, sem que o Estado se preocupasse, em contrapartida, em apurar os responsáveis

por tais atos de violência e desrespeito às liberdades civis (NAPOLITANO, 2011).

Além disso, podemos notar que a verdade enquanto conceito utilizado pela Comissão

Nacional da Verdade (CNV) e pelos discursos midiáticos diz respeito ao jargão jurídico. Não

se trata de afirmar uma verdade histórica propriamente, mas, antes, defender o direito à

verdade. Apesar disso, o incremento ocorrido mais recentemente na produção acadêmica tem

feito dos historiadores, cada vez mais, autoridades reconhecidas socialmente para falar sobre

o assunto, ocupando assim um lugar estratégico na ―guerra pela memória‖. A ocupação deste

espaço por historiadores faz-se importante na medida em que, como bem observou Foucault

(2002), a ―vontade de verdade‖ de uma sociedade exerce sobre os demais discursos poder de

8 Embora um número crescente de pesquisadores da área de História recorra à metodologia da História Oral e se

aproximem de conceitos e referências da área da Memória Social na produção de conhecimento sobre a ditadura

militar, entendemos que esta metodologia não é aplicável a qualquer objeto de estudo, mas sim aqueles que

tomam como fonte a memória. Em outros casos, documentos escritos, em suas múltiplas possibilidades de

apresentação e formato, como relatórios, correspondências, etc. ainda constituem as fontes principais ou

desejáveis de muitas pesquisas produzidas no país.

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coerção. Nessa arena, as falas buscam afirmar-se através do discurso de verdade, ofuscando

ou invisibilizando grupos e experiências, orientados por suas convicções políticas no presente.

Trata-se de arena das mais instáveis aos historiadores brasileiros que muitas vezes se veem

coagidos pela ―verdade‖, confrontados pelas versões de seus contemporâneos, testemunhas

que viveram os fenômenos que estes se propõem a explicar. Ainda atual, François Bédarida

(2003) lembrou a função crítica, cívica e ética do historiador do tempo presente, que tem

como missão, de um lado, desmistificar ―verdades‖ veiculadas pela memória coletiva ou pela

―história oficial‖ e, de outro, é chamado a tomar parte na construção da consciência histórica e

da memória de seus contemporâneos.

Do ponto de vista acadêmico, a questão da ―verdade‖ assume caráter mais polêmico.

Para os historiadores, sobretudo, as formas de conhecer e representar o passado se defrontam

com as memórias e a possibilidade de se chegar à verdade. Além disso, pensando o campo

acadêmico de forma integrada com o campo político, acreditamos que as interpretações e

interesses dos pesquisadores podem servir para legitimar ou desconstruir imagens públicas,

bem como defender modelos políticos como a democracia, o socialismo, o liberalismo,

dependendo do uso que delas se faça (MOTTA, 2013). Poderíamos dizer que a maioria dos

trabalhos acadêmicos produzidos sobre o tema traz, de maneira tácita, a defesa do ideal da

democracia enquanto sistema político a ser resguardado.

Passados 50 anos do Golpe de 1964 e quase 30 anos do retorno ao sistema

democrático, pelo menos constitucionalmente, nos interessa investigar como se configurou o

interesse acadêmico pelo período – e as possibilidades de investigação dentro da História do

Tempo Presente – no interior dos centros de pesquisa ao longo dos anos.

Procuramos refletir sobre a produção acadêmica sobre ditadura militar, com ênfase nas

décadas de 2000 e 2010, no que diz respeito às temáticas, à distribuição da produção por área

do conhecimento e por região do país. Pretendemos, ainda, levantar questões acerca do papel

do historiador no debate político sobre a ―verdade‖ e ―memória‖ travado hoje no país.

Marcos Napolitano (2011) afirmou que as disciplinas de Sociologia e Ciência Política

pautaram a construção dos problemas e abordagens sobre o tema, privilegiando temáticas

específicas durante os anos 1980 e 1990. Interessa-nos, nesse sentido, verificar se sua

constatação continua válida para os últimos 15 anos. Com maior oferta documental, que temas

são privilegiados hoje? Qual a importância da produção historiográfica dentro da ―guerra pela

memória‖ do período militar travada no cenário nacional atualmente?

Na tentativa de responder estas e outras questões, realizamos um levantamento das

dissertações e teses (a partir de agora D&T) defendidas entre 1982 e 2013 em 34

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universidades9, a partir da base de dados disponibilizada pelos programas de pós-graduação

10,

conforme a tabela 1. Os dados que serão apresentados ao longo deste trabalho foram

produzidos com base na busca pela palavra-chave ―ditadura militar‖ ou ―regime militar‖.

Cientes da limitação deste levantamento, que fatalmente deixou de fora parte da produção

universitária, pretendemos levantar algumas questões e apontar tendências dentro da produção

acadêmica.

Acreditamos que, ainda que parcial, este levantamento é capaz de 1) verificar como a

publicização da documentação produzida pelo Estado autoritário depositada em arquivos, a

transformação na legislação, a instalação da CNV, a própria ampliação dos programas de pós-

graduação, entre outros, influenciaram e contribuíram para o aumento do interesse pela

ditadura militar.; 2) refletir sobre o salto quantitativo da produção acadêmica especificamente

na área da História, que totaliza 181 D&T, quase quatro vezes mais que Ciências Sociais,

disciplina que aparece em segundo lugar e que concentrou os estudos nas primeiras décadas

como assinalou Napolitano; 3) verificar a distribuição regional da produção acadêmica com

base na identificação de centros de pesquisa/grupos de pesquisa do CNPq.

