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A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A NOVA DEMOCRACIA
PROCESSUAL: ALGUMAS CRÍTICAS À ACTUAÇÃO DO JUDICIÁRIO
COMO SUPOSTO MEDIADOR DA GARANTIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
E DA EFECTIVAÇÃO DOS DIREITOS NO BRASIL
Ronaldo Marcio de Campos Celoto
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A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A NOVA DEMOCRACIA
PROCESSUAL: ALGUMAS CRÍTICAS À ACTUAÇÃO DO JUDICIÁRIO
COMO SUPOSTO MEDIADOR DA GARANTIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
E DA EFECTIVAÇÃO DOS DIREITOS NO BRASIL
____________________
Ronaldo Marcio de Campos Celoto
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RESUMO
A judicialização da política tem provocado inúmeras discussões entre os juristas e
cientistas políticos, no sentido de avaliar o seu impacto sobre a democracia. O
presente texto pretende avaliar o facto de que os magistrados, ao actuarem como
protagonistas com vistas à garantia de direitos fundamentais, em muitos dos casos
acabam por ferir o princípio da separação de poderes, como por exemplo, na
determinação judicial de distribuição de medicamentos objetivando a garantia do
direito á saúde, importando em valores econômicos que extrapolam os orçamentos,
tendo como único responsável o próprio Estado, em caso de descumprimento destas
funções ou de malversação dos recursos orçamentários. Em sentido inverso,
demonstra também alguns outros diferentes resultados da judicialização da política,
mormente quando se trata de questões de ordem majoritária, que envolvam, por
exemplo, a verificação de inconstitucionalidade de leis, o cumprimento de normas
aparentemente omissas, os interesses colectivos que envolvam bem-estar geral de
toda uma comunidade (educação, combate ao terrorismo, combate à corrupção,
desenvolvimento social, entre outros), de modo a construir uma intervenção
consensual que permita que a democracia prevaleça. Com isto, o presente texto
oferece críticas ao excesso de judicialização de saúde, principalmente o ocorrido no
Brasil, e, como conclusão, sugere a adoção de uma judicialização preventiva, e, não
apenas autodeterminativa, pois, se no processo democrático busca-se uma análise
consensual em favor de uma maioria, o Poder Judiciário ao promover a microjustiça
em prol de interesses individuais de demandas judiciais, estaria contribuindo para o
enfraquecimento democrático e para a sobrecarga do Estado Social.
Palavras chave: Judicialização da política; direitos fundamentais; medicamentos;
democracia processual; democracia consensual; judicialização preventiva.
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ABSTRACT
The judicialization of politics has been causing numerous discussions between the
lawyers and political scientists, in order to assess its impact on democracy. This
study aims to assess the fact that the magistrates during the act as protagonists
aiming to guarantee fundamental rights, in many cases end up hurting the principle
of separation of powers, such as the judicial determination of drug distribution
aiming to guarantee the right to health, regardless on economic values that far exceed
the budgets, and, with its only responsibility the State itself, in case of breach of
these duties or embezzlement of budget funds. Conversely, it also shows some other
results of the judicialization of politics, especially when it comes to questions of a
majority, involving, for example, to review the unconstitutionality of laws,
compliments of the rules apparently silent, collective interests involving well general
welfare of the whole community (education, combating terrorism, fighting
corruption, social development, etc.) in order to build a consensus that will allow
intervention that democracy prevails for these specific cases. Finally, the present text
offers criticisms of judicialization of health, especially what happened in Brazil, and
in conclusion, suggests the adoption of a preventive legalization, and not just self-
determinative, because if the democratic process seeks a consensual analysis in favor
of a majority of the Judiciary to promote microjustice towards individual interests of
lawsuits, would contribute to democratic weakening and to Welfare State overload.
Keywords: Judicialization of politics; fundamental rights; consensual democracy;
processual democracy; drugs; preventive judicialization.
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ÍNDICE
I. O Fenômeno da Aproximação Jurisdicional para com a Cidadania – 6
II. A Judicialização da Política e a Evolução Histórica do Processo de Independência
do Poder Judiciário: Breves Considerações. – 9
III. Judicialização da Política e Activismo Judicial: Conceitos – 10
IV. A Judicialização da Política e os Três Poderes Federativos – 13
V. Judicialização da Política e Judicialização da Saúde – 15
V.1. A Judicialização da Saúde como Fonte de Efectividade de Políticas
Públicas: Uma Forma (Anti) Democrática? – 15
V.2. A Democracia Como Procedimento Judicial - E não mais um Fenômeno
Consensual – 17
V.3. O Município na Constituição Brasileira de 1988: Sobre as Águas do
Reconhecimento Como Ente Federativo de Facto ou de Uma Mera Jogada de
Xadrez na Pretensa Desresponsabilização e Economização da União Federal
para com seus Gastos Públicos – 19
V.3.1. Autonomia ou Anomalia Municipal? – 19
V.3.2. A Idéia Distorcida de Responsabilidade Solidária dos Entes
Federativos e Sua Consagração Jurisprudencial no Brasil – Sem Levar
em Conta Aspectos Econômicos e Preventivos na Judicialização da
Política – 22
V.3.3. O Tema da Reserva do Possível Alegado pelos Municípios – 24
V.3.4. O Tema do Mínimo Existencial do Direito à Saúde Alegado
pelos Juízes – 24
V.3.5. O Aspecto Econômico e de Responsabilização dos Entes
Garantidores da Saúde (Não Vislumbrado Pelo Poder Judiciário): A
Importância da Análise Preventiva das Cortes Judiciais diante de uma
Judicialização Anti-Democrática – 28
V. 3. 6. Os Custos Judiciais Onerosos e a Des-responsabilização do
Poder Judiciário Perante os Tribunais Fiscalizadores: Quem Paga as
Contas Pela Judicialização da Política? – 30
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VI. A Judicialização e a Necessidade de Revigoramento Federativo a Partir de Sua
Menor Célula: O Município – 36
VII. Judicialização e Activismo Judicial: Pequenos Exemplos da Intervenção do
Poder Judiciario – 37
VII. 1. Activismo Judicial na Índia – 38
VII. 2. Activismo Judicial na União Europeia: Pequenas Histórias – 39
VIII. Judicialização no Brasil Sob a Óptica Processual Intervencionista – 41
IX. A Judicialização da Política sob a Óptica Contra-Majoritária: O Supremo
Tribunal Federal e as Decisões nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade – 44
X. A Judicialização da Política diante do Panorama Democrático: Apontamentos
Complementares – 47
XI. Conclusão – 49
Referências Bibliográficas – 51
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A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A NOVA DEMOCRACIA
PROCESSUAL: ALGUMAS CRÍTICAS À ACTUAÇÃO DO JUDICIÁRIO
COMO SUPOSTO MEDIADOR DA GARANTIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS
E DA EFECTIVAÇÃO DOS DIREITOS NO BRASIL
I. O Fenômeno da Aproximação Jurisdicional para com a Cidadania
O fenômeno da aproximação do sistema jurisdicional para com a cidadania
tem ganhado corpo nos debates acerca dos limites da atividade do poder judiciário no
que tange à consagração dos direitos fundamentais previstos nas Constituições e o
seu impacto sobre a democracia.
Argumenta-se que esta aproximação põe em causa “não só a sua
funcionalidade, como também a sua credibilidade, ao atribuir-lhe desígnios que
violam as regras da separação dos poderes dos órgãos de soberania1”; e, com isto,
implicando em uma espécie de abandono à democracia, que também “ultrapassa a
discricionariedade de definir o nível de eficácia de norma constitucional, em sede de
direitos fundamentais ou não2”, e, que, ao promover a efectivação das políticas
públicas em favor de alguns, não promove o alcance universal, ao contrário, “viola
ao princípio da igualdade, não se podendo admitir então que o judiciário distribua
1 SANTOS, Boaventura de Sousa in A Judicialização da Política. http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/078.php, cit:
“A judicialização da política conduz à politização da justiça. (...) Esta consiste num tipo de questionamento da
justiça que põe em causa, não só a sua funcionalidade, como também a sua credibilidade, ao atribuir-lhe desígnios
que violam as regras da separação dos poderes dos órgãos de soberania. A politização da justiça coloca o sistema
judicial numa situação de stress institucional que, dependendo da forma como o gerir, tanto pode revelar
dramaticamente a sua fraqueza como a sua força.”. 2 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial – Parâmetros Dogmáticos, p. 265/266.
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casuisticamente bens públicos em favor de quem tem cultura e agilidade para
requerer aos órgãos judiciários, sob a pena de contribuir para a perdição dos direitos
humanos3”.
No campo das ciências sociais, a busca pela avaliação do impacto
dimensional da prática judicial dentro do processo democrático também tem
chamado atenção de outros pensadores ilustres, entre os quais, SHAPIRO & STONE
(1994), TATE & VALLINDER (1995), HABERMAS (1996), entre outros.
Em meio à crescente abordagem sobre o tema, este fenômeno passou a ser
abordado conceitualmente como “judicialização da política4”, e, tem-se centrado
como objetivo aos pesquisadores no sentido de avaliar o papel político dos juízes no
exercício da magistratura e, como dito, o impacto deste exercício no organograma
democrático dos países.
Surgem então questões centrais para se avaliar o impacto desta
fenomenologia. Em primeiro lugar, seria a judicialização da política um fenômeno
contrário à democracia? E, com base neste questionamento, estaria a democracia, em
decorrência das constantes interferências dos magistrados no campo político e
legislativo, tornando-se mais processual – em favorecimento de uma microjustiça, do
que consensual (macrojustiça)? Por último, tendo como vista a triparidade dos entes
federativos existentes no Brasil, e, sendo o Município o ente mais próximo e,
certamente, o menos favorecido economicamente, não estaria o Poder Judiciário
omitindo-se não apenas na verificação dos aspectos e percentuais de
corresponsabilização econômica da União e dos Estados, mas também, para com os
aspectos preventivos, posto que, ao não contribuir para uma solução de problemas
que envolva um pacto federativo entre União, Estados e Municípios e os próprios
juízes (no que tange ao não estabelecimento, na maioria das sentenças, do
supracitado percentual de coresponsabilização financeira para cada um destes três
entes, bem como a sua não representatividade – enquanto um dos três poderes
máximos, por exemplo, perante um estudo que permita a criação de fundos tripartite
de reserva para atendimento destas demandas e avaliações do impacto econômico
destas demandas), acabam por forçar o empreguiçamento do Estado Social?
3TORRES, Ricardo Lobo. A Judicialização da Política, p. 117 4 VALLINDER, T. “The judicialization of polítics - a world-wide phenomenon: Introciuction.” International
Political Science Review, 1994, 15, 2,: 91-9.
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Sem adentrar pordemais nos antecedentes históricos (e sim por meio de um
breve comento), procura-se cá responder a estes questionamentos. Para tanto,
primeiramente, reconhece-se os aspectos inicialmente positivos da evolução secular
do exercício de uma jurisdição estatal que veio consagrar a independência do poder
judiciário, e que, como tal, reforça a conquista da ciência jurídica e um “conceito de
luta5” contra o império dos parâmetros dogmáticos e normativos.
Em seguida, construiremos uma abordagem analítica sobre os últimos anos de
judicialização da política no Brasil – em especial para com a judicialização da saúde
e distribuição de medicamentos, buscando então emitir uma opinião apoiada não
apenas nos parâmetros constitucionais das ações jurídicas de controle de
constitucionalidade, mas sim, avaliando a actuação das Cortes Superiores no
contexto das decisões das políticas públicas sociais e as consequências desta
actuação em relação aos Municípios.
Para não ater-se apenas à judicialização da política, o direito à saúde e à
actuação das Cortes (embora formem o escopo central), tentar-se-á expor alguns
pequenos exemplos de outras formas com que a judicialização da política se
manifestou e tem se manifestado em alguns momentos, de modo a garantir questões
atinentes à educação, ao combate ao terrorismo e à corrupção, ao direito sindical,
entre outras, as quais serão vistas como manifestações positivas deste fenômeno, pois
envolvem procedimentos de macrojustiça, e, favorecem o consenso de uma maioria
beneficiada, e, não de uma minoria.
E, também, serão mencionadas algumas formas com que a judicialização da
política torna-se perigosa e coloca em risco o princípio da separação de poderes e a
sobrevivência de uma democracia consensual, pois começa a tornar-se mais
processual, distante da realidade opressiva da mídia e da sociedade, que, muitas
vezes, condicionam o judiciário a atuar de forma surreal em alguns processos, como
por exemplo, envolvendo o segredo de justiça.
Inicia-se então, esta humilde observação pela qual, e, espera-se, possa
acalantar os actuais debates e observações críticas sobre o tema.
5 CANOTILHO, J. J. Gomes. Dieito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra, Almedina, 2007, p. 659-
670
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II. A Judicialização da Política e a Evolução Histórica do Processo de
Independência do Poder Judiciário: Breves Considerações.
Tem-se que as origens dos actos que posteriormente promoveriam a
independência do Poder Judiciário teriam ocorrido “por volta de 1178, quando o rei
Henrique II instituiu a Court of Common Pleas” (SAMPAIO, 2007: 5), uma espécie
de grupo de conselheiros que reuníam-se para deliberar acerca das grandes
controvérsiais judiciais decorrentes no reino, prática esta consolidada nas dinastias
seguintes: Tudors e Stuarts.
