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1 “Pra que somar se a gente pode dividir?” VINÍCIUS DE MORAES

A Retórica da Igreja Católica: O uso do discurso político no papado de João Paulo II

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1

“Pra que somar se a gente pode dividir?”

VINÍCIUS DE MORAES

2

DEDICATÓRIA

Para a vovó Sílvia.

3

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao professor Fernando Torres Londoño, a pessoa que

acreditou em mim nos tempos de graduação e sem o qual nunca teria conseguido

chegar onde estou hoje.

Agradeço também ao Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, orientador e suporte

para a redação desta dissertação, sem o qual certamente nunca conseguiria tê-la

produzida.

Agradeço também aos demais professores do programa de pós-graduação pela

contribuição, seja ela formal no cumprimento dos créditos, ou informal em

conversas pelos corredores da Metodista.

Agradeço também a força e amizade dos colegas do programa, em especial aos

outros dois ―patetas‖: Altair Tio Leôncio e Jefferson Mineiro Uai Sô! Também ao

Max e o Alex, ao Cláudio, à Helena, à Márcia e muitos outros que não caberiam

aqui.

4

RESUMO

LOPES JUNIOR, Rubens. A Retórica da Igreja Católica: O uso do discurso

político no papado de João Paulo II. UMESP, São Bernardo do Campo, 2011.

A retórica sempre esteve presente nas civilizações. Desde a Grécia Antiga até

os dias de hoje ela é usada e estudada. Na religião, é uma formidável fonte de

expressão. Foi através da retórica que o Papa João Paulo II conseguiu ganhar

notoriedade e se envolver em casos muito além da religião no século XX. Ele foi

considerado um papa que se utilizou do político e consolidou um novo status para

a Igreja Católica. Assim, através da análise retórica da mediação da Santa Sé no

Canal de Beagle em 1979 e da análise retórica das ações diplomáticas do Vaticano

contra a invasão do Iraque em 2003, este trabalho mostra como se constrói a

retórica religiosa, além das conseqüências que isso acarreta não só para a Igreja,

como também para o mundo.

Palavras-chaves: Retórica; Canal de Beagle; Iraque; João Paulo II

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 07

CAPÍTULO I – Os efeitos do discurso político na retórica religiosa católica

Introdução .............................................................................................. 13

1.1 A retórica religiosa católica e a construção do discurso político da Igreja

Católica ..................................................................................................... 14

1.1.1 - O que é retórica?......................................................................... 14

1.1.2 - O discurso político ..................................................................... 24

1.2 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico ............... 29

1.2.1 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico ......... 29

1.2.2 – Secularização, competitividade e pluralismo ............................ 37

Conclusão ................................................................................................. 46

CAPÍTULO II - A Política e a Santa Sé no Papado de João Paulo II

Introdução ................................................................................................. 49

2.1 – O viés político do Vaticano ............................................................. 50

2.1.1 - A estrutura interna do Vaticano ................................................. 50

2.1.2 - A representatividade papal e a diplomacia da Santa Sé ............. 60

2.2 – O Papado de João Paulo II e a Igreja no Cenário Mundial ............. 66

2.2.1 – A gênese e a formação do orador: João Paulo II ....................... 66

2.2.1 – O papado e a queda do comunismo ........................................... 75

Conclusão .............................................................................................. 84

CAPÍTULO III – A retórica da Igreja Católica no papado de João Paulo

II durante a mediação no canal de Beagle (1979) e invasão do Iraque

(2003)

Introdução ................................................................................................. 87

3.1 - O Caso do Canal de Beagle .............................................................. 88

3.1.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica no Canal de Beagle ...... 88

6

3.1.2 - O Problema Retórico no Canal de Beagle.................................. 90

3.1.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico no Canal de Beagle ..... 92

3.1.4 - As Contingências do Discurso no Canal de Beagle ................ .103

3.1.5 - A Interpretação do ato retórico no Canal de Beagle ................ 105

3.1.6 - O julgamento do ato retórico no Canal de Beagle ................... 107

3.2 – A invasão do Iraque ....................................................................... 109

3.2.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica na invasão do Iraque .. 109

3.2.2 - O Problema Retórico na invasão do Iraque: Ações Diplomáticas

do Vaticano no Conflito Entre os Estados Unidos e o Iraque ............. 113

3.2.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico na invasão do Iraque

(2003) ................................................................................................... 114

3.2.4 - As Contingências do Discurso na invasão do Iraque (2003) ... 124

3.2.5 - A Interpretação do ato retórico na invasão do Iraque .............. 125

3.2.6 - O julgamento do ato retórico na invasão do Iraque (2003) ..... 134

Conclusão ............................................................................................. 135

CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................137

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................144

7

INTRODUÇÃO

Há muito tempo atrás, na Grécia antiga, a Retórica já estava presente entre

filósofos, poetas e oradores. A análise retórica é um método de análise do discurso

embasada nos preceitos da filosofia e da retórica antiga. Quem quer conversar pela

retórica, se utiliza do discurso para tal. Há muito tempo a humanidade se preocupa

acerca do efeito das palavras, o que causou o desenvolvimento da arte do discurso

para interferir sobre as suas crenças e atitudes das pessoas.

No início, a função da Análise Retórica era avaliar peças de oratória de

pregadores religiosos e políticos. Nos dias de hoje, a Análise Retórica permite

identificar elementos de persuasão presentes em qualquer tipo de comunicação,

inclusive na religiosa. Um discurso necessariamente está atrelado as condições

sociais em que é produzido. Ele é o reflexo de uma época. Assim, esta dissertação

busca mostrar os efeitos de um contexto secular e moderno na retórica católica no

papado de João Paulo II. Mas por que João Paulo II?

É inegável que João Paulo II tornou-se uma das personagens mais conhecidas

da segunda metade do século XX. Este Papa buscou um novo papel para a Igreja,

principalmente nos anos 80, como conseqüência do seu engajamento com causas

sociais através de construções retóricas. Em seus vinte e cinco anos de papado,

inúmeros fatos poderiam ser estudados acerca da construção retórica da Igreja

Católica. Ele foi considerado por muitas pessoas como o ―Papa da mídia‖. Sua figura

é exposta em todo o mundo e não é somente relacionada com as questões católicas,

mas muitas vezes com questões políticas. Sendo assim, como funciona a prática

diplomática e discursiva da Igreja Católica através da retórica? Para tal, foram

escolhidas duas práticas retóricas distintas em dois momentos diferentes deste papado

(1978-2005): a Mediação de Beagle (1979) e a invasão do Iraque (2003).

Assim que assumiu primazia romana, a Igreja sabia da importância da América

Latina, tanto para ela quanto para os Estados Unidos e União Soviética, porque o

―fantasma‖ do comunismo rondava a América Latina. Metade dos Católicos do

8

mundo estão na América Latina, é uma região de extrema relevância para a Igreja e,

neste mesmo território, ela daria outro passo em direção à visibilidade mundial

através de uma construção retórica: o papel de mediação. Já aparece aqui um fato

interessante, pois a mediação se dá entre dois países e não entre duas instituições

religiosas. Chile e Argentina disputavam o controle do Canal de Beagle e quase

guerrearam. Tanto o governo chileno quanto o governo argentino encabeçados por

ditadores militares, pediram formalmente ao Vaticano a mediação a fim de guiá-los

em uma busca pacífica desta controvérsia.

No dia 11 de setembro de 2001 o mundo foi surpreendido com aviões

comerciais sendo usados como armas no maior ataque terrorista da história dos

Estados Unidos. Estima-se que morreram em torno de 3 mil pessoas decorrentes

destes ataques. De setembro de 2001 até março 2003, João Paulo II entrou numa

―batalha‖ diplomática entre os Estados Unidos e o Iraque tentando evitar que os

norte-americanos invadissem o país do Oriente Médio, fato que acabou por ocorrer

em Março de 2003.

Nos dois casos escolhidos, João Paulo II se utiliza da retórica para intervir. Seu

discurso é produzido à luz da doutrina católica. Entretanto, o mundo encontra em um

período onde a referencia religiosa não mais condiciona a vida das pessoas. Existem

diversas expressões religiosas além da católica. Se um discurso é reflexo da condição

em que é produzido e a doutrina católica se encontra em um período de

questionamento e incerteza, como João Paulo II pode tornar-se uma das mais

conhecidas figuras do século XX? Certamente isso só poder ser operado através do

político.

Venho de um curso de graduação em Relações Internacionais. Neste meio, são

escassos os estudos que buscam analisar a Igreja como um fator político que atua no

cenário global. É comum entre especialistas em relações internacionais a temática da

religião figurar somente quando o assunto é o terrorismo ligado ao islamismo. Penso

que a neste meio a religião vai muito além deste fato.

Nas considerações dos atores internacionais na modernidade, tem se

negligenciado o papel da Igreja. A separação entre Igreja e Estado fez com que não se

9

enxergasse ela como um ator no jogo político internacional, papel que ficou somente

com os Estados, no campo das relações internacionais. O que vemos é que a religião

se modificou, mas não sumiu nos dias de hoje. Porém, penso que tal proposta de se

analisar a Igreja Católica focando especificamente como se constrói e como funciona

seu discurso em situações distintas seria de grande contribuição interdisciplinar:

mostrar que a Igreja, com suas bases teológicas, consegue se posicionar

diplomaticamente no cenário global em praticamente qualquer tipo de questão, sem

necessariamente reforçar sua característica episcopal nem de se distanciar dela. Isto

só é possível a partir de uma sólida construção retórica. Se não houvesse habilidade

no uso da palavra, não haveria como se proceder tais construções.

Atualmente, vasculhando o banco de teses da CAPES, encontramos diversas

teses e dissertações com a temática da retórica em si. Diversas teses e dissertações

acerca do papel da Igreja, modernidade e secularização, e muitas outras sobre João

Paulo II. Mas há pouca incidência de teses e dissertações que englobem a análise

retórica acerca de fatos do papado de João Paulo II. Isto indica que esta dissertação

pode ser de grande importância para a análise da retórica que envolve fatores

políticos e religiosos.

A grande maioria dos termos que são utilizados nesta pesquisa são oriundos de

renomados autores sobre retórica. Tereza Halliday é uma renomada autora, poeta,

ficcionista, jornalista, tradutora, professora universitária e ensaísta. Ela oferece um

rico método de análise de discurso em seu livro de 1988 intitulado Atos Retóricos,

mensagens estratégicas de políticos e igrejas. Este método foi o adotado nesta

dissertação ao se analisar os discursos de João Paulo II.

Outro grande pensador sobre retórica é Chaim Perelman. Ele possui diversas

obras, como Retóricas (2004) e Tratado de Argumentação: A nova retórica (2005),

sobre o tema e mostra a dimensão da retórica nos dias de hoje. A retórica ganhou uma

conotação negativa ao longo de sua existência, pois a persuasão é seu objetivo.

Perelman acaba com o conotação pejorativa resgatando a função da retórica nas suas

origens em Aristóteles.

10

Oliver Reboul, um pensador francês, segue a linha de argumentação de

Perelman em seu livro chamado Introdução à retórica (2004). A principal

contribuição deste autor está em uma exposição sobre as figuras de linguagem que

são características da retórica. Um discurso pode ser persuasivo ou não. Para que se

caracterize como tal, são necessárias algumas figuras específicas desse tipo de

linguagem.

Se a retórica se utiliza do discurso para persuadir, discurso também é um termo

que aparece constantemente nesta pesquisa. Se a expressão da linguagem através da

retórica e do discurso é um reflexo do contexto social, o livro Discurso e mudança

social (2001) de Norman Fairclough oferece uma grande contribuição da natureza do

discurso. Como o papado de João Paulo II foi característico pelo uso do político, o

discurso político também merece destaque. Para tal, o livro Discurso Político (2006)

de Patrick Charaudeau oferece uma rica análise do funcionamento e criação do

discurso político. Assim, termos da natureza da retórica e discurso político são

frequentemente encontrados neste texto.

Só é possível fazer análise retórica de um texto se você tem acesso a este texto.

A documentação utilizada para se concluir a proposta deste trabalho provém de

fontes diferentes. Sobre o Canal de Beagle, João Paulo II proferiu discursos e

alocuções em audiências públicas no Vaticano. Estes discursos foram encontrados, a

maioria em sua íntegra no site do Vaticano. Como se tratava de uma mediação a nível

internacional, a versão definitiva da mediação e do tratado de paz encontra-se

disponível na documentação da ONU, acessível também via internet. Esta ferramenta

moderna de comunicação facilita a vida do pesquisador em casos como este.

Em relação a invasão no Iraque, a prática diplomática por parte da Santa Sé foi

coberta pelo jornal do Vaticano, chamado de L’Osservatore Romano (Observatório

Romano). Ele possui edições quinzenais em diversas línguas e, dentre elas, o

português. Como um panorama cronológico dos eventos pré-invasão, foi possível

localizar nas edições deste jornal os discursos tanto de João Paulo II, como também

dos cardeais que foram figuras presentes nestas práticas diplomáticas.

11

Essa dissertação está distribuída da seguinte maneira: no primeiro capítulo,

tratamos do discurso político na retórica religiosa, para tal explanamos o que é

retórica, discurso, e discurso político. Como a retórica é religiosa, é carregada de

simbolismos. Neste mesmo capítulo é apresentado um panorama da retórica católica

à luz da construção do simbólico que a envolve. Como a retórica é reflexo da

realidade social, também é imprescindível e encontra-se presente no primeiro capítulo

uma análise sobre as condições sociais da atualidade: secularização, pluralismo,

desencantamento e modernidade.

No segundo capítulo é dada devida atenção a figura de João Paulo II, além de

ser mostrado como funciona a política interna do Vaticano. O Vaticano é uma

burocracia. A simples condição para existência de burocracia são as relações políticas

entre os indivíduos que fazem parte dela. Mesmo sendo uma instituição religiosa, isso

é presente. Assim, no segundo capítulo há um panorama desta condição. Assim, por

ser o líder desta instituição, João Paulo II ganha destaque. Neste mesmo capítulo

existe um breve bosquejo da sua história pessoal, até os tempos de Papa. Como foi

um longo papado e com grande visibilidade, o político não poderia ficar de fora.

Elegemos como o fator principal desta condição política a queda do comunismo no

Leste Europeu. Assim, neste capítulo existe uma reflexão sobre este fator marcante

no mundo no final do século XX.

O terceiro capítulo desta dissertação foca especificamente a análise retórica.

Foi utilizado o método proposto por Tereza Halliday (Atos retóricos, mensagens

estratégicas de políticos e igrejas, 1988) o qual fornece uma sólida base de análise

retórica, dividindo a análise em seis partes diferentes, onde são considerados os

antecedentes retóricos, as limitações dos discursos, a anatomia do discurso, sua

interpretação e até o seu julgamento. Consequentemente, este capítulo oferece uma

grande contribuição para além do discurso em si, pois foram exploradas as questões

que envolvem o discurso: questões históricas e conceituais, pois está diretamente

ligada às relações internacionais.

Essa dissertação oferece uma rica compreensão interdisciplinar. Aparecem

conceitos sobre religião, relações internacionais e lingüística, interligados entre si em

12

uma análise retórica do discurso da mais antiga instituição burocrática que se tem

registro e de um dos rostos mais conhecidos do final do século XX.

13

Capítulo I

Os efeitos do discurso político na retórica religiosa católica

“Retórica é a arte de persuadir pelo discurso”

Olivier Reboul

Introdução

De que maneira o discurso político age sobre a retórica religiosa? Este primeiro

capítulo trás à reflexão a retórica católica, privilegiando o período do pontificado do

Papa João Paulo II à luz das teorias dos autores de retórica. Para tal, a primeira parte

deste texto faz um pequeno panorama histórico acerca da ―retórica‖, desde suas

origens na antiga Grécia até alguns dos pensadores contemporâneos, como Chaim

Perelman e Tereza Lucia Halliday. Discutiremos acerca do conceito de discurso,

passando por autores como Norman Fairclough e Eni Orlandi. Na análise do discurso

político apoiaremos a nossa reflexão em autores como Patrick Charaudeau. Nele

procuramos definir o que é e como se constitui o discurso político. Em um segundo

momento, mostraremos como os grupos religiosos estruturam sua retórica através do

discurso, focando a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e os efeitos da

secularização em sua ―voz‖. Para tal, autores como Pierre Bourdieu serão de suma

importância. Ainda, mostraremos como a competitividade funciona em tempos de

secularização e pluralismo utilizando Antonio Pierucci e Marcel Gauchet.

14

1.1 A retórica religiosa católica e a construção do discurso político da Igreja

Católica

A retórica sempre esteve presente no cotidiano das sociedades e possui

diversas definições e usos, entretanto, todas elas estão relacionadas à persuasão.

1.1.1 - O que é retórica?

A análise retórica é um método de análise do discurso embasada nos preceitos

da filosofia e da retórica antiga. Há muito tempo a humanidade se preocupa acerca do

efeito das palavras, o que ocasionou o desenvolvimento da arte do discurso, arte esta

que interfere nas crenças e atitudes das pessoas. Na antiga Grécia, mesmo filósofos

anteriores a Platão e Aristóteles, como Córax e Tísias (século V a.C.), refletiam sobre

o poder persuasivo dos discursos, descrevendo seu funcionamento e seu poder de

interferência em quem os ouvia. Surge assim a ―Análise Retórica‖.

Em seus primórdios, a retórica tinha por função avaliar principalmente peças

de oratória de pregadores religiosos e políticos. Nos dias de hoje, a Análise Retórica

permite identificar elementos de persuasão presentes em qualquer tipo de

comunicação. De acordo com Luís Rohden1, a partir do conhecimento destes

pensadores antigos e da sistematização dos conhecimentos até então produzidos,

Aristóteles desenvolve suas próprias reflexões, organizando um sistema retórico

valorizado ainda hoje nos estudos sobre retórica e argumentação. Para Rohden,

Aristóteles sistematiza os fundamentos da persuasão no discurso descrevendo a

natureza e a origem dos diferentes argumentos e criando uma teoria do discurso

voltada para o exercício da argumentação.

Segundo Halliday2, para Aristóteles existiam dois tipos de conhecimento: as

―verdades imutáveis‖ da natureza, conhecidas como theoria, que pertencia ao campo

1 ROHDEN, Luís. O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997.

p.07-14. 2 HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988. p. 121

15

da ciência; e as ―verdades contingentes‖, conhecidas como phronesis, podendo ser

considerada como a sabedoria prática. Para ele, as verdades contingentes eram frutos

de um esforço de reflexão, uma ciência que não se limita ao conhecimento, e tinham

por função melhorar a ação do homem. Aristóteles também procurou descrever

claramente os fenômenos da ação humana por intermédio do exame dialético das

opiniões dos homens sobre esses fenômenos. Para o filósofo grego, é a partir da

opinião que se torna possível atingir o conhecimento. Portanto, a retórica é a

faculdade de enxergar, de acordo com cada caso, o que é capaz de gerar a persuasão.

Quando uma prática discursiva consegue atingir seu objetivo, chamamos este

fenômeno de construção retórica: no qual seus participantes fazem uma leitura

retórica da situação em questão e fazem parte propriamente desta construção, sejam

como produtores, coprodutores ou receptores deste discurso. Para Chaim Perelman3,

a retórica tem basicamente a função de adesão: “O objeto desta teoria é o estudo das

técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às

teses apresentadas ao seu assentimento”. Perelman

4 afirma ainda que neste diálogo

crítico o que se põe à prova é a tese de um interlocutor ou até mesmo uma hipótese

que este possa sustentar.

Segundo Reboul5, quando um orador pretende convencer ou persuadir uma

plateia utilizando o artifício do discurso, este orador emprega argumentos para falar à

razão, busca fazer com que o ouvinte sinta que o discurso do orador possui uma

lógica. Assim, técnicas para manter uma organização discursiva e a expressividade

das palavras com a finalidade de despertar a sensibilidade do auditório são

extremamente utilizadas, e fazem com que o ouvinte mantenha sua atenção na

imagem criada de alguém com credibilidade e que porta a legitimidade suficiente

para propor sua opinião. Por outro lado, a preocupação com a subjetividade também

aparece nos estudos de linguagem e nas ciências sociais, fato que expõe a relevância

desta característica na formulação e elocução do discurso. A subjetividade do

3 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São

Paulo, Martins Fontes, 1996. p. 05 4 Idem. Retóricas. São Paulo, Martins Fontes, 1997. p. 07

5 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p. 36

16

discurso age tanto no que se refere ao orador, como ao que se refere aos ouvintes.

Este aspecto do discurso acaba por criar uma relação de subjetividade e

interdependência entre ambos os atores retóricos – oradores e ouvintes.

Lineide Mosca6 afirma ser possível verificar a mobilização das paixões de um

auditório através das representações do comportamento deste público, ou até mesmo

através de ações ou situações que possam desencadear as emoções desejadas.

Existem desde a antiguidade clássica três pilares que trabalham exatamente com a

questão da razão e paixão. Junto de mais um aspecto relacionado à imagem, são estes

pilares que fundamentam a retórica: Logos, Pathos e Ethos. Segundo Reboul:

(...) a retórica, diz Aristóteles, compreende três tipos de provas (pisteis)

como meios de persuadir: os dois primeiros são o ethos e o pathos [...]; constituem

a parte afetiva da persuasão. O terceiro tipo de prova, o raciocínio, resulta do logos,

constituindo o elemento propriamente dialético da retórica. 7

À luz dos conceitos de autores especialistas em retórica, pode-se afirmar que o

ethos consiste na credibilidade, na imagem do orador. Seja qual for a fonte de sua

credibilidade - cultural, estado social, capacidade intelectual - tais qualidades podem

levar um auditório a acreditar em uma ―verdade‖. Já o pathos é oriundo das paixões e

emoções dos ouvintes. A forma como o orador desperta as emoções em seu público

faz eco ao peso do pathos em seu discurso. O logos é o contraponto do pathos:

representa a lógica, o racional do discurso. Embora aparentemente pathos e logos

soem como antagônicos, ambos os conceitos fazem parte da retórica. Para Mosca8, a

formação de um ethos está ligada a questões de identidade. Seja este ethos coletivo

ou individual, ele encontra-se em um jogo de representações que se dá entre as partes

envolvidas no processo de trocas comunicativas e de constituição das respectivas

identidades. Trabalhando com representações de si próprio, o ethos também absorve

representações do ouvinte, através de seu pathos.

6 MOSCA, Lineide A atualidade da Retórica e seus estudos: encontros e desencontros in Rhetoric.

Proceedings of the First Virtual Congress of the Romance Literature Department. São Paulo, USP. p. 07 7 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p. 36

8 MOSCA, Lineide. idem.

17

Em nossa pesquisa trabalhamos com a ICAR, portanto, vale ressaltar neste

momento que ethos, pathos e logos são pilares que funcionam muito bem quando se

trata da Igreja Católica em sua hierarquia e retórica. Por exemplo, se ethos consiste

em credibilidade, imagem do orador independente de sua fonte, um arcebispo, um

cardeal ou até mesmo o Papa podem criar um ethos legítimo de uma determinada

retórica na medida em que agem como porta-vozes da instituição, pois possuem

credibilidade e criam uma identidade com seu auditório, muitas vezes os próprios

fiéis9. Tal condição pode ser decisiva e levar um auditório a acreditar em uma

―verdade‖. Reboul10

afirma que uma construção retórica só é possível se houver um

acordo prévio entre o orador e o seu auditório (seja ele qual for). Para ele, ―a regra de

ouro da retórica é levar em conta o auditório‖, pois os argumentos mudam segundo o

auditório. Entre o orador e o auditório tem de necessariamente haver este acordo, o

autor afirma que ―é impossível que um se dirija ao outro se não houver entre ambos

um acordo prévio‖. É neste acordo que reside o verossímil que trabalha a retórica,

este acordo está na presunção que se tem. Para ele, o ―verossímil é a confiança

presumida‖.11

Se pensarmos em algum líder de alguma seita, à luz do que pensa a maioria de

seus seguidores, a sua mensagem possui legitimidade, isto é, quem confere

legitimidade a uma peça retórica e seu orador são os ouvintes. Porém, quando uma

mensagem deste porte consegue chegar a um público distinto de seus seguidores,

pela divulgação da informação por um veículo como a internet, por exemplo, esta

mensagem não terá legitimidade nenhuma perante este público. Este público distinto

não reconhece o ―profeta‖ desta seita como líder, o verossímil deste líder pode não o

ser para o auditório, a verdade que para um é diferente do outro não possibilita este

acordo prévio, o que faz com que sua mensagem não funcione em tais condições.

Pode-se afirmar, então, que a retórica, como força que age sobre a vontade e o

entendimento de um determinado grupo, combina as capacidades intelectuais e

9 Nos próximas páginas iremos discorrer sobre quem ―porta a voz‖ da ICAR e sobre a credibilidade desta

voz. 10

REBOUL, Olivier. Introdução… p.142-143 11

Ibid. p.165

18

afetivas, tratando-as como indissociáveis, possibilitando a influência de aspectos

subjetivos na construção de seus discursos.

Halliday12

trabalha ainda com condições e fatos que propiciam o

acontecimento do fenômeno retórico: a Situação Retórica e Ato Retórico. Para ela,

Situação Retórica abrange pessoas, eventos, objetos, entre outros , que se apresentam

em situações nas quais certo tipo de discurso é capaz de influenciar o pensamento ou

a ação de determinada audiência, acarretando uma modificação positiva para o orador

deste discurso em questão. A autora denomina este orador como retor. Quando

Halliday afirma que somos seres retóricos, pois usamos a linguagem como

instrumentos de mudança, reforço ou adesão à valores, sentimentos, posicionamentos,

o fazemos justamente porque respondemos aos ditames de uma situação. Essa autora

afirma ainda que quando um retor ―se importa‖ com certa situação ou meramente tem

algum interesse em modificá-la, é porque esta situação possui alguma instância

plausível de ser modificada através do discurso. Isto só é possível porque somos

seres simbólicos, um composto de realidade objetiva junto com a interpretação das

pessoas que a vivenciam. Sendo assim, é possível afirmar que a retórica é uma

construção social que carrega em si um poder simbólico significativo13

.

Por Ato Retórico, a autora entende como a transmissão de uma mensagem

caracterizada como ação simbólica, para promover ajustes ao ambiente em questão.

Seja tal transmissão por um retor ou através de um texto. Tal transmissão é uma

tentativa intencional criada para superar obstáculos em uma determinada situação

retórica, sobre uma determinada audiência, com uma determinada questão, buscando

um determinado objetivo. Portanto, é elaboração de um autor humano com um

propósito especifico. Daí ser importante salientar que se a retórica é a arte de

influenciar um determinado auditório, tal discurso necessariamente tem que estar de

acordo com argumentos de persuasão que sejam compreendidos pelo auditório. O

público ouvinte deve ser capaz de acompanhar a linha argumentativa organizada pelo

12

HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988. p. 121-125. 13

No decorrer da pesquisa, trataremos da construção social e simbólica do discurso usado nas retóricas.

19

orador. Ou seja, a qualidade técnica da argumentação está relacionada ao grau de

conhecimento, em determinado assunto, do auditório a quem se dirige.

Quem quer persuadir, se utiliza da retórica para tal fim. A retórica é ação do

homem sobre outros homens, utilizando-se de estratégias de convencimento e de

persuasão, visando mudar ou manter uma determinada situação ou um determinado

ponto de vista ou atitude. Este retor faz uso de diversas técnicas de discurso para

buscar seu objetivo, caminhando entre a razão e a paixão, seduzindo seu auditório

para seu objetivo. Sob a perspectiva em que se coloca a retórica, é imprescindível

contar com as reações dos destinatários (avanços, recuos, concessões, agressões,

etc.). A argumentação só é tida como eficaz quando chega a persuadir o outro, não

bastando a simples apresentação das provas e das razões.

Tereza Halliday14

aponta seis passos do método de Análise Retórica que

permitem compreender o fenômeno retórico, descrevendo todos os componentes de

uma situação retórica: as motivações implícitas e explícitas do emissor, as

expectativas dos receptores e as contingências do contexto. A autora subdivide o fato

cabível de análise retórica em seis momentos que acabam por se interligar uns com os

outros e mostra seis passos para que seja feita uma análise retórica através das

condições que expõe. A autora divide uma questão retórica em antecedentes da

situação retórica; problema retórico; anatomia e fisiologia do ato retórico; as

contingencias do discurso; interpretação do ato retórico; julgamento do ato retórico.

Devido à clareza e praticidade deste método de abordagem, esta pesquisa utilizará

este método de análise de situações retóricas pré-definidas no decorrer do papado de

João Paulo II.

Vamos por partes:

a) Primeiro passo: Os antecedentes da situação retórica

Neste primeiro momento da análise retórica, é necessária uma pesquisa com o

intuito de reconstruir os elementos históricos, políticos e culturais da situação

escolhida para análise. São estes os elementos que caracterizam esta situação

14

Ibid. p. 126-132.

20

problemática como situação retórica. Para tal, as fontes de dados são de suma

importância neste momento deste processo. Assim sendo, é possível afirmar que uma

boa contextualização é o primeiro passo e um alicerce sólido para uma boa pesquisa

de análise retórica. Assis da Silva15

se utiliza do método de Halliday na análise

retórica do documento pontifício Libertatis Conscientia, assinado pelo prefeito da

Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, ex-Santo Ofício, acerca das

produções teológicas dos teólogos latino-americanos conhecidas como Teologia da

Libertação. Se utilizando do método de Halliday, Assis da Silva faz um panorama dos

acontecimentos acerca deste documento e chega à conclusão que o documento em si

tornou-se o ápice da confrontação entre tais teólogos e o Vaticano. O autor contorna

até o primeiro acontecimento-chave desta beligerância católica, a publicação de um

livro de Leonardo Boff, o qual continha idéias e conceitos que poderiam ruir com

dogmas milenares da Igreja e que despertou a necessidade de resposta do Vaticano. O

caminho percorrido por Assis da Silva para demonstrar que a situação retórica tem de

ser bem embasada e descritiva arrazoa a importância deste primeiro passo do método

de análise de Halliday.

b) Segundo passo: O problema retórico

Neste momento é muito importante conhecer a natureza do problema retórico.

O que é o problema retórico? Ou qual é o problema retórico? A dificuldade a se

explanar seria o conflito ou desequilíbrio entre um público e um orador? Tal

problema retórico é uma equação entre o que temos e o que queremos ter. Assis da

Silva neste momento de sua pesquisa define a Libertatis conscientia como um ato

retórico, um ato de comunicação, de caráter oficial, que se deu entre a Cúria Romana,

naquele momento representado pela Congregação para a Doutrina da Fé, por meio de

um documento assinado pelo seu porta-voz, Joseph Ratzinger, destinado a um grupo

de teólogos produtores de um discurso que ganhou notoriedade com o nome de

15

ASSIS da SILVA, Francisco de in HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988.

p.101-118.

21

Teologia da Libertação. Assim, o problema retórico é um conceito que inclui todos os

obstáculos enfrentados pelos comunicadores.

c) Terceiro passo: Anatomia e fisiologia do ato retórico

Aqui se identifica a forma como o discurso ganha corpo: vocabulários, figuras

de linguagem, metáforas e slogans que constituem a própria estrutura do discurso.

Segundo Halliday “Faz-se necessário identificar cada parte do ato retórico, fazendo

um levantamento de seu vocabulário, argumentos e figuras de linguagem, que

constituem a anatomia do discurso16

”. Assis da Silva continua sua análise retórica

deste caso do conflito entre a Teologia da Libertação e a Congregação para a

Doutrina da Fé, buscando elementos nos discursos de Leonardo Boff, nos encontros

de Boff e Ratzinger e nos documentos oficiais do Vaticano. Ele aponta que uma

primeira reação de Roma confronta a TDL, enquanto em um segundo momento a

reação busca doutrinar tais teólogos, por exemplo. A primeira reação vinda de Roma

chamava-se Libertatis nuntius, onde Assis da Silva afirma que ―o Vaticano não oculta

o teor de advertência, de admoestação‖. Enquanto num segundo momento, o

Libertatis constientia, segundo Assis da Silva, afirma que a ―Santa Sé procura, a

partir de sua própria concepção teológica, ensinar o verdadeiro sentido da libertação

na teologia‖.17

d) Quarto passo: As contingências do discurso

Neste ponto é necessário saber usar as limitações e restrições do discurso, as

condições que lhe podem ser favoráveis também. Este quarto passo do método de

Halliday mostra que a autora considera que todos os discursos tem suas limitações:

“Toda mensagem ou ato retórico sofre limitações e restrições que contribuem para

moldar-lhe o conteúdo e a forma.”18

Na sua análise retórica, Assis exemplifica que a

Cúria via uma certa habilidade em Boff, na medida em que ele criou ―em torno de si

um clima de mobilização nacional e internacional‖ graças ao qual se tornou capaz de

16

HALLIDAY, Tereza. Idem. p.126 17

ASSIS DA SILVA, Francisco in HALLIDAY, Tereza. Atos... p.107 18

HALLIDAY, Tereza. Idem. p. 128

22

inibir ―qualquer iniciativa de Roma em puni-lo‖ em um primeiro momento. Ou seja,

tal habilidade que Boff teria demonstrado fez parte naquele momento de sua retórica,

pois ele conhecia as limitações de seu discurso e se precaveu, à sua maneira é claro,

uma possível represália da Santa Sé, afetando assim também a construção retórica da

Congregação para a Doutrina da Fé. Portanto, saber até que altura pode alcançar seu

discurso é de suma importância para o orador.19

e) Quinto passo: A interpretação do ato retórico

A interpretação do ato retórico para Halliday é a combinação dos fatores acima

à luz de um marco teórico ou de acordo com a formação do analista. “O ato retórico

deve ser interpretado à luz de um arcabouço teórico/filosófico que contribua para

uma visão mais profunda do discurso e suas circunstâncias”.20

Assis interpreta o

documento do Vaticano como uma estratégia de consenso entre a Cúria e a TDL. O

Vaticano, diferentemente do primeiro documento, procurou identificar-se com as

teses de Leonardo Boff. Fala em libertação, porém à luz de seus dogmas romanos,

buscando assim manter a unidade da instituição. Procura-se aqui ressignificar a

―libertação‖ que teria recebida outras significações por causa do cunho marxista.

f) Sexto passo: O julgamento do ato retórico

Este passo indica como avaliar um ato retórico segundo alguns critérios

pragmáticos, estéticos ou éticos. O avaliador pode escolher um destes critérios ou a

combinação deles para realizar sua análise. Bem como tal passo pode não ser

concretizado, vez que o julgamento do ato retórico não é estritamente necessário.

Assis da Silva, na sua análise, julga o ato retórico pela sua eficácia em condenar a

TDL em seus excessos e chamar os seus defensores à ortodoxia da Igreja. Halliday21

afirma que neste momento da análise retórica, o pesquisador assume uma postura de

juiz, um avaliador do fenômeno retórico pesquisado e que isto implica em uma ―certa

dose de subjetividade‖. Assim, a fim de minimizar tais riscos que permeiam este

19

Nas próximas páginas o conceito de discurso será melhor explanado e discutido. 20

Ibid. p. 129 21

Ibid. p.129

23

momento da pesquisa, a autora defende que ―o julgamento do ato retórico deve

obedecer a critérios previamente escolhidos e explicitamente anunciados. Ela

exemplifica estes critérios como pragmáticos ou de efeitos, como estéticos ou de

qualidade e critérios éticos ou de valor.

