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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao professor Fernando Torres Londoño, a pessoa que
acreditou em mim nos tempos de graduação e sem o qual nunca teria conseguido
chegar onde estou hoje.
Agradeço também ao Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, orientador e suporte
para a redação desta dissertação, sem o qual certamente nunca conseguiria tê-la
produzida.
Agradeço também aos demais professores do programa de pós-graduação pela
contribuição, seja ela formal no cumprimento dos créditos, ou informal em
conversas pelos corredores da Metodista.
Agradeço também a força e amizade dos colegas do programa, em especial aos
outros dois ―patetas‖: Altair Tio Leôncio e Jefferson Mineiro Uai Sô! Também ao
Max e o Alex, ao Cláudio, à Helena, à Márcia e muitos outros que não caberiam
aqui.
4
RESUMO
LOPES JUNIOR, Rubens. A Retórica da Igreja Católica: O uso do discurso
político no papado de João Paulo II. UMESP, São Bernardo do Campo, 2011.
A retórica sempre esteve presente nas civilizações. Desde a Grécia Antiga até
os dias de hoje ela é usada e estudada. Na religião, é uma formidável fonte de
expressão. Foi através da retórica que o Papa João Paulo II conseguiu ganhar
notoriedade e se envolver em casos muito além da religião no século XX. Ele foi
considerado um papa que se utilizou do político e consolidou um novo status para
a Igreja Católica. Assim, através da análise retórica da mediação da Santa Sé no
Canal de Beagle em 1979 e da análise retórica das ações diplomáticas do Vaticano
contra a invasão do Iraque em 2003, este trabalho mostra como se constrói a
retórica religiosa, além das conseqüências que isso acarreta não só para a Igreja,
como também para o mundo.
Palavras-chaves: Retórica; Canal de Beagle; Iraque; João Paulo II
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................ 07
CAPÍTULO I – Os efeitos do discurso político na retórica religiosa católica
Introdução .............................................................................................. 13
1.1 A retórica religiosa católica e a construção do discurso político da Igreja
Católica ..................................................................................................... 14
1.1.1 - O que é retórica?......................................................................... 14
1.1.2 - O discurso político ..................................................................... 24
1.2 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico ............... 29
1.2.1 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico ......... 29
1.2.2 – Secularização, competitividade e pluralismo ............................ 37
Conclusão ................................................................................................. 46
CAPÍTULO II - A Política e a Santa Sé no Papado de João Paulo II
Introdução ................................................................................................. 49
2.1 – O viés político do Vaticano ............................................................. 50
2.1.1 - A estrutura interna do Vaticano ................................................. 50
2.1.2 - A representatividade papal e a diplomacia da Santa Sé ............. 60
2.2 – O Papado de João Paulo II e a Igreja no Cenário Mundial ............. 66
2.2.1 – A gênese e a formação do orador: João Paulo II ....................... 66
2.2.1 – O papado e a queda do comunismo ........................................... 75
Conclusão .............................................................................................. 84
CAPÍTULO III – A retórica da Igreja Católica no papado de João Paulo
II durante a mediação no canal de Beagle (1979) e invasão do Iraque
(2003)
Introdução ................................................................................................. 87
3.1 - O Caso do Canal de Beagle .............................................................. 88
3.1.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica no Canal de Beagle ...... 88
6
3.1.2 - O Problema Retórico no Canal de Beagle.................................. 90
3.1.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico no Canal de Beagle ..... 92
3.1.4 - As Contingências do Discurso no Canal de Beagle ................ .103
3.1.5 - A Interpretação do ato retórico no Canal de Beagle ................ 105
3.1.6 - O julgamento do ato retórico no Canal de Beagle ................... 107
3.2 – A invasão do Iraque ....................................................................... 109
3.2.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica na invasão do Iraque .. 109
3.2.2 - O Problema Retórico na invasão do Iraque: Ações Diplomáticas
do Vaticano no Conflito Entre os Estados Unidos e o Iraque ............. 113
3.2.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico na invasão do Iraque
(2003) ................................................................................................... 114
3.2.4 - As Contingências do Discurso na invasão do Iraque (2003) ... 124
3.2.5 - A Interpretação do ato retórico na invasão do Iraque .............. 125
3.2.6 - O julgamento do ato retórico na invasão do Iraque (2003) ..... 134
Conclusão ............................................................................................. 135
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................137
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................144
7
INTRODUÇÃO
Há muito tempo atrás, na Grécia antiga, a Retórica já estava presente entre
filósofos, poetas e oradores. A análise retórica é um método de análise do discurso
embasada nos preceitos da filosofia e da retórica antiga. Quem quer conversar pela
retórica, se utiliza do discurso para tal. Há muito tempo a humanidade se preocupa
acerca do efeito das palavras, o que causou o desenvolvimento da arte do discurso
para interferir sobre as suas crenças e atitudes das pessoas.
No início, a função da Análise Retórica era avaliar peças de oratória de
pregadores religiosos e políticos. Nos dias de hoje, a Análise Retórica permite
identificar elementos de persuasão presentes em qualquer tipo de comunicação,
inclusive na religiosa. Um discurso necessariamente está atrelado as condições
sociais em que é produzido. Ele é o reflexo de uma época. Assim, esta dissertação
busca mostrar os efeitos de um contexto secular e moderno na retórica católica no
papado de João Paulo II. Mas por que João Paulo II?
É inegável que João Paulo II tornou-se uma das personagens mais conhecidas
da segunda metade do século XX. Este Papa buscou um novo papel para a Igreja,
principalmente nos anos 80, como conseqüência do seu engajamento com causas
sociais através de construções retóricas. Em seus vinte e cinco anos de papado,
inúmeros fatos poderiam ser estudados acerca da construção retórica da Igreja
Católica. Ele foi considerado por muitas pessoas como o ―Papa da mídia‖. Sua figura
é exposta em todo o mundo e não é somente relacionada com as questões católicas,
mas muitas vezes com questões políticas. Sendo assim, como funciona a prática
diplomática e discursiva da Igreja Católica através da retórica? Para tal, foram
escolhidas duas práticas retóricas distintas em dois momentos diferentes deste papado
(1978-2005): a Mediação de Beagle (1979) e a invasão do Iraque (2003).
Assim que assumiu primazia romana, a Igreja sabia da importância da América
Latina, tanto para ela quanto para os Estados Unidos e União Soviética, porque o
―fantasma‖ do comunismo rondava a América Latina. Metade dos Católicos do
8
mundo estão na América Latina, é uma região de extrema relevância para a Igreja e,
neste mesmo território, ela daria outro passo em direção à visibilidade mundial
através de uma construção retórica: o papel de mediação. Já aparece aqui um fato
interessante, pois a mediação se dá entre dois países e não entre duas instituições
religiosas. Chile e Argentina disputavam o controle do Canal de Beagle e quase
guerrearam. Tanto o governo chileno quanto o governo argentino encabeçados por
ditadores militares, pediram formalmente ao Vaticano a mediação a fim de guiá-los
em uma busca pacífica desta controvérsia.
No dia 11 de setembro de 2001 o mundo foi surpreendido com aviões
comerciais sendo usados como armas no maior ataque terrorista da história dos
Estados Unidos. Estima-se que morreram em torno de 3 mil pessoas decorrentes
destes ataques. De setembro de 2001 até março 2003, João Paulo II entrou numa
―batalha‖ diplomática entre os Estados Unidos e o Iraque tentando evitar que os
norte-americanos invadissem o país do Oriente Médio, fato que acabou por ocorrer
em Março de 2003.
Nos dois casos escolhidos, João Paulo II se utiliza da retórica para intervir. Seu
discurso é produzido à luz da doutrina católica. Entretanto, o mundo encontra em um
período onde a referencia religiosa não mais condiciona a vida das pessoas. Existem
diversas expressões religiosas além da católica. Se um discurso é reflexo da condição
em que é produzido e a doutrina católica se encontra em um período de
questionamento e incerteza, como João Paulo II pode tornar-se uma das mais
conhecidas figuras do século XX? Certamente isso só poder ser operado através do
político.
Venho de um curso de graduação em Relações Internacionais. Neste meio, são
escassos os estudos que buscam analisar a Igreja como um fator político que atua no
cenário global. É comum entre especialistas em relações internacionais a temática da
religião figurar somente quando o assunto é o terrorismo ligado ao islamismo. Penso
que a neste meio a religião vai muito além deste fato.
Nas considerações dos atores internacionais na modernidade, tem se
negligenciado o papel da Igreja. A separação entre Igreja e Estado fez com que não se
9
enxergasse ela como um ator no jogo político internacional, papel que ficou somente
com os Estados, no campo das relações internacionais. O que vemos é que a religião
se modificou, mas não sumiu nos dias de hoje. Porém, penso que tal proposta de se
analisar a Igreja Católica focando especificamente como se constrói e como funciona
seu discurso em situações distintas seria de grande contribuição interdisciplinar:
mostrar que a Igreja, com suas bases teológicas, consegue se posicionar
diplomaticamente no cenário global em praticamente qualquer tipo de questão, sem
necessariamente reforçar sua característica episcopal nem de se distanciar dela. Isto
só é possível a partir de uma sólida construção retórica. Se não houvesse habilidade
no uso da palavra, não haveria como se proceder tais construções.
Atualmente, vasculhando o banco de teses da CAPES, encontramos diversas
teses e dissertações com a temática da retórica em si. Diversas teses e dissertações
acerca do papel da Igreja, modernidade e secularização, e muitas outras sobre João
Paulo II. Mas há pouca incidência de teses e dissertações que englobem a análise
retórica acerca de fatos do papado de João Paulo II. Isto indica que esta dissertação
pode ser de grande importância para a análise da retórica que envolve fatores
políticos e religiosos.
A grande maioria dos termos que são utilizados nesta pesquisa são oriundos de
renomados autores sobre retórica. Tereza Halliday é uma renomada autora, poeta,
ficcionista, jornalista, tradutora, professora universitária e ensaísta. Ela oferece um
rico método de análise de discurso em seu livro de 1988 intitulado Atos Retóricos,
mensagens estratégicas de políticos e igrejas. Este método foi o adotado nesta
dissertação ao se analisar os discursos de João Paulo II.
Outro grande pensador sobre retórica é Chaim Perelman. Ele possui diversas
obras, como Retóricas (2004) e Tratado de Argumentação: A nova retórica (2005),
sobre o tema e mostra a dimensão da retórica nos dias de hoje. A retórica ganhou uma
conotação negativa ao longo de sua existência, pois a persuasão é seu objetivo.
Perelman acaba com o conotação pejorativa resgatando a função da retórica nas suas
origens em Aristóteles.
10
Oliver Reboul, um pensador francês, segue a linha de argumentação de
Perelman em seu livro chamado Introdução à retórica (2004). A principal
contribuição deste autor está em uma exposição sobre as figuras de linguagem que
são características da retórica. Um discurso pode ser persuasivo ou não. Para que se
caracterize como tal, são necessárias algumas figuras específicas desse tipo de
linguagem.
Se a retórica se utiliza do discurso para persuadir, discurso também é um termo
que aparece constantemente nesta pesquisa. Se a expressão da linguagem através da
retórica e do discurso é um reflexo do contexto social, o livro Discurso e mudança
social (2001) de Norman Fairclough oferece uma grande contribuição da natureza do
discurso. Como o papado de João Paulo II foi característico pelo uso do político, o
discurso político também merece destaque. Para tal, o livro Discurso Político (2006)
de Patrick Charaudeau oferece uma rica análise do funcionamento e criação do
discurso político. Assim, termos da natureza da retórica e discurso político são
frequentemente encontrados neste texto.
Só é possível fazer análise retórica de um texto se você tem acesso a este texto.
A documentação utilizada para se concluir a proposta deste trabalho provém de
fontes diferentes. Sobre o Canal de Beagle, João Paulo II proferiu discursos e
alocuções em audiências públicas no Vaticano. Estes discursos foram encontrados, a
maioria em sua íntegra no site do Vaticano. Como se tratava de uma mediação a nível
internacional, a versão definitiva da mediação e do tratado de paz encontra-se
disponível na documentação da ONU, acessível também via internet. Esta ferramenta
moderna de comunicação facilita a vida do pesquisador em casos como este.
Em relação a invasão no Iraque, a prática diplomática por parte da Santa Sé foi
coberta pelo jornal do Vaticano, chamado de L’Osservatore Romano (Observatório
Romano). Ele possui edições quinzenais em diversas línguas e, dentre elas, o
português. Como um panorama cronológico dos eventos pré-invasão, foi possível
localizar nas edições deste jornal os discursos tanto de João Paulo II, como também
dos cardeais que foram figuras presentes nestas práticas diplomáticas.
11
Essa dissertação está distribuída da seguinte maneira: no primeiro capítulo,
tratamos do discurso político na retórica religiosa, para tal explanamos o que é
retórica, discurso, e discurso político. Como a retórica é religiosa, é carregada de
simbolismos. Neste mesmo capítulo é apresentado um panorama da retórica católica
à luz da construção do simbólico que a envolve. Como a retórica é reflexo da
realidade social, também é imprescindível e encontra-se presente no primeiro capítulo
uma análise sobre as condições sociais da atualidade: secularização, pluralismo,
desencantamento e modernidade.
No segundo capítulo é dada devida atenção a figura de João Paulo II, além de
ser mostrado como funciona a política interna do Vaticano. O Vaticano é uma
burocracia. A simples condição para existência de burocracia são as relações políticas
entre os indivíduos que fazem parte dela. Mesmo sendo uma instituição religiosa, isso
é presente. Assim, no segundo capítulo há um panorama desta condição. Assim, por
ser o líder desta instituição, João Paulo II ganha destaque. Neste mesmo capítulo
existe um breve bosquejo da sua história pessoal, até os tempos de Papa. Como foi
um longo papado e com grande visibilidade, o político não poderia ficar de fora.
Elegemos como o fator principal desta condição política a queda do comunismo no
Leste Europeu. Assim, neste capítulo existe uma reflexão sobre este fator marcante
no mundo no final do século XX.
O terceiro capítulo desta dissertação foca especificamente a análise retórica.
Foi utilizado o método proposto por Tereza Halliday (Atos retóricos, mensagens
estratégicas de políticos e igrejas, 1988) o qual fornece uma sólida base de análise
retórica, dividindo a análise em seis partes diferentes, onde são considerados os
antecedentes retóricos, as limitações dos discursos, a anatomia do discurso, sua
interpretação e até o seu julgamento. Consequentemente, este capítulo oferece uma
grande contribuição para além do discurso em si, pois foram exploradas as questões
que envolvem o discurso: questões históricas e conceituais, pois está diretamente
ligada às relações internacionais.
Essa dissertação oferece uma rica compreensão interdisciplinar. Aparecem
conceitos sobre religião, relações internacionais e lingüística, interligados entre si em
12
uma análise retórica do discurso da mais antiga instituição burocrática que se tem
registro e de um dos rostos mais conhecidos do final do século XX.
13
Capítulo I
Os efeitos do discurso político na retórica religiosa católica
“Retórica é a arte de persuadir pelo discurso”
Olivier Reboul
Introdução
De que maneira o discurso político age sobre a retórica religiosa? Este primeiro
capítulo trás à reflexão a retórica católica, privilegiando o período do pontificado do
Papa João Paulo II à luz das teorias dos autores de retórica. Para tal, a primeira parte
deste texto faz um pequeno panorama histórico acerca da ―retórica‖, desde suas
origens na antiga Grécia até alguns dos pensadores contemporâneos, como Chaim
Perelman e Tereza Lucia Halliday. Discutiremos acerca do conceito de discurso,
passando por autores como Norman Fairclough e Eni Orlandi. Na análise do discurso
político apoiaremos a nossa reflexão em autores como Patrick Charaudeau. Nele
procuramos definir o que é e como se constitui o discurso político. Em um segundo
momento, mostraremos como os grupos religiosos estruturam sua retórica através do
discurso, focando a Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) e os efeitos da
secularização em sua ―voz‖. Para tal, autores como Pierre Bourdieu serão de suma
importância. Ainda, mostraremos como a competitividade funciona em tempos de
secularização e pluralismo utilizando Antonio Pierucci e Marcel Gauchet.
14
1.1 A retórica religiosa católica e a construção do discurso político da Igreja
Católica
A retórica sempre esteve presente no cotidiano das sociedades e possui
diversas definições e usos, entretanto, todas elas estão relacionadas à persuasão.
1.1.1 - O que é retórica?
A análise retórica é um método de análise do discurso embasada nos preceitos
da filosofia e da retórica antiga. Há muito tempo a humanidade se preocupa acerca do
efeito das palavras, o que ocasionou o desenvolvimento da arte do discurso, arte esta
que interfere nas crenças e atitudes das pessoas. Na antiga Grécia, mesmo filósofos
anteriores a Platão e Aristóteles, como Córax e Tísias (século V a.C.), refletiam sobre
o poder persuasivo dos discursos, descrevendo seu funcionamento e seu poder de
interferência em quem os ouvia. Surge assim a ―Análise Retórica‖.
Em seus primórdios, a retórica tinha por função avaliar principalmente peças
de oratória de pregadores religiosos e políticos. Nos dias de hoje, a Análise Retórica
permite identificar elementos de persuasão presentes em qualquer tipo de
comunicação. De acordo com Luís Rohden1, a partir do conhecimento destes
pensadores antigos e da sistematização dos conhecimentos até então produzidos,
Aristóteles desenvolve suas próprias reflexões, organizando um sistema retórico
valorizado ainda hoje nos estudos sobre retórica e argumentação. Para Rohden,
Aristóteles sistematiza os fundamentos da persuasão no discurso descrevendo a
natureza e a origem dos diferentes argumentos e criando uma teoria do discurso
voltada para o exercício da argumentação.
Segundo Halliday2, para Aristóteles existiam dois tipos de conhecimento: as
―verdades imutáveis‖ da natureza, conhecidas como theoria, que pertencia ao campo
1 ROHDEN, Luís. O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1997.
p.07-14. 2 HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988. p. 121
15
da ciência; e as ―verdades contingentes‖, conhecidas como phronesis, podendo ser
considerada como a sabedoria prática. Para ele, as verdades contingentes eram frutos
de um esforço de reflexão, uma ciência que não se limita ao conhecimento, e tinham
por função melhorar a ação do homem. Aristóteles também procurou descrever
claramente os fenômenos da ação humana por intermédio do exame dialético das
opiniões dos homens sobre esses fenômenos. Para o filósofo grego, é a partir da
opinião que se torna possível atingir o conhecimento. Portanto, a retórica é a
faculdade de enxergar, de acordo com cada caso, o que é capaz de gerar a persuasão.