Regiões Programas antigos ou

conceituados

Programas novos

Sul PUC-RS

UFPR

UFRGS

UFSC

UNISINOS

UDESC

UEL

UNIOESTE

Sudeste UFF

Unicamp

USP

UFMG

UERJ FFP

UFOP

UFRRJ

UFSJ

9 As universidades foram escolhidas com base em dois critérios, conforme exposto na tabela 1: de um lado,

encontram-se as universidades cujos programas de História datam das décadas de 1970 e 1980 e, portanto,

contam hoje com corpo docente mais numeroso e profissionais mais experientes, ou que possuem nota entre 5 e

7 de acordo com a avaliação da Capes. Ver http://www.capes.gov.br/avaliacao/resultados-da-avaliacao-de-programas.Visando fugir da centralização regional apontada mais a frente, selecionamos universidades cujos

programas de História foram criados após 2006, quando observamos uma ampliação significativa da estrutura

universitária, seja através da criação de programas de mestrado e doutorado, seja a partir da criação de novas

universidades fora dos grandes centros urbanos do país. Vale destacar que optamos por um levantamento que

incluísse todas as áreas disciplinares, apesar da nossa maior reflexão estar voltada para o campo da História em

especial.

10 Infelizmente durante o período de realização deste levantamento, o banco de teses da Capes esteve fora de

serviço devido a problemas na reformulação da base de dados, o que nos permitiria uma maior abrangência na

amostragem.

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UFRJ

FGV

PUC-Rio

PUC-SP

UNESP Assis

UNESP Franca

UNIRIO

Centro-Oeste UnB

UFG

PUC-GO

Nordeste UFBA

UFPE

UECE

UEFS

UFCG

UFRPE

UNEB

Norte Nenhum UFAM

UFPA11

Tabela 1: Universidades analisadas, divididas entre programas antigos e novos

O desenvolvimento da produção acadêmica ao longo dos anos

No Brasil, a Lei de Anistia de 1979, como observa Glenda Mezzaroba (2007), serviu

para neutralizar campos políticos opostos e garantir a coesão social com base no

esquecimento. Esta lei inaugura, coincidentemente, um período em que começam a surgir as

primeiras memórias de ex-prisioneiros políticos alvos de tortura e violência do aparato

repressivo. Em início da década de 1980 são elaborados os primeiros trabalhos acadêmicos

sobre o período militar cujos temas são pautados em alguma medida pelos relatos de ex-

militantes, principal fonte disponível naquele momento. O que a lei exigia era subvertido de

certa forma através dos trabalhos acadêmicos, contribuindo para a publicização dos ―horrores‖

dos governos militares. Juridicamente optou-se pela via do silenciamento, academicamente

elegeu-se a do ―justiçamento‖.

Passados 35 anos da Lei de Anistia, o Brasil experimentou um avanço no que se refere

às reparações materiais das vítimas ou seus familiares por parte do Estado, sem uma

contrapartida com relação à punição dos agentes públicos envolvidos. Prova disso é que em

2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional a Lei de Anistia de 1979

que garante o ―perdão‖ aos crimes contra a humanidade cometidos pelos torturadores12

. Nesse

11 A UFPA teve seu programa de pós-graduação em História criado em 2004, mas foi incluída neste

levantamento para fins de representatividade regional.

12 Com o intuito de que o STF anulasse o perdão concedido aos policiais e militares a serviço do Estado

acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou

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jogo de forças, a via conciliatória tem se mostrado vitoriosa e os trabalhos acadêmicos

permanecem restritos ao meio universitário, sem travar um diálogo mais amplo com a

sociedade brasileira. A criação, em 2012, de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) –

que não prevê como seu escopo de ação a punição dos crimes praticados contra os direitos

humanos – e pouco antes, a promulgação da Lei 12.527/2011 que garante o acesso às

informações públicas, animou aqueles mais comprometidos com a consolidação da

democracia e encorajou o desenvolvimento de políticas de não-repetição.

A nosso ver, a criação da CNV representou um avanço do ponto de vista da elucidação

do passado recente autoritário no Brasil. No entanto, não se pode confundir a ―verdade

histórica‖ propalada no texto da Comissão, que terá como resultado de seu trabalho a

construção de uma ―história oficial‖, realizada pelas mãos do Estado, com o trabalho

metodologicamente conduzido pelo historiador. Não se trata de hierarquizar os papeis de

historiadores e advogados – estes últimos maioria entre os comissionados da CNV – mas

antes chamar a atenção para esta diferença.

Desde o início da década de 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil foi uma das

instituições mais atuantes, do ponto de vista político e jurídico, através do questionamento da

constitucionalidade da Lei de Anistia13

, contestando a Lei de Arquivos, de 1991 e exigindo a

abertura dos documentos militares relativos ao julgamento de presos políticos. A forte atuação

da instituição ajuda a explicar a intensa presença desses profissionais tanto nos grupos de

trabalho da Comissão quanto na divulgação a respeito desses processos e da luta política da

instituição para o ―grande público‖.

Este conjunto de transformações em curso desde fins da década de 1970, mas

sobretudo nos anos 2000, colaboraram, sem dúvida, para o avanço das pesquisas acadêmicas

na área, como podemos observar no gráfico abaixo. As dissertações superam em muito o

número de teses defendidas no mesmo período, além de evidenciar um ―boom‖ dos estudos

sobre ditadura militar pós-anos 2000, como iremos discutir com mais calma pouco adiante.

com um pedido de revisão da Lei de Anistia (Lei nº 6683/79). Em abril de 2010, a maioria dos ministros do STF

votou contra a revisão da lei. Foram 7 votos contra e apenas 2 a favor. A continuidade da lei é justificada pelos

ministros com base em uma alegação covarde: não caberia ao Poder Judiciário a revisão de tal acordo político

feita pela sociedade civil naquele momento. Os únicos ministros que usaram argumentos dos direitos humanos

foram Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, ambos nomeados pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva e os

únicos votos dissonante em meio a Judiciário conservador.