Por critério pragmático, Halliday encara a retórica como ação persuasiva, onde

a avaliação do pesquisador busca enfatizar a relação do ato retórico com os seus

objetivos, questionando em até que ponto tal ato retórico foi eficaz em responder as

necessidades do retor, as contingências da situação e de sua audiência. Este foi o

critério usado por Assis da Silva no exemplo de análise retórica sucintamente exposta

nos parágrafos acima.

Já o julgamento por critério estético é feito não por sua capacidade de mudar

atitudes de ouvintes ou de tentar levar um auditório a ações específicas, mas sim é

julgado por sua ―natureza humanizadora, sua beleza, sua capacidade de ‗tocar‘ a alma

humana, reforçando valores e anseios universais‖.22

Halliday cita como exemplo o

―Discurso de Gettysburg‖ de Abraham Lincoln. Este discurso não foi eficaz em unir

o norte e o sul no período da Guerra Civil Americana, porém tornou-se um dos textos

mais belos da língua inglesa.

Portanto, na avaliação do ato retórico por critérios éticos, há uma busca das

conseqüências psicossociais no discurso. A avaliação reside no mundo dos valores.

Por isso, afirma Halliday que o avaliador precisa estar munido de uma ―consciência

apurada de seus próprios valores e dos valores prevalecentes na sociedade que foi

palco do ato retórico. Assim, questionar até que ponto o ato retórico contribuiu para

dignificar, mediocrizar ou degradar a condição humana se encaixam como artifícios

válidos na hora da avaliação.

Assim sendo, o método de Halliday se mostra claro e conciso, e este será o

caminho a ser utilizado para a proposta de análise retórica desta pesquisa.

22

Ibid. p.130

24

1.1.2 - O discurso político

Como vimos anteriormente, a retórica é a arte da persuasão através da

palavra. Uma palavra solitária, dita sem qualquer perspectiva pode até ter algum

significado sem um contexto ou pano de fundo. Porém, esta palavra solitária não é

capaz de exercer persuasão. A retórica busca a persuasão através da utilização de

palavras e só funciona como instrumento de persuasão se inserida em um

determinado contexto. Assim, o ato retórico somente terá efeito se utilizado junto de

outras palavras, capazes de suscitarem emoções, seduzir ou até fomentar a

racionalidade de seu ouvinte. Para tal, outro meio de persuasão se mostra presente na

prática retórica. Assim, um dos melhores dispositivos de enunciação destas palavras é

através do discurso.

Para Fairclough23

, discurso é um conceito de difícil definição porque existem

muitas delas conflitantes e sobrepostas. O autor afirma que na lingüística, o discurso

é usado para designar um diálogo falado, contrastando com textos escritos. Ele ainda

aborda que ‗discurso‘ engloba a interação entre falante e receptor ou leitor e escritor.

Diferentemente das definições anteriores, o autor ainda afirma que ‗discurso‘ pode

ser usado para caracterizar determinadas situações sociais, como ‗discurso de jornal‘

ou ‗discurso de sala de aula‘. Citando Michel Foucault, Fairclough ainda mostra que

discurso é usado na teoria e na análise social com referência aos diferentes modos de

se estruturar as áreas de conhecimentos e efetivamente as práticas sociais. Seguindo

sua linha de pensamento, o autor afirma ainda que os discursos, além de refletirem ou

representarem entidades e relações sociais, constroem ou constituem tais realidades.

Assim, discurso é um conceito que possui variadas definições e funções, porém em

todas estas funções, discurso caracteriza-se pelo uso da palavra para se chegar a um

determinado objetivo.

23

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2001.

p. 21-24.

25

Por sua vez, Eni Orlandi24

afirma que discurso é a capacidade do homem de

significar e significar-se sobre determinada situação. O discurso é a linguagem

necessária entre o homem e a realidade natural e social em que faz parte. O discurso é

o movimento desta relação. ―E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a

idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim a

palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o

homem falando‖.25

Para Orlandi o discurso é um objeto sócio-histórico no qual o

lingüístico intervém como pressuposto, sendo indissociável do conceito de discursos

questões de língua e ideologia. Para se trabalhar com discurso, é necessário

compreender a língua não somente como estrutura, mas também como

acontecimento.

Thomas Reese26

afirma que, à sua época, Paulo VI passava muito de seu tempo

examinando documentos escritos e muitos relatórios da Cúria Romana. Já João Paulo

II gostava de tomar conhecimento verbal de tais documentos e relatórios, se interando

com diversas pessoas. Não seria exagero afirmar que tal fato pode ser indício de uma

inclinação pessoal de João Paulo II pelo discurso e a tradição oral. Reboul27

defende

que um discurso de um orador é diferente de um texto, pois, segundo o autor,

―ninguém fala ‗como livro‘, mas como gente‖. Para ele o discurso oral deve ser mais

lento que uma leitura, pois o auditório não pode perder o fio da meada. O discurso

oral deve procurar ser redundante e a linguagem não é exatamente a mesma escrita,

pois exige frases mais curtas, expressões familiares e concretas, etc. As figuras,

defende o autor, pesam nestas condições, pois para melhor articular um discurso oral

pode-se, por exemplo, usar ―pra‖ em vez de ―para‖. Em correspondência com a idéia

inicial do parágrafo, Reese defende que ―experiências diferentes e personalidades

diferentes resultaram em papas com estilos administrativos diferentes‖.28

Parece que

esta tendência de João Paulo II pende em direção ao viés político na medida em que

24

ORLANDI, Eni Puccinelli, Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. Campinas, Pontes. 2003. 25

Ibid. p.15 26

REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. p.258 27

REBOUL, Olivier. Introdução... p.69 28

Ibid. p.241

26

sua inclinação pessoal por discursos e tradição oral permeiam não só externamente ao

Vaticano, mas também internamente entre o pontífice e seus imediatos.

Patrick Michel29

também vai por esse viés político ao afirmar que o papado de

João Paulo II foi extremamente político, pois ele foi o último papa em condições de

dar crédito a ICAR justamente pelo uso do político. As considerações de ambos os

autores não atendem, certamente, a todos os aspectos episcopais e políticos no

período deste papado, porém podem ser considerados como indicadores de que o

fator político se fez presente nos anos deste papa eslavo a frente da milenar

instituição Igreja Católica Apostólica Romana.

A noção de discurso, além de ser imprescindível passar pela idéia da ―palavra‖,

também parte do pressuposto de que é uma construção social assim como a

construção retórica. É a partir desta visão de discurso como prática social que esta

dissertação foi desenvolvida. Fairclough30

afirma que o discurso vai além das

palavras, reflete uma situação social, engloba pessoas e situações. Daí a sua

afirmação que ―a prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional

como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações

sociais, sistemas de conhecimento e crença) como é, mas também contribui para

transformá-la‖. Ele exemplifica que as identidades de professores e alunos, e também

as relações entre estas identidades que estão localizadas no centro de um sistema de

educação, estão sujeitas à ―consistência e a durabilidade de padrões de fala no interior

e no exterior dessas relações de produção‖. Ele conclui dizendo que a ―constituição

discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de idéias na cabeça das pessoas,

mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas sócio-

materiais, concretas, orientando-se para elas‖.

Como afirma o título deste capítulo, pretendemos mostrar especificamente os

efeitos do discurso político na retórica religiosa. Patrick Charaudeau31

apresenta uma

excelente reflexão acerca da natureza, procedimentos, regras e funções do discurso

29

LUNEAU, René e MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais

do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p.345 30

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso... p. 92-93 31

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo, Contexto. 2006.

27

político como processo de influência social. Ele trabalha com a questão da

―construção de identidades‖ como sendo ―instâncias‖ do contrato de comunicação do

discurso político. Assim, as condições e estratégias de persuasão estão diretamente

ligadas à constituição de identidades que se revelam como máscaras; o discurso

político articula-se entre as dimensões psico-sociológicas, como a identidade, e os

papéis sociais dos interlocutores, suas relações sociais e os objetivos, com as

dimensões propriamente lingüísticas que o caracterizam.

A reflexão de Charaudeau sobre o discurso político parte do pressuposto que a

política é um jogo de máscaras, um jogo de ser e parecer em que supostamente a

pessoa não é enganada. A máscara é o símbolo da identificação, segundo o autor, que

faz com que as pessoas confundam o ser e o parecer, pessoa e personagem. A

identidade, portanto, torna-se a imagem co-construída, resultante deste jogo de

máscaras. Como conseqüência deste jogo de imagens, o discurso político fornece

assim algo que é de fato dito, mas também oferece algo ―não-dito‖, porém um ―não-

dito‖ que também diz. Descomplicando esta idéia de dito e ―não-dito‖, Charaudeau

defende que mesmo algo que não se diz ou um momento de silêncio no meio de um

discurso, por exemplo, também tem algo a expor mesmo que não seja

necessariamente citado. O fato de você omitir palavras também passa uma

mensagem. Assim, o autor conclui que o discurso político diz e não diz ao mesmo

tempo e este não-dito também exprime posições e conceitos que podem ter o mesmo

valor (ou até mais) do que uma palavra propriamente dita.

O discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras. Toda

palavra pronunciada no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que

ela diz e não diz. Jamais deve ser tomada ao pé da letra, numa transparência

ingênua, mas como resultado de uma estratégia cujo enunciador nem sempre é

soberano.32

Charaudeau sustenta que a natureza do discurso político provém do binômio:

linguagem e ação. Este discurso funcionaria então como sendo um fenômeno oriundo

32

Ibid. p. 08

28

da relação entre uma verdade do dizer e uma verdade do fazer, algo parecido como

uma verdade da ação, como por exemplo, uma palavra de decisão, e uma verdade da

discussão, que pode se mostrar através de uma palavra de persuasão ou sedução.

Assim, o autor expõe um duplo fundamento do discurso político: uma mistura entre a

palavra que deve fundar o político (discursos de idéias) e aquela que deve gerar a

política (discursos de poder). Nesse sentido ele ressalta a relevância do afeto na

persuasão e faz um adendo ao ―mentir verdadeiro‖, pois para ele todo político sabe

que lhe é impossível dizer tudo em todo momento. Aqui o conceito de discurso de

Charaudeau se alia à idéia de verossímil de Reboul quando há um acordo prévio entre

as partes, e uma confiança é presumida.

Charaudeau ainda toma emprestado da retórica um dos termos-chave de sua

análise: o ethos, a construção da imagem de si. Para ele o discurso político deve ser

assim definido: ―uma forma de organização da linguagem em seu uso e em seus

efeitos psicológicos e sociais, no interior de determinado campo de práticas‖.33

De

acordo com sua abordagem, é no encontro com o diferente (outro) que as identidades

e recursos sociais são ou não utilizados e que o discurso se constrói de uma forma ou

de outra. Isso somente se constitui a partir de um processo dinâmico de interação

social no qual a natureza do próprio intercâmbio e do discurso a ser produzido vão

sendo continuamente modificados. Conclui que o discurso político está diretamente

relacionado à vida social como governo e discussão, é lugar de engajamento do

sujeito, de justificar sua posição ou de influenciar o outro.

O discurso, principalmente o discurso político, segue – à sua medida – os

preceitos da retórica. O objetivo é persuadir, convencer, aderir o ouvinte à sua idéia

ou ―verdade‖. O discurso é uma prática há muito tempo presente na ICAR e no

cristianismo desde seu início, senão o que dizer das homilias, dos evangelhos e das

epístolas apostólicas, por exemplo. Portanto, a prática discursiva é um objeto de

grande interesse dos membros da ICAR e pretendemos mostrar que se faz presente e

relevante no jogo político internacional, muito além das portas da Igreja.

33

Ibid. p.32

29

1.2 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico

A retórica religiosa católica não seria possível sem a construção simbólica que

lhe envolve.

1.2.1 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico

Conforme foi abordado nas páginas anteriores, retórica e discurso

caminham lado a lado. ―Retórica é a arte de persuadir pelo discurso‖.34

Assim, pode-

se afirmar que discurso é um elemento usado na retórica e ambos os conceitos são

claramente construções sociais. Eles produzem reações em grupos determinados de

pessoas que aderem ou não à idéia do orador. Se tratando de retórica, tomaremos

emprestado alguns conceitos de Halliday. O primeiro deles é que o emissor da

mensagem é chamado de retor; o fato que gera a prática persuasiva é chamado de

situação retórica; ato retórico é a alocução do orador. Quando nos referimos ao

discurso político ou ao papel político de algum sacerdote, utilizaremos o conceito de

Patrick Charaudeau. Buscaremos nos aproximarmos ao máximo da sua definição de

discurso pensando nesta construção social como um ato de comunicação, vez que as

construções retóricas da ICAR fizeram parte do objeto de estudo da pesquisa que

resultou nesta dissertação.

Para Charaudeau35

, um ato de comunicação pode influenciar opiniões, induzir a

rejeições ou até mesmo a consensos. Este é um ato que se utiliza do simbólico e

imaginário, ritualizado, que constrói imagens de atores e se utiliza de estratégia de

sedução e persuasão. Ele afirma que o discurso ―resulta de aglomerações que

estruturam parcialmente a ação política‖ e exemplifica estas situações citando

comícios, debates, apresentação de slogans, reuniões, ajuntamentos, marchas,

34

REBOUL, Olivier. Introdução... p.XIV 35

CHARAUDEAU, Patrick. Discurso... p.40

30

cerimônias, declarações televisivas como exemplos. Para ele, esta prática faz com

que sejam construídos ―imaginários de filiação comunitária‖, porém em nome de um

comportamento comum, ritualizado até certo ponto, e não em função um sistema de

pensamento, mesmo que um meio perpasse o outro.

Charaudeau mostra que ―o discurso político dedica-se a construir imagens de

atores e a usar estratégias de persuasão e sedução, empregando diversos

procedimentos retóricos‖. É por meio da construção de imagens dos atores

envolvidos em um discurso, seja para seduzir ou persuadir, que o discurso político

mostra uma lógica de valores relativos não ao verdadeiro, mas ao preferível. Neste

contexto, as premissas são proposições na maioria das vezes aceitas e,

conseqüentemente, pertencentes ao âmbito do verossímil, plausível, mutável,

contingente, questionável – algo muito semelhante, para não se dizer igual, à retórica.

Ou seja, o discurso político se utiliza das impressões, aparências e ambigüidades com

o objetivo de convencer e persuadir. Nesta perspectiva, o auditório não se importa

com as provas de demonstrações lógico-dedutivas, mas sim nas provas

argumentativas que consentem em distinguir o melhor ponto de vista. Sendo assim, a

coerção fica fora de questão, pois este sistema permite ao auditório um aparente

poder de decisão e participação.

Pierre Bourdieu36

desenvolve sistemas de disposições sociais de diversos

grupos e classes através da língua. Situações rotineiras de interação lingüística dentro

de um determinado grupo são reflexos de situações sociais; a religião se encontra

neste meio também. Para ele, se existem funções sociais na religião, é porque os

leigos não esperam dela justificativas para amenizar o sofrimento, a doença ou o

abandono, mas esperam também justificativas de sua posição na estrutura social.

Bebendo em Max Weber, Bourdieu afirma que sociologicamente a mensagem

religiosa mais eficaz para um determinado grupo social é aquela que dá justificativa

ao leigo de existir enquanto ocupante de uma determinada posição social. A harmonia

36

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 p.81-98

31

existente na mensagem religiosa que consegue se impor e não contradizer com os

interesses políticos de certa camada social é oriunda da visão sociológica da religião.

Ainda segundo Bourdieu, a concorrência pelo poder religioso consiste na busca

do monopólio, legitimidade e imposição de bases e práticas duradouras na visão de

mundo do leigo. Ou seja, na criação de um habitus religioso. A forma dessas

interações entre os protagonistas e os leigos depende dos interesses e da autoridade

religiosa de cada um: a posição na divisão do trabalho, capacidade de manipulação e

a posição do dominador na estrutura objetiva de tais relações. A diferença entre os

agentes criadores do habitus, os profetas e a Igreja, se dá na burocracia, não existente

no trabalho do Profeta e abundante na Igreja, imersa em uma forma

institucionalizada. Entretanto, a profecia não tem poder para modificar, de modo

duradouro, a conduta de vida e visão do leigo. A força de cada agente nesta busca

pelo monopólio dependeria da autoridade conquistada no decorrer desta luta.

Legitimidade religiosa é o resultado de lutas passadas por esse monopólio. Por isso,

enquanto o profeta precisa provar a todo instante suas capacidades, o sacerdote possui

uma autoridade de função que o dispensa de tal provação. Em caso de fracasso, o

feiticeiro pode ser morto, já o sacerdote possui meios de escapar, como culpar seu

deus ou os próprios fiéis. Sendo assim, aqui ganha sentido a expressão de Weber

reinterpretada por Bourdieu que a história dos deuses segue a flutuação da história de

seus servidores.

Desde que este objeto de estudos tornou-se a religião oficial do Império

Romano, a Igreja Cristã organizou-se institucionalmente na sua forma católica,

apostólica e romana. Graças à sua expansão e apoio político, o cristianismo foi

durante séculos a religião hegemônica do Ocidente. No decorrer de sua história, a

ICAR teve períodos de quedas e ascensões. Na Idade Média conquistou e manteve

um enorme poder espiritual e político. Seu poder econômico era grande, não só por

causa de suas propriedades, mas porque influenciava também as decisões políticas

dos reinos e até interferia na confecção de leis. Conseqüentemente, ela possuía

grande poder político e jurídico. Talvez o poder mais importante dentre estes fosse o

32

poder social e cultural, pois era a Igreja quem estabelecia padrões de comportamento

moral para a sociedade.

Atualmente, nem de longe o poder político e cultural da Igreja é o mesmo.

Devido à separação Igreja e Estado e a abundante acepção de Estados laicos em sua

maioria, hoje ela não influencia decisões políticas, jurídicas, nem econômicas. E

muito menos estabelece ou normatiza o comportamento da sociedade. Porém, seria

leviano da nossa parte afirmar que, mesmo não sendo mais o que era, a ICAR não

possua certa legitimidade e prestígio social. O capital simbólico adquirido – em

resumo, bagagem adquirida - ao longo de sua existência como instituição a legitima

em diversas situações. O poder religioso é fruto da transação entre agentes religiosos

e leigos, derivado da força simbólica de seus atos nas diferentes categorias de leigos.

Bourdieu37

afirma ainda que ―as produções simbólicas devem suas

propriedades mais específicas às condições sociais de sua produção e, mais

precisamente, à posição do produtor no campo de produção‖. Ora, se a ICAR não

possui mais o mesmo poder de outrora, ela não ocupa o mesmo status hegemônico na

produção do simbólico. Porém, é possível afirmar o quanto ela é habilidosa na

reprodução de seu capital simbólico adquirido. É claro que não falamos aqui de uma

instituição qualquer, mas sim de uma instituição duradoura de quase 2000 anos de

história, talvez a maior que já existiu nesta forma institucionalizada, que perdurou por

tanto tempo.

Reinterpretando Weber, Bourdieu38

afirma que o sacerdócio estabelece o que

tem e o que não tem valor sagrado, criando um sistema de defesa através de dogmas e

doutrinas discriminatórias. Quando o conteúdo da tradição encontra-se ameaçado,

aumenta-se a produção (ou reprodução) de escritos canônicos. A concorrência com o

feiticeiro, ou com outras forças religiosas e não religiosas em tempos de pluralismo

religioso, impõe ao corpo sacerdotal a necessidade de ritualização da prática

religiosa, como culto aos santos, por exemplo. Ou seja, a Igreja possui capital

simbólico para lutar pelo seu lugar no campo religioso buscando deixar sempre

37

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, EDUSP,

1996. p.133 38

Idem. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 p.81-98

33

presente e atual suas doutrinas bebendo em dogmas e preceitos antigos. Vale

ressaltar que, para Bourdieu, a Igreja só existe quando se monta um corpo de

profissionais distintos do mundo e burocraticamente organizados. Neste caso, o

carisma se desvincula da pessoa e passa a fazer parte da instituição, da função e do

lugar ocupado por esta pessoa na instituição; é o carisma de função. Deste modo, a

Igreja é completamente contra o carisma pessoal, transformando esse carisma numa

pratica cotidiana.

Bourdieu39

também afirma em outro texto que a ciência do discurso deve levar

em conta as condições da formação da comunicação, pois a condição de recepção

está ligada a condição de produção; novamente pode-se remeter à teoria retórica e sua

idéia de um acordo prévio entre as partes. A produção seria conduzida pela estrutura

do mercado, ou seja, pela autoridade lingüística dotada de tal poder de construção.

Para ele, esse poder é simbolizado pelo spektron, que remete à condição de uma

palavra que merece ser acreditada, obedecida. ―O porta-voz é um impostor provido

do cetro (skeptron)‖. 40

―(...) o porta-voz dotado do poder pleno de falar e de agir em nome do

grupo, falando sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, é o substituto do

grupo que existe somente por esta procuração. Grupo feito homem, ele personifica

uma pessoa fictícia, que ele arranca do estado de mero agregado de indivíduos

separados, permitindo-lhe agir e falar, através dele, ‗como um único homem‘. Em

contrapartida, ele recebe o direito de falar e de agir em nome do grupo, de ‗se

tomar pelo‘ grupo que ele encarna, de se identificar com a função à qual ele ‗se

entrega de corpo e alma‘, dando assim um corpo biológico a um corpo constituído.

Status est magistrus, ‗o Estado sou eu‘.‖ 41

Tratando especificamente de linguagem religiosa, Bourdieu afirma ainda que a

linguagem ritual pode não funcionar se as condições sociais de produção dos

emissores e dos receptores legítimos não forem garantidas, e que essa linguagem se

39

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, EDUSP,

1996. p.83 40

Ibid. p.89 41

Ibid. p.83

34

desconserta na medida em que o conjunto dos mecanismos que lhe asseguram o

funcionamento e as reproduções do campo religioso cessam de funcionar. ―O poder

das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz cujas palavras (...) constituem

no máximo um testemunho, um testemunho entre outros da garantia de delegação de

que ele está investido‖.42

Para Bourdieu o porta-voz age em nome do grupo, com o

capital do grupo, não com o seu capital simbólico pessoal. Caminhando por esta linha

de raciocínio e oriundo de uma visão política do discurso, a legitimação da retórica

religiosa está no fato de que ele não precisa ser necessariamente compreendido, mas

reconhecido. Bourdieu registra que o ―porta-voz autorizado consegue agir com

palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as

próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado

pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o

procurador‖. 43

Acompanhando Bourdieu, podemos perguntar: Quem é o legítimo porta-voz da

ICAR? Ora, o reconhecimento de um determinado discurso só é possível quando ele

é feito pela pessoa autorizada, conhecida e reconhecida por suas habilidades, aptas à

classe de discurso em questão, em uma situação legítima, enunciado da forma

legítima. Por isso mesmo, no caso da ICAR, podemos pensar em pessoas autorizadas,

no plural, até porque o capital simbólico adquirido pela instituição ao longo de sua

existência permite que tanto o Papa como um Cardeal ou até mesmo um Bispo

possam ter legitimidade para enunciarem atos retóricos, principalmente diante de seus

fiéis, ou até mesmo de ―carona‖ na própria instituição, na medida em que falam ―em

nome‖ desta instituição.

Assim, partindo do pressuposto de que a ICAR possui diversos porta-vozes

distintos, ela está sujeita a seus porta-vozes enunciarem sobre uma mesma questão

pontos de vista distintos, dependendo, é claro, da situação retórica em questão. Tal

fato pode contribuir decisivamente para a aceitação ou não de um discurso. Se para

Bourdieu basta que um discurso seja reconhecido como legítimo e não

42

Ibid. p.87 43

Ibid. p.89

35

necessariamente compreendido, o que dizer quando retores legítimos de uma mesma

instituição enunciam discursos distintos e praticam diferentes atos retóricos sobre

uma mesma situação retórica? Isto pode contribuir facilmente para a perda de

credibilidade e legitimidade da instituição. Porém, quando retores distintos produzem

atos retóricos similares sobre uma mesma situação retórica pode também contribuir

para uma mais fácil aceitação da situação retórica em questão. Essa questão

reapareceu nas posições anunciadas em público por vários atores (bispos e cardeais)

quando deu-se a discussão pública dos casos de pedofilia na ICAR em vários lugares

do mundo. Somente em curto prazo o Papa está conseguindo articular uma só fala da

instituição sobre tão delicado tema.

Thomas Reese44

afirma que na Santa Sé é feito o máximo para se evitar que

surjam discursos distintos sobre uma mesma questão. O Vaticano é uma instituição

burocrática, subdivida em diversas áreas as quais estão sob a batuta do pontífice. Pela

dimensão desta instituição, tanto internamente como externamente, é inevitável que

visões distintas apareçam. Assim, afirma Reese:

Segundo o Cardeal Cassidy, se dois prefeitos [de Congregações Distintas]

não podem concordar, ―o certo seria nos dirigirmos ao Santo Padre. Mas em geral

chegamos a um acordo. Estamos todos trabalhando para o mesmo chefe, e por isso

precisamos encontrar uma maneira de podermos dizer as coisas juntos. A Santa Sé

não pode falar com três ou quatro vozes. Ela tem de falar com uma voz, e por isso

tem de ser elaborada. Em geral, isso requer tempo, mas acaba se chegando a uma

decisão, a um arranjo com que todos podem finalmente concordar.‖45

Fica claro um esforço interno para que o discurso seja unívoco e, pode-se

afirmar também, que para isso o carisma pessoal é sufocado de forma exemplar. Para

que um discurso surja em nome de uma instituição é necessário que o porta-voz

dotado do cetro fale em nome da instituição, não em nome dele próprio. Porém, nem

sempre é assim. Exemplos de situações onde o discurso não é unívoco também

existem e, não é exagero dizer, em abundância. Existe um ilustre exemplo onde o

44

REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. 45

Ibid. p.194-195

36

discurso não é unívoco. O atual Papa Bento XVI, quando era membro do Colégio

Cardinalício e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e conhecido apenas

como Cardeal Ratzinger, protagonizou junto de outro colega cardeal também alemão,

chamado Walter Kasper, um debate público acerca de assuntos internos da própria

Igreja.

O debate Ratzinger x Kasper, como ficou conhecido, se iniciou em um artigo

de Joseph Ratzinger no qual ele reinterpreta um trecho da encíclica46

Lumem gentium

buscando enfatizar a unidade da Igreja em Roma, indo ao encontro da idéia de Kasper

sobre mais autonomia das igrejas locais. Tal debate tornou-se público expondo

opiniões distintas sobre uma mesma questão. Schickendantz47

afirma que ―o debate

não carece de más interpretações recíprocas‖. Porém, a meu ver, expor um conflito

doutrinal interno em um debate com dois porta-vozes com igual legitimidade perante

a instituição e seus fiéis, não parece ser benéfico tanto para a imagem, como a

unidade e integridade da instituição. Existem alguns autores que não partilham desta

visão negativa do fato em questão. MacDonnell, citado por Schickendantz48

, afirma

que um debate público deste nível pode ser um sinal de ―grande esperança‖ devido ao

teor desta discussão. Não cabe à proposta deste trabalho analisar se esta opinião de

MacDonnell é uma construção retórica ou não para deslocar o foco do teor do debate

para a função do debate, mas uma instituição na qual os porta-vozes não falem a

mesma língua não parece ser coerente consigo mesma. Leonildo Campos, também a

partir de Bourdieu, mostra em seu texto sobre a IURD que a igreja procura ser unida

ao redor do bispo Macedo. Semelhante ao bispo primaz se reúne, por telefone ou

vídeo conferência, para articularem em todas as partes do mundo o mesmo discurso

falado e ritualizado.

46

Etimologicamente, encíclica foi empregada para designar ‗cartas circulares‘ enviadas pelos bispos a seus

colegas de uma mesma região para assegurar a unidade doutrinal. A partir de Bento 14, em sua "Epistola

Encyclica commonitoria ad omnes episcopos" (Carta circular de advertência a todos os bispos), de 03 de

Dezembro de 1740, esse termo se restringiu às mensagens dirigidas pelo papa, em forma de carta, a toda a

Igreja Católica, aos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários (comuns) em paz e em

comunhão com a Sé Apostólica. 47

SCHICKENDANTZ, Carlos. Cambio structural de la iglesia: como tarea y oportunidad. Córdoba,

EDUCC. 2005. p. 115. Tradução livre. 48

Ibid. p.116

37

O pensamento de Bourdieu parece casar-se perfeitamente com a condição em

que se encontra a ICAR no período do papado de João Paulo II. A Igreja encontra-se

em um mundo adverso às suas ambições ou predestinações e sobrevive graças ao seu

enraizamento cultural e graças também à sua bagagem adquirida ao longo de sua

existência; sua posição episcopal e política já por natureza. Dificilmente, ou é quase

impossível, uma instituição sobreviver sem burocracia. Por sua vez, dificilmente uma

burocracia funcionaria sem política, pois os mecanismos de poder induzem à

burocracia. Assim, atores que saibam como lidar com momentos políticos são de

suma importância para a continuidade desta instituição. Talvez dentre estes atores a

figura mais emblemática seja a do próprio papa. Portanto, saber como trabalhar

politicamente seu capital simbólico, na qual em sua grande maioria fora adquirido

através do caráter episcopal da instituição, é a grande chave para o entendimento, não

só do papado de João Paulo II, mas também de seus antecessores e até mesmo de seus

sucessores em tempos nos quais a religião não mais influencia tanto as pessoas como

em outras épocas. Isso acontece tanto pelo processo de secularização como também

por causa da competitividade própria do pluralismo religioso e cultural.

1.2.2 – Secularização, competitividade e pluralismo

As igrejas cristãs experimentaram, com mais força desde a segunda metade do

século XX, um período de forte presença da secularização e da concorrência da

religião com outras religiões e ideologias secularizantes no campo dos bens

simbólicos. Essa situação promove e se faz presente no discurso religioso e político

quando ambos se mesclam refletindo condições sociológicas contemporâneas.

Autores como Chaim Perelman e Patrick Charaudeau que trabalham com retórica e

discurso político trouxeram novas perspectivas aos estudos retóricos argumentativos

e abriram espaço para a análise da persuasão em diversos tipos de discurso, inclusive

no religioso.

38

O retor que se utiliza deste recurso do discurso político e busca ter adesão de

seus ouvintes, procura adequar-se ao auditório em questão. Em outras palavras, ele

busca adaptar-se à situação retórica que pretende mudar, tentando amoldar-se aos

juízos de valores reconhecidos pelo seu público. Como apoia os seus argumentos

sobre esse conjunto reconhecido e partilhado de valores e paixões, ele constrói e

modela o seu ethos (sua imagem) de acordo com as representações coletivas pré-

existentes. Nesta perspectiva de persuasão, seja ela uma construção retórica com

características políticas ou religiosas, o retor parte daquilo que o auditório já admite,

ou, quem sabe, parte daquilo que o auditório já reconhece como legítimo; o acordo

prévio. Assim, ele estabelece uma relação entre o mundo de crenças já viventes deste

auditório e entre o que ele busca apresentar ao público, pretendendo fazer com que o

público acolha essa sua proposta. Ao realizar suas escolhas para a comunicação, o

retor busca adaptar-se ao imaginário compartilhado e admitido por seu público. Se a

construção deste imaginário e a construção do discurso empregado são reflexos das

condições sociais da época, é necessário contextualizarmos o que acontece nos dias

de hoje. Para tal, conceitos como secularização, pluralismo e desencantamento são de

suma importância.

É nítida que uma idéia de um processo de mudança social que vem ocorrendo

no que denominamos de mundo moderno está presente nos trabalhos de importantes

autores. Tal mudança se caracteriza principalmente pelo papel no qual a religião

cristã desempenha. Falo aqui de religião cristã porque esta idéia de mudança se

mostra em curso basicamente no Ocidente, local onde esta religião foi dominante e

praticamente homogênea durante alguns séculos. Danielle Hervieu-Legér49

afirma

que a modernidade de uma sociedade é necessariamente avaliada pelo papel da

autonomia do sujeito, pela capacidade de determinar, em consciência, as orientações

que este indivíduo almeja dar à sua própria vida em todos os aspectos da atividade

humana. Porém, ao mesmo tempo, alude para que os indivíduos sujeitos possuam

―condições de definir, debatendo publicamente com outros indivíduos sujeitos (entre

49

HERVIEU-LÉGER, Danielle. O bispo, a Igreja e a modernidade in LUNEAU, René e MICHEL, Patrick

(orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais do catolicismo. Petrópolis, Vozes,

1999. p. 299

39

―cidadãos‖), as orientações da sociedade na qual vivem‖. Hervieu-Legér50

defende

que esta sociedade é necessariamente diferenciada e pluralista, onde nenhuma

instituição impõe ao coletivo dos indivíduos e do corpo social um código de sentido

global. Ela conclui afirmando que ―o sentido da ação, individual e coletiva, não é

recebido de cima, mas construído individual e coletivamente‖.

Quando falamos de religião cristã nos referimos, em um primeiro momento, ao

catolicismo medieval. Naquela época era a Igreja quem influenciava o dia-a-dia das

sociedades. Ela estabelecia tudo, influenciando não somente os aspectos

institucionais das organizações das sociedades, mas também, diretamente a vida das

pessoas e o cotidiano. Porém, após longo e lento processo, a Igreja foi perdendo suas

forças e poderes, ficando cada vez mais despojada de sua capacidade de influência

social e política. Muito se deve também à Reforma protestante e ao iluminismo,

assim como ao avanço da ciência moderna, mas neste trabalho não pretendemos nos

aprofundarmos nessa linha de argumentação.

O resultado desse processo de secularização pode ser facilmente notado no fato

de que a religião não mais regula a conduta do indivíduo. Antigamente, nas

chamadas sociedades tradicionais, a mística e a magia se expressavam num formato

religioso impregnando todas as atividades daqueles indivíduos seja no âmbito social

ou sobrenatural. Ao longo do tempo, as técnicas mágico-religiosas, que moldaram

por grandes períodos o modo de vida desta sociedade, são substituídas por outras de

caráter racional, de base científica em geral. Assim, a referência das grandes Igrejas

(contextualizando novamente o Ocidente) não afirma mais a identidade coletiva.

Inegavelmente a ciência, que até então era serva da própria teologia, passa a exercer

grande influencia neste processo, pois ela é a responsável pelo desencantamento do

inexplicável que a religião guardava.

O fenômeno da secularização, ou como aparece em Weber ―desencantamento‖

do mundo, expressavam-se na modernidade, pois contribuíram para a avaria da

referência especificamente religiosa na afirmação da identidade coletiva. Desta

50

Id. Ibid.

40

maneira, a secularização pode ser entendida como o declínio da influência que era

exercida pela religião, falando aqui especificamente sobre grandes igrejas históricas.

Outro aspecto importante a ser relembrado é a forma como a secularização

afeta o funcionamento e o lugar do Estado. Até porque, desde o seu surgimento, o

Estado passou a dividir o cenário com a religião. Ambos muitas vezes se

identificavam de tal forma que acabavam por significar a mesma personagem, ficar

centradas em uma mesma figura, porém, para o conceito de secularização ficar mais

claro, ela implica necessariamente na separação de Igreja e Estado.

Conseqüentemente, ocorre uma ruptura entre sociedade civil e sociedade religiosa,

pois a instituição religiosa que antes era soberana no cotidiano da sociedade, chega ao

ponto de não determinar mais a conduta do sujeito, abrindo assim uma lacuna para

que este sujeito possa, a partir de então, adquirir uma autonomia e determinar sua

própria conduta e destino. A Igreja era uma instituição hegemônica. Porém, no

decorrer deste processo de secularização vinculado à modernidade, ela tornou-se uma

instituição como as outras existentes.