Posteriormente, durante o reinado da rainha Elizabeth II, Edward Coke
discutiu o poder do rei em promover alterações do que era conhecido como
“Common Law”, entendendo que “a questão judiciária era de competência dos
magistrados, jamais do rei”. (Ibidem, p. 6)
Nos Estados Unidos da América, a declaração da independência de 1776 já
promovia o Poder Judiciário ao status de um Poder autônomo, desvinculado
totalmente dos demais poderes. Nesse sentido, como bem salientou DIPPEL (2006,
64), “foi com a declaração de Direitos da Virgínia em 1776 que se estabeleceu um
completo catálogo de princípios essenciais do constitucionalismo moderno, dentre os
quais os primados da imparcialidade e independência dos juízes”.
Na Europa, isto veio a ocorrer no período francês revolucionário, com a
“Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, e, posteriormente, com a
“Constituição da Segunda República, em 1848” (DIPPEL, 2006:65)
Em Portugal, já no período do estabelecimento da Corte Portuguesa em terras
brasileiras, o chamado “Tribunal de Relação do Rio de Janeiro” foi convertido por
Dom João VI em “Casa de Suplicação do Brasil”, e, por fim, com a proclamação
constitucional de 1822, é que se pode declarar que “o poder judiciário pertence
exclusivamente aos juízes e nem as Cortes nem o Rei poderão exercitar caso algum”
(GUERRA, 2010: 60).
O Brasil, particularmente, ocupa um histórico processo de independência do
judiciário que pode até mesmo remontar-se aos “meados de 1530”, quando “Martim
Afonso de Souza actuou na formação de vilas, nomeando juízes ordinários do povo
para julgar seus interesses” (MATHIAS DE SOUZA, 2007:8).
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Posteriormente foi criado o “Tribunal de Relações da Bahia” (DEMO,
2000:127), muito embora, como já mencionado, foi com a Casa de Suplicação, em
1808, que foi possível falar claramente em independência judicial no Brasil, sucedida
pela Proclamação da República em 1889, e, a criação do Supremo Tribunal Federal6.
Atualmente existem no Brasil, além do Supremo Tribunal Federal, o
Conselho Nacional de Justiça, os Tribunais Administrativos Superiores (Tributários,
Cíveis, Trabalhistas e Criminais) e o Conselho da Magistratura, que funcionam como
órgãos inter-relacionados e complementares na atuação do Judiciário.
Na Europa, há menções acadêmicas de autores brasileiros ao “surgimento dos
Conselhos de Justiça em Itália e França, nos séculos XVII e XIX”, que são
considerados como ‘paradigmas’ para os demais7. Referidos Conselhos foram
instaurados “como resposta à necessidade de se criar uma agenda eficaz à estrutura
do Judiciário que cresciam demasiadamente face às novas ondas de renovação do
acesso á justiça” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).
São estes, pois, alguns breves apontamentos que quisemos enunciar para
demonstrar um pouco da evolução histórica do processo de independência do Poder
Judiciário com relação aos demais poderes, sem nos alongarmos em pesquisa mais
minuciosa, devido ao facto de não ser esta a temática pretendida.
III. Judicialização da Política e Activismo Judicial: Conceitos
Tate & Vallinder (1995) foram os que, dentro do campo a teoria política, a
apresentar um conceito que acabou por ser firmado no consenso científico do que
pode ser entendido como judicialização da política.
Segundo os autores este conceito abrange dois pilares: O processo pelo qual
os tribunais e juízes vêm se empenham em dominar a implementação de políticas
públicas que teriam de ser feitas (ou, acredita-se, deviam ser feitas) por outros órgãos
governamentais; e do processo pelo qual as negociações não-judiciais passam a ser
dominados regras e procedimentos quase-judiciais.8
6 Decreto nº 1, de 26/02/1891. 7 SAMPAIO, José Adércio. O Conselho Nacional de Justiça e a Independência do Judiciário. Belo Horizonte.
Del Rey, 2007, p. 177-179 8 TATE, C. Neal; VALLINDER, Törbjorn (ed.). The global expansion of the judicial power. New York, NY:
New York University Press, 1995, trad. livre do autor: “The process by which courts and judges come to make or
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Isto significa que a judicialização apresenta-se como “um novo ativismo
judicial, isto é, uma nova disposição de tribunais judiciais no sentido de expandir o
escopo das questões sobre as quais eles devem formar juízos
jurisprudenciais” (CASTRO, 2009), questões estas que até então estavam atinentes
aos poderes Executivo e Legislativo.
Ou seja, o judiciário passou então a formular políticas públicas e a utilizar-se
de meios procedimentais para actuar nas demais esferas dos direitos fundamentais.
Seria uma espécie de “processo de transição entre o Poder Judiciário e os
poderes estatais”, derivado, segundo a linha de pensamento de TATE &
VALLINDER (1995), de alguns factores condicionais, sendo eles: (a) Expansão
democrática; (b) Separação de poderes; (c) Política em prol de direitos; (d) Uso dos
tribunais por grupos de interesses; (e) Uso dos tribunais por oposições políticas; (f)
Instituições políticas ineficazes para definição da vontade da maioria (majoritarian
institutions); (g) Percepção negativa das instituições de produção de políticas
públicas; e (h) Delegação de responsabilidade por parte da instituição para definição
da vontade da maioria (majoritarian institutions). (VERONESE, Alexandre. A
Judicialização da Política na América Latina. 6º Encontro da Associação Brasileira
de Ciência Política – ABCP. Universidade Estadual de Campinas, 2008, pp. 6-7)
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (2003) também oferece uma
contribuição mais sintética e que podemos entender mais acessível para a tradução
do conceito, no sentido de que “há judicialização da política sempre que os tribunais,
no desempenho normal das suas funções, afectam de modo significativo às condições
da acção política”.
ALEX STONE SWEET (2000) procura situar os tribunais perante o
fenômeno da judicialização como num estado de “resolução de conflitos legislativos
sobre constitucionalidade, mantendo e reforçando, ao mesmo tempo, a legitimidade
política da revisão constitucional para o futuro”. Para ele, a judicialização consiste na
difusão das técnicas argumentativas constitucionais para outros poderes, sendo “o
processo pelo qual os legisladores absorvem as normas de conduta da adjudicação
constitucional, a gramática e o vocabulário do Direito Constitucional (...). Em uma
increasingly dominate the making of public policies that had previously been made (or, it is widely believed,
ought to be made) by other governmental agencies; and the process by which non-judicial negotiating, and
decision-making forums come to be dominated by quasi-judicial (legalistic) rules and procedures”.
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política judicializada, o discurso legal é responsável pela mediação entre o debate
partidário e as estruturas de exercício do poder legislativo” (SWEET, 2000: 203).
RAN HIRSCHL, em apontamentos mais recentes, define o termo como
‘juristocracia’, numa espécie de transferência de poderes decisórios das instituições
representativas para o Judiciário (HIRSCHL, 2004). Criticamente, o autor ainda
afirma que “o poder judicial não cai do céu; ele é politicamente construído. (...) A
constitucionalização dos direitos e o fortalecimento do controle de
constitucionalidade das leis resultam de um pacto estratégico liderado por elites
políticas hegemônicas continuamente ameaçadas, que buscam isolar suas
preferências políticas contra mudanças em razão da política democrática, em
associação com elites econômicas e jurídicas que possuem interesses compatíveis”.
Com relação ao activismo judicial, entendo-o como meio-irmão da
judicialização da política, traduzido pelo revisionamento, através da
discricionariedade judicial, de alguns parâmetros e questionamentos, mas não uma
transferência de poderes, que, a meu ver, caracteriza a judicialização.
ALESANDRE GARRIDO SILVA9 tem, a respeito do activismo judicial e a
judicialização da política, um conceito interessante, entendendo-os diferentemente,
sendo o activismo judicial “uma atitude, decisão ou comportamento dos magistrados
no sentido de revisar temas e questões – prima facie – de competência de outros
poderes”. Já a judicialização da política, segundo o autor, “é mais ampla e estrutural,
cuida de metacondições jurídicas, políticas e institucionais que favoreceriam a
transferência decisória do eixo Poder Legislativo – Poder Executivo para o Poder
Judiciário”.
LUIS ROBERTO BARROSO10
, a este respeito, afirma que “a idéia de
ativismo judicial esta associada a uma participação mais ampla e intensa do
Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior
interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes”.
Diante dos conceitos acerca da judicialização da política, a questão que se
coloca em cerne neste texto é a de que, se muitas vezes, esta actuação do Judiciário,
9 SILVA, Alexandre Garrido da; Vieira, José Ribas. Justiça transicional, direitos humanos e a seletividade do
ativismo judicial no Brasil. Revista da Faculdade de Direito Candido Mendes, Rio de Janeiro, v. 1, n. 13, dez.
1996. p. 56-57. 10 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Revista de Direito do
Estado, Rio de Janeiro, n. 13, jan/mar 2009. p. 75.
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mormente decorrente de um fenômeno em que o próprio Estado Social não consegue
satisfazer as demandas de uma maioria, e, a produção de políticas públicas torna-se,
com isto, insatisfactória, não acaba por forjar uma espécie de ‘instituição’ deste
Estado Social pelo próprio Poder Judiciário, e, a princípio, o que viria a parecer uma
complementação das funções deste Poder para com os outros demais (Executivo e
Legislativo), acaba por tornar-se um critério exclusivo de utilização de direitos
individuais por uma minoria, contra os direitos tidos como pertencentes a toda uma
maioria.
É evidente que o Poder Judiciário não deve esquivar-se a resolver um
problema a ele trazido, se instado para tanto, até mesmo porque, com o intuito de
impedir que a judicialização se converta em atitudes arbitrárias do Poder Judiciário,
observa-se sempre o princípio constitucional do contraditório, que garante uma
espécie de defesa contra estas ingerências, principalmente se cumulado com
princípio do duplo grau de jurisdição.
Mas o facto é que a judicialização pode estar a causar um “empreguiçamento”
do Estado Social, que, longe de combater a sua expansão, acabaria por aceitar
facilmente a sua inoperância diante do alcance das políticas públicas e dos direitos
em face de todos, por saber que o número de demandas individuais objectivando a
satisfação de seus direitos e das políticas públicas exclusivamente para si tem
repercutido de forma crescente em alguns países, como veremos nos capítulos
subsequentes, adentrando antes, na aplicação do conceito para com os direitos
fundamentais.
IV. A Judicialização da Política e os Três Poderes Federativos
Uma pretensa ‘usurpação’ da atribuição pertinente à função legislativa por
meio do judiciário tem chamado atenção nos últimos anos, e, motiva-nos à discussão.
É cediço que as funções atinentes a cada um dos três poderes, componentes
do Estado federativo brasileiro, são necessárias e complementares à atividade
governamental, e, à primeira vista, não deveriam interferir de forma a sobrepor um
poder (ou função) sobre o outro. JOSÉ AFONSO DA SILVA (2009: 108) tem
opinião interessante acerca destas funções, de modo a distingui-las em seus campos
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de actuação. Segundo o autor, “a função legislativa consiste na edição de regras
gerais, abstratas, impessoais e inovadoras da ordem jurídica, denominadas leis. A
função executiva resolve os problemas concretos e individualizados, de acordo com
as leis; não se limita à simples execução das leis, como às vezes se diz; comporta
prerrogativas, e nela entram todos os atos e fatos jurídicos que não tenham caráter
geral e impessoal; por isso, é cabível dizer que a função executiva se distingue em
função de governo, com atribuições políticas, colegislativas e de decisão, e função
administrativa, com suas três missões básicas: intervenção, fomento e serviço
público. A função jurisdicional tem por objeto aplicar o direito aos casos concretos a
fim de dirimir conflitos de interesse”.
Corrobora nesse sentido, o texto proferido por BENDA11
, de que “la división
de poderes también significa que no es legítimo privar a ninguno de los poderes
públicos de las competências requeridas para o cumplimiento de sus tereas
constitucionales. Todos los poderes deben ser capaces de funcionamiento y bastarse
para satisfacer sus responsabilidades”.
Assim, em razão da representação social indireta que o Judiciário exerce, a
este órgão realmente não se pode atribuir a função legislativa, pois, as instituições
democráticas normatizadoras devem estar em constante contato com a sociedade e a
serviço da opinião da maioria do eleitorado (PIÇARRA, 1989: 233).
A própria atividade legislativa em si contradiz a própria concepção formal do
Poder Judiciário, de forma que a assunção desse papel é dada ao parlamento, que é o
órgão constitucionalmente legitimado para tanto, tendo, inclusive, sua estrutura
orgânica constituída para que o exercício de sua função política seja devidamente
confrontado com as alternativas mais representativas para a sociedade (Ibidem, p.
260).
A princípio, dentro desta óptica de entendimento, a função judiciária deverá
sempre estar despida de qualquer compromisso pactuado ou qualquer intenção
política conjuntural, evitando criar zonas de tensão e esgotamento a cada uma das
funções. Mas, como será debatido em todo o transcorrer deste texto, em especial, no
que concerne à judicialização da política do direito à saúde, isto não está a ocorrer e,
tem causado alguns prejuízos que a seguir serão elucidados com mais propriedade.
