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THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
A ditadura militar como tema:
uma radiografia da produção acadêmica sobre a ditadura militar brasileira
Alejandra Estevez
Fabiana Bandeira
Introdução
Às vésperas do 50º aniversário do Golpe de 1964, em meio a grandes transformações
urbanas para sediar a Copa do Mundo da FIFA, o Brasil vive hoje um momento de intensas
transformações políticas. À medida que se configura um novo cenário político brasileiro, de
multidões de manifestantes nos grandes centros urbanos1, de ciberativismo
2 e da ampliação da
discussão pública e da ação do Estado a respeito de temas como os direitos humanos no país,
as contradições do estabelecimento do Estado democrático parecem mais evidentes. Há, nesse
sentido, uma crescente polarização política, evidente nos debates públicos, na imprensa e nas
respostas do Estado às ações da sociedade civil.
Em meio aos preparativos para receber dois dos maiores eventos do calendário
esportivo mundial, parte da população protesta contra a ação do Estado nas transformações
urbanas e contra a repressão policial às manifestações, comparando a ação das instituições
policiais à repressão dos tempos ditatoriais, empunhando cartazes de ―Ditadura nunca mais‖,
entre outros. Outra parcela da população entende a efervescência política como caos social e
reedita valores e práticas de meio século atrás, com seus cartazes de ―Intervenção militar já‖ e
suas convocatórias de ―Marchas com Deus pela família‖.
1 Estima-se que mais de 1 milhão de pessoas tenham comparecido à manifestação da Avenida Presidente Vargas,
que saiu da Igreja da Candelária em direção à sede da Prefeitura do Rio de Janeiro, em 20 de junho de 2013.
Neste mesmo dia, 388 cidades também se manifestaram. Desde meados daquele ano, centenas de eventos
públicos de protesto foram realizados nas principais cidades do país. O aumento das passagens de ônibus na
maioria das capitais e os gastos públicos com a Copa do Mundo da FIFA 2014 foram os primeiros temas das grandes manifestações. Ao longo de algumas semanas, uma miríade de pautas políticas mobilizaram eventos de
repúdio, não apenas nas capitais. Ver http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-
maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm .
2 Entendemos por ciberativismo a forma de participação política realizada por indivíduos através de ações em
ambientes virtuais, suportados via Internet, como os seguintes exemplos: as organizações de petições públicas ou
abaixo-assinados; o envio de informações, notícias e debates realizados via listas de e-mail, redes sociais (como
Orkut, Facebook e outros); os "twitaços" (envio massivo de mensagens através de uma grande quantidade de
usuários da rede social Twitter a uma pessoa ou organização, como forma de protesto); organização coletiva de
eventos fora das redes sociais, com data e local de encontro, com o objetivo de manifestação política, utilizando-
se dos recursos disponíveis no aplicativo de Internet. Para saber mais sobre ciberativismo e sua relação com as
jornadas de manifestações políticas, cabe a leitura de MALINI, Fábio; ANTOUN, Henrique. A internet e a rua: ciberativismo e a mobilização nas redes sociais. Porto Alegre: Sulina, 2013.
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Há apenas algumas semanas antes do 31 de março, data oficial de aniversário do golpe,
percebemos o retorno (ressignificado ou apenas repetido) de argumentos presentes na crise
política dos últimos meses do governo João Goulart, evidenciando semelhanças entre o
contexto pré-golpe e o atual3. Soma-se a isso a votação do Projeto de Lei nº 499/2013, que
define e tipifica o crime de terrorismo4. Surgido no contexto das manifestações políticas e
votado a poucos meses da realização do campeonato mundial de futebol, o mesmo pode ser
interpretado como uma atualização ou substituição da Lei de Segurança Nacional, a n°
7170/19835, medida de recrudescimento repressivo frente aos protestos populares.
Tanto a polarização ideológica quanto a retomada de instrumentos do passado
ditatorial – sejam dispositivos legais, conceitos ressignificados, ―palavras de ordem‖ – para as
manifestações populares, nos indicam que a ―guerra pela memória‖ está nas ruas. O campo de
disputas em relação ao passado recente do Brasil, principalmente no que diz respeito à
ditadura militar, está aquecido e vem sendo abastecido por uma grande quantidade de
documentos sensíveis: relatos de memória, relatórios, matérias jornalísticas, documentários e
produção de pesquisa acadêmica.
Como já chamaram a atenção os historiadores do tempo presente nos anos 1980, os
eventos traumáticos possuem um caráter ―interminável‖, isto é, revivem constantemente um
―passado que não passa‖ devido à permanente reelaboração das memórias. Sendo assim, a
memória transformada em trauma serve de matéria-prima, em última instância, para a
construção do conhecimento histórico sobre tais acontecimentos e períodos de exceção,
deixando evidente a interligação entre História e Memória, sobretudo no caso da História do
Tempo Presente.
Este artigo se propõe, através de um levantamento de teses e dissertações brasileiras, a
pensar o campo de estudos sobre ditadura militar na sua trajetória temporal, distribuição
regional, produção temática e área disciplinar, com destaque para a História. Tomando como
referência o ano de 2004 e os debates então realizados por ocasião dos 40 anos do Golpe,
3 A tentativa frustrada de ressignificar as marchas da família com Deus – reunindo não mais de 700
manifestantes em São Paulo e um número ainda menos expressivo em outras capitais – mostra que a intervenção
das Forças Armadas não possui capilaridade social. Em pleno ano eleitoral, estas iniciativas visam atacar diretamente o governo petista. Chama igualmente a atenção o alto número de policiais que estiveram presentes
na manifestação em São Paulo: 900 policiais para 700 manifestantes, segundo dados publicados pela Folha de
São Paulo. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/03/1429580-marcha-da-familia-com-deus-
reune-cerca-de-500-pessoas-no-centro-de-sp.shtml (Acessado em 22/03/2014).
4 Retirado de http://oglobo.globo.com/opiniao/conceito-de-terrorismo-11887565 (Acessado em 18/03/2014).
5 Em outubro de 2013, dois jovens paulistas, supostos envolvidos na depredação de uma viatura policial foram
presos com base na LSN, tendo a prisão relaxada dias depois pela Justiça. Disponível em:
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-10-09/justica-paulista-manda-soltar-ativistas-detidos-com-
base-na-lei-de-seguranca-nacional. (Acessado em 17 /03/2014).
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quais foram as mudanças e continuidades ocorridas no espaço de uma década? No contexto de
abundância documental e aceleração do ritmo de produção e circulação da informação sobre
ditadura militar, quais as transformações no interesse acadêmico?
Vivemos atualmente um contexto altamente favorável para a pesquisa sobre o regime
repressivo instaurado no Brasil entre 1964 e 1985. Do ponto de vista político, as experiências
de outros países do Cone Sul como a Argentina e o Chile6, somada à pressão internacional da
Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2010, contribuíram para o avanço das
investigações sobre acontecimentos e períodos obscuros da recente história nacional. O
esclarecimento da ―verdade‖ vem sendo perseguido por um número cada vez maior de atores
sociais envolvidos com a temática: advogados, políticos, jornalistas, historiadores, cientistas
políticos, sociólogos etc.