Quando uma prática discursiva consegue atingir seu objetivo, chamamos este
fenômeno de construção retórica: no qual seus participantes fazem uma leitura
retórica da situação em questão e fazem parte propriamente desta construção, sejam
como produtores, coprodutores ou receptores deste discurso. Para Chaim Perelman3,
a retórica tem basicamente a função de adesão: “O objeto desta teoria é o estudo das
técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às
teses apresentadas ao seu assentimento”. Perelman
4 afirma ainda que neste diálogo
crítico o que se põe à prova é a tese de um interlocutor ou até mesmo uma hipótese
que este possa sustentar.
Segundo Reboul5, quando um orador pretende convencer ou persuadir uma
plateia utilizando o artifício do discurso, este orador emprega argumentos para falar à
razão, busca fazer com que o ouvinte sinta que o discurso do orador possui uma
lógica. Assim, técnicas para manter uma organização discursiva e a expressividade
das palavras com a finalidade de despertar a sensibilidade do auditório são
extremamente utilizadas, e fazem com que o ouvinte mantenha sua atenção na
imagem criada de alguém com credibilidade e que porta a legitimidade suficiente
para propor sua opinião. Por outro lado, a preocupação com a subjetividade também
aparece nos estudos de linguagem e nas ciências sociais, fato que expõe a relevância
desta característica na formulação e elocução do discurso. A subjetividade do
3 PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação: a nova retórica. São
Paulo, Martins Fontes, 1996. p. 05 4 Idem. Retóricas. São Paulo, Martins Fontes, 1997. p. 07
5 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p. 36
16
discurso age tanto no que se refere ao orador, como ao que se refere aos ouvintes.
Este aspecto do discurso acaba por criar uma relação de subjetividade e
interdependência entre ambos os atores retóricos – oradores e ouvintes.
Lineide Mosca6 afirma ser possível verificar a mobilização das paixões de um
auditório através das representações do comportamento deste público, ou até mesmo
através de ações ou situações que possam desencadear as emoções desejadas.
Existem desde a antiguidade clássica três pilares que trabalham exatamente com a
questão da razão e paixão. Junto de mais um aspecto relacionado à imagem, são estes
pilares que fundamentam a retórica: Logos, Pathos e Ethos. Segundo Reboul:
(...) a retórica, diz Aristóteles, compreende três tipos de provas (pisteis)
como meios de persuadir: os dois primeiros são o ethos e o pathos [...]; constituem
a parte afetiva da persuasão. O terceiro tipo de prova, o raciocínio, resulta do logos,
constituindo o elemento propriamente dialético da retórica. 7
À luz dos conceitos de autores especialistas em retórica, pode-se afirmar que o
ethos consiste na credibilidade, na imagem do orador. Seja qual for a fonte de sua
credibilidade - cultural, estado social, capacidade intelectual - tais qualidades podem
levar um auditório a acreditar em uma ―verdade‖. Já o pathos é oriundo das paixões e
emoções dos ouvintes. A forma como o orador desperta as emoções em seu público
faz eco ao peso do pathos em seu discurso. O logos é o contraponto do pathos:
representa a lógica, o racional do discurso. Embora aparentemente pathos e logos
soem como antagônicos, ambos os conceitos fazem parte da retórica. Para Mosca8, a
formação de um ethos está ligada a questões de identidade. Seja este ethos coletivo
ou individual, ele encontra-se em um jogo de representações que se dá entre as partes
envolvidas no processo de trocas comunicativas e de constituição das respectivas
identidades. Trabalhando com representações de si próprio, o ethos também absorve
representações do ouvinte, através de seu pathos.
6 MOSCA, Lineide A atualidade da Retórica e seus estudos: encontros e desencontros in Rhetoric.
Proceedings of the First Virtual Congress of the Romance Literature Department. São Paulo, USP. p. 07 7 REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo, Martins Fontes, 2000. p. 36
8 MOSCA, Lineide. idem.
17
Em nossa pesquisa trabalhamos com a ICAR, portanto, vale ressaltar neste
momento que ethos, pathos e logos são pilares que funcionam muito bem quando se
trata da Igreja Católica em sua hierarquia e retórica. Por exemplo, se ethos consiste
em credibilidade, imagem do orador independente de sua fonte, um arcebispo, um
cardeal ou até mesmo o Papa podem criar um ethos legítimo de uma determinada
retórica na medida em que agem como porta-vozes da instituição, pois possuem
credibilidade e criam uma identidade com seu auditório, muitas vezes os próprios
fiéis9. Tal condição pode ser decisiva e levar um auditório a acreditar em uma
―verdade‖. Reboul10
afirma que uma construção retórica só é possível se houver um
acordo prévio entre o orador e o seu auditório (seja ele qual for). Para ele, ―a regra de
ouro da retórica é levar em conta o auditório‖, pois os argumentos mudam segundo o
auditório. Entre o orador e o auditório tem de necessariamente haver este acordo, o
autor afirma que ―é impossível que um se dirija ao outro se não houver entre ambos
um acordo prévio‖. É neste acordo que reside o verossímil que trabalha a retórica,
este acordo está na presunção que se tem. Para ele, o ―verossímil é a confiança
presumida‖.11
Se pensarmos em algum líder de alguma seita, à luz do que pensa a maioria de
seus seguidores, a sua mensagem possui legitimidade, isto é, quem confere
legitimidade a uma peça retórica e seu orador são os ouvintes. Porém, quando uma
mensagem deste porte consegue chegar a um público distinto de seus seguidores,
pela divulgação da informação por um veículo como a internet, por exemplo, esta
mensagem não terá legitimidade nenhuma perante este público. Este público distinto
não reconhece o ―profeta‖ desta seita como líder, o verossímil deste líder pode não o
ser para o auditório, a verdade que para um é diferente do outro não possibilita este
acordo prévio, o que faz com que sua mensagem não funcione em tais condições.
Pode-se afirmar, então, que a retórica, como força que age sobre a vontade e o
entendimento de um determinado grupo, combina as capacidades intelectuais e
9 Nos próximas páginas iremos discorrer sobre quem ―porta a voz‖ da ICAR e sobre a credibilidade desta
voz. 10
REBOUL, Olivier. Introdução… p.142-143 11
Ibid. p.165
18
afetivas, tratando-as como indissociáveis, possibilitando a influência de aspectos
subjetivos na construção de seus discursos.
Halliday12
trabalha ainda com condições e fatos que propiciam o
acontecimento do fenômeno retórico: a Situação Retórica e Ato Retórico. Para ela,
Situação Retórica abrange pessoas, eventos, objetos, entre outros , que se apresentam
em situações nas quais certo tipo de discurso é capaz de influenciar o pensamento ou
a ação de determinada audiência, acarretando uma modificação positiva para o orador
deste discurso em questão. A autora denomina este orador como retor. Quando
Halliday afirma que somos seres retóricos, pois usamos a linguagem como
instrumentos de mudança, reforço ou adesão à valores, sentimentos, posicionamentos,
o fazemos justamente porque respondemos aos ditames de uma situação. Essa autora
afirma ainda que quando um retor ―se importa‖ com certa situação ou meramente tem
algum interesse em modificá-la, é porque esta situação possui alguma instância
plausível de ser modificada através do discurso. Isto só é possível porque somos
seres simbólicos, um composto de realidade objetiva junto com a interpretação das
pessoas que a vivenciam. Sendo assim, é possível afirmar que a retórica é uma
construção social que carrega em si um poder simbólico significativo13
.
Por Ato Retórico, a autora entende como a transmissão de uma mensagem
caracterizada como ação simbólica, para promover ajustes ao ambiente em questão.
Seja tal transmissão por um retor ou através de um texto. Tal transmissão é uma
tentativa intencional criada para superar obstáculos em uma determinada situação
retórica, sobre uma determinada audiência, com uma determinada questão, buscando
um determinado objetivo. Portanto, é elaboração de um autor humano com um
propósito especifico. Daí ser importante salientar que se a retórica é a arte de
influenciar um determinado auditório, tal discurso necessariamente tem que estar de
acordo com argumentos de persuasão que sejam compreendidos pelo auditório. O
público ouvinte deve ser capaz de acompanhar a linha argumentativa organizada pelo
12
HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988. p. 121-125. 13
No decorrer da pesquisa, trataremos da construção social e simbólica do discurso usado nas retóricas.
19
orador. Ou seja, a qualidade técnica da argumentação está relacionada ao grau de
conhecimento, em determinado assunto, do auditório a quem se dirige.
Quem quer persuadir, se utiliza da retórica para tal fim. A retórica é ação do
homem sobre outros homens, utilizando-se de estratégias de convencimento e de
persuasão, visando mudar ou manter uma determinada situação ou um determinado
ponto de vista ou atitude. Este retor faz uso de diversas técnicas de discurso para
buscar seu objetivo, caminhando entre a razão e a paixão, seduzindo seu auditório
para seu objetivo. Sob a perspectiva em que se coloca a retórica, é imprescindível
contar com as reações dos destinatários (avanços, recuos, concessões, agressões,
etc.). A argumentação só é tida como eficaz quando chega a persuadir o outro, não
bastando a simples apresentação das provas e das razões.
Tereza Halliday14
aponta seis passos do método de Análise Retórica que
permitem compreender o fenômeno retórico, descrevendo todos os componentes de
uma situação retórica: as motivações implícitas e explícitas do emissor, as
expectativas dos receptores e as contingências do contexto. A autora subdivide o fato
cabível de análise retórica em seis momentos que acabam por se interligar uns com os
outros e mostra seis passos para que seja feita uma análise retórica através das
condições que expõe. A autora divide uma questão retórica em antecedentes da
situação retórica; problema retórico; anatomia e fisiologia do ato retórico; as
contingencias do discurso; interpretação do ato retórico; julgamento do ato retórico.
Devido à clareza e praticidade deste método de abordagem, esta pesquisa utilizará
este método de análise de situações retóricas pré-definidas no decorrer do papado de
João Paulo II.
Vamos por partes:
a) Primeiro passo: Os antecedentes da situação retórica
Neste primeiro momento da análise retórica, é necessária uma pesquisa com o
intuito de reconstruir os elementos históricos, políticos e culturais da situação
escolhida para análise. São estes os elementos que caracterizam esta situação
14
Ibid. p. 126-132.
20
problemática como situação retórica. Para tal, as fontes de dados são de suma
importância neste momento deste processo. Assim sendo, é possível afirmar que uma
boa contextualização é o primeiro passo e um alicerce sólido para uma boa pesquisa
de análise retórica. Assis da Silva15
se utiliza do método de Halliday na análise
retórica do documento pontifício Libertatis Conscientia, assinado pelo prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, ex-Santo Ofício, acerca das
produções teológicas dos teólogos latino-americanos conhecidas como Teologia da
Libertação. Se utilizando do método de Halliday, Assis da Silva faz um panorama dos
acontecimentos acerca deste documento e chega à conclusão que o documento em si
tornou-se o ápice da confrontação entre tais teólogos e o Vaticano. O autor contorna
até o primeiro acontecimento-chave desta beligerância católica, a publicação de um
livro de Leonardo Boff, o qual continha idéias e conceitos que poderiam ruir com
dogmas milenares da Igreja e que despertou a necessidade de resposta do Vaticano. O
caminho percorrido por Assis da Silva para demonstrar que a situação retórica tem de
ser bem embasada e descritiva arrazoa a importância deste primeiro passo do método
de análise de Halliday.
b) Segundo passo: O problema retórico
Neste momento é muito importante conhecer a natureza do problema retórico.
O que é o problema retórico? Ou qual é o problema retórico? A dificuldade a se
explanar seria o conflito ou desequilíbrio entre um público e um orador? Tal
problema retórico é uma equação entre o que temos e o que queremos ter. Assis da
Silva neste momento de sua pesquisa define a Libertatis conscientia como um ato
retórico, um ato de comunicação, de caráter oficial, que se deu entre a Cúria Romana,
naquele momento representado pela Congregação para a Doutrina da Fé, por meio de
um documento assinado pelo seu porta-voz, Joseph Ratzinger, destinado a um grupo
de teólogos produtores de um discurso que ganhou notoriedade com o nome de
15
ASSIS da SILVA, Francisco de in HALLIDAY, Tereza. Atos Retóricos. São Paulo, Summus, 1988.
p.101-118.
21
Teologia da Libertação. Assim, o problema retórico é um conceito que inclui todos os
obstáculos enfrentados pelos comunicadores.
c) Terceiro passo: Anatomia e fisiologia do ato retórico
Aqui se identifica a forma como o discurso ganha corpo: vocabulários, figuras
de linguagem, metáforas e slogans que constituem a própria estrutura do discurso.
Segundo Halliday “Faz-se necessário identificar cada parte do ato retórico, fazendo
um levantamento de seu vocabulário, argumentos e figuras de linguagem, que
constituem a anatomia do discurso16
”. Assis da Silva continua sua análise retórica
deste caso do conflito entre a Teologia da Libertação e a Congregação para a
Doutrina da Fé, buscando elementos nos discursos de Leonardo Boff, nos encontros
de Boff e Ratzinger e nos documentos oficiais do Vaticano. Ele aponta que uma
primeira reação de Roma confronta a TDL, enquanto em um segundo momento a
reação busca doutrinar tais teólogos, por exemplo. A primeira reação vinda de Roma
chamava-se Libertatis nuntius, onde Assis da Silva afirma que ―o Vaticano não oculta
o teor de advertência, de admoestação‖. Enquanto num segundo momento, o
Libertatis constientia, segundo Assis da Silva, afirma que a ―Santa Sé procura, a
partir de sua própria concepção teológica, ensinar o verdadeiro sentido da libertação
na teologia‖.17
d) Quarto passo: As contingências do discurso
Neste ponto é necessário saber usar as limitações e restrições do discurso, as
condições que lhe podem ser favoráveis também. Este quarto passo do método de
Halliday mostra que a autora considera que todos os discursos tem suas limitações:
“Toda mensagem ou ato retórico sofre limitações e restrições que contribuem para
moldar-lhe o conteúdo e a forma.”18
Na sua análise retórica, Assis exemplifica que a
Cúria via uma certa habilidade em Boff, na medida em que ele criou ―em torno de si
um clima de mobilização nacional e internacional‖ graças ao qual se tornou capaz de
16
HALLIDAY, Tereza. Idem. p.126 17
ASSIS DA SILVA, Francisco in HALLIDAY, Tereza. Atos... p.107 18
HALLIDAY, Tereza. Idem. p. 128
22
inibir ―qualquer iniciativa de Roma em puni-lo‖ em um primeiro momento. Ou seja,
tal habilidade que Boff teria demonstrado fez parte naquele momento de sua retórica,
pois ele conhecia as limitações de seu discurso e se precaveu, à sua maneira é claro,
uma possível represália da Santa Sé, afetando assim também a construção retórica da
Congregação para a Doutrina da Fé. Portanto, saber até que altura pode alcançar seu
discurso é de suma importância para o orador.19
e) Quinto passo: A interpretação do ato retórico
A interpretação do ato retórico para Halliday é a combinação dos fatores acima
à luz de um marco teórico ou de acordo com a formação do analista. “O ato retórico
deve ser interpretado à luz de um arcabouço teórico/filosófico que contribua para
uma visão mais profunda do discurso e suas circunstâncias”.20
Assis interpreta o
documento do Vaticano como uma estratégia de consenso entre a Cúria e a TDL. O
Vaticano, diferentemente do primeiro documento, procurou identificar-se com as
teses de Leonardo Boff. Fala em libertação, porém à luz de seus dogmas romanos,
buscando assim manter a unidade da instituição. Procura-se aqui ressignificar a
―libertação‖ que teria recebida outras significações por causa do cunho marxista.
f) Sexto passo: O julgamento do ato retórico
Este passo indica como avaliar um ato retórico segundo alguns critérios
pragmáticos, estéticos ou éticos. O avaliador pode escolher um destes critérios ou a
combinação deles para realizar sua análise. Bem como tal passo pode não ser
concretizado, vez que o julgamento do ato retórico não é estritamente necessário.
Assis da Silva, na sua análise, julga o ato retórico pela sua eficácia em condenar a
TDL em seus excessos e chamar os seus defensores à ortodoxia da Igreja. Halliday21
afirma que neste momento da análise retórica, o pesquisador assume uma postura de
juiz, um avaliador do fenômeno retórico pesquisado e que isto implica em uma ―certa
dose de subjetividade‖. Assim, a fim de minimizar tais riscos que permeiam este
19
Nas próximas páginas o conceito de discurso será melhor explanado e discutido. 20
Ibid. p. 129 21
Ibid. p.129
23
momento da pesquisa, a autora defende que ―o julgamento do ato retórico deve
obedecer a critérios previamente escolhidos e explicitamente anunciados. Ela
exemplifica estes critérios como pragmáticos ou de efeitos, como estéticos ou de
qualidade e critérios éticos ou de valor.
Por critério pragmático, Halliday encara a retórica como ação persuasiva, onde
a avaliação do pesquisador busca enfatizar a relação do ato retórico com os seus
objetivos, questionando em até que ponto tal ato retórico foi eficaz em responder as
necessidades do retor, as contingências da situação e de sua audiência. Este foi o
critério usado por Assis da Silva no exemplo de análise retórica sucintamente exposta
nos parágrafos acima.
Já o julgamento por critério estético é feito não por sua capacidade de mudar
atitudes de ouvintes ou de tentar levar um auditório a ações específicas, mas sim é
julgado por sua ―natureza humanizadora, sua beleza, sua capacidade de ‗tocar‘ a alma
humana, reforçando valores e anseios universais‖.22
Halliday cita como exemplo o
―Discurso de Gettysburg‖ de Abraham Lincoln. Este discurso não foi eficaz em unir
o norte e o sul no período da Guerra Civil Americana, porém tornou-se um dos textos
mais belos da língua inglesa.
Portanto, na avaliação do ato retórico por critérios éticos, há uma busca das
conseqüências psicossociais no discurso. A avaliação reside no mundo dos valores.
Por isso, afirma Halliday que o avaliador precisa estar munido de uma ―consciência
apurada de seus próprios valores e dos valores prevalecentes na sociedade que foi
palco do ato retórico. Assim, questionar até que ponto o ato retórico contribuiu para
dignificar, mediocrizar ou degradar a condição humana se encaixam como artifícios
válidos na hora da avaliação.
Assim sendo, o método de Halliday se mostra claro e conciso, e este será o
caminho a ser utilizado para a proposta de análise retórica desta pesquisa.