11 BENDA, Ernesto. El estado social de derecho, apud FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. O controle judicial de
políticas públicas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p.45
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V. Judicialização da Política e Judicialização da Saúde.
Situa-se cá, entre um dos direitos notoriamente fundamentais que mais vem
chamando atenção dos juristas e pesquisadores: o Direito à Saúde, de modo a
oferecer alguns questionamentos sobre a aplicabilidade da judicialização da política
para garantir este direito, e, as consequências que, como dito, podem vir a gerar um
“empreguiçamento” do Estado Social e uma suposta afronta à democracia. Vejamos.
V.1. A Judicialização da Saúde como Fonte de Efectividade de Políticas
Públicas: Uma Forma (Anti) Democrática?
No caso específico da saúde e da distribuição de medicamentos (principal
foco, porém não único, de nossa discussão), tomemos como exemplo o Brasil, que
estabeleceu a garantia constitucional do direito à saúde, direito este que deve ser
promovido pelos três entes federativos: União, Estados e Município, conforme a
Carta Magna de 198812
.
É cediço que o Orçamento Público do Estado Federal não comporta
totalmente o custeio das intervenções assistenciais à saúde de todos. A questão é que
tal direito resta consagrado dentro do texto constitucional e, portanto, não se trata de
uma norma aparentemente programática ou de eficácia contida, e, sim, algo cujos
efeitos devem ser produzidos em benefício de todos, ou seja, assume o caráter de
eficácia imediata.
Dentro desta constatação, seria possível entender que, uma vez ocorrida a
omissão do Estado na concretização deste direito fundamental, o Judiciário estaria
imediatamente autorizado a promover decisões que obriguem o Executivo a cumprir
este papel?
O Ministro do STF brasileiro, GILMAR MENDES, tem interessante
contribuição sobre o tema. Segundo ele, o Judiciário, quando foca-se em um caso
específico, é incapaz de visualizar os efeitos sistêmicos de suas decisões13
.
12 Veja-se texto da Constituição Brasileira: Art. 196 - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e recuperação. 13 Op. cit.: Em razão da inexistência de suportes financeiros para a satisfação de todas as necessidades sociais,
enfatiza-se que a formulação de políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais
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Analisando a opinião supracitada, seria como imaginar que, uma vez
houvesse um “Robin da Floresta” (Robin Hood), este não poderia direcionar todo o
ouro de sua ‘colheita’ diária a uma só família, mas sim, analisar globalmente, o
conteúdo de moradores da floresta, e, a possibilidade de dividir este ouro em
proporções iguais, ainda que uma só pessoa, dentre todos os habitantes, houvesse
reclamado que “o reino não está a distribuir o ouro que prometeu na campanha”.
Entendo que o Ministro não está equivocado. A generalidade do conceito de
cidadania, totalmente dependente das políticas governamentais, se filtrada em prol de
alguém que legitimamente (frise-se) pleiteou um direito prometido
constitucionalmente, pode criar um número descontrolado de jurisprudências que
ignorem as condições orçamentárias do Estado, e, até mesmo, não se incorpore à
realidade social, e, sim, à realidade individual dos que passam a utilizar as Cortes
superiores para tal.
Não se discute aqui, se a intervenção do Judiciário é ou não nobre, pois
entendo que é extremamente nobre, e, juridicamente, é possível, mas acaba por gerar
um conflito entre o que se entende como ‘mínimo possível’ e a ‘eficiência estatal’.
Explicando: há que promover o Estado, um mínimo possível de direitos
fundamentais, no caso, o direito à saúde, de modo a não ferir a integridade e a
dignidade humana, princípios basilares de toda Carta Magna. Mas, o problema é
justamente este, como já enfatizado, o excesso promove o desequilíbrio, e, a própria
eficiência e a boa administração pública, que são princípios que residem implícitos
nas Constituições dos países, tornam-se malferidas.
Com isto, o Juiz tornar-se-ia um ente político aplicador de políticas sociais,
porém, em termos de responsabilização no que tange aos Tribunais de Contas (Lei de
Responsabilidade Fiscal, Plano Plurianual, Orçamento Anual), é isento, ao passo que
o Estado é diretamente punido, caso extrapole as receitas orçamentárias, ou os
limites pré-definidos para cada uma das esferas (Saúde, Educação, Segurança, etc),
implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Estas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o
quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem
escolhas trágicas pautadas por critérios de macrojustiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma
política e não para outra leva em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a
efetividade e a eficácia do serviço a ser prestada, a maximização dos resultados. Nesta linha de análise,
argumenta-se que o Poder Judiciário, o qual estaria vocacionado a concretizar justiça do caso concreto
(microjustiça), muitas vezes não teria condições de, ao examinar determinada pretensão à prestação de um direito
social, analisar as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício de parte, com invariável
prejuízo para o todo.
P á g i n a | 17
vendo-se muitas vezes obrigado a realizar transferências de créditos suplementares
por meio de Decretos e outras normas, extraindo recursos de esferas também
indispensáveis (segurança, por exemplo), para utiliza-los exclusivamente na Saúde,
em decorrência das excessivas demandas judiciais.
Neste sentido, como bem já explanamos, entendemos que, se a judicialização
não leva em conta elementos econômicos e redistributivos no que tange à melhor
alocação dos recursos orçamentários (direcionando-os, ao contrário, para um único
indivíduo que pugnou o seu direito por meio dos tribunais superiores), tratar-se-á de
uma prática antidemocrática, visto que o Juiz assume a condição de aplicador dos
recursos orçamentários estatais, e, solapará a esfera da legitimidade política para tal
(que caberia ao Executivo em função de uma maioria, e, não de uma minoria), e, até
mesmo (sem nos alongarmos demais nesta observação) corroborará por achatar as
próprias funções do Parlamento.
Dentro do que aqui pudemos expor, pergunta-se: não estaria a democracia,
por meio da judicialização da política (no caso da saúde e distribuição de
medicamentos), a ser construída por meio da esfera procedimental judicial e, não
mais no princípio majoritário consensual e no debate público? Não estariam os Juízes
favorecendo as microcausas em prejuízo das macrocausas? Entendo que sim.
V.2. A Democracia Como Procedimento Judicial - E não mais um Fenômeno
Consensual
Dentro da avaliação de que a democracia está a tornar-se mais processual e
menos consensual, convém destacar, neste pequeno tomo, de dois pensamentos
distintos acerca da judicialização da política. Mas antes, entende-se por bem enfatizar
que a judicialização da política não se restringe apenas à aplicação de políticas
públicas, como aqui exemplificamos, para o direito á saúde, mormente decorrente de
intervenções cirúrgicas e fornecimento de medicamentos de alto custo.
O Juiz, enquanto ‘policy-maker’, pode actuar na determinação de
inconstitucionalidade de uma lei. Esta possibilidade inclusive tem hoje sido preferida
por inúmeros partidos de oposição, que se lançam aos tribunais superiores com
intuito de obstruir as iniciativas legais governamentais, como é o caso das ADI –
P á g i n a | 18
Ações Diretas de Inconstitucionalidade, as Ações Civis Públicas, os Mandados de
Segurança Coletivos.
Há também a intervenção do Judiciário no próprio sistema eleitoral, outra
forma de se aplicar a judicialização da política. Esta é caracterizada pela
“determinação e imposição de regras eleitorais justas; regulação financeira de
campanhas; interpretação e imposição de leis éticas que regulam a conduta pública
de oficiais são algumas das intervenções mais comuns do judiciário sobre a
organização dos pleitos legislativos e executivos” (BADINTER; BREYER, 2004).
Duas opiniões serão aqui destacadas. A primeira, crítica, em que os autores
TATE & VALLINDER enxergam este avanço do judiciário como extremamente
prejudicial à democracia. Segundo eles: “Nas democracias, primeiramente, nas suas
assembléias eleitas popularmente, a formulação de decisão (decision-making) está
baseada no princípio majoritário e no debate público, livre entre iguais” (1995: 13).
VALLINDER ainda apresenta algumas diferenças fundamentais que, segundo
ele, apesentam-se na resolução de conflitos entre os poderes legislativo e judiciário:
“a arena legislativa opera em termos de barganhas e troca de favores, enquanto o
judiciário pesa os argumentos; no legislativo predomina o princípio majoritário, e no
judiciário, a decisão dada por um juiz imparcial; um produz regras gerais e políticas
públicas, e outro estabelece casos individuais; um aloca valores em virtude de uma
solução possível politicamente, enquanto o outro se certifica dos fatos do processo e
da lei adequada na busca da “única solução correta”. Desse ângulo, o modelo
democrático do consenso, ou seja, a capacidade da sociedade de se autocompor, de
produzir valores e arregimentar vontades na formação de uma unidade, estaria em
risco diante da judicialização da vida política”.
A segunda, esboçada no pensamento de CAPPELLETTI, que é contrário ao
posicionamento supra, pois o mesmo entende que “deve-se fazer contínuo esforço
com vistas a salvaguardar, o mais realisticamente possível, a legitimação
democrática e representativa, incluindo, todas as formas de criação do direito,
inclusive jurisprudencial” (CAPPELLETTI, 1993: 96).
Dentro desta linha de raciocínio de CAPPELLETTI, “enquanto legisladores e
aparelhos burocráticos podem dificultar ou vedar o acesso dos cidadãos à política, no
poder judiciário, em razão dos procedimentos e processos jurisdicionais, ouvir as
P á g i n a | 19
partes continuaria sendo tarefa imprescindível e direito fundamental. Visto dessa
perspectiva, o poder judiciário viria a ser o mais participável de todos os processos
da atividade pública. Esses procedimentos, combinados com a desformalização do
direito e com instrumentos de controle recíprocos do sistema democrático, também
evitariam a manutenção, na esfera institucional jurídica, de juízes burocratas
distantes e isolados da sociedade. E, ao mesmo tempo em que garante o contato
constante com a comunidade, esses procedimentos salvaguardam uma condição de
independência dos juízes, à medida que não estão pressionados pela maioria.”
(Ibidem, p. 97).
Diante desta dualidade de opiniões, chama-se atenção para o facto de que as
Cortes brasileiras em muitos casos (mas não nos casos envolvendo a Judicialização
da Saúde) têm direcionado suas opiniões para o fenômeno da responsabilidade
solidária dos entes federados, principalmente após a consagração (em minha opinião,
apenas formal) do Município como ente federativo na CF/88, transformando a
federação brasileira em um tripé de competências por parte do Poder Público, mas
principalmente, responsabilizando o Município em obrigações financeiras para as
quais este não estava preparado, e, tampouco possuia (e não possui até os dias
actuais) autonomia em termos de representatividade no Poder Central.
V.3. O Município na Constituição Brasileira de 1988: Sobre as Águas do
Reconhecimento Como Ente Federativo ou Uma Mera Jogada de Xadrez Para
Desresponsabilização e Economização de Gastos Públicos do Poder Central
V.3.1. Autonomia ou Anomalia Municipal?
A concepção de uma Federação pode ser entendida como “um Estado
soberano, formado por uma pluralidade de Estados, no qual o poder do Estado emana
dos Estados-membros, ligados numa unidade estatal14
”.
A Federação brasileira, assim como a belga, é abrangida por três níveis:
União, Estado e Municípios. Estes últimos surgem como a entidade mais próxima a
14 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. ed. Berlin, 1914, p. 769.
P á g i n a | 20
atender as demandas comunitárias, actuando como braço direito entre o aparelho
estatal e os cidadãos.
No concernente às relações internacionais, a Federação brasileira, assim
entendida como União, urge como um único Estado soberano, mas, do ponto de vista
interno, o poder acaba deslocado de forma responsiva a outras unidades federativas,
embora estas se encontrem notoriamente sujeitas ao Poder central. Esta acção
conjunta, culminada por uma transferência de responsabilidades decisórias, teve sua
dimensão ampliada quando a Constituição Federal de 1988, em seus artigos 29 e 30,
dotou os Municípios das capacidades de auto-organização, autogoverno,
autolegislação, autoadministração. Em outras palavras, autonomia política,
financeira, legislativa e administrativa.
Partindo desta premissa, pode-se perceber, à primeira vista, que nos
Municípios existiriam menos intermediações entre a população e o Poder Público,
para se discutir e promover as demandas políticas necessárias ao desenvolvimento
local, e, também, ao atendimento de medidas emergenciais. Ou, permissa venia a
analogia, pode-se dizer que o Município é um Areópago aberto e
organogramicamente transformado em subpastas que respondem estrategicamente,
nas diferentes áreas, à voz do povo, posto que é supostamente no Município que se
encontram as forças dos povos livres15
.
Mas, analisando aspectos de representatividade decisória no chamado Poder
Central, podemos dizer que o Município no Brasil partilha uma espécie de
federalismo cooperativo de certas responsabilidades – entre elas, o obrigatório
fornecimento (judicializado) de medicamentos, objecto deste texto – sem, entretanto,
possuir qualquer representatividade na formação da vontade jurídica nacional. A este
respeito, observou Roque Antonio Carraza, que “embora o art.1º da CF estabeleça
que a República brasileira é formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios (...), estes não integram a Federação, isto é, não fazem parte do pacto
federal. E isto por motivo muito simples: a própria CF se encarrega de desmentir o
que solenemente proclama em seu art. 1º. Vejamos. Os Municípios não influem, nem
muito menos decidem, no Estado Federal. Dito de outro modo, os Municípios não
participam da formação da vontade jurídica nacional. Realmente, não integram o
15 TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: M. Fontes,
2005. p. 75-80. Livro 1.