Nas universidades e centros de pesquisa do país, observamos um aumento
significativo na produção acadêmica em geral7, destacando-se algumas áreas do conhecimento
no que diz respeito ao tema ―ditadura militar‖. Após a abertura de parte importante dos
arquivos da repressão, como é o caso da documentação produzida pelos Departamentos de
Ordem e Política Social (DOPS) do Rio de Janeiro e de São Paulo, depositadas e
disponibilizadas pelos respectivos arquivos públicos estaduais, as possibilidades de pesquisa
se expandiram significativamente. Após um longo embate travado por historiadores e
sobretudo pelo CONARQ, documentos antes considerados sigilosos deixaram de ser restritos
ao público, beneficiando, entre outros interessados, os historiadores. O Brasil torna-se, após
2011 com o coroamento dessa disputa materializada na Lei de Acesso à Informação, um dos
maiores acervos públicos de documentos anteriormente classificados como sigilosos
produzidos durante o regime militar (FICO, 2012). Esse ―terreno fértil‖ para a produção
acadêmica na última década propiciou o incremento na produção universitária (aqui
6 Na Argentina, apesar dos militares terem garantido a autoanistia pouco antes de devolverem o poder aos civis,
em 1983, tal ―perdão‖ foi imediatamente revogado pelo presidente civil Raúl Alfonsín. Este processo foi
marcado por uma série de retrocessos e avanços na legislação e nas punições aos violadores dos direitos
humanos, porém sem dúvida representou avanços muito mais significativo que no caso brasileiro: mais de 800
pessoas enfrentaram processos por violações aos direitos humanos. No Chile, mesmo durante a vigência da Lei
de Anistia, imposta pela ditadura de Pinochet em 1978, foi possível que vários crimes cometidos durante a ditadura fossem transferidos de tribunais militares para tribunais civis, a fim de garantir maior transparência e
imparcialidade no julgamento. Mesmo não sendo criada no imediato pós-golpe, como aconteceu na Argentina, o
Chile gestou a sua Comissão da Verdade e Reconciliação em 1990 por decreto presidencial, logo após a saída de
Pinochet do governo. Tal como no Brasil, recentemente a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA
declarou a lei de anistia do governo Pinochet sem validade, baseado no princípio do direito internacional que diz
que os Estados não podem utilizar sua legislação interna como desculpa para descumprir obrigações
internacionais.
7 De acordo com nosso levantamento, identificamos 360 D&T produzidas após o ano 2000 em um total de 405
D&T produzidas desde os anos 1980, ou seja, cerca de 90% da produção acadêmica sobre o tema.
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considerada a partir das teses e dissertações), principalmente na área de História8. Somado a
isso, os pesquisadores de ―ditadura militar‖ contam hoje com abundante e variada literatura
sobre o tema, tendo sido boa parte dela produzida nos últimos 15 anos, ainda que apenas
muito mais recentemente alguns ―mitos‖ e interpretações venham sendo descontruídos a partir
de pesquisas empíricas realizadas em sua maioria por historiadores.
Ao longo da última década acompanhamos, enquanto estudantes e pesquisadoras da
História do Tempo Presente, o tema ―ditadura militar‖ no Brasil se reposicionar no campo,
passando a ser um tema célebre, aguçando a curiosidade dos jovens pesquisadores e servindo
como fator de atração para estudantes comparecerem a palestras e cursos, seja no cotidiano
das graduações em História, seja nos eventos acadêmicos. Embora esse processo interno do
meio acadêmico dos historiadores tenha contribuído para aumentar significativamente a
quantidade de trabalhos e, logo, de conhecimento sobre o assunto, não logrou o mesmo êxito
com outros setores da sociedade.
O trinômio verdade-justiça-reparação, mobilizado no processo de superação das
violências ditatoriais e seus crimes contra a humanidade, adquiriu uma particularidade no caso
brasileiro: as políticas de reparação receberam uma atenção especial por parte do Estado,
enquanto os princípios de verdade e justiça ficaram em segundo plano, sob a justificativa da
garantia da coesão nacional. Desde 1995, iniciado no governo Fernando Henrique Cardoso,
teve início um longo processo de indenização material às vítimas ou familiares das vítimas do
regime militar, sem que o Estado se preocupasse, em contrapartida, em apurar os responsáveis
por tais atos de violência e desrespeito às liberdades civis (NAPOLITANO, 2011).
Além disso, podemos notar que a verdade enquanto conceito utilizado pela Comissão
Nacional da Verdade (CNV) e pelos discursos midiáticos diz respeito ao jargão jurídico. Não
se trata de afirmar uma verdade histórica propriamente, mas, antes, defender o direito à
verdade. Apesar disso, o incremento ocorrido mais recentemente na produção acadêmica tem
feito dos historiadores, cada vez mais, autoridades reconhecidas socialmente para falar sobre
o assunto, ocupando assim um lugar estratégico na ―guerra pela memória‖. A ocupação deste
espaço por historiadores faz-se importante na medida em que, como bem observou Foucault
(2002), a ―vontade de verdade‖ de uma sociedade exerce sobre os demais discursos poder de
8 Embora um número crescente de pesquisadores da área de História recorra à metodologia da História Oral e se
aproximem de conceitos e referências da área da Memória Social na produção de conhecimento sobre a ditadura
militar, entendemos que esta metodologia não é aplicável a qualquer objeto de estudo, mas sim aqueles que
tomam como fonte a memória. Em outros casos, documentos escritos, em suas múltiplas possibilidades de
apresentação e formato, como relatórios, correspondências, etc. ainda constituem as fontes principais ou
desejáveis de muitas pesquisas produzidas no país.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
coerção. Nessa arena, as falas buscam afirmar-se através do discurso de verdade, ofuscando
ou invisibilizando grupos e experiências, orientados por suas convicções políticas no presente.
Trata-se de arena das mais instáveis aos historiadores brasileiros que muitas vezes se veem
coagidos pela ―verdade‖, confrontados pelas versões de seus contemporâneos, testemunhas
que viveram os fenômenos que estes se propõem a explicar. Ainda atual, François Bédarida
(2003) lembrou a função crítica, cívica e ética do historiador do tempo presente, que tem
como missão, de um lado, desmistificar ―verdades‖ veiculadas pela memória coletiva ou pela
―história oficial‖ e, de outro, é chamado a tomar parte na construção da consciência histórica e
da memória de seus contemporâneos.
Do ponto de vista acadêmico, a questão da ―verdade‖ assume caráter mais polêmico.
Para os historiadores, sobretudo, as formas de conhecer e representar o passado se defrontam
com as memórias e a possibilidade de se chegar à verdade. Além disso, pensando o campo
acadêmico de forma integrada com o campo político, acreditamos que as interpretações e
interesses dos pesquisadores podem servir para legitimar ou desconstruir imagens públicas,
bem como defender modelos políticos como a democracia, o socialismo, o liberalismo,
dependendo do uso que delas se faça (MOTTA, 2013). Poderíamos dizer que a maioria dos
trabalhos acadêmicos produzidos sobre o tema traz, de maneira tácita, a defesa do ideal da
democracia enquanto sistema político a ser resguardado.