Esta condição de coadjuvante em que se encontra a Igreja não deve significar

necessariamente que ela tenha perdido seu caráter. Mesmo sem controlar de forma

absoluta o dia-a-dia das sociedades, ela ainda conserva seu capital simbólico, um

reconhecimento social. Assim, quem não controla mais outras instituições, como o

Estado, por exemplo, também não mais influencia a conduta das pessoas como em

outros tempos. Assim, é possível pensar em secularização como a perda da

capacidade de influenciar social e culturalmente. Sem a religião para impor ou

regular as crenças das pessoas, elas passam a conduzir seu próprio rumo sem a

influencia das instituições religiosas. Portanto, segundo Dario Paulo Barrera:

Uma sociedade não secularizada seria aquela na qual a religião tem

autoridade no plano do saber e na esfera dos valores. A secularização corresponde

ao desenvolvimento e à autonomia das ciências, que forçaram as portas do saber

teórico e minaram a autoridade social da religião. A escola pública, por exemplo, é

41

clara expressão de laicidade, embora no Brasil continue a discussão sobre o lugar

da disciplina ―Ensino Religioso‖.51

Marcel Gauchet52

nos trouxe uma grande contribuição na compreensão

das conseqüências políticas no processo de desencantamento do mundo. Ele defende

a idéia de que o cristianismo foi a religião para a ―saída da religião‖ e que no

processo de construção do mundo moderno, a religião cristã, a qual era a principal

influência nas sociedades, foi perdendo sua capacidade de influência social. Para ele,

o conceito de secularização alude principalmente ao papel do cristianismo no mundo

ocidental. São a partir destas concepções da sua leitura de secularização que Gauchet

desenvolve sua idéia.

Em sua reflexão Gauchet argumenta que todo o desenvolvimento que acontece

na religião é somente aparente, pois distorce e leva a um distanciamento do caráter

religioso original; para ele, somente a ―religião ancestral‖ era verdadeiramente

estruturadora do mundo. Assim, todo desenvolvimento no campo da religião significa

perda de suas raízes e não aprofundamento. Pensando nesta religião primeira, ele

afirma que religião é a forma que o homem encontrou para alienar de si mesmo a

responsabilidade de transformar o mundo. A essa condição do ser humano Gauchet

chamou de heteronomia. Para ele as religiões mais próximas das originais, são

aquelas que são denominadas ―primitivas‖, estas formas de religiosidade possuem um

alto grau de heteronomia. Já nas religiões monoteístas, esta condição de heteronomia

ocupa um estágio inferior. Nas religiões primitivas, entre o mundo divino e o mundo

humano não existe nenhuma ruptura que separe estes dois mundos. Já esta condição

de hibridismo entre o humano e o divino não se apresenta nos monoteísmos,

principalmente no cristianismo.

No cristianismo, o fato da encarnação de Deus se apresentar na pessoa do

Cristo trás a subjetivação do ato religioso. Gauchet explana que, se antes as relações

51

BARRERA, Paulo. Pluralismo Religioso e Secularização: Pentecostais na periferia da cidade de São

Bernardo do Campo no Brasil. Revista de Estudos da Religião, Março 2010, p.55. 52

GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo – Una historia politica de la religión, Madrid,

Editorial Trotta, 2005.

42

entre as sociedades e ser o divino se davam por meio de mediações externas, isto é, o

controle da sociedade vinha de um mundo divino em direção ao mundo dos homens.

Porém, no cristianismo esta mediação entre o homem e o sagrado passou a ser vista a

partir do interno, pois é o sacerdote que entra em contato com o mundo do além. Esta

circunstancia de interiorização da religião, do homem em contato com o divino, fez

com que surgisse uma nova religião que auxiliasse o ser humano no seu contato com

o divino. Na modernidade o ser humano passa a ter possibilidade de fazer sua

escolha, de fazer parte dessa comunidade religiosa ou então de se colocar de fora

dela; assim como é possível escolher não acreditar no sagrado neste contexto. Ora,

quando o sujeito passa a ser quem escolhe seus próprios caminhos há, segundo

Gauchet a passagem do mundo da heteronomia para o da autonomia. Nesse novo

mundo, as regras da vida social não são mais ditadas pelo que é externo, mas pela

própria consciência. Assim, vale a pena citar Gauchet quando afirma que: o

cristianismo foi ―a religião da saída da religião.‖ No entanto, isso é a própria inversão

da lógica organizadora da religião primitiva que permite ao homem a saída da

religião.

De manera mucho más amplia, más allá del mero capitalismo, la perspectiva

adoptada conduce a reconocer la especificidad cristiana como um factor matricial y

determinante en la génesis de las articulaciones que singularizan fundamentalmente

nuestro universo, ya se trate de la relación con la naturaleza, de las formas del

pensamiento, del modo de coexistencia de los seres, o de la organización política.

Si pudo desarrollarse un orden humano en ruptura hasta ese punto con los

precedentes, y en ruptura a causa de la inversión radical en todos los planos de la

antigua heteronomia, es en las potencialidades dinámicas excepcionales del espíritu

del cristianismo donde conviene situar su raíz primera. Éstas proporcionan un foco

de coherencia que permite captar la duradera solidariedad esencial de fenómenos

tan evidentemente poco ligados como el surgimiento de técnica y la marcha de la

democracia. Así, el cristianismo habrá sido la religión de la salida de la religión.53

53

Ibid. p.10

43

Ao mesmo tempo em que se opera esta mudança no panorama religioso

oriundo dos efeitos da secularização ocorre outro processo interligado com o

processo de secularização que Gauchet54

chama de ―desencantamento do mundo‖.

Assim, esse autor se identifica com o conceito weberiano do termo, que atribui o

desencantamento a eliminação da magia como técnica de salvação. Dessa forma

observamos que esse conceito muda completamente a maneira de se compreender a

relação entre o céu e a terra. A salvação não está mais no divino, não mais no céu;

encontra-se, a partir de então, ao alcance das mãos humanas na própria terra. Assim,

apesar de todas estas mudanças, os deuses sobreviveram na cidade moderna e com

eles aqueles que neles crêem. Porém, seus poderes já não existem mais e nem

possuem o mesmo alcance no âmbito da sociedade. Gauchet atribui este fenômeno ao

fato de que a função destes deuses espaireceu-se nas engrenagens do tempo das

civilizações. Os deuses ainda existem, porém suas funções, que outrora

determinavam a conduta da sociedade, não sobreviveram neles mesmos. Talvez nos

―sucedamos de religião‖.

Antonio Pierucci55

elabora uma hermenêutica do termo de ―desencantamento

do mundo‖ oriundo da visão de Max Weber. Para Pierucci, refletir acerca deste

conceito não é simplesmente estudar a religião ou as religiões. Aliás, para ele este

conceito assume dimensões maiores do que lhe é próprio, tornando-se uma complexa

análise de um conceito apropriado para o entendimento da sociedade ocidental e da

própria modernidade. Nessa linha de pensamento de Pierucci o desencantamento do

mundo atinge um nível de grande relevância para a compreensão do mundo ocidental

dos últimos séculos.

Pierucci56

afirma ainda que a origem do conceito que guia a obra de Weber se

da no uso que se faz do conceito desencantamento do mundo. Assim, o autor

identifica em toda obra de Max Weber 17 empregos desta expressão, usada com a

intenção de: desmagificação; perda de sentido; desmagificação mais perda de sentido.

54

Ibid. p.10-11 55

PIERUCCI, Flávio. O Desencantamento do Mundo: Todos os Passos do Conceito em Max Weber, São

Paulo, Editora 34, 2003. 56

Idem. Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho

sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37. São Paulo, 1998. p.42

44

Weber ainda afirma, na leitura de Pierucci, que existe desencantamento do mundo

tanto pela religião como pela ciência. Logo a mudança no panorama religioso é

produto de vários outros processos similares, simultâneos e miscigenados, entre

outros: secularização, modernidade e desencantamento.

Pierucci reconhece que a magia representa o momento anterior à religião,

quando uma sociedade submersa em um mundo cheio de espíritos capazes de

influenciar, de maneira favorável ou não, a vida humana. Já a religião desmagificada,

isto é, a religião sem influências mágicas, é a contraposição deste momento de magia.

É a religião vista principalmente como doutrina. A partir de então a religião

racionaliza esta magia que outrora encantava. É um momento de transição da magia

para a religião, pano de fundo para entendimento do conceito de desencantamento do

mundo. Portanto, continua Pierucci, esta passagem da magia para a religião

―corresponde termo a termo à travessia do império do tabu ao domínio do pecado (...)

da coerção divina para o serviço divino; da chantagem e do conjuro para a súplica e a

oração (...)‖.57

Pierucci discute ainda a idéia weberiana de que a religião é algo a ser vivida no

extracotidiano, mas que se complementa no tempo e espaço cotidiano. A

racionalização da religião cria conseqüências na conduta de vida de modo ético-

ascético, ela determina a conduta de vida racional na prática, no dia-a-dia das

pessoas. Este é o aspecto que da religião ante as limitações da ciência, afirmando que

a ciência possui ―essa sua incapacidade de nos salvar, de nos lavar a alma, de nos

dizer o sentido da vida num mundo que ela desvela e confirma não tendo em si,

objetivamente, sentido algum‖.58

A magia torna-se, então, profecia.

Ainda dentro desse raciocínio é possível afirmar que desencantamento do

mundo não é simplesmente secularização ou racionalização do mundo. Para ele seria

leviano confundir ou associar o desencantamento do mundo com secularização do

mundo. Secularização implica um certo afastamento da religião, enquanto no

conceito de Weber tal idéia não se resume a este fato. Para Weber, o 57

Idem. O Desencantamento... p.69-70. 58

Ibid. p.158

45

desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente

religiosas, é um processo essencialmente religioso.

Enquanto o desencantamento do mundo fala da ancestral luta da religião

contra a magia, sendo uma de suas manifestações mais recorrentes e eficazes a

perseguição aos feiticeiros e bruxas levada a cabo por profetas e hierocratas, vale

dizer, a repressão político-religiosa da magia (Thomas, 1985), a secularização, por

sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como

manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in

temporalibus, seu disestablishment (vale dizer, sua separação do Estado), a

depressão do seu valor cultural e sua demissão/liberação da função de integração

social.59

Diante deste panorama, é possível concluir que as religiões conhecidas hoje em

dia já não são as mesmas desde suas origens. Elas sobrevivem graças a seu

enraizamento cultural, às possíveis respostas que possam ainda oferecer para questões

como a morte, por exemplo, ou até mesmo como elemento de legitimação social ela

pode se encaixar. Entretanto, não há mais condições que propicie um espaço na

sociedade para a religião pelas suas funções de origem. É claro que, como Gauchet60

defende do ponto de vista da organização religiosa, não existe possibilidade de se

dizer que conheçamos alguma sociedade primitiva. Para ele, é impossível conhecer

esta sociedade inaugural. As sociedades que temos registro são já estruturadas e

civilizadas e fazem parte da história que conhecemos. O surgimento do Estado é

assim encarado por Gauchet:

Desde este punto de vista, la emergencia del Estado aparece claramente

como el acontecimiento mayor de la historia humana. No marca una etapa en un

progreso continuo de diferenciación de las funciones sociales y de estratificación

de los estatus. No representa tampoco un surgimiento inexplicable que viene a

abolir por desventura un orden más natural y justo. Corresponde a un gigantesco

cambio de las articulaciones constitutivas del estabelecimiento humano, a una

transformación en el sentido estricto del término: todos los elementos del

59

Idem. Secularização em... 60

GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo – Una historia politica de la religión, Madrid,

Editorial Trotta, 2005.

46

dispositivo anterior se encuentran en el dispositivo siguiente, repartidos y ligados

de otro modo.61

Paralelo ao surgimento do Estado há o aparecimento de uma nova forma de

organização cosmológica, trazendo consigo o movimento ao mundo dos homens, que

passa do imóvel ao dinâmico. Deuses que em outro momento eram soberanos passam

a ser atingíveis e discutidos socialmente. Isso permitiu que surgisse vida paralela à

religião ou até mesmo sem ela. O Estado passa então a desempenhar a função da

religião e até a se assemelhar com ela em alguns momentos. Gauchet62

afirma, por

exemplo, que a hierarquia é repetição em todos os níveis da relação social. A relação

entre o visível e o invisível é o que determina o lugar do poder. Por isso, a religião

ganha um concorrente à altura. Não seria o Estado totalitário uma expressão da

divinização do aparato estatal?

Conclusão

Nos tempos atuais é inegável que a Igreja Católica encontre-se imersa em um

ambiente desfavorável para seus ideais. Na modernidade, a autonomia do sujeito se

caracterizou como uma nova maneira de o indivíduo guiar suas escolhas. Acrescido

dos efeitos da secularização e da incapacidade de a religião determinar a conduta do

individuo como em outras épocas, fica evidente que a Igreja não estrutura mais o

cotidiano das sociedades nem determina o individualismo dos sujeitos, os quais

decidem suas direções por conta própria. A magia que outrora determinava a conduta

social também perde seu encanto, pois é sufocada pelo espaço em que as ciências

passaram a ocupar. A própria condição de racionalidade do cristianismo também

contribuiu para este desencantamento.

A forma de organização do Estado e função que este passa a ocupar também

corrobora para o papel que ocupa a religião. Embora as grandes igrejas não controlem

este indivíduo e não ditem mais os contornos da sociedade, não significa que

61

Ibid. p.17 62

Ibid. p.55

47

necessariamente a religião desapareceu nos tempos modernos. As grandes igrejas

sobrevivem, porém sem o mesmo peso de outrora. Autores como Bourdieu afirmam

que eles sobrevivem graças ao capital simbólico adquirido ao longo de suas

respectivas trajetórias e a sua bagagem. Não estamos mais em um mundo encantado

de magia. O ―deus do trovão‖ tornou-se a descarga elétrica analisada e descoberta

pelo cientista. Embora a ciência não explique tudo, ela tornou-se uma grande aliada

da secularização.

Se o mundo é desencantado, o papel da religião é necessariamente diferente.

Como fazer-se ouvir em um ambiente em que não lhe é propício? Embora esta prática

esteja presente há muitos anos na Igreja Católica, a prática discursiva sofreu as

conseqüências dessas mudanças. Consequentemente a retórica tornou-se portadora de

um importantíssimo papel no papado de João Paulo II (1979-2005). A análise retórica

é uma disciplina antiga que sempre buscou analisar como persuadir seus ouvintes.

Assim, por meio do discurso político, um ato retórico pode ser bem sucedido. João

Paulo II, em muitos momentos foi o porta-voz de uma instituição burocrática e

hierárquica, em que se torna possível perceber que o ambiente político permeia suas

estruturas. Embora tente manter o discurso unívoco, a ICAR, às vezes, possui versões

distintas de um mesmo fato. Ela possui porta-voz ou porta-vozes dependendo do caso

onde deseje se pronunciar.

Se o papa se apresentar em algum país como papa, ele é um líder religioso. Se

ele se apresentar como bispo de Roma, a autoridade maior da Igreja é, ao mesmo

tempo, um chefe de Estado.63

Independente de o contexto ser episcopal ou político, a

prática retórica está presente. Dificilmente a imagem do bispo de Roma será

desvinculada da imagem de papa, é praticamente impossível determinar em que

momento o viés político se mescla com o viés religioso em situações semelhantes.

São momentos como este os quais os porta-vozes buscam criar uma situação retórica

que lhe seja favorável através de um ato retórico. Daí as dificuldades que cercaram a

visita de João Paulo II a Cuba. Fidel Castro se propôs a recebê-lo como Chefe de

63

No próximo capítulo será mostrada a estrutura e organização do Vaticano.

48

Estado e não como líder religioso dado ao ateísmo militante do Estado cubano. Mas,

na prática, nem sempre isso foi fácil de ser separado.

Para que este ato retórico tenha efeito, o acordo prévio entre o orador e seu

auditório tem que existir necessariamente. Entretanto, em outros momentos, devido a

doutrinas ou dogmas muito antigos, frutos de construções sociais de outras épocas,

este acordo entre o auditório e o orador parece não ocorrer. É aí que a capacidade

política pode fazer a diferença a favor do Papa na elaboração de seu discurso e

atividade retórica. Talvez para que consiga ser ouvida, a ICAR tem de buscar um

novo papel além do episcopal, um novo ethos. Em um mundo aparentemente

incompatível, o orador (a ICAR) e o seu auditório (o mundo) não parecem ter este

acordo oriundo somente da fé, um novo viés de ligação entre eles se faz necessário.

Nesse caso, a mídia tem se tornado o principal cenário onde a reconfiguração retórica

da ICAR está ocorrendo e fez de João Paulo II o ―papa da mídia‖.

49

Capítulo II

A Política e a Santa Sé no Papado de João Paulo II

“João Paulo é o [papa] da perda do poder espiritual”

Patrick Michel

Introdução

Na análise do discurso do papa não podemos deixar de lado as questões

políticas que envolvem a burocracia, a hierarquia e as lutas internas e externas que se

empreendem no interior do todo campo religioso. Mary Douglas64

em seu livro Como

as instituições pensam, trata da forma como as instituições fabricam para consumo

próprio e externo uma visão de mundo, uma identidade. É preciso ir além e usar a

imaginação sociológica para abordar como as instituições agem retoricamente para

mudar a forma delas serem socialmente percebidas. Trata-se, segundo Halliday65

, de

verificar como por meio da retórica as multinacionais do Brasil se tornaram de

organizações indesejáveis (persona non grata), em pessoas bem recebidas. A retórica

é, nesse caso, uma forma de mudar percepções, e a Igreja se aproveitou muito bem

disso, especialmente nas últimas quatro décadas do século XX, em especial após o

pontificado de João XXIII e do Concílio Vaticano II. Assim, neste capítulo iremos

abordar o funcionamento interno do Vaticano, as relações entre seus funcionários e

entre as autoridades, bem como seus reflexos na elaboração do discurso e da retórica

da Santa Sé. Analisamos também como se dá a relação política e de que forma ela se

64

DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. Edusp, São Paulo. 1998 65

HALLIDAY, Tereza. A retórica das multinacionais. São Paulo, Summus, 1987.

50

faz presente no dia-a-dia desse Estado Soberano chefiado na figura do Papa. A

diplomacia é uma extensão da política, porém em âmbito internacional. A tradição

diplomática da Santa Sé também será tratado neste capítulo. A representatividade da

figura do Papa será analisada, vez que autores como Thomas Reese defendem a idéia

de que o papado é tanto uma instituição como um indivíduo. Em um segundo

momento, abordamos a figura emblemática de João Paulo II, e veremos algumas

peculiaridades de seu papado que, segundo Patrick Michel, é um dos Papas mais

político da história do Vaticano. Pretendemos abordá-lo à luz das relações

estabelecidas interna e externamente por este Papa. Tomando a queda do comunismo

como o principal fato neste período, tentaremos mostrar como o fator político se

apresentou e o quanto representou para João Paulo II.

2.1 – O viés político do Vaticano

Por ser uma instituição, a burocracia está presente no funcionamento do

Vaticano. E se existe burocracia, existem relações de hierarquia, poder e política. Se

no plano interno esta questão é cotidiana, provavelmente acarreta em reflexos além

dos muros da Cidade Estado do Vaticano. É necessária grande habilidade por parte da

Cúria e membros da Igreja em relacionar esta condição com os princípios e dogmas

católicos.

2.1.1 - A estrutura interna do Vaticano

A sobrevivência da religião em um contexto secular está atrelada ao seu capital

simbólico, indubitavelmente. Porém, pode-se afirmar também que sua identificação

com um papel diferente do religioso de outrora é outro aspecto que pode certamente

corroborar para que a religião sobreviva. A secularização, que é comumente

associada à separação e laicidade do Estado, dita os rumos da Igreja Católica nesse

período.

51

O Vaticano é um Estado criado em 1929, oriundo do Tratado de Latrão, um

pacto feito entre o reino da Itália e a Santa Sé, tendo em vista a criação de um Estado

soberano que dotasse a ICAR de uma ampla presença política mundial. Assim, a

Cidade do Vaticano é um estado eclesiástico, governado pelo Bispo de Roma, o Papa.

A maior parte de seus funcionários públicos é formada de clérigos católicos. Segundo

Thomas Reese66

, ―Vaticano‖ é o antigo nome romano para uma colina e um terreno

localizado a sua volta, onde se construiu a Basílica de São Pedro, o Palácio

Apostólico e os Museus do Vaticano. Assim, o Estado da Cidade do Vaticano – sua

denominação oficial – tomou para si o nome desta colina e suas redondezas.

Reese67

afirma que o ―Vaticano mudou suas estruturas e procedimentos no

decorrer do tempo‖, atribuindo essa mudança ―não apenas por causa dos diferentes

papas, mas devido às mudanças no ambiente dentro do qual a Igreja operava‖. Hoje

em dia, continua afirmando o autor, o próprio Vaticano não considera seu modelo de

governo um exemplo para outras nações, este modo organizacional tem por

finalidade ―proporcionar um território internacionalmente reconhecido onde a Santa

Sé possa atuar em total liberdade, sem interferência política‖.68

O Vaticano é o território soberano da Santa Sé e o local de residência do

pontífice. Durante o processo de unificação da Itália, no final do século XIX, os

pequenos estados da península foram sendo absorvidos e, dentre estes, os Estados

Pontifícios69

. Neste processo, é oferecida uma indenização ao Papa Pio IX através do

compromisso de mantê-lo como chefe do Estado do Vaticano. Porém, o Papa se

recusou a aceitar esta situação e se considerou prisioneiro do poder laico. Esta

questão de disputas entre o Estado e a Igreja só terminou em 1929 através do Tratado

de Latrão, quando Pio XI aceita a condição anterior oferecida pelo reino da Itália,

reconhecendo a soberania da Santa Sé sobre o Vaticano, declarando um Estado

soberano, neutro e inviolável.

66

REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. 67

Ibid. p.17 68

Ibid. p.30 69

Estados Pontifícios eram um aglomerado de territórios, independentes, localizado no centro da península

Itálica, sob a autoridade civil dos Papas.

52

Reese afirma que, além de incluírem durante séculos grandes partes da Itália,

os Estados papais enfrentaram crise na ordem civil. O autor afirma que alguns papas

tiveram êxito em proteger seu povo através de negociações ou armas. No ano de 452,

o então Papa Leão Magno convenceu Átila, um huno, a não atacar Roma. No ano de

590, Gregório Magno tornou-se governante da Itália. Quando leigo, foi prefeito de

Roma e, quando Papa, nomeou generais, remunerou soldados e negociou tratados;

fez tudo isto sem que existissem os Estados Papais ainda. Pode-se notar que desde os

primeiros séculos de sua história, a diplomacia, a construção retórica, a persuasão

(como o exemplo de Leão Magno) sempre estiveram presentes e foram bem

articuladas em seu uso pela Igreja Católica. E tal prática é presente em seu modo de

gerir até os dias de hoje. A história nos mostra então que a Igreja participou com

intensidade, ao longo dos séculos, da luta pelo poder temporal. Reese registra que:

Durante onze séculos seguintes, os papas lutaram através da

diplomacia e da guerra para manter ou reconquistar os Estados papais. Os nomes e

as nacionalidades dos atores constantemente mudavam, mas a geopolítica

permanecia constante. Como os Estados papais situavam-se no meio da Itália, os

papas não queriam o mesmo poder controlando o norte e o sul da Itália. Quando

um gigante tornava-se todo-poderoso na Itália, o papado sofria70

.

Tecnicamente, o Estado da Cidade do Vaticano é uma monarquia eletiva.

Pode-se dizer também que o Vaticano é uma autocracia, pois todos os poderes

(executivo, legislativo e judiciário) são centrados na figura do Papa que não possui

qualquer órgão que fiscalize seus atos como gestor. Por ser considerado sucessor do

Apóstolo Pedro, o Papa não deve a prestação de contas a ninguém, pois é considerado

o representante de Cristo na Terra. Reese71

defende que a Cidade do Vaticano

proporciona ao papa uma base política independente ao mesmo tempo em que lhe

fornece uma ―plataforma historicamente majestosa para eventos públicos‖. Logo o

Vaticano é um lugar de ―trabalho ineficiente, servindo melhor como museu que como

quartel-general da maior organização multinacional do mundo‖. Porém, continua o 70

Ibid. p.31 71

Ibid. p.39

53

autor, ―ainda assim consegue projetar certa imagem de mistério e tradição, consegue

também transmitir uma imagem de uma instituição rica e arcaica‖, que chega a

parecer de algum outro século longínquo.

Reese também observa que o Vaticano possui suas próprias leis, porém por

conveniência optou por seguir as leis italianas. Usa a lira italiana como moeda. Possui

coleta de lixo, bombeiros, lojas e museus. Possui também correio, jardins, prédios,

escritórios, uma estação ferroviária e uma força policial. Tem mais empregados do

que cidadãos e é um dos poucos governos que consegue produzir lucro. Tais

características nos levam a crer que o Vaticano é um Estado estruturado como a

grande maioria. O que difere o Vaticano dos outros Estados é ser administrado por

uma instituição religiosa. Ele possui sistemas legais de representação, é reconhecido

no direito internacional mesmo sendo um estado confessional. Bobbio72

afirma que é

―impossível considerar a ligação entre o Estado e as confissões religiosas com o

mesmo critério usado na análise dos vínculos entre os Estados‖. Portanto, a relação

da religiosidade com um Estado assumiu uma característica peculiar ao Vaticano e a

Santa Sé.

O termo Sancta Sedes ou Sé Apostólica veio do latim e, do ponto de vista

legal, é distinta do Vaticano, ou mais precisamente do Estado da Cidade do Vaticano.

Ela é um instrumento de representação do governo central da Igreja, formado pela

Cúria Romana e pelo Papa. Já o Vaticano, conseqüentemente, é o território sobre o

qual a Santa Sé tem soberania. O atual Código de Direito Canônico73

, quando trata da

autoridade suprema da Igreja, dispõe:

Com o nome de Sé Apostólica ou Santa Sé designam-se neste Código não

só o Romano Pontífice, mas ainda, a não ser que por natureza das coisas ou do

contexto outra coisa se deduza, a Secretaria de Estado, o Conselho para os

negócios públicos da Igreja, e os demais Organismos da Cúria Romana. (Can. 361).

72

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília, UNB. 1998. p.420 73

Código de Direito Canônico, promulgado em 25 de Janeiro de 1983, pelo Papa João Paulo II, disponível

em < http://www.vatican.va/archive/ESL0020/_INDEX.HTM >. Acessado em 15/05/2010.

54

A Santa Sé é o órgão que trata das relações internacionais do Vaticano. Os

embaixadores estrangeiros não apresentam suas credenciais para a Cidade do

Vaticano, mas sim para a Santa Sé. A Santa Sé possui uma secretaria própria para tais

assuntos internacionais: a Secretaria de Estado. Segundo Reese74

, a administração da

Igreja em Roma é feita pelo papa e pela Cúria Romana. Para o autor, o termo Cúria

Romana designava até a época de Pio X todos os escritórios papais. É uma burocracia

que administra a instituição. O autor afirma ainda que ―devido ao seu tamanho

relativamente pequeno e jurisdição ampla, alguns a consideram a burocracia mais

eficiente do mundo‖.

A Secretaria de Estado do Vaticano é o órgão que trata das relações

internacionais. É ela a responsável por toda a parte diplomática além dos limites deste

Estado. Segundo Reese75

, originalmente a Secretaria de Estado era um escritório da

Chancelaria Apostólica e tinha por função lidar com as correspondências secretas e

diplomáticas. No papado de Leão X (1513-1521) foram criadas as funções de núncios

apostólicos, diplomatas que reportavam a esta secretaria. Havia também o hábito de o

Papa escolher como seu secretário um sobrinho ou um parente para a função de

executivo-chefe, pois se pensava que a lealdade familiar o ligaria intimamente ao

Papa. A partir do século XVII, o secretário de Estado, por hábito, passou a ser

escolhido entre os cardeais. Isso significou que o cardeal incumbido desta função

tornou-se o mais poderoso conselheiro papal, com capacidade de influenciar em

questões políticas e religiosas.

Os Papas também passaram a utilizar tais secretários em outras funções,

levando o cardeal que ocupava o cargo a ser equivalente a um primeiro-ministro. Para

Reese76

, ―um dos instrumentos mais importantes de que dispõe [o Papa] para

controlar a Cúria e tornar sua influência sentida por toda a Igreja e pelo mundo é a

Secretaria de Estado‖. Ainda segundo o autor, devido ao seu papel dentro do

Vaticano, nem todos os membros da Cúria gostam desta secretaria.

74

REESE, Thomas. O Vaticano... p.155 75

Ibid. p.157-158 76

Ibid. p.241

55

Como descreve um ex-funcionário do Vaticano, ―A Secretaria de Estado é

o órgão que está entre o Papa e todos os outros. Vários funcionários da Secretaria

consideram-se uma classe acima de todos os outros. Essa é uma atitude não

facilmente aceita por todos os outros. Mas não se pode generalizar. Há muitas

pessoas muito simples em seu contato, amáveis e com uma mente pastoralmente

aberta. Há também muitos, talvez um número grande demais, que desejam se

tornar núncios e se consideram dois pontos acima dos outros. Isto é humano.‖77

A Secretaria de Estado possui, nos dias de hoje, duas seções: a primeira seção

que atua sobre as correspondências e documentos papais; a segunda seção que trata

das relações com os Estados. Ainda para Reese78

, às vezes a primeira seção é

chamada de casos ordinários, enquanto que a segunda seção é chamada de casos

extraordinários. A primeira seção funciona como a secretaria do Papa; qualquer

documento ou correspondência que for expedida ou mesmo recebida pelo Papa,

internamente ou externamente, passa por esta seção. Antes de tais documentos

chegarem ao Papa, esta seção da secretaria pode levar a correspondência a outras

repartições da Cúria. Esta seção é dividida em oito idiomas. Mesmo que o italiano

seja o idioma cotidiano na Cúria, são necessárias outras línguas diferentes, pois

correspondências chegam de diferentes partes do mundo. Para o autor, a maioria dos

católicos do mundo é de língua espanhola, porém a maioria das pessoas usa o inglês

nas correspondências internacionais. O autor afirma que ―milhares de cartas provêm

de chefes de Estados, bispos, padres, leigos e malucos‖.

Quando uma carta vem de algum governo, e é de caráter oficial, esta vai para a

segunda seção. Esta seção equivale ao Ministério das Relações Exteriores da Santa

Sé. Qualquer questão que chega e é relacionada com a política, vai para esta seção.

Esta seção é organizada por países, semelhante às secretarias de Estados de muitos

governos, inclusive em sua maioria os governos laicos. O que difere a Santa Sé dos

outros governos é a dimensão desta segunda seção; por ser reduzida, um funcionário

fica responsável por diversos países. Reese afirma que pensar que a primeira seção

lida somente com questões religiosas e pastorais enquanto que a segunda seção

77

Ibid. p.242 78

Ibid. p.243-258

56

trabalha com questões políticas e diplomáticas é um erro. Ele afirma que ―para a

Santa Sé, questões políticas importantes estão freqüentemente interligadas com

questões religiosas‖. Devido a esta condição, a divisão da segunda seção, por países,

segue não só as ―relações Igreja-Estado, mas também a vida interna da Igreja em seus

países‖.

Freqüentemente, as duas seções trabalham juntas nas comunicações com os

governos. Tudo que for escrito e que possa ter alguma utilidade política, passa pela

segunda seção. Assim, é contínua a interação entre as duas seções. Segundo Reese79

,

os pronunciamentos papais ao corpo diplomático, por exemplo, são oriundos da

segunda seção. Já documentos para organizações internacionais podem ser de

qualquer uma das duas. E as cartas credenciais para novos embaixadores provem da

primeira seção. Em outros tempos, a Santa Sé teve que negociar com muitos

governos sobre indicações de bispos. Essa questão era tratada na segunda seção.

Portanto, tudo que envolve Igreja e Estado é por lá que passa.

Um dado interessante de se relevar é que, segundo Reese80

, como o Papa não

pode escrever todos os documentos, cartas e pronunciamentos que são divulgados em

seu nome, muitos destes são escritos na Cúria, em especial na Secretaria de Estado. O

autor afirma que esta é uma antiga tradição na Secretaria, pois são capazes de ―entrar

na mentalidade do Papa‖. Nesse sentido, os funcionários que escrevem estes

discursos não são escritores, mas sim ghost writers81

, na medida em que procuram ser

fiéis ao pensamento do Pontífice.

Nessa hierarquia, a Secretaria de Estado, como observa Reese82

, é o segundo

escalão no Vaticano. No século XX, praticamente todos os secretários que serviram à

diplomacia da Santa Sé foram italianos, com exceção do cardeal francês Jean Villot

(1969-1979). Os secretários de Estado em sua maioria concentraram-se mais em

questões diplomáticas do que em questões internas, especialmente em épocas de

79

Ibid. p.246 80

Ibid. p.263 81

Ghost Writer é o nome dado à pessoa que, tendo escrito uma obra ou texto, não recebe os créditos de

autoria, ficando estes com aquele que o contrata ou compra o seu trabalho. Neste caso da Santa Sé, o crédito

é do seu superior. 82

Ibid. p.249

57

transtornos internacionais, afirma Reese. O autor exemplifica isso citando o cardeal

Agostino Casaroli, que foi secretário das relações internacionais de Paulo VI e foi

também quem arquitetou a política da Santa Sé com os governos dos países do Leste

Europeu na década de 70, a Ostpolitik. Dentro da Igreja, muitos não acreditavam na

permanência de Casaroli quando João Paulo II assumiu a função de Papa. Entretanto,

impressionado com a competência do funcionário, o novo papa não só o manteve

como secretário de Estado como também o nomeou cardeal. Quando este cardeal se

aposentou no ano de 1990, João Paulo nomeou como secretário o cardeal Angelo

Sodano, ―talvez tendo sido convencido por aqueles que defendiam a tese de que um

papa não italiano precisava de um secretário de Estado italiano‖.83

Sodano foi núncio

apostólico no Chile entre 1978 e 1988, durante o regime militar de Pinochet. Nesta

função, segundo Reese, ele ―desencorajou confrontações com o governo e

supervisionou a indicação de bispos conservadores‖. Não se pode afirmar

concretamente qual das qualidades impressionou mais João Paulo, se a não

confrontação com governos ou as indicações de bispos conservadores, mas Sodano

assumiu o segundo posto mais importante do Vaticano.

Depois do secretário de Estado, o funcionário mais influente é o que preside a

seção dos assuntos gerais (primeira seção), chamado de sostituto (substituto). Reese

afirma que embora o sostituto seja somente arcebispo, ele é mais influente que a

maioria dos cardeais. Alguns dentro da Cúria chegam a queixar-se do ―poder

excessivo centralizado nesta função‖.84

Toda indicação e todo documento passa por

este funcionário.