P á g i n a | 21
Congresso, já que não possuem representantes nem no Senado (Casa dos Estados),
nem na Câmara dos Deputados (Casa do Povo). Como se isso não bastasse, a
autonomia municipal não é uma cláusula pétrea. O Congresso Nacional, no exercício
de seu poder constituinte derivado, pode, querendo, aprovar emenda constitucional
que venha a diminuir ou, mesmo, eliminar a autonomia dos Municípios16
”.
Esta ausência de representatividade, também chamada de anomalia17
, não
macula a pretensiosa imagem traduzida pela União Federal, que a princípio,
dezarrazoa o pessimismo e aponta para uma possível solução de que, quanto mais
descentralizado se encontre qualquer poder Estatal, evientemente, maior será a
hipótese de participação dos cidadãos no contexto político, e, como conseqüência, o
grau de democracia poderá ser maior.
E, no caso do Brasil, esta suposta crescente participação acabou evidenciada
com o surgimento de novas formas de democracia participativa, entre as quais, o
orçamento participativo, que não será enfocado neste texto, mas que contribui para
uma elevação mítica de destaque da figura do Município entre os cidadãos e também
entre os juristas, avalizada pelos resultados em termos de democracia local oriundos
dos movimentos sociais participativos e uma espécie de célula vital comunitária
formada ao redor deles.
Mas a realidade da não representatividade na formação da vontade jurídica
nacional acabou por angariar certos prejuízos ao ente Município. O Professor
CELSO BASTOS, a este respeito, acabou por profetizar uma aparente solução – hoje
convertida em metástase jurídica – sobre a necessidade de que “a Constituinte dê
aplicação ao princípio, segundo o qual nenhum serviço pode ser prestado por
autoridade estatal de nível superior, quando tiver condições de o ser por governo de
nível inferior. Assim, o Município deverá preferir aos Estados e à União, da mesma
forma que os Estados deverão preferir a União18
”.
Este aparente acolhimento do Município do conceito de cidadania brasileira,
e, elevação das proximidades democráticas a partir da aproximação local entre
governo e população, culminou com uma armadilha hoje perigosa – e que está a ser
16 CARRAZA, Roque Antonio. Direito constitucional tributário. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 98 17 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Competências administrativas dos Estados e Municípios. Revista de Direito
Administrativo, Rio de Janeiro, n. 207, 1997. 18 BASTOS, Celso. Os caminhos de uma nova Constituição. Revista Seleções Jurídicas ADV/COAD, São Paulo,
p. 10, 1987
P á g i n a | 22
verificada no âmbito deste texto – quanto à responsabilização solidária do Município
para com outros entes federados para atendimento das demandas judiciais onerosas.
A chamada democracia consensual, como já avistado no tópico anterior,
acabou por reverter-se em democracia processual, para abrir caminho à
judicialização da política e determinação aos Municípios de cumprimento de ordens
atinentes à saúde dos impetrantes. Juízes de todo o Brasil, seduzidos pelas
impetrações objectivando fornecimento de medicamentos, cirurgias, internações,
entre outras demandas, sem avaliar o aspecto econômico e de responsabilização dos
entes federativos, e, principalmente, direcionados pelas evidentemente direccionadas
decisões dos tribunais superiores, voltadas a salvaguardar os cofres públicos da
União Federal e a solapar a Fazenda Pública Municipal, condenavam o ‘ente mais
próximo’ (Município) ao atendimento de todo e qualquer tratamento, por mais
oneroso que se apresentasse, no âmbito da saúde pública.
V.3.2. A Idéia Distorcida de Responsabilidade Solidária dos Entes Federativos e
Sua Consagração Jurisprudencial no Brasil – Sem Levar em Conta Aspectos
Econômicos e Preventivos na Judicialização da Política
Não é pretensão neste texto discutir que a Federação começa no Município,
tampouco é intenção descartar a importância do Município como ente Federativo, se
esta importância realmente tivesse representatividade no âmbito das decisões e das
transformações jurídicas do país, e, não apenas na assumção de obrigações
financeiras.
Sabemos que a descentralização, enquanto fenômeno político necessário para
a reorganização dos Estados mundiais passa, evidentemente, pela coordenação e
controle de políticas públicas descentralizadas, e, delibera às municipalidades a
execução e o controle destas políticas. Mas, a forma com que o Judiciário tem
condenado os Municípios via judicialização da política não se preocupa em saber se
estes mesmos Municípios estariam prontos, isto é, estariam dotados de condições
políticas, econômicas e financeiras garantidas pelo desenvolvimento local, de modo
que eles já tivessem, desde a promulgação da Constituição de 1988, evoluido a ponto
de dispensar a atuação federal e a estadual.
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Isto porque a Constituição de 1988 classificou, deliberou e simplesmente
disse: pronto. Esperava-se que, num passe de mágica, todos os Municípios
brasileiros, como se contemplados com a ‘medalha de ente federativo’, estivessem
estruturados para promover o desenvolvimento local de forma a, em poucos anos, ter
condições financeiras, administrativas e organizacionais para suportar todas as
transferências gestuais (municipalização da educação, da saúde, entre outros) e todas
as demandas judiciais no âmbito prestacional. Mas, evidentemente e sem querer soar
redundante, é óbvio que não estavam.
É romântico por demais o conhecimento a respeito de que “na literatura de
todos os povos modernos sempre retorna a idéia de que a comunidade é formação
natural, é originária, precede o Estado e não foi por este criada. Tem, em rigor, sua
derradeira origem nas explicações de Aristóteles acerca do desenvolvimento
histórico dos Estados, que fazem com que o Estado resulte da união de muitas
povoações19
”.
A natureza comunitária e cidadã do poder municipal nunca poderá ser
subvalorizada, e, nem é nossa pretensão aduzir a tal. Mas a questão da
responsabilidade solidária dos entes federativos somente poderia ter maior albergue
mediante a constatação efectiva de que os Municípios brasileiros estariam em plenas
condições de suportar financeira e estruturalmente a judicialização da política.
E o que fazem os juízes diante deste panorama? E como avaliar as
divergências doutrinárias que se instalam, em sede de defesa Municipal e Federal?
Não tenho dúvidas em afirmar que a ideia dos juízes de que todo ente é
passível da obrigação de fornecer medicamentos, independente das atribuições
condicionadas pelo Sistema Único de Saúde, gera um desequilíbrio irracional da
divisão de competências dos entes federativos, pois sobrecarrega, evidentemente, o
ente mais fraco da tripartição federativa, e, não obstante, transforma o orçamento
público dos Municípios num oceano de incertezas de cumprimento das políticas
sociais previstas em sua lei anual.
Pergunta-se: desde quando federalismo e cooperação são sinônimos de
corresponsabilização20
?
19 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 315. 20
WANG, Daniel; PIRES, Natália; OLIVEIRA, Vanessa; TERRAZAS, Fernanda. Os Impactos da
Judicialização da Saúde no orçamento Público da Saúde, cit. p. 11: O Judiciário, ao adotar a tese da
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V.3.3. O Tema da Reserva do Possível Alegado pelos Municípios
Todas as dimensões dos direitos fundamentais têm custos públicos. Isto é
facto. Diante desta assertiva, seria preciso, diante da reserva do possível, e, diante da
escassez dos recursos comumeiramente trazida em sede de defesa pelos Municípios,
que se pudesse concluir que “levar a sério os direitos significa levar a sério a
escassez” (HOLMES; SUNSTEIN, 1999).
Neste sentido, a dimensão de contraprestação dos direitos tidos como sociais,
dimensiona o pronto atendimento a estes direitos a uma esfera programática, isto é,
que dependeriam de dotações orçamentárias e formulações de políticas públicas
municipais para se tornarem exequíveis e, evidentemente, exigíveis. Com isto, a
intervenção do judiciário obrigando o ente federativo à consecução desta política
social, acabaria por violar o princípio conhecido como ‘reserva do possível’.
A reserva do possível associa-se, em outras palavras, ao caráter aristotélico
distributivo, segundo o qual, em razão de reservas inexistentes para atender a todas
as demandas judiciais e, tendo em vista as diferenças valorativas de cada demanda,
levariam a escolhas alocativas, ou seja, escolhas pautadas pela macrojustiça.
Dentro desta óptica “o Poder Judiciário, o qual estaria vocacionado a
concretizar a justiça do caso concreto (microjustiça), muitas vezes não teria
condições de, ao examinar determinada pretensão à prestação de um direito social,
analisar as consequências globais da destinação de recursos públicos em benefício da
parte, com invariável prejuízo para o todo” (AMARAL, 2001).
Mas, como confrontar a chamada ‘reserva do possível’ com a própria
dignidade da pessoa humana, ou seja, o mínimo existencial do direito à saúde?
V.3.4. O Tema do Mínimo Existencial do Direito à Saúde Alegado pelos Juízes
Diante do debate que se alavanca em torno dos direitos sociais e sua
efectivação ou não através do Poder Judiciário, estes acabam por mobilizar-se em
responsabilidade solidária dos entes da federação a compor o polo passivo de ações demandando bens e serviços
de saúde, parece estar, indiretamente, redesenhando a política de assistência farmacêutica do SUS no que tange à
distribuição de competências, desconsiderando o fato de que federalismo e cooperação não são sinônimos de
corresponsabilização, conforme já explicitado. << http://abresbrasil.org.br/trabalhos/impactos-da-judicializacao-
da-saude-no-orcamento-publico-o-caso-do-municipio-de-sao-paulo >>
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direção as teorias da justiça, as teorias de argumentação e as teorias econômicas do
direito (CANOTILHO, J. J. Gomes. Metodologia “fuzzy” e “camaleões normativos”
na problemática actual dos direitos econômicos, sociais e culturais. In: Estudos sobre
direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 98).
A idéia trazida acima navega nas águas de um desconforto jurídico, posto que
“paira sobre a dogmática e teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais
a carga metodológica da vaguidez, indeterminação e impressionismo que a teoria da
ciência vem apelidando, em termos caricaturais, sob a designação de ‘fuzzismo’ ou
‘metodologia fuzzy’. Em toda a sua radicalidade a censura de fuzzysmo lançada aos
juristas significa basicamente que eles não sabem do que estão a falar quando
abordam os complexos problemas dos direitos econômicos, sociais e culturais”
(Ibidem, p. 100).
Dentro desta óptica linear, pareceria evidente, a princípio, concluir que todas
as demandas envolvendo judicialização da política para efectivação dos direitos
sociais envolveria todos os argumentos contrários e favoráveis dos direitos sociais21
,
para então chegar-se a um conclusivo mais ‘equilibrado’. Mas o facto é que os
juristas brasileiros têm vertido seus acctos conclusos pela essencialidade do direito à
saúde, antes mesmo de toda e qualquer avaliação distributiva.
No Brasil, um dos julgados interessantes e que favorece o entendimento em
favor da prestação positiva do Estado, como caráter de relevância pública, diz
respeito ao AgR-RE n.º 271.286-8/RS, proferido pelo Ministro Celso de Mello,
ressaltando que “a interpretação da norma programática não pode transformá-la em
promessa constitucional inconseqüente”. Em outras palavras, o Ministro quis dizer: -
é dever do ente federado a prestação positiva. Ainda, no mesmo julgado, concluiu
que “a essencialidade do direito à saúde fez com que o legislador constituinte
21 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros
Editores, 2008, p. 511-512, op. cit.: “Considerando os argumentos contrários e favoráveis aos direitos
fundamentais sociais, fica claro que ambos os lados dispõem de argumentos de peso. A solução consiste em um
modelo que leve em consideração tanto os argumentos a favor quantos os argumentos contrários. Esse modelo é
a expressão da idéia-guia formal apresentada anteriormente, segundo a qual os direitos fundamentais da
Constituição alemã são posições que, do ponto de vista do direito constitucional, são tão importantes que a
decisão sobre garanti-las ou não garanti-las não pode ser simplesmente deixada para a maioria parlamentar.
(...) De acordo com essa fórmula, a questão acerca de quais direitos fundamentais sociais o indivíduo
definitivamente tem é uma questão de sopesamento entre princípios. De um lado está, sobretudo, o princípio da
liberdade fática. Do outro lado estão os princípios formais da competência decisória do legislador
democraticamente legitimado e o princípio da separação de poderes, além de princípios materiais, que dizem
respeito, sobretudo à liberdade jurídica de terceiros, mas também a outros direitos fundamentais sociais e a
interesses coletivos.”
P á g i n a | 26
qualificasse como prestações de relevância pública as ações e serviços de saúde (CF,
art. 197)”.