Passados 50 anos do Golpe de 1964 e quase 30 anos do retorno ao sistema
democrático, pelo menos constitucionalmente, nos interessa investigar como se configurou o
interesse acadêmico pelo período – e as possibilidades de investigação dentro da História do
Tempo Presente – no interior dos centros de pesquisa ao longo dos anos.
Procuramos refletir sobre a produção acadêmica sobre ditadura militar, com ênfase nas
décadas de 2000 e 2010, no que diz respeito às temáticas, à distribuição da produção por área
do conhecimento e por região do país. Pretendemos, ainda, levantar questões acerca do papel
do historiador no debate político sobre a ―verdade‖ e ―memória‖ travado hoje no país.
Marcos Napolitano (2011) afirmou que as disciplinas de Sociologia e Ciência Política
pautaram a construção dos problemas e abordagens sobre o tema, privilegiando temáticas
específicas durante os anos 1980 e 1990. Interessa-nos, nesse sentido, verificar se sua
constatação continua válida para os últimos 15 anos. Com maior oferta documental, que temas
são privilegiados hoje? Qual a importância da produção historiográfica dentro da ―guerra pela
memória‖ do período militar travada no cenário nacional atualmente?
Na tentativa de responder estas e outras questões, realizamos um levantamento das
dissertações e teses (a partir de agora D&T) defendidas entre 1982 e 2013 em 34
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
universidades9, a partir da base de dados disponibilizada pelos programas de pós-graduação
10,
conforme a tabela 1. Os dados que serão apresentados ao longo deste trabalho foram
produzidos com base na busca pela palavra-chave ―ditadura militar‖ ou ―regime militar‖.
Cientes da limitação deste levantamento, que fatalmente deixou de fora parte da produção
universitária, pretendemos levantar algumas questões e apontar tendências dentro da produção
acadêmica.
Acreditamos que, ainda que parcial, este levantamento é capaz de 1) verificar como a
publicização da documentação produzida pelo Estado autoritário depositada em arquivos, a
transformação na legislação, a instalação da CNV, a própria ampliação dos programas de pós-
graduação, entre outros, influenciaram e contribuíram para o aumento do interesse pela
ditadura militar.; 2) refletir sobre o salto quantitativo da produção acadêmica especificamente
na área da História, que totaliza 181 D&T, quase quatro vezes mais que Ciências Sociais,
disciplina que aparece em segundo lugar e que concentrou os estudos nas primeiras décadas
como assinalou Napolitano; 3) verificar a distribuição regional da produção acadêmica com
base na identificação de centros de pesquisa/grupos de pesquisa do CNPq.
Regiões Programas antigos ou
conceituados
Programas novos
Sul PUC-RS
UFPR
UFRGS
UFSC
UNISINOS
UDESC
UEL
UNIOESTE
Sudeste UFF
Unicamp
USP
UFMG
UERJ FFP
UFOP
UFRRJ
UFSJ
9 As universidades foram escolhidas com base em dois critérios, conforme exposto na tabela 1: de um lado,
encontram-se as universidades cujos programas de História datam das décadas de 1970 e 1980 e, portanto,
contam hoje com corpo docente mais numeroso e profissionais mais experientes, ou que possuem nota entre 5 e
7 de acordo com a avaliação da Capes. Ver http://www.capes.gov.br/avaliacao/resultados-da-avaliacao-de-programas.Visando fugir da centralização regional apontada mais a frente, selecionamos universidades cujos
programas de História foram criados após 2006, quando observamos uma ampliação significativa da estrutura
universitária, seja através da criação de programas de mestrado e doutorado, seja a partir da criação de novas
universidades fora dos grandes centros urbanos do país. Vale destacar que optamos por um levantamento que
incluísse todas as áreas disciplinares, apesar da nossa maior reflexão estar voltada para o campo da História em
especial.
10 Infelizmente durante o período de realização deste levantamento, o banco de teses da Capes esteve fora de
serviço devido a problemas na reformulação da base de dados, o que nos permitiria uma maior abrangência na
amostragem.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
UFRJ
FGV
PUC-Rio
PUC-SP
UNESP Assis
UNESP Franca
UNIRIO
Centro-Oeste UnB
UFG
PUC-GO
Nordeste UFBA
UFPE
UECE
UEFS
UFCG
UFRPE
UNEB
Norte Nenhum UFAM
UFPA11
Tabela 1: Universidades analisadas, divididas entre programas antigos e novos
O desenvolvimento da produção acadêmica ao longo dos anos
No Brasil, a Lei de Anistia de 1979, como observa Glenda Mezzaroba (2007), serviu
para neutralizar campos políticos opostos e garantir a coesão social com base no
esquecimento. Esta lei inaugura, coincidentemente, um período em que começam a surgir as
primeiras memórias de ex-prisioneiros políticos alvos de tortura e violência do aparato
repressivo. Em início da década de 1980 são elaborados os primeiros trabalhos acadêmicos
sobre o período militar cujos temas são pautados em alguma medida pelos relatos de ex-
militantes, principal fonte disponível naquele momento. O que a lei exigia era subvertido de
certa forma através dos trabalhos acadêmicos, contribuindo para a publicização dos ―horrores‖
dos governos militares. Juridicamente optou-se pela via do silenciamento, academicamente
elegeu-se a do ―justiçamento‖.
Passados 35 anos da Lei de Anistia, o Brasil experimentou um avanço no que se refere
às reparações materiais das vítimas ou seus familiares por parte do Estado, sem uma
contrapartida com relação à punição dos agentes públicos envolvidos. Prova disso é que em
2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou constitucional a Lei de Anistia de 1979
que garante o ―perdão‖ aos crimes contra a humanidade cometidos pelos torturadores12
. Nesse
11 A UFPA teve seu programa de pós-graduação em História criado em 2004, mas foi incluída neste
levantamento para fins de representatividade regional.
12 Com o intuito de que o STF anulasse o perdão concedido aos policiais e militares a serviço do Estado
acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entrou
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
jogo de forças, a via conciliatória tem se mostrado vitoriosa e os trabalhos acadêmicos
permanecem restritos ao meio universitário, sem travar um diálogo mais amplo com a
sociedade brasileira. A criação, em 2012, de uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) –
que não prevê como seu escopo de ação a punição dos crimes praticados contra os direitos
humanos – e pouco antes, a promulgação da Lei 12.527/2011 que garante o acesso às
informações públicas, animou aqueles mais comprometidos com a consolidação da
democracia e encorajou o desenvolvimento de políticas de não-repetição.