Diante deste panorama, nota-se que dentro do Vaticano a relação entre

funcionários e membros é política, hierárquica e de poder. Quanto mais próximo ao

Papa, mais influência esta pessoa tem dentro da Cúria. Há uma relação política e

diplomática interna, uma barganha aqui, outra acolá, sempre visando seu interesse

nesta burocracia. O jogo de poder interno é constante nesta instituição. Sobre isso

vale a pena continuar citando aqui Reese:

83

Ibid. p.250 84

Ibid, p.252

58

Como está ocupado tratando com os governos, o secretário das relações

internacionais em geral não desafia a posição do sostituto, exceto em questões

políticas e diplomáticas. A única pessoa que está em posição de desafiar o sostituto

é o secretário particular do papa, que está em contato constante com o papa. Em

muitos pontificados, o secretário pessoal do papa tem atuado como uma porta dos

fundos para o papa que passa por cima do Secretário de Estado. Na melhor das

hipóteses, há uma tensão produtiva entre os dois funcionários, mas em alguns

pontificados eles tiveram discussões sérias.85

O secretário particular de João Paulo II Entre 1966 e 1978 foi o Monsenhor

Stanislaw Dziwisz. Dziwisz foi capelão e secretário particular do então arcebispo da

Cracóvia, Karol Wojtyła, o futuro João Paulo II. Desde a eleição deste pontífice, em

outubro de 1978, até a sua morte, em abril de 2005, Dziwisz desenvolveu a função de

secretário particular do Papa, tornando-se o seu mais direto e íntimo colaborador.

Reese86

afirma que Dziwisz foi o secretário pessoal de um Papa mais poderoso da

atualidade. Por acompanhar João Paulo desde quando era Karol Wojtyla e ser tão

próximo ao Papa, os funcionários do Vaticano, incluindo o Secretário de Estado e o

sostituto ―tratam-no com deferência‖, afirma Reese.

―Aqueles que desejam favores especiais‖ procuram o Monsenhor Dziwisz,

relata um padre italiano. ―Percebem que pelos caminhos normais não vão consegui-

los.‖ Por exemplo, a Opus Dei e os Legionários de Cristo queriam ter

universidades eclesiásticas em Roma. Diziam que as outras universidades não eram

suficientemente ortodoxas. Todas as outras universidades opuseram-se a elas,

como também a Congregação para a Educação. ―Então, não se dirigiram à

Secretaria de Estado, mas ao Monsenhor Dziwisz. No fim, foram aprovadas por

decreto papal e a Congregação teve de assinar.‖87

85

Idem, p.252 86

Idem, p.256 87

Ibid. p.257

59

Fica claro, portanto, que o jogo de poder político dentro da instituição se dá em

todos os níveis da hierarquia. Quanto mais alta, maiores as chances de se conseguir

impor sua vontade. No caso exemplificado por Reese, o secretário pessoal do Papa

foi uma porta dentro da instituição que passou por cima da hierarquia formal do

Secretário de Estado e do sostituto. Nota-se que as relações internas são políticas e,

desta forma, não poderia refletir fora do Vaticano de outra maneira. Sua própria

essência burocrática e estatal exige que seja desta maneira a sua representatividade.

Quando o nome da Igreja aparece relacionado a qualquer questão em qualquer lugar

do mundo, é senso comum ligar tal questão à religião. Porém, a instituição é uma

burocracia, com relações de poder e encontra-se imersa nas características deste

meio. Sua essência é a religião, porém sua existência é política. É impossível separar

onde começa uma característica e termina a outra.

Max Weber88

trata em seus textos do processo de transferência do carisma

pessoal para o espaço institucional que ele chama de ―carisma de função‖. A esse

processo, Weber deu o nome de ―rotinização do carisma‖. No caso do papado, a

função faz da pessoa de um cardeal, eleito Papa no Conclave, a agir, falar e sentir-se

como a liderança apostólica que teria sido atribuída por Jesus Cristo ao apóstolo

Pedro. Há, portanto, na figura do papa a ação do próprio Deus, de quem ele

representa como vigário de Cristo na face da Terra.

Ao mesmo tempo o Papa é Sumo Pontífice (palavra que vem de ponte, de

mediação ou ligação) da Igreja de Cristo e a autoridade maior de um Estado

soberano, filiado à ONU e que mantém relações diplomáticas com a maior parte das

nações da Terra. Podemos analisar a dominação papal a partir dos tipos puros de

dominação analisados por Weber. É claro que essa tipologia pura nem sempre está

presente nas organizações, pois, o Papa exerce uma dominação tradicional, no qual a

relação entre o dominador e os dominados é de ―senhor‖ e de ―súditos‖, relação

santificada, regulada e fixada pelas tradições. Além da dominação tradicional, ele

exerce a dominação carismática, definida por Weber em ―virtude de devoção afetiva

88

WEBER, Max, Os Três tipos de dominação legítima, in Sociologia: Grandes cientistas sociais(Cohn,

Gabriel, org.) SP, Ática, 1982, p.128-141

60

à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: a

faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória‖.89

Todavia, na qualidade de chefe de Estado e de uma organização multinacional,

o Papa desenvolve um estilo de dominação burocrática. A dominação burocrática foi

descrita por Weber como um estilo de dominação legal, pois há a existência de um

estatuto que controla o funcionamento da Igreja. É a existência desse quadro

administrativo, profissional, embora não-remunerado, com regras para o império,

permanência e saída, com níveis de comando e de execução, existência de regras

impessoais e racionais de regulamentação. Daí o fato de haver no interior de todo

sistema burocrático tensões oriundas da forma carismática e tradicional de

dominação. O Papa e o concílio vivem em tensões constantes, explorada por Janus90

,

no livro coletivo de século XIX O papa e o concílio (reduzido, introduzido e

comentado por Rui Barbosa).

A retórica papal tem, portanto, profundas ligações com a forma da Igreja se

organizar e de como se relacionar as camadas de poder dentro dela. Nesse caso, a

política é aqui vista como tensões, conflitos, negociações entre as partes na tarefa de

administrar uma determinada organização.

2.1.2 - A representatividade papal e a diplomacia da Santa Sé

O Vaticano é uma máquina burocrática e diplomática, onde sua estrutura e

funcionamento internos refletem nas suas atitudes externas. Não se pode negligenciar

que, além de Igreja, o Vaticano é uma das mais antigas burocracias do mundo. A

figura do Papa é imprescindível nesta instituição. Thomas Reese91

afirma que o

papado é tanto uma instituição quanto um indivíduo e que o centro de poder da Igreja

é sito na figura do papa. O Papa é o sucessor de São Pedro, Bispo de Roma, chefe do

Colégio dos Bispos e chefe do Estado da Cidade do Vaticano. O autor afirma ainda

89

Ibid, p.134 90

JANUS. O Papa e o Concílio. (2 V.) Rio de Janeiro, Elos, 1877. 91

REESE, Thomas. O Vaticano... p.17 -21

61

que o pontífice é bispo de Roma devido a Decisão de Pedro de se estabelecer em

Roma. O pontífice governa como Papa e como chefe do Colégio dos Bispos.

Por se sediar em Roma, Itália, a primeira questão de política se dá no

relacionamento com governos locais. Thomas Reese92

afirma que ―desde que vivem

em Roma, os papas têm estado especialmente ligados à política local, às vezes

governando a cidade e outras vezes ficando à mercê dos governantes de Roma‖. Ele

ainda afirma que até surgir a Cidade Estado do Vaticano, os papas lutaram para

manter os Estados Pontifícios, muitas vezes através da diplomacia ou da guerra.

Completando seu raciocínio, o autor afirma que embora o Vaticano, através da Santa

Sé, tenha de tratar com diversas nações questões de paz, direitos humanos e justiça,

trata com o governo romano questões como o preço da água e energia elétrica.

Mesmo que a Cidade do Vaticano propicie ao Papa um Estado Soberano, não é

oriundo desta condição sua função de Papa, mas sim de ser o chefe do Colégio dos

Bispos. Desde o Vaticano II, o papel dos bispos vai além das suas dioceses locais. Os

bispos são responsáveis pela Igreja Universal também. Entretanto, Reese93

afirma que

―o colegiado é importante, mas o papa tem a última palavra e pode muitas vezes agir

por conta própria‖. Para o autor, é arriscado demais um só homem guiar a Igreja,

como também é complicado visões diferentes entrarem em conflito sobre o rumo da

instituição. Daí o risco apontado também no livro de Janus, O Papa e o Concílio.

Assim descreve Reese:

O papel do Colégio dos Bispos na direção da Igreja universal é

extremamente importante se as decisões tomadas no âmbito mais elevado foram

responsáveis pela realidade das igrejas locais. Os bispos são responsáveis por toda

a Igreja, não somente por suas igrejas locais. A História mostra que depender de

um só homem para cuidar do bem-estar da Igreja, sem controle mútuo, é um

negócio arriscado. Por outro lado, os desacordos públicos entre os bispos e o papa

podem causar confusão e desordem na Igreja, e uma Igreja dividida tem mais

dificuldade de sobrevier em um ambiente hostil.94

92

Ibid. p.28 93

Ibid. p.40 94

Ibid. p.41

62

Pode-se afirmar, então, que existe um conflito de interesses – locais e

universais – no cerne da liderança católica. O viés político se mostra presente nos

interesses do rumo da própria Igreja. Se não houver astúcia política entre o chefe dos

bispos e os próprios bispos, o funcionamento desta máquina estaria seriamente

comprometido. A política permeia tanto internamente, quanto externamente à Santa

Sé. Reese95

explana a idéia de que desde o início os cristãos estariam envolvidos em

conflitos com os líderes dos governos. Jesus foi executado pelo governador romano

de Jerusalém, seus discípulos perseguidos por autoridades também romanas. Quando

o catolicismo se tornou a religião oficial do império, houve uma mudança de

perseguição do Estado para a liberdade da religião cristã oficializada. Porém, esta

liberdade veio carregada de influência do Estado. Reis e imperadores competiam com

líderes da Igreja pelo controle dela, do seu pessoal, crenças e, principalmente,

propriedades. Assim, a figura do papado torna-se primordial na luta sobre quem

controlaria a Igreja - líderes civis e líderes religiosos. Vale reafirmar que o autor

sustenta que o próprio Vaticano não considera seu modelo de governo monárquico

um modelo para as outras nações, porém seu propósito além de proporcionar um

território internacionalmente reconhecido onde a Santa Sé possa atuar com total

liberdade e sem interferência política, reforça o poder da figura do Papa.

―João Paulo II deseja pregar o Evangelho ao mundo e não permanecer no

Vaticano com os documentos‖.96

Talvez desta sua concepção tenham surgidos os

impulsos por viagens internacionais. Se o líder da instituição possui tal mentalidade,

conseqüentemente o reflexo na atividade diplomática é inevitável. Para Bobbio97

, a

diplomacia caracteriza-se como ―a condução das relações internacionais através de

negociações. O método através do qual estas relações são reguladas e mantidas por

embaixadores e encarregados; o ofício ou a arte do diplomata". Assim, o objeto

principal da diplomacia é o meio através do qual são conduzidas as negociações e não

o conteúdo das negociações em si. Olhando para essa definição de Bobbio, em

95

Ibid. p.43 96

Ibid. p.264 97

BOBBIO, Norberto. Dicionário... p.348

63

paralelo ao conceito de Bourdieu que afirma ser importante a legitimidade do porta-

voz e não o conteúdo do discurso, a diplomacia pode ser, então, qualificada na

condição de meio de persuasão, de uma prática retórica na qual envolvem elementos

que caracterizam o ato retórico como uma ação diplomática.

Bobbio98

ainda afirma que o desenvolvimento das atuais formas de diplomacia

se deve, principalmente, a três fatores do século passado: maior consciência de cada

Estado pertencer a uma comunidade de nações; a influência crescente da opinião

pública; e o desenvolvimento das comunicações. O autor continua afirmando que no

século XX, graças à revolução tecnológica, aos novos meios de comunicação, e ao

surgimento de fatores decisivos nas relações internacionais, como a ideologia, por

exemplo, as funções clássicas do diplomata voltaram-se para a criação do ―homem

político‖.

Uma conseqüência desta forma de administração papal é a grande importância

que se dá à diplomacia. Reese99

registra queixa da Cúria contra o Papa pois ele não

levaria o trabalho deles a sério, visto como mau administrador, pois como papa

prestava mais atenção à questões externas, deixando de lado a administração interna a

cargo dos burocratas do Vaticano. O autor afirma ainda que esse Papa preferia

personalidades ―fortes e vigorosas, como ele‖. Tanto que os cardeais mais influentes

no seu papado foram os que tinham personalidades fortes e defendiam energicamente

suas posições, tanto que, o seu sucessor, Joseph Ratzinger, o atual Bento XVI, era um

desses cardeais.

A diplomacia foi um pilar no papado de João Paulo II, mas isto não significa

que ela seja oriunda especificamente deste papado. Como foi citado anteriormente, a

diplomacia sempre fez parte da Igreja e da Santa Sé. Desde os tempos medievais a

sede episcopal de Roma tem sido reconhecida como uma entidade soberana. Em

Constantinopla, a partir de 453, já havia representantes papais junto ao imperador. No

século XI, o envio de representantes papais aos príncipes, em uma missão temporária

ou permanente, tornou-se freqüente. Assim como no século XV tornou-se habitual os

98

Ibid. p.249 99

REESE, Thomas. O Vaticano... p.266

64

estados creditarem embaixadores residentes e permanentes em Roma para os

representarem junto ao Papa. Porém, a Nunciatura Apostólica foi fundada apenas em

1500, em Veneza.100

Nos dias atuais, a Academia de Nunciatura101

é muito bem organizada e

estruturada. Reese102

afirma que o curso de estudos na Academia em geral dura cerca

de quatro anos. Dentre as matérias dos alunos estão: cursos de idiomas, direito

internacional, história diplomática, diplomacia eclesiástica e redação diplomática. O

curso nessa Academia não visa à obtenção de um diploma acadêmico, mas a vivência

dos alunos a fim de que ―absorvam a cultura e a atmosfera do serviço diplomático do

Vaticano‖. Depois de graduado, o aluno é enviado para trabalhar em alguma

nunciatura como assistente. A promoção nesta carreira é por idade. Estas pessoas que

entram nesta carreira vivenciam as relações de poder internas e externas ao Vaticano.

Reese103

afirma que é importante trabalhar para um funcionário de destaque no

Vaticano e que esta pessoa deve chamar a atenção de algum funcionário do alto

escalão da instituição para ser promovida.

O treinamento e a experiência internacional desses diplomatas os tornam

muito influentes quando retornam ao Vaticano. Tendo trabalhado em diferentes

países e culturas, têm um conhecimento direto das Igrejas locais e de seus países.

Tendo trabalhado nas nunciaturas, estão ainda melhor capacitados para interpretar

as informações que chegam das nunciaturas para Roma. Mudando de um lugar para

o outro, também fizeram muitos amigos e contatos nas Igrejas locais, no serviço

diplomático do Vaticano, na Secretaria de Estado e na Cúria. Esta rede informal de

amigos e contatos, que tem início na academia, é uma fonte de informações

essencial, necessária para conseguir que as coisas sejam feitas no Vaticano.104

O Vaticano possui uma cultura diplomática de longa data, portanto, a estrutura

atual de formação de seus núncios é oriunda de uma longa tradição nesta área. No 100

Para conhecimento da história da diplomacia da Santa Sé ver em: LAJOLO, Giovanni. Nature &

function of papal diplomacy. Institute of Southest Asian Estudies, Singapura. 2005 101

Núncio apostólico ou núncio papal é um representante diplomático permanente da Santa Sé que exerce a

função de embaixador em um determinado país. 102

REESE, Thomas. O Vaticano... p.213 103

Ibid. p.215 104

Ibid. p.216

65

entanto, o frutífero período diplomático experimentado até a primeira metade do

século XVII, entrou em declínio, talvez, após a Paz de Westfália105

, em 1648. Após

1870, com a extinção dos Estados Pontifícios e a questão da perda de soberania

territorial, seria suprida somente em 1929 com a criação do Estado do Vaticano.

Todavia, nessa data os juristas estavam incertos sobre se a Santa Sé poderia continuar

a funcionar como uma personalidade independente em assuntos internacionais, seria

um caso de um Estado sem território algum. Com a Primeira Guerra Mundial e suas

conseqüências, o número de países com relações diplomáticas com a Santa Sé

aumentou. Pela primeira vez desde que foram quebradas as relações entre o Papa e a

Inglaterra no século XVI, uma missão diplomática britânica foi enviada à Santa Sé

naquele período. Desde então, ao invés de diminuir o número de diplomatas

creditados junto da Santa Sé, este número passou de 16 em 1871 para 27 em 1929,

antes mesmo da fundação do Estado da Cidade do Vaticano. No mesmo período, a

Santa Sé concluiu um total de 29 concordatas e outros tipos de acordos com diversos

Estados, incluindo o Império Austro-Húngaro, em 1881; Rússia em 1882 e 1907; e a

França em 1886 e 1923. Duas destas concordatas foram registradas na Liga das

Nações a pedido dos países envolvidos. O Tratado de Latrão de 1929 e da fundação

da cidade do Vaticano não aumentou o número de Estados com os quais a Santa Sé

mantinha relações oficiais. Isso veio depois, sobretudo após a Segunda Guerra

Mundial.106

A Segunda Guerra Mundial foi causa de muita polêmica com relação à

diplomacia da Santa Sé, principalmente em relação à Alemanha. Existem muitas

visões e versões divergentes sobre a postura do Vaticano no período da Guerra. O

Papa nesta época era Pio XII e seu nome é freqüentemente citado em questões sobre

o nazismo e o holocausto. Há muitos críticos da política da Santa Sé em relação ao

extermínio de judeus, como também existem defensores. O relevante para esta

pesquisa é o fato de que a Santa Sé mantinha relações diplomáticas com o Reich.

105

Paz de Westfália foi uma série de tratados que encerrou a Guerra dos Trinta Anos, além de reconhecer

oficialmente as Províncias Unidas (atuais Países Baixos ou Holanda) e a Confederação Suíça. Marcou o fim

das guerras entre protestantes e católicos na Europa. 106

LAJOLO, Giovanni. Nature…

66

Friedlander107

faz referencia à documentos que apontam para a existência de uma

relação cordial entre o embaixador alemão em Roma e o Papa desde a época em que

Eugenio Pacelli era cardeal. O embaixador a serviço de Hitler era Diego Von Bergen,

o qual passou um longo período no Vaticano, onde teve contato com diversos

membros da Cúria, inclusive com o cardeal Pacelli, que em 1939 se tornou o Papa

Pio XII. Tal fato mostra que mesmo em um período polêmico e controverso, a

diplomacia da Santa Sé funcionava normalmente. Quando Bergen não mais ocupou

esta função, ele mesmo relata aos seus superiores alemães que a Cúria estava

convencida de que ele permaneceria em Roma até o final da guerra e foi uma

surpresa sua partida. Essa informalidade na relação entre o embaixador e o Papa é

uma característica da Santa Sé, sendo até hoje explorada essa característica de

cordialidade na formação dos núncios na Academia de Nunciatura.

É possível então afirmar que a Santa Sé adquiriu ao longo da história um

modus operandi que refletiu nas relações políticas visíveis tanto internas como

externamente. Assim, o discurso e a palavra política estão presentes em todos os

aspectos de seu funcionamento, não sendo algo novo, mas sim uma tradição desde

tempos antigos.

2.2 – O Papado de João Paulo II e a Igreja no Cenário Mundial

João Paulo II foi uma figura marcante no final do século XX. Ele possuía

características e personalidade de retor, aquele que possui todas as condições ideais

de falar em nome da ICAR. A queda do comunismo foi um divisor de águas em seu

papado, marcando os novos rumos do cenário mundial na última década deste século.

2.2.1 – A gênese e a formação do orador: João Paulo II

Atualmente, é inegável que o prestígio e a visibilidade da Igreja Católica

particularmente na mídia, se devem em grande parte a João Paulo II. Karol Wojtyla

107

FRIEDLANDER, Saul. Pio XII e a Alemanha Nazi. Livraria Morais Editora. Lisboa. 1967

67

se tornou Papa passando à mídia uma fisionomia carismática, sendo um dos rostos

mais conhecidos do último século. Karol Josef Wojtyla nasceu em 7 de Maio de

1920. Perdeu a mãe e um irmão ainda jovem e foi criado somente pelo pai, quem

também perdeu na adolescência. Wojtyla nasceu em uma cidadezinha polonesa

chamada Vadovice. Nesta cidade, 20% da população era judia. Ali, Karol Wojtyla

por estar presente, vivenciou o comportamento e a inculturação anti-semita por parte

dos nazistas. Um fato interessante é que naquela cidade, judeus e católicos se

misturavam com facilidade. Ora, desde os tempos apostólicos nenhum Pontífice

Romano, o qual Wojtyla iria se tornar, tivera um contato tão estreito com a vida

judaica. Wojtyla conhecia inclusive as festividades judaicas, chegando a assisti-las

quando podia. Porém, este estreito relacionamento com judeus não era comum na

Polônia: longe disto, havia na Polônia, assim como em outras partes da Europa, um

anti-semitismo enraizado, que seria aproveitado pelo nazismo.

Além do anti-semitismo, Karol Wojtyla também vivenciou o período da

Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quando do início da Guerra, em setembro de

1939 a Cracóvia foi bombardeada, até porque os alemães tinham escolhido a Polônia

como sua presa. Em 6 de Setembro daquele mesmo ano já haviam ocupado a cidade.

Neste período, os nazistas ordenaram o trabalho compulsório para todos os adultos

poloneses e todos os judeus acima de 12 anos de idade. Para os nazistas, os poloneses

eram subumanos e tinham que se sentir como tal. A pressão nazista era intensa e

qualquer pessoa que não tivesse um trabalho reconhecido pelas autoridades alemãs

corria o risco de ser deportada para a Alemanha. Assim, Wojtyla foi obrigado a

arrumar um trabalho. Ele se tornou trabalhador braçal na empresa química Solvay,

em outubro de 1940. Karol tinha então 20 anos de idade. Este emprego lhe deu uma

licença de trabalho, isentando-o de ser requisitado para as turmas de trabalho forçado

pelos nazistas, além de lhe garantir um passe para se deslocar à noite, um salário, e

maiores rações de alimentos, já que as operações da Solvay estavam relacionadas

com o esforço de guerra. Em suma, este emprego lhe forneceu uma considerável

proteção contra a ocupação nazista.

68

Persiste o fato de que sua experiência na pedreira e na fábrica, tal como suas

ligações anteriores com judeus em Vadovice (muitos dos quais iriam dentro em

breve morrer em Auschwitz, perto dali), deu a João Paulo II um aprendizado que

nenhum Pontífice romano tivera antes dele. Seus anos na Solvay lhe

proporcionaram uma percepção imediata das condições dos operários, o que lhe

seria muito útil na sua futura luta contra o regime comunista polonês e o levaria a

encarar a alienação e a exploração dos trabalhadores de um modo impensável para

um Papa.108

Cornwell109

afirma que quando Wojtyla se tornou Papa, em seus 12 primeiros

anos ele escreveu três encíclicas importantes sobre questões de política, economia e

trabalho. A primeira é do ano de 1981 e chama-se Laborem exercens (Sobre Trabalho

Humano) e é uma ―excursão poética sobre o significado do trabalho por um homem

que tinha pleno direito a emitir opiniões sobre o assunto‖. O autor afirma ainda que

isso foi devido ao seu trabalho forçado na juventude, onde ele tinha ―passado anos

carregando aos ombros pedras em baldes pendentes de um balancim numa pedreira

polonesa‖. O autor ainda afirma que nesta encíclica, João Paulo evitou questões

socialistas de propriedade dos meios de produção, como também tentou desmentir a

idéia baseada em uma interpretação parcial da bíblia de que ―trabalho é uma punição

divina para o pecado original cometido por Adão e Eva‖. Ele tentou mostrar em sua

encíclica que o trabalho é criativo, um ―processo de auto-realização, de

desenvolvimento pessoal‖.

Segundo Bernstein e Politi110

, Wojtyla era um grande admirador das artes,

especificamente do teatro. Fora ator, poeta, autor teatral e filósofo. Quando conheceu

o teatro, Karol Wojtyla ficou extremamente fascinado e o resultado deste encontro

com a arte foi imediato; logo ele estava envolvido em leituras de textos teatrais e

tardes de música de câmara e declamação de poesia. Devido a esta paixão pelo teatro,

foi inevitável que Karol se tornasse ator. No final do colégio, conheceu um professor

108

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso

Tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996. p.63 109

CORNWELL, John. A Face Oculta do Pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro, Imago. 2005.

p.135 110

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.63-64

69

de literatura polonesa totalmente dedicado ao teatro. Foi nesta época que surgiram

outras paixões de Wojtyla: línguas e letras. Daí em diante ele caminhou entre atuar,

escrever poesias, peças teatrais, entre outros. Seus amigos não sabiam se Wojtyla se

tornaria um ator ou um homem das letras. Esta experiência com artes e letras tornou-

se uma fonte de resistência da cultura polonesa ao nazismo e um modo de se

contrapor a ocupação alemã.

As raízes de tudo que ele sentia e faria como Papa, tanto em termos de dogma

católico como de doutrina geoestratégica podem ser encontradas no solo da sua

Polônia de origem, afirmam Bernstein e Politi111

. Como muitos de seus compatriotas,

quando jovem teve sua formação na tradição do messianismo polonês, na concepção

de que a Polônia tinha que redimir as nações através de seu próprio sofrimento e a

missão dos peregrinos poloneses era a de anunciar às nações do ocidente um mundo

novo, um mundo transformado espiritualmente. Cornwell112

afirma que a perspectiva

crucial de João Paulo, que guiou sua visão, era que o ―seu senso da Polônia, e o seu

próprio destino, estavam profundamente imbuídos de tradições marianas de proteção

e intervenção‖.

Wojtyla optou pelo sacerdócio em 1948, tornando-se assim padre. Começou a

sua vida pastoral em uma aldeia isolada a cerca de 45 quilômetros de Cracóvia.

Durante esses anos de padre experimentou como funcionava a máquina comunista,

muitas vezes tendo que realizar encontros escondidos com jovens, relação esta que se

tornaria também uma marca na sua vida pastoral. Em 1958, 10 anos após tornar-se

padre, foi nomeado bispo da Cracóvia. Nessa época, a Polônia passava por uma

transformação diferente da dos seus vizinhos socialistas. Durante séculos, através de

guerras e partilhas, a cultura polonesa e os camponeses do país estavam intimamente

ligados à Igreja. E a Polônia pós-guerra tinha uma liderança atéia. A Igreja era de fato

uma força que os comunistas teriam que combater, tornando assim a sua contenção

uma das prioridades das lideranças políticas. Com 95% da população de católicos

logo a Igreja se tornaria um sério problema para os comunistas. E foi exatamente isso

111

Ibid. p.265 112

CORNWELL, John. A Face… p.120

70

que aconteceu. A Igreja na Polônia tornou-se uma voz ainda que tímida de oposição

ao comunismo.

Karol Wojtyla ganhou notoriedade entre os membros da Igreja durante o

Concílio Vaticano II, se tornando em pouco tempo o porta-voz da delegação

polonesa. Freqüentemente Wojtyla negociava em seu nome com bispos franceses e

alemães. Os poloneses formavam a delegação mais importante do mundo comunista,

e por isso mesmo tinham certa autoridade em questões que envolviam a ―cortina de

ferro‖. Em 1963 tornou-se Arcebispo de Cracóvia ganhando mais destaque em meio à

comunidade católica, e, quando o debate no Concílio Vaticano II voltou-se para a

questão da liberdade de consciência e de religião, seus discursos adquiriram maior

peso devido a sua experiência com o comunismo. Em 1967, quando Paulo VI era

sumo pontífice, fez de Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, cardeal. Karol tinha

então 47 anos de idade. Paulo VI e o então Cardeal Wojtyla se tornaram muito

ligados, principalmente depois de Wojtyla ajudar o Papa a escrever a encíclica

Humanae Vitae. Bernstein e Politi registram que ―esse episódio ligou Paulo VI ainda

mais estreitamente ao cardeal Wojtyla, a quem ele recebia regularmente em

audiências privadas. Entre 1973 e 1975, o arcebispo de Cracóvia entrou onze vezes

no estúdio do Papa para audiências privadas‖.113

Além de bem relacionado no Vaticano, o cardeal Wojtyla era conhecido como

filósofo, como a pessoa que pensava na autodeterminação do ser humano. Pensava

também que, para isso, uma sociedade e um sistema político tinham que dar ao

indivíduo a oportunidade da autodeterminação. Além de filósofo, o cardeal Wojtyla

era conhecido também por ser poliglota. Falava alemão, russo, francês, inglês,

italiano e espanhol, além de sua língua materna. Essa facilidade lingüística era

complementada por uma inclinação por viagens, quando participava de congressos,

visitando comunidades polonesas ao redor do mundo. Ele era ainda cardeal e já havia

visitado lugares como a Terra Santa, os Estados Unidos, a Austrália, Nova Guiné,

entre outros.

113

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.121

71

Os membros da Cúria observavam Wojtyla com grande interesse. Até onde se

sabia, sua personalidade agradava a muitas pessoas no Vaticano, mas a grande

maioria não o conhecia intimamente. Sabia-se que ele exercia um poder carismático

sobre os jovens e pessoas que o encontravam ficavam impressionadas por sua externa

simplicidade de modos. Bernstein e Politi114

afirmam que ele ―não possuía

praticamente nada a não ser seus livros, paramentos eclesiásticos, algumas

lembranças de família, esquis (que guardava no palácio episcopal) e roupas de

excursionista.‖ Novamente, mesmo que não intencional, aflorava aí seu ethos.

Algo que é relevante de se dizer é que Karol Wojtyla tinha uma certa aversão à

mídia. Raramente lia jornais e muito menos tinha interesse em assistir ao noticiário

na televisão ou ouvi-lo pelo rádio. A cada duas semanas, recebia os resumos das

notícias dos jornais muito censurados na Polônia e na TV Estatal, a pedido próprio.

Não só não tinha interesse nas notícias gerais como também não tinha nenhuma

prática da intervenção da imprensa e da opinião pública nos negócios da Igreja.

Ficava impressionado que em Roma, por exemplo, mais cedo ou mais tarde tudo

terminava nos jornais, seja lá o que fosse, como encontros a portas fechadas,

comunicações secretas, etc. Curioso é que na era da mídia de massas, Wojtyla se

recusava a ter uma ligação pessoal com essa força aparentemente essencial da vida

contemporânea, mesmo fazendo dela um uso tão freqüente mais tarde, muito mais do

que qualquer outro personagem da história do século XX. Sobre isso novamente

afirmam Bernstein e Politi: ―para um bispo vindo da Polônia, isso era inimaginável.

Wojtyla desconfiava do modo pelo qual a mídia influenciava o debate interno da

Igreja (e quando se tornou Papa, seu secretariado de Estado iria expedir uma ordem

proibindo os funcionários executivos da Cúria de dar entrevistas sem permissão

especial)‖.115

Em agosto de 1978, o Colégio de Cardeais, inclusive Wojtyla, reuniu-se em

conclave116

no Vaticano e escolheu Albino Luciani como Papa, que adotara o nome

de João Paulo I para suceder Paulo VI. Ora, Paulo VI havia herdado de João XXIII,

114

Ibid. p.121 115

Ibid. p.102 116

Reunião do Sacro Colégio de Cardeais, convocado para eleger um novo pontífice.

72

em 1963, uma Igreja em transição, pois, com o início do Concílio Vaticano II, João

XXIII havia aberto um novo tempo na Igreja, propondo novas visões e temas

essenciais, como a renovação da atitude espiritual, das estruturas eclesiásticas e da

reforma da doutrina. Paulo VI foi o Papa dos anos 60 e 70 que vivenciou esta

mudança de postura da Igreja diante do mundo, portanto, um papa de transição, em

uma época de buscas de novas formas de ser Igreja Católica no mundo. Bernstein e

Politi117

afirmam que ―o Papa Paulo VI tinha passado seus últimos anos cada vez

mais atormentado pelo dilema de como equilibrar a continuidade doutrinária, o

consenso dos fiéis e os ditames da sua própria consciência‖.

Em setembro de 1978, um mês depois da eleição de João Paulo I, o Vaticano

de repente encontra-se em meio a uma enorme confusão. O recém eleito Papa, Albino

Luciani, é encontrado morto em seu quarto, vítima de um infarto do miocárdio,

segundo o boletim oficial. A notícia da morte do Papa pegou todos de surpresa,

inclusive Karol Wojtyla, que já havia recebido uma quantidade considerável de votos

na eleição de Albino Luciani. No mínimo, ele poderia imaginar que eram grandes as

chances de não comparecer ao próximo conclave somente como espectador ou mero

eleitor.

Segundo os autores118

, a tensão de Wojtyla se confirmou, pois, dos 108

cardeais presentes no novo conclave, 99 lhe deram os seus votos. O inimaginável

ocorreu: foi escolhido um Papa de um país entregue à União Soviética, um país de

um governo marxista e ateu. Era o primeiro Pontífice não-italiano em 450 anos. Um

Papa jovem, com apenas 58 de idade. Para expressar o seu compromisso com o

legado dos três últimos Papas e sua afinidade com Albino Luciani, adotou o nome de

João Paulo II. Paolo Vian registrou em um jornal este acontecimento insólito da

seguinte forma: ―Un Papa nuovo. Un Papa che vieni da un paese lontano, dalle

chiese del silenzio e della persecuzione. Un Papa che viene dall’est, daí campi di

117

Ibid. p.408 118

Ibid. p.157-167

73

deportazione e di sterminio. Un Papa della terra dei confesssori e dei mártir,

baluardo della fede e della liberta contro regimi ateistici e totalitari‖.119

Karol Wojtyla torna-se, assim, João Paulo II. Desde cardeal ele já possuía um

impulso por viagens, que na função de Papa ficou ainda mais evidente. Paulo VI em

15 anos de papado fez apenas oito viagens ao exterior e a destinos óbvios, com

significados religiosos. Visitou lugares como Jerusalém, Istambul, Fátima, Bombaim

e a sede das Nações Unidas em Nova York. Já João Paulo II nos primeiros seis anos

de seu pontificado visitou lugares como a Polônia, México, Irlanda, Estados Unidos,

Turquia, Zaire, Congo, Quênia, Burkina Fasso, Costa do Marfim, França, Brasil,

Alemanha Ocidental, Paquistão Filipinas, Guam, Nigéria, Gabão, Guiné Equatorial,

Portugal, Grã-Bretanha, Argentina, Espanha, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, El

Salvador, Guatemala, Honduras, Belize, Haiti, Áustria, Coréia, Canadá e África do

Sul. Além de um impulso por viagens, pode-se dizer também que tal condição fazia

parte da sua diplomacia e o simbolismo que isso representava era uma coisa inédita

até então.

Ele estava cobrindo sistematicamente o globo, dirigindo-se pessoalmente a

multidões de católicos e não-católicos. Literalmente, bilhões de pessoas o tinham

visto na televisão. No dia dedicado a S. Pedro e S. Paulo, 29 de junho de 1982, ele

disse aos cardeais no Vaticano que suas viagens eram um exercício do ―carisma de

Pedro numa escala universal‖. – Se ficasse no Vaticano, como a Cúria gostaria que

fizesse – observou ele para seu amigo, padre Malinski - então ficaria sentado em

Roma escrevendo encíclicas, que seriam lidas apenas por um punhado de pessoas.

Mas se viajar e for às pessoas, então me encontrarei com uma porção delas, tanto

119

VIAN, Paolo. Un Papa ―Nuovo‖. In L’Osservatore Della Domenica nº 42, Roma, p. 05, 22 de Outubro

de 1978. ―Um novo Papa. Um Papa que vêm de um país distante, da igreja do silêncio e da perseguição. Um

Papa que é do Leste [oriente], dos campos de deportações e de extermínio. Um Papa da terra da confissão e

martírio, bastião da fé e da liberdade contra o regime ateu e totalitário‖. (Tradução livre do autor).