Outra decisão interessante dos tribunais brasileiros, diz respeito à ADPF n.º
45/DF, em que o mesmo Ministro conclui, de forma pormenorizada, que, com
relação ao SUS – Sistema Único de Saúde, órgão criado pela Constituição brasileira
de 1988 e que torna o acesso gratuito à saúde um direito de todos os cidadãos,
somente se verificado o não comprometimento do funcionamento do referido órgão
para atender a determinado caso (desde que devidamente comprovado e
fundamentado), e, avaliado o binômio da disponibilidade financeira do Estado +
razoabilidade da pretensão, é que enfatizaria a garantia judicial da prestação
individual de saúde. Aduziu o Ministro: “Desnecessário acentuar-se, considerando o
encargo governamental de tornar efetiva a aplicação dos direitos econômicos, sociais
e culturais, que os elementos componentes do mencionado binômio (razoabilidade da
pretensão + disponibilidade financeira do Estado) devem configurar-se de modo
afirmativo e em situação de cumulativa ocorrência, pois, se ausentes qualquer destes
elementos, restará por descaracterizada a possibilidade estatal de realização prática
de tais direitos” (ADPF-MC N.º 45, Rel. Celso de Mello, DJ 4.5.2004).
A princípio, pode-se vislumbrar uma ‘luz’ aos Municípios diante do julgado
supracitado. Mas nos últimos anos, o Sistema Único de Saúde – SUS descentralizou
os seus serviços, e, com objetivo de aumentar a qualidade e acesso doa cidadãos aos
serviços de saúde, ambos os entes tem conjugado seus esforços financeiros para
suprimir as demandas de atendimento.
Não obstante, a competência dos entes da Federação é consubstanciada no
artigo 23, II da Constituição brasileira. Isto os torna, imediatamente legitimados
passivos na responsabilidade solidária, bastando apenas que o SUS (mediante órgão
Municipal, Estadual ou Federal) apresente sua negativa assistencial.
Ademais, o artigo 195 da mesma Carta Magna prevê que o financiamento do
Sistema Único de Saúde opera-se com recursos da União, dos Estados, dos
Municípios, da Seguridade Social, do Distrito Federal, e, o artigo 198 estabelece que
é de incumbência da Lei Complementar os percentuais mínimos e critérios de rateio
entre os entes. E, a Lei 8.090/90, que estabelece as competências do SUS no Brasil,
consagra o princípio igualitário e universal em seu artigo 7°, IV, garantindo
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“igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer
espécie”.
Por esta razão, não é difícil entender o porquê os juristas brasileiros tem cada
vez mais deliberado pela judicialização da política, no âmbito da saúde, em prol dos
entes envolvidos. Mas pessoalmente, não vislumbramos como correto, por exemplo,
uma situação em que um paciente venha socorrer-se de um medicamento importado,
de custo equivalente a cerca de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) mensais (cerca de
18.000 euros) em um Posto de Saúde Municipal, e, por não constar o medicamento
no programa municipal de atendimento, venham os juízes ordenar – e eis aí o cerne
da questão tematizada nesta discussão – aos Municípios o cumprimento desta
obrigação, pois são eles justamente os entes mais fracos economicamente, e, que
nenhuma representatividade jurídica possuem, como já dito, no Poder Central,
restando à União a fácil tarefa de deliberar, a seu bel prazer, nas legislações
nacionais, as percentualidades e responsabilidades municipais, e, aos juízes, cumprir
o sobredito na Lei, sem aterem-se à realidade funcional, econômica e social dos
Municípios. Em muitíssimos casos, os juízes, inclusive, atem-se ao periculum in
mora do atendimento à demanda, para permitir a figuração, no polo passivo da acção
judicial, de apenas o Município. Mas, como já aqui foi fito, federalismo e cooperação
não são sinônimos de corresponsabilização.
CHRISTIAN COURTIS e VICTOR ABRAMOVICH possuem uma opinião
interessante a respeito de o Poder Judiciário não possuir competência para formular
políticas públicas, e, portanto, ao encontrar divergências a respeito de sua
aplicabilidade, devem estes órgãos reencaminhar o assunto às autoridades
competentes, para que possam ajustar a sua atividade neste sentido. Ou seja, é
preciso, antes de qualquer ordenamento judicial, que exista um pacto entre os entes
federativos e o Poder Judiciário, de modo a dialogar exaustiva e permanentemente,
ano após ano, sobre as realidades dos entes federativos, e, contribuir, juntamente com
os mesmos, para a formulação de políticas públicas eficazes, seja por meio de pactos
de direitos humanos, seja por meio de garantias e inovações constitucionais, mas o
facto é que seja possível a realização e concretização de um programa jurídico-
político de políticas públicas de saúde, não um oceano de demandas em prejuízo dos
entes federativos, e, especial, os Municípios. Chama-se atenção para este
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pensamento, pois elucida a ideia de uma necessidade de políticas preventivas: “Por
ello, el Poder Judicial no tiene la tarea de diseñar políticas públicas, sino la de
confrontar el diseño de políticas asumidas con los estándares jurídicos aplicables y –
en caso de hallar divergencias – reenviar la cuestión a los poderes pertinentes para
que ellos reaccionen ajustando su actividad en consecuencia. Cuando las normas
constitucionales o legales fijen pautas para el diseño de políticas públicas y los
poderes respectivos no hayan adoptado ninguna medida, corresponderá al Poder
Judicial reprochar esa omisión y reenviarles la cuestión para que elaboren alguna
medida. Esta dimensión de la actuación judicial puede ser conceptualizada como la
participación en un diálogo entre los distintos poderes del Estado para la concreción
del programa jurídico-político establecido por la constitución o por los pactos de
derechos humanos22
”.
Nesta divergência de opiniões aqui elucidadas, entendemos pela extracção
dos aspectos positivos que, dentro do universo da judicialização da política, em
especial, da saúde, e, do surgimento de uma democracia mais ‘processual’ e menos
consensual, permitam também avaliar o aspecto econômico e o de responsabilização
dos entes em questão. A seguir, procura-se oferecer alguns comentários neste
contexto.
V.3.5. O Aspecto Econômico e de Responsabilização dos Entes Garantidores da
Saúde (Não Vislumbrado Pelo Poder Judiciário): A Importância da Análise
Preventiva das Cortes Judiciais diante de uma Judicialização Anti-Democrática.
Tendo em vista as opiniões divergentes anteriormente citadas, preocupa-se
neste texto não apenas com a não consagração do debate livre e majoritário
(elemento essencial da democracia), que, muitas vezes, torna-se distante, se o
Judiciário passar a atuar em causas minoritárias. Até mesmo porque, a facilitação do
acesso aos direitos fundamentais, no caso, à Saúde, propiciada pela judicialização da
política, não deve ser avaliada dentro do contexto dos avanços processuais de
garantias à efetivação dos direitos sociais e da universalização do acesso à justiça,
22 ABRAMOVICH, Victor; COURTS, Christian, Los derechos sociales como derechos exigibles, Trotta,2004, p.
251
P á g i n a | 29
pois estas são condições positivas, derivadas da falência macroeconômica do Estado
e da crise do positivismo jurídico.
A questão mais assente parece-nos ser a de que o Judiciário precisa avaliar
também e antes de tudo, o aspecto econômico e de responsabilização dos entes
envolvidos, haja vista que, não bastasse o problema do extrapolo orçamentário, o
Estado é unicamente responsabilizado pelos tribunais fiscalizadores; ao judiciário
cabe apenas determinar, por exemplo, o fornecimento de determinado medicamento
ou realização de intervenção cirúrgica.
Assim, entendemos por necessário uma análise prévia das consequências de
se fomentar decisões judiciais sobre as políticas públicas, ou seja, é necessário ao
Judiciário pensar e agir de maneira preventiva, e, não apenas autodeterminativa, pois,
se em democracia busca-se uma análise consensual em favor de uma maioria, o
Poder Judiciário extaria aí, extrapolando sua legitimidade e responsabilizando o
Executivo única e exclusivamente, pelo cumprimento das demandas. Não entendo
como agradável, tampouco é democrático, que uma esfera de Poder ordenar que
outra cumpra um papel atinente ao direito fundamental, sem avaliar os riscos
orçamentários e o direcionamento para causas judiciais exclusivas, favorecendo,
como já dito, a microjustiça.
Decisão interessante a este respeito, que avaliou a possibilidade financeira por
tratar-se de medicamentos disponíveis no mercado nacional (brasileiro), e, optou pela
sugestão alternativa de parceria do Poder Público com entidades privadas, por meio
de compensação de tributos, tendo sido objecto do Agravo de Instrumento
2007.0008.0173-7/023
:
23 Logo, avaliada perfunctoriamente a situação espelhada nestes autos, à luz dos princípios da proporcionalidade,
da reserva de consistência e da reserva do possível, correta se me afigura a concessão da liminar perseguida -
presente que se faz a relevância nos fundamentos da impetração. Com efeito, não se trata, a priori, de tratamento
experimental. Trata-se de medicamentos que existem e estão disponíveis no mercado, logo, sua utilização em
território nacional é autorizada pelos Poderes Públicos. Demais disso, não se tem notícia de outras drogas,
disponibilizadas na rede pública de saúde, capazes de gerar uma resposta eficaz à sua ministração. Doutra parte,
não se pode permitir que a reserva do possível se converta em verdadeira razão de Estado econômica, num AI-5
econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta consagra em matéria de
direitos sociais (FARENA, Duciran Van Marsen. A Saúde na Constituição Federal, p. 14. In: Boletim do Instituto
Brasileiro de Advocacia Pública, n. 4, 1997, p. 12/14). A par disso, diante da alegação de inexistência de verbas
específicas para o fornecimento do medicamento, nada impede que o Judiciário determine, por exemplo: a) o remanejamento de verbas orçamentárias de menor importância (v.g., publicidade institucional) e b) autorização
do custeio por entidades particulares, mediante compensação fiscal dos gastos efetuados. Lembre-se, em todo
caso, na hipótese de remanejamento de verbas orçamentárias, que nenhuma responsabilidade caberá ao
administrador, por se cuidar de ordem judicial. De mais a mais, não basta ao ente estatal invocar o princípio da
reserva do possível de forma genérica; é preciso que justifique, que apresente dados concretos para cotejo entre a
prestação positiva visada pelo particular e as suas possibilidades materiais para arcá-la. Do contrário, não haverá
P á g i n a | 30
A idéia é interessante, haja vista que em países como o Brasil, grande parte
das demandas decai sobre os Municípios brasileiros, pois alguns juízes entendem,
como já dissemos, que o ‘periculum in mora’, ou seja, o risco da demora em
atendimento ao fornecimento de medicamentos ou realização de cirurgia coloca em
risco um direito máximo da Constituição Federal, qual seja o direito á vida.
O problema é que, na maioria dos casos, os juízes, para evitar este
supracitado risco, transferem a obrigação de imediato, repita-se, ao ente menos
favorecido, ou seja, o Município, que, no decorrer dos últimos anos, vem
respondendo em grande parte por estas demandas. Não há, como enfatizado, um
pacto federativo, tampouco jurídico-político entre as partes.
V. 3. 6. Os Custos Judiciais Onerosos e a Des-responsabilização do Poder
Judiciário Perante os Tribunais Fiscalizadores: Quem Paga as Contas Pela
Judicialização da Política?
Um recente estudo, elaborado por OCTÁVIO LUIZ MOTTA FERRAZ e
FABÍOLA SULPINO VIEIRA (2009:235-238), enfatizou apenas duas doenças:
hepatite viral crônica C e artrite reumatoide, e, constatou, de forma impressionante,
que, “para atender aos pacientes portadores destas duas doenças, estimados em 1,9
milhões no Brasil, seriam gastos 99,5 bilhões de reais. Estes mesmos custos,
comparados pelos autores, com os demais custos dispensados pela União, pelos
Estados e pelos Municípios na esfera de Saúde, seriam superiores a todos os gastos
destes entes em conjunto, que totalizariam 85,7 bilhões de reais24
”.
Dentro desta mesma linha de raciocínio, há um registro interessante elaborado
pela Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, que demonstra em valores, os custos
para atendimento de apenas 88 pessoas por mês25
para trazer uma idéia do impacto
orçamentário que a judicialização provoca.
como se saber se existe, realmente, uma real impossibilidade de satisfação da obrigação contra si imposta
(ANDRADE, 2012)’. 24 FERRAZ, Octávio Luiz Motta; VIEIRA, Fabíola Sulpino. Direito à Saúde, Recursos Escassos e Equidade: os
riscos da interpretação judicial dominante. Dados, Rio de Janeiro, 52 v., pp. 223-251, 2009 25
Fonte: CODES – Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo
P á g i n a | 31
A idéia ao inserir esta tabela no presente artigo foi a de demonstrar os
impactos da judicialização da saúde no orçamento público, analisando para tal
algumas compras de medicamentos importados que são fornecidos apenas a 88
pacientes no Estado de São Paulo em virtude de decisões judiciais para tal, e, a partir
deste apontamento, imaginar os riscos que as demandas crescentes podem provocar.
Tabela I
Medicamentos Importados Fornecidos Por Determinação Judicial para apenas
88 Pacientes no Estado de São Paulo
Produto Nº PAC Preço Unit. (U$) Custo Mensal
(U$)
Aldurazyme 26 650,00 319.800,00
Fabrazyme 21 3.775,00 354.850,00
Elaprase 20 3.490,00 809.680,00
Naglazyme 14 1.519,00 349.370,00
Myozyme 7 600,00 182.400,00
TOTAL 88 2.016.100,00
Considerando a tabela acima, e, o facto de que o Estado de São Paulo tem
população superior a 41 milhões de pessoas (e no estudo foram apresentados apenas
88 pessoas, para ter um panorama pequeno e ao mesmo tempo, assustador dos
gastos), fica difícil entender as afirmações de que a judicialização da política
apresenta traços positivos de conquista e avanços do Poder Judiciário para combater
as ineficiências do Estado (apenas e tão somente).