A nosso ver, a criação da CNV representou um avanço do ponto de vista da elucidação
do passado recente autoritário no Brasil. No entanto, não se pode confundir a ―verdade
histórica‖ propalada no texto da Comissão, que terá como resultado de seu trabalho a
construção de uma ―história oficial‖, realizada pelas mãos do Estado, com o trabalho
metodologicamente conduzido pelo historiador. Não se trata de hierarquizar os papeis de
historiadores e advogados – estes últimos maioria entre os comissionados da CNV – mas
antes chamar a atenção para esta diferença.
Desde o início da década de 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil foi uma das
instituições mais atuantes, do ponto de vista político e jurídico, através do questionamento da
constitucionalidade da Lei de Anistia13
, contestando a Lei de Arquivos, de 1991 e exigindo a
abertura dos documentos militares relativos ao julgamento de presos políticos. A forte atuação
da instituição ajuda a explicar a intensa presença desses profissionais tanto nos grupos de
trabalho da Comissão quanto na divulgação a respeito desses processos e da luta política da
instituição para o ―grande público‖.
Este conjunto de transformações em curso desde fins da década de 1970, mas
sobretudo nos anos 2000, colaboraram, sem dúvida, para o avanço das pesquisas acadêmicas
na área, como podemos observar no gráfico abaixo. As dissertações superam em muito o
número de teses defendidas no mesmo período, além de evidenciar um ―boom‖ dos estudos
sobre ditadura militar pós-anos 2000, como iremos discutir com mais calma pouco adiante.
com um pedido de revisão da Lei de Anistia (Lei nº 6683/79). Em abril de 2010, a maioria dos ministros do STF
votou contra a revisão da lei. Foram 7 votos contra e apenas 2 a favor. A continuidade da lei é justificada pelos
ministros com base em uma alegação covarde: não caberia ao Poder Judiciário a revisão de tal acordo político
feita pela sociedade civil naquele momento. Os únicos ministros que usaram argumentos dos direitos humanos
foram Ricardo Lewandowski e Ayres Britto, ambos nomeados pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva e os
únicos votos dissonante em meio a Judiciário conservador.
13 Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153. Lei da Anistia (Lei Federal nº
6.683/1979).
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
Gráfico 1: Divisão da produção de D&T por décadas para todas as áreas. Março 2014.
De acordo com levantamento realizado pelo Grupo de Estudos sobre a Ditadura
Militar da UFRJ, entre os anos de 1971 e 2000 foram produzidas 214 D&T sobre a história da
ditadura militar, sendo que destas, nove foram desenvolvidas no exterior. Em artigo, o
professor Carlos Fico (2004), coordenador do referido grupo de estudos, apresenta os dados
que organizamos na tabela abaixo:
Período Número de defesas
1971-75 2
1986-90 47
1996-2000 74
Retirada de FICO, Carlos. ―Versões e Controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar― in Rev. Bras. Hist. vol.24
no.47 São Paulo, 2004.
O levantamento, no entanto, não nos informa sobre as áreas que concentraram o maior
número de estudos, mas corrobora com os nossos dados que demonstram uma curva quase
sempre ascendente nos estudos sobre o tema.
O gráfico 2 detalha a produção acadêmica ano a ano. Nele, o ano de 2007 aparece
como o de maior produtividade na década de 2000, sendo superado entre 2009 e 2012. Apesar
do leve declínio notado no ano de 2013 no levantamento realizado para todas as áreas, no
campo de produção historiográfica, verificamos um aumento contínuo e crescente das D&T.
Alguns fatores podem ter contribuído para esse fenômeno. Em 2004, os 40 anos do Golpe de
1964 aquece o mercado editorial com a publicação de pesquisas acadêmicas, relatos de
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
memória, matérias jornalísticas que dão maior visibilidade ao tema, fomentando novas
versões e caminhos de investigação.
A alta quantidade de trabalhos produzidos após 2010 pode ser resultado da Lei de
Acesso à Informação, que garante a consulta documental irrestrita aos pesquisadores, ao lado
da criação do projeto Memórias Reveladas, com sede no Arquivo Nacional. Este projeto,
criado em 2009, hoje conta com 55 instituições e entidades parceiras e vem fazendo, após
2012, um trabalho extraordinário de digitalização da documentação produzida pelos DOPS
estaduais, Assessorias de Segurança e Informação (ASI), SNI, dentre outros.
Somado a isso, após 2007 os programas de pós-graduação experimentaram uma
ampliação de sua estrutura e corpo discente após o recebimento de verbas do Programa de
Apoio à Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo
Decreto presidencial nº 6069/07. Ainda está para ser dimensionado o impacto que o programa
do REUNI teve para o desenvolvimento científico brasileiro, mas sem dúvida ele é
responsável por parte deste aumento, que não é exclusivo dos estudos sobre ditadura militar.
Marcos Napolitano (2011), analisando a literatura acadêmica sobre o Golpe de 1964 e
o regime militar, aponta que a perspectiva histórica construída no meio acadêmico desde os
anos 1970 é derivada, essencialmente, do trabalho de sociólogos e cientistas políticos e não
fruto do ofício do historiador, como assinalamos pouco antes. Ou seja, a história desse
período é uma arena de disputas diversas e não exclusivas ao campo acadêmico, muito menos
da disciplina de História.
Gráfico 2
Gráfico 2: Produção de D&T para todas as áreas. Março 2014.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
A reforma universitária de 1968, instituída através da Lei n° 5.540/68, além de
introduzir uma série de mudanças na organização estrutural dos cursos, teve como objetivo
central a geração de mão de obra técnica capaz de suprir as demandas do mercado de trabalho.
Visando conter a movimentação estudantil, esta reforma defendeu o fortalecimento do
princípio de autoridade e disciplina nas universidades, bem como privilegiou os aspectos
técnicos e administrativos, em detrimento do senso crítico. Esta reorientação vivida pelas
instituições de ensino superior deixará marcas na produção acadêmica. Além da reforma de
1968, a instituição do decreto 477, de 26 de fevereiro de 1969, também conhecido como o AI
das universidades, dá início a uma onda de demissões e aposentadorias compulsórias,
afastando o corpo docente considerado subversivo da prática do magistério e da pesquisa
acadêmica. Os estudantes, por sua parte, são expulsos e ficam proibidos de cursarem qualquer
outra universidade pelo espaço de três anos. O rearranjo de forças no meio universitário terá
impactos significativos para a produção histórica como um todo e afastará de cena o interesse
pela história do tempo presente, fazendo com que muitos professores optem por temas mais
afastados no tempo e, portanto, menos polêmicos. Dez anos de extremo controle no meio
universitário se fará sentir, mesmo após a abertura política. Serão nesse sentido os sociólogos
e cientistas políticos os primeiros do meio universitário a eleger a ditadura militar brasileira
como tema de investigação científica, enquanto os historiadores continuarão a desenvolver
pesquisas num tempo histórico mais pretérito.