22
Ibid. p.130
24
1.1.2 - O discurso político
Como vimos anteriormente, a retórica é a arte da persuasão através da
palavra. Uma palavra solitária, dita sem qualquer perspectiva pode até ter algum
significado sem um contexto ou pano de fundo. Porém, esta palavra solitária não é
capaz de exercer persuasão. A retórica busca a persuasão através da utilização de
palavras e só funciona como instrumento de persuasão se inserida em um
determinado contexto. Assim, o ato retórico somente terá efeito se utilizado junto de
outras palavras, capazes de suscitarem emoções, seduzir ou até fomentar a
racionalidade de seu ouvinte. Para tal, outro meio de persuasão se mostra presente na
prática retórica. Assim, um dos melhores dispositivos de enunciação destas palavras é
através do discurso.
Para Fairclough23
, discurso é um conceito de difícil definição porque existem
muitas delas conflitantes e sobrepostas. O autor afirma que na lingüística, o discurso
é usado para designar um diálogo falado, contrastando com textos escritos. Ele ainda
aborda que ‗discurso‘ engloba a interação entre falante e receptor ou leitor e escritor.
Diferentemente das definições anteriores, o autor ainda afirma que ‗discurso‘ pode
ser usado para caracterizar determinadas situações sociais, como ‗discurso de jornal‘
ou ‗discurso de sala de aula‘. Citando Michel Foucault, Fairclough ainda mostra que
discurso é usado na teoria e na análise social com referência aos diferentes modos de
se estruturar as áreas de conhecimentos e efetivamente as práticas sociais. Seguindo
sua linha de pensamento, o autor afirma ainda que os discursos, além de refletirem ou
representarem entidades e relações sociais, constroem ou constituem tais realidades.
Assim, discurso é um conceito que possui variadas definições e funções, porém em
todas estas funções, discurso caracteriza-se pelo uso da palavra para se chegar a um
determinado objetivo.
23
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2001.
p. 21-24.
25
Por sua vez, Eni Orlandi24
afirma que discurso é a capacidade do homem de
significar e significar-se sobre determinada situação. O discurso é a linguagem
necessária entre o homem e a realidade natural e social em que faz parte. O discurso é
o movimento desta relação. ―E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a
idéia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim a
palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o
homem falando‖.25
Para Orlandi o discurso é um objeto sócio-histórico no qual o
lingüístico intervém como pressuposto, sendo indissociável do conceito de discursos
questões de língua e ideologia. Para se trabalhar com discurso, é necessário
compreender a língua não somente como estrutura, mas também como
acontecimento.
Thomas Reese26
afirma que, à sua época, Paulo VI passava muito de seu tempo
examinando documentos escritos e muitos relatórios da Cúria Romana. Já João Paulo
II gostava de tomar conhecimento verbal de tais documentos e relatórios, se interando
com diversas pessoas. Não seria exagero afirmar que tal fato pode ser indício de uma
inclinação pessoal de João Paulo II pelo discurso e a tradição oral. Reboul27
defende
que um discurso de um orador é diferente de um texto, pois, segundo o autor,
―ninguém fala ‗como livro‘, mas como gente‖. Para ele o discurso oral deve ser mais
lento que uma leitura, pois o auditório não pode perder o fio da meada. O discurso
oral deve procurar ser redundante e a linguagem não é exatamente a mesma escrita,
pois exige frases mais curtas, expressões familiares e concretas, etc. As figuras,
defende o autor, pesam nestas condições, pois para melhor articular um discurso oral
pode-se, por exemplo, usar ―pra‖ em vez de ―para‖. Em correspondência com a idéia
inicial do parágrafo, Reese defende que ―experiências diferentes e personalidades
diferentes resultaram em papas com estilos administrativos diferentes‖.28
Parece que
esta tendência de João Paulo II pende em direção ao viés político na medida em que
24
ORLANDI, Eni Puccinelli, Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. Campinas, Pontes. 2003. 25
Ibid. p.15 26
REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. p.258 27
REBOUL, Olivier. Introdução... p.69 28
Ibid. p.241
26
sua inclinação pessoal por discursos e tradição oral permeiam não só externamente ao
Vaticano, mas também internamente entre o pontífice e seus imediatos.
Patrick Michel29
também vai por esse viés político ao afirmar que o papado de
João Paulo II foi extremamente político, pois ele foi o último papa em condições de
dar crédito a ICAR justamente pelo uso do político. As considerações de ambos os
autores não atendem, certamente, a todos os aspectos episcopais e políticos no
período deste papado, porém podem ser considerados como indicadores de que o
fator político se fez presente nos anos deste papa eslavo a frente da milenar
instituição Igreja Católica Apostólica Romana.
A noção de discurso, além de ser imprescindível passar pela idéia da ―palavra‖,
também parte do pressuposto de que é uma construção social assim como a
construção retórica. É a partir desta visão de discurso como prática social que esta
dissertação foi desenvolvida. Fairclough30
afirma que o discurso vai além das
palavras, reflete uma situação social, engloba pessoas e situações. Daí a sua
afirmação que ―a prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional
como criativa: contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações
sociais, sistemas de conhecimento e crença) como é, mas também contribui para
transformá-la‖. Ele exemplifica que as identidades de professores e alunos, e também
as relações entre estas identidades que estão localizadas no centro de um sistema de
educação, estão sujeitas à ―consistência e a durabilidade de padrões de fala no interior
e no exterior dessas relações de produção‖. Ele conclui dizendo que a ―constituição
discursiva da sociedade não emana de um livre jogo de idéias na cabeça das pessoas,
mas de uma prática social que está firmemente enraizada em estruturas sócio-
materiais, concretas, orientando-se para elas‖.
Como afirma o título deste capítulo, pretendemos mostrar especificamente os
efeitos do discurso político na retórica religiosa. Patrick Charaudeau31
apresenta uma
excelente reflexão acerca da natureza, procedimentos, regras e funções do discurso
29
LUNEAU, René e MICHEL, Patrick (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais
do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p.345 30
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso... p. 92-93 31
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso Político. São Paulo, Contexto. 2006.
27
político como processo de influência social. Ele trabalha com a questão da
―construção de identidades‖ como sendo ―instâncias‖ do contrato de comunicação do
discurso político. Assim, as condições e estratégias de persuasão estão diretamente
ligadas à constituição de identidades que se revelam como máscaras; o discurso
político articula-se entre as dimensões psico-sociológicas, como a identidade, e os
papéis sociais dos interlocutores, suas relações sociais e os objetivos, com as
dimensões propriamente lingüísticas que o caracterizam.
A reflexão de Charaudeau sobre o discurso político parte do pressuposto que a
política é um jogo de máscaras, um jogo de ser e parecer em que supostamente a
pessoa não é enganada. A máscara é o símbolo da identificação, segundo o autor, que
faz com que as pessoas confundam o ser e o parecer, pessoa e personagem. A
identidade, portanto, torna-se a imagem co-construída, resultante deste jogo de
máscaras. Como conseqüência deste jogo de imagens, o discurso político fornece
assim algo que é de fato dito, mas também oferece algo ―não-dito‖, porém um ―não-
dito‖ que também diz. Descomplicando esta idéia de dito e ―não-dito‖, Charaudeau
defende que mesmo algo que não se diz ou um momento de silêncio no meio de um
discurso, por exemplo, também tem algo a expor mesmo que não seja
necessariamente citado. O fato de você omitir palavras também passa uma
mensagem. Assim, o autor conclui que o discurso político diz e não diz ao mesmo
tempo e este não-dito também exprime posições e conceitos que podem ter o mesmo
valor (ou até mais) do que uma palavra propriamente dita.
O discurso político é, por excelência, o lugar de um jogo de máscaras. Toda
palavra pronunciada no campo político deve ser tomada ao mesmo tempo pelo que
ela diz e não diz. Jamais deve ser tomada ao pé da letra, numa transparência
ingênua, mas como resultado de uma estratégia cujo enunciador nem sempre é
soberano.32
Charaudeau sustenta que a natureza do discurso político provém do binômio:
linguagem e ação. Este discurso funcionaria então como sendo um fenômeno oriundo
32
Ibid. p. 08
28
da relação entre uma verdade do dizer e uma verdade do fazer, algo parecido como
uma verdade da ação, como por exemplo, uma palavra de decisão, e uma verdade da
discussão, que pode se mostrar através de uma palavra de persuasão ou sedução.
Assim, o autor expõe um duplo fundamento do discurso político: uma mistura entre a
palavra que deve fundar o político (discursos de idéias) e aquela que deve gerar a
política (discursos de poder). Nesse sentido ele ressalta a relevância do afeto na
persuasão e faz um adendo ao ―mentir verdadeiro‖, pois para ele todo político sabe
que lhe é impossível dizer tudo em todo momento. Aqui o conceito de discurso de
Charaudeau se alia à idéia de verossímil de Reboul quando há um acordo prévio entre
as partes, e uma confiança é presumida.
Charaudeau ainda toma emprestado da retórica um dos termos-chave de sua
análise: o ethos, a construção da imagem de si. Para ele o discurso político deve ser
assim definido: ―uma forma de organização da linguagem em seu uso e em seus
efeitos psicológicos e sociais, no interior de determinado campo de práticas‖.33
De
acordo com sua abordagem, é no encontro com o diferente (outro) que as identidades
e recursos sociais são ou não utilizados e que o discurso se constrói de uma forma ou
de outra. Isso somente se constitui a partir de um processo dinâmico de interação
social no qual a natureza do próprio intercâmbio e do discurso a ser produzido vão
sendo continuamente modificados. Conclui que o discurso político está diretamente
relacionado à vida social como governo e discussão, é lugar de engajamento do
sujeito, de justificar sua posição ou de influenciar o outro.
O discurso, principalmente o discurso político, segue – à sua medida – os
preceitos da retórica. O objetivo é persuadir, convencer, aderir o ouvinte à sua idéia
ou ―verdade‖. O discurso é uma prática há muito tempo presente na ICAR e no
cristianismo desde seu início, senão o que dizer das homilias, dos evangelhos e das
epístolas apostólicas, por exemplo. Portanto, a prática discursiva é um objeto de
grande interesse dos membros da ICAR e pretendemos mostrar que se faz presente e
relevante no jogo político internacional, muito além das portas da Igreja.
33
Ibid. p.32
29
1.2 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico
A retórica religiosa católica não seria possível sem a construção simbólica que
lhe envolve.
1.2.1 – A retórica religiosa católica e a construção do simbólico
Conforme foi abordado nas páginas anteriores, retórica e discurso
caminham lado a lado. ―Retórica é a arte de persuadir pelo discurso‖.34
Assim, pode-
se afirmar que discurso é um elemento usado na retórica e ambos os conceitos são
claramente construções sociais. Eles produzem reações em grupos determinados de
pessoas que aderem ou não à idéia do orador. Se tratando de retórica, tomaremos
emprestado alguns conceitos de Halliday. O primeiro deles é que o emissor da
mensagem é chamado de retor; o fato que gera a prática persuasiva é chamado de
situação retórica; ato retórico é a alocução do orador. Quando nos referimos ao
discurso político ou ao papel político de algum sacerdote, utilizaremos o conceito de
Patrick Charaudeau. Buscaremos nos aproximarmos ao máximo da sua definição de
discurso pensando nesta construção social como um ato de comunicação, vez que as
construções retóricas da ICAR fizeram parte do objeto de estudo da pesquisa que
resultou nesta dissertação.
Para Charaudeau35
, um ato de comunicação pode influenciar opiniões, induzir a
rejeições ou até mesmo a consensos. Este é um ato que se utiliza do simbólico e
imaginário, ritualizado, que constrói imagens de atores e se utiliza de estratégia de
sedução e persuasão. Ele afirma que o discurso ―resulta de aglomerações que
estruturam parcialmente a ação política‖ e exemplifica estas situações citando
comícios, debates, apresentação de slogans, reuniões, ajuntamentos, marchas,
34
REBOUL, Olivier. Introdução... p.XIV 35
CHARAUDEAU, Patrick. Discurso... p.40
30
cerimônias, declarações televisivas como exemplos. Para ele, esta prática faz com
que sejam construídos ―imaginários de filiação comunitária‖, porém em nome de um
comportamento comum, ritualizado até certo ponto, e não em função um sistema de
pensamento, mesmo que um meio perpasse o outro.
Charaudeau mostra que ―o discurso político dedica-se a construir imagens de
atores e a usar estratégias de persuasão e sedução, empregando diversos
procedimentos retóricos‖. É por meio da construção de imagens dos atores
envolvidos em um discurso, seja para seduzir ou persuadir, que o discurso político
mostra uma lógica de valores relativos não ao verdadeiro, mas ao preferível. Neste
contexto, as premissas são proposições na maioria das vezes aceitas e,
conseqüentemente, pertencentes ao âmbito do verossímil, plausível, mutável,
contingente, questionável – algo muito semelhante, para não se dizer igual, à retórica.
Ou seja, o discurso político se utiliza das impressões, aparências e ambigüidades com
o objetivo de convencer e persuadir. Nesta perspectiva, o auditório não se importa
com as provas de demonstrações lógico-dedutivas, mas sim nas provas
argumentativas que consentem em distinguir o melhor ponto de vista. Sendo assim, a
coerção fica fora de questão, pois este sistema permite ao auditório um aparente
poder de decisão e participação.
Pierre Bourdieu36
desenvolve sistemas de disposições sociais de diversos
grupos e classes através da língua. Situações rotineiras de interação lingüística dentro
de um determinado grupo são reflexos de situações sociais; a religião se encontra
neste meio também. Para ele, se existem funções sociais na religião, é porque os
leigos não esperam dela justificativas para amenizar o sofrimento, a doença ou o
abandono, mas esperam também justificativas de sua posição na estrutura social.
Bebendo em Max Weber, Bourdieu afirma que sociologicamente a mensagem
religiosa mais eficaz para um determinado grupo social é aquela que dá justificativa
ao leigo de existir enquanto ocupante de uma determinada posição social. A harmonia
36
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 p.81-98
31
existente na mensagem religiosa que consegue se impor e não contradizer com os
interesses políticos de certa camada social é oriunda da visão sociológica da religião.
Ainda segundo Bourdieu, a concorrência pelo poder religioso consiste na busca
do monopólio, legitimidade e imposição de bases e práticas duradouras na visão de
mundo do leigo. Ou seja, na criação de um habitus religioso. A forma dessas
interações entre os protagonistas e os leigos depende dos interesses e da autoridade
religiosa de cada um: a posição na divisão do trabalho, capacidade de manipulação e
a posição do dominador na estrutura objetiva de tais relações. A diferença entre os
agentes criadores do habitus, os profetas e a Igreja, se dá na burocracia, não existente
no trabalho do Profeta e abundante na Igreja, imersa em uma forma
institucionalizada. Entretanto, a profecia não tem poder para modificar, de modo
duradouro, a conduta de vida e visão do leigo. A força de cada agente nesta busca
pelo monopólio dependeria da autoridade conquistada no decorrer desta luta.
Legitimidade religiosa é o resultado de lutas passadas por esse monopólio. Por isso,
enquanto o profeta precisa provar a todo instante suas capacidades, o sacerdote possui
uma autoridade de função que o dispensa de tal provação. Em caso de fracasso, o
feiticeiro pode ser morto, já o sacerdote possui meios de escapar, como culpar seu
deus ou os próprios fiéis. Sendo assim, aqui ganha sentido a expressão de Weber
reinterpretada por Bourdieu que a história dos deuses segue a flutuação da história de
seus servidores.
Desde que este objeto de estudos tornou-se a religião oficial do Império
Romano, a Igreja Cristã organizou-se institucionalmente na sua forma católica,
apostólica e romana. Graças à sua expansão e apoio político, o cristianismo foi
durante séculos a religião hegemônica do Ocidente. No decorrer de sua história, a
ICAR teve períodos de quedas e ascensões. Na Idade Média conquistou e manteve
um enorme poder espiritual e político. Seu poder econômico era grande, não só por
causa de suas propriedades, mas porque influenciava também as decisões políticas
dos reinos e até interferia na confecção de leis. Conseqüentemente, ela possuía
grande poder político e jurídico. Talvez o poder mais importante dentre estes fosse o
32
poder social e cultural, pois era a Igreja quem estabelecia padrões de comportamento
moral para a sociedade.
Atualmente, nem de longe o poder político e cultural da Igreja é o mesmo.
Devido à separação Igreja e Estado e a abundante acepção de Estados laicos em sua
maioria, hoje ela não influencia decisões políticas, jurídicas, nem econômicas. E
muito menos estabelece ou normatiza o comportamento da sociedade. Porém, seria
leviano da nossa parte afirmar que, mesmo não sendo mais o que era, a ICAR não
possua certa legitimidade e prestígio social. O capital simbólico adquirido – em
resumo, bagagem adquirida - ao longo de sua existência como instituição a legitima
em diversas situações. O poder religioso é fruto da transação entre agentes religiosos
e leigos, derivado da força simbólica de seus atos nas diferentes categorias de leigos.
Bourdieu37
afirma ainda que ―as produções simbólicas devem suas
propriedades mais específicas às condições sociais de sua produção e, mais
precisamente, à posição do produtor no campo de produção‖. Ora, se a ICAR não
possui mais o mesmo poder de outrora, ela não ocupa o mesmo status hegemônico na
produção do simbólico. Porém, é possível afirmar o quanto ela é habilidosa na
reprodução de seu capital simbólico adquirido. É claro que não falamos aqui de uma
instituição qualquer, mas sim de uma instituição duradoura de quase 2000 anos de
história, talvez a maior que já existiu nesta forma institucionalizada, que perdurou por
tanto tempo.
Reinterpretando Weber, Bourdieu38
afirma que o sacerdócio estabelece o que
tem e o que não tem valor sagrado, criando um sistema de defesa através de dogmas e
doutrinas discriminatórias. Quando o conteúdo da tradição encontra-se ameaçado,
aumenta-se a produção (ou reprodução) de escritos canônicos. A concorrência com o
feiticeiro, ou com outras forças religiosas e não religiosas em tempos de pluralismo
religioso, impõe ao corpo sacerdotal a necessidade de ritualização da prática
religiosa, como culto aos santos, por exemplo. Ou seja, a Igreja possui capital
simbólico para lutar pelo seu lugar no campo religioso buscando deixar sempre
37
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, EDUSP,
1996. p.133 38
Idem. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 p.81-98
33
presente e atual suas doutrinas bebendo em dogmas e preceitos antigos. Vale
ressaltar que, para Bourdieu, a Igreja só existe quando se monta um corpo de
profissionais distintos do mundo e burocraticamente organizados. Neste caso, o
carisma se desvincula da pessoa e passa a fazer parte da instituição, da função e do
lugar ocupado por esta pessoa na instituição; é o carisma de função. Deste modo, a
Igreja é completamente contra o carisma pessoal, transformando esse carisma numa
pratica cotidiana.
Bourdieu39
também afirma em outro texto que a ciência do discurso deve levar
em conta as condições da formação da comunicação, pois a condição de recepção
está ligada a condição de produção; novamente pode-se remeter à teoria retórica e sua
idéia de um acordo prévio entre as partes. A produção seria conduzida pela estrutura
do mercado, ou seja, pela autoridade lingüística dotada de tal poder de construção.