13 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153. Lei da Anistia (Lei Federal nº

6.683/1979).

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Gráfico 1: Divisão da produção de D&T por décadas para todas as áreas. Março 2014.

De acordo com levantamento realizado pelo Grupo de Estudos sobre a Ditadura

Militar da UFRJ, entre os anos de 1971 e 2000 foram produzidas 214 D&T sobre a história da

ditadura militar, sendo que destas, nove foram desenvolvidas no exterior. Em artigo, o

professor Carlos Fico (2004), coordenador do referido grupo de estudos, apresenta os dados

que organizamos na tabela abaixo:

Período Número de defesas

1971-75 2

1986-90 47

1996-2000 74

Retirada de FICO, Carlos. ―Versões e Controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar― in Rev. Bras. Hist. vol.24

no.47 São Paulo, 2004.

O levantamento, no entanto, não nos informa sobre as áreas que concentraram o maior

número de estudos, mas corrobora com os nossos dados que demonstram uma curva quase

sempre ascendente nos estudos sobre o tema.

O gráfico 2 detalha a produção acadêmica ano a ano. Nele, o ano de 2007 aparece

como o de maior produtividade na década de 2000, sendo superado entre 2009 e 2012. Apesar

do leve declínio notado no ano de 2013 no levantamento realizado para todas as áreas, no

campo de produção historiográfica, verificamos um aumento contínuo e crescente das D&T.

Alguns fatores podem ter contribuído para esse fenômeno. Em 2004, os 40 anos do Golpe de

1964 aquece o mercado editorial com a publicação de pesquisas acadêmicas, relatos de

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memória, matérias jornalísticas que dão maior visibilidade ao tema, fomentando novas

versões e caminhos de investigação.

A alta quantidade de trabalhos produzidos após 2010 pode ser resultado da Lei de

Acesso à Informação, que garante a consulta documental irrestrita aos pesquisadores, ao lado

da criação do projeto Memórias Reveladas, com sede no Arquivo Nacional. Este projeto,

criado em 2009, hoje conta com 55 instituições e entidades parceiras e vem fazendo, após

2012, um trabalho extraordinário de digitalização da documentação produzida pelos DOPS

estaduais, Assessorias de Segurança e Informação (ASI), SNI, dentre outros.

Somado a isso, após 2007 os programas de pós-graduação experimentaram uma

ampliação de sua estrutura e corpo discente após o recebimento de verbas do Programa de

Apoio à Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo

Decreto presidencial nº 6069/07. Ainda está para ser dimensionado o impacto que o programa

do REUNI teve para o desenvolvimento científico brasileiro, mas sem dúvida ele é

responsável por parte deste aumento, que não é exclusivo dos estudos sobre ditadura militar.

Marcos Napolitano (2011), analisando a literatura acadêmica sobre o Golpe de 1964 e

o regime militar, aponta que a perspectiva histórica construída no meio acadêmico desde os

anos 1970 é derivada, essencialmente, do trabalho de sociólogos e cientistas políticos e não

fruto do ofício do historiador, como assinalamos pouco antes. Ou seja, a história desse

período é uma arena de disputas diversas e não exclusivas ao campo acadêmico, muito menos

da disciplina de História.

Gráfico 2

Gráfico 2: Produção de D&T para todas as áreas. Março 2014.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

A reforma universitária de 1968, instituída através da Lei n° 5.540/68, além de

introduzir uma série de mudanças na organização estrutural dos cursos, teve como objetivo

central a geração de mão de obra técnica capaz de suprir as demandas do mercado de trabalho.

Visando conter a movimentação estudantil, esta reforma defendeu o fortalecimento do

princípio de autoridade e disciplina nas universidades, bem como privilegiou os aspectos

técnicos e administrativos, em detrimento do senso crítico. Esta reorientação vivida pelas

instituições de ensino superior deixará marcas na produção acadêmica. Além da reforma de

1968, a instituição do decreto 477, de 26 de fevereiro de 1969, também conhecido como o AI

das universidades, dá início a uma onda de demissões e aposentadorias compulsórias,

afastando o corpo docente considerado subversivo da prática do magistério e da pesquisa

acadêmica. Os estudantes, por sua parte, são expulsos e ficam proibidos de cursarem qualquer

outra universidade pelo espaço de três anos. O rearranjo de forças no meio universitário terá

impactos significativos para a produção histórica como um todo e afastará de cena o interesse

pela história do tempo presente, fazendo com que muitos professores optem por temas mais

afastados no tempo e, portanto, menos polêmicos. Dez anos de extremo controle no meio

universitário se fará sentir, mesmo após a abertura política. Serão nesse sentido os sociólogos

e cientistas políticos os primeiros do meio universitário a eleger a ditadura militar brasileira

como tema de investigação científica, enquanto os historiadores continuarão a desenvolver

pesquisas num tempo histórico mais pretérito.

Posto isto, a questão que se apresenta diz respeito às causas para este crescimento

acelerado pós anos 2000, e a maior concentração na área da História, como mostra o gráfico

abaixo:

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

Observamos no gráfico 4 um crescimento significativo das dissertações, em

comparação com as teses, e uma concentração maior após o ano de 2005, no caso específico

das pesquisas em História. A partir desta data, os estudos sobre ditadura militar ganham novo

alento e passam a hegemonizar a produção acadêmica como um todo, conforme demonstra o

gráfico 5.