Posto isto, a questão que se apresenta diz respeito às causas para este crescimento
acelerado pós anos 2000, e a maior concentração na área da História, como mostra o gráfico
abaixo:
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
Observamos no gráfico 4 um crescimento significativo das dissertações, em
comparação com as teses, e uma concentração maior após o ano de 2005, no caso específico
das pesquisas em História. A partir desta data, os estudos sobre ditadura militar ganham novo
alento e passam a hegemonizar a produção acadêmica como um todo, conforme demonstra o
gráfico 5.
Gráfico 3
Gráfico 4: Produção de D&T de História
(1982-2013). Março 2014.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
Apesar da disciplina de História ser responsável pelo maior número de D&T
defendidas, como demonstrou o gráfico 3, esta realidade é bastante recente. De acordo com
nosso levantamento, identificamos apenas 9 D&T em História defendidas entre 1984 e 2000,
contra 18 em Sociologia e 3 em Ciência Política no mesmo período. É a partir do ano 2000
que ocorre um verdadeiro boom na produção acadêmica como um todo, e quando a disciplina
de História destaca-se significativamente: 183 D&T de um total de 370 entre todas as áreas.
De 2001 a 2010 foram defendidas 110 D&T de História, em um universo de 227 D&T
levantadas entre todas as áreas disciplinares. A década de 2010 apresenta um aumento ainda
mais considerável: 67 D&T no espaço de apenas três anos. A produção em Ciência Política e
Sociologia não acompanhou o aumento experimentado pelo campo da História, chegando a
produzir apenas 28 e 33 trabalhos, respectivamente, após o ano 2000.
Apesar do aumento da produtividade acadêmica sobre os estudos de ditadura militar
no Brasil, a repercussão que o tema adquire nos debates mais amplos da sociedade civil –
pautados em grande medida pela grande imprensa – ainda permanece muito tímida. Grande
parte da produção acadêmica, bem como os cursos e eventos sobre a ditadura militar, não
alcançam o chamado ―grande público‖, isto é, pessoas que não são estudantes, pesquisadores
ou professores ligados às universidades e outros centros de pesquisa. De maneira geral, o
conhecimento produzido pela prática da pesquisa e sua consequente divulgação (defesas de
teses e dissertações, eventos, cursos, revistas científicas, etc.) parece circular entre os
membros da mesma comunidade acadêmica, perpetrando a divisão entre a vida acadêmica e a
Gráfico 5: Produção de D&T de História, Ciência Política e Ciências Sociais
5: Comparativo do número de D&T/ano das áreas mais produtivas (1982-2013). Março 2014.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
vida extramuros universitários14
. Isso implica, muitas vezes, em não ocupar o espaço público
enquanto autoridade legítima para discutir e levantar questões, tal qual o fazem os jornalistas
e advogados por exemplo.
Mais recentemente estamos assistindo a transformação desta realidade, provavelmente
como resultado da quantidade de historiadores que têm se dedicado ao tema e têm sido
chamados a emitir suas opiniões sobre diferentes temáticas relativas a este período. Este é o
caso, por exemplo, das diversas matérias jornalísticas assinadas por historiadores como Carlos
Fico e Daniel Aarão Reis Filho, sobretudo este ano por ocasião dos 50 anos do Golpe de 1964.
No entanto, suas análises aparecem em meio a uma miríade de outras opiniões de personagens
conhecidos do grande público que viveram este momento histórico. Ou seja, na grande mídia
as análises dos historiadores assumem o mesmo estatuto de autoridade que as opiniões
individuais. Memória e História não aparecem apenas intimamente imbricadas, mas são
apresentadas praticamente como se fossem a mesma coisa.
Entendemos que a produção acadêmica — mesmo quando realizada sob as regras
metodológicas exigidas pelo campo científico — por se tratar de um discurso fabricado a
partir de determinado ponto de observação, carrega também sentidos políticos que se
delineiam na própria construção do conhecimento. Com acadêmicos distantes do ―grande
público‖, o hiato entre o ―conhecimento acadêmico‖ e as informações que circulam nos meios
de comunicação aumenta. Isso se dá à medida que os meios de comunicação aos quais o
público geral tem amplo acesso, como os grandes jornais impressos, portais e redes sociais de
Internet, programas de TV ou filmes do grande circuito, veiculam informações que não se
comunicam necessariamente com a produção universitária. Ou seja, a lacuna informacional
que parece ter sido deixada pelos historiadores é geralmente preenchida pelo trabalho de
jornalistas, realizadores culturais (curadores de exposições, diretores de filmes, teatro,
programas de TV, etc.) e outros profissionais que, respondendo ao ―desejo de memória‖15
da
sociedade brasileira, produzem conhecimento sobre ―ditadura militar‖ para o ―grande
público‖16
.
14 Ponderamos se essa divisão não seria motivada pela dificuldade dos acadêmicos em estabelecer canais de comunicação mais fluidos e de produzir em linguagem mais acessível (sejam textos, vídeos ou outros suportes).
Se não nos cabe aqui esgotar as motivações para essa distância, podemos ao menos constatá-la e debater seus
efeitos.
15 GONDAR, Jô. "Lembrar e esquecer: desejo de memória". In: COSTA, Icléia Thiesen Magalhães e GONDAR,
Jô (org.). Memória e Espaço. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2000.
16 Como exemplo de resposta ao ―desejo de memória‖, podemos citar a novela ―Amor e revolução‖, exibida
pelo canal aberto SBT entre abril de 2011 e janeiro de 2012. Apontada como a primeira novela a se passar
inteiramente na ditadura e tendo o regime autoritário em posição de destaque na trama, a história narra o ―amor
impossível‖ entre um filho de militar e uma líder do movimento estudantil. Outra inovação foi a exibição de
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
Por muitas vezes isolados intramuros, os historiadores acadêmicos perdem importantes
oportunidades de ―falar ao público‖ e fazer de seu ofício também um campo de atuação
política, no sentido de participação enquanto cidadãos, conforme recomendava Bédarida
(2003). Observando os temas dos trabalhos apresentados nas últimas edições dos simpósios
nacionais de História organizados pela Associação Nacional de História (ANPUH),
percebemos o aumento do interesse pelo tema ―ditadura militar‖, em conformidade com os
dados que levantamos. No entanto, percebemos um contraste entre o aumento do interesse
pela ditadura militar como tema de pesquisa e a atuação dos historiadores brasileiros,
enquanto classe profissional, frente à referida ―guerra pela memória‖. Diferentemente dos
debates acadêmicos sobre ditadura, movimentando disputados simpósios temáticos e
aquecendo o mercado editorial especializado, houve pouca mobilização da entidade junto aos
seus filiados no tocante ao debate público do ―direito à verdade‖, da memória e da justiça.
Ainda que os historiadores se interessem cada vez mais pelo tema ―ditadura militar‖, esse
interesse não se reflete em ações políticas concretas17
.