Para ele, esse poder é simbolizado pelo spektron, que remete à condição de uma
palavra que merece ser acreditada, obedecida. ―O porta-voz é um impostor provido
do cetro (skeptron)‖. 40
―(...) o porta-voz dotado do poder pleno de falar e de agir em nome do
grupo, falando sobre o grupo pela magia da palavra de ordem, é o substituto do
grupo que existe somente por esta procuração. Grupo feito homem, ele personifica
uma pessoa fictícia, que ele arranca do estado de mero agregado de indivíduos
separados, permitindo-lhe agir e falar, através dele, ‗como um único homem‘. Em
contrapartida, ele recebe o direito de falar e de agir em nome do grupo, de ‗se
tomar pelo‘ grupo que ele encarna, de se identificar com a função à qual ele ‗se
entrega de corpo e alma‘, dando assim um corpo biológico a um corpo constituído.
Status est magistrus, ‗o Estado sou eu‘.‖ 41
Tratando especificamente de linguagem religiosa, Bourdieu afirma ainda que a
linguagem ritual pode não funcionar se as condições sociais de produção dos
emissores e dos receptores legítimos não forem garantidas, e que essa linguagem se
39
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo, EDUSP,
1996. p.83 40
Ibid. p.89 41
Ibid. p.83
34
desconserta na medida em que o conjunto dos mecanismos que lhe asseguram o
funcionamento e as reproduções do campo religioso cessam de funcionar. ―O poder
das palavras é apenas o poder delegado do porta-voz cujas palavras (...) constituem
no máximo um testemunho, um testemunho entre outros da garantia de delegação de
que ele está investido‖.42
Para Bourdieu o porta-voz age em nome do grupo, com o
capital do grupo, não com o seu capital simbólico pessoal. Caminhando por esta linha
de raciocínio e oriundo de uma visão política do discurso, a legitimação da retórica
religiosa está no fato de que ele não precisa ser necessariamente compreendido, mas
reconhecido. Bourdieu registra que o ―porta-voz autorizado consegue agir com
palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as
próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado
pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o
procurador‖. 43
Acompanhando Bourdieu, podemos perguntar: Quem é o legítimo porta-voz da
ICAR? Ora, o reconhecimento de um determinado discurso só é possível quando ele
é feito pela pessoa autorizada, conhecida e reconhecida por suas habilidades, aptas à
classe de discurso em questão, em uma situação legítima, enunciado da forma
legítima. Por isso mesmo, no caso da ICAR, podemos pensar em pessoas autorizadas,
no plural, até porque o capital simbólico adquirido pela instituição ao longo de sua
existência permite que tanto o Papa como um Cardeal ou até mesmo um Bispo
possam ter legitimidade para enunciarem atos retóricos, principalmente diante de seus
fiéis, ou até mesmo de ―carona‖ na própria instituição, na medida em que falam ―em
nome‖ desta instituição.
Assim, partindo do pressuposto de que a ICAR possui diversos porta-vozes
distintos, ela está sujeita a seus porta-vozes enunciarem sobre uma mesma questão
pontos de vista distintos, dependendo, é claro, da situação retórica em questão. Tal
fato pode contribuir decisivamente para a aceitação ou não de um discurso. Se para
Bourdieu basta que um discurso seja reconhecido como legítimo e não
42
Ibid. p.87 43
Ibid. p.89
35
necessariamente compreendido, o que dizer quando retores legítimos de uma mesma
instituição enunciam discursos distintos e praticam diferentes atos retóricos sobre
uma mesma situação retórica? Isto pode contribuir facilmente para a perda de
credibilidade e legitimidade da instituição. Porém, quando retores distintos produzem
atos retóricos similares sobre uma mesma situação retórica pode também contribuir
para uma mais fácil aceitação da situação retórica em questão. Essa questão
reapareceu nas posições anunciadas em público por vários atores (bispos e cardeais)
quando deu-se a discussão pública dos casos de pedofilia na ICAR em vários lugares
do mundo. Somente em curto prazo o Papa está conseguindo articular uma só fala da
instituição sobre tão delicado tema.
Thomas Reese44
afirma que na Santa Sé é feito o máximo para se evitar que
surjam discursos distintos sobre uma mesma questão. O Vaticano é uma instituição
burocrática, subdivida em diversas áreas as quais estão sob a batuta do pontífice. Pela
dimensão desta instituição, tanto internamente como externamente, é inevitável que
visões distintas apareçam. Assim, afirma Reese:
Segundo o Cardeal Cassidy, se dois prefeitos [de Congregações Distintas]
não podem concordar, ―o certo seria nos dirigirmos ao Santo Padre. Mas em geral
chegamos a um acordo. Estamos todos trabalhando para o mesmo chefe, e por isso
precisamos encontrar uma maneira de podermos dizer as coisas juntos. A Santa Sé
não pode falar com três ou quatro vozes. Ela tem de falar com uma voz, e por isso
tem de ser elaborada. Em geral, isso requer tempo, mas acaba se chegando a uma
decisão, a um arranjo com que todos podem finalmente concordar.‖45
Fica claro um esforço interno para que o discurso seja unívoco e, pode-se
afirmar também, que para isso o carisma pessoal é sufocado de forma exemplar. Para
que um discurso surja em nome de uma instituição é necessário que o porta-voz
dotado do cetro fale em nome da instituição, não em nome dele próprio. Porém, nem
sempre é assim. Exemplos de situações onde o discurso não é unívoco também
existem e, não é exagero dizer, em abundância. Existe um ilustre exemplo onde o
44
REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. 45
Ibid. p.194-195
36
discurso não é unívoco. O atual Papa Bento XVI, quando era membro do Colégio
Cardinalício e Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e conhecido apenas
como Cardeal Ratzinger, protagonizou junto de outro colega cardeal também alemão,
chamado Walter Kasper, um debate público acerca de assuntos internos da própria
Igreja.
O debate Ratzinger x Kasper, como ficou conhecido, se iniciou em um artigo
de Joseph Ratzinger no qual ele reinterpreta um trecho da encíclica46
Lumem gentium
buscando enfatizar a unidade da Igreja em Roma, indo ao encontro da idéia de Kasper
sobre mais autonomia das igrejas locais. Tal debate tornou-se público expondo
opiniões distintas sobre uma mesma questão. Schickendantz47
afirma que ―o debate
não carece de más interpretações recíprocas‖. Porém, a meu ver, expor um conflito
doutrinal interno em um debate com dois porta-vozes com igual legitimidade perante
a instituição e seus fiéis, não parece ser benéfico tanto para a imagem, como a
unidade e integridade da instituição. Existem alguns autores que não partilham desta
visão negativa do fato em questão. MacDonnell, citado por Schickendantz48
, afirma
que um debate público deste nível pode ser um sinal de ―grande esperança‖ devido ao
teor desta discussão. Não cabe à proposta deste trabalho analisar se esta opinião de
MacDonnell é uma construção retórica ou não para deslocar o foco do teor do debate
para a função do debate, mas uma instituição na qual os porta-vozes não falem a
mesma língua não parece ser coerente consigo mesma. Leonildo Campos, também a
partir de Bourdieu, mostra em seu texto sobre a IURD que a igreja procura ser unida
ao redor do bispo Macedo. Semelhante ao bispo primaz se reúne, por telefone ou
vídeo conferência, para articularem em todas as partes do mundo o mesmo discurso
falado e ritualizado.
46
Etimologicamente, encíclica foi empregada para designar ‗cartas circulares‘ enviadas pelos bispos a seus
colegas de uma mesma região para assegurar a unidade doutrinal. A partir de Bento 14, em sua "Epistola
Encyclica commonitoria ad omnes episcopos" (Carta circular de advertência a todos os bispos), de 03 de
Dezembro de 1740, esse termo se restringiu às mensagens dirigidas pelo papa, em forma de carta, a toda a
Igreja Católica, aos patriarcas, primazes, arcebispos, bispos e outros ordinários (comuns) em paz e em
comunhão com a Sé Apostólica. 47
SCHICKENDANTZ, Carlos. Cambio structural de la iglesia: como tarea y oportunidad. Córdoba,
EDUCC. 2005. p. 115. Tradução livre. 48
Ibid. p.116
37
O pensamento de Bourdieu parece casar-se perfeitamente com a condição em
que se encontra a ICAR no período do papado de João Paulo II. A Igreja encontra-se
em um mundo adverso às suas ambições ou predestinações e sobrevive graças ao seu
enraizamento cultural e graças também à sua bagagem adquirida ao longo de sua
existência; sua posição episcopal e política já por natureza. Dificilmente, ou é quase
impossível, uma instituição sobreviver sem burocracia. Por sua vez, dificilmente uma
burocracia funcionaria sem política, pois os mecanismos de poder induzem à
burocracia. Assim, atores que saibam como lidar com momentos políticos são de
suma importância para a continuidade desta instituição. Talvez dentre estes atores a
figura mais emblemática seja a do próprio papa. Portanto, saber como trabalhar
politicamente seu capital simbólico, na qual em sua grande maioria fora adquirido
através do caráter episcopal da instituição, é a grande chave para o entendimento, não
só do papado de João Paulo II, mas também de seus antecessores e até mesmo de seus
sucessores em tempos nos quais a religião não mais influencia tanto as pessoas como
em outras épocas. Isso acontece tanto pelo processo de secularização como também
por causa da competitividade própria do pluralismo religioso e cultural.
1.2.2 – Secularização, competitividade e pluralismo
As igrejas cristãs experimentaram, com mais força desde a segunda metade do
século XX, um período de forte presença da secularização e da concorrência da
religião com outras religiões e ideologias secularizantes no campo dos bens
simbólicos. Essa situação promove e se faz presente no discurso religioso e político
quando ambos se mesclam refletindo condições sociológicas contemporâneas.
Autores como Chaim Perelman e Patrick Charaudeau que trabalham com retórica e
discurso político trouxeram novas perspectivas aos estudos retóricos argumentativos
e abriram espaço para a análise da persuasão em diversos tipos de discurso, inclusive
no religioso.
38
O retor que se utiliza deste recurso do discurso político e busca ter adesão de
seus ouvintes, procura adequar-se ao auditório em questão. Em outras palavras, ele
busca adaptar-se à situação retórica que pretende mudar, tentando amoldar-se aos
juízos de valores reconhecidos pelo seu público. Como apoia os seus argumentos
sobre esse conjunto reconhecido e partilhado de valores e paixões, ele constrói e
modela o seu ethos (sua imagem) de acordo com as representações coletivas pré-
existentes. Nesta perspectiva de persuasão, seja ela uma construção retórica com
características políticas ou religiosas, o retor parte daquilo que o auditório já admite,
ou, quem sabe, parte daquilo que o auditório já reconhece como legítimo; o acordo
prévio. Assim, ele estabelece uma relação entre o mundo de crenças já viventes deste
auditório e entre o que ele busca apresentar ao público, pretendendo fazer com que o
público acolha essa sua proposta. Ao realizar suas escolhas para a comunicação, o
retor busca adaptar-se ao imaginário compartilhado e admitido por seu público. Se a
construção deste imaginário e a construção do discurso empregado são reflexos das
condições sociais da época, é necessário contextualizarmos o que acontece nos dias
de hoje. Para tal, conceitos como secularização, pluralismo e desencantamento são de
suma importância.
É nítida que uma idéia de um processo de mudança social que vem ocorrendo
no que denominamos de mundo moderno está presente nos trabalhos de importantes
autores. Tal mudança se caracteriza principalmente pelo papel no qual a religião
cristã desempenha. Falo aqui de religião cristã porque esta idéia de mudança se
mostra em curso basicamente no Ocidente, local onde esta religião foi dominante e
praticamente homogênea durante alguns séculos. Danielle Hervieu-Legér49
afirma
que a modernidade de uma sociedade é necessariamente avaliada pelo papel da
autonomia do sujeito, pela capacidade de determinar, em consciência, as orientações
que este indivíduo almeja dar à sua própria vida em todos os aspectos da atividade
humana. Porém, ao mesmo tempo, alude para que os indivíduos sujeitos possuam
―condições de definir, debatendo publicamente com outros indivíduos sujeitos (entre
49
HERVIEU-LÉGER, Danielle. O bispo, a Igreja e a modernidade in LUNEAU, René e MICHEL, Patrick
(orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais do catolicismo. Petrópolis, Vozes,
1999. p. 299
39
―cidadãos‖), as orientações da sociedade na qual vivem‖. Hervieu-Legér50
defende
que esta sociedade é necessariamente diferenciada e pluralista, onde nenhuma
instituição impõe ao coletivo dos indivíduos e do corpo social um código de sentido
global. Ela conclui afirmando que ―o sentido da ação, individual e coletiva, não é
recebido de cima, mas construído individual e coletivamente‖.
Quando falamos de religião cristã nos referimos, em um primeiro momento, ao
catolicismo medieval. Naquela época era a Igreja quem influenciava o dia-a-dia das
sociedades. Ela estabelecia tudo, influenciando não somente os aspectos
institucionais das organizações das sociedades, mas também, diretamente a vida das
pessoas e o cotidiano. Porém, após longo e lento processo, a Igreja foi perdendo suas
forças e poderes, ficando cada vez mais despojada de sua capacidade de influência
social e política. Muito se deve também à Reforma protestante e ao iluminismo,
assim como ao avanço da ciência moderna, mas neste trabalho não pretendemos nos
aprofundarmos nessa linha de argumentação.
O resultado desse processo de secularização pode ser facilmente notado no fato
de que a religião não mais regula a conduta do indivíduo. Antigamente, nas
chamadas sociedades tradicionais, a mística e a magia se expressavam num formato
religioso impregnando todas as atividades daqueles indivíduos seja no âmbito social
ou sobrenatural. Ao longo do tempo, as técnicas mágico-religiosas, que moldaram
por grandes períodos o modo de vida desta sociedade, são substituídas por outras de
caráter racional, de base científica em geral. Assim, a referência das grandes Igrejas
(contextualizando novamente o Ocidente) não afirma mais a identidade coletiva.
Inegavelmente a ciência, que até então era serva da própria teologia, passa a exercer
grande influencia neste processo, pois ela é a responsável pelo desencantamento do
inexplicável que a religião guardava.
O fenômeno da secularização, ou como aparece em Weber ―desencantamento‖
do mundo, expressavam-se na modernidade, pois contribuíram para a avaria da
referência especificamente religiosa na afirmação da identidade coletiva. Desta
50
Id. Ibid.
40
maneira, a secularização pode ser entendida como o declínio da influência que era
exercida pela religião, falando aqui especificamente sobre grandes igrejas históricas.
Outro aspecto importante a ser relembrado é a forma como a secularização
afeta o funcionamento e o lugar do Estado. Até porque, desde o seu surgimento, o
Estado passou a dividir o cenário com a religião. Ambos muitas vezes se
identificavam de tal forma que acabavam por significar a mesma personagem, ficar
centradas em uma mesma figura, porém, para o conceito de secularização ficar mais
claro, ela implica necessariamente na separação de Igreja e Estado.
Conseqüentemente, ocorre uma ruptura entre sociedade civil e sociedade religiosa,
pois a instituição religiosa que antes era soberana no cotidiano da sociedade, chega ao
ponto de não determinar mais a conduta do sujeito, abrindo assim uma lacuna para
que este sujeito possa, a partir de então, adquirir uma autonomia e determinar sua
própria conduta e destino. A Igreja era uma instituição hegemônica. Porém, no
decorrer deste processo de secularização vinculado à modernidade, ela tornou-se uma
instituição como as outras existentes.
Esta condição de coadjuvante em que se encontra a Igreja não deve significar
necessariamente que ela tenha perdido seu caráter. Mesmo sem controlar de forma
absoluta o dia-a-dia das sociedades, ela ainda conserva seu capital simbólico, um
reconhecimento social. Assim, quem não controla mais outras instituições, como o
Estado, por exemplo, também não mais influencia a conduta das pessoas como em
outros tempos. Assim, é possível pensar em secularização como a perda da
capacidade de influenciar social e culturalmente. Sem a religião para impor ou
regular as crenças das pessoas, elas passam a conduzir seu próprio rumo sem a
influencia das instituições religiosas. Portanto, segundo Dario Paulo Barrera:
Uma sociedade não secularizada seria aquela na qual a religião tem
autoridade no plano do saber e na esfera dos valores. A secularização corresponde
ao desenvolvimento e à autonomia das ciências, que forçaram as portas do saber
teórico e minaram a autoridade social da religião. A escola pública, por exemplo, é
41
clara expressão de laicidade, embora no Brasil continue a discussão sobre o lugar
da disciplina ―Ensino Religioso‖.51
Marcel Gauchet52
nos trouxe uma grande contribuição na compreensão
das conseqüências políticas no processo de desencantamento do mundo. Ele defende
a idéia de que o cristianismo foi a religião para a ―saída da religião‖ e que no
processo de construção do mundo moderno, a religião cristã, a qual era a principal
influência nas sociedades, foi perdendo sua capacidade de influência social. Para ele,
o conceito de secularização alude principalmente ao papel do cristianismo no mundo
ocidental. São a partir destas concepções da sua leitura de secularização que Gauchet
desenvolve sua idéia.
Em sua reflexão Gauchet argumenta que todo o desenvolvimento que acontece
na religião é somente aparente, pois distorce e leva a um distanciamento do caráter
religioso original; para ele, somente a ―religião ancestral‖ era verdadeiramente
estruturadora do mundo. Assim, todo desenvolvimento no campo da religião significa
perda de suas raízes e não aprofundamento. Pensando nesta religião primeira, ele
afirma que religião é a forma que o homem encontrou para alienar de si mesmo a
responsabilidade de transformar o mundo. A essa condição do ser humano Gauchet
chamou de heteronomia. Para ele as religiões mais próximas das originais, são
aquelas que são denominadas ―primitivas‖, estas formas de religiosidade possuem um
alto grau de heteronomia. Já nas religiões monoteístas, esta condição de heteronomia
ocupa um estágio inferior. Nas religiões primitivas, entre o mundo divino e o mundo
humano não existe nenhuma ruptura que separe estes dois mundos. Já esta condição
de hibridismo entre o humano e o divino não se apresenta nos monoteísmos,
principalmente no cristianismo.
No cristianismo, o fato da encarnação de Deus se apresentar na pessoa do
Cristo trás a subjetivação do ato religioso. Gauchet explana que, se antes as relações
51
BARRERA, Paulo. Pluralismo Religioso e Secularização: Pentecostais na periferia da cidade de São
Bernardo do Campo no Brasil. Revista de Estudos da Religião, Março 2010, p.55. 52
GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo – Una historia politica de la religión, Madrid,
Editorial Trotta, 2005.