Gráfico 3

Gráfico 4: Produção de D&T de História

(1982-2013). Março 2014.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

Apesar da disciplina de História ser responsável pelo maior número de D&T

defendidas, como demonstrou o gráfico 3, esta realidade é bastante recente. De acordo com

nosso levantamento, identificamos apenas 9 D&T em História defendidas entre 1984 e 2000,

contra 18 em Sociologia e 3 em Ciência Política no mesmo período. É a partir do ano 2000

que ocorre um verdadeiro boom na produção acadêmica como um todo, e quando a disciplina

de História destaca-se significativamente: 183 D&T de um total de 370 entre todas as áreas.

De 2001 a 2010 foram defendidas 110 D&T de História, em um universo de 227 D&T

levantadas entre todas as áreas disciplinares. A década de 2010 apresenta um aumento ainda

mais considerável: 67 D&T no espaço de apenas três anos. A produção em Ciência Política e

Sociologia não acompanhou o aumento experimentado pelo campo da História, chegando a

produzir apenas 28 e 33 trabalhos, respectivamente, após o ano 2000.

Apesar do aumento da produtividade acadêmica sobre os estudos de ditadura militar

no Brasil, a repercussão que o tema adquire nos debates mais amplos da sociedade civil –

pautados em grande medida pela grande imprensa – ainda permanece muito tímida. Grande

parte da produção acadêmica, bem como os cursos e eventos sobre a ditadura militar, não

alcançam o chamado ―grande público‖, isto é, pessoas que não são estudantes, pesquisadores

ou professores ligados às universidades e outros centros de pesquisa. De maneira geral, o

conhecimento produzido pela prática da pesquisa e sua consequente divulgação (defesas de

teses e dissertações, eventos, cursos, revistas científicas, etc.) parece circular entre os

membros da mesma comunidade acadêmica, perpetrando a divisão entre a vida acadêmica e a

Gráfico 5: Produção de D&T de História, Ciência Política e Ciências Sociais

5: Comparativo do número de D&T/ano das áreas mais produtivas (1982-2013). Março 2014.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

vida extramuros universitários14

. Isso implica, muitas vezes, em não ocupar o espaço público

enquanto autoridade legítima para discutir e levantar questões, tal qual o fazem os jornalistas

e advogados por exemplo.

Mais recentemente estamos assistindo a transformação desta realidade, provavelmente

como resultado da quantidade de historiadores que têm se dedicado ao tema e têm sido

chamados a emitir suas opiniões sobre diferentes temáticas relativas a este período. Este é o

caso, por exemplo, das diversas matérias jornalísticas assinadas por historiadores como Carlos

Fico e Daniel Aarão Reis Filho, sobretudo este ano por ocasião dos 50 anos do Golpe de 1964.

No entanto, suas análises aparecem em meio a uma miríade de outras opiniões de personagens

conhecidos do grande público que viveram este momento histórico. Ou seja, na grande mídia

as análises dos historiadores assumem o mesmo estatuto de autoridade que as opiniões

individuais. Memória e História não aparecem apenas intimamente imbricadas, mas são

apresentadas praticamente como se fossem a mesma coisa.

Entendemos que a produção acadêmica — mesmo quando realizada sob as regras

metodológicas exigidas pelo campo científico — por se tratar de um discurso fabricado a

partir de determinado ponto de observação, carrega também sentidos políticos que se

delineiam na própria construção do conhecimento. Com acadêmicos distantes do ―grande

público‖, o hiato entre o ―conhecimento acadêmico‖ e as informações que circulam nos meios

de comunicação aumenta. Isso se dá à medida que os meios de comunicação aos quais o

público geral tem amplo acesso, como os grandes jornais impressos, portais e redes sociais de

Internet, programas de TV ou filmes do grande circuito, veiculam informações que não se

comunicam necessariamente com a produção universitária. Ou seja, a lacuna informacional

que parece ter sido deixada pelos historiadores é geralmente preenchida pelo trabalho de

jornalistas, realizadores culturais (curadores de exposições, diretores de filmes, teatro,

programas de TV, etc.) e outros profissionais que, respondendo ao ―desejo de memória‖15

da

sociedade brasileira, produzem conhecimento sobre ―ditadura militar‖ para o ―grande

público‖16

.

14 Ponderamos se essa divisão não seria motivada pela dificuldade dos acadêmicos em estabelecer canais de comunicação mais fluidos e de produzir em linguagem mais acessível (sejam textos, vídeos ou outros suportes).

Se não nos cabe aqui esgotar as motivações para essa distância, podemos ao menos constatá-la e debater seus

efeitos.

15 GONDAR, Jô. "Lembrar e esquecer: desejo de memória". In: COSTA, Icléia Thiesen Magalhães e GONDAR,

Jô (org.). Memória e Espaço. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2000.

16 Como exemplo de resposta ao ―desejo de memória‖, podemos citar a novela ―Amor e revolução‖, exibida

pelo canal aberto SBT entre abril de 2011 e janeiro de 2012. Apontada como a primeira novela a se passar

inteiramente na ditadura e tendo o regime autoritário em posição de destaque na trama, a história narra o ―amor

impossível‖ entre um filho de militar e uma líder do movimento estudantil. Outra inovação foi a exibição de

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

Por muitas vezes isolados intramuros, os historiadores acadêmicos perdem importantes

oportunidades de ―falar ao público‖ e fazer de seu ofício também um campo de atuação

política, no sentido de participação enquanto cidadãos, conforme recomendava Bédarida

(2003). Observando os temas dos trabalhos apresentados nas últimas edições dos simpósios

nacionais de História organizados pela Associação Nacional de História (ANPUH),

percebemos o aumento do interesse pelo tema ―ditadura militar‖, em conformidade com os

dados que levantamos. No entanto, percebemos um contraste entre o aumento do interesse

pela ditadura militar como tema de pesquisa e a atuação dos historiadores brasileiros,

enquanto classe profissional, frente à referida ―guerra pela memória‖. Diferentemente dos

debates acadêmicos sobre ditadura, movimentando disputados simpósios temáticos e

aquecendo o mercado editorial especializado, houve pouca mobilização da entidade junto aos

seus filiados no tocante ao debate público do ―direito à verdade‖, da memória e da justiça.