Ora, digo isto porque, uma vez que o próprio Estado não suporta tamanhas
demandas, e, se o Judiciário extrapola sua legitimidade, interferindo na gestão de
políticas públicas, mas, sequer responsabilizando-se para tal, imagine-se se, por
exemplo, o Tribunal de Contas da União ou do Estado julga ilegais as contas
apresentadas pela União Federal, pelos Municípios ou pelos Estados, pelo facto de
terem extrapolado os limites constitucionais previstos para dispêndios com saúde.
P á g i n a | 32
Os gráficos que a seguir26
serão apresentados oriundam-se da Jornada
Nacional de Economia da Saúde em Brasília (2012), e demonstram a ocorrência de
uma maior responsabilização dos Municípios para com demandas judiciais.
GRÁFICO I27
Infelizmente, as Cortes Judiciais acabam por valer-se do já criticado ideal de
corresponsabilização e do facto de que os Municípios seriam os entes mais próximos
para garantir o atendimento dos pacientes, e, por isto, o risco à saúde diminuiria, ao
invés de ter-se de aguardar um desfecho processual por parte das Cortes Superiores
em face à União Federal ou aos Estados, o que discordo plenamente, pois as decisões
ocorrem em sede de liminar, e, portanto, tem de 24 horas a, no máximo, 72 horas
para serem aplicadas, e, há um sistema eletrônico de gestão de recursos disponível
entre os três entes federativos no Brasil, que facilita a aquisição destes
medicamentos.
Repita-se, ainda que efusivamente: - federalismo e cooperação não são
sinônimos de corresponsabilização.
26
WANG, Daniel; PIRES, Natália; OLIVEIRA, Vanessa; TERRAZAS, Fernanda. Os Impactos da
Judicialização da Saúde no orçamento Público da Saúde. << http://abresbrasil.org.br/trabalhos/impactos-da-
judicializacao-da-saude-no-orcamento-publico-o-caso-do-municipio-de-sao-paulo >> 27 Percentual de demandas de Judicialização da Política envolvendo 1276 Muniípios nos períodos de 1993 a
2009.
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
1993 1995 2000 2001 2004 2005 2005 2007 2009
P á g i n a | 33
GRÁFICO II28
GRÁFICO III29
28 Número de processos judiciais de distribuição de medicamentos respondidos por cada período. 29 Valor Gasto em Reais Pelos Municípios.
0
2.000
4.000
6.000
8.000
10.000
12.000
14.000
16.000
18.000
2007 2008 Até Junho de 2009
0,00
10.000.000,00
20.000.000,00
30.000.000,00
40.000.000,00
50.000.000,00
60.000.000,00
70.000.000,00
80.000.000,00
2007 2008 Até Junho de 2009
P á g i n a | 34
GRÁFICO IV30
Como se pode verificar nos gráficos supracitados, e, tendo em vista a
competência comum dos três entes da Federação (Constituição Brasileira no artigo
23, II), os Municípios vêm sofrendo demandas severamente prejudiciais.
Pergunta-se: - quem paga a conta desta intervenção do Judiciário? Em
princípio, apenas e tão somente o Poder Executivo, e, principalmente, o Poder
Executivo Municipal. E, como já enfatizamos severas vezes, é o Executivo o único
responsabilizado pelos tribunais fiscalizadores, na prestação de contas obrigatória
integrante da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Não obstante, a judicialização da saúde tem obrigado os Municípios a
deslocar seus recursos oriundos de outras áreas, para custear demandas judiciais, sob
a pena de multas vultosas e representações contra a o ente federativo, na pessoa de
seu governante/Chefe de Executivo.
A tabela abaixo31
demonstra exactamente estes gastos efectivados por meio
da judicialização da saúde no Município de São Paulo no ano de 2011, representando
mais de 10%, por exemplo, do montante utilizado para compra de materiais
30 Evolução dos gastos com medicamentos no Brasil, por meio de demandas judiciais. 31
WANG, Daniel; PIRES, Natália; OLIVEIRA, Vanessa; TERRAZAS, Fernanda. Os Impactos da
Judicialização da Saúde no orçamento Público da Saúde, p. 11. << http://abresbrasil.org.br/trabalhos/impactos-
da-judicializacao-da-saude-no-orcamento-publico-o-caso-do-municipio-de-sao-paulo >>
0,00
500.000.000,00
1.000.000.000,00
1.500.000.000,00
2.000.000.000,00
2.500.000.000,00
3.000.000.000,00
2002 2003 2004 2005 2006
Gastos com Medicamentos
P á g i n a | 35
hospitalares e odontológicos, que também, são indispensáveis ao bom funcionamento
dos sistemas de saúde no Município, e, devido às demandas judiciais crescentes,
acabam por sofrer cortes e deslocamentos de seus recursos, em prol do fornecimento
de medicamentos.
Tabela II
Total gasto com a judicialização para o ano de 2011 em São Paulo
Medicamentos comprados sem licitação - 2011 R$ 1.581.064,32
Medicamentos comprados com licitação – Atas
judiciais
R$ 7.132.180,08
Medicamentos comprados com licitação – Outras
Atas
R$ 92.977,58
Total gasto com judicialização em 2011 R$ 8.806.221,98
Se o Poder Judiciário não é responsabilizado pelos Tribunais Fiscalizadores,
e, os entes federativos são fiscalizados e obrigados a gerir de forma gritante os seus
recursos, transferindo de uma dotação para outra, valores antes destinados a
programas essenciais de saúde (enfraquecendo, com isto, a sua função de Estado
Social), em virtude de verem-se obrigados a atender as novas demandas de
judicialização que surgem, é evidente que não está havendo democracia consensual,
tampouco em favor de uma maioria, e, sim, está-se construindo uma ‘democracia’
processual, que confere ao Judiciário uma função praticamente prioritária de ‘gestão’
dos outros poderes, e, não apenas de fiscalização.
Se esta intervenção, para muitos, é benigna, pois representa a evolução do
sistema de magistrados para impedir os abusos e a inoperância do Estado, o facto é
que ela não ocorre de forma planeada, tampouco preventiva, tampouco estruturada
redistributivamente.
P á g i n a | 36
Ao contrário, os magistrados hoje se tornam, como já dissemos, os ‘Robins
da Floresta’, com a diferença de que estão a obrigar o estado a distribuir ouro a quem
o reclama, e, não pagam a conta ou sofrem qualquer responsabilização, quando o
Estado se esfalece.
VI. A Judicialização e a Necessidade de Revigoramento Federativo a Partir de
Sua Menor Célula: O Município
A descentralização política deu vida ao Município como ente federativo,
conforme já explanamos. Muito embora não possua representatividade central, o
Município, ainda que normativamente, tem resguardada a sua autonomia. Mas, na
prática, esta separação de poderes apenas maqueia uma transferência de
responsabilidades e obrigações financeiras para o ‘primo pobre’ de todas as unidades
federativas.
Com a judicialização da política não é diferente. Os gráficos apontados neste
texto demonstram esta ocorrência e o inflacionamento dos cofres públicos
municipais, sem que exista responsabilização de outros entes, tampouco, dos
próprios juízes, ao utilizarem critérios desmensurados para proferir suas sentenças.
Pode haver casos isolados de judicialização da política no campo da saúde,
onde houve verificação e estabelecimento de divisão de percentuais de
responsabilização entre os entes federados, mas é uma maioria. Mas, porque a ideia
do pacto federativo jurídico-político (inserindo o judiciário na esfera de
responsabilizações e averiguações, não apenas de relator de sentenças) parece-nos
tão utópica? Isto porque congressos, reuniões, encontros municipais ocorrem
costumeiramente para debater o tema, mas ainda sobrevive um distanciamento do
Judiciário para com o tema.
O Município é, sorrateiramente, uma entidade de nível inferior, e, é cediço
que, tendo recursos para prestar serviços, pode e deve fazê-lo. Mas, como poderá ter
recursos suficientes diante do crescimento descontrolado da judicialização da
política, sem um ajuste de programas e políticas assistenciais que deve,
imprescindivelmente, contar com a colaboração das três esferas, e, aval do
Judiciário?
P á g i n a | 37
As rendas lastreadas em arrecadações próprias são transformadas pelos
Municípios em programas de governo, dentro da linha orçamentária. Há,
actualmente, fundos de reserva criados pelos entes federativos e propostas de pactos
conjuntos (o que entendo ainda ser prejudicial aos Municípios) que começam a ser
discutidas e evidenciadas, mas que ainda são insuficientes diante de uma ingerência
dos magistrados em querer, permissa venia, fazer contas para determinar a co-
responsabilização de cada um dos entes federativos, mesmo diante do facto de eles
conhecerem a incapacidade e o despreparo dos Municípios para tal. Como já dito, o
periculum in mora torna-se escudo espartano diante de uma batalha diária e
absolutamente corrosiva para os cofres municipais.
É preciso criar primeiramente um mecanismo hábil para promover a
representação dos Municípios no Congresso Nacional, de modo que estes possam ser
valorizados como centros sócio-políticos-econômicos. Com esta valorização e,
somente por meio dela, é que as iniciativas locais podem ajustar-se à realidade das
demandas judiciais e, fazer crescer as parcerias na busca de soluções adequadas à
sobrevivência e à gerência dos cofres municipais.
O Município antecede, tanto quanto as famílias ou as tribos, o Estado32
.
Como célula menor, sua vitalização deve prescindir a sua coresponsabilização. Mas,
não foi isto que ocorreu na Constituição de 1988; e, espera-se, é isto que deve ocorrer
nos próximos anos e/ou décadas. A reforma política que ora se encena no Brasil,
parece estar a semear alguns frutos neste sentido, mas, serão colhidos a passos mais
lentos em relação ao descampamento das decisões judiciais que sobrecarregam os
Municípios de forma ululante.
VII. Judicialização e Activismo Judicial: Pequenos Exemplos da Intervenção do
Poder Judiciário
Algumas pequenas intervenções decorrentes de judicialização e activismo
judicial também merecem ser enunciadas neste texto. Para tanto, tomaremos
32 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Malheiros, p. 315, Op. cit: “Na literatura de
todos os povos modernos sempre retorna a idéia de que a comunidade é formação natural, é originária, precede o
Estado e não foi por este criada. Tem, em rigor, sua derradeira origem nas explicações de Aristóteles acerca do
desenvolvimento histórico dos Estados, que fazem o Estado resultar da união de muitas Povoações”.
P á g i n a | 38
emprestados alguns julgados ocorridos em países da Europa e Ásia, para ilustrar os
aspectos positivos e negativos da judicialização da política em casos concretos.
VII. 1. Activismo Judicial na Índia
A Índia possui um sistema federal, sendo formada por uma União entre
Estados, sendo hoje considerada a democracia mais populosa do mundo. Seu
parlamento é bicameral, e, o governo é o que pode ser chamado de ‘quase
federalista’. O Poder Judiciário indiano é similar ao brasileiro, abrangido por
Tribunais de Primeira Instância, Tribunais Superiores e a Suprema Corte, esta última,
sendo independente e com papel decisivo nos casos relacionados aos direitos
fundamentais, e, na interpretação da Constituição.
Ideologicamente, um dos actos praticados por esta Corte é o de “alimentar o
povo faminto e vestir as multidões despidas e dar a cada indiano todas as
oportunidades para que possa desenvolver-se de acordo com sua capacidade”.
(BALAKRISHNAN, 2008, p. 10).
Alguns exemplos céleres do activismo judicial na Índia trouxeram profundas
transformações sociais na efectivação dos direitos individuais. Em 1980, por
exemplo, ocorreu o caso Hussainara Khatoon vs. o Estado de Bihar, em que detentos
nos presídios pleitearam o direito à vida e à liberdade, tendo em vista que já haviam
extrapolado os prazos de cumprimentos das penas que lhe foram impostas, tendo a
Suprema Corte, reconhecido aos mesmos estes direitos e discutido inclusive, em seu
favor, montantes indenizatórios, ante a ausência legislativa para tal.
Em outro caso, agora Vishaka v. Estado de Rajasthan (1997), a Suprema
Corte interviu em casos de assédio sexual a mulheres no ambiente de trabalho e, ante
a ausência de normas nesse sentido, decidiu por instituir elementos indenizatórios a
não apenas o caso em questão, mas a todos os casos posteriores que tratassem da
matéria.
Por último, em mais uma notável decisão, a Suprema Corte interviu em casos
de prisão ilegal e tratamentos desumanos, e, concluiu que “dentro ou fora da prisão,
uma pessoa não pode ser privada de sua liberdade garantida pelo Direito, pela Justiça
P á g i n a | 39
e pela equidade. A armadura da liberdade fundamental também o contempla, apesar
de fisicamente encontrar-se preso33
”.
Em suma, ainda que necessite suprimir alguns formalismos processuais, a
Suprema Corte indiana pugna pelos direitos fundamentais que, se afrontados, são
invocados por meio de activismo judicial.