74

gente simples como políticos. E elas me escutarão. Caso Contrário, nunca virão a

mim.120

Sua primeira viagem papal foi para a América Latina em 1979,

especificamente ao México, para a Conferência dos Bispos Latino-americanos, a

convite do arcebispo de Guadalajara. O México é um país onde a grande maioria da

população é católica, embora naquela época o México possuísse uma constituição

anticlerical. Os padres não podiam sequer usar suas batinas nas ruas e o país não

mantinha relações diplomáticas com a Santa Sé. O Governo não demonstrou nenhum

interesse na visita papal. Esta era a atmosfera do México durante a primeira viagem

de João Paulo II.

Segundo Bernstein e Politi121

, na véspera de sua chegada, alguns jornais

noticiaram como a ―chegada de um papa católico‖, enquanto outros noticiaram a

chegada de ―um polonês de cinqüenta e oito anos de idade‖. Quando o avião chegou,

não havia formalidades nem recepções; somente o Presidente o recebeu. Porém o

povo mexicano rompeu o cordão de isolamento correndo em direção ao Papa. Na sua

primeira viagem papal, João Paulo II trouxe uma notória visibilidade à Igreja,

visibilidade esta que a instituição havia perdido há um bom tempo. Os autores

afirmam que ―uma criança correu para abraçá-lo, um homem enorme abriu seu

poncho na frente do Papa e atirou uma cascata de rosas‖. Eles ainda dizem que um

sombreiro de aba larga foi na direção de João Paulo II. Ele colocou este sombreiro na

cabeça e ―com esse pequeno gesto, conquistou o México... e grande parte do mundo‖

Evidentemente que os autores aqui querer fazer alusão ao poder simbólico deste ato.

O que se pode afirmar também é que este simbolismo, característico deste papado, foi

o fator nevrálgico para a construção de seu ethos.

120

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.402 121

Ibid. p.208

75

2.2.1 – O papado e a queda do comunismo

Patrick Michel122

afirma que ―João Paulo II é o último Papa‖. Não se trata para

ele de o último no sentido literal da palavra, mas o último Papa que ―teve condições

para dar crédito, por menor que fosse, à tripla ficção da universalidade, da autoridade

e de uma norma que tenha sentido e seja válida em toda parte e para todos‖. Para

Michel ―somente o político tem condições de tornar operacional‖ esta característica.

Porém, para o autor esta característica é oriunda do fato de a estratégia católica de

compensação profética, estratégia onde o discurso profético não é ouvido e

justamente por isso a Igreja o conserva para além de qualquer julgamento, fracassar

ante o contexto secular, a luta ―contra um processo multiforme de

desinstitucionalização da fé, cujo efeito principal é privar a Igreja de seu poder‖.

Assim a crise de civilização que atingiu o homem no final do segundo milênio para

João Paulo é a ―distância tomada em relação à Igreja‖.

Cornwell123

afirma que na visão de João Paulo o pluralismo, a democracia e a

livre iniciativa podem levar a novas formas de tirania se não houver uma cultura

moral para ―lhe impor restrições e lhes dar forma‖. A partir desta visão, João Paulo

via na Igreja Católica os ensinamentos sociais que seriam vitais para esta nova ordem

mundial. Michel124

afirma que a Igreja já mostrava esta preocupação na encíclica

Mirari vos (1832) do Papa Gregório XVI e na Quanta cura (1864) do Papa Pio IX.

Assim, o discurso de ―deploração da perda‖ devido ao desaparecimento de uma

referência estruturadora, fez com que João Paulo II se transformasse em um indicador

do desencantamento do mundo. Em conseqüência desta condição, o Papa ―ao

pretender submetê-la a uma referência total‖, acabou por incriminar a essência da

própria democracia, pois a Igreja seria a referencial total. Assim, João Paulo II é o

Papa da perda do poder espiritual. Michel afirma que foi o político que estruturou

este papado, sendo a queda do comunismo o acontecimento central de onde tudo gira.

122

LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais

do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p.345 123

CORNWELL, John. A Face… p.142 124

LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.349

76

Para Bernstein e Politti, ―João Paulo II, o Papa dos ‗direitos dos homens‘, oriundo de

um país no qual, segundo ele dizia, o primeiro dever da Igreja era defender os direitos

do homem, deu a impressão de constituir o próprio vetor de um processo de saída do

comunismo e, portanto, da instauração da democracia política‖.125

Como vimos, desde quando era padre o Pontífice havia convivido com o

comunismo. Michel126

afirma que até 1989 o Papa foi uma referência para todos que

estavam interessados no fim do comunismo. Por isso, quando João Paulo afirmou que

o principal são os direitos dos homens, ele ―credibiliza um dispositivo de resistência,

inteiramente centrado na limitação do político‖. O local onde se deu a principal

articulação política de João Paulo foi em seu país de origem, a Polônia. O regime

Comunista naquele local teve uma plataforma que contrapôs sua essência e

funcionamento encabeçados pelo Papa. Michel continua afirmando que o primado

pelos direitos do homem o qual defendia João Paulo, possibilitou articular uma

plataforma contra o comunismo que mobilizou os operários, intelectuais e Igreja.

Devemos aqui observar, que devido a isso, a Polônia, desde a primeira visita de

João Paulo II como pontífice, nunca mais foi a mesma. Bernstein e Politi127

afirmam

que do avião do Papa era possível enxergar filas intermináveis de pessoas e multidões

se acumulando na rota em que ele seguiria do aeroporto até o centro da cidade. Nos

primeiros momentos da visita papal, confirmou-se que na Polônia a Igreja alcançara

um status sem precedentes em qualquer outro país socialista. A Igreja era realmente

um poder na Polônia devido a toda sua história, condição política frente ao regime

comunista e ligação com a população polonesa. Os autores afirmam ainda que

durante os nove dias da estadia do Papa, o país parecia em transe ou em êxtase, não

só por um compatriota seu que havia atingido o patamar mais alto da Igreja e que

estava voltando pra casa, mas era como a chegada de um messias. Na manhã seguinte

à chegada de João Paulo II à Polônia, o pontífice realizou uma missa para dezenas de

milhares de universitários na frente da igreja de Sant‘Ana. Esperava-se atrair para o

125

Ibid. p.350 126

Ibid. p.351 127

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.460

77

evento cerca de 30 mil estudantes, porém rapidamente cresceu para uma reunião de

200 mil pessoas. Nas suas homilias128

, João Paulo II deferiu palavras que logo de cara

romperam a política externa do Vaticano com Estados comunistas, a Ostpolitik, que

já durava 20 anos. Em momento algum pronunciou uma palavra sequer que pudesse

iniciar um confronto de Igreja e Estado. Cornwell129

afirma que a ―mágica que ele

realizou foi a de converter a reprimida insurgência, potencialmente violenta, numa

pacífica, mas não menos determinada transformação de consciência‖. Simplesmente

estava encaminhando a Igreja para desempenhar um novo papel não só na Polônia,

mas também na Europa Oriental, na União Soviética e em questões mundiais. Ao

tratar diretamente com os rumos de um regime comunista que era ativo no país, ele

automaticamente tornara-se uma figura de representatividade mundial nesta questão.

Bernstein e Politi registram:

Através dele, a Igreja estava reivindicando um novo papel, não mais apenas

pedindo um espaço para si mesma. Através do Papa, estava exigindo respeito tanto

pelos direitos humanos como pelos valores cristãos, respeito para cada homem e

mulher e a autonomia do indivíduo. Essas exigências representavam um ataque

frontal contra as pretensões universais da ideologia marxista, que a esta altura

havia se transformado numa casca vazia nos países sob a influencia soviética.130

Fica claro então que João Paulo II, em seu país de origem, se tornou a

inspiração e o protetor do Solidariedade, um movimento de trabalhadores não-

comunistas, que crescia no país, e recebia fundos financeiros do ocidente para sua

atuação. Um de seus líderes, devido à tamanha ligação com o pontífice, chegou a ser

recebido em audiências privadas no Vaticano. Cornwell131

afirma que existem

indicações que João Paulo doou 50 milhões de dólares para este movimento. Esta

128

Homilia é o comentário do Evangelho, depois de sua leitura, por ocasião da missa. 129

CORNWELL, John. A Face… p.121 130

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.15 131

CORNWELL, John. A Face… p.119

78

soma foi provavelmente doada através do Banco do Vaticano. Cornwell afirma que

―circulavam rumores de que o dinheiro tinha sido passado para o Solidariedade via

Roberto Calvi, o banqueiro da Máfia que em 17 de junho de 1982 foi encontrado

enforcado sob a Ponte de Blackfriars em Londres‖.

A liderança comunista da Polônia sofreu um profundo impacto com a presença

de João Paulo II, pois aquela situação era enxergada pela liderança como uma

revolução disfarçada de preces. Até porque, João Paulo II, além de inflamar o povo

em um encontro que teve com líderes poloneses, apresentou uma lista de

reivindicações e de garantias de direitos humanos básicos que era inconcebível para

um país comunista. Mesmo não querendo derrubar o sistema comunista, estava

lançando uma política pessoal de pressionar o regime para obter mudanças na

conduta do governo, uma política baseada nos princípios de igualdade e justiça, a

mesma propaganda usada pelo comunismo, mas que não ocorria na prática. Isso

causou uma desestabilização no sistema, pois o papel de igualdade e justiça que o

governo não conseguia colocar em prática, a Igreja era capaz de fazer, ou ao menos

representar. Para um país cujo governo era ateu, discursos de caráter religioso se

tornaram muito mais do que simplesmente um estado de espírito. Assim se expressa

João Paulo II132

, conforme o L’Osservatore Romano:

Nestas palavras exprime-se a doutrina social da Igreja que sempre dá apoio

ao autêntico progresso e ao desenvolvimento pacífico da humanidade; por

conseguinte – enquanto todas as formas do colonialismo político, econômico ou

cultural continuam em contradição com as exigências da ordem internacional – é

necessário apreciar todas as alianças e os pactos que se baseiam sobre o respeito

recíproco e sobre o reconhecimento do bem de cada nação e de cada Estado. (...) E

com a mesma, ou talvez até com aumentada intensidade, em conseqüência da

distancia, continuarei a sentir no meu coração tudo o que poderia ameaçar a

132

JOÃO PAULO II, L’Osservatore Romano, em 10 de Junho de 1979, p. 05

79

Polônia, e que poderia lesá-la, causar-lhe prejuízo – o que poderia significar

estagnação ou crise.

Esse impacto causado por João Paulo II diante do mundo comunista não foi

exclusividade da Polônia. William Casey, diretor da Agência Central de Inteligência

dos Estados Unidos (a CIA) se encontrou com o pontífice em Roma, no início do

governo Reagan, e entregou-lhe uma foto tirada de um satélite espião da Praça da

Vitória, Varsóvia, em 1979 na missa rezada por João Paulo II. Bernstein e Politi133

defendem a idéia de que aquela foto demonstrou que do outro lado do mundo o Papa

também era analisado. E a mesma foto ajudou a selar uma aliança secreta informal

entre a Santa Sé e o governo do presidente Ronald Reagan. Ao longo da história,

Reagan e João Paulo II se encontrariam algumas vezes até que o comunismo caísse,

primeiro na Polônia, depois na Europa Oriental e, finalmente, na própria União

Soviética. Ao longo desses anos, João Paulo II recebia informações da CIA, não

somente sobre a Polônia, mas sobre qualquer assunto que importasse ao Pontífice ou

à Santa Sé. João Paulo II foi, sem dúvidas, um fator crucial para a queda do

comunismo.

Desde quando tomara posse [Ronald Reagan], vinte meses depois de o

satélite norte-americano ter fotografado o Papa na Polônia, Casey e seu protetor,

Ronald Reagan, tinham chegado à conclusão de que havia uma possível terceira

superpotência no mundo – o quadrado de vinte quarteirões da cidade-Estado do

Vaticano – e que seu monarca, o Papa João Paulo II, tinha sob seu comando um

notável arsenal de armamento não-convencional que poderia contribuir para alterar

133

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.20

80

o equilíbrio da Guerra Fria, principalmente com o apoio ostensivo e clandestino

dos Estados Unidos.134

O poder político do Papa havia aumentado tanto que Casey chegou a informá-

lo que a Polônia era a mais alta prioridade da política externa norte-americana. Para

Reagan, pouco importava se o Papa não queria o colapso do comunismo, que seus

interesses não fossem os mesmos de João Paulo II, o que importava para Reagan é

que o Pontífice poderia realizar algo que era o objetivo de suas próprias políticas

globais. A Guerra Fria agora não era mais só entre Moscou e Washington, mas agora

existia o Vaticano e Varsóvia. A Santa Sé somente assumiu que houve uma aliança

secreta com os Estados Unidos 10 anos após esta ocorrer. Bernstein e Politi135

assim

afirmam:

Uma década mais tarde, por ocasião da primeira notícia pública sobre uma

Santa Aliança entre os Estados Unidos e o Vaticano, Gorbachev (a época secretário

de Agricultura do Comitê Central) escreveria: ―Pode-se dizer que tudo que

aconteceu na Europa Oriental nos últimos anos teria sido impossível sem os

esforços do Papa e o enorme papel, inclusive o papel político, que ele

desempenhou na arena mundial‖. A essa altura, Gorbachev e Reagan tinham

deixado o cenário mundial e apenas o Papa envelhecido ficara para vociferar ante o

novo mundo que ele tinha ajudado a tornar realidade.

João Paulo II definitivamente estava tornando a atuação da Igreja cada vez

mais relevante no cenário mundial. Os Estados Unidos perceberam que o Vaticano

era um potencial ―aliado‖, pois muitos de seus interesses andavam em paralelo com

134

Idem. 135

Ibidem, p.21

81

os interesses norte-americanos. Por exemplo, na Nicarágua, em 1979, os sandinistas

derrotaram a oligarquia da família Somoza depois de 40 anos de ditadura apoiada

pelos Estados Unidos. Entretanto, surgiu no país uma linha da Igreja Católica,

denominada ―Igreja do Povo‖, influenciada por uma reflexão teológica denominada

de ―Teologia da Libertação‖, a qual seus adversários atribuíram ser simpática à ideais

marxistas. Esta corrente de pensamento não agradava aos Estados Unidos, muito

menos ao Vaticano. Por indicação de William Casey, João Paulo II foi fazer uma

visita à América Central e, dentre os países visitados, estava a Nicarágua. João Paulo

II passava uma mensagem com o intuito de encorajar a transição para a democracia

ao mesmo tempo em que procurava bloquear as forças esquerdistas que estavam

alinhadas à Cuba ou à União Soviética. Quando os sandinistas tomaram o poder, o

conflito interno da Igreja sobre a participação dos sacerdotes no governo

revolucionário, a chamada ―Igreja do Povo‖ não resistiu à ofensiva desencadeada

pelo Vaticano. Como fator político, esta Igreja progressista foi importante antes do

período revolucionário e durante este; como movimento social, nunca alcançou a

amplitude e o potencial de outros países. Sobre este assunto, Bernstein e Politi assim

registram suas observações: ―Em meio aos aplausos ininterruptos de um grande

contingente de freiras colocadas à direita do altar, João Paulo II insistiu em que, para

o bem da unidade da Igreja, era preferível para as pessoas ‗abandonar as idéias

próprias, os projetos próprios, os engajamentos próprios, mesmo que sejam bons‘‖.136

A visão de João Paulo II demonstrava que a Igreja poderia ser um fator

preponderante no cenário mundial, não apenas uma entidade episcopal e de caráter

diplomático, mas também uma força humanitária. Bernstein e Politi137

afirmam que o

Papa João Paulo II nunca se ―concentrara exclusivamente no funcionamento interno

da Igreja. Sempre vira a Igreja como um fator proeminente no mundo, não apenas

uma entidade espiritual e diplomática, mas também uma enorme força social e

humanitária‖. Para eles, a Igreja Católica educava ―mais pessoas do que qualquer

instituição não-governamental no mundo, prestava assistência a mais refugiados,

136

Ibidem, p.375 137

Ibidem, p.445

82

administrava mais hospitais, possuía mais tesouros culturais‖. João Paulo II

conseguiu um novo papel para a Igreja, principalmente nos anos 80, como

conseqüência do seu engajamento com causas sociais, vendo consolidar-se este

aspecto que deixou um caráter universal para o papado. Daí mais uma observação de

Bernstein e Politi:

O fim do comunismo marcou o começo do Terceiro Ato do Pontificado de

João Paulo II. O Primeiro Ato tinha sido de orgulhosa confirmação de sua

mensagem cristã depois de anos de incerteza: - Abram as portas para Cristo! – O

Segundo Ato, nos anos 80, viu a consolidação de um papel universal para o Papado

e a batalha vitoriosa pela libertação da Polônia do totalitarismo soviético.138

A queda do comunismo foi sem dúvidas o fato de maior repercussão para João

Paulo II e para a Igreja. Embora este Papa tenha se tornado um dos heróis da queda

do comunismo, seu ideal de evangelização se dissipou junto com o final do

comunismo. Patrick Michel139

afirma que participação da Igreja no episódio da queda

do comunismo teve dois erros: o primeiro sobre o conteúdo dos direitos do homem,

as partes que constituíram a plataforma que ocasionou a queda do comunismo

abraçaram a causa, porém sem definir quais seriam tais direitos. Segundo o autor,

para o Papa a vitória sobre o comunismo era a vitória da religião sobre a origem do

comunismo ateu, a modernidade.

Após a queda do comunismo, as sociedades que até então estavam sob o

controle comunista adotaram todos os mesmos defeitos das sociedades ocidentais.

Não existe mais um ―adversário comum‖ entre o Papa, os operários poloneses e os

Estados Unidos. O Papa eslavo que triunfara sobre o comunismo fazia o Vaticano

crer que este fato seria um aspecto importante na reconquista do mundo. Segundo

138

Ibidem, p.494 139

LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.352

83

Michel140

, essa visão por parte de João Paulo II o leva a cometer mais três erros.

Segundo o autor, João Paulo II acredita, ou finge acreditar, e leva a acreditar que o

comunismo seria uma versão bárbara da modernidade; o esquema no Leste Europeu

era uma luta entre religião e política, quando de fato era uma ―guerra de religiões‖; é

possível ser parte integrante de um conflito e ficar fora dele, pois o simples fato de

criticar a modernidade era suficiente para criar um espaço não regido por ela. Assim,

a Polônia, terra natal de João Paulo II, não é mais a favor dos ideais da Igreja, mas

contra eles na medida em que caminha para a democracia.

Para Michel141

, João Paulo II encontra dificuldade em afirmar um poder

espiritual por conta da individualização da fé, além do que afirmar um poder religioso

esbarra nessa desinstitucionalização da fé. A questão da democracia também é um

grande empecilho para o pensamento de João Paulo II. Afirmar uma hierarquia como

é a organização católica, vai ao encontro do consenso sobre a democracia, a recusa do

autoritarismo. Porém, a Igreja reafirma sua universalidade como uma permanência

em oposição à mudança. Entretanto, nos dias de hoje, o universal deixou de ser

plausível, assim, questiona o autor, ―o que sobra para Igreja então‖?

Michel142

afirma que ―todos que se exprimem publicamente expõem-se à

contradição‖. Além do mais, ocorreu um ―esgotamento do monopólio de gestão do

capital simbólico‖. A saída para esta condição que se deu no papado de João Paulo II

foi a reafirmação de valores humanos e morais, valores que nenhuma maioria ou

nenhum Estado poderá criar, modificar ou destruir. Em tempos onde o religioso é

individualizado e desinstitucionalizado, a questão do social, principalmente vinculado

com a paz, surgiu como um destes valores reafirmados durante este papado. No

universo da mobilidade o que conta não é a verdade absoluta, mas a autenticidade.

Assim, João Paulo II faz uma adaptação do discurso católico. Para Michel, a

democracia tem o respeito do Pontífice, mas tem também sua preocupação em

relação à sua ―saúde‖. É a recusa da democracia de se apresentar como árbitro da

verdade que legitima o pensamento do Papa.

140

Idem, p.355 141

LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.360 142

Idem, p.361

84

Essa é a situação da Igreja da qual João Paulo II foi peça chave para atingir

visibilidade e o prestígio que se moldaram no decorrer de seu papado. A Igreja chama

para si um papel humanitário que se torna o cerne para as mediações e intervenções

que fez ao longo desses anos. O carisma, a liderança e ao mesmo tempo a diplomacia

que exerceu, lhe deram uma grande bagagem e experiência em questões

internacionais. Claro que nem em todas as questões João Paulo II conseguiu seus

objetivos, como, por exemplo, em 1991 quando George Bush decidiu lançar a

operação ―Tempestade no Deserto‖, não dando a menor atenção aos apelos do Papa,

cobrindo-o com expressões de apreço e depois o ignorando, João Paulo II tornou-se

uma espécie de símbolo da paz. Ele mesmo abraçou a responsabilidade por questões

que envolvesse a paz em qualquer parte do mundo em que pudesse contribuir. É

como se Karol Wojtyla tivesse incorporado João Paulo II rapidamente, ter percebido

a importância de um Papa e de cada decisão que tomaria daqui por diante.

Conclusão

João Paulo II foi um dos protagonistas do cenário mundial no final do século

XX e marcou com seu carisma e personalidade os rumos da Igreja Católica. Oriundo

do Leste Europeu se mostrou um crítico incisivo dos totalitarismos e é considerado

por historiadores e cientistas políticos como um dos principais fatores que

desencadearam a queda do comunismo no final dos anos 80. Conseguiu apoio durante

esses anos 80 da política dos Estados Unidos, liderada por Ronald Reagan, um

convicto anticomunista.

Após a queda do muro de Berlim e o resultado da luta contra o comunismo se

mostrar desfavorável para as pretensões da Igreja, João Paulo II passou a denunciar

com firmeza os excessos do capitalismo, suas injustiças sociais, a solicitar o perdão

da dívida externa dos países pobres e também criticou o perigo de que uma só

potência dominasse o cenário mundial.

85

João Paulo II foi uma voz de peso nos momentos de investidas militares,

principalmente por parte dos Estados Unidos, que ocorreram durante o seu papado.

Ele pediu com todas suas forças que não se desencadeassem guerras imprevisíveis,

cujas conseqüências eram desconhecidas e que podia desembocar numa guerra de

religiões. Em inúmeras ocasiões públicas, ele discursou pela paz no Oriente Médio,

fez referência às guerras na África e aos conflitos na América Latina.

A condenação à guerra foi explícita ao longo de seu pontificado, tanto que

chegou a figurar entre outros para o Prêmio Nobel da Paz. Além de seus

pronunciamentos, o Papa cumpriu gestos históricos e simbólicos sem precedentes e

de grande impacto político e moral.

Foi o primeiro pontífice da história que entrou em uma sinagoga, em Roma, e a

ter estabelecido relações diplomáticas com o Estado de Israel. Foi também o primeiro

chefe da Igreja católica que entrou em uma mesquita e que pediu perdão em nome da

Igreja por todos os erros cometidos pelos católicos durante as cruzadas, as guerras de

religião, o tráfico de negros e contra os judeus. Foi também o primeiro pontífice que

visitou Cuba, o último reduto do comunismo no Ocidente, em janeiro de 1998, e a

aparecer em público com Fidel Castro. Esteve também no palácio presidencial

chileno com o ditador Augusto Pinochet, suscitando a desaprovação de muitos

católicos, que interpretaram o gesto como uma benção ao regime militar.

Esforçou-se também nas relações inter-religiosas. Apesar de seus empenhos a

favor da unidade, não conseguiu aproximar os ortodoxos nem cumpriu sua desejada

viagem a Moscou, para visitar o patriarca Alexis II. O Papa, que mobilizou as

multidões, sobretudo os jovens, durante suas inúmeras viagens pelo mundo e em

particular na América Latina, não pôde deter, entretanto, a redução das vocações

religiosas e inclusive o avanço das seitas protestantes nesse continente, onde vive a

metade dos católicos.

Houve também o lado negativo, se assim pode-se dizer, de seu papado.

Internamente, foi um conservador para o Vaticano. Condenou firmemente os métodos

anticoncepcionais e o uso do preservativo para evitar a AIDS. Foi defensor de

rigorosos princípios em matéria de moral sexual e família. Tais posturas acabaram

86

por ―desencantar‖ muitos católicos imersos na modernidade, pois paira uma sensação

de incompreensão diante da evolução dos costumes no mundo moderno por parte do

Vaticano.

Um papado tão rico de fatos marcantes e simbolismos certamente influenciou

as práticas retóricas de João Paulo II e da Igreja Católica naquele período.

Certamente os atos retóricos do início do papado, nos anos 70, no final do papado e

começo do século XXI, possuem significativas mudanças em sua forma. No âmbito

da doutrina católica dificilmente mudanças ocorreram, porém politicamente a prática

retórica certamente mudou. E é isto que será exposto no próximo capítulo desta

dissertação.

87

Capítulo III

A retórica da Igreja Católica no papado de João Paulo II durante a mediação no

canal de Beagle (1979) e invasão do Iraque (2003)

“A retórica ressurge sempre em período de crise”

Michel Meyer

Introdução

Neste capítulo serão analisados, à luz da teoria de Tereza Halliday (Atos

Retóricos – mensagens estratégicas de políticos e igrejas. Summus, 1988), os atos

retóricos referentes ao período do papado de João Paulo II. Os atos retóricos

escolhidos foram: o discurso relativo à mediação no Canal de Beagle no início dos

anos 80, quando a Santa Sé foi convidada a mediar o conflito entre Chile e Argentina,

conflito que quase terminou em guerra no final dos anos 1970. Será mostrado como a

retórica se mostrou adequada na mediação entre Chile e Argentina em disputas

territoriais no Cone Sul; o segundo ato retórico a ser analisado se deu durante a

invasão norte-americana ao Iraque no ano de 2003. Neste fato, a Santa Sé tentou

evitar que tal invasão ocorresse por meio da prática retórica e diplomática. O

interessante é que este fato se deu já no final do papado de João Paulo II, pois ele

faleceu dois anos após o conflito, e que o conflito envolvia duas nações não-católicas;

com forte influência protestante presente nos Estados Unidos, e o Iraque, onde

majoritariamente o islamismo predomina. Foram dois momentos distintos do papado.

Um deles situado bem no início e o outro já no final. Porém, ambos os eventos foram

relevantes para a Santa Sé e neles a retórica pode ser perfeitamente separada para

uma análise do discurso católico.

88

3.1 - O Caso do Canal de Beagle

O caso do Canal de Beagle ganhou notoriedade entre os anos 1970 e início dos

anos 1980 quando dois países vizinhos quase entraram em guerra por questões de

limites e soberania.

3.1.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica no Canal de Beagle

A situação retórica em questão teve sua origem no conflito pela posse do Canal

de Beagle, no extremo sul da América do Sul, nos limites entre Chile e Argentina. A

beligerância em questão era a disputa pela soberania das ilhas Picton, Lennox e

Nueva, situadas na entrada oriental do Canal de Beagle e do Cabo Horn, entre os

Oceanos Atlântico e Pacífico.

Fonte: Google Earth

89

A questão da soberania e a disputa entre Argentina e Chile sobre o canal já é

antiga. Porém, o objeto desta pesquisa é focar especificamente a mediação da Santa

Sé e a sua prática retórica. Entretanto, para melhor contextualizar o conflito, um

bosquejo histórico sobre os antigos tratados, negociações e questões de soberania se

faz necessário. Retomaremos aqui algumas informações contidas no texto de Salmo

Caetano de Souza em seu livro Mediação da Santa Sé na questão do Canal de

Beagle, publicado no ano de 2008.

Os limites entre a Argentina e o Chile foram estabelecidos no século XIX, onde

foi levada em conta a linha natural que é formada pela Cordilheira dos Andes, a qual

se estende por aproximadamente cinco mil quilômetros. Entre 1822 e 1833, os

chilenos estabeleceram como seu limite sul o Cabo Horn, o ponto mais antártico das

Américas. Desde 1840 o país começou a utilizar a zona do Estreito de Magalhães, um

canal que liga os Oceanos Atlântico e Pacífico, local que foi fundamental para a

navegação internacional da época porque livrava as embarcações de cruzarem a

temida Passagem de Drake, entre o Cabo Horn e a Antártida, famosa por ser o local

com as piores condições meteorológicas marítimas do mundo. Em 1856 foram

instalados assentamentos militares chilenos em Punta Arenas, cidade próxima ao

Estreito de Magalhães, ocasionando um mal-estar nas relações com a Argentina, que

afirmava serem suas estas possessões. Neste mesmo ano, ambos os países firmaram

um Tratado de Paz, Amizade, Comércio e Navegação, onde se aplicava o princípio de

que a cada Estado corresponderiam os territórios efetivamente ocupados por eles em

1810. Em caso de conflito, eles seriam resolvidos pela via diplomática ou arbitral.

Nesta época, a região da Patagônia era somente ocupada por pequenas populações

indígenas.

Os primeiros conflitos que se tem conhecimento na região datam do ano de

1888, sete anos após a assinatura do Tratado de Limites, no momento em que um

mapa argentino surge com as ilhas em questão (Picton, Lennox e Nueva ) sob a

soberania argentina. Tal tratado leva em consideração conceitos de Direito

Internacional, como o Uti possidetis iure – ―como possuía, possuirás‖. Embora as

ilhas possuam pequenas extensões, seu valor estratégico por estar entre os oceanos

90

Atlântico e Pacífico é muito grande, o que ocasionou um longo conflito entre ambos

os Estados no final do século XIX, e durante grande parte do século XX, pois a cada

novo Tratado assinado, uma série de contestações e interpretações se seguia. Isso

provocou crises diplomáticas e aumento da tensão militar na região.

No ano de 1959, depois de uma série de incidentes, foi consolidada a

declaração dos Cerrillos, onde os governantes dos dois países se comprometeram a

buscar uma solução por meio da arbitragem. Em março de 1960, os países

concordaram que a Ilha Lennox seria de soberania do Chile e que se submeteria a

decisão inapelável da Corte de Haia a questão sobre a soberania das Ilhas Picton e

Nueva. Porém, este acordo não foi ratificado por nenhum dos dois países.

No ano 1970, a fim de resolver a questão pacificamente, nomeou-se como

árbitra a Rainha Elizabeth II da Grã-Bretanha, quem em 1977 considerou como

chilena a posse das três ilhas em litígio, pois eram vistas como uma unidade. Restou à

Argentina a posse da Ilha Becasses e a livre navegação para o acesso ao Ushuaia.

Porém, para os argentinos, através da projeção territorial, a posse por parte chilena

destas ilhas atrapalharia suas futuras reivindicações e seus direitos na divisão da

Antártida. Assim, a decisão favorecendo a República do Chile não foi bem recebida

pelos argentinos, que declararam no início do ano seguinte inválido o laudo arbitral e

se mostraram dispostos a tomar posse das ilhas pelo uso da força.

3.1.2 - O Problema Retórico no Canal de Beagle

O problema retórico em questão é conhecido como ―Conflito de Beagle‖, um

desacordo entre a Argentina e o Chile sobre a entrada oriental do canal de Beagle, o

que inevitavelmente afetava a soberania das ilhas ali localizadas e seus espaços

marítimos adjacentes. O conflito chegou a seu ponto culminante quando as Forças

Armadas da Argentina se dispuseram a ocupar as ilhas pelo uso da força.

91

Segundo Souza143

, a mediação da Santa Sé, na figura de João Paulo II, foi

formalmente assinada em Montevidéu no dia 8 de janeiro de 1979. Para o autor, o

esforço bilateral da resolução do conflito perdia terreno para um conflito bélico. A

mediação do Papa foi aceita por unanimidade em ambos os governos, pois a opinião

pública nos dois países era favorável à resolução do conflito. Houve um grande

alistamento nas Forças Armadas Argentinas, enquanto o Chile já procurava a

Organização dos Estados da América (OEA) a fim de solicitar intervenção, pois as

relações diplomáticas entre ambos os Estados estavam à beira da ruptura. Souza

afirma que ―faltavam apenas algumas horas para o desfecho do conflito, motivo pelo

qual surgia a decisão do Santo Padre de intervir no litígio‖. Assim, algumas

autoridades da Argentina foram convencidas e enviaram a contra-ordem dos ataques

que, naquele momento, já havia até se iniciado, porém sem grandes danos.

Bernstein e Politi defendem que para o papado, e até pessoalmente para João

Paulo II, a mediação ia além da resolução da controvérsia dos países católicos da

América Latina. Eles afirmam que o conflito em si não era o objeto principal desta

questão, mas a mediação se mostrara um sinal de novos tempos para a Igreja.

Segundo os autores, embora alguns críticos fossem contra tal mediação por se tratar

de ditaduras militares, João Paulo II sabia que uma empreitada bem sucedida era o

próximo passo para dar seguimento ao seu pontificado.

João Paulo II apoiava a ação humanitária do cardeal [Raúl Henríquez Silva144

],

porém achava que, quando a Santa Sé estava envolvida em iniciativas pela paz e a

justiça, tinha que tratar até com os regimes mais antipáticos. A questão do canal de

Beagle, em função da qual chilenos e argentinos tinham quase chegado aos tapas

algumas semanas antes, era importante para o Vaticano porque, depois de um

século de insignificância diplomática, o Papado estava uma vez mais sendo

chamado a desempenhar um papel em negociações internacionais. (...) Do ponto de

vista territorial, a disputa pelo canal de Beagle era um assunto periférico; para João

143

SOUZA, Ibid. p.9 144

Raúl Henríquez Silva era arcebispo de Santiago, opositor de Pinochet e havia instigado a fundação do

Vicariato da Solidariedade para auxiliar as vítimas do regime e defender os direitos humanos.

92

Paulo II o que contava era o sinal que emanava disso – a Igreja tinha que fazer sua

voz ser ouvida na cena internacional.145

A mediação da Santa Sé tornou-se, assim, um ato diplomático. João Paulo II é

o porta-voz que fala ou indica quem pode falar em nome da instituição Igreja

Católica, no caso, representada na figura da Santa Sé. O cardeal Antonio Samoré foi

o encarregado da questão, pois foi figura presente na região do conflito.

A eminência de um conflito militar aberto finalmente forçou os governos,

em janeiro de 1979, a assinarem o Tratado de Montevidéu, pelo qual eles aceitaram

a mediação da Santa Sé na pessoa do cardeal Antonio Samoré, representante

especial do Papa João Paulo II. Os governos congratularam-se com a oferta de

assistência intermediária na solução dos problemas na região sul e prometeram

‗considerar qualquer idéia a ser expressa pela Santa Sé‘.146

3.1.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico no Canal de Beagle

Segundo Souza147

, quando o Papa aceitou ser o mediador da questão e escolheu

o Cardeal Antônio Samoré, pediu a ambos os países envolvidos no conflito que

enviassem representantes junto ao processo mediador. O pontífice solicitou que

fossem pessoas ―entendidas nos aspectos técnicos da disputa, mas que fossem

também hábeis negociadoras, com imaginação e boa margem de independência‖. A

partir desta solicitação, pressupõe-se que esta solicitação corrobore com a adoção da

via diplomática como meio de resolução da beligerância, vez que o processo de

mediação seria com negociadores interados da situação de litígio e não simplesmente

representantes de cada nação.