Ainda que os historiadores se interessem cada vez mais pelo tema ―ditadura militar‖, esse

interesse não se reflete em ações políticas concretas17

.

Os historiadores devem, nesse sentido, estar atentos aos riscos e consequências que o

relatório final da CNV pode gerar. Não há dúvidas da utilidade do legado documental da

CNV, que beneficiará o trabalho de pesquisa de um sem número de historiadores. No entanto,

ao estarem desarticulados do processo político de reconstituir o passado, não participam da

elaboração da ―verdade‖ que está sendo divulgada sem ter passado pelo escrutínio da crítica

histórica, antes de ser reproduzido nos bancos escolares e na grande imprensa.

depoimentos de pessoas vítimas de tortura e perseguição política, contribuindo para a percepção dos fatos

históricos representados na trama. Conforme noticiado no site da novela, a fim de ser melhor preparado para a

interpretação, o elenco participou de um ―workshop‖ com pessoas que foram presas durante a ditadura. Apesar

do empenho da emissora em preparar seu elenco, não há notícia sobre a presença de historiadores neste

―workshop‖ ou prestando qualquer outro tipo de consultoria. Disponível em

http://www.sbt.com.br/amorerevolucao/bastidores/?c=54, acessado em 18 de março de 2014. 17 Ao ler os informes mensais da ANPUH dos primeiros anos desta década, enviados eletronicamente aos seus

associados, observamos que a votação da regulamentação da profissão do historiador é o tema com maior

destaque da ação da entidade, com poucas referências ao processo de criação do projeto Memórias Reveladas ou

da Comissão Nacional da Verdade. Entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012, a ANPUH reivindica a

participação na CNV através de membros representantes. No informe de junho de 2012, ―saúda com entusiasmo

essa empreitada, embora lamente a ausência, em seus quadros, de historiadores profissionais, que poderiam, em

função de sua capacitação, auxiliar sobremaneira na consecução dos objetivos da Comissão‖. A diminuta

presença de historiadores na CNV é um reflexo da pouca influência dos mesmos no ―extramuros‖ das

instituições de ensino e pesquisa.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

Polos de produção do conhecimento sobre ditadura militar

A primeira constatação que fizemos a este respeito não é novidade: as universidades

com maior produtividade sobre a temática da ditadura militar estão concentradas no eixo Sul-

Sudeste. Este fenômeno encontra explicação no fato de que esta região reúne as universidades

mais antigas do país, a maioria delas criadas nos anos 1970 e 1980. Consequentemente, no

Sul-Sudeste localizam-se as instituições mais estruturadas, com amplo corpo docente, centros

de pesquisa com visibilidade internacional e maior tradição em suas áreas disciplinares. Estas

universidades, portanto, apresentam de maneira geral alta produtividade, não apenas nos

estudos sobre ditadura militar, daí o grande número de pesquisas também sobre o tema em

tela. No entanto, como já observamos, houve um aumento considerável de programas de pós-

graduação após o ano de 2006, sobretudo na área de História, obedecendo a um processo de

descentralização das universidades. Estes novos programas interferem sensivelmente na

produção acadêmica sobre o tema, participando do aumento das D&T após 2007, além de

estarem distribuídas, em sua maioria, fora do eixo Sul-Sudeste.

Considerando o caso específico da criação de programas de pós-graduação em

História, verificamos nos dois períodos uma forte concentração na região Sudeste. Após 2006,

assiste-se um aumento considerável dos programas do Nordeste, equiparando-se à região Sul.

No caso da região Norte, a situação é ainda mais recente: a UFPA tem seu mestrado em

História Social da Amazônia criado em 2004, e a UFAM em 2006.

Nos gráficos abaixo, observamos a concentração massiva de teses e dissertações na

região Sudeste, acompanhada pela presença significativa da região Sul. No caso das

dissertações, nota-se que as regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte apresentam certo

equilíbrio na quantidade de trabalhos produzidos entre si. Considerando que este gráfico foi

criado a partir da produção total de pesquisas defendidas, ao longo de todos os anos da

amostragem, e que os programas destas regiões são mais recentes, podemos concluir por um

aceleramento do ritmo de produção acadêmica de dissertações nestas regiões.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

No caso das teses, a produção da região Sudeste apresenta um predomínio ainda maior.

A região Nordeste indica produção na área bastante reduzida e a região Norte nem chega a ser

notada no gráfico. A baixa produtividade deve-se, principalmente, à inexistência de

programas de doutorado nestas universidades. Esta realidade termina por reforçar, por outro

lado, a concentração das universidades dos centros Sul-Sudeste, na medida em que, além de

exercerem forte poder de atração devido ao corpo docente ter maior visibilidade em nível

nacional, ainda se veem obrigados a saírem de suas universidades de origem se quiserem

continuar os estudos acadêmicos.

Uma radiografia mais precisa desse fenômeno pode ser obtida a partir da subdivisão

das D&T por universidades. A partir dos dados apresentados no gráfico a seguir, podemos ver

que, embora apresente a região Sul como a que concentra programas mais antigos ou bem

conceituados e que aparece como a segunda maior região de concentração de trabalhos

defendidos, tem sua produção concentrada majoritariamente na UFRGS. Na verdade, as

demais universidades da região Sul apresentam produção semelhante à região Nordeste e

Centro-Oeste.