VII. 2. Activismo Judicial na União Europeia: Breves Histórias
Na Alemanha, os juízes estão, por determinação legal, activamente
envolvidos na investigação dos factos ocorridos. Desta forma, toda e qualquer acção
do Estado é susceptível à revisão judicial. Uma vez proferida uma queixa sobre
violação, por exemplo, de direitos humanos, a Corte intervém na legislação, nos
actos da administração pública e também nas decisões judiciais, como um todo.
As decisões da Corte acabam por não interferir na esfera do Executivo ou do
Legislativo, mas sim, para garantir que a Constituição tenha um caráter valorativo
evolutivo e eficiente, e, diante da omissão, por ventura, do Poder Legislativo, vale-se
do activismo judicial para garantia de tal.
A União Europeia, além da Alemanha, possui esta característica de
intervenção necessária em casos de omissão legislativa. Uma opinião interessante
sobre a actuação dos tribunais superiores, no caso, da Alemanha, Inglaterra e Itália, é
trazida por MARCOS FARO DE CASTRO. Para ele, “na Alemanha, de modo
semelhante, a atuação do Poder Judiciário revelou-se de extrema importância para a
determinação da dinâmica do processo político e de seus resultados em diversas
áreas substantivas, que vão desde a política externa (Ostpolitik.) até a política
universitária e a política de relações industriais (id.). A interação político-judicial foi
tão relevante nesses casos que Stone a caracteriza como parte de um processo de
"construção coordenada" de políticas públicas na França, entre 1981 e 1985, e na
Alemanha, entre 1969 e 1976. Na Inglaterra, a proibição administrativa, estabelecida
pelo governo de Margaret Thatcher, de formação de sindicatos no serviço público,
bem como a política de fechamento de escolas do sistema público de ensino
secundário, sem consulta prévia aos pais de alunos, sofreram a intervenção dos
33 SAHA, Arpita. Judicial Activism in India: a necessary evil. 2008.
<http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1156979>
P á g i n a | 40
tribunais (Sterett, 1994). Na Itália, a politização da magistratura judicial através de
reformas na estrutura da carreira e dos órgão de representação profissional desde o
final da década de 1960 (Guarnieri, 1991), determinou um aumento de intervenções
judiciais em setores como as relações industriais, a defesa de ‘interesses difusos’ e a
repressão ao terrorismo (e mais recentemente à corrupção)34
”.
Na França, o Conselho Constitucional Francês, que aparentemente não
possuía como função essencial a proteção dos direitos fundamentais proclamados no
Preâmbulo, mas sim a constrição do parlamento, depois de 1971, abandonando a
jurisprudência que havia produzido, elevou o controle de constitucionalidade à
proteção dos direitos fundamentais ao primeiro plano de suas funções, voltado
exclusivamente ao interesse dos cidadãos. (BON, 2001: 177)
Nota-se aí, que a judicialização da política preocupou-se em atender o caráter
majoritário, seja no combate à corrupção, no desenvolvimento industrial, no direito
de associativismo sindical, no direito à educação, no combate ao terrorismo, ou seja,
questões que ordenam a macrojustiça e a redistribuição, e, não o individualismo ou a
microjustiça. Neste caso, a judicialização é e sempre será como já cá foi dito, um
fenômeno positivo.
Ora, em sua trajetória secular, a democracia sempre se associou às noções de
cidadania e de participação de um povo. As decisões supracitadas mostram esta
predominância.
O Professor BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (2003), em contribuição
sobre o tema, destaca o problema causado pela judicialização da política em
Portugal, no que tange à violação do segredo de justiça e à prisão preventiva, que
segundo ele, “num contexto de politização da justiça, o problema do segredo de
justiça é o problema da violação do segredo de justiça. O que se está a passar neste
domínio é uma vergonha nacional. Não deixa de ser paradoxal que, num momento
político-judicial que se apresenta como de luta contra a tradicional impunidade dos
poderosos, quem quer que tenha poder para violar o segredo de justiça o possa fazer
impunemente. O segredo de justiça protege tanto os interesses da investigação
criminal como o bom nome e a privacidade dos arguidos. Sobretudo no domínio da
criminalidade complexa, o segredo de justiça é uma condição de eficácia da
34 CASTRO, Marcos Faro de. O STF e a Judicialização da Política. http://pt.scribd.com/doc/61824280
P á g i n a | 41
investigação e, por isso, o respeito pelos direitos dos arguidos não está na atenuação
do segredo. Está na aceleração do inquérito criminal por parte do Ministério Público
e, portanto, na dotação das condições para que tal seja possível. A vulnerabilidade do
segredo de justiça numa situação de stress institucional reside no facto de os que
estão interessados em destruir o bom nome dos arguidos têm a cumplicidade dos que
pretendem descredibilizar à investigação”.
A visão do renomado catedrático consiste no facto de que os juízes estão a se
tornar cúmplices da ação dos meios de comunicação e dos interesses oposicionistas,
de modo a contribuir e forma negativa para a violação de um dos requisitos
processuais que deveria assegurar a individualidade e a integridade de qualquer
acusado, até o desfecho do processo, mas que não ocorre, por meio da própria
judicialização da política causada pelo Judiciário. Eis aí, mais um fator negativo
desta fenomenologia.
Qual a justificativa para se desintegrar um direito fundamental de alguém que
está a ser investigado? Contribui esta ‘abertura de portas’ à mídia e à comunidade
para a garantia de democracia? Evidente que não! Ao contrário, maqueia
antecipadamente de forma negativa a identidade das pessoas envolvidas no processo,
associando-se posteriormente ao clamor popular e às intervenções da mídia, de modo
a causar a sensação de que um desfecho processual só será positivo se houver uma
expressa condenação dos envolvidos. Não há aí uma relação de consenso, e, sim,
uma violação aos direitos humanos.
VIII. Judicialização no Brasil Sob a Óptica Processual Intervencionista.
A malversação dos recursos públicos, a ineficácia legal, a omissão legal, os
problemas de ordem política, entre outros factores tipicamente comuns à sociedade,
acabam por levar o Judiciário ao activismo diante de toda e qualquer situação que
envolva direitos fundamentais.
Há resultados funcionais relevantes trazidos neste texto, que servem como
espelho à contribuição do activismo para uma solução outrora de competência
exclusiva do legislador.
P á g i n a | 42
Mas este mesmo activismo coloca o Judiciário em uma situação muitas vezes
de superioridade, caracterizada por uma actividade solipsista e discricionária do
Magistrado. É muito comum, nos livros de Direito Processual, falar-se em livre
arbítrio e discricionariedade no exercício da jurisdição quando, atualmente, com as
conquistas históricas de direitos fundamentais incorporadas ao processo, como
instrumentalizador e legitimador da Jurisdição, a atividade jurisdicional não é mais
um comportamento pessoal e idiossincrásico do juiz, mas uma estrutura
procedimentalizadora de atos jurídicos seqüenciais a que se obriga o órgão
jurisdicional pelo controle que lhe impõe a norma processual, legitimando-o ao
processo. Portanto, não há para o órgão jurisdicional qualquer folga de conduta
subjetiva ou flexibilidade de vontade, pelo arbítrio ou discricionariedade, no
exercício da função jurisdicional, porque, a existirem tais hipóteses, quebrar-seia a
garantia da simétrica paridade dos sujeitos do processo (LEAL, Rosemiro, 2008, p.
41).
Poder-se-a dizer que o exercício da cidadania, no caso da efectivação de
assistência à saúde, por exemplo, se concretiza pela existência da demanda
processual e que basta ao Juiz, ao verificar a violação ao direito fundamental
explicitado, determinar o cumprimento prestacional da saúde. Mas o magistrado “é
apenas mais um dos interlocutores, aquele que, por função, mediará, através das
regras construídas por uma legislação processualizada, as pretensões das partes, tudo
de forma a visar, sempre, o esclarecimento e pacificação pela razão. A função
jurisdicional, portanto, é a que responde pelo dever de garantir a vigência da
instituição do Processo” (LEAL, Rosemiro, 2005, p.42). Quando ele extrapola, no
caso da judicialização da saúde, a função jurisdicional, e, não mensura nem
estabelece responsabilidade solidárias, e, tampouco permite a repartição percentual
das competências em consonância à legislação, crucificando unitariamente o
Município, acaba por desprestigiar a própria tripartição federativa, que, como cá já
dissemos, existe apenas em hipótese factual.
Ainda no âmbito da discussão, retoma-se aqui a opinião de Cappelleti de que
a judicialização é “uma condição de independências dos juízes, visto que não estão
pressionados pela maioria”, para fazer-lhe uma crítica. Trata-se de uma afirmação
absolutamente equívoca, visto que em muitos casos o apelo popular e a pressão da
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mídia contribuem, espontaneamente, para a judicialização da política e muitas vezes,
de forma equivocada e desobedecendo a ritos processuais, como é o caso ocorrido
(entre inúmeras outras) da decisão do caso ‘José Dirceu’ no Brasil, cuja motivação
do Tribunal Superior pela mídia fê-lo constituir (à época) vícios decorrentes em todo
o processo de cassação (conforme relatório do Ministro CARLOS BRITTO35
, que
posteriormente, concluiu ter ocorrido desrespeito por parte do STF ao devido
processo legal). Entre os quais: “I) aprovação pelo Conselho de Ética de parecer
normativo que deu pela “impossibilidade de retirada, pelo representante, da
respectiva representação e de encerramento do processo instaurado”, pois o
demandante entendia que essa aprovação feria normas regimentais e constitucionais
(§ 2º do art. 55: limitava a autonomia dos partidos políticos para formular
representações, ou delas desistir); II) a prorrogação do prazo para conclusão do
processo de cassação, que, para o impetrante, seria peremptório (de 90 dias,
consoante o disposto na Resolução 25/2001) e ainda que lícita sua prorrogação,
careceria de fundamentação quanto à sua necessidade; III) defeito de forma no
processo de cassação, a saber, inversão da oitiva das testemunhas (as arroladas pela
defesa foram ouvidas antes da testemunha da acusação, a Srª Kátia Rabelo, ouvida no
dia 22.09.05), o que ofendia garantias constitucionais do contraditório e da ampla
defesa; IV) uso de provas obtidas por meio ilícitos (informações bancárias sigilosas
citadas na inquirição de testemunhas”.
Outra decisão que também ganhou o cunho da pressão popular, embora
pudesse ser contestada constitucionalmente embasada nos princípios da isonomia, foi
a da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 2.649/DF, Rel. Min. CARMEN
LÚCIA, que julgou improcedente um pedido de declaração de inconstitucionalidade
da Lei 8999/94, que concedia passe livre aos portadores de deficiência nos
transportes coletivos.
A autora da ação, como bem destaca Luis Roberto Barroso em seus estudos,
“sustentou que a Lei afrontava os princípios da isonomia e da livre iniciativa, bem
como o direito de propriedade”.
O apelo popular chamou a atenção das emissoras televisivas e a atuação do
STF para este caso ganhou condões nacionais de um ‘reality-show’. A solução
35 MS-MC nº 25647/8 DF
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caseira encontrada, para a qual concordo plenamente, foi a de invocar o princípio da
“solidariedade”, inserido na CF/88, em seu artigo 3º, e, ainda, que por muito mais
que a então autora aduzisse que “esta isenção provocaria um desequilíbrio na
equação econômico-financeira do contrato”, esta, segundo a Ministra, “poderia ser
sanada por ocasião da negociação da tarifa com o Poder Concedente”. In casu,
tivemos uma decisão motivada pela pressão popular, mas que encontrou uma solução
interessante e com resquícios de equilíbrio econômico dentro da judicialização da
política.
Outras decisões podem ser rapidamente citadas, entre as quais, as que
envolveram a Lei de Biossegurança (ADI n.3.510), a reforma partidária (ADI n.
1.351 e n. 1.354), à verticalização das candidaturas para as eleições de 2006 (ADI n.
3.685) e a batalha judicial acerca das contribuições previdenciárias dos inativos (ADI
n. 3.105)36
, situações as quais a capacidade de intervenção, no caso, do Supremo
Tribunal Federal, foi potencializada em virtude do controle concentrado de
constitucionalidade.
A título de informação complementar, as estatísticas dos julgamentos de
Ações Diretas de Inconstitucionalidade, nos anos de 1998 a 2008, totalizaram 978
demandas, das quais apenas 16,57% foram julgadas improcedentes.
IX. A Judicialização da Política sob a Óptica Contra-Majoritária: O Supremo
Tribunal Federal e as Decisões nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade
Conhecido como guardão da Constituição, o Supremo tribunal Federal no
Brasil é o órgão responsável pelo controle dos abusos da maioria parlamentar na
edição de Leis que acabam por proteger minorias.
Actuando como uma espécie de terceira casa legislativa, as minorias
parlamentares objectivavam a promulgação de Leis voltadas a interesses particulares,
mas tiveram na actuação dos partidos políticos nas Ações Directas de
Inconstitucionalidade a represália capaz de estimular a incorporação, por parte do
STF, de elementos capazes de invadir e até mesmo controlar o cerne decisório então
36 VERISSIMO, Marcos Paulo. A constituição de 1988, vinte anos depois: suprema corte e ativismo judicial “à
brasileira”. Revista Direito GV, São Paulo, v. 4, n. 2, jul/dez 2008. p. 412-413.