42
entre as sociedades e ser o divino se davam por meio de mediações externas, isto é, o
controle da sociedade vinha de um mundo divino em direção ao mundo dos homens.
Porém, no cristianismo esta mediação entre o homem e o sagrado passou a ser vista a
partir do interno, pois é o sacerdote que entra em contato com o mundo do além. Esta
circunstancia de interiorização da religião, do homem em contato com o divino, fez
com que surgisse uma nova religião que auxiliasse o ser humano no seu contato com
o divino. Na modernidade o ser humano passa a ter possibilidade de fazer sua
escolha, de fazer parte dessa comunidade religiosa ou então de se colocar de fora
dela; assim como é possível escolher não acreditar no sagrado neste contexto. Ora,
quando o sujeito passa a ser quem escolhe seus próprios caminhos há, segundo
Gauchet a passagem do mundo da heteronomia para o da autonomia. Nesse novo
mundo, as regras da vida social não são mais ditadas pelo que é externo, mas pela
própria consciência. Assim, vale a pena citar Gauchet quando afirma que: o
cristianismo foi ―a religião da saída da religião.‖ No entanto, isso é a própria inversão
da lógica organizadora da religião primitiva que permite ao homem a saída da
religião.
De manera mucho más amplia, más allá del mero capitalismo, la perspectiva
adoptada conduce a reconocer la especificidad cristiana como um factor matricial y
determinante en la génesis de las articulaciones que singularizan fundamentalmente
nuestro universo, ya se trate de la relación con la naturaleza, de las formas del
pensamiento, del modo de coexistencia de los seres, o de la organización política.
Si pudo desarrollarse un orden humano en ruptura hasta ese punto con los
precedentes, y en ruptura a causa de la inversión radical en todos los planos de la
antigua heteronomia, es en las potencialidades dinámicas excepcionales del espíritu
del cristianismo donde conviene situar su raíz primera. Éstas proporcionan un foco
de coherencia que permite captar la duradera solidariedad esencial de fenómenos
tan evidentemente poco ligados como el surgimiento de técnica y la marcha de la
democracia. Así, el cristianismo habrá sido la religión de la salida de la religión.53
53
Ibid. p.10
43
Ao mesmo tempo em que se opera esta mudança no panorama religioso
oriundo dos efeitos da secularização ocorre outro processo interligado com o
processo de secularização que Gauchet54
chama de ―desencantamento do mundo‖.
Assim, esse autor se identifica com o conceito weberiano do termo, que atribui o
desencantamento a eliminação da magia como técnica de salvação. Dessa forma
observamos que esse conceito muda completamente a maneira de se compreender a
relação entre o céu e a terra. A salvação não está mais no divino, não mais no céu;
encontra-se, a partir de então, ao alcance das mãos humanas na própria terra. Assim,
apesar de todas estas mudanças, os deuses sobreviveram na cidade moderna e com
eles aqueles que neles crêem. Porém, seus poderes já não existem mais e nem
possuem o mesmo alcance no âmbito da sociedade. Gauchet atribui este fenômeno ao
fato de que a função destes deuses espaireceu-se nas engrenagens do tempo das
civilizações. Os deuses ainda existem, porém suas funções, que outrora
determinavam a conduta da sociedade, não sobreviveram neles mesmos. Talvez nos
―sucedamos de religião‖.
Antonio Pierucci55
elabora uma hermenêutica do termo de ―desencantamento
do mundo‖ oriundo da visão de Max Weber. Para Pierucci, refletir acerca deste
conceito não é simplesmente estudar a religião ou as religiões. Aliás, para ele este
conceito assume dimensões maiores do que lhe é próprio, tornando-se uma complexa
análise de um conceito apropriado para o entendimento da sociedade ocidental e da
própria modernidade. Nessa linha de pensamento de Pierucci o desencantamento do
mundo atinge um nível de grande relevância para a compreensão do mundo ocidental
dos últimos séculos.
Pierucci56
afirma ainda que a origem do conceito que guia a obra de Weber se
da no uso que se faz do conceito desencantamento do mundo. Assim, o autor
identifica em toda obra de Max Weber 17 empregos desta expressão, usada com a
intenção de: desmagificação; perda de sentido; desmagificação mais perda de sentido.
54
Ibid. p.10-11 55
PIERUCCI, Flávio. O Desencantamento do Mundo: Todos os Passos do Conceito em Max Weber, São
Paulo, Editora 34, 2003. 56
Idem. Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho
sentido. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 13, n. 37. São Paulo, 1998. p.42
44
Weber ainda afirma, na leitura de Pierucci, que existe desencantamento do mundo
tanto pela religião como pela ciência. Logo a mudança no panorama religioso é
produto de vários outros processos similares, simultâneos e miscigenados, entre
outros: secularização, modernidade e desencantamento.
Pierucci reconhece que a magia representa o momento anterior à religião,
quando uma sociedade submersa em um mundo cheio de espíritos capazes de
influenciar, de maneira favorável ou não, a vida humana. Já a religião desmagificada,
isto é, a religião sem influências mágicas, é a contraposição deste momento de magia.
É a religião vista principalmente como doutrina. A partir de então a religião
racionaliza esta magia que outrora encantava. É um momento de transição da magia
para a religião, pano de fundo para entendimento do conceito de desencantamento do
mundo. Portanto, continua Pierucci, esta passagem da magia para a religião
―corresponde termo a termo à travessia do império do tabu ao domínio do pecado (...)
da coerção divina para o serviço divino; da chantagem e do conjuro para a súplica e a
oração (...)‖.57
Pierucci discute ainda a idéia weberiana de que a religião é algo a ser vivida no
extracotidiano, mas que se complementa no tempo e espaço cotidiano. A
racionalização da religião cria conseqüências na conduta de vida de modo ético-
ascético, ela determina a conduta de vida racional na prática, no dia-a-dia das
pessoas. Este é o aspecto que da religião ante as limitações da ciência, afirmando que
a ciência possui ―essa sua incapacidade de nos salvar, de nos lavar a alma, de nos
dizer o sentido da vida num mundo que ela desvela e confirma não tendo em si,
objetivamente, sentido algum‖.58
A magia torna-se, então, profecia.
Ainda dentro desse raciocínio é possível afirmar que desencantamento do
mundo não é simplesmente secularização ou racionalização do mundo. Para ele seria
leviano confundir ou associar o desencantamento do mundo com secularização do
mundo. Secularização implica um certo afastamento da religião, enquanto no
conceito de Weber tal idéia não se resume a este fato. Para Weber, o 57
Idem. O Desencantamento... p.69-70. 58
Ibid. p.158
45
desencantamento do mundo ocorre justamente em sociedades profundamente
religiosas, é um processo essencialmente religioso.
Enquanto o desencantamento do mundo fala da ancestral luta da religião
contra a magia, sendo uma de suas manifestações mais recorrentes e eficazes a
perseguição aos feiticeiros e bruxas levada a cabo por profetas e hierocratas, vale
dizer, a repressão político-religiosa da magia (Thomas, 1985), a secularização, por
sua vez, nos remete à luta da modernidade cultural contra a religião, tendo como
manifestação empírica no mundo moderno o declínio da religião como potência in
temporalibus, seu disestablishment (vale dizer, sua separação do Estado), a
depressão do seu valor cultural e sua demissão/liberação da função de integração
social.59
Diante deste panorama, é possível concluir que as religiões conhecidas hoje em
dia já não são as mesmas desde suas origens. Elas sobrevivem graças a seu
enraizamento cultural, às possíveis respostas que possam ainda oferecer para questões
como a morte, por exemplo, ou até mesmo como elemento de legitimação social ela
pode se encaixar. Entretanto, não há mais condições que propicie um espaço na
sociedade para a religião pelas suas funções de origem. É claro que, como Gauchet60
defende do ponto de vista da organização religiosa, não existe possibilidade de se
dizer que conheçamos alguma sociedade primitiva. Para ele, é impossível conhecer
esta sociedade inaugural. As sociedades que temos registro são já estruturadas e
civilizadas e fazem parte da história que conhecemos. O surgimento do Estado é
assim encarado por Gauchet:
Desde este punto de vista, la emergencia del Estado aparece claramente
como el acontecimiento mayor de la historia humana. No marca una etapa en un
progreso continuo de diferenciación de las funciones sociales y de estratificación
de los estatus. No representa tampoco un surgimiento inexplicable que viene a
abolir por desventura un orden más natural y justo. Corresponde a un gigantesco
cambio de las articulaciones constitutivas del estabelecimiento humano, a una
transformación en el sentido estricto del término: todos los elementos del
59
Idem. Secularização em... 60
GAUCHET, Marcel. El desencantamiento del mundo – Una historia politica de la religión, Madrid,
Editorial Trotta, 2005.
46
dispositivo anterior se encuentran en el dispositivo siguiente, repartidos y ligados
de otro modo.61
Paralelo ao surgimento do Estado há o aparecimento de uma nova forma de
organização cosmológica, trazendo consigo o movimento ao mundo dos homens, que
passa do imóvel ao dinâmico. Deuses que em outro momento eram soberanos passam
a ser atingíveis e discutidos socialmente. Isso permitiu que surgisse vida paralela à
religião ou até mesmo sem ela. O Estado passa então a desempenhar a função da
religião e até a se assemelhar com ela em alguns momentos. Gauchet62
afirma, por
exemplo, que a hierarquia é repetição em todos os níveis da relação social. A relação
entre o visível e o invisível é o que determina o lugar do poder. Por isso, a religião
ganha um concorrente à altura. Não seria o Estado totalitário uma expressão da
divinização do aparato estatal?
Conclusão
Nos tempos atuais é inegável que a Igreja Católica encontre-se imersa em um
ambiente desfavorável para seus ideais. Na modernidade, a autonomia do sujeito se
caracterizou como uma nova maneira de o indivíduo guiar suas escolhas. Acrescido
dos efeitos da secularização e da incapacidade de a religião determinar a conduta do
individuo como em outras épocas, fica evidente que a Igreja não estrutura mais o
cotidiano das sociedades nem determina o individualismo dos sujeitos, os quais
decidem suas direções por conta própria. A magia que outrora determinava a conduta
social também perde seu encanto, pois é sufocada pelo espaço em que as ciências
passaram a ocupar. A própria condição de racionalidade do cristianismo também
contribuiu para este desencantamento.
A forma de organização do Estado e função que este passa a ocupar também
corrobora para o papel que ocupa a religião. Embora as grandes igrejas não controlem
este indivíduo e não ditem mais os contornos da sociedade, não significa que
61
Ibid. p.17 62
Ibid. p.55
47
necessariamente a religião desapareceu nos tempos modernos. As grandes igrejas
sobrevivem, porém sem o mesmo peso de outrora. Autores como Bourdieu afirmam
que eles sobrevivem graças ao capital simbólico adquirido ao longo de suas
respectivas trajetórias e a sua bagagem. Não estamos mais em um mundo encantado
de magia. O ―deus do trovão‖ tornou-se a descarga elétrica analisada e descoberta
pelo cientista. Embora a ciência não explique tudo, ela tornou-se uma grande aliada
da secularização.
Se o mundo é desencantado, o papel da religião é necessariamente diferente.
Como fazer-se ouvir em um ambiente em que não lhe é propício? Embora esta prática
esteja presente há muitos anos na Igreja Católica, a prática discursiva sofreu as
conseqüências dessas mudanças. Consequentemente a retórica tornou-se portadora de
um importantíssimo papel no papado de João Paulo II (1979-2005). A análise retórica
é uma disciplina antiga que sempre buscou analisar como persuadir seus ouvintes.
Assim, por meio do discurso político, um ato retórico pode ser bem sucedido. João
Paulo II, em muitos momentos foi o porta-voz de uma instituição burocrática e
hierárquica, em que se torna possível perceber que o ambiente político permeia suas
estruturas. Embora tente manter o discurso unívoco, a ICAR, às vezes, possui versões
distintas de um mesmo fato. Ela possui porta-voz ou porta-vozes dependendo do caso
onde deseje se pronunciar.
Se o papa se apresentar em algum país como papa, ele é um líder religioso. Se
ele se apresentar como bispo de Roma, a autoridade maior da Igreja é, ao mesmo
tempo, um chefe de Estado.63
Independente de o contexto ser episcopal ou político, a
prática retórica está presente. Dificilmente a imagem do bispo de Roma será
desvinculada da imagem de papa, é praticamente impossível determinar em que
momento o viés político se mescla com o viés religioso em situações semelhantes.
São momentos como este os quais os porta-vozes buscam criar uma situação retórica
que lhe seja favorável através de um ato retórico. Daí as dificuldades que cercaram a
visita de João Paulo II a Cuba. Fidel Castro se propôs a recebê-lo como Chefe de
63
No próximo capítulo será mostrada a estrutura e organização do Vaticano.
48
Estado e não como líder religioso dado ao ateísmo militante do Estado cubano. Mas,
na prática, nem sempre isso foi fácil de ser separado.
Para que este ato retórico tenha efeito, o acordo prévio entre o orador e seu
auditório tem que existir necessariamente. Entretanto, em outros momentos, devido a
doutrinas ou dogmas muito antigos, frutos de construções sociais de outras épocas,
este acordo entre o auditório e o orador parece não ocorrer. É aí que a capacidade
política pode fazer a diferença a favor do Papa na elaboração de seu discurso e
atividade retórica. Talvez para que consiga ser ouvida, a ICAR tem de buscar um
novo papel além do episcopal, um novo ethos. Em um mundo aparentemente
incompatível, o orador (a ICAR) e o seu auditório (o mundo) não parecem ter este
acordo oriundo somente da fé, um novo viés de ligação entre eles se faz necessário.
Nesse caso, a mídia tem se tornado o principal cenário onde a reconfiguração retórica
da ICAR está ocorrendo e fez de João Paulo II o ―papa da mídia‖.
49
Capítulo II
A Política e a Santa Sé no Papado de João Paulo II
“João Paulo é o [papa] da perda do poder espiritual”
Patrick Michel
Introdução
Na análise do discurso do papa não podemos deixar de lado as questões
políticas que envolvem a burocracia, a hierarquia e as lutas internas e externas que se
empreendem no interior do todo campo religioso. Mary Douglas64
em seu livro Como
as instituições pensam, trata da forma como as instituições fabricam para consumo
próprio e externo uma visão de mundo, uma identidade. É preciso ir além e usar a
imaginação sociológica para abordar como as instituições agem retoricamente para
mudar a forma delas serem socialmente percebidas. Trata-se, segundo Halliday65
, de
verificar como por meio da retórica as multinacionais do Brasil se tornaram de
organizações indesejáveis (persona non grata), em pessoas bem recebidas. A retórica
é, nesse caso, uma forma de mudar percepções, e a Igreja se aproveitou muito bem
disso, especialmente nas últimas quatro décadas do século XX, em especial após o
pontificado de João XXIII e do Concílio Vaticano II. Assim, neste capítulo iremos
abordar o funcionamento interno do Vaticano, as relações entre seus funcionários e
entre as autoridades, bem como seus reflexos na elaboração do discurso e da retórica
da Santa Sé. Analisamos também como se dá a relação política e de que forma ela se
64
DOUGLAS, Mary. Como as instituições pensam. Edusp, São Paulo. 1998 65
HALLIDAY, Tereza. A retórica das multinacionais. São Paulo, Summus, 1987.
50
faz presente no dia-a-dia desse Estado Soberano chefiado na figura do Papa. A
diplomacia é uma extensão da política, porém em âmbito internacional. A tradição
diplomática da Santa Sé também será tratado neste capítulo. A representatividade da
figura do Papa será analisada, vez que autores como Thomas Reese defendem a idéia
de que o papado é tanto uma instituição como um indivíduo. Em um segundo
momento, abordamos a figura emblemática de João Paulo II, e veremos algumas
peculiaridades de seu papado que, segundo Patrick Michel, é um dos Papas mais
político da história do Vaticano. Pretendemos abordá-lo à luz das relações
estabelecidas interna e externamente por este Papa. Tomando a queda do comunismo
como o principal fato neste período, tentaremos mostrar como o fator político se
apresentou e o quanto representou para João Paulo II.
2.1 – O viés político do Vaticano
Por ser uma instituição, a burocracia está presente no funcionamento do
Vaticano. E se existe burocracia, existem relações de hierarquia, poder e política. Se
no plano interno esta questão é cotidiana, provavelmente acarreta em reflexos além
dos muros da Cidade Estado do Vaticano. É necessária grande habilidade por parte da
Cúria e membros da Igreja em relacionar esta condição com os princípios e dogmas
católicos.
2.1.1 - A estrutura interna do Vaticano
A sobrevivência da religião em um contexto secular está atrelada ao seu capital
simbólico, indubitavelmente. Porém, pode-se afirmar também que sua identificação
com um papel diferente do religioso de outrora é outro aspecto que pode certamente
corroborar para que a religião sobreviva. A secularização, que é comumente
associada à separação e laicidade do Estado, dita os rumos da Igreja Católica nesse
período.
51
O Vaticano é um Estado criado em 1929, oriundo do Tratado de Latrão, um
pacto feito entre o reino da Itália e a Santa Sé, tendo em vista a criação de um Estado
soberano que dotasse a ICAR de uma ampla presença política mundial. Assim, a
Cidade do Vaticano é um estado eclesiástico, governado pelo Bispo de Roma, o Papa.
A maior parte de seus funcionários públicos é formada de clérigos católicos. Segundo
Thomas Reese66
, ―Vaticano‖ é o antigo nome romano para uma colina e um terreno
localizado a sua volta, onde se construiu a Basílica de São Pedro, o Palácio
Apostólico e os Museus do Vaticano. Assim, o Estado da Cidade do Vaticano – sua
denominação oficial – tomou para si o nome desta colina e suas redondezas.
Reese67
afirma que o ―Vaticano mudou suas estruturas e procedimentos no
decorrer do tempo‖, atribuindo essa mudança ―não apenas por causa dos diferentes
papas, mas devido às mudanças no ambiente dentro do qual a Igreja operava‖. Hoje
em dia, continua afirmando o autor, o próprio Vaticano não considera seu modelo de
governo um exemplo para outras nações, este modo organizacional tem por
finalidade ―proporcionar um território internacionalmente reconhecido onde a Santa
Sé possa atuar em total liberdade, sem interferência política‖.68
O Vaticano é o território soberano da Santa Sé e o local de residência do
pontífice. Durante o processo de unificação da Itália, no final do século XIX, os
pequenos estados da península foram sendo absorvidos e, dentre estes, os Estados
Pontifícios69
. Neste processo, é oferecida uma indenização ao Papa Pio IX através do
compromisso de mantê-lo como chefe do Estado do Vaticano. Porém, o Papa se
recusou a aceitar esta situação e se considerou prisioneiro do poder laico. Esta
questão de disputas entre o Estado e a Igreja só terminou em 1929 através do Tratado
de Latrão, quando Pio XI aceita a condição anterior oferecida pelo reino da Itália,
reconhecendo a soberania da Santa Sé sobre o Vaticano, declarando um Estado
soberano, neutro e inviolável.