A UFRGS, universidade com maior número de dissertações sobre ditadura militar em

todo o país, é responsável pela grande maioria dos trabalhos da região Sul e funciona,

consequentemente, como polo de atração, absorvendo a demanda de candidatos a doutorado

de outras localidades.

Das dez primeiras universidades no ranking de produtividade, todas se concentram na

região Sul-Sudeste, à exceção da UFPE, que aparece em oitavo lugar. As cinco universidades

Gráfico 7: Distribuição das teses por região do

país.

Gráfico 6: Distribuição das dissertações por região

do país.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

com maior produção encontram-se nos estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São

Paulo. As dissertações defendidas nas cinco primeiras universidades somam mais do que as

24 últimas universidades (114 dissertações das cinco primeiras contra 98).

Analisando a produção de D&T, chama nossa atenção o fato de a USP ser a única a

apresentar um maior número de teses em relação às dissertações defendidas. Isso demonstra o

argumento que vimos defendendo que as universidades mais antigas do eixo Sul-Sudeste

funcionam como polos de atração para estudantes de diversas regiões do Brasil, criando assim

verdadeiras escolas interpretativas, sobretudo no campo da História.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

Gráfico 8: Levantamento de D&T sobre ditadura militar, por

universidades. Março de 2014.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

As particularidades regionais e sua relação com os temas de investigação

Uma vez realizada a análise mais quantitativa da produção acadêmica sobre ditadura

militar, faremos alguns apontamentos com relação aos conteúdos das D&T. Para isso,

agrupamos os trabalhos acadêmicos em 29 temas, selecionados com base nas palavras-chaves

e nos temas identificados por Fico, em sua revisão historiográfica por ocasião dos 40 anos do

Golpe, conforme aparecerá em seguida. As tabelas abaixo mostram esta divisão. À esquerda

temos os temas mais pesquisados no conjunto das áreas disciplinares. À direita,

especificamente o levantamento feito com base na produção de História.

D&T/temas, todas as áreas

D&T/temas, área de História

1. Cultura 57 1. Cultura 26

2. Imprensa 41 2. Militares 19

3. Trabalhadores 32 3. Igrejas 14

4. Militares 26 4. Luta Armada 14

5. Igrejas 22 5. Trabalhadores 13

6. Abertura Política 21 6. Imprensa 12

7. Movimento

Estudantil 20

7. Esquerda 11

8. Economia 19

8. Movimento

Estudantil 10

9. Estrutura

Repressiva 18

9. Estrutura

Repressiva 10

10. Luta Armada 18 10. Abertura Política 10

11. Educação 17 11. Memória 8

12. Memória 17 12. Economia 7

13. Esquerda 16 13. Golpe de 1964 5

14. Exílio 8 14. Exílio 5

15. Censura 7 15. Educação 4

16. Golpe de 1964 7

16. Movimentos

Sociais 4

17. Política

Reparatória 7

17. Intelectuais 3

18. Desaparecidos 6 18. Censura 3

19. Intelectuais 6 19. Justiça Militar 3

20. Literatura 6

20. Política

Reparatória 2

21. Movimentos

Sociais 6

21. Relações

Internacionais 2

22. Justiça Civil 5 22. Justiça Civil 2

23. Justiça Militar 5 23. Anistia 1

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

24. Relações

Internacionais 5

24. Desaparecidos 1

25. Política Partidária 4 25. Literatura 0

26. Anistia 3 26. Política Partidária 0

27. Arquivos 3 27. Arquivos 0

28. Justiça de

Transição 3

28. Justiça de

Transição 0

29. Gênero 2 29. Gênero 0

30. História Regional 2 30. História Regional 2

O levantamento elaborado pelo professor Carlos Fico, demonstra, em termos gerais,

um maior interesse pelos temas relacionados à cultura (música, teatro, literatura etc). Entre os

cinco temas mais pesquisados, aparecem ainda a imprensa (os discursos veiculados sobretudo

nos jornais), Trabalhadores (com destaque para os trabalhos que tratam do Novo Sindicalismo

dos anos 1980), Militares (desde a clássica abordagem dos governos militares até análises da

ideologia da ESG e do sistema repressivo), Igrejas (de um lado, as experiências das

Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação, de outro, reflexões sobre os

setores conservadores católicos e suas expressões).

Napolitano sugere quatro grandes temáticas que comportam todas as demais

subdivisões, são elas: o golpe, a guerrilha, a repressão e a transição. A temática do Golpe de

1964, tanto no levantamento realizado há 10 anos por Fico, como na coleta que efetuamos,

não foi até o momento muito investigada. Apenas mais recentemente este assunto vem

gerando maior interesse da parte dos pós-graduandos, que resolvem se dedicar à investigação

do complexo IPES/IBAD pretendendo em geral uma continuação do trabalho de René

Dreifuss (1981), ou buscando entender as razões para a deposição do presidente civil João

Goulart, contribuindo para renovadas interpretações sobre o último presidente civil antes do

regime militar.

Em torno do tema da guerrilha, podemos reunir três categorias da tabela acima: luta

armada, esquerdas e desaparecidos. Mais especificamente os trabalhos sobre luta armada

foram realizados por historiadores e configuram um ramo importante das pesquisas sobre o

período. Vale destacar que dentre as pesquisas desta categoria, é notável a quantidade de

investigações feitas sobre a Ação Libertadora Nacional (ALN), a organização guerrilheira de

Carlos Marighella.