145

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso

Tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996. P.203 146

Johnston, Douglas M. The Theory and history of the ocean boundary-making. Quebec, Canadá. Mc-

Gill-Queen‘s University Press. 1988. p.194 Tradução livre. 147

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.158

93

Um fato curioso é que, ainda segundo Souza148

, o representante que o governo

chileno desejava enviar deveria ser de ―idade madura, católico e possuir ampla

experiência diplomática‖. Entretanto, o representante escolhido realmente foi de

idade madura e possuía ampla experiência diplomática, porém não era católico, era

judeu. Na Santa Sé, seu nome foi muito bem visto mesmo não sendo católico, mesmo

porque em um processo de mediação internacional não poderia haver diferenciações

por causa de credos ou raças, embora seja praticamente impossível dissociar a figura

do mediador da figura do representante chefe da Igreja Católica Romana, em

negociações com um representante judeu do governo chileno.

Um processo de mediação caracteriza-se, segundo Muszkat149

, como um

―procedimento que traz em si a potencialidade de um novo compromisso político

capaz de reduzir a desigualdade e a violência‖. A autora afirma ainda que seu

objetivo é ―buscar acordos entre pessoas em litígio por meio da transformação da

dinâmica adversarial, comum no tratamento de conflitos, em uma dinâmica

cooperativa, improvável neste contexto‖.150

Necessariamente, a mediação consiste no

envolvimento imparcial de um terceiro membro: a figura do mediador. Ele tem por

função assistir e conduzir duas ou mais partes envolvidas no litígio a identificarem os

pontos de conflito e, assim, desenvolver de forma mútua propostas que tenham por

finalidade encerrar o conflito. O mediador, ou melhor, o representante de quem foi

escolhido a mediar (no caso a Santa Sé), participa de reuniões com as partes

conflitantes, apresenta propostas sobre a questão, coordena a discussão, facilitando a

comunicação entre eles. Em casos de impasse, sua função é intervir para auxiliar uma

fácil compreensão e reflexão dos assuntos e propostas. O mediador também não

impõe às partes uma solução ou sentença, sugestões e conselhos se enquadram

melhor nesta situação.

148

Ibid. p.159 149

MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos. São Paulo, Summus. 2008. p.09 150

Ibid. p.13

94

Souza151

afirma ainda que a mediação é um método diplomático de solução de

controvérsia. Sua natureza é política e comporta todo tipo de argumentação além da

argumentação jurídica. Para que aconteça a mediação, é necessário um acordo prévio

entre as partes, na forma de um pedido formal de um mediador, o que demonstra uma

predisposição de ambas as partes em solucionar o litígio. Assim, continua o autor, a

―essência da mediação consiste em aproximar possíveis divergentes e propostas‖.

O processo de mediação no Caso de Beagle começou, segundo Souza152

, com

viagens do cardeal Samoré entre as capitais da Argentina e do Chile para recolher

informações e se interar e colocar em andamento as posições de ambas as partes. O

cardeal também tinha que apresentar idéias e projetos para ambos os Estados. A fim

de reforçar a imagem de imparcialidade, quando o cardeal assistia a algum ato

religioso em um país, assistia também no outro. Souza afirma ainda que o mais difícil

para o Cardeal foi ―desbancar a desconfiança entre as partes, infundindo nelas a

virtude contrária, ou seja, a confiança na gestão do Papa e a credibilidade entre Chile

e Argentina‖.

Em maio de 1979 chegam a Roma as duas missões dos dois países para se

iniciar o processo de mediação da Santa Sé. A primeira fase da mediação foi entre

maio e junho deste ano. Embora o processo de mediação começasse apenas em maio,

a prática retórica de João Paulo II se iniciou no momento do Ângelus153

de primeiro

de janeiro daquele ano. O interessante é que em um momento de expressão de fé para

os católicos, o Papa se expressa sobre um conflito acerca de soberania estatal sem

fazer menção a qualquer ato político no conflito.

151

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.179 152

Ibid. p.188 153

Ângelus é o momento que corresponde às 06hs, 12hs ou 18hs do dia, no qual os católicos relembram o

momento em que o anjo Gabriel anunciou a Maria a concepção de Jesus Cristo. Trata-se de uma hora

celebrada diariamente através de preces e orações. O Papa tem por hábito fazer seu pronunciamento também

nesses momentos.

95

(...)y a la más reciente controversia surgida entre Argentina y Chile sobre la

Isla del Canal de Beagle. Las Misiones enviadas por la Santa Sede han tenido, en

uno como en otro caso, una cordial acogida, tanto por parte de las autoridades,

como por parte de la población. Es necesario ahora que la plegaria de todos

obtenga de Dios abundantes dones de clarividencia, equilibrio y fortaleza para que

puedan recorrer los caminos de la paz, y se alcance cuanto antes la meta de una

solución justa y honrosa.154

Segundo Souza155

, em setembro de 1979 o Papa recebeu novamente as duas

delegações, em audiência privada em sua biblioteca, a fim de estabelecer um método

de trabalho na mediação. Novamente em um momento do Ângelus João Paulo II faz

menção ao conflito entre os países. Aqui, o Pontífice já mostra um discurso mais

aprimorado, fazendo menção indireta até às ditaduras militares, no momento em que

toca no tema das pessoas desaparecidas. Diplomaticamente, através de construções

retóricas, temas que não possuíam ligação com a religião são mencionadas em um

momento de expressão de fé.

Como es bien sabido, Argentina y Chile tienen que resolver un problema,

que los divide, sobre la zona austral de sus territorios. Desde los primeros meses de

este año he aceptado la invitación a asumir la tarea de mediación. También los

obispos se están afanando para crear un clima de distensión en el que sea más fácil

superar la controversia. En la oración del Angelus de hoy, además de la alegría,

debemos hacernos eco también de las preocupaciones, inquietudes y sufrimientos

que no faltan en el mundo de hoy. No podemos olvidarnos cuando nos ponemos

ante Dios, nuestro Padre, y cuando nos dirigimos a la Madre de Cristo y Madre de

todos los hombres.

154

O discurso do Angelus de 1º de Janeiro de 1979 na íntegra encontra-se disponível em:

<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/angelus/1979/documents/hf_jp-

ii_ang_19790101_sp.html>. Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 155

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.188

96

Así, con ocasión de los encuentros con peregrinos y obispos de América

Latina, en especial de Argentina y Chile, se recuerda frecuentemente el drama de

las personas perdidas o desaparecidas.

Roguemos para que el Señor conforte a cuantos no tiene ya la esperanza de

volver a abrazar a sus seres queridos. Compartamos plenamente su dolor y no

perdamos la confianza de que los problemas tan dolorosos sean esclarecidos para

bien no sólo de los familiares interesados, sino también para el bien y la paz interna

de esas comunidades tan queridas para nosotros.

Pidamos que se acelere la anunciada definición de las posiciones de los

encarcelados y se mantenga un compromiso riguroso de tutelar, en cada

circunstancia en que se requiere, la observancia de las leyes, el respeto a la persona

física y moral, incluso de los culpables o indiciados de infracciones.156

Até o momento, as alocuções sobre o assunto proferidas por João Paulo II

foram em ocasiões especificamente religiosas. A proposta papal para a solução do

conflito foi feita em dezembro de 1980, diretamente às delegações da Argentina e do

Chile presentes em Roma. Diferentes aspectos e temas aparecem nesta construção

retórica que caminha entre ―vontade divina‖ e ―guerra entre os homens‖. João Paulo

atribui em diversos momentos do discurso a Deus o fato de que os países nunca

estiveram em guerra.

É verdade que, desde o momento em que os vossos povos adquiriram a

independência no concerto internacional, não faltaram divergências entre eles. É

verdade que nem sempre se verificou, nas relações mútuas, uma completa e

luminosa «tranquilitas ordinis», expressão concisa consagrada por Santo Agostinho

para definir de maneira insuperável a paz.

Mas também é verdade — e salientei-o em setembro do ano passado perante

membros destas representações governamentais que «é belo e consolador constatar

156

Este discurso do Angelus de 28 de Outubro de 1979 encontra-se disponível em:

<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/angelus/1979/documents/hf_jp-

ii_ang_19791028_sp.html>. Acessa no dia 11 de Janeiro de 2011.

97

que nunca houve um conflito bélico entre os dois Países». Trata-se de um facto

singular, talvez único na história das relações entre as Nações limítrofes. Quase me

atrevia a dizer que vejo nisto especial assistência da Providência de Deus

misericordioso.

Perante este facto, penso que ninguém poderá encontrar infundada ou

carecida de lógica esta consideração: se Deus assistiu durante este tempo com tanto

carinho ao desenvolvimento das relações entre as vossas duas Nações, como

poderíamos eximir-nos nós a fazer tudo o que está nas nossas mãos para não perder

esse dom inestimável da paz, privilégio da vossa história comum?157

Analisando retoricamente este trecho, João Paulo II inicia o seu discurso com

uma alegoria. Segundo Olivier Reboul158

, alegoria é ―uma descrição ou uma narrativa

que enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma

verdade abstrata‖. No primeiro parágrafo, João Paulo II trabalha com a questão da

divergência entre os países no âmbito internacional e encerra focando na busca de

uma paz utópica de Santo Agostinho. Já no segundo parágrafo, o pontífice utiliza-se

do exemplo como argumento. Para Reboul159

, o exemplo em retórica é ―uma indução

dialética, que vai de fato ao fato, passando pela regra subentendida‖, ou seja, procura-

se provar um fato futuro com uma ―regra‖ estabelecida a partir dos fatos passados. É

o que o Papa busca fazer ao citar que as nações limítrofes nunca estiveram em guerra.

No último parágrafo, João Paulo utiliza o argumento de autoridade: Deus. Reboul160

afirma que o argumento de autoridade ―justifica uma afirmação baseando-se no valor

de seu autor‖. Para ele, esta autoridade ―baseia-se na moralidade‖, enquanto que em

casos religiosos ―baseia-se na revelação‖. Assim, através de uma alegoria, um

exemplo e um argumento de autoridade, o Papa faz claramente uma construção

retórica neste discurso, argumentando com três figuras retóricas distintas para pousar

157

Discurso do Papa João Paulo II às delegações dos governos da Argentina e do Chile em 12 de Dezembro

de 1980. Disponível em:

<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1980/december/documents/hf_jp-

ii_spe_19801212_argentina-cile_po.html > Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 158

REBOUL, Olivier. Introdução... p.130 159

Ibid. p.154 160

Ibid. p.177

98

sobre o nós - nós no caso eles, o governo chileno e argentino - a responsabilidade de

buscar a paz. Interessante que João Paulo II não fala explicitamente sobre o conflito,

mas exalta muito a questão da paz – algo que posteriormente seria uma espécie de

―carro-chefe‖ em seu papado.

Se desta forma a controvérsia sobre a zona austral viesse a servir para que os

desejos profundos dos dois povos se cristalizassem em tais compromissos, parece

ao Mediador que nada de melhor se poderia desejar para essa zona do que

convertê-la em símbolo e prova irrefutável de nova realidade; o que na minha

opinião, se conseguiria declarando-a «Zona de paz», zona em cujo âmbito a

Argentina e o Chile procurarão daqui por diante corroborar a sua decisão de

convivência fraterna, abandonando todo o tipo de medidas ou atitudes que possam

parecer menos adequadas para o desenvolvimento das suas relações amistosas.161

Neste trecho, novamente o papa utiliza o exemplo como argumento.

Entretanto, este exemplo está atrelado a uma condição, se desta forma..., o que não

descaracteriza o exemplo em si. A paz que tanto exalta em seu discurso junto de suas

menções religiosas, caracteriza, segundo Reboul162

, um exórdio, figura retórica que se

encontra no início do discurso, ―que visa a tornar o auditório dócil, atento e

benevolente‖. Ao exaltar a paz, ele cria um acordo com o auditório, pois ambas as

delegações, assim como a opinião pública dos países, desejavam resolver a

controvérsia de modo pacífico. Este acordo não significa o acordo pela solicitação da

mediação, mas um acordo de valores, do verossímil entre as partes. Então, após estas

construções retóricas, ele efetivamente entra na questão do litígio.

Neste contexto, sou da opinião que possíveis limitações das aspirações

naturais, compreensíveis e respeitáveis, relativas àquela zona geográfica,

161

Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 162

REBOUL, Olivier. Introdução... p.248

99

dificilmente poderiam alcançar uma entidade tal que justificassem validamente a

não aceitação de sugestões e conselhos destinados à solução da controvérsia e o

consequente fracasso dessa integração, que já desde há tempo é objecto de

negociações e aspirações muito lógicas. Por outras palavras: se a solução deste

problema é destinada a abrir o caminho para um esplêndido desenvolvimento em

benefício das duas Nações, vale bem a pena consagrar a essa solução a melhor boa

vontade: as consequências vantajosas fariam, sem dúvida, esquecer todo o resto.163

Ao adentrar no litígio em si, primeiro João Paulo II expõe sua opinião sobre o

conflito, sustentando seu raciocínio com um argumento pragmático, o que, segundo

Reboul164

, é o argumento no qual se ―permite apreciar um ato ou um acontecimento

em função de suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis‖. O Papa não deixa

também de exaltar as partes envolvidas e de valorizar o peso da opinião pública, algo

que também viria a tornar-se um ponto nevrálgico em seu papado.

Tenho a convicção de que toda a opinião pública dos vossos Países — tão

interessada neste problema — não deixará de ajudar e amparar aqueles a quem por

razão das suas altas missões, corresponde tomar decisões adequadas nas próximas

semanas. Por meu lado, considero verdadeira obrigação dar testemunho da

diligência e da firmeza com que as Autoridades de ambas as nações, e todos os que

aqui as representaram, expuseram e defenderam o que consideravam patrimônio

das suas respectivas pátrias, com documentação abundantíssima e argumentos

muito variados, explicados em centenas de conversações. Creio que ninguém —

agora ou no futuro — deverá sentir-se autorizado a acusá-los de negligência ou

incapacidade na defesa dos legítimos interesses nacionais, apesar de a aceitação,

agora, das minhas sugestões e conselhos poder comportar modificações nas

posições por eles mantidas. Fique sempre tranquila a sua consciência depois de

terem cumprido cuidadosamente o próprio dever.165

163

Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 164

REBOUL, Olivier. Introdução... p.173 165

Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011.

100

Aqui João Paulo II inicia seu discurso com um entimenta, um ―silogismo

rigoroso, mas que se baseia em premissas apenas prováveis (endoxa) que podem ficar

implícitas‖.166

Tal figura fica caracterizada ao fazer alusão à opinião pública dos

países: Tenho a convicção de que toda a opinião pública dos vossos Países... Ao

discursar todo um parágrafo sobre os esforços dos países envolvidos, o Papa cria um

argumento de superação em sua construção retórica. Para Reboul167

, neste tipo de

argumentação a ―finalidade desempenha papel motor‖, na medida em que o

―obstáculo transforma-se então num meio de passar para um estágio superior‖. O

esforço dos países (o obstáculo) foi necessário para que se chegasse à resolução da

beligerância. Esta primeira construção retórica de João Paulo II do ano de 1980

acerca do conflito parece bem articulada na medida em que mescla menções

religiosas com menções políticas, propõe a paz e exalta os envolvidos. É uma

construção retórica, que visa persuadir, claramente feito na forma de um discurso

diplomático.

Segundo Souza168

, o conteúdo da proposta do mediador deveria permanecer

confidencial até a aprovação por ambos os governos. João Paulo havia solicitado que

ambos os governos deveriam expressar sua posição antes do dia 8 de janeiro de 1981.

A proposta papal de mediação concedia as ilhas em disputa ao Chile, enquanto a zona

marítima em questão seria uma zona econômica compartilhada por Chile e Argentina.

Em 25 de dezembro de 1980, o regime militar que estava no poder no Chile

professou sua aceitação à proposta papal. Já o regime militar argentino excedeu o

prazo dado pelo Papa. A resposta então veio em forma de uma declaração pública em

25 de março de 1981 onde o governo argentino solicitou mais precisões e detalhes

sobre a proposta mediadora. Assim, havia uma negativa por parte da Argentina.

A negativa por parte da Argentina se dava em torno da soberania das ilhas e

também da zona marítima em questão. Em 1982, João Paulo II recebe novamente as

delegações dos países para uma nova tentativa de conciliação. Neste mesmo ano, a 166

REBOUL, Olivier. Introdução... p.247 167

Ibid. p.175 168

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação...

101

Argentina entra em guerra com a Inglaterra pela soberania das ilhas Malvinas. Era

mais um empecilho no processo de mediação. Diplomaticamente, João Paulo II

novamente faz menção a outro assunto além do Beagle (as Malvinas), porém, de

maneira branda, evitando assim acirrar os ânimos de mais uma beligerância. É

novamente um exórdio.

Excelentísimos Señores Subsecretario y Embajadores, y demás miembros de

las distinguidas Delegaciones acreditadas para el desarrollo de los trabajos de la

Mediación,

Las preocupaciones de cada día y en especial de las últimas semanas por el

grave conflicto entre una de vuestras Naciones y otra grande y no menos querida,

no me han hecho olvidar el compromiso asumido, hace ya más de tres años, de

ayudar vuestros Países a encontrar la solución al diferendo en la zona austral.

A propósito de dicho conflicto, que ha tenido y sigue teniendo los ánimos en

suspenso ante el temor de un lamentable enfrentamiento bélico, me he expresado

repetidamente y en público durante los últimos veinte días, manifestando el deseo

vivo —que ahora renuevo— de que se encuentre, gracias a la buena voluntad de

ambas Partes, una solución satisfactoria basada en la justicia y en el derecho

internacional, que excluya el recurso a la fuerza.169

Este discurso de João Paulo II, do ano de 1982, segue as mesmas linhas de

pensamento do discurso de 1980, exalta a paz, opinião pública e o fato de que ambos

os países nunca estiveram em guerra. Entre 1982 e 1984, ano em que definitivamente

a controvérsia seria resolvida, a Argentina não só perde a guerra, mas também a

guerra das Malvinas trouxe grandes conseqüências internas e externas ao país. Assim,

assinado em 1984, o Tratado de Paz e Amizade entre Argentina e Chile solucionou

definitivamente todos os problemas limítrofes nas ilhas e nas águas do sul dos países.

169

Audiência do santo padre João Paulo II às delegações de Argentina e Chile em 23 de Abril de 1982.

Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1982/april/documents/hf_jp-

ii_spe_19820423_argentina-cile_sp.html> Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011.

102

O tratado incluía a delimitação marítima, um procedimento para a solução de

controvérsias, estipulava direitos de navegação e acertava de vez os limites no

estreito de Magalhães. A proposta papal é aceita e, curiosamente, embasada no

mesmo Laudo Arbitral de 1977, o qual a Argentina havia recusado. Segundo

Souza170

, o intercâmbio de direitos de navegação e a estabilidade do pacto entre as

nações foram benéficos para as relações entre ambos os países e favoreceu o

desenvolvimento da região. Tais avanços pareciam impossíveis no ano 1978.

Na redação da proposta de paz nos Relatórios de Arbitragem Internacionais171

da ONU, há o laudo arbitral de 1977. Na parte do relatório onde efetivamente consta

a mediação da Santa Sé, existe um prefácio de João Paulo II. Este prefácio é a

reprodução na íntegra de seu discurso aos membros das delegações da Argentina e do

Chile, feito no Vaticano em 1980. Em seguida, há um tratado de paz e amizade

assinado entre os países. Na primeira linha do tratado consta: ―em nome de Deus o

Todo-Poderoso, o Governo da República do Chile e o Governo da República da

Argentina‖.

Nesse mesmo tratado, ambos os países se comprometem a resolverem de forma

pacífica os futuros litígios que, porventura, possam vir a surgir, além de se

comprometerem também à cooperação econômica. Interessante é que em um

documento oficial há, logo no exórdio, uma hipérbole, figura que para Reboul172

consiste em ampliar ou diminuir as coisas em excesso. Segundo o autor, uma

hipérbole exprime o inexprimível, pois o que se tem a dizer é tão grande (ou

pequeno) que não pode ser dito. A hipérbole é uma figura que tem papel fundamental

na retórica religiosa, ―visto que só ela pode designar aquilo que não se pode

denominar‖. No caso do tratado, a fundamentação do acordo está em Deus e assim se

exprime: em nome de Deus o Todo-Poderoso. Outro aspecto interessante do

documento é que essa fundamentação divina está presente logo no início. Ora, se o 170

SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... 171

ONU. Reports of International Arbitral Awards: Dispute between Argentina and Chile concerning the

Beagle Channel. 18 Fevereiro 1977, VOLUME XXI, pp.53-264. Disponível em:

<http://untreaty.un.org/cod/riaa/cases/vol_XXI/53-264.pdf> Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 172

REBOUL, Olivier. Introdução... p.124

103

contexto secular, especialmente na diplomacia, era a praxe, logo tal menção pode ser

um indicador que, no mínimo, a secularização não é um processo homogêneo, ou

então que a Igreja Católica tentava retomar o seu papel dos tempos medievais, pois é

um conflito em que a ICAR mediava entre dois países, não entre igrejas ou grupos

religiosos.

3.1.4 - As Contingências do Discurso no Canal de Beagle

Seguindo a fórmula de análise retórica proposta por Halliday, e considerando

que todos os discursos têm suas limitações, é necessário que o retor saiba quais são as

suas. Se tratando de uma mediação a nível internacional, a Santa Sé possui

personalidade jurídica internacional para se apresentar como mediadora do caso.

Entretanto, talvez com relação à legitimidade do Papa possa haver algum

questionamento. A primeira questão a ser apontada é o processo de secularização que

se encontrava em pleno funcionamento neste período. Recém eleito Papa, João Paulo

II não poderia ainda ter noção da dimensão que o seu papado tomaria. Até então, ele

era um Papa que possuía legitimidade oriunda de sua função religiosa e política, pois,

um papa é chefe espiritual da Igreja e chefe do pequeno, mas reconhecido, Estado do

Vaticano. Era um mediador legal oriundo de um Estado confessional.

Além destes fatos, a Igreja Católica encontrava-se num período pós-Concílio

Vaticano II (1963-1965). O objetivo da convocação deste Concílio pelo Papa João

XXIII foi de buscar uma renovação para a Igreja, uma atualização de seus dogmas e

posições até então nunca discutidas e impensáveis de serem mudadas. Ou seja, a

Igreja buscava se colocar de uma forma eficiente no contexto histórico moderno.

Muitos pensavam que era o momento dela definir-se a si própria, empenhar-se nos

problemas do mundo com clareza, sabendo que era diferente do resto do globo, mas

também co-responsável pela sua salvação. Em poucas palavras, a proposta era levar a

Igreja a se atualizar no mundo e na história. O concílio encerrou-se em 1965 e os

104

papas pós- Concílio tiveram de lidar com suas conseqüências e incertezas,

principalmente em quanto ao papel da Igreja Universal, além da questão da sua

legitimidade perante o mundo. Giuseppe Alberigo173

em seu livro sobre a história dos

Concílios escreveu:

Embora falando de ―proposta‖, João XXIII não deixava dúvidas

sobre a sua determinação de convocar o concílio, dando-lhe o objetivo de

renovação, que deveria abarcar todos os âmbitos cristãos, do mais próximo (o dos

cardeais, aos quais o Papa pedia adesão e sugestões) ao mais remoto (dos não-

católicos, a quem o Papa renovava o ―apelo a seguir-nos amavelmente nessa busca

de unidade e de graça‖).

Outro aspecto que poderia pesar de forma negativa na retórica do Papa como

mediador eram as ditaduras militares nas quais se encontravam Chile e Argentina. De

1973 até 1990, uma junta militar comandada por Augusto Pinochet governou o Chile,

e quase sem oposição, pois os opositores eram presos ou mortos. Na Argentina

também havia um regime ditatorial que se escondia por detrás do chamado Processo

de Reordenação Nacional. Esse regime político dava igual poder aos três ramos das

forças armadas argentinas e previa-se a alternância no poder, mas o exército sempre

teve uma certa preponderância. Aparentemente, a Argentina se mostrava mais

inflexível com o caso de Beagle, visto as declarações dos governantes. Assim, o

cenário não se mostrava favorável a um acordo pacífico. Porém, tais condições foram

certamente levadas em conta pelo pontífice, pois ele sabia que não poderia em

momento algum dizer algo que incitasse ou levasse ambos os governos a algum tipo

de confronto.

173

ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo, Paulus, 1995. p.395

105

3.1.5 - A Interpretação do ato retórico no Canal de Beagle

O ato retórico da Santa Sé obteve êxito. Entretanto, a questão da paz que

permeou toda a construção retórica de João Paulo II não está somente atrelada à

nobreza da causa. A Igreja sabia da importância da América Latina para seus ideais e

sabia que o ―fantasma‖ do comunismo rondava a América Latina. Nos anos 60 e 70,

este continente sofria com ditaduras militares. Em 11 de setembro de 1973, os

militares chilenos tomaram o poder e instauraram a ditadura dirigida por Pinochet.

Além do caso chileno, semanas antes ocorreram golpes militares no Uruguai e na

Argentina. Brasil e Bolívia já sofriam nas mãos dos militares desde a metade da

década anterior. Como se não bastasse, Cuba aproximava-se da União Soviética,

desde 1959, especialmente após a decretação dos embargos norte-americanos à ilha.

Na América Central, no mesmo período da visita de João Paulo II ao México, a

Nicarágua derrubava a ditadura Somoza, a qual durara mais de 40 anos, e os

sandinistas tomavam o poder. Além disso, a metade dos católicos do mundo está na

América Latina, daí ser uma região de extrema relevância para a Igreja.

Quando Bernstein e Politi174

afirmaram que o sinal que emanava da mediação

era importante no caso de Beagle, podem estar certos na medida em que a mediação

incorporou positivamente o ethos de João Paulo II. Naquele momento se iniciou um

estilo peculiar no seu papado baseando-se na questão da paz mundial. O conceito de

paz da Santa Sé está baseado em encíclicas, que são documentos sociais,

fundamentados em uma passagem bíblica. Neste caso, elas são a encíclica Pacem in

Terris, o documento social Gaudium et Spes e a passagem bíblica ―Cristo é Nossa

Paz‖, retirada da Carta do Apóstolo Paulo aos Efésios, Capítulo II, versículos 14 ao

17. Esse uso da Bíblia aparece tanto na encíclica como no documento social. Ora,

essa passagem refere-se ao símbolo máximo do cristianismo, o próprio filho de Deus

que numa religião monoteísta encarnado na Terra, em forma humana, morreu

174

BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Id. p.203

106

crucificado pelos ―pecados‖ dos homens e ressuscitou, segundo os cristãos,

oferecendo-se a si mesmo como base para a reconciliação e a paz entre os homens.

A mediação feita por João Paulo II, além de dar a oportunidade de exposição a

nível global da Igreja Católica, propiciou o que este Papa enxergou ser relevante no

contexto da época, a paz. Assim, por meio desta questão, o Pontífice adquiriu

legitimidade a nível mundial, consagrando-se como líder religioso e pacifista. Não é

necessariamente fruto desta mediação tal condição, porém naquele momento a

construção retórica além de persuadir os beligerantes a evitar o conflito, iniciou

também uma persuasão sobre a dimensão da paz.

Segundo Norberto Bobbio175

, paz é sempre definida em função da definição de

guerra. O binômio "paz-guerra" dá-nos a sensação que ora a palavra paz assume

papel negativo e ora o papel positivo. Assim, se no sentido geral define-se paz no

sentido negativo, a palavra guerra é a que assume o papel relevante. Já no sentido

restrito, a paz assume papel positivo quando se quer por fim a um conflito particular.

Nesse contexto de pós-guerra, Guerra Fria e de ditaduras militares, a Igreja parece ser

a busca da paz, uma saída concreta para se adquirir legitimidade entre os povos,

nações e indivíduos, dentro de um contexto movido pelo pluralismo e secularidade.

Ao exaltar a paz, João Paulo a trata como um bem comum. O conceito de bem

comum pode ser facilmente confundido com vontade geral. Segundo Bobbio176

,

embora bem comum seja um conceito objetivo, vontade geral é subjetivo, justamente

pela relação de ambos os conceitos com bens individuais ou vontades particulares:

tanto bem comum como vontade geral demonstram uma vontade moral dos

indivíduos. Aí fica característico o acordo entre o retor e seu auditório. O acordo

pressupõe a premissa da paz. Ao exaltar desta maneira a paz, João Paulo II cria uma

figura de linguagem retórica que, segundo Reboul177

, é uma ―figura pela qual o

orador finge dirigir-se a outro auditório, e não ao seu‖. A paz torna-se um bem

comum global, não somente para as delegações de Chile e Argentina ou para a Igreja.

Ambos os conceitos encontram dificuldades. Empiricamente é humanamente

175

BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: UNB, 1986. 176

Ibid. p.106-107 177

REBOUL, Olivier. Introdução... p.244

107

impossível dizer quem seria o portador da vontade geral, podendo-se aceitar apenas a

vontade da maioria como sendo a vontade de todos. Sendo assim, é difícil saber quem

seria o intérprete do Bem comum: podendo ser o magistério da Igreja, isto é, uma

estrutura burocrática portadora do carisma, ou podendo ser os cidadãos que, ao

contrário, na prática, ―lutam e entram em contraste entre si justamente pelas

diferentes interpretações do que venha a ser Bem comum ou de qual seja o fim para

onde encaminhar a sociedade humana.‖ A esse respeito Bobbio registra que:

O conceito de Bem comum é próprio do pensamento político católico, e, em

particular, da esco-lástica nas suas diversas manifestações desde S. Tomás a J.

Maritain, e está na base da doutrina social da Igreja, baseada no solidarismo. O

Bem comum é, ao mesmo tempo, o princípio edificador da sociedade humana e o

fim para o qual ela deve se orientar do ponto de vista natural e temporal. O Bem

comum busca a felicidade natural, sendo portanto o valor político por excelência,

sempre, porém, subordinado à moral.178

O ato retórico em questão agregou valores já existentes na Igreja e no Ocidente

às novas demandas políticas, sociais e religiosas.

3.1.6 - O julgamento do ato retórico no Canal de Beagle

Depois de se discorrer sobre os antecedentes, fisiologia, o próprio ato retórico,

suas contingências e sua interpretação, é a vez do julgamento do ato retórico. Este

passo indica como avaliar um ato retórico segundo alguns critérios pragmáticos,

estéticos ou éticos à luz da formação do analista, segundo Halliday179

. Como critério

pragmático, uma ação persuasiva e tratando especificamente de Relações

Internacionais, poderíamos incluir a política externa do Vaticano aparentemente

178

BOBBIO, Norberto. Id. p.106 179

HALLIDAY, Tereza. Id. p.130

108

como wilsoniana e idealista180

, pois tais pensamentos baseiam-se na hipótese

fundamental de que a paz e a ordem são objetivos naturais à condição humana.

Pessoas agregam-se em favor de obter a organização necessária à sobrevivência, ao

bem-estar e ao progresso; neste caso, é natural que em um estágio mais avançado,

povos e nações inteiras venham a cooperar em busca de uma organização mundial,

capaz de prover e manter a paz e a ordem. Isto não seria feito por mero altruísmo,

embora resultante de uma necessidade concreta e necessária à sobrevivência. Esta é

precisamente a inspiração da Organização das Nações Unidas, a maior

exemplificação do pensamento wilsoniano.

No entanto, ao se analisar a política idealista do Vaticano, é possível ver nela

uma caracterização mais complexa. Agindo em nome de seus interesses institucionais

e de sua missão, a Santa Sé tem adotado posições realistas em sua foreign policy

conscientemente ou não, ao mesmo tempo em que promove uma visão idealista de

mundo. Os realistas enxergam os conflitos de interesse como inevitáveis em um

ambiente cujo desequilíbrio de forças produz hierarquias. Até porque a própria

condição básica para a existência de um Estado, que é a soberania, é suficiente para

suscitar atritos. Ora, se é soberano, um Estado não é obrigado a obedecer a outro, ou

então deverá necessariamente admitir que já não é mais soberano. Além disso,

existem dificuldades intransponíveis em se legislar sobre as relações interestatais.

Considerando o conflito de soberania, fazê-lo não é ―simples‖ como legislar a relação

de um Estado e o indivíduo. Podemos enxergar este realismo de modo bastante

evidente na questão da queda do comunismo, por exemplo. Durante a Guerra Fria,

nos pontificados de Pio XII, João XXIII, Paulo VI e posteriormente com João Paulo

II, a Igreja tornou-se um referencial de resistência ao comunismo, principalmente na

Polônia, no pontificado de João Paulo II, quando torna-se, então, uma figura-chave,

do ponto de vista estratégico, principalmente norte-americano, no processo de queda

dos regimes autoritários do Leste Europeu. Ou seja, mesmo que João Paulo II nunca

tenha mencionado que almejasse acabar com o comunismo, ele foi um fator crucial

180

A respeito das Teorias das Relações Internacionais, ver em: BRAILARD, Phillippe. Teoria das Relações

Internacionais. Lisboa, FGB, 1990

109

que, querendo ou não, mexeu diretamente nas estruturas socialistas e,

consequentemente, na questão da soberania dos Estados dirigidos pelos princípios do

marxismo-leninismo. A União Soviética foi desmembrada com a queda do

comunismo, surgindo então novos Estados Soberanos e uma nova Federação Russa.

Portanto, mesmo com a visão idealista, algumas de suas ações podem ser vistas como

realistas, pois podem trazer conseqüências realistas.

No caso de Beagle pode-se dizer que, embora a busca pela paz seja idealista, a

partir do momento que João Paulo II, líder da Igreja Católica Apostólica Romana

assina como mediador, chefe de Estado da Cidade Estado do Vaticano, um tratado de

paz entre duas repúblicas independentes, as conseqüências deste ato são realistas.

3.2 – A invasão do Iraque

Um segundo exemplo aqui analisado de como a retórica da ICAR foi

direcionada para questões internacionais pode ser recortado a partir do discurso por

ocasião da invasão do Iraque por forças da ONU, porém, liderada pelos Estados

Unidos no período Bush filho, em 2003.

3.2.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica na invasão do Iraque

Embora o conflito no Oriente Médio seja longo e extenso, o recorte deste

trabalho para explicitar os antecedentes da situação retórica em questão tem seu

início no dia 11 de Setembro de 2001, dia no qual ocorreu o atentado terrorista ao

World Trade Center em Nova Iorque. Fato este que surpreendeu todo o mundo pela

sua dimensão e, devido aos avançados meios de comunicação, transmissão em tempo

real. Aviões comerciais foram usados como armas no maior ataque terrorista da

história dos Estados Unidos, onde se estima que foram perdidas mais de 3 mil vidas.

Há também as tensões não resolvidas da 1ª Guerra do Iraque na década anterior,

quando Bush (pai) invadiu o Iraque a partir do Kuwait, no que deteve as tropas ante

110

de conquistar Bagdá. A reação do Papa foi assim descrita pelo historiador John

Cornwell181

:

Assim como o resto do mundo, João Paulo soube que milhares de pessoas

tinham morrido quando dois aviões comerciais seqüestrados com seus passageiros

a bordo explodiram ao se chocar contra o World Trade Center em Nova Iorque.

Menos de duas horas depois, um outro avião seqüestrado fora jogado contra o

Pentágono, matando cerca de 200 pessoas, e um outro avião, a caminho de um

objetivo desconhecido, caíra na Pensilvânia, não longe da residência presidencial

de Camp David. Logo veio à tona que os ataques tinham sido obra de extremistas

islâmicos: levou um pouco mais de tempo para ficar estabelecido que o sombrio

organizador de tais atrocidades era Osama bin Laden e seu grupo terrorista, a Al

Qaeda.