66
REESE, Thomas. O Vaticano por Dentro. 1997. Bauru, SP. 67
Ibid. p.17 68
Ibid. p.30 69
Estados Pontifícios eram um aglomerado de territórios, independentes, localizado no centro da península
Itálica, sob a autoridade civil dos Papas.
52
Reese afirma que, além de incluírem durante séculos grandes partes da Itália,
os Estados papais enfrentaram crise na ordem civil. O autor afirma que alguns papas
tiveram êxito em proteger seu povo através de negociações ou armas. No ano de 452,
o então Papa Leão Magno convenceu Átila, um huno, a não atacar Roma. No ano de
590, Gregório Magno tornou-se governante da Itália. Quando leigo, foi prefeito de
Roma e, quando Papa, nomeou generais, remunerou soldados e negociou tratados;
fez tudo isto sem que existissem os Estados Papais ainda. Pode-se notar que desde os
primeiros séculos de sua história, a diplomacia, a construção retórica, a persuasão
(como o exemplo de Leão Magno) sempre estiveram presentes e foram bem
articuladas em seu uso pela Igreja Católica. E tal prática é presente em seu modo de
gerir até os dias de hoje. A história nos mostra então que a Igreja participou com
intensidade, ao longo dos séculos, da luta pelo poder temporal. Reese registra que:
Durante onze séculos seguintes, os papas lutaram através da
diplomacia e da guerra para manter ou reconquistar os Estados papais. Os nomes e
as nacionalidades dos atores constantemente mudavam, mas a geopolítica
permanecia constante. Como os Estados papais situavam-se no meio da Itália, os
papas não queriam o mesmo poder controlando o norte e o sul da Itália. Quando
um gigante tornava-se todo-poderoso na Itália, o papado sofria70
.
Tecnicamente, o Estado da Cidade do Vaticano é uma monarquia eletiva.
Pode-se dizer também que o Vaticano é uma autocracia, pois todos os poderes
(executivo, legislativo e judiciário) são centrados na figura do Papa que não possui
qualquer órgão que fiscalize seus atos como gestor. Por ser considerado sucessor do
Apóstolo Pedro, o Papa não deve a prestação de contas a ninguém, pois é considerado
o representante de Cristo na Terra. Reese71
defende que a Cidade do Vaticano
proporciona ao papa uma base política independente ao mesmo tempo em que lhe
fornece uma ―plataforma historicamente majestosa para eventos públicos‖. Logo o
Vaticano é um lugar de ―trabalho ineficiente, servindo melhor como museu que como
quartel-general da maior organização multinacional do mundo‖. Porém, continua o 70
Ibid. p.31 71
Ibid. p.39
53
autor, ―ainda assim consegue projetar certa imagem de mistério e tradição, consegue
também transmitir uma imagem de uma instituição rica e arcaica‖, que chega a
parecer de algum outro século longínquo.
Reese também observa que o Vaticano possui suas próprias leis, porém por
conveniência optou por seguir as leis italianas. Usa a lira italiana como moeda. Possui
coleta de lixo, bombeiros, lojas e museus. Possui também correio, jardins, prédios,
escritórios, uma estação ferroviária e uma força policial. Tem mais empregados do
que cidadãos e é um dos poucos governos que consegue produzir lucro. Tais
características nos levam a crer que o Vaticano é um Estado estruturado como a
grande maioria. O que difere o Vaticano dos outros Estados é ser administrado por
uma instituição religiosa. Ele possui sistemas legais de representação, é reconhecido
no direito internacional mesmo sendo um estado confessional. Bobbio72
afirma que é
―impossível considerar a ligação entre o Estado e as confissões religiosas com o
mesmo critério usado na análise dos vínculos entre os Estados‖. Portanto, a relação
da religiosidade com um Estado assumiu uma característica peculiar ao Vaticano e a
Santa Sé.
O termo Sancta Sedes ou Sé Apostólica veio do latim e, do ponto de vista
legal, é distinta do Vaticano, ou mais precisamente do Estado da Cidade do Vaticano.
Ela é um instrumento de representação do governo central da Igreja, formado pela
Cúria Romana e pelo Papa. Já o Vaticano, conseqüentemente, é o território sobre o
qual a Santa Sé tem soberania. O atual Código de Direito Canônico73
, quando trata da
autoridade suprema da Igreja, dispõe:
Com o nome de Sé Apostólica ou Santa Sé designam-se neste Código não
só o Romano Pontífice, mas ainda, a não ser que por natureza das coisas ou do
contexto outra coisa se deduza, a Secretaria de Estado, o Conselho para os
negócios públicos da Igreja, e os demais Organismos da Cúria Romana. (Can. 361).
72
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. Brasília, UNB. 1998. p.420 73
Código de Direito Canônico, promulgado em 25 de Janeiro de 1983, pelo Papa João Paulo II, disponível
em < http://www.vatican.va/archive/ESL0020/_INDEX.HTM >. Acessado em 15/05/2010.
54
A Santa Sé é o órgão que trata das relações internacionais do Vaticano. Os
embaixadores estrangeiros não apresentam suas credenciais para a Cidade do
Vaticano, mas sim para a Santa Sé. A Santa Sé possui uma secretaria própria para tais
assuntos internacionais: a Secretaria de Estado. Segundo Reese74
, a administração da
Igreja em Roma é feita pelo papa e pela Cúria Romana. Para o autor, o termo Cúria
Romana designava até a época de Pio X todos os escritórios papais. É uma burocracia
que administra a instituição. O autor afirma ainda que ―devido ao seu tamanho
relativamente pequeno e jurisdição ampla, alguns a consideram a burocracia mais
eficiente do mundo‖.
A Secretaria de Estado do Vaticano é o órgão que trata das relações
internacionais. É ela a responsável por toda a parte diplomática além dos limites deste
Estado. Segundo Reese75
, originalmente a Secretaria de Estado era um escritório da
Chancelaria Apostólica e tinha por função lidar com as correspondências secretas e
diplomáticas. No papado de Leão X (1513-1521) foram criadas as funções de núncios
apostólicos, diplomatas que reportavam a esta secretaria. Havia também o hábito de o
Papa escolher como seu secretário um sobrinho ou um parente para a função de
executivo-chefe, pois se pensava que a lealdade familiar o ligaria intimamente ao
Papa. A partir do século XVII, o secretário de Estado, por hábito, passou a ser
escolhido entre os cardeais. Isso significou que o cardeal incumbido desta função
tornou-se o mais poderoso conselheiro papal, com capacidade de influenciar em
questões políticas e religiosas.
Os Papas também passaram a utilizar tais secretários em outras funções,
levando o cardeal que ocupava o cargo a ser equivalente a um primeiro-ministro. Para
Reese76
, ―um dos instrumentos mais importantes de que dispõe [o Papa] para
controlar a Cúria e tornar sua influência sentida por toda a Igreja e pelo mundo é a
Secretaria de Estado‖. Ainda segundo o autor, devido ao seu papel dentro do
Vaticano, nem todos os membros da Cúria gostam desta secretaria.
74
REESE, Thomas. O Vaticano... p.155 75
Ibid. p.157-158 76
Ibid. p.241
55
Como descreve um ex-funcionário do Vaticano, ―A Secretaria de Estado é
o órgão que está entre o Papa e todos os outros. Vários funcionários da Secretaria
consideram-se uma classe acima de todos os outros. Essa é uma atitude não
facilmente aceita por todos os outros. Mas não se pode generalizar. Há muitas
pessoas muito simples em seu contato, amáveis e com uma mente pastoralmente
aberta. Há também muitos, talvez um número grande demais, que desejam se
tornar núncios e se consideram dois pontos acima dos outros. Isto é humano.‖77
A Secretaria de Estado possui, nos dias de hoje, duas seções: a primeira seção
que atua sobre as correspondências e documentos papais; a segunda seção que trata
das relações com os Estados. Ainda para Reese78
, às vezes a primeira seção é
chamada de casos ordinários, enquanto que a segunda seção é chamada de casos
extraordinários. A primeira seção funciona como a secretaria do Papa; qualquer
documento ou correspondência que for expedida ou mesmo recebida pelo Papa,
internamente ou externamente, passa por esta seção. Antes de tais documentos
chegarem ao Papa, esta seção da secretaria pode levar a correspondência a outras
repartições da Cúria. Esta seção é dividida em oito idiomas. Mesmo que o italiano
seja o idioma cotidiano na Cúria, são necessárias outras línguas diferentes, pois
correspondências chegam de diferentes partes do mundo. Para o autor, a maioria dos
católicos do mundo é de língua espanhola, porém a maioria das pessoas usa o inglês
nas correspondências internacionais. O autor afirma que ―milhares de cartas provêm
de chefes de Estados, bispos, padres, leigos e malucos‖.
Quando uma carta vem de algum governo, e é de caráter oficial, esta vai para a
segunda seção. Esta seção equivale ao Ministério das Relações Exteriores da Santa
Sé. Qualquer questão que chega e é relacionada com a política, vai para esta seção.
Esta seção é organizada por países, semelhante às secretarias de Estados de muitos
governos, inclusive em sua maioria os governos laicos. O que difere a Santa Sé dos
outros governos é a dimensão desta segunda seção; por ser reduzida, um funcionário
fica responsável por diversos países. Reese afirma que pensar que a primeira seção
lida somente com questões religiosas e pastorais enquanto que a segunda seção
77
Ibid. p.242 78
Ibid. p.243-258
56
trabalha com questões políticas e diplomáticas é um erro. Ele afirma que ―para a
Santa Sé, questões políticas importantes estão freqüentemente interligadas com
questões religiosas‖. Devido a esta condição, a divisão da segunda seção, por países,
segue não só as ―relações Igreja-Estado, mas também a vida interna da Igreja em seus
países‖.
Freqüentemente, as duas seções trabalham juntas nas comunicações com os
governos. Tudo que for escrito e que possa ter alguma utilidade política, passa pela
segunda seção. Assim, é contínua a interação entre as duas seções. Segundo Reese79
,
os pronunciamentos papais ao corpo diplomático, por exemplo, são oriundos da
segunda seção. Já documentos para organizações internacionais podem ser de
qualquer uma das duas. E as cartas credenciais para novos embaixadores provem da
primeira seção. Em outros tempos, a Santa Sé teve que negociar com muitos
governos sobre indicações de bispos. Essa questão era tratada na segunda seção.
Portanto, tudo que envolve Igreja e Estado é por lá que passa.
Um dado interessante de se relevar é que, segundo Reese80
, como o Papa não
pode escrever todos os documentos, cartas e pronunciamentos que são divulgados em
seu nome, muitos destes são escritos na Cúria, em especial na Secretaria de Estado. O
autor afirma que esta é uma antiga tradição na Secretaria, pois são capazes de ―entrar
na mentalidade do Papa‖. Nesse sentido, os funcionários que escrevem estes
discursos não são escritores, mas sim ghost writers81
, na medida em que procuram ser
fiéis ao pensamento do Pontífice.
Nessa hierarquia, a Secretaria de Estado, como observa Reese82
, é o segundo
escalão no Vaticano. No século XX, praticamente todos os secretários que serviram à
diplomacia da Santa Sé foram italianos, com exceção do cardeal francês Jean Villot
(1969-1979). Os secretários de Estado em sua maioria concentraram-se mais em
questões diplomáticas do que em questões internas, especialmente em épocas de
79
Ibid. p.246 80
Ibid. p.263 81
Ghost Writer é o nome dado à pessoa que, tendo escrito uma obra ou texto, não recebe os créditos de
autoria, ficando estes com aquele que o contrata ou compra o seu trabalho. Neste caso da Santa Sé, o crédito
é do seu superior. 82
Ibid. p.249
57
transtornos internacionais, afirma Reese. O autor exemplifica isso citando o cardeal
Agostino Casaroli, que foi secretário das relações internacionais de Paulo VI e foi
também quem arquitetou a política da Santa Sé com os governos dos países do Leste
Europeu na década de 70, a Ostpolitik. Dentro da Igreja, muitos não acreditavam na
permanência de Casaroli quando João Paulo II assumiu a função de Papa. Entretanto,
impressionado com a competência do funcionário, o novo papa não só o manteve
como secretário de Estado como também o nomeou cardeal. Quando este cardeal se
aposentou no ano de 1990, João Paulo nomeou como secretário o cardeal Angelo
Sodano, ―talvez tendo sido convencido por aqueles que defendiam a tese de que um
papa não italiano precisava de um secretário de Estado italiano‖.83
Sodano foi núncio
apostólico no Chile entre 1978 e 1988, durante o regime militar de Pinochet. Nesta
função, segundo Reese, ele ―desencorajou confrontações com o governo e
supervisionou a indicação de bispos conservadores‖. Não se pode afirmar
concretamente qual das qualidades impressionou mais João Paulo, se a não
confrontação com governos ou as indicações de bispos conservadores, mas Sodano
assumiu o segundo posto mais importante do Vaticano.
Depois do secretário de Estado, o funcionário mais influente é o que preside a
seção dos assuntos gerais (primeira seção), chamado de sostituto (substituto). Reese
afirma que embora o sostituto seja somente arcebispo, ele é mais influente que a
maioria dos cardeais. Alguns dentro da Cúria chegam a queixar-se do ―poder
excessivo centralizado nesta função‖.84
Toda indicação e todo documento passa por
este funcionário.
Diante deste panorama, nota-se que dentro do Vaticano a relação entre
funcionários e membros é política, hierárquica e de poder. Quanto mais próximo ao
Papa, mais influência esta pessoa tem dentro da Cúria. Há uma relação política e
diplomática interna, uma barganha aqui, outra acolá, sempre visando seu interesse
nesta burocracia. O jogo de poder interno é constante nesta instituição. Sobre isso
vale a pena continuar citando aqui Reese:
83
Ibid. p.250 84
Ibid, p.252
58
Como está ocupado tratando com os governos, o secretário das relações
internacionais em geral não desafia a posição do sostituto, exceto em questões
políticas e diplomáticas. A única pessoa que está em posição de desafiar o sostituto
é o secretário particular do papa, que está em contato constante com o papa. Em
muitos pontificados, o secretário pessoal do papa tem atuado como uma porta dos
fundos para o papa que passa por cima do Secretário de Estado. Na melhor das
hipóteses, há uma tensão produtiva entre os dois funcionários, mas em alguns
pontificados eles tiveram discussões sérias.85
O secretário particular de João Paulo II Entre 1966 e 1978 foi o Monsenhor
Stanislaw Dziwisz. Dziwisz foi capelão e secretário particular do então arcebispo da
Cracóvia, Karol Wojtyła, o futuro João Paulo II. Desde a eleição deste pontífice, em
outubro de 1978, até a sua morte, em abril de 2005, Dziwisz desenvolveu a função de
secretário particular do Papa, tornando-se o seu mais direto e íntimo colaborador.
Reese86
afirma que Dziwisz foi o secretário pessoal de um Papa mais poderoso da
atualidade. Por acompanhar João Paulo desde quando era Karol Wojtyla e ser tão
próximo ao Papa, os funcionários do Vaticano, incluindo o Secretário de Estado e o
sostituto ―tratam-no com deferência‖, afirma Reese.
―Aqueles que desejam favores especiais‖ procuram o Monsenhor Dziwisz,
relata um padre italiano. ―Percebem que pelos caminhos normais não vão consegui-
los.‖ Por exemplo, a Opus Dei e os Legionários de Cristo queriam ter
universidades eclesiásticas em Roma. Diziam que as outras universidades não eram
suficientemente ortodoxas. Todas as outras universidades opuseram-se a elas,
como também a Congregação para a Educação. ―Então, não se dirigiram à
Secretaria de Estado, mas ao Monsenhor Dziwisz. No fim, foram aprovadas por
decreto papal e a Congregação teve de assinar.‖87
85
Idem, p.252 86
Idem, p.256 87
Ibid. p.257
59
Fica claro, portanto, que o jogo de poder político dentro da instituição se dá em
todos os níveis da hierarquia. Quanto mais alta, maiores as chances de se conseguir
impor sua vontade. No caso exemplificado por Reese, o secretário pessoal do Papa
foi uma porta dentro da instituição que passou por cima da hierarquia formal do
Secretário de Estado e do sostituto. Nota-se que as relações internas são políticas e,
desta forma, não poderia refletir fora do Vaticano de outra maneira. Sua própria
essência burocrática e estatal exige que seja desta maneira a sua representatividade.
Quando o nome da Igreja aparece relacionado a qualquer questão em qualquer lugar
do mundo, é senso comum ligar tal questão à religião. Porém, a instituição é uma
burocracia, com relações de poder e encontra-se imersa nas características deste
meio. Sua essência é a religião, porém sua existência é política. É impossível separar
onde começa uma característica e termina a outra.
Max Weber88
trata em seus textos do processo de transferência do carisma
pessoal para o espaço institucional que ele chama de ―carisma de função‖. A esse
processo, Weber deu o nome de ―rotinização do carisma‖. No caso do papado, a
função faz da pessoa de um cardeal, eleito Papa no Conclave, a agir, falar e sentir-se
como a liderança apostólica que teria sido atribuída por Jesus Cristo ao apóstolo
Pedro. Há, portanto, na figura do papa a ação do próprio Deus, de quem ele
representa como vigário de Cristo na face da Terra.
Ao mesmo tempo o Papa é Sumo Pontífice (palavra que vem de ponte, de
mediação ou ligação) da Igreja de Cristo e a autoridade maior de um Estado
soberano, filiado à ONU e que mantém relações diplomáticas com a maior parte das
nações da Terra. Podemos analisar a dominação papal a partir dos tipos puros de
dominação analisados por Weber. É claro que essa tipologia pura nem sempre está
presente nas organizações, pois, o Papa exerce uma dominação tradicional, no qual a
relação entre o dominador e os dominados é de ―senhor‖ e de ―súditos‖, relação
santificada, regulada e fixada pelas tradições. Além da dominação tradicional, ele
exerce a dominação carismática, definida por Weber em ―virtude de devoção afetiva
88
WEBER, Max, Os Três tipos de dominação legítima, in Sociologia: Grandes cientistas sociais(Cohn,
Gabriel, org.) SP, Ática, 1982, p.128-141
60
à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e, particularmente: a
faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder intelectual ou de oratória‖.89
Todavia, na qualidade de chefe de Estado e de uma organização multinacional,
o Papa desenvolve um estilo de dominação burocrática. A dominação burocrática foi
descrita por Weber como um estilo de dominação legal, pois há a existência de um
estatuto que controla o funcionamento da Igreja. É a existência desse quadro
administrativo, profissional, embora não-remunerado, com regras para o império,
permanência e saída, com níveis de comando e de execução, existência de regras
impessoais e racionais de regulamentação. Daí o fato de haver no interior de todo
sistema burocrático tensões oriundas da forma carismática e tradicional de
dominação. O Papa e o concílio vivem em tensões constantes, explorada por Janus90
,
no livro coletivo de século XIX O papa e o concílio (reduzido, introduzido e
comentado por Rui Barbosa).