Os trabalhos elaborados que versam sobre a repressão têm buscado compreender o

funcionamento do aparato repressivo, do sistema nacional de informações e as polícias

políticas estaduais. São comuns as D&T que abordam a questão da tortura e enfocam o

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

cotidiano prisional. Há ainda outra parcela de investigações que tratam dos DOPS, as polícias

estaduais que atuavam em parceria com a estrutura de segurança dos militares.

As pesquisas que elegeram a fase de transição como seu objeto de análise estão

preocupadas em entender o período da anistia, o processo histórico da constituinte e, de

maneira nem sempre direta, discutir a questão da democracia enquanto sistema político a ser

defendido.

A partir da leitura dos resumos das D&T da área de História, verificamos o

predomínio, nos programas de pós-graduação de maior envergadura, de pesquisas cujos temas

tratam, em sua maioria, de questões com abrangência nacional, enquanto nos centros de

pesquisa das universidades de menor monta, observamos uma ênfase em estudos que

privilegiam a História Regional. Polos como UFRJ, UFRGS, UFF, USP, Unicamp, entre

outros, aprovam projetos de pesquisa sobre temas de alcance nacional, sem trazerem a marca

de suas regiões de origem. Já os programas criados mais recentemente, principalmente

aqueles situados fora do eixo Sul-Sudeste, investem, acima de tudo, em pesquisas que ajudem

na compreensão de suas realidades locais.

Segundo aponta o relatório trienal da Capes de 2010, 59, 4% dos programas de pós-

graduação implantados em diversas regiões do Brasil nas últimas duas décadas (1990 e 2000)

nascem com propostas específicas regionalizadas, ―atendendo às necessidades de

conhecimento histórico específico em cada espaço geográfico, em cada temporalidade, e em

cada formação social‖ (CAPES, 2010). Aponta ainda uma tendência monográfica para estas

pesquisas regionais.

Esta tendência traz algumas consequências. Os polos de pesquisa na área de História

das universidades mais produtivas do país caracterizam-se como centros irradiadores de

interpretações historiográficas para todo o Brasil. Ou seja, inseridas em um sistema

meritocrático, ao integrarem instituições de maior estrutura e receberem mais verbas das

instituições de fomento à pesquisa, delas consequentemente emanam as principais correntes

historiográficas que serão ensinadas nos cursos de graduação dos menores centros, onde seu

corpo docente apresenta menor ossatura.

Além disso, a máxima ―antiguidade é posto‖ parece ser válida para a compreensão da

lógica que impera no campo acadêmico de maneira geral, isto é, os programas de pós-

graduação mais antigos, situados nas maiores universidades brasileiras, pautam a maioria das

discussões travadas pelos historiadores e cientistas sociais em âmbito nacional. Pela própria

prática da pesquisa em História, assim como em outras ciências humanas, a necessidade de

filiação teórica corrobora para a legitimação de certos pesquisadores como referências para

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

todos os outros centros. Ou seja, a participação nos debates historiográficos daqueles que se

situam nas instituições mais recentes está condicionada ao diálogo com esta literatura, seja

para comprovar suas teses, seja para refutá-las. Dessa maneira, os ―grandes‖ nomes do meio

universitário exercem uma atração significativa, estimulando o desejo dos estudantes se

tornarem seus orientandos e com isso migrarem para os grandes centros de investigação.

Com base na análise dos resumos das D&T em História, notamos que os trabalhos

sobre ditadura dos programas de pós-graduação criados após 2000, ao privilegiarem o estudo

de acontecimentos locais, fortalecem os núcleos de História Regional. O estímulo à História

Regional pode ser um caminho para a produção de análises mais originais ou mais

aprofundadas das especificidades locais.

O fenômeno de atração exercido pelos grandes centros universitários muitas vezes

limita o desenvolvimento do conhecimento regional. É comum nos depararmos com análises

que se contentam em verificar determinada tese, formulada a partir da realidade dos centros

de pesquisa de maior renome. Nesse sentido, a História Regional pode iluminar aquilo que

renomados estudiosos do tema não tem se preocupado ou não puderam constatar devido às

especificidades locais. Apesar de se tratarem de programas muito recentes, a maioria data dos

anos 2000, como vimos anteriormente, constatamos a predominância de estudos de história

local sobre ditadura militar.

Programas de Pós-Graduação em

História (PPGH) Ano de fundação

D T

História Econômica USP 1971 1971

História Social da Cultura PUC-Rio 1971 1971

História Social das Relações Políticas

UFES 1971 1985

História Social UFRJ 1976 1984

História Social Unicamp 1976 1994

História Social USP 1980 1989

História UERJ 1982 1992

História UFAM 1986 1995

História UFBA 1987 1998

História UFC 1990 2002

História UFF 1990 2000

História UFJF 2000 -

História UFMG 2003 -

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

História UFPA 2004 -

História UFRGS 2004 -

História UnB 2006 -

História UNESP 2006 -

História UNIOESTE 2006 -

História, Política e Bens Culturais

CPDOC/FGV 2007 2007

História e Culturas UECE 2006 -

História UDESC 2007 -

História UEFS 2007 -

História UFRPE 2006 -

História UFRRJ 2008 -

História UNIRIO 2007 2012

História Regional e Local UNEB 2006 -

História do Brasil UNIVERSO 2006 -

História UFSJ 2008 -

Tabela 5: Datas de fundação dos PPGH pesquisados

Conforme havíamos apontado anteriormente, os anos 2000 oferecem novo alento à

produção sobre ditadura militar devido à abertura ou maior facilidade de acesso à

documentação disponível ao público. O acervo do DEOPS-SP e DOPS-RJ, por exemplo,

depositados respectivamente no APESP e no APERJ, foram disponibilizados ao público

apenas em 1994 por meio de decretos estaduais18

. Antes disso, apenas os familiares das

vítimas ou as próprias vítimas do regime podiam ter acesso ao seu conteúdo. Esta decisão,

obviamente, oferece a oportunidade de elucidação de diversos assuntos até então obscuros

sobre o período. Além disso, o Rio de Janeiro, e em menor medida Brasília, atraíram e

continuam atraindo muitos pesquisadores de todo o Brasil, não apenas por concentrar alguns