Tais ataques desencadearam reações em todos os países e mostraram a

fragilidade da nação mais poderosa da Terra, lançando dúvidas sobre a capacidade

mundial de controlar grupos extremistas. O medo tomou conta das nações ocidentais

e as pessoas se viram obrigadas a entender suas diferenças e analisar suas

desconfianças quanto à civilização islâmica. Na caçada pelos culpados e na busca

pelo que se dizia ser ―segurança‖, a liberdade civil sofreu um baque tão poderoso

quanto as torres gêmeas do World Trade Center. O Congresso Americano aprovou

uma legislação mais dura contra o terrorismo. Países da Europa fizeram o mesmo,

sob protestos de grupos de defesa dos direitos humanos.

O 11 de Setembro produziu inúmeras conseqüências negativas. No plano

interno, os Estados Unidos experimentaram uma grave retração dos direitos civis. No

plano internacional, velhas rivalidades se acirraram. Sob o pretexto de combater o

terrorismo, Israel investiu mais pesadamente contra os palestinos. O mesmo fizeram

os russos em relação a tchetchenos e chineses em relação a uigures e tibetanos,

citando apenas algumas disputas. Desde que o presidente George W. Bush se

declarou em uma cruzada contra o terrorismo e o ―eixo do mal‖, os norte-americanos

181

CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro, Imago. 2005. p.233

111

invadiram países muçulmanos no Oriente Médio e, dentre esses, o Iraque e o

Afeganistão.

Em contraponto a esta invasão e principalmente às conseqüências de uma

possível e eminente guerra, a Igreja Católica surgiu como uma força em prol da paz,

utilizando-se de seu legado, legitimidade e influência diante do mundo.

Imediatamente após os ataques, o Pontífice da Igreja se pronunciara repudiando os

ataques à Nova York e Washington, quando se disse afetado pelo ―horror

indescritível‖ dos ataques, manifestando toda sua preocupação com as vítimas

inocentes que lá estavam. O líder católico enviou um telegrama ao presidente dos

Estados Unidos, George W. Bush, dizendo que rezaria pelas vítimas, expressando sua

solidariedade ao povo norte-americano. João Paulo II afirmou ainda, durante seu

pronunciamento, que o terrorismo nada constrói. Cornwell182

defende que o impulso

de João Paulo II de agir contra a guerra vinha de sua leitura de um eminente

confronto armado. Para Cornwell, ―estava claro que João Paulo e alguns de seus

auxiliares, que liam pela mesma cartilha, estavam pressentindo que o mundo se

encontrava sob a ameaça de um banho de sangue‖, enquanto que ―João Paulo

preparava-se para se opor implacavelmente a uma ação militar‖.

Porém, 15 dias depois, em 27 de setembro de 2001, o Vaticano se pronunciou

legitimando um ataque dos Estados Unidos contra o Taleban, o grupo extremista

islâmico que foi classificado como o responsável pelos ataques.183

Em uma entrevista

à rede de televisão Televisa do México, na Armênia, o então porta-voz chefe do

Vaticano, Joaquin Navarro-Valls, repetiu os pontos básicos de uma entrevista

concedida no dia 24 de Setembro enquanto o Papa João Paulo II estava no

Cazaquistão. Navarro-Valls disse à Televisa que uma eventual ação dos Estados

Unidos não poderia ser vista simplesmente como um ataque, mas sim como uma

―ação de prevenção ativa‖ contra uma real ameaça que ocorreu dias antes e que

poderia acontecer de novo. Essa seria a visão do Vaticano. Ele ainda afirmou que o

Vaticano não estava dando "sinal verde" para Washington tomar a decisão de uma

182

Ibid. p.235 183

As datas apresentadas neste trabalho foram retiradas dos almanaques anuais da Folha de S. Paulo dos anos

de 2001, 2002 e 2003.

112

ação militar indiscriminada, como alguns meios da imprensa noticiaram no início

daquela semana. Ele frisou que a posição dele não era simplesmente ―faça o que

quiser‖, pois como um cristão no posto de porta-voz chefe do Vaticano, tinha de ser

fiel a uma ética cristã muito precisa no que se trata de ―legítima defesa‖184

, retomava-

se assim a idéia de ―guerra justa‖. Cornwell defende que esta declaração do porta-voz

foi profunda a ponto de caracterizar as ações diplomáticas deste ato retórico. O autor

defende que os ―comentários atribuídos a Navarro-Valls no vôo em que saíram do

Cazaquistão tinham sido interpretados pela rede noticiosa CNN como uma bênção

papal aos bombardeios aéreos no Afeganistão‖.185

Ele ainda reitera que a declaração

do porta-voz é a reprodução de instruções do próprio Papa.

Isso contradizia frontalmente as declarações de João Paulo quando apelou

para soluções pacíficas, bem como os comentários ufficiali de Kasper e Tucci no

fim-de-semana. Indagado mais tarde a esse respeito, Navarro-Valls recusou-se a

admitir que existisse qualquer contradição envolvida entre suas palavras e as do

papa. Evitou outras perguntas dizendo: ‗Eu apenas repeti o que está escritos no

catecismo sobre guerra justas‘.186

Ora, observamos que desde 11 de setembro de 2001 até o dia 20 de março de

2003, quando o primeiro bombardeio norte-americano caiu sobre Bagdá, foram

inúmeras as ações tanto por parte do Vaticano, que tentou evitar a guerra a qualquer

custo, quanto por parte dos Estados Unidos, que buscaram o conflito em todo

momento a qualquer custo.

184

O princípio de legítima defesa na ética cristã será melhor estudado no item 3.2.5., sobre a interpretação do

ato retórico. 185

Ibid.p.238 186

Ibid. p.237

113

3.2.2 - O Problema Retórico na invasão do Iraque: Ações Diplomáticas do

Vaticano no Conflito Entre os Estados Unidos e o Iraque

O problema retórico a ser resolvido neste caso da invasão iraquiana, é o esforço

público por parte do Vaticano, liderado por João Paulo II, que se aproveitou do

prestígio adquirido ao longo de seu papado na tentativa de evitar esta empreitada

norte-americana. Este esforço ficou característico nas atividades diplomáticas no

período pré-invasão por parte do Vaticano. A Santa Sé buscou intervir nesta invasão

também por meio de declarações de seu pontífice.

As declarações e ações diplomáticas foram relatadas por diversos meios de

comunicação em todo o mundo. As declarações completas e discursos dos membros

da Santa Sé encontram-se disponíveis no jornal oficial do Vaticano, o L’Osservatore

Romano.Segundo Thomas Reese187

, existe uma edição diária italiana, além de

edições semanais em espanhol, inglês, francês, alemão, italiano e português, além de

uma edição mensal em polonês. Este jornal não possui praticamente propaganda

nenhuma e, segundo Reese, teve um prejuízo de 5,5 milhões de liras no ano de 1994.

Os seus gastos foram reduzidos no período de sua modernização, vez que seu

maquinário era tão antigo que ―uma das prensas era tão velha que foi doada a um

museu depois de sua substituição‖. Os índices de venda deste jornal estão atrelados às

vendas decorrentes de assinaturas e bancas de jornal, porém estes índices ―cobrem

cerca de metade dos custos da publicação‖. Reese sobre isso afirma que o jornal:

L’Osservatore Romano tem sido comparado ao Pravda na época do

Kremlin anterior à Perestroika. Seu formato pesado está repleto de

pronunciamentos papais, documentos do Vaticano e comentários aprovados. Como

um serviço documental, é um instrumento de pesquisa valioso, mas para o leitor

médio é uma cura para a insônia.188

187

REESE, Thomas J. O Vaticano... p.298 188

Ibid. p.298

114

3.2.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico na invasão do Iraque (2003)

Seguindo o esquema de análise retórica de Halliday, pode-se dizer que o ato

retórico tem seu início na primeira declaração por parte do Vaticano acerca da

invasão ao Oriente Médio, a declaração de Joaquim Navarro-Valls. Percebe-se neste

momento o esboço de um protagonismo do Vaticano pós-11 de setembro. Essa teria

sido a primeira ação diplomática do Vaticano sobre uma eventual investida militar.

Quando Joaquin Navarro-Valls diz ser uma ―ação de prevenção ativa‖ e legitima uma

eventual investida militar, faz eco a uma posição da Igreja consagrada no documento

social Gaudium et Spes e abre uma espécie de canal de conversação com os Estados

Unidos, utilizando-se muito bem das figuras retóricas, classificando a eventual

investida militar como ―prevenção ativa‖. Através destas declarações, a Santa Sé

coloca-se ao lado dos Estados Unidos, aludindo à ―legítima defesa‖ e se dizendo

―horrorizada‖ com os ataques. A Igreja entenderia ser a eventual investida militar

como uma prevenção ativa, entretanto, ainda preferia que tudo fosse resolvido através

de meios pacíficos.

Em 3 de outubro de 2001, o Papa João Paulo II declarou que a religião não

poderia justificar os conflitos no mundo e que cristãos e muçulmanos deveriam

rejeitar a violência. No dia 11 de dezembro de 2001, o Pontífice condenou o

terrorismo como um crime contra a humanidade, afirmando que o fundamentalismo

fanático é uma atitude contrária à fé em Deus. E no dia 19 de dezembro de 2001, João

Paulo II afirmou que as festividades de natal daquele ano estariam prejudicadas pela

quantidade de guerras e conflitos que havia ao redor do globo. Esta foi a atmosfera

que encerrou o ano de 2001, se tornando mais tensa em relação ao conflito na medida

em que chegava o ano novo.

No início de 2002, em seu tradicional discurso ao corpo diplomático, João

Paulo II reafirmou que a luta contra o terrorismo é legítima, classificou o bordão

―matar em nome de Deus‖ como blasfêmia, e pediu aos dirigentes políticos que

dessem preferência ao diálogo e negociações pacíficas para resolverem seus

115

conflitos189

. Enquanto isso, George W. Bush dava sinais cada vez mais claros de que

invadiria o Iraque. No dia 29 de janeiro de 2002, os Estados Unidos, na sua busca por

uma justificativa, deixava claro em sua retórica a invasão militar, referindo-se ao

―eixo do mal‖ incluindo-se nele o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. Neste mesmo

período, João Paulo II na tentativa de impedir uma guerra que se desenhava cada vez

mais rápido, enviou aos governantes de todo o mundo um texto escrito por ele que

condena a violência e o terrorismo, prenunciando a paz, intitulado o "Decálogo de

Assis"190

.

Depois dos trágicos ataques do último 11 de setembro, que nunca serão

esquecidos, e em vista da ameaça de novos conflitos, os religiosos acreditam na

necessidade de intensificar suas preces para a paz, porque isso é, acima de tudo, um

presente de Deus. Diante da violência que atinge muitas partes do mundo hoje,

sentimos a necessidade de mostrar que as religiões podem alimentar a

solidariedade, rejeitando e isolando os que exploram o nome de Deus com

objetivos e com intenções que ofendem Deus.191

Ao dizer que a paz acima de tudo é um ―presente de Deus‖, João Paulo II

transcende inclusive a própria Igreja e deixa o conceito de paz fora de qualquer

ideologia, tornando-o um conceito ―apolítico‖ e colocado como um valor universal.

Para tal, João Paulo, como é crível para um líder religioso, se utiliza do argumento de

autoridade nesta construção retórica: Deus. Características oriundas de habilidades

diplomáticas, ele fala para governantes de todo o mundo algo que interessa a todos no

momento, baseado na autoridade divina que lhe é dada: a paz. Ao mesmo tempo, não

dá margem a nenhum tipo de abordagem política ou ideológica de algum ouvinte de

sua homilia. Outro ponto interessante de se abordar neste discurso é a forma como

João Paulo II condena o uso da religião para intenções ruins. Ou seja, de uma forma

189

O discurso ao corpo diplomático na íntegra se encontra em L‘Ossservatore Romano nº 50, de 15 de

dezembro de 2001. p.8 e 9. 190

Para melhor conhecimento do Decálogo de Assis, ler em L’Osservatore Romano nº 10, de 9 de março de

2002. p.1. 191

JOÃO PAULO II, O Decálogo de Assis para a Paz in L’Osservatore Romano, em 19 de março de 2002.

p.01

116

não direta, João Paulo II faz menção aos grupos terroristas extremistas que justificam

seus ataques sob pretensões religiosas. De um modo sutil, ele não acusa ninguém,

mas dá seu recado implícito ao mundo islâmico, protagonista direto e indireto do

conflito, na medida em que os atos de guerra e de paz afetam todos os islâmicos e não

somente os extremistas.

O segundo semestre de 2002 caracterizou-se pela movimentação e preparação

de George W. Bush para invadir o Iraque, começando por embargos financeiros

contra esse país, logo em 1º de Agosto. Depois dos embargos financeiros, os Estados

Unidos começaram a tratar de questões militares e começaram a deslocar a sua

máquina de guerra para o Oriente Médio, enviando o seu porta-aviões USS

Constellation para o Golfo Pérsico com outros seis navios em novembro deste ano.

Neste mesmo período o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que

exigia o desarmamento do Iraque. O país chegou até a entregar à ONU um dossiê

com cerca de 12 mil páginas sobre seu programa de armas, mas mesmo assim foi

insuficiente para brecar a ofensiva militar dos Estados Unidos. Já no fim do ano de

2002, próximo ao Natal, o Papa, vendo que a guerra estava cada vez mais próxima,

apela pela paz mais uma vez em seus discursos. Ele pediu, em sua mensagem de

Natal, que o mundo evitasse um conflito no Iraque e apelou pela paz entre israelenses

e palestinos. Foi a primeira menção pública que o Papa fez especificamente à crise

iraquiana e à eminente invasão192

.

Já o ano de 2003 se caracterizou pelas ações diplomáticas mais relevantes do

Vaticano. Neste caso do Iraque, podemos enumerar algumas das ações mais

relevantes por parte da Igreja, vejamos: em seu discurso ao corpo diplomático, no dia

13 de Janeiro de 2003, o Papa discorreu inteiramente baseado na encíclica Pacem in

Terris; o Cardeal Roger Etchegaray foi o enviado especial do Papa a Bagdá para

encontrar com o então presidente iraquiano Saddam Hussein, no dia 15 de fevereiro

de 2003; o Cardeal Pio Laghi foi enviado a Washington para um encontro com o

presidente norte-americano, George W. Bush, no dia 5 de Março de 2003; o Cardeal

192

Tal menção pública foi feita em uma de suas homilias na praça da Basílica de São Pedro para as

festividades de natal do ano de 2002, noticiada pela Folha de São Paulo no dia 21 de Dezembro de 2002, no

caderno Mundo.

117

Celestino Migliore, observador permanente da Santa Sé junto à Organização das

Nações Unidas, discursa sobre a situação do Iraque e Kuwait no dia 19 de fevereiro

de 2003.

Na primeira situação retórica citada acima, em seu costumeiro discurso ao

corpo diplomático, o Papa trata de alguns temas sobre a paz apropriados para o ano

de 2003. Para isto, mostrando que a Igreja tinha uma posição própria e consolidada

há 40 anos, ele recorreu às grandes declarações católicas a respeito da guerra e da

paz. Fez assim uma abordagem da encíclica Pacem in Terris (1963), permitindo, por

um lado, demonstrar a importância deste documento e sua influência e, por outro

lado, atualizar a mensagem da encíclica segundo a situação do mundo em que vivia,

mesmo depois de quatro décadas de sua publicação. O Papa, através da citação da

encíclica, fala em ―consciência espiritual‖ e suas conseqüências públicas e políticas.

Este gancho feito por Wojtila demonstrou uma relevância no campo dos direitos

humanos, sendo a paz possível somente por meio da consciência da dignidade

humana e do valor de tais direitos. Para tal argumentação, João Paulo cita a encíclica

de João XXIII e o faz como um argumento de exemplo, justificando o presente num

fato passado. Outra característica desta intervenção diplomática é a reprodução de

capital simbólico à luz do conceito de Pierre Bourdieu193

; João Paulo não produz

necessariamente algo novo para a questão, mas reproduz o conteúdo da encíclica dos

anos 60.

À vista da crescente consciência dos direitos humanos que se ia

manifestando a nível nacional e internacional, João XXIII intuiu a força contida em

tal fenômeno e o poder extraordinário que tinha para modificar a história. Uma

singular confirmação disto mesmo, temo-la no que sucedeu poucos anos depois,

sobretudo na Europa Central e Oriental. O caminho para a paz, como o Papa

ensinava na encíclica, devia passar pela defesa e promoção dos direitos humanos

fundamentais.194

193

Ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 194

Idem, Pacem in terris: um compromisso permanente in L’Osservatore Romano nº51, em 21 de

Dezembro de 2002, p.08

118

Outro ponto que a mensagem de João Paulo II releva é a idéia de um bem

comum universal. O Papa endossa a legitimidade de uma autoridade pública a nível

internacional, com capacidade de promover o bem comum universal, bem comum

esse que fica claro se tratar da paz, visivelmente apontando para um possível papel a

ser desempenhado pela Organização das Nações Unidas, criada em 1945, e da

Declaração dos Direitos do Homem, de 1948.

Uma das conseqüências desta transformação era evidente: a necessidade de

haver uma autoridade pública a nível internacional, dispondo de efectiva

capacidade para promover o referido bem comum universal. Esta autoridade –

acrescentava imediatamente o Papa – não deveria ser estabelecida por coacção,

mas apenas com o consentimento das nações. Deveria tratar-se de um organismo

que tivesse como objectivo fundamental o reconhecimento, o respeito, a tutela e a

promoção dos direitos da pessoa.195

Para embasar sua construção retórica, João Paulo utiliza aqui o argumento

pragmático, que se sustenta pela sua conseqüência: a necessidade de haver uma

autoridade pública a nível internacional. Há também um entimenta na sua

construção retórica, na medida em que parte da premissa do verossímil, no caso o

bem comum universal. Outro aspecto neste discurso, que se torna fundamental para o

rumo das ações diplomáticas do Vaticano, é a questão moral. Neste aspecto, o Papa

busca passar a mensagem de que a realização da paz não é algo que diz respeito

somente às instituições nacionais ou internacionais, mas é também responsabilidade

de cada homem. Ao passar essa mensagem o Papa reforça seu papel de ―força moral‖

contra a guerra, incentivando a responsabilidade da paz de forma individual, em uma

tentativa, a nosso ver, de conquistar a opinião pública. Assim, para o seu discurso o

Papa passaria a agir não só em nome da Igreja, mas em nome da humanidade.

A este respeito, quero com humilde ousadia fazer notar que a doutrina

plurissecular da Igreja que vê a paz como ’tranquillitas ordinis‘ – tranqüilidade da

ordem – segundo a definição de Santo Agostinho (De civitate Dei 19, 13)

195

Id. Ibid. p.08

119

aprofundada na Pacem in terris, se revelou particularmente significativa no mundo

contemporâneo, tanto para os Chefes das nações como para os simples cidadãos.196

Para sustentar seu argumento, João Paulo se utiliza novamente do exemplo ao

citar a Pacem in terris, além de se utilizar de uma alegoria, buscando

metaforicamente mudar a realidade conhecida, enunciando uma realidade abstrata.

Em relação à divergência no âmbito internacional entre os países, a alegoria se faz

presente na busca metafórica de uma paz utópica de Santo Agostinho. Estes são

alguns dos aspectos relevantes do discurso de João Paulo II ao corpo diplomático, em

2003, meses antes da invasão do Iraque. Esta é a primeira ação diplomática

importante a respeito de tal invasão no ano em que ela ocorreria. Aqui vale relembrar

o historiador Cornwell:

No primeiro dia do ano, Dia da Confraternização Universal, ele [o Papa]

antecipou o quadragésimo aniversário da grande encíclica Pacem in terris (Paz na

Terra) do seu predecessor João XXIII. Era como se ele estivesse se firmando para

enfrentar uma investida de retórica de guerra. Uma vez mais, recorreu a um papa

do passado para sustentar sua visão pontifical.197

A segunda e mais intensa ação diplomática devido ao deslocamento de

membros da Cúria, no caso o presidente do Conselho para a Justiça e a Paz, Cardeal

Roger Etchegaray, para encontrar-se com Saddam Hussein em Bagdá. Este encontro

se deu em 15 de Fevereiro de 2003, onde o cardeal entregou uma mensagem do

próprio Papa ao presidente iraquiano. Ao mesmo tempo em que Etchegaray estava

em Bagdá, o pontífice recebia em audiência no Vaticano Tarek Aziz, Vice Primeiro

Ministro do Iraque. É importante salientar que a grande maioria da população

iraquiana é muçulmana e não católico-cristã. Mesmo assim, ocorre a ação

diplomática por parte do Cardeal, que mesmo sabendo de tal condição repassa a

mensagem de João Paulo II. A mensagem exalta a paz acima de qualquer governo ou

religião, característica no jogo de palavras, onde o auditório da construção retórica é

196

Idem. p.08 197

CORNWELL, John. A face... p.281

120

chamando de ―descendentes de Abraão‖, englobando assim cristãos, judeus e

muçulmanos, as principais partes envolvidas no conflito. Etchegaray afirma depois o

seguinte:

Não fiz senão segui-lo pelo meio das comunidades cristãs, de todo o povo

iraquiano, junto do Presidente Saddam Hussein, que manifestou uma intensa e

profunda escuta da palavra viva que vem de Deus e que todos os crentes,

descendentes de Abraão, recebem como o fermento mais seguro da paz.198

Analisando retoricamente, ao fazer referência a descendentes de Abraão, João

Paulo estabelece o acordo como orador com seu auditório. Entretanto, pela dimensão

da expressão, o pontífice tenta ampliar o alcance de sua construção retórica partindo

em busca do auditório universal. Reboul199

afirma que o ―auditório universal poderia

ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico‖. Porém a sua função seria a

do ―ideal argumentativo‖. O autor afirma que o orador ―sabe bem que está tratando

com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo‖. A mensagem

assim se dirige na direção de outros auditórios ―possíveis que estão além dele‖, onde

o orador considera ―implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas

objeções‖.

Outro ponto que a mensagem ao presidente iraquiano realça é a necessidade de

aderir às resoluções das Nações Unidas. Entretanto, Etchegaray apresenta a Saddam

Hussein essa adesão como em nome da comunidade internacional, se referindo à

tensão entre o Iraque e a ONU devido à inspeção de armamentos de destruição em

massa. ―A nova e breve trégua que se impôs deve ser utilizada por todos,

integralmente e num espírito de confiança recíproca, para corresponder às exigências

da comunidade internacional‖.200

Aqui novamente o entimenta; a premissa da

comunidade internacional em função do argumento pragmático da conseqüência da

adesão à comunidade internacional.

198

ETCHEGARAY, Roger. A paz ainda é possível no Iraque e para o Iraque! in L’Osservatore Romano nº

8, em 22 de Fevereiro de 2003. p.01 199

REBOUL, Olivier. Introdução... p.93 200

ETCHEGARAY, Roger. Id. p.01

121

Quase ao mesmo tempo em que enviava um mensageiro à nação que

provavelmente seria invadida, João Paulo II enviava também um mensageiro à

provável nação invasora. Em 5 de março de 2003, o Cardeal Pio Laghi, delegado

apostólico do Papa em Washington, se encontrou com o Presidente dos Estados

Unidos, George W. Bush. Naquele país, a maioria da população é protestante.

O conteúdo daquela mensagem continha dois aspectos relevantes que podem

ser caracterizados como uma evocação dos princípios de convívio internacional

consagrados após a II Guerra Mundial. O primeiro aspecto foi a insistência de que

diferenças podiam ser resolvidas por meios pacíficos, uma vez que, neste período, a

invasão por parte dos Estados Unidos parecia muito próxima. Porém, neste momento

a Santa Sé não se pronuncia classificando a investida norte americana como uma

prevenção ativa como a primeira declaração de Joaquim Navarro-Valls, mas sim

como uma guerra, a qual deveria ser evitada e o impasse resolvido através de meios

pacíficos.

Ao longo destas últimas semanas, ele [Papa João Paulo II] não poupou

esforços, recorrendo a todos os instrumentos de que dispõe, com vista a pedir a

quantos estão investidos da mais alta autoridade política, a fim de que tomem

decisões justas para resolver, com o recurso a instrumentos adequados e pacíficos,

o conflito que impede a humanidade de percorrer o seu caminho no nosso tempo.201

Aqui o Cardeal ao fazer menção ao esforço público por parte do Vaticano

utiliza do argumento de autoridade ao citar João Paulo II. Na questão de Beagle,

havia desconfiança acerca do papado de João Paulo II devido à sua recém eleição.

Em 2003, no caso da invasão iraquiana, o nome de João Paulo II é usado em uma

construção retórica na qual ele próprio encontra-se envolvido, porém desta vez seu

nome é um argumento de autoridade, contrastando com o ambiente de uma de suas

primeiras ações de âmbito global como pontífice.

201

LAGHI, Pio. Unidos a ―Cristo, nossa paz‖, podemos salvaguardar e preservar o dom precioso que é

precisamente a paz. in L’Osservatore Romano nº 11, em 5 de março de 2003 p. 06

122

O segundo ponto relevante da mensagem do cardeal Pio Laghi foi acerca da

Organização das Nações Unidas. O motivo alegado pelos Estados Unidos para a

invasão do Iraque foi sobre o ―armamento de destruição em massa‖ que o ―Iraque

dispunha‖ e, durante o período pré-guerra, a ONU ficou encarregada de descobrir a

verdade sobre tais armas. O Iraque chegou a entregar um relatório sobre o assunto à

ONU, entretanto todos estes trâmites foram muito lentos e suscitaram dúvidas sobre a

legitimidade deste relatório. Portanto, da mesma forma que logo após os ataques de

11 de Setembro o Vaticano declarou que uma guerra de defesa seria legítima,

aproximando-se da posição americana de retaliar um possível inimigo e conferindo a

ela uma legitimidade moral, nesta mensagem do pontífice se apresentou uma aparente

coincidência de posições. Entretanto, esta mensagem fazia menção à ineficiência e/ou

impotência das Nações Unidas sobre a questão do desarmamento iraquiano. O

Cardeal Pio Laghi escreveu no jornal oficial da Igreja:

Pois bem, as instituições podem ser imperfeitas, e por vezes podem agir de

maneira demasiado lenta, e talvez ainda não tenham aprendido a enfrentar as

realidades contemporâneas que ameaçam a ordem mundial. Todavia, elas

fundamentam-se sobre princípios autênticos e válidos para todos os tempos: o

diálogo honesto e paciente entre as partes interessadas e o dever absoluto de cada

um dos membros da Família das Nações, respeitar integralmente as suas

obrigações.202

Este trecho do discurso do Cardeal em análise retórica caracteriza uma

alegoria, na medida em que anuncia uma realidade conhecida - as instituições podem

ser imperfeitas, e por vezes podem agir de maneira demasiado lenta, e talvez ainda

não tenham aprendido a enfrentar as realidades contemporâneas que ameaçam a

ordem mundial – em função da busca de uma realidade abstrata: o diálogo honesto e

paciente entre as partes interessadas e o dever absoluto de cada um dos membros da

Família das Nações. É interessante notar também o termo ―Família das Nações‖ que

o cardeal Pio Laghi utiliza em seu discurso. Este termo engloba simbolicamente todas

202

Ibid. p.06

123

as nações e, quando o cardeal fala em diálogo honesto e paciente entre a ―Família das

Nações‖, ele fala também em nome de uma comunidade global definida em termo de

família.

Após declarar ao corpo diplomático a necessidade de paz, após enviar cardeais

ao Iraque e aos Estados Unidos, o Vaticano também se manifestou na ONU, através

do Observador Permanente da Santa Sé no local, o Cardeal Celestino Migliori.

Novamente um discurso por parte da Santa Sé fez referência à comunidade de

nações. Desta maneira, o discurso se enquadra do orador para o auditório universal,

pois não é simplesmente a opinião da Igreja, mas sim um entimenta, uma condição

que se pressupõe. Ao exaltar a comunidade de nações, o discurso se enquadra

também como uma manifestação de boa parte das nações do mundo, algo parecido

com o que vimos que fez o cardeal Pio Laghi. Sobre isso escreve Migliori: ― No

que diz respeito ao Iraque, a vasta maioria da comunidade internacional está a pedir a

uma resolução diplomática da disputa e a exploração de todos os recursos, em ordem

a um resultado pacífico de tal problemática. Por isso, este apelo não deveria ser

ignorado‖.203

Há ainda outro aspecto que vale ser ressaltado. A questão retórica da invasão

iraquiana se deu em ações diplomáticas. Uma ação diplomática pode ser interpretada

como um meio de argumentação da análise retórica. Reboul204

afirma que uma

apóstrofe é uma figura retórica ―pela qual o orador finge dirigir-se a outro auditório, e

não ao seu: auditório que poderá ser uma pessoa ausente, um morto, um príncipe,

etc.‖. Assim, quando um discurso de um cardeal, por exemplo, dirigido a um líder de

um país, o cardeal no momento do ato retórico passa a ser o orador e o líder seu

auditório. Porém, a ação diplomática não visa somente àquele instante. Visa, por sua

essência, a resolução de uma questão de litígio que não naquele lugar. Assim, quando

um ato diplomático com um governante torna-se uma apóstrofe, é na medida em que

o discurso se dirige também a outros líderes que não presentes naquele momento.

203

MIGLIORI, Celestino. A vasta maioria da comunidade internacional pede uma resolução diplomática da

crise iraquiana. in L’Osservatore Romano nº11, em 15 de Março de 2003. p.10 204

REBOUL, Olivier. Introdução... p.243

124

3.2.4 - As Contingências do Discurso na invasão do Iraque (2003)

Neste ponto da análise de Halliday são levados em conta os limites e restrições

deste tipo de discurso. Porém, antes de relatar as contingências do discurso na

invasão iraquiana, vale discorrer acerca das contingências desta pesquisa. O

levantamento dos discursos sobre a invasão iraquiana foram feitos nas publicações do

jornal do Vaticano, o L’Osservatore Romano. O jornal relatou todos os discursos das

personagens envolvidas por parte da Santa Sé no conflito. Houve cardeais falando

diretamente com o presidente norte-americano como também com o primeiro

ministro iraquiano. Houve também um contato com Saddam Hussein. Os discursos

encontrados neste veículo de comunicação se referem a tais encontros e suas

conseqüências. Porém, como se trata de uma negociação diplomática, não se sabe o

quanto podem ter ocorrido de negociações confidenciais. Portanto, esta pesquisa

trabalha com os discursos publicados e divulgados amplamente pela mídia

especializada.

Ao se tratar de contingência de discurso, o ―terreno‖ a se percorrer por parte da

Santa Sé é um empecilho. O Iraque é islâmico e os Estados Unidos em sua maioria

protestante, como uma doutrina diferente destas poderia se sustentar onde o campo

não lhe é favorável?

Segundo Cornwell205

, nos Estados Unidos os bispos estavam unânimes à

decisão de João Paulo II em ir contra a invasão. Porém, eram somente os bispos que

defendiam esta posição, pois outros clérigos e leigos eram ―inflexíveis em sua

convicção de que a guerra era não só justa, mas uma ‗obrigação moral‘‖. Em relação

à visita de Etchegaray a Saddam Hussein, Cornwell206

afirma que ―bem-intencionado,

embora senil, o bom cardeal revelou uma certa ausência de realismo quando relatou

que Saddam tinha escutado ‗atenta e profundamente‘ o apelo do papa em favor da

paz‖.

205

CORNWELL, John. A face... p.282 206

Idem, Ibidem, p.285

125

O fato de maior repercussão sobre os atos diplomáticos em relação às

contingências do discurso foi a visita de Tariq Aziz ao Vaticano. Cornwell207

afirma

que Aziz anunciou no aeroporto que ―tinha vindo a Santa Sé para apelar a Sua

Santidade em pessoa para que ajudasse a mobilizar ‗todas as forças do bem contra as

forças do mal‘‖. Em uma conferência em Roma, o vice - primeiro ministro entrou em

uma discussão ao afirmar que não entraria naquela conferência se soubesse que havia

judeus lá após ser questionado por um correspondente de Israel. Além do mais, o

mandatário iraquiano foi ao santuário de São Francisco e rezou com os franciscanos.

Cornwell208

afirma que ―aqueles que conheciam bem Aziz, incluindo os iraquianos no

exílio, protestaram, afirmando que os frades franciscanos tinham sido manipulados‖.

Mesmo sendo cumpridos todos os protocolos diplomáticos, no âmbito

individual não se pode dizer que o alcance do discurso é o mesmo entre a opinião

pública norte- americana e a postura dos governantes do Oriente Médio em face da

opinião pública mundial e a doutrina da paz católica.

Outro aspecto interessante de se apontar como contingência é o fator de saúde

do pontífice. No ano de 2003, João Paulo encontrava-se totalmente debilitado.

Cornwell209

afirma que ―uma vez mais, era evidente que ele estava a preparar-se para

embarcar em sua última grande jornada pontifícia, sem deixar nada ao acaso para

garantir a segurança de sua visão quanto ao futuro da Igreja Católica‖. Tal fator de

saúde levanta questões sobre a capacidade do pontífice de ainda ser efetivamente o

líder da instituição, tendo havido inclusive debates sobre uma possível renúncia do

Papa.

3.2.5 - A Interpretação do ato retórico na invasão do Iraque

Estas ações diplomáticas nos demonstram algumas peculiaridades.

Diferentemente do início do papado de João Paulo II quando ele interveio na América

207

Idem, p.285 208

Idem, p.286 209

Idem, p.288

126

Latina, neste início de século XXI a Igreja se preocupava com todas as nações do

mundo, fossem elas influenciadas pelo cristianismo (países com muitos católicos

principalmente) ou não, como no Iraque, um país onde católicos são praticamente

inexistentes. Tal condição, distinta da legitimidade do Canal de Beagle, mostra entre

outras coisas uma evolução e crescimento do ethos de João Paulo II.

A Santa Sé durante o papado de João Paulo II consolidou um status mundial de

portadora da mensagem de paz. Nos atentados de 11 de Setembro sua atitude não foi

diferente. A legitimidade alcançada pela Igreja neste período permitiu que ela se

manifestasse em lugares onde não possui enraizamento cultural. O poder simbólico

que isto representa é oriundo do capital simbólico adquirido também ao longo de

diversos papados, especialmente de João Paulo II. Uma característica desta condição

é a doutrina da paz, que vem de antes com a idéia de João Paulo II de transformar a

zona do litígio de Beagle em ―Zona da Paz”. Na questão iraquiana, a paz assume a

―vontade das nações‖ e exprime explicitamente um bem comum universal.

À luz da teoria de Bourdieu no livro A Economia das trocas simbólicas, a

reafirmação da encíclica Pacem in terris e do documento social Gaudium et spes

indicam a reprodução do capital simbólico. Tal encíclica e documento se mostraram

atualizadas mesmo em contextos diferentes daqueles de sua criação. No papado João

XXIII foi publicada a encíclica Pacem in terris (11/4/63), expressão latina que

significa paz na terra. Sua confecção se deu em uma época bastante conturbada, com

alguns fatos marcantes ao redor do globo. O ano de 1945 marcou o final da II Guerra

Mundial; neste mesmo ano, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), para

substituir a extinta Liga das Nações. Em 1947 ocorre a constituição do Bloco

Soviético, reunindo países do leste europeu ao redor de um bloco que ganhou o nome

ocidental de ―Cortina de Ferro‖, dando início ao que se chamou de ―Guerra Fria‖. No

ano seguinte, 1948, inicia-se uma corrida armamentista entre a União Soviética e os

Estados Unidos, em que triunfou o argumento de que a paz seria mantida por meio do

equilíbrio de poderes, ou seja, o temor que um tinha do outro era o que mantinha

ambos afastados de um confronto direto. Na verdade, o que os políticos tinham em

mente era o perigo de uma guerra sem limites. Tudo isso sob o medo da recente

127

descoberta, a aplicação de energia atômica aos armamentos de guerra. O ―pesadelo‖

atômico e o medo da destruição do planeta mostravam a fragilidade da segurança

global. Em contrapartida a tal situação, em 1948 a ONU aprova a Declaração dos

Direitos dos Homens, a primeira iniciativa mundial pela condição humana no planeta,

o ponto de partida para o que hoje de chama de Direitos Humanos.