A retórica papal tem, portanto, profundas ligações com a forma da Igreja se
organizar e de como se relacionar as camadas de poder dentro dela. Nesse caso, a
política é aqui vista como tensões, conflitos, negociações entre as partes na tarefa de
administrar uma determinada organização.
2.1.2 - A representatividade papal e a diplomacia da Santa Sé
O Vaticano é uma máquina burocrática e diplomática, onde sua estrutura e
funcionamento internos refletem nas suas atitudes externas. Não se pode negligenciar
que, além de Igreja, o Vaticano é uma das mais antigas burocracias do mundo. A
figura do Papa é imprescindível nesta instituição. Thomas Reese91
afirma que o
papado é tanto uma instituição quanto um indivíduo e que o centro de poder da Igreja
é sito na figura do papa. O Papa é o sucessor de São Pedro, Bispo de Roma, chefe do
Colégio dos Bispos e chefe do Estado da Cidade do Vaticano. O autor afirma ainda
89
Ibid, p.134 90
JANUS. O Papa e o Concílio. (2 V.) Rio de Janeiro, Elos, 1877. 91
REESE, Thomas. O Vaticano... p.17 -21
61
que o pontífice é bispo de Roma devido a Decisão de Pedro de se estabelecer em
Roma. O pontífice governa como Papa e como chefe do Colégio dos Bispos.
Por se sediar em Roma, Itália, a primeira questão de política se dá no
relacionamento com governos locais. Thomas Reese92
afirma que ―desde que vivem
em Roma, os papas têm estado especialmente ligados à política local, às vezes
governando a cidade e outras vezes ficando à mercê dos governantes de Roma‖. Ele
ainda afirma que até surgir a Cidade Estado do Vaticano, os papas lutaram para
manter os Estados Pontifícios, muitas vezes através da diplomacia ou da guerra.
Completando seu raciocínio, o autor afirma que embora o Vaticano, através da Santa
Sé, tenha de tratar com diversas nações questões de paz, direitos humanos e justiça,
trata com o governo romano questões como o preço da água e energia elétrica.
Mesmo que a Cidade do Vaticano propicie ao Papa um Estado Soberano, não é
oriundo desta condição sua função de Papa, mas sim de ser o chefe do Colégio dos
Bispos. Desde o Vaticano II, o papel dos bispos vai além das suas dioceses locais. Os
bispos são responsáveis pela Igreja Universal também. Entretanto, Reese93
afirma que
―o colegiado é importante, mas o papa tem a última palavra e pode muitas vezes agir
por conta própria‖. Para o autor, é arriscado demais um só homem guiar a Igreja,
como também é complicado visões diferentes entrarem em conflito sobre o rumo da
instituição. Daí o risco apontado também no livro de Janus, O Papa e o Concílio.
Assim descreve Reese:
O papel do Colégio dos Bispos na direção da Igreja universal é
extremamente importante se as decisões tomadas no âmbito mais elevado foram
responsáveis pela realidade das igrejas locais. Os bispos são responsáveis por toda
a Igreja, não somente por suas igrejas locais. A História mostra que depender de
um só homem para cuidar do bem-estar da Igreja, sem controle mútuo, é um
negócio arriscado. Por outro lado, os desacordos públicos entre os bispos e o papa
podem causar confusão e desordem na Igreja, e uma Igreja dividida tem mais
dificuldade de sobrevier em um ambiente hostil.94
92
Ibid. p.28 93
Ibid. p.40 94
Ibid. p.41
62
Pode-se afirmar, então, que existe um conflito de interesses – locais e
universais – no cerne da liderança católica. O viés político se mostra presente nos
interesses do rumo da própria Igreja. Se não houver astúcia política entre o chefe dos
bispos e os próprios bispos, o funcionamento desta máquina estaria seriamente
comprometido. A política permeia tanto internamente, quanto externamente à Santa
Sé. Reese95
explana a idéia de que desde o início os cristãos estariam envolvidos em
conflitos com os líderes dos governos. Jesus foi executado pelo governador romano
de Jerusalém, seus discípulos perseguidos por autoridades também romanas. Quando
o catolicismo se tornou a religião oficial do império, houve uma mudança de
perseguição do Estado para a liberdade da religião cristã oficializada. Porém, esta
liberdade veio carregada de influência do Estado. Reis e imperadores competiam com
líderes da Igreja pelo controle dela, do seu pessoal, crenças e, principalmente,
propriedades. Assim, a figura do papado torna-se primordial na luta sobre quem
controlaria a Igreja - líderes civis e líderes religiosos. Vale reafirmar que o autor
sustenta que o próprio Vaticano não considera seu modelo de governo monárquico
um modelo para as outras nações, porém seu propósito além de proporcionar um
território internacionalmente reconhecido onde a Santa Sé possa atuar com total
liberdade e sem interferência política, reforça o poder da figura do Papa.
―João Paulo II deseja pregar o Evangelho ao mundo e não permanecer no
Vaticano com os documentos‖.96
Talvez desta sua concepção tenham surgidos os
impulsos por viagens internacionais. Se o líder da instituição possui tal mentalidade,
conseqüentemente o reflexo na atividade diplomática é inevitável. Para Bobbio97
, a
diplomacia caracteriza-se como ―a condução das relações internacionais através de
negociações. O método através do qual estas relações são reguladas e mantidas por
embaixadores e encarregados; o ofício ou a arte do diplomata". Assim, o objeto
principal da diplomacia é o meio através do qual são conduzidas as negociações e não
o conteúdo das negociações em si. Olhando para essa definição de Bobbio, em
95
Ibid. p.43 96
Ibid. p.264 97
BOBBIO, Norberto. Dicionário... p.348
63
paralelo ao conceito de Bourdieu que afirma ser importante a legitimidade do porta-
voz e não o conteúdo do discurso, a diplomacia pode ser, então, qualificada na
condição de meio de persuasão, de uma prática retórica na qual envolvem elementos
que caracterizam o ato retórico como uma ação diplomática.
Bobbio98
ainda afirma que o desenvolvimento das atuais formas de diplomacia
se deve, principalmente, a três fatores do século passado: maior consciência de cada
Estado pertencer a uma comunidade de nações; a influência crescente da opinião
pública; e o desenvolvimento das comunicações. O autor continua afirmando que no
século XX, graças à revolução tecnológica, aos novos meios de comunicação, e ao
surgimento de fatores decisivos nas relações internacionais, como a ideologia, por
exemplo, as funções clássicas do diplomata voltaram-se para a criação do ―homem
político‖.
Uma conseqüência desta forma de administração papal é a grande importância
que se dá à diplomacia. Reese99
registra queixa da Cúria contra o Papa pois ele não
levaria o trabalho deles a sério, visto como mau administrador, pois como papa
prestava mais atenção à questões externas, deixando de lado a administração interna a
cargo dos burocratas do Vaticano. O autor afirma ainda que esse Papa preferia
personalidades ―fortes e vigorosas, como ele‖. Tanto que os cardeais mais influentes
no seu papado foram os que tinham personalidades fortes e defendiam energicamente
suas posições, tanto que, o seu sucessor, Joseph Ratzinger, o atual Bento XVI, era um
desses cardeais.
A diplomacia foi um pilar no papado de João Paulo II, mas isto não significa
que ela seja oriunda especificamente deste papado. Como foi citado anteriormente, a
diplomacia sempre fez parte da Igreja e da Santa Sé. Desde os tempos medievais a
sede episcopal de Roma tem sido reconhecida como uma entidade soberana. Em
Constantinopla, a partir de 453, já havia representantes papais junto ao imperador. No
século XI, o envio de representantes papais aos príncipes, em uma missão temporária
ou permanente, tornou-se freqüente. Assim como no século XV tornou-se habitual os
98
Ibid. p.249 99
REESE, Thomas. O Vaticano... p.266
64
estados creditarem embaixadores residentes e permanentes em Roma para os
representarem junto ao Papa. Porém, a Nunciatura Apostólica foi fundada apenas em
1500, em Veneza.100
Nos dias atuais, a Academia de Nunciatura101
é muito bem organizada e
estruturada. Reese102
afirma que o curso de estudos na Academia em geral dura cerca
de quatro anos. Dentre as matérias dos alunos estão: cursos de idiomas, direito
internacional, história diplomática, diplomacia eclesiástica e redação diplomática. O
curso nessa Academia não visa à obtenção de um diploma acadêmico, mas a vivência
dos alunos a fim de que ―absorvam a cultura e a atmosfera do serviço diplomático do
Vaticano‖. Depois de graduado, o aluno é enviado para trabalhar em alguma
nunciatura como assistente. A promoção nesta carreira é por idade. Estas pessoas que
entram nesta carreira vivenciam as relações de poder internas e externas ao Vaticano.
Reese103
afirma que é importante trabalhar para um funcionário de destaque no
Vaticano e que esta pessoa deve chamar a atenção de algum funcionário do alto
escalão da instituição para ser promovida.
O treinamento e a experiência internacional desses diplomatas os tornam
muito influentes quando retornam ao Vaticano. Tendo trabalhado em diferentes
países e culturas, têm um conhecimento direto das Igrejas locais e de seus países.
Tendo trabalhado nas nunciaturas, estão ainda melhor capacitados para interpretar
as informações que chegam das nunciaturas para Roma. Mudando de um lugar para
o outro, também fizeram muitos amigos e contatos nas Igrejas locais, no serviço
diplomático do Vaticano, na Secretaria de Estado e na Cúria. Esta rede informal de
amigos e contatos, que tem início na academia, é uma fonte de informações
essencial, necessária para conseguir que as coisas sejam feitas no Vaticano.104
O Vaticano possui uma cultura diplomática de longa data, portanto, a estrutura
atual de formação de seus núncios é oriunda de uma longa tradição nesta área. No 100
Para conhecimento da história da diplomacia da Santa Sé ver em: LAJOLO, Giovanni. Nature &
function of papal diplomacy. Institute of Southest Asian Estudies, Singapura. 2005 101
Núncio apostólico ou núncio papal é um representante diplomático permanente da Santa Sé que exerce a
função de embaixador em um determinado país. 102
REESE, Thomas. O Vaticano... p.213 103
Ibid. p.215 104
Ibid. p.216
65
entanto, o frutífero período diplomático experimentado até a primeira metade do
século XVII, entrou em declínio, talvez, após a Paz de Westfália105
, em 1648. Após
1870, com a extinção dos Estados Pontifícios e a questão da perda de soberania
territorial, seria suprida somente em 1929 com a criação do Estado do Vaticano.
Todavia, nessa data os juristas estavam incertos sobre se a Santa Sé poderia continuar
a funcionar como uma personalidade independente em assuntos internacionais, seria
um caso de um Estado sem território algum. Com a Primeira Guerra Mundial e suas
conseqüências, o número de países com relações diplomáticas com a Santa Sé
aumentou. Pela primeira vez desde que foram quebradas as relações entre o Papa e a
Inglaterra no século XVI, uma missão diplomática britânica foi enviada à Santa Sé
naquele período. Desde então, ao invés de diminuir o número de diplomatas
creditados junto da Santa Sé, este número passou de 16 em 1871 para 27 em 1929,
antes mesmo da fundação do Estado da Cidade do Vaticano. No mesmo período, a
Santa Sé concluiu um total de 29 concordatas e outros tipos de acordos com diversos
Estados, incluindo o Império Austro-Húngaro, em 1881; Rússia em 1882 e 1907; e a
França em 1886 e 1923. Duas destas concordatas foram registradas na Liga das
Nações a pedido dos países envolvidos. O Tratado de Latrão de 1929 e da fundação
da cidade do Vaticano não aumentou o número de Estados com os quais a Santa Sé
mantinha relações oficiais. Isso veio depois, sobretudo após a Segunda Guerra
Mundial.106
A Segunda Guerra Mundial foi causa de muita polêmica com relação à
diplomacia da Santa Sé, principalmente em relação à Alemanha. Existem muitas
visões e versões divergentes sobre a postura do Vaticano no período da Guerra. O
Papa nesta época era Pio XII e seu nome é freqüentemente citado em questões sobre
o nazismo e o holocausto. Há muitos críticos da política da Santa Sé em relação ao
extermínio de judeus, como também existem defensores. O relevante para esta
pesquisa é o fato de que a Santa Sé mantinha relações diplomáticas com o Reich.
105
Paz de Westfália foi uma série de tratados que encerrou a Guerra dos Trinta Anos, além de reconhecer
oficialmente as Províncias Unidas (atuais Países Baixos ou Holanda) e a Confederação Suíça. Marcou o fim
das guerras entre protestantes e católicos na Europa. 106
LAJOLO, Giovanni. Nature…
66
Friedlander107
faz referencia à documentos que apontam para a existência de uma
relação cordial entre o embaixador alemão em Roma e o Papa desde a época em que
Eugenio Pacelli era cardeal. O embaixador a serviço de Hitler era Diego Von Bergen,
o qual passou um longo período no Vaticano, onde teve contato com diversos
membros da Cúria, inclusive com o cardeal Pacelli, que em 1939 se tornou o Papa
Pio XII. Tal fato mostra que mesmo em um período polêmico e controverso, a
diplomacia da Santa Sé funcionava normalmente. Quando Bergen não mais ocupou
esta função, ele mesmo relata aos seus superiores alemães que a Cúria estava
convencida de que ele permaneceria em Roma até o final da guerra e foi uma
surpresa sua partida. Essa informalidade na relação entre o embaixador e o Papa é
uma característica da Santa Sé, sendo até hoje explorada essa característica de
cordialidade na formação dos núncios na Academia de Nunciatura.
É possível então afirmar que a Santa Sé adquiriu ao longo da história um
modus operandi que refletiu nas relações políticas visíveis tanto internas como
externamente. Assim, o discurso e a palavra política estão presentes em todos os
aspectos de seu funcionamento, não sendo algo novo, mas sim uma tradição desde
tempos antigos.
2.2 – O Papado de João Paulo II e a Igreja no Cenário Mundial
João Paulo II foi uma figura marcante no final do século XX. Ele possuía
características e personalidade de retor, aquele que possui todas as condições ideais
de falar em nome da ICAR. A queda do comunismo foi um divisor de águas em seu
papado, marcando os novos rumos do cenário mundial na última década deste século.
2.2.1 – A gênese e a formação do orador: João Paulo II
Atualmente, é inegável que o prestígio e a visibilidade da Igreja Católica
particularmente na mídia, se devem em grande parte a João Paulo II. Karol Wojtyla
107
FRIEDLANDER, Saul. Pio XII e a Alemanha Nazi. Livraria Morais Editora. Lisboa. 1967
67
se tornou Papa passando à mídia uma fisionomia carismática, sendo um dos rostos
mais conhecidos do último século. Karol Josef Wojtyla nasceu em 7 de Maio de
1920. Perdeu a mãe e um irmão ainda jovem e foi criado somente pelo pai, quem
também perdeu na adolescência. Wojtyla nasceu em uma cidadezinha polonesa
chamada Vadovice. Nesta cidade, 20% da população era judia. Ali, Karol Wojtyla
por estar presente, vivenciou o comportamento e a inculturação anti-semita por parte
dos nazistas. Um fato interessante é que naquela cidade, judeus e católicos se
misturavam com facilidade. Ora, desde os tempos apostólicos nenhum Pontífice
Romano, o qual Wojtyla iria se tornar, tivera um contato tão estreito com a vida
judaica. Wojtyla conhecia inclusive as festividades judaicas, chegando a assisti-las
quando podia. Porém, este estreito relacionamento com judeus não era comum na
Polônia: longe disto, havia na Polônia, assim como em outras partes da Europa, um
anti-semitismo enraizado, que seria aproveitado pelo nazismo.
Além do anti-semitismo, Karol Wojtyla também vivenciou o período da
Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Quando do início da Guerra, em setembro de
1939 a Cracóvia foi bombardeada, até porque os alemães tinham escolhido a Polônia
como sua presa. Em 6 de Setembro daquele mesmo ano já haviam ocupado a cidade.
Neste período, os nazistas ordenaram o trabalho compulsório para todos os adultos
poloneses e todos os judeus acima de 12 anos de idade. Para os nazistas, os poloneses
eram subumanos e tinham que se sentir como tal. A pressão nazista era intensa e
qualquer pessoa que não tivesse um trabalho reconhecido pelas autoridades alemãs
corria o risco de ser deportada para a Alemanha. Assim, Wojtyla foi obrigado a
arrumar um trabalho. Ele se tornou trabalhador braçal na empresa química Solvay,
em outubro de 1940. Karol tinha então 20 anos de idade. Este emprego lhe deu uma
licença de trabalho, isentando-o de ser requisitado para as turmas de trabalho forçado
pelos nazistas, além de lhe garantir um passe para se deslocar à noite, um salário, e
maiores rações de alimentos, já que as operações da Solvay estavam relacionadas
com o esforço de guerra. Em suma, este emprego lhe forneceu uma considerável
proteção contra a ocupação nazista.
68
Persiste o fato de que sua experiência na pedreira e na fábrica, tal como suas
ligações anteriores com judeus em Vadovice (muitos dos quais iriam dentro em
breve morrer em Auschwitz, perto dali), deu a João Paulo II um aprendizado que
nenhum Pontífice romano tivera antes dele. Seus anos na Solvay lhe
proporcionaram uma percepção imediata das condições dos operários, o que lhe
seria muito útil na sua futura luta contra o regime comunista polonês e o levaria a
encarar a alienação e a exploração dos trabalhadores de um modo impensável para
um Papa.108
Cornwell109
afirma que quando Wojtyla se tornou Papa, em seus 12 primeiros
anos ele escreveu três encíclicas importantes sobre questões de política, economia e
trabalho. A primeira é do ano de 1981 e chama-se Laborem exercens (Sobre Trabalho
Humano) e é uma ―excursão poética sobre o significado do trabalho por um homem
que tinha pleno direito a emitir opiniões sobre o assunto‖. O autor afirma ainda que
isso foi devido ao seu trabalho forçado na juventude, onde ele tinha ―passado anos
carregando aos ombros pedras em baldes pendentes de um balancim numa pedreira
polonesa‖. O autor ainda afirma que nesta encíclica, João Paulo evitou questões
socialistas de propriedade dos meios de produção, como também tentou desmentir a
idéia baseada em uma interpretação parcial da bíblia de que ―trabalho é uma punição
divina para o pecado original cometido por Adão e Eva‖. Ele tentou mostrar em sua
encíclica que o trabalho é criativo, um ―processo de auto-realização, de
desenvolvimento pessoal‖.