18 De acordo com a Resolução nº.38, de 27 de dezembro de 1994, da Secretaria de Estado da Cultura de São

Paulo, o Fundo DEOPS-SP foi aberto ao público mediante a assinatura de termo de responsabilidade individual sobre o uso e veiculação da informação á coletada. Para maiores informações, consultar:

http://www.arquivoestado.sp.gov.br/permanente/deops_pesquisa.php. Recentemente, em 1° de abril de 2013, o

APESP foi o primeiro arquivo público brasileiro a disponibilizar cerca de 1 milhão de imagens para consulta via

internet. Ver BORIN, Monique e SOARES, Sheila A. R. ―Abrindo os arquivos do Deops/SP: a experiência da

livre disponibilização na internet dos acervos da repressão‖ in Arquivos da Repressão e da Ditadura. Rio de

Janeiro: Arquivo Nacional – Centro de Referência Memórias Reveladas, 2013, pp. 32-39. Processo semelhante

experimentou o APERJ no tocante ao acesso aos documentos públicos do Fundo Polícia Política através do

Projeto de Lei n° 1819/94. Ver APERJ. Os Arquivos das Polícias Políticas: reflexos de nossa história

contemporânea. Rio de Janeiro, 1994.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

dos centros de maior produtividade, mas também por abrigar os arquivos do Serviço Nacional

de Informações (SNI), sob a guarda do Arquivo Nacional.

Considerações Finais

―Ciência sem consciência é somente ruína da alma‖. A frase pertence a Rabelais e foi

lembrada por Bèdarida para discutir o papel social dos historiadores. Para o autor francês,

como vimos, o historiador não pode esquivar-se de sua função social e moral como cidadão.

Nesse sentido, em se tratando de um tema tão sensível como a recente ditadura militar

brasileira, é compreensível que os primeiros acadêmicos, não apenas os historiadores, tenham

optado pelo estudo de temáticas relativas às vítimas dos agentes do Estado. Isso, em certa

medida, se explica pelo sentimento coletivo de injustiça social gerado pela Lei de Anistia de

1979 e pela frustração da Constituinte posteriormente, mas também baseados nos meios

disponíveis à época para a investigação de certos acontecimentos e grupos sociais.

No entanto, é preciso estar atento, como historiador do tempo presente, para os perigos

implicados em tais análises. Se de um lado a empatia que as vítimas das violências estatais

despertam na sociedade e no meio acadêmico impulsiona a produção nos meios universitários

sobre o tema, de outro, corre o risco de formular interpretações baseadas mais em afinidades

ideológicas e identificações sociais do que em pesquisa empírica, fundamentada em critérios

metodológicos específicos à área disciplinar.

A luta pela abertura dos documentos da ditadura militar, embora tenha mobilizado

alguns poucos historiadores questionadores da política de sigilo dos arquivos, só adquiriu

dimensão mais ampla quando foi assumida por outros setores da sociedade e passou a ter

repercussão na imprensa.

Nesse sentido, pretendemos neste artigo apontar o significativo aumento da produção

historiográfica sobre ditadura militar nos últimos 15 anos e a liderança da disciplina de

História nos estudos gerais sobre a temática. Inserida em uma série de transformações

conjunturais – que vão desde a transformação na política de acesso à informação até a

abertura de novos cursos de pós-graduação em universidades que encontram-se fora do eixo

Sul-Sudeste – a produção acadêmica sobre ditadura militar tem ganho novas feições mais

recentemente: percebemos uma descentralização da produção de D&T nas universidades mais

tradicionais do país – ainda que estas continuem sendo responsável pelo volume de pesquisas

na área – acompanhada de uma ênfase em pesquisas que caminham no sentido da História

Regional.

THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.

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Conceito de terrorismo: governantes querem plateia domesticada, disponível em:

http://oglobo.globo.com/opiniao/conceito-de-terrorismo-11887565

Justiça paulista manda soltar ativistas detidos com base na Lei de Segurança Nacional,

disponível em: http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-10-09/justica-

paulista-manda-soltar-ativistas-detidos-com-base-na-lei-de-seguranca-nacional

Ciberativismo mostra sua força no Brasil, disponível em:

http://oglobo.globo.com/tecnologia/ciberativismo-mostra-sua-forca-no-brasil-8720932

(acessado em 18/03/2014).

‘Anistia não é esquecimento e essas pessoas têm de ser julgadas’, diz historiadora torturada

na ditadura, disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/anistia-nao-esquecimento-essas-

pessoas-tem-de-ser-julgadas-diz-historiadora-torturada-na-ditadura-11965115?topico=50-

anos-do-golpe (acessado em 24/03/2014)

Marchas da Família viram fiasco em todo o País, disponível em

http://www.brasildefato.com.br/node/27865 (acessado em 24/03/2014)

Informativo eletrônico da ANPUH, edição 22, ano 3 (29/12/2012), disponível em

http://www.anpuh.org/resources/image/informeeletronico22/ (acessado em 25/03/2014)

Outras Fontes:

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CAPES. Relatório de Avaliação 2007-2009 – Trienal 2010 – História.

http://trienal.capes.gov.br/wp-content/uploads/2010/12/HIST%C3%93RIA-

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18/03/2014)