Decorrente da Guerra Fria, em 1961 foi erguido em Berlim, na Alemanha, um

muro que se tornou conhecido como o Muro de Berlim. Esse muro, além de dividir a

cidade de Berlim ao meio, simbolizou a divisão do mundo em dois blocos ou partes:

Alemanha Ocidental, que era apoiada pelos países capitalistas encabeçados pelos

Estados Unidos e Alemanha Oriental, mantida e apoiada pelos países socialistas

simpatizantes do regime soviético. No ano seguinte, 1962, ocorreu a Crise dos

Mísseis em Cuba, três anos após a vitória da Revolução Cubana210

. Os soviéticos

haviam instalado mísseis nucleares em Cuba e os Estados Unidos descobriram,

divulgando fotos de um vôo secreto realizado sobre a ilha, onde havia cerca de 40

silos para abrigar mísseis nucleares. Consequentemente houve tensão mundial e

parecia que uma guerra nuclear parecia próxima pela primeira vez. O presidente

norte-americano, John F. Kennedy, avisou aos soviéticos que os Estados Unidos não

teriam dúvidas em usar armas nucleares contra esta iniciativa russa. Ou desativavam

os silos e retiravam os mísseis ou a guerra seria inevitável. Foram 13 dias de suspense

devido ao medo da guerra nuclear, até que no mês de outubro houve um acordo entre

as partes e os mísseis foram retirados de Cuba. Desde então, até o início dos anos

1990 o mundo esteve polarizado em duas superpotências ideológicas e vivendo o

temor constante das armas atômicas.

A Pacem in terris surgiu nesse contexto e foi uma ―resposta‖ às condições em

que estava o mundo. Tal Encíclica já se mostrara diferente das outras, pois foi a

primeira declaração da Igreja dirigida a todos os ―homens de boa vontade‖, ou seja, a

todas as pessoas do mundo e não somente aos membros da Igreja. Ela também

estabelecia a paz como um bem comum universal, trazendo à tona um conceito muito

210

Para melhor conhecimento sobre a Crise dos Mísseis em Cuba: GOTT, Richard. Cuba: uma nova história.

Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2006.

128

conhecido no meio das Relações Internacionais, a reciprocidade, insistindo na

afirmação de que o mundo é uma Comunidade de Nações. A Encíclica foi uma

―aposta‖ da Igreja de que conflitos armados não são os melhores caminhos para

resolução de controvérsias, mas sim o diálogo. O documento papal exalta ainda

muitos aspectos dos direitos humanos, seguindo linha de pensamento semelhante à

Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948). Quando João XXIII escreve

esta encíclica, ele se baseia em alguns pontos que servem de pressupostos para sua

retórica: a paz como manifestação divina; a paz como construção obrigatória de

justiça; a paz como obrigação de governantes e povos; a paz e a justiça social; a paz e

os órgãos internacionais; ações urgentes.

João XXIII inicia a sua encíclica afirmando que ―a paz na terra, anseio

profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem

consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus‖.211

Por isso, a paz

para ele é uma manifestação divina na história humana. Mais do que uma simples

afirmação, ao dizer que a paz é uma dádiva divina, João XXIII neste aspecto impede

de se vincular a paz a qualquer ideologia ou política humana. Sua convicção de que a

paz só é possível através da consciência da dignidade de cada ser humano pretende

ser uma afirmação totalmente apolítica, que transcende a própria Igreja. João Paulo II

usa muito bem esta posição apolítica em relação à paz e em suas ações contra a

invasão no Iraque, permitindo que a Santa Sé dialogue tanto com os Estados Unidos

quanto com o Iraque. A paz vem de Deus e é o desejo de todos os homens, não é a

vontade de nenhum líder político. Dessa forma o conceito ―paz‖ é universalizado.

Esta encíclica foi dividida em cinco partes e a terceira parte trata direto das

relações entre as comunidades políticas. João XXIII, neste capítulo da encíclica,

começa discorrendo sobre sujeitos de direitos e deveres, afirmando que os

governantes não podem jamais renunciar à sua dignidade natural, ou seja, não

escapam da lei moral. Os homens não podem perder sua condição humana à frente de

governos, que chegaram lá justamente por terem sido escolhidos por outros homens.

Em seguida, o documento trata das relações dos Estados na base da verdade e da

211

Pacem in Terris, introd., 1963

129

justiça, afirmando que as relações entre os Estados devem basear-se na verdade. O

que João XXIII trata aqui é um de seus eixos, a paz como construção obrigatória de

justiça, onde cria-se um vínculo entre a política e a moral. A paz para a Igreja é fruto

da ordem divina, e que deve ser realizada pelos homens de maneira justa. Sendo fruto

da justiça, é uma virtude moral. Como diz a encíclica, a política é uma atividade

humana e está sujeita ao juízo moral.

João Paulo II retoma esses aspectos da retórica de João XXIII em seu discurso

ao corpo diplomático em 2003, meses antes da invasão no Iraque, no entanto ele

amplia o conceito de paz para a política internacional, dizendo que as políticas não

estão em uma zona franca, livres de qualquer julgamento moral, pois ainda assim a

política é uma atividade humana. ―Enquanto aqueles que ocupam posições de

responsabilidade não aceitarem pôr corajosamente em questão o seu modo de gerir o

poder e de procurar o bem-estar dos seus povos, será difícil que se possa

verdadeiramente progredir rumo à paz‖.212

Um outro ponto importante nesta terceira parte da encíclica é referente ao

tratamento das minorias e à solidariedade ativa. O Papa João XXIII começa

afirmando que é injusta qualquer ação para reprimir as minorias. Os governos devem

promover o desenvolvimento das minorias raciais, através de medidas eficazes sobre

língua, cultura, tradições, etc. Na questão da solidariedade ativa, o Papa afirma que as

Relações Internacionais se desenvolvem através de solidariedade em diferentes

formas, como colaboração econômica, social, etc. Esta parte da encíclica é o outro

eixo de João XXIII, a paz e a justiça social. Sobre a ascensão das comunidades

políticas em fase de desenvolvimento econômico, o Papa instrui as nações

economicamente mais desenvolvidas a auxiliarem as menos desenvolvidas. As

nações menores não podem ser privadas de seus direitos a autonomia política e a

tutela em seu desenvolvimento econômico. Entretanto, as nações que ajudam as

menos desenvolvidas devem respeitar as características de cada povo, abstendo de

qualquer tipo de domínio. A paz e a justiça social também passam pelo campo

212

JOÃO PAULO II. Pacem in terris: um compromisso permanente in L’Osservatore Romano, em 21 de

Dezembro de 2002. p.08

130

econômico. João Paulo II também utiliza esta linha de pensamento em seu discurso

contra a guerra em 2003, só que a paz como justiça social utilizada por ele, fica como

uma crítica aos países desenvolvidos e um pedido para que se auxiliem os países em

desenvolvimento. No jornal oficial da Igreja assim ele se expressa: ―Ao mesmo

tempo, somos testemunhas de um fosso preocupante que se vai alargando entre uma

série de novos direitos promovidos nas sociedades tecnologicamente avançadas e os

direitos humanos elementares que ainda não são respeitado sobretudo em situações de

subdesenvolvimento‖.213

A corrida armamentista e o desarmamento não ficaram fora desta encíclica.

João XXIII enxergava que países desenvolvidos empregavam muitos esforços na

construção de armamentos enquanto outros menos desenvolvidos careciam de ajuda.

Estes países justificavam esta corrida armamentista através da afirmação de que a paz

se assegura com o equilíbrio de forças. Para o Papa, o resultado deste pensamento e

de suas conseqüentes ações era uma ameaça constante para a paz e um terror

permanente. Assim, por meio da Encíclica, a posição da Igreja fica clara acerca deste

tema, uma vez que, para ela, a paz não se constrói com armas. João XXIII acreditava

que era necessário reduzir e eliminar os armamentos das nações, na base de garantias

mútuas e eficazes. O que vemos aqui é uma espécie de programa de princípios,

deixando bem claro a responsabilidade dos atores internacionais com seus atos ao

redor do mundo. O pontífice também instrui os chefes de Estado a não pouparem

esforços enquanto o curso dos acontecimentos humanos não se conformarem (ou não

fizerem parte) da razão e a dignidade do homem. Ainda neste ponto, João XXIII faz

uma leve menção às Assembleias Internacionais ocorridas na ONU, dizendo que tais

reuniões não devem ser esquecidas. João XXIII condenava as armas e a guerra em

qualquer hipótese. Para ele, nenhum tipo de conflito era justificável, nem mesmo um

eventual para se defender ele não achava certo.

Em outras palavras, João XXIII fala em responsabilidade e apoia-se na questão

da paz como obrigação de governantes e povos, já que havia definido a paz como um

bem comum universal. Diferente é a retórica de João Paulo II, que em 2003, acerca

213

Ibid. p.08

131

da questão do Iraque, vincula a esta obrigação não só os líderes políticos, mas

também todas as pessoas, individualizando a responsabilidade. Nesse aspecto a Santa

Sé mostra, na perspectiva cristã, que a paz não está vinculada unicamente às

instituições nacionais ou internacionais, mas é também responsabilidade de cada

homem e cada mulher, de maneira pessoal. Do mesmo modo que a paz é um bem

comum universal, um direito do homem, o homem tem que cumprir com seus

deveres. A paz como obrigação de governantes e povos é a afirmação de que cada um

tem um dever para com a paz: a mensagem é para todos, de ser humano para ser

humano. O auditório universal. Esse ponto de vista é externado por ele com as

seguintes palavras: ―Uma maior consciência dos deveres humanos universais seria de

grande benefício para a causa da paz, porque lhe daria a base moral do

reconhecimento compartilhado de uma ordem das coisas, que não depende da

vontade de um indivíduo ou de um grupo‖.214

Estes são alguns dos aspectos principais da encíclica Pacem in Terris em

âmbito internacional. A paz para a ICAR passa também por um documento social:

Gaudium et Spes, do latim, as alegrias e esperanças. Este documento foi publicado no

ano de 1965, ao final do Concílio Vaticano Segundo, portanto dois anos após a

Pacem in Terris.

A Gaudium et Spes foi o último trabalho feito no Concílio Vaticano II. No

entre período de Concílio, falecera o Papa João XXIII e fora eleito seu sucessor,

Paulo VI. Independentemente da troca de papas, a Guerra Fria era uma realidade. A

preocupação com a questão de armamentos era crescente e foi um tema muito

debatido na Gaudium et Spes. Este documento segue basicamente a mesma linha da

Pacem in Terris, entretanto, a Gaudium et Spes foi feita no concílio, ou seja, foi

debatida entre diversas pessoas, enquanto a encíclica predecessora desta foi feita

somente pelo Papa João XXIII.

A quinta parte deste documento trata da promoção da paz e da comunidade

internacional. A encíclica assinada por Paulo VI afirma que a paz não é a ausência de

guerra nem o equilíbrio de forças adversas, condena também dominação despótica.

214

Ibid. p.08

132

Em uma seção deste mesmo capítulo, discorre sobre o princípio da defesa, afirmando

que uma guerra de defesa é justa, pois a guerra nunca foi eliminada do mundo dos

homens, não podendo negar aos governos o direito de legítima defesa quando

esgotados todos os meios de se resolver algum impasse. Entretanto, continua

condenando a corrida armamentista. Paulo VI afirma que para dissuadir possíveis

inimigos, muitos pensam que o acumulo de armas é o meio mais eficaz para

assegurar certa paz entre as nações, porém a corrida dos armamentos é um flagelo

para a humanidade e prejudica os pobres de um modo intolerável.

Notamos a diferença no princípio da legítima defesa, pois na encíclica Pacem

in Terris de João XXIII, a guerra é condenada de todas as formas, e já na Gaudium et

Spes de Paulo VI, fica legítimo o direito de um Estado defender-se em último caso.

Esta é a principal diferença entre elas.

Esses dois documentos são semelhantes entre si, pois o que foi tratado por João

XXIII também aparece na Gaudium et Spes, a encíclica que afirma ser necessário um

comum acordo das nações, fazendo clara alusão ao papel da ONU. A visão sobre a

paz e os órgãos internacionais mostra como a posição de João XXIII na época da

encíclica (1963) e o Concílio Vaticano II (que se encerrou em 1965) colocavam

esperanças na ONU e na Declaração dos Direitos Humanos. João Paulo II, 40 anos

depois, a Igreja ainda utiliza essa mesma posição só que agora pedindo uma atitude

mais efetiva das Nações Unidas, uma vez que estar a ONU mais consolidada, 40 anos

depois desta publicação. Por isso, João Paulo II em sua retórica se refere a esta

instituição como uma autoridade pública a nível internacional, com uma capacidade

efetiva de promover o bem comum universal, a serviço dos direitos humanos, da

liberdade e da paz. A Igreja aposta na eficácia da ONU, tanto que uma das ações que

se encaixa dentre as mais relevantes para evitar a guerra do Iraque em 2003 foi a

declaração do observador permanente da Santa Sé na ONU, o Cardeal Celestino

Migliori, que exaltou o papel dessa organização na relação entre os povos:

Com efeito, em tal Declaração [Declaração Universal dos Direitos dos

Homens de 1948] estavam fixados os fundamentos morais onde seria possível

apoiar a edificação de um mundo caracterizado pela ordem em vez da desordem,

133

pelo diálogo em lugar da força. Nesta linha, o Papa [João XXIII] deixava a

entender que a defesa dos direitos humanos pela Organização das Nações Unidas

era o pressuposto indispensável para o aumento da sua capacidade de promover e

defender a segurança internacional.215

Outro aspecto tratado na Encíclica é a construção de uma comunidade

internacional, onde fica clara a idéia de que as instituições internacionais devem

prover as necessidades dos homens como alimentação, saúde, educação, trabalho, etc.

Afirma também, como na encíclica Pacem in Terris, que nações desenvolvidas

devem ajudar as menos desenvolvidas, não como dominadora, mas sim como

cooperadora.

Importa, porém, evitar equívocos: aqui não se pretende aludir à constituição

de um super-Estado global; a intenção é, antes, sublinhar a urgência de acelerar os

processos já em curso que visam responder à solicitação quase universal de formas

democráticas no exercício da autoridade política, quer nacional quer

internacional, e também ao pedido de transparência e credibilidade a todos os

níveis da vida pública; penso, também, no direito à alimentação, à água potável, à

casa, à autodeterminação e à independência. A paz exige que esta distância seja

urgentemente reduzida, até ser superada.216

João Paulo II quando tenta interferir contra a invasão do Iraque, não o faz por

livre e espontânea vontade. Ele baseia-se na posição cristã consolidada no início dos

anos 60 nestes documentos e ressignifica a questão da paz, adaptando-se aos

interesses dos Estados Unidos. Em seus respectivos contexto, estes documentos da

Igreja foram como uma resposta à situação em que o mundo se encontrava. Enquanto

as duas superpotências se armavam na suposição de que estariam assim garantindo o

equilíbrio mundial, o Papa João XXIII percebia que um outro caminho podia ser

traçado, escrevendo uma Encíclica voltada para todas as pessoas, trazendo a paz

como um bem comum universal e tratando o mundo como uma comunidade de

nações. Ele estabelece isso como princípio e começa a exigir retoricamente para a

215

Idem, p.08 216

Idem.

134

Igreja um papel de interlocução. É criada, então, uma espécie de ―doutrina‖ da paz,

uma paz quase que utópica e que pode ser consolidada sem armas, através do diálogo

e da consolidação dos direitos humanos. Este viés fica claro no papel da Igreja no

mundo neste período final do papado de João Paulo II.

3.2.6 - O julgamento do ato retórico na invasão do Iraque (2003)

Para julgar este ato retórico, utilizamos neste texto o critério pragmático.

Novamente à luz da teoria das relações internacionais, foca-se o discurso da Igreja

versus a ação da Igreja. O discurso da Igreja não é conflitante com a ação, como

muitos pensam, e sim o discurso é uma das peças-chave de suas ações. A arma para

as ―batalhas‖ diplomáticas que a Igreja trava ao redor do mundo é a palavra. A

habilidade com que a Igreja, principalmente através do Papa João Paulo II, utilizou-se

do jogo de palavras em prol de seus interesses é algo relevante. Ela manda seus

recados ao mesmo tempo em que não abre lacuna alguma para qualquer tipo de

conflito vindo de uma posição contrária. Dentro de um mesmo contexto, a Santa Sé é

capaz de transitar desde uma ação ativa de prevenção ao invés de retaliação, até o uso

da expressão ―filhos de Abraão‖, falando em nome de judeus, muçulmanos e cristãos.

O discurso da Igreja e a utilização minuciosa de palavras é o grande trunfo que

esta instituição utiliza para tentar evitar a invasão no Iraque. Embora houvesse um

grande esforço, para a teoria das Relações Internacionais, a ICAR agiu por princípios

idealista e wilsoniana, na medida em que mostrou o que se deve fazer e não o que é.

Seu discurso neste caso não trouxe conseqüências realistas a sua investida, vez que o

Iraque foi invadido, o único fato que seria de ordem realista e o próprio objeto da

investida da retórica católica.

135

Conclusão

Ao analisar retoricamente através dos seis passos propostos por Tereza

Halliday, notam-se algumas diferenças e semelhanças entre os atos retóricos nos

extremos do papado de João Paulo II – um no início e outro no final. Os antecedentes

retóricos de ambos os atos contextualizaram uma época propícia ao conflito armado.

Porém, um conflito quase ocorreu por questões limítrofes, enquanto o outro ocorreu

por uma premissa muito além das fronteiras. O Vaticano em ambos os casos só pode

se utilizar da habilidade retórica para ser um ator retórico nos conflitos.

Contextos semelhantes, problemas distintos. O ato retórico em questão no

Canal de Beagle foi a mediação de um litígio entre dois países vizinhos na América

Latina, local de grande concentração de católicos. Já o ato retórico no Iraque foi uma

ação diplomática por parte do Vaticano sobre os integrantes do conflito, os Estados

Unidos e o Iraque, a fim de impedir a invasão premeditada por parte dos americanos.

Nesta questão a Igreja Católica caminharia por terrenos desfavoráveis, pois nos

Estados Unidos a maioria é protestante e no Iraque a maioria é muçulmana. A prática

retórica do Iraque foi muito mais trabalhosa do que a da América Latina, pois era um

conflito além de qualquer perspectiva da Igreja. Porém, por um ideal de paz

universal, ela interveio diplomaticamente com uma legitimidade que era não só dos

fiéis, mas do auditório universal. Isso caracteriza um papel diferente dos habituais

desta instituição, não era somente episcopal.

Os atos retóricos se caracterizaram como tal por se utilizarem de figuras

retóricas e terem por função persuadir. No conflito de Beagle o discurso foi feito pelo

próprio João Paulo II, enquanto na questão iraquiana a ação diplomática envolveu

diversas autoridades católicas. Como afirma Halliday, todos os discursos possuem

suas limitações. Em Beagle a legitimidade de João Paulo II era questionável devido a

sua recém eleição, já no Iraque, seu ethos era de uma autoridade em questão de paz.

Até um de seus cardeais o utiliza como argumento de autoridade. Em Beagle, os

governos eram ditaduras militares, porém católicas. Já no caso da invasão do Iraque,

ambos os países eram em sua maioria, de outras religiões e não a católica, nos

136

Estados Unidos majoritariamente predomina o protestantismo e no Iraque os

muçulmanos. Porém, a autoridade moral do pontífice era considerável a ponto de sua

investida diplomática conseguir certa notoriedade.

A questão da paz mostrou-se constante na retórica de João Paulo II durante o

seu papado. Em Beagle ele esboçava algo com relação a ela, tentou até declarar o

local como Zona de Paz. Já no Iraque a paz era o bem comum da população mundial.

Isto só é possível ao seu capital simbólico adquirido na construção de seu ethos no

decorrer de seu papado. Tal perspectiva corrobora com a leitura à luz das Relações

Internacionais que o Vaticano é um ator global em plena atividade.

137

Considerações Finais

Há muito tempo atrás, na Grécia antiga, a Retórica já estava presente entre

filósofos e oradores. Sua função e seu legado mudaram no decorrer dos anos, porém,

ela sempre esteve presente em todos os povos e línguas. Sua função é persuadir, levar

a crer em algo. Para que isto aconteça, é necessário que exista um orador e um

auditório a ser persuadido. Entretanto, este termo pode tomar conotações negativas

em relação ao seu sentido original. Isto pode levar a uma grande confusão e

desvalorização da retórica; este sentido pejorativo apareceu muito tempo depois do

surgimento da Retórica. Para que um ato retórico tenha efeito, é necessário um

acordo prévio entre o orador e seu auditório. Como persuadir quando este acordo não

parece tão óbvio? Esta é a questão que permeia a retórica da Igreja Católica no

papado de João Paulo II.

A instituição milenar que é liderada entre 1978 e 2005 por João Paulo II parece

estar fora do contexto secular em que se deu este papado. Além disto, trata-se

também de uma retórica que envolve necessariamente a religião. Como articular,

então, uma retórica religiosa em dissonância com o mundo em que habita? Esta é a

questão que tentamos responder na pesquisa empreendida.

O caminho escolhido para a busca desta resposta passou pela definição de

retórica que, segundo Reboul, é a arte de persuadir pelo discurso. Quem quer

persuadir se utiliza da palavra, ou melhor, da combinação ou jogo de palavras que lhe

é favorável. Os atos retóricos se caracterizaram como tal por se utilizarem de figuras

retóricas e terem por função persuadir. Mas persuadir quem? Quem quer persuadir?

Por que persuadir? Estas respostas não são possíveis somente se sustentando na

definição de prática retórica sem seus respectivos atores e contextos. Na elaboração

do referencial teórico procuramos nos basear nas contribuições de Tereza Halliday.

A Igreja Católica foi, por muito tempo, a referência de comportamento moral,

jurídico, econômico e ético no Ocidente. Seu poder era enorme e sua influência

praticamente impossível de se esquivar. Tudo passava necessariamente por ela. O

138

controle da sociedade estava em suas mãos. Ao longo do tempo, frutos de diversos

processos sociais, este poder foi se esvaecendo. A secularização é um destes

processos. Secularização é comumente associada ao esvaziamento da Igreja, porém

sua conseqüência principal é a perda de referência religiosa no Ocidente. Quando

uma grande instituição como a Igreja Católica perde o poder de outrora, não pode

continuar com os mesmos discursos e ideais, pois já não são compatíveis com o

mundo em que se encontra. Ora, vivemos em uma sociedade que não se pode querer

estar fora dela estando dentro dela. Este parece ser o primeiro ponto destoante do

pensamento da Igreja Católica instituição.

O outro processo que mudou radicalmente o papel da Igreja, principalmente

nos séculos XIX ao XXI foi a modernidade. Assim como o conceito de secularização

é associado ao esvaziamento das igrejas, o conceito de modernidade é comumente

associado à evolução das tecnologias. Porém, este conceito perpassa esta questão e

está diretamente ligado à mentalidade do indivíduo. Na modernidade, o individuo

passa a questionar os valores que lhe são inculcados por uma instituição, no caso, a

Igreja Católica. Este indivíduo pensa e escolhe o seu destino por conta própria. Não

mais existe uma referência religiosa que detém o absoluto do conhecimento. Este

indivíduo adquire uma autonomia devido ao desencantamento que se processa nas

sociedades ocidentais.

Assim, quando falamos em religião, naturalmente pensamos no mistério, no

transcendente que ela pode proporcionar. É um mundo encantado pelo sobrenatural, o

não palpável para os humanos. A partir do momento que a religião passa a não

conseguir mais explicar ou prover este mundo sobrenatural, é que ela se desencanta.

O desencantamento do mundo, conceito clássico de Max Weber, passa pela evolução

das ciências. A partir do momento que a ciência explica a maioria dos fenômenos -

prova a tese por A mais B - a religião perde sua capacidade de ―domar‖ este

sobrenatural. Assim, a secularização, a modernidade e o desencantamento foram

fatores preponderantes para a mudança do papel central da religião no cotidiano das

sociedades ocidentais para um papel secundário, ou melhor, para um papel de

coadjuvante.

139

Considerando que o cristianismo, primeiramente em sua forma católica, se

tornou a religião oficial do Império Romano em torno do ano 300, até o século XIX

foi um longo período de hegemonia e enraizamento cultural. Quando chegamos ao

início destes processos de secularização, modernidade e desencantamento, mesmo

com o declínio de seu poder, a religião cristã possuía uma bagagem adquirida ao

longo destes séculos. Isto é o que Pierre Bourdieu (A Economia das trocas

simbólicas, 1987) chama de capital simbólico. Isto mantém certa legitimidade diante

dos indivíduos. Eles passam a não precisarem mais de uma referencia religiosa ou da

força da tradição, embora ainda reconhecem a Igreja como uma instituição religiosa

importante.

No período em que a Igreja foi hegemônica, o capital simbólico acumulado por

ela foi significativo. Dentro deste capital, pode-se afirmar que a prática retórica está

presente. Mesmo que esta pesquisa foque a retórica no papado de João Paulo II no

século XX, a prática retórica já foi há muito praticada por muitos papas antes do

pontífice polonês. Bourdieu (A Economia das trocas lingüísticas, 1988) afirma que a

língua é um reflexo do contexto social da época. Assim, fica claro que, embora a

prática retórica sempre estivesse presente, seu conteúdo e aplicações sempre foram

diferentes, porém, nenhuma prática retórica antiga da Igreja Católica foi feita em um

contexto desfavorável não somente para a Igreja em si, mas para a própria religião.

Fazendo eco ao contexto desfavorável, Gauchet (El desencantamiento del

mundo, 2005) ainda afirma que o surgimento do Estado foi o fator nevrálgico para a

mudança de papel da religião. Quando então a Igreja se separa do Estado, o poder da

Igreja fica ainda mais comprometido, pois o Estado passa a prover os indivíduos de

coisas que até então a religião lhes oferecia. Além disso, o autor afirma que o

cristianismo foi a ―religião para a saída da religião‖, pois é ela que fornece as

condições para que a religião inverta sua lógica: ao encarnar humanamente o Deus

vivo e ser uma religião racionalizada e institucionalizada, automaticamente o caráter

original de encanto e magia que se tinha nas sociedades primitivas deu lugar a uma

religião onde o contato com a divindade se dá de maneira direta, entre o homem e o

Deus. Esta relação que passa a ser direta não se dá mais de cima (o além) para baixo

140

(o mundo terreno). É este o contexto em que se localiza e com o qual o papado de

João Paulo II se depara.

Para uma instituição burocrática, de longa existência, que não detém mais o

monopólio do poder, mas que possui uma bagagem adquirida ao longo de quase duas

dezenas de séculos, o caminho que lhe parece mais favorável é o caminho político.

Como já foi afirmado, a Igreja é uma instituição burocrática, daí ser impossível a

inexistência de uma ação política em sua essência. Mesmo sendo uma instituição

confessional ela possui um território soberano que lhe dá condições de ser um ator

com certo destaque no campo das relações internacionais. E por se tratar de soberania

e relações internacionais, é impossível que não haja diplomacia, afinal, existem

diversos Estados soberanos no mundo com quem mantém relações. Neste contexto, a

prática retórica ganha mais força ainda. A Igreja Católica tem em mãos um capital

simbólico e um caminho onde a habilidade política é o meio de sobrevivência. Em

outros tempos, ou melhor, em outras condições, a violência pode ser um artifício

comumente usado nas relações entre os Estados. Porém, justamente por se tratar de

uma instituição confessional, a não violência é o alicerce principal de sua prática

retórica, o único meio dela se fazer presente e atuante neste contexto.

Um aspecto interessante que a pesquisa nos mostrou é o volume de relações de

hierarquia e poder existentes dentro da própria instituição. Isto é necessário para sua

sobrevivência. Assim como um atleta ou um artista treina por muitas horas ao longo

de todos os dias sua especialidade, quando este vai se apresentar ou competir, o seu

feito nada mais do que um reflexo de seu treinamento cotidiano. Em paralelo a este

exemplo, se o cotidiano da Igreja Católica nas suas relações dentro do Vaticano é

essencialmente político, quando ela atua no contexto internacional sua postura é

também um reflexo de seu funcionamento. Porém, algo que lhe caracteriza como

diferente de outros atores internacionais é seu caráter confessional; é praticamente

impossível distinguir quando um sacerdote ou o próprio Papa, por exemplo, pratica

um ato diplomático como Papa ou como Chefe de Estado. Não dá para saber o ponto

exato onde começa a função de líder espiritual ou onde termina seu papel de

141

governante laico. Isto pode ser um trunfo para o pontífice como pode ser também um

fardo a carregar.

No papado de João Paulo II, diversos autores defendem que a dimensão que

este tomou, em termos de alcance tanto geográfico como simbólico, só foi possível

devido ao uso do político e da mídia pelo Pontífice. João Paulo II foi uma das

personalidades mais conhecidas do século XX em todo o mundo. Em um contexto

secular, plural e sem referência religiosa, parece coerente que este status alcançado

por João Paulo II seja oriundo de seu caráter político.

Autores como Patrick Michel (Nem todos os caminhos levam à Roma, 199)

defendem que o divisor de águas deste papado foi a queda do comunismo no leste

europeu. A dimensão política do papado foi tamanha que uma questão como esta, que

influenciou diretamente a soberania de diversos países, foi uma façanha realizada

somente através da prática retórica (que aqui envolve diplomacia, simbolismo,

ideologia, entre outros fatores) sem o uso da violência por parte do ―vencedor‖ da

queda de braço. A retórica é uma infantaria poderosa se o seu general sabe como usá-

la.

Como tudo que envolve relações entre indivíduos, nada se dá da noite para o

dia. Assim como a prática retórica da Igreja Católica foi um processo ao longo dos

séculos, João Paulo II também foi aperfeiçoando sua peculiar prática retórica ao

longo de seu papado. Justamente por ser um papado em um contexto relativamente

recente, do qual se conhece o começo, o meio e o fim, é que foi escolhida por nós na

analise da retórica da Igreja neste período. Mesmo assim sendo, duas práticas

retóricas aparentemente distantes uma da outra, foram escolhidas foi para se tentar

identificar alguma evolução ou involução nesse processo. Retórica trata de discurso,

um orador e um auditório. Quando se buscou analisar o discurso no conflito pela

soberania do Canal de Beagle entre Chile e Argentina em 1979 e sobre a invasão do

Iraque pelos Estados Unidos em 2003, os discursos a serem analisados foram os de

caráter oficial e disponíveis ao público. Em nenhum momento o pesquisador teve

acesso a possíveis documentos secretos que nem se sabe se possam existir. Mesmo

assim, os discursos oficiais obtidos se tornaram uma rica fonte de pesquisa.

142

Nos atos retóricos escolhidos, João Paulo II enfrentou, como líder da

instituição, contextos diferentes e que foram preponderantes na elaboração da prática

retórica. No caso de Beagle, João Paulo era um pontífice recém eleito e não se sabia

ainda o quanto sua imagem era carregada de capital simbólico. Já no conflito do

Iraque o Papa havia consolidado seu ethos de pacificador e de um homem que estava

além da sua função de líder espiritual.

Ambos os conflitos foram questões de violência premeditada. João Paulo II,

porém, não cria nenhuma idéia nova sobre a questão, ele reproduz um capital que a

Igreja já possuía. Isto reflete o quanto o capital simbólico da instituição ainda tem seu

peso. Caminhando por entre diversas figuras de linguagem a fim de por em prática

sua retórica, vale ressaltar que algumas dessas, que se fazem presente não só pela

ocasião dos conflitos em si, mas também pela condição da retórica religiosa de um

pontífice em momentos de tensão militar; procuramos nos atar à hipérbole, à figura

que tende ao exagero, principalmente em questões religiosas, com o objetivo de

aumentar o divino; e a apóstrofe, figura na qual o discurso vai também para um

auditório que não é o do orador. Quando João Paulo II fala de questões como a paz,

por exemplo, ele não somente fala para o auditório do conflito em Beagle ou no

Iraque, ele tenta alcançar a todo mundo, o que é outra figura retórica, o auditório

universal. Em todo o momento elementos que caracterizam o discurso retórico, o

discurso que tem por finalidade persuadir, aparecem nas alocuções de João Paulo II.

Quando João Paulo II intervém na questão iraquiana, seu discurso teoricamente

não teria peso perante os envolvidos nos conflitos, pois ambos os países não são de

tradição católica. Entretanto, o fato de ele agir politicamente, não abre margem ao

confronto religioso, mas sim moral. Pois neste período final do seu papado seu ethos

já está consolidado não somente como líder religioso, mas também como pacificador

e portador não só da voz da Igreja Católica, mas também da voz da opinião pública

mundial.

No primeiro conflito, a prática retórica foi na forma de uma mediação – o que

não deixa de ser diplomática. No segundo momento desta análise retórica, a arte da

persuasão se deu na forma explícita de diplomacia, com atos simultâneos com os

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envolvidos, sendo sempre noticiados em tempo real por diversos veículos de

comunicação em todo o mundo. Claro que não se pode negligenciar a evolução dos

meios de comunicação para tal feito, porém não se pode também dedicar este

panorama somente aos meios de comunicação. Caso a visibilidade de João Paulo II,

para não se supor em demasia, fosse diferente, com certeza a cobertura dos modernos

meios de comunicação seria outra.

Um aspecto interessante que ficou também explícito nesta pesquisa, é que a

articulação por parte da Santa Sé nestes conflitos é centrado na figura emblemática do

Papa. A todo o momento é citado João Paulo II, porém a mediação em Beagle foi da

Santa Sé. Na invasão ao Iraque quem designou os embaixadores foi a Santa Sé.

Como afirma Reese (O Vaticano por dentro, 1997), o Papa além de um indivíduo é

uma instituição e isto fica claro nas conotações em que parece que João Paulo II

perpassa a própria Sé Apostólica Romana.

Esta pesquisa mostrou também que a prática retórica é um meio poderoso não

só de persuasão, mas também de poder. Em dois momentos distintos um líder

religioso assume ethos diferentes, houve uma evolução neste sentido, e enfrenta em

ambos os momentos a real possibilidade de conflitos armados ocorrerem. Em uma

das ocasiões, onde não se tinha ainda conhecimento ou idéia de como seria seu

papado, o conflito foi evitado. Em outro, onde seu papado já estava consolidado e

tinha um legado, o conflito não foi evitado. Isto pode ser um indicador de uma

ascensão e queda do seu papado, como também pode indicar alguma outra mudança

no contexto das sociedades que somente uma nova pesquisa pode tentar responder.

Outras considerações que abrem lacunas para que esta pesquisa continue,

também aparecem. Por exemplo: houve alguma evolução no papel de João Paulo II?

Se houve, como e quando ela ocorreu?

Finalmente ficou claro para nós que as diversas situações retóricas colocadas

em prática pela Igreja Católica estão atreladas a determinados momentos históricos,

econômicos e culturais. A ação retórica não ocorre, portanto, no vazio, mas sempre

em contextos reais e concretos.

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