Os historiadores devem, nesse sentido, estar atentos aos riscos e consequências que o
relatório final da CNV pode gerar. Não há dúvidas da utilidade do legado documental da
CNV, que beneficiará o trabalho de pesquisa de um sem número de historiadores. No entanto,
ao estarem desarticulados do processo político de reconstituir o passado, não participam da
elaboração da ―verdade‖ que está sendo divulgada sem ter passado pelo escrutínio da crítica
histórica, antes de ser reproduzido nos bancos escolares e na grande imprensa.
depoimentos de pessoas vítimas de tortura e perseguição política, contribuindo para a percepção dos fatos
históricos representados na trama. Conforme noticiado no site da novela, a fim de ser melhor preparado para a
interpretação, o elenco participou de um ―workshop‖ com pessoas que foram presas durante a ditadura. Apesar
do empenho da emissora em preparar seu elenco, não há notícia sobre a presença de historiadores neste
―workshop‖ ou prestando qualquer outro tipo de consultoria. Disponível em
http://www.sbt.com.br/amorerevolucao/bastidores/?c=54, acessado em 18 de março de 2014. 17 Ao ler os informes mensais da ANPUH dos primeiros anos desta década, enviados eletronicamente aos seus
associados, observamos que a votação da regulamentação da profissão do historiador é o tema com maior
destaque da ação da entidade, com poucas referências ao processo de criação do projeto Memórias Reveladas ou
da Comissão Nacional da Verdade. Entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012, a ANPUH reivindica a
participação na CNV através de membros representantes. No informe de junho de 2012, ―saúda com entusiasmo
essa empreitada, embora lamente a ausência, em seus quadros, de historiadores profissionais, que poderiam, em
função de sua capacitação, auxiliar sobremaneira na consecução dos objetivos da Comissão‖. A diminuta
presença de historiadores na CNV é um reflexo da pouca influência dos mesmos no ―extramuros‖ das
instituições de ensino e pesquisa.
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Polos de produção do conhecimento sobre ditadura militar
A primeira constatação que fizemos a este respeito não é novidade: as universidades
com maior produtividade sobre a temática da ditadura militar estão concentradas no eixo Sul-
Sudeste. Este fenômeno encontra explicação no fato de que esta região reúne as universidades
mais antigas do país, a maioria delas criadas nos anos 1970 e 1980. Consequentemente, no
Sul-Sudeste localizam-se as instituições mais estruturadas, com amplo corpo docente, centros
de pesquisa com visibilidade internacional e maior tradição em suas áreas disciplinares. Estas
universidades, portanto, apresentam de maneira geral alta produtividade, não apenas nos
estudos sobre ditadura militar, daí o grande número de pesquisas também sobre o tema em
tela. No entanto, como já observamos, houve um aumento considerável de programas de pós-
graduação após o ano de 2006, sobretudo na área de História, obedecendo a um processo de
descentralização das universidades. Estes novos programas interferem sensivelmente na
produção acadêmica sobre o tema, participando do aumento das D&T após 2007, além de
estarem distribuídas, em sua maioria, fora do eixo Sul-Sudeste.
Considerando o caso específico da criação de programas de pós-graduação em
História, verificamos nos dois períodos uma forte concentração na região Sudeste. Após 2006,
assiste-se um aumento considerável dos programas do Nordeste, equiparando-se à região Sul.
No caso da região Norte, a situação é ainda mais recente: a UFPA tem seu mestrado em
História Social da Amazônia criado em 2004, e a UFAM em 2006.
Nos gráficos abaixo, observamos a concentração massiva de teses e dissertações na
região Sudeste, acompanhada pela presença significativa da região Sul. No caso das
dissertações, nota-se que as regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte apresentam certo
equilíbrio na quantidade de trabalhos produzidos entre si. Considerando que este gráfico foi
criado a partir da produção total de pesquisas defendidas, ao longo de todos os anos da
amostragem, e que os programas destas regiões são mais recentes, podemos concluir por um
aceleramento do ritmo de produção acadêmica de dissertações nestas regiões.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
No caso das teses, a produção da região Sudeste apresenta um predomínio ainda maior.
A região Nordeste indica produção na área bastante reduzida e a região Norte nem chega a ser
notada no gráfico. A baixa produtividade deve-se, principalmente, à inexistência de
programas de doutorado nestas universidades. Esta realidade termina por reforçar, por outro
lado, a concentração das universidades dos centros Sul-Sudeste, na medida em que, além de
exercerem forte poder de atração devido ao corpo docente ter maior visibilidade em nível
nacional, ainda se veem obrigados a saírem de suas universidades de origem se quiserem
continuar os estudos acadêmicos.
Uma radiografia mais precisa desse fenômeno pode ser obtida a partir da subdivisão
das D&T por universidades. A partir dos dados apresentados no gráfico a seguir, podemos ver
que, embora apresente a região Sul como a que concentra programas mais antigos ou bem
conceituados e que aparece como a segunda maior região de concentração de trabalhos
defendidos, tem sua produção concentrada majoritariamente na UFRGS. Na verdade, as
demais universidades da região Sul apresentam produção semelhante à região Nordeste e
Centro-Oeste.
A UFRGS, universidade com maior número de dissertações sobre ditadura militar em
todo o país, é responsável pela grande maioria dos trabalhos da região Sul e funciona,
consequentemente, como polo de atração, absorvendo a demanda de candidatos a doutorado
de outras localidades.
Das dez primeiras universidades no ranking de produtividade, todas se concentram na
região Sul-Sudeste, à exceção da UFPE, que aparece em oitavo lugar. As cinco universidades
Gráfico 7: Distribuição das teses por região do
país.
Gráfico 6: Distribuição das dissertações por região
do país.
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com maior produção encontram-se nos estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São
Paulo. As dissertações defendidas nas cinco primeiras universidades somam mais do que as
24 últimas universidades (114 dissertações das cinco primeiras contra 98).
Analisando a produção de D&T, chama nossa atenção o fato de a USP ser a única a
apresentar um maior número de teses em relação às dissertações defendidas. Isso demonstra o
argumento que vimos defendendo que as universidades mais antigas do eixo Sul-Sudeste
funcionam como polos de atração para estudantes de diversas regiões do Brasil, criando assim
verdadeiras escolas interpretativas, sobretudo no campo da História.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
Gráfico 8: Levantamento de D&T sobre ditadura militar, por
universidades. Março de 2014.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
As particularidades regionais e sua relação com os temas de investigação
Uma vez realizada a análise mais quantitativa da produção acadêmica sobre ditadura
militar, faremos alguns apontamentos com relação aos conteúdos das D&T. Para isso,
agrupamos os trabalhos acadêmicos em 29 temas, selecionados com base nas palavras-chaves
e nos temas identificados por Fico, em sua revisão historiográfica por ocasião dos 40 anos do
Golpe, conforme aparecerá em seguida. As tabelas abaixo mostram esta divisão. À esquerda
temos os temas mais pesquisados no conjunto das áreas disciplinares. À direita,
especificamente o levantamento feito com base na produção de História.