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cabível aos poderes Executivo e Legislativo, não apenas nas políticas públicas e nos
direitos sociais – aqui enfatizados como temática central por meio da judicialização
da saúde para atendimento a um direito fundamental, mas sim, a exemplo das
supracitadas ADI n. 1.351, 1.354 e 3.685, na seara dos conflitos políticos e
partidários.
Algumas decisões merecem enfoque, seja pela intervenção directa do STF
como reformulador, seja pela sua negação superficial em contrariar o constituinte
reformador, entre as quais podemos convencionar:
– ADI n. 839-1 (1993) – A alegada inconstitucionalidade proposta pelo
Partido Democrático Trabalhista baseava-se no facto de que a então promulgada Lei
n. 8624/92 assegurava uma “exclusividade aos partidos políticos do direito a
programas gratuitos na rádio e na televisão. Além disso, a divisão do tempo
destinado a cada opção não poderia segundo o autor ser igualitária, mas proporcional
à adesão dos partidos a cada uma das frentes” (SILVA: 2007). O voto vencedor do
Ministro PAULO BROSSARD, foi favorável à causa defendida pelo PDT,
entendendo o mesmo que: “até para o funcionamento normal da votação
plebiscitária, não se poderia adotar um sistema que supusesse a exclusividade dos
partidos, por que eles não teriam condições reais para conduzir o debate, porque
chegaria um partido, num dia, com um representante seu, defendendo uma tese e
outro no dia seguinte. Creio que o legislador muito realista e sábio ao procurar um
expediente, uma fórmula transitória, evidentemente, que exista até o dia vinte e um
de abril, e que conduza e oriente o debate, a discussão, o esclarecimento, a
propaganda. Isso quer dizer que os partidos ficam em férias nesse período? Eu acho
que não, até por motivo de interesse. Se uma frente tem elementos partidários, ou um
partido organizado que está disposto a dar a sua colaboração para defender a tese que
ela esposa, seria pouco inteligente, e até contrário aos interesses mais tangíveis, que
recusasse essa participação”.
– ADI n. 1805-2 (1998) – Ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, Partido
Democrático Trabalhista, Partido Comunista do Brasil e Partido Liberal, insurgiu-se
em face à Emenda Constitucional n. 16/97, que alterou o texto do artigo 14,
parágrafo 5º, autorizando a reeleição dos titulares ao cargo de Chefe do Executivo, e,
os artigos 75 e 76 da Lei 9.504/97 e as resoluções subsequentes do Tribunal Superior
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Eleitoral37
. A propositura era, entre outros aspectos, de que os candidatos
concorrentes à reeleição deveriam renunciar aos seus mandatos em até seis meses
antes da realização do pleito eleitoral.
O voto dos Ministros vencedores seguiu a orientação de que “se o Presidente
e governadores continuam administrando a República e os Estados, durante a
campanha, porque não obrigados a se afastar do cargo, certo é que as medidas de
segurança próprias da investidura – incluídas residência e transporte oficial – não é
possível entender que lhes foram subtraídas durante o período da campanha38
”.
Em sede de liminar, o pedido também foi indeferido, entendendo o Ministro
NÉRI DA SILVEIRA que não caberia a Corte Superior introduzir exigência que o
constituinte reformador não tencionou em fazê-la. Se assim o fosse, segundo o
Ministro, o STF estaria a actuar na condição de legislador negativo39
.
– ADI n. 1465 (2005) – Ajuizada pelo Partido da Frente Liberal objectivando
a impugnação do artigo 22 da Lei n. 9.096/95, que tornava sem efeito as filiações
partidárias quando verificada a vinculação de um candidato a dois partidos políticos.
A ideia defendida pelo partido de que o candidato duplamente filiado ficaria
condicionado a desfiliação dupla, sendo, portanto, inelegível. Em resposta, o
Supremo Tribunal Federal indeferiu o pedido de forma unânime, tendo na época se
pronunciado o Ministro JOAQUIM BARBOSA no sentido de que: “a autonomia
partidária não se estende a ponto de atingir a autonomia de outro partido, cabendo à
lei regular as relações entre dois ou mais deles. A nulidade que impõe o art. 22 da Lei
9.096/1995 é conseqüência da vedação da dupla filiação e, por conseqüência, do
princípio da fidelidade partidária. Filiação partidária é pressuposto de elegibilidade,
não cabendo afirmar que a lei impugnada cria nova forma de inelegibilidade”.
37
Resoluções TSE n. 19.952, 19.954 e 19.955. 38
Cf. voto do Ministro Néri da Silveira, p. 2372. 39
Cf. Cit. p. 2368: “Se o constituinte derivado deveria ter incluído a cláusula da exigência de
afastamento definitivo do titular, seis meses antes do pleito, tal como a matéria foi efetivamente
discutida no Congresso Nacional, ou não, resultou isso de decisão política que não pode ser, aqui,
confrontada, a ponto de alterar-se o conteúdo do preceito constitucional, por via exegese da norma do
art. 14, § 5º, em vigor da Lei Magna, a fim de, nele introduzir exigência que o constituinte reformador
não quis fazê-la. Se é difícil admitir, como sustentam os autores, que para concorrer ao mesmo cargo
não há necessidade de renúncia, fazendo-se esta necessária quando o titular pretenda disputar cargo
diverso (Constituição art.14, §§ 5º e 6º), certo é que não cabe corrigir tal disposição em juízo de
controle de constitucionalidade, onde a Corte desempenha função de legislador negativo e não de
legislador positivo, para exigir, restringindo direitos, o que não foi estabelecido como condição pelo
legislador constituinte, o qual optou, é exato, pela dispensa de cláusula do afastamento”.
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Note-se que a questão enfocada nas três decisões cá enunciadas passeia pela
possibilidade de o STF, enquanto Corte superior, se entender por necessário actuar
como reformulador, o fará como já dito, incorporando elementos capazes de invadir
e até mesmo controlar o cerne decisório então cabível aos poderes Executivo e
Legislativo, de modo que, em determinados casos, a sua intervenção é sim, positiva.
X. A Judicialização da Política diante do Panorama Democrático:
Apontamentos Complementares.
Por último, com relação à atuação das Cortes Superiores, poder-se-á
perguntar: - onde estaria a legitimidade de um Tribunal Superior, por exemplo, para
invalidar uma decisão do Presidente da República, sufragado este por milhões de
votos, ou até mesmo de um Congresso Parlamentar, eleito por vontade popular, em
um caso fictício de impedimento, por exemplo, do exercício de mandato aos
muçulmanos, e, não aos católicos?
A justificativa foi muito bem defendida por LUIS ROBERTO BARROSO
(2010: 11), no sentido de que “o Estado constitucional democrático, como o nome
sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem.
Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O
Estado de direito como expressão da razão. Já democracia signfica soberania
popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia
e constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da
maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes. Por essa razão, a
Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é o de estabelecer as
regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da
maioria e a alternância no poder. Mas a democracia não se resume ao princípio
majoritário. Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o
primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em
maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores
e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem
mais votos. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu
papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais,
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funcionando como um forum de princípios – não de política – e de razão pública –
não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas”.
Não se discorda desta arguição, e, já se discorreu sobre os pontos positivos da
judicialização da política dentro deste texto. Mas, como bem também ressalvou o
autor no mesmo trabalho supracitado, corroborando com o posicionamento aqui
também defendido, há limites econômicos, de legitimidade e até mesmo de
competência, para que o Judiciário atue, de modo que o mesmo jamais poderá
suprimir qualquer política, tampouco o governo de uma maioria, tampouco o papel
do Legislativo40
.
Pensar o Direito hoje, de forma política, é entender que “a sua criação é um
produto da vontade da maioria, que se manifesta na Constituição e nas Leis” (Ibidem,
p. 13).
Mas interpreta-lo de forma política, pode colocar em risco a democracia. Se
interpretar a inconstitucionalidade de uma lei ou vier a sanar uma suposta omissão
normativa, o Judiciário estará, sim, agindo em favor da democracia.
Ainda no que tange ao agir em favor da democracia e quando isto ocorre,
tomemos como exemplo o facto de que “o banqueiro que doou para o partido do
governo não pode ter um regime jurídico diferente do que não doou. A liberdade de
expressão de quem pensa de acordo com a maioria não pode ser protegida de modo
mais intenso do que a de quem esteja com a minoria. O Ministro do Tribunal
Superior, nomeado pelo Presidente Y, não pode ter a atitude a priori de nada decidir
contra o interesse de quem o investiu no cargo41
”. Ou seja, há um dever de motivação
implícito no Poder Judiciário, para fazer zelar a igualdade, a liberdade, o bem-estar.
E, eles não podem distanciar-se disto. Até aí, estará cumprindo seu dever para com a
democracia.
40
Ibidem, p. 12, cit. : “Impõe-se, todavia, uma observação final. A importância da Constituição – e do Judiciário
como seu intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o governo da maioria, nem o papel do
Legislativo. A Constituição não pode ser ubíqua. Observados os valores e fins constitucionais, cabe à lei, votada
pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as diferentes visões alternativas que
caracterizam as sociedades pluralistas. Por essa razão, o STF deve ser deferente para com as deliberações do
Congresso. Com exceção do que seja essencial para preservar a democracia e os direitos fundamentais, em
relação a tudo mais os protagonistas da vida política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não podem
presumir demais de si próprios – como ninguém deve, aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas
preferências, sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas
decisões, com base na Constituição”. 41 Scott M. Noveck, Is judicial review compatible with democracy?, Cardozo Public Law, Policy & Ethics 6:401,
2008, p. 420.
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Mas, repita-se: há dois mundos distintos. O mundo do dever funcional do
Poder Judiciário em garantir a igualdade, a liberdade, o bem-estar, a sanção de uma
omissão legislativa, ou, a verificação de inconstitucionalidade de uma norma; e, o
‘não dever’ (impulsionado por uma actuação política) de decretar afazeres ao Estado
no que tange à efectivação de políticas públicas para casos individuais, colocando em
risco, como já cá perseguido, todo um organograma funcional, econômico, bem
como, a própria sobrevivência do Estado Social, que se verá entupido de demandas
as quais, muitas vezes, não poderá cumprir, e, se as fizer, correrá o risco de ser
punido pela famosa manobra do “tira um pouco daqui” e “coloca ali”, sacrificando
programas específicos de saúde em prol do atendimento de demandas
medicamentais. E, como todo antibiótico poderoso, o uso do Poder Judiciário deve
ser “mensurado e controlado, sob o risco de, em dose excessiva, morrer-se da cura”
(Ibidem, p. 19).
XI. Conclusão
A judicialização da política não é um fenômeno antidemocrático quando o
judiciário pode valer-se da premissa de invocar sua atuação com o propósito de
verificar a inconstitucionalidade de uma lei, a omissão de uma norma vigente, e, até
mesmo quando se atira mais ao longe para assegurar direitos coletivos em prol de
uma maioria, direitos que garantam, por exemplo, a liberdade, a igualdade, a
religiosidade, o bem-estar. Mas, somente para estes casos.
Porém, no que tange ao direito à saúde, muito embora se trate de um direito
fundamental, o extrapolamento dos julgados e a ordenação, do Judiciário, ao
cumprimento econômico do Executivo destes direitos em prol de um único indivíduo
postulador de demanda (que é uma forma de Judicialização da Política), colocará em
risco, como já perseguido neste texto, todo um organograma funcional, econômico,
bem como, a própria sobrevivência do Estado Social, que acabará entupido de
demandas as quais, muitas vezes, não poderá cumprir.
É perigoso aceitar que “o Poder Judiciário, para não violar a deliberação
pública de uma comunidade política que atua autonomamente orientada pelos valores
que compartilha, deva actuar como regente republicano da cidadania ou abdique de
P á g i n a | 50
garantir direitos constitucionalmente assegurados. Dar uma resposta positiva a essa
pergunta significa, na verdade, autorizar os tribunais, especialmente as cortes
supremas, a atuar como profetas ou deuses do direito, consolidando aquilo que já é
designado como ‘teologia constitucional’ e imunizando a atividade jurisprudencial
perante a crítica a qual originariamente deveria estar sujeita (...), pois quando a
justiça ascende, ela própria, à condição de mais alta instância moral da sociedade,
passa a escapar de qualquer mecanismo de controle social42
”.
Ao afrontar o princípio da própria reserva de poderes para distribuir
medicamentos em casos isolados, o Judiciário quebra o elo consensual da
democracia e do equilíbrio redistributivo majoritário pretendido pelo Estado em prol
da coletividade. Não bastasse o peso econômico contagioso à sobrevivência estatal,
fere também a sua própria legitimidade política, viola ao princípio da igualdade,
desestabiliza o condão democrático, e, pode, se continuar a distribuir casuisticamente
bens públicos em favor de quem tem cultura e agilidade para requerer aos órgãos
judiciários, contribuir para a perdição dos direitos humanos.
A legitimidade decisória é e será sempre construída a partir da abertura de um
espaço discursivo a todos os envolvidos, dentro de uma estrutura procedimental
constitucionalizada, livre da arbitrariedade, discricionariedade, de valores morais e
pessoais, respeitando as bases do Estado Democrático de Direito.
42 CITTADINO, Gisele. Poder judiciário, ativismo judicial e democracia. Revista da Faculdade de Direito de
Campos, Campos dos Goitacazes, ano II, n. 2 e ano III, n. 3, 2001-2002. p. 141.
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