D&T/temas, todas as áreas
D&T/temas, área de História
1. Cultura 57 1. Cultura 26
2. Imprensa 41 2. Militares 19
3. Trabalhadores 32 3. Igrejas 14
4. Militares 26 4. Luta Armada 14
5. Igrejas 22 5. Trabalhadores 13
6. Abertura Política 21 6. Imprensa 12
7. Movimento
Estudantil 20
7. Esquerda 11
8. Economia 19
8. Movimento
Estudantil 10
9. Estrutura
Repressiva 18
9. Estrutura
Repressiva 10
10. Luta Armada 18 10. Abertura Política 10
11. Educação 17 11. Memória 8
12. Memória 17 12. Economia 7
13. Esquerda 16 13. Golpe de 1964 5
14. Exílio 8 14. Exílio 5
15. Censura 7 15. Educação 4
16. Golpe de 1964 7
16. Movimentos
Sociais 4
17. Política
Reparatória 7
17. Intelectuais 3
18. Desaparecidos 6 18. Censura 3
19. Intelectuais 6 19. Justiça Militar 3
20. Literatura 6
20. Política
Reparatória 2
21. Movimentos
Sociais 6
21. Relações
Internacionais 2
22. Justiça Civil 5 22. Justiça Civil 2
23. Justiça Militar 5 23. Anistia 1
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
24. Relações
Internacionais 5
24. Desaparecidos 1
25. Política Partidária 4 25. Literatura 0
26. Anistia 3 26. Política Partidária 0
27. Arquivos 3 27. Arquivos 0
28. Justiça de
Transição 3
28. Justiça de
Transição 0
29. Gênero 2 29. Gênero 0
30. História Regional 2 30. História Regional 2
O levantamento elaborado pelo professor Carlos Fico, demonstra, em termos gerais,
um maior interesse pelos temas relacionados à cultura (música, teatro, literatura etc). Entre os
cinco temas mais pesquisados, aparecem ainda a imprensa (os discursos veiculados sobretudo
nos jornais), Trabalhadores (com destaque para os trabalhos que tratam do Novo Sindicalismo
dos anos 1980), Militares (desde a clássica abordagem dos governos militares até análises da
ideologia da ESG e do sistema repressivo), Igrejas (de um lado, as experiências das
Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação, de outro, reflexões sobre os
setores conservadores católicos e suas expressões).
Napolitano sugere quatro grandes temáticas que comportam todas as demais
subdivisões, são elas: o golpe, a guerrilha, a repressão e a transição. A temática do Golpe de
1964, tanto no levantamento realizado há 10 anos por Fico, como na coleta que efetuamos,
não foi até o momento muito investigada. Apenas mais recentemente este assunto vem
gerando maior interesse da parte dos pós-graduandos, que resolvem se dedicar à investigação
do complexo IPES/IBAD pretendendo em geral uma continuação do trabalho de René
Dreifuss (1981), ou buscando entender as razões para a deposição do presidente civil João
Goulart, contribuindo para renovadas interpretações sobre o último presidente civil antes do
regime militar.
Em torno do tema da guerrilha, podemos reunir três categorias da tabela acima: luta
armada, esquerdas e desaparecidos. Mais especificamente os trabalhos sobre luta armada
foram realizados por historiadores e configuram um ramo importante das pesquisas sobre o
período. Vale destacar que dentre as pesquisas desta categoria, é notável a quantidade de
investigações feitas sobre a Ação Libertadora Nacional (ALN), a organização guerrilheira de
Carlos Marighella.
Os trabalhos elaborados que versam sobre a repressão têm buscado compreender o
funcionamento do aparato repressivo, do sistema nacional de informações e as polícias
políticas estaduais. São comuns as D&T que abordam a questão da tortura e enfocam o
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cotidiano prisional. Há ainda outra parcela de investigações que tratam dos DOPS, as polícias
estaduais que atuavam em parceria com a estrutura de segurança dos militares.
As pesquisas que elegeram a fase de transição como seu objeto de análise estão
preocupadas em entender o período da anistia, o processo histórico da constituinte e, de
maneira nem sempre direta, discutir a questão da democracia enquanto sistema político a ser
defendido.
A partir da leitura dos resumos das D&T da área de História, verificamos o
predomínio, nos programas de pós-graduação de maior envergadura, de pesquisas cujos temas
tratam, em sua maioria, de questões com abrangência nacional, enquanto nos centros de
pesquisa das universidades de menor monta, observamos uma ênfase em estudos que
privilegiam a História Regional. Polos como UFRJ, UFRGS, UFF, USP, Unicamp, entre
outros, aprovam projetos de pesquisa sobre temas de alcance nacional, sem trazerem a marca
de suas regiões de origem. Já os programas criados mais recentemente, principalmente
aqueles situados fora do eixo Sul-Sudeste, investem, acima de tudo, em pesquisas que ajudem
na compreensão de suas realidades locais.
Segundo aponta o relatório trienal da Capes de 2010, 59, 4% dos programas de pós-
graduação implantados em diversas regiões do Brasil nas últimas duas décadas (1990 e 2000)
nascem com propostas específicas regionalizadas, ―atendendo às necessidades de
conhecimento histórico específico em cada espaço geográfico, em cada temporalidade, e em
cada formação social‖ (CAPES, 2010). Aponta ainda uma tendência monográfica para estas
pesquisas regionais.
Esta tendência traz algumas consequências. Os polos de pesquisa na área de História
das universidades mais produtivas do país caracterizam-se como centros irradiadores de
interpretações historiográficas para todo o Brasil. Ou seja, inseridas em um sistema
meritocrático, ao integrarem instituições de maior estrutura e receberem mais verbas das
instituições de fomento à pesquisa, delas consequentemente emanam as principais correntes
historiográficas que serão ensinadas nos cursos de graduação dos menores centros, onde seu
corpo docente apresenta menor ossatura.
Além disso, a máxima ―antiguidade é posto‖ parece ser válida para a compreensão da
lógica que impera no campo acadêmico de maneira geral, isto é, os programas de pós-
graduação mais antigos, situados nas maiores universidades brasileiras, pautam a maioria das
discussões travadas pelos historiadores e cientistas sociais em âmbito nacional. Pela própria
prática da pesquisa em História, assim como em outras ciências humanas, a necessidade de
filiação teórica corrobora para a legitimação de certos pesquisadores como referências para
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
todos os outros centros. Ou seja, a participação nos debates historiográficos daqueles que se
situam nas instituições mais recentes está condicionada ao diálogo com esta literatura, seja
para comprovar suas teses, seja para refutá-las. Dessa maneira, os ―grandes‖ nomes do meio
universitário exercem uma atração significativa, estimulando o desejo dos estudantes se
tornarem seus orientandos e com isso migrarem para os grandes centros de investigação.
Com base na análise dos resumos das D&T em História, notamos que os trabalhos
sobre ditadura dos programas de pós-graduação criados após 2000, ao privilegiarem o estudo
de acontecimentos locais, fortalecem os núcleos de História Regional. O estímulo à História
Regional pode ser um caminho para a produção de análises mais originais ou mais
aprofundadas das especificidades locais.
O fenômeno de atração exercido pelos grandes centros universitários muitas vezes
limita o desenvolvimento do conhecimento regional. É comum nos depararmos com análises
que se contentam em verificar determinada tese, formulada a partir da realidade dos centros
de pesquisa de maior renome. Nesse sentido, a História Regional pode iluminar aquilo que
renomados estudiosos do tema não tem se preocupado ou não puderam constatar devido às
especificidades locais. Apesar de se tratarem de programas muito recentes, a maioria data dos
anos 2000, como vimos anteriormente, constatamos a predominância de estudos de história
local sobre ditadura militar.
Programas de Pós-Graduação em
História (PPGH) Ano de fundação
D T
História Econômica USP 1971 1971
História Social da Cultura PUC-Rio 1971 1971
História Social das Relações Políticas
UFES 1971 1985
História Social UFRJ 1976 1984
História Social Unicamp 1976 1994
História Social USP 1980 1989
História UERJ 1982 1992
História UFAM 1986 1995
História UFBA 1987 1998
História UFC 1990 2002
História UFF 1990 2000
História UFJF 2000 -
História UFMG 2003 -
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
História UFPA 2004 -
História UFRGS 2004 -
História UnB 2006 -
História UNESP 2006 -
História UNIOESTE 2006 -
História, Política e Bens Culturais
CPDOC/FGV 2007 2007
História e Culturas UECE 2006 -
História UDESC 2007 -
História UEFS 2007 -
História UFRPE 2006 -
História UFRRJ 2008 -
História UNIRIO 2007 2012
História Regional e Local UNEB 2006 -
História do Brasil UNIVERSO 2006 -
História UFSJ 2008 -
Tabela 5: Datas de fundação dos PPGH pesquisados
Conforme havíamos apontado anteriormente, os anos 2000 oferecem novo alento à
produção sobre ditadura militar devido à abertura ou maior facilidade de acesso à
documentação disponível ao público. O acervo do DEOPS-SP e DOPS-RJ, por exemplo,
depositados respectivamente no APESP e no APERJ, foram disponibilizados ao público
apenas em 1994 por meio de decretos estaduais18
. Antes disso, apenas os familiares das
vítimas ou as próprias vítimas do regime podiam ter acesso ao seu conteúdo. Esta decisão,
obviamente, oferece a oportunidade de elucidação de diversos assuntos até então obscuros
sobre o período. Além disso, o Rio de Janeiro, e em menor medida Brasília, atraíram e
continuam atraindo muitos pesquisadores de todo o Brasil, não apenas por concentrar alguns
18 De acordo com a Resolução nº.38, de 27 de dezembro de 1994, da Secretaria de Estado da Cultura de São
Paulo, o Fundo DEOPS-SP foi aberto ao público mediante a assinatura de termo de responsabilidade individual sobre o uso e veiculação da informação á coletada. Para maiores informações, consultar:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/permanente/deops_pesquisa.php. Recentemente, em 1° de abril de 2013, o
APESP foi o primeiro arquivo público brasileiro a disponibilizar cerca de 1 milhão de imagens para consulta via
internet. Ver BORIN, Monique e SOARES, Sheila A. R. ―Abrindo os arquivos do Deops/SP: a experiência da
livre disponibilização na internet dos acervos da repressão‖ in Arquivos da Repressão e da Ditadura. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional – Centro de Referência Memórias Reveladas, 2013, pp. 32-39. Processo semelhante
experimentou o APERJ no tocante ao acesso aos documentos públicos do Fundo Polícia Política através do
Projeto de Lei n° 1819/94. Ver APERJ. Os Arquivos das Polícias Políticas: reflexos de nossa história
contemporânea. Rio de Janeiro, 1994.
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dos centros de maior produtividade, mas também por abrigar os arquivos do Serviço Nacional
de Informações (SNI), sob a guarda do Arquivo Nacional.
Considerações Finais
―Ciência sem consciência é somente ruína da alma‖. A frase pertence a Rabelais e foi
lembrada por Bèdarida para discutir o papel social dos historiadores. Para o autor francês,
como vimos, o historiador não pode esquivar-se de sua função social e moral como cidadão.
Nesse sentido, em se tratando de um tema tão sensível como a recente ditadura militar
brasileira, é compreensível que os primeiros acadêmicos, não apenas os historiadores, tenham
optado pelo estudo de temáticas relativas às vítimas dos agentes do Estado. Isso, em certa
medida, se explica pelo sentimento coletivo de injustiça social gerado pela Lei de Anistia de
1979 e pela frustração da Constituinte posteriormente, mas também baseados nos meios
disponíveis à época para a investigação de certos acontecimentos e grupos sociais.
No entanto, é preciso estar atento, como historiador do tempo presente, para os perigos
implicados em tais análises. Se de um lado a empatia que as vítimas das violências estatais
despertam na sociedade e no meio acadêmico impulsiona a produção nos meios universitários
sobre o tema, de outro, corre o risco de formular interpretações baseadas mais em afinidades
ideológicas e identificações sociais do que em pesquisa empírica, fundamentada em critérios
metodológicos específicos à área disciplinar.
A luta pela abertura dos documentos da ditadura militar, embora tenha mobilizado
alguns poucos historiadores questionadores da política de sigilo dos arquivos, só adquiriu
dimensão mais ampla quando foi assumida por outros setores da sociedade e passou a ter
repercussão na imprensa.
Nesse sentido, pretendemos neste artigo apontar o significativo aumento da produção
historiográfica sobre ditadura militar nos últimos 15 anos e a liderança da disciplina de
História nos estudos gerais sobre a temática. Inserida em uma série de transformações
conjunturais – que vão desde a transformação na política de acesso à informação até a
abertura de novos cursos de pós-graduação em universidades que encontram-se fora do eixo
Sul-Sudeste – a produção acadêmica sobre ditadura militar tem ganho novas feições mais
recentemente: percebemos uma descentralização da produção de D&T nas universidades mais
tradicionais do país – ainda que estas continuem sendo responsável pelo volume de pesquisas
na área – acompanhada de uma ênfase em pesquisas que caminham no sentido da História
Regional.
THIESEN, Icleia (org.) Documentos Sensíveis: informação, arquivo e verdade na ditadura de 1964. RJ: 7Letras, 2014.
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História Oral. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas. 1996.
BÈDARIDA, François. Histoire, critique et responsabilité. Paris. Editions Complexes/IHTP-
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BORIN, Monique e SOARES, Sheila A. R. ―Abrindo os arquivos do Deops/SP: a experiência
da livre disponibilização na internet dos acervos da repressão‖ in Arquivos da Repressão e da
Ditadura. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional – Centro de Referência Memórias Reveladas,
2013, pp. 32-39.
DREIFUSS, René. 1964: a conquista do Estado, ação política e golpe de classes. Rio de
Janeiro: Vozes, 1981
FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. ―A Universidade no Brasil: das origens à
Reforma Universitária de 1968‖ in Educar, Curitiba, n°. 28, 2006, pp. 17-36.
FERREIRA, Marieta de Moraes. ―História do tempo presente: desafios‖ in Cultura Vozes,
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