Segundo Bernstein e Politi110
, Wojtyla era um grande admirador das artes,
especificamente do teatro. Fora ator, poeta, autor teatral e filósofo. Quando conheceu
o teatro, Karol Wojtyla ficou extremamente fascinado e o resultado deste encontro
com a arte foi imediato; logo ele estava envolvido em leituras de textos teatrais e
tardes de música de câmara e declamação de poesia. Devido a esta paixão pelo teatro,
foi inevitável que Karol se tornasse ator. No final do colégio, conheceu um professor
108
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso
Tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996. p.63 109
CORNWELL, John. A Face Oculta do Pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro, Imago. 2005.
p.135 110
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.63-64
69
de literatura polonesa totalmente dedicado ao teatro. Foi nesta época que surgiram
outras paixões de Wojtyla: línguas e letras. Daí em diante ele caminhou entre atuar,
escrever poesias, peças teatrais, entre outros. Seus amigos não sabiam se Wojtyla se
tornaria um ator ou um homem das letras. Esta experiência com artes e letras tornou-
se uma fonte de resistência da cultura polonesa ao nazismo e um modo de se
contrapor a ocupação alemã.
As raízes de tudo que ele sentia e faria como Papa, tanto em termos de dogma
católico como de doutrina geoestratégica podem ser encontradas no solo da sua
Polônia de origem, afirmam Bernstein e Politi111
. Como muitos de seus compatriotas,
quando jovem teve sua formação na tradição do messianismo polonês, na concepção
de que a Polônia tinha que redimir as nações através de seu próprio sofrimento e a
missão dos peregrinos poloneses era a de anunciar às nações do ocidente um mundo
novo, um mundo transformado espiritualmente. Cornwell112
afirma que a perspectiva
crucial de João Paulo, que guiou sua visão, era que o ―seu senso da Polônia, e o seu
próprio destino, estavam profundamente imbuídos de tradições marianas de proteção
e intervenção‖.
Wojtyla optou pelo sacerdócio em 1948, tornando-se assim padre. Começou a
sua vida pastoral em uma aldeia isolada a cerca de 45 quilômetros de Cracóvia.
Durante esses anos de padre experimentou como funcionava a máquina comunista,
muitas vezes tendo que realizar encontros escondidos com jovens, relação esta que se
tornaria também uma marca na sua vida pastoral. Em 1958, 10 anos após tornar-se
padre, foi nomeado bispo da Cracóvia. Nessa época, a Polônia passava por uma
transformação diferente da dos seus vizinhos socialistas. Durante séculos, através de
guerras e partilhas, a cultura polonesa e os camponeses do país estavam intimamente
ligados à Igreja. E a Polônia pós-guerra tinha uma liderança atéia. A Igreja era de fato
uma força que os comunistas teriam que combater, tornando assim a sua contenção
uma das prioridades das lideranças políticas. Com 95% da população de católicos
logo a Igreja se tornaria um sério problema para os comunistas. E foi exatamente isso
111
Ibid. p.265 112
CORNWELL, John. A Face… p.120
70
que aconteceu. A Igreja na Polônia tornou-se uma voz ainda que tímida de oposição
ao comunismo.
Karol Wojtyla ganhou notoriedade entre os membros da Igreja durante o
Concílio Vaticano II, se tornando em pouco tempo o porta-voz da delegação
polonesa. Freqüentemente Wojtyla negociava em seu nome com bispos franceses e
alemães. Os poloneses formavam a delegação mais importante do mundo comunista,
e por isso mesmo tinham certa autoridade em questões que envolviam a ―cortina de
ferro‖. Em 1963 tornou-se Arcebispo de Cracóvia ganhando mais destaque em meio à
comunidade católica, e, quando o debate no Concílio Vaticano II voltou-se para a
questão da liberdade de consciência e de religião, seus discursos adquiriram maior
peso devido a sua experiência com o comunismo. Em 1967, quando Paulo VI era
sumo pontífice, fez de Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia, cardeal. Karol tinha
então 47 anos de idade. Paulo VI e o então Cardeal Wojtyla se tornaram muito
ligados, principalmente depois de Wojtyla ajudar o Papa a escrever a encíclica
Humanae Vitae. Bernstein e Politi registram que ―esse episódio ligou Paulo VI ainda
mais estreitamente ao cardeal Wojtyla, a quem ele recebia regularmente em
audiências privadas. Entre 1973 e 1975, o arcebispo de Cracóvia entrou onze vezes
no estúdio do Papa para audiências privadas‖.113
Além de bem relacionado no Vaticano, o cardeal Wojtyla era conhecido como
filósofo, como a pessoa que pensava na autodeterminação do ser humano. Pensava
também que, para isso, uma sociedade e um sistema político tinham que dar ao
indivíduo a oportunidade da autodeterminação. Além de filósofo, o cardeal Wojtyla
era conhecido também por ser poliglota. Falava alemão, russo, francês, inglês,
italiano e espanhol, além de sua língua materna. Essa facilidade lingüística era
complementada por uma inclinação por viagens, quando participava de congressos,
visitando comunidades polonesas ao redor do mundo. Ele era ainda cardeal e já havia
visitado lugares como a Terra Santa, os Estados Unidos, a Austrália, Nova Guiné,
entre outros.
113
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.121
71
Os membros da Cúria observavam Wojtyla com grande interesse. Até onde se
sabia, sua personalidade agradava a muitas pessoas no Vaticano, mas a grande
maioria não o conhecia intimamente. Sabia-se que ele exercia um poder carismático
sobre os jovens e pessoas que o encontravam ficavam impressionadas por sua externa
simplicidade de modos. Bernstein e Politi114
afirmam que ele ―não possuía
praticamente nada a não ser seus livros, paramentos eclesiásticos, algumas
lembranças de família, esquis (que guardava no palácio episcopal) e roupas de
excursionista.‖ Novamente, mesmo que não intencional, aflorava aí seu ethos.
Algo que é relevante de se dizer é que Karol Wojtyla tinha uma certa aversão à
mídia. Raramente lia jornais e muito menos tinha interesse em assistir ao noticiário
na televisão ou ouvi-lo pelo rádio. A cada duas semanas, recebia os resumos das
notícias dos jornais muito censurados na Polônia e na TV Estatal, a pedido próprio.
Não só não tinha interesse nas notícias gerais como também não tinha nenhuma
prática da intervenção da imprensa e da opinião pública nos negócios da Igreja.
Ficava impressionado que em Roma, por exemplo, mais cedo ou mais tarde tudo
terminava nos jornais, seja lá o que fosse, como encontros a portas fechadas,
comunicações secretas, etc. Curioso é que na era da mídia de massas, Wojtyla se
recusava a ter uma ligação pessoal com essa força aparentemente essencial da vida
contemporânea, mesmo fazendo dela um uso tão freqüente mais tarde, muito mais do
que qualquer outro personagem da história do século XX. Sobre isso novamente
afirmam Bernstein e Politi: ―para um bispo vindo da Polônia, isso era inimaginável.
Wojtyla desconfiava do modo pelo qual a mídia influenciava o debate interno da
Igreja (e quando se tornou Papa, seu secretariado de Estado iria expedir uma ordem
proibindo os funcionários executivos da Cúria de dar entrevistas sem permissão
especial)‖.115
Em agosto de 1978, o Colégio de Cardeais, inclusive Wojtyla, reuniu-se em
conclave116
no Vaticano e escolheu Albino Luciani como Papa, que adotara o nome
de João Paulo I para suceder Paulo VI. Ora, Paulo VI havia herdado de João XXIII,
114
Ibid. p.121 115
Ibid. p.102 116
Reunião do Sacro Colégio de Cardeais, convocado para eleger um novo pontífice.
72
em 1963, uma Igreja em transição, pois, com o início do Concílio Vaticano II, João
XXIII havia aberto um novo tempo na Igreja, propondo novas visões e temas
essenciais, como a renovação da atitude espiritual, das estruturas eclesiásticas e da
reforma da doutrina. Paulo VI foi o Papa dos anos 60 e 70 que vivenciou esta
mudança de postura da Igreja diante do mundo, portanto, um papa de transição, em
uma época de buscas de novas formas de ser Igreja Católica no mundo. Bernstein e
Politi117
afirmam que ―o Papa Paulo VI tinha passado seus últimos anos cada vez
mais atormentado pelo dilema de como equilibrar a continuidade doutrinária, o
consenso dos fiéis e os ditames da sua própria consciência‖.
Em setembro de 1978, um mês depois da eleição de João Paulo I, o Vaticano
de repente encontra-se em meio a uma enorme confusão. O recém eleito Papa, Albino
Luciani, é encontrado morto em seu quarto, vítima de um infarto do miocárdio,
segundo o boletim oficial. A notícia da morte do Papa pegou todos de surpresa,
inclusive Karol Wojtyla, que já havia recebido uma quantidade considerável de votos
na eleição de Albino Luciani. No mínimo, ele poderia imaginar que eram grandes as
chances de não comparecer ao próximo conclave somente como espectador ou mero
eleitor.
Segundo os autores118
, a tensão de Wojtyla se confirmou, pois, dos 108
cardeais presentes no novo conclave, 99 lhe deram os seus votos. O inimaginável
ocorreu: foi escolhido um Papa de um país entregue à União Soviética, um país de
um governo marxista e ateu. Era o primeiro Pontífice não-italiano em 450 anos. Um
Papa jovem, com apenas 58 de idade. Para expressar o seu compromisso com o
legado dos três últimos Papas e sua afinidade com Albino Luciani, adotou o nome de
João Paulo II. Paolo Vian registrou em um jornal este acontecimento insólito da
seguinte forma: ―Un Papa nuovo. Un Papa che vieni da un paese lontano, dalle
chiese del silenzio e della persecuzione. Un Papa che viene dall’est, daí campi di
117
Ibid. p.408 118
Ibid. p.157-167
73
deportazione e di sterminio. Un Papa della terra dei confesssori e dei mártir,
baluardo della fede e della liberta contro regimi ateistici e totalitari‖.119
Karol Wojtyla torna-se, assim, João Paulo II. Desde cardeal ele já possuía um
impulso por viagens, que na função de Papa ficou ainda mais evidente. Paulo VI em
15 anos de papado fez apenas oito viagens ao exterior e a destinos óbvios, com
significados religiosos. Visitou lugares como Jerusalém, Istambul, Fátima, Bombaim
e a sede das Nações Unidas em Nova York. Já João Paulo II nos primeiros seis anos
de seu pontificado visitou lugares como a Polônia, México, Irlanda, Estados Unidos,
Turquia, Zaire, Congo, Quênia, Burkina Fasso, Costa do Marfim, França, Brasil,
Alemanha Ocidental, Paquistão Filipinas, Guam, Nigéria, Gabão, Guiné Equatorial,
Portugal, Grã-Bretanha, Argentina, Espanha, Costa Rica, Nicarágua, Panamá, El
Salvador, Guatemala, Honduras, Belize, Haiti, Áustria, Coréia, Canadá e África do
Sul. Além de um impulso por viagens, pode-se dizer também que tal condição fazia
parte da sua diplomacia e o simbolismo que isso representava era uma coisa inédita
até então.
Ele estava cobrindo sistematicamente o globo, dirigindo-se pessoalmente a
multidões de católicos e não-católicos. Literalmente, bilhões de pessoas o tinham
visto na televisão. No dia dedicado a S. Pedro e S. Paulo, 29 de junho de 1982, ele
disse aos cardeais no Vaticano que suas viagens eram um exercício do ―carisma de
Pedro numa escala universal‖. – Se ficasse no Vaticano, como a Cúria gostaria que
fizesse – observou ele para seu amigo, padre Malinski - então ficaria sentado em
Roma escrevendo encíclicas, que seriam lidas apenas por um punhado de pessoas.
Mas se viajar e for às pessoas, então me encontrarei com uma porção delas, tanto
119
VIAN, Paolo. Un Papa ―Nuovo‖. In L’Osservatore Della Domenica nº 42, Roma, p. 05, 22 de Outubro
de 1978. ―Um novo Papa. Um Papa que vêm de um país distante, da igreja do silêncio e da perseguição. Um
Papa que é do Leste [oriente], dos campos de deportações e de extermínio. Um Papa da terra da confissão e
martírio, bastião da fé e da liberdade contra o regime ateu e totalitário‖. (Tradução livre do autor).
74
gente simples como políticos. E elas me escutarão. Caso Contrário, nunca virão a
mim.120
Sua primeira viagem papal foi para a América Latina em 1979,
especificamente ao México, para a Conferência dos Bispos Latino-americanos, a
convite do arcebispo de Guadalajara. O México é um país onde a grande maioria da
população é católica, embora naquela época o México possuísse uma constituição
anticlerical. Os padres não podiam sequer usar suas batinas nas ruas e o país não
mantinha relações diplomáticas com a Santa Sé. O Governo não demonstrou nenhum
interesse na visita papal. Esta era a atmosfera do México durante a primeira viagem
de João Paulo II.
Segundo Bernstein e Politi121
, na véspera de sua chegada, alguns jornais
noticiaram como a ―chegada de um papa católico‖, enquanto outros noticiaram a
chegada de ―um polonês de cinqüenta e oito anos de idade‖. Quando o avião chegou,
não havia formalidades nem recepções; somente o Presidente o recebeu. Porém o
povo mexicano rompeu o cordão de isolamento correndo em direção ao Papa. Na sua
primeira viagem papal, João Paulo II trouxe uma notória visibilidade à Igreja,
visibilidade esta que a instituição havia perdido há um bom tempo. Os autores
afirmam que ―uma criança correu para abraçá-lo, um homem enorme abriu seu
poncho na frente do Papa e atirou uma cascata de rosas‖. Eles ainda dizem que um
sombreiro de aba larga foi na direção de João Paulo II. Ele colocou este sombreiro na
cabeça e ―com esse pequeno gesto, conquistou o México... e grande parte do mundo‖
Evidentemente que os autores aqui querer fazer alusão ao poder simbólico deste ato.
O que se pode afirmar também é que este simbolismo, característico deste papado, foi
o fator nevrálgico para a construção de seu ethos.
120
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.402 121
Ibid. p.208
75
2.2.1 – O papado e a queda do comunismo
Patrick Michel122
afirma que ―João Paulo II é o último Papa‖. Não se trata para
ele de o último no sentido literal da palavra, mas o último Papa que ―teve condições
para dar crédito, por menor que fosse, à tripla ficção da universalidade, da autoridade
e de uma norma que tenha sentido e seja válida em toda parte e para todos‖. Para
Michel ―somente o político tem condições de tornar operacional‖ esta característica.
Porém, para o autor esta característica é oriunda do fato de a estratégia católica de
compensação profética, estratégia onde o discurso profético não é ouvido e
justamente por isso a Igreja o conserva para além de qualquer julgamento, fracassar
ante o contexto secular, a luta ―contra um processo multiforme de
desinstitucionalização da fé, cujo efeito principal é privar a Igreja de seu poder‖.
Assim a crise de civilização que atingiu o homem no final do segundo milênio para
João Paulo é a ―distância tomada em relação à Igreja‖.
Cornwell123
afirma que na visão de João Paulo o pluralismo, a democracia e a
livre iniciativa podem levar a novas formas de tirania se não houver uma cultura
moral para ―lhe impor restrições e lhes dar forma‖. A partir desta visão, João Paulo
via na Igreja Católica os ensinamentos sociais que seriam vitais para esta nova ordem
mundial. Michel124
afirma que a Igreja já mostrava esta preocupação na encíclica
Mirari vos (1832) do Papa Gregório XVI e na Quanta cura (1864) do Papa Pio IX.
Assim, o discurso de ―deploração da perda‖ devido ao desaparecimento de uma
referência estruturadora, fez com que João Paulo II se transformasse em um indicador
do desencantamento do mundo. Em conseqüência desta condição, o Papa ―ao
pretender submetê-la a uma referência total‖, acabou por incriminar a essência da
própria democracia, pois a Igreja seria a referencial total. Assim, João Paulo II é o
Papa da perda do poder espiritual. Michel afirma que foi o político que estruturou
este papado, sendo a queda do comunismo o acontecimento central de onde tudo gira.
122
LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos os caminhos levam a Roma: As mutações atuais
do catolicismo. Petrópolis, Vozes, 1999. p.345 123
CORNWELL, John. A Face… p.142 124
LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.349
76
Para Bernstein e Politti, ―João Paulo II, o Papa dos ‗direitos dos homens‘, oriundo de
um país no qual, segundo ele dizia, o primeiro dever da Igreja era defender os direitos
do homem, deu a impressão de constituir o próprio vetor de um processo de saída do
comunismo e, portanto, da instauração da democracia política‖.125
Como vimos, desde quando era padre o Pontífice havia convivido com o
comunismo. Michel126
afirma que até 1989 o Papa foi uma referência para todos que
estavam interessados no fim do comunismo. Por isso, quando João Paulo afirmou que
o principal são os direitos dos homens, ele ―credibiliza um dispositivo de resistência,
inteiramente centrado na limitação do político‖. O local onde se deu a principal
articulação política de João Paulo foi em seu país de origem, a Polônia. O regime
Comunista naquele local teve uma plataforma que contrapôs sua essência e
funcionamento encabeçados pelo Papa. Michel continua afirmando que o primado
pelos direitos do homem o qual defendia João Paulo, possibilitou articular uma
plataforma contra o comunismo que mobilizou os operários, intelectuais e Igreja.
Devemos aqui observar, que devido a isso, a Polônia, desde a primeira visita de
João Paulo II como pontífice, nunca mais foi a mesma. Bernstein e Politi127
afirmam
que do avião do Papa era possível enxergar filas intermináveis de pessoas e multidões
se acumulando na rota em que ele seguiria do aeroporto até o centro da cidade. Nos
primeiros momentos da visita papal, confirmou-se que na Polônia a Igreja alcançara
um status sem precedentes em qualquer outro país socialista. A Igreja era realmente
um poder na Polônia devido a toda sua história, condição política frente ao regime
comunista e ligação com a população polonesa. Os autores afirmam ainda que
durante os nove dias da estadia do Papa, o país parecia em transe ou em êxtase, não
só por um compatriota seu que havia atingido o patamar mais alto da Igreja e que
estava voltando pra casa, mas era como a chegada de um messias. Na manhã seguinte
à chegada de João Paulo II à Polônia, o pontífice realizou uma missa para dezenas de
milhares de universitários na frente da igreja de Sant‘Ana. Esperava-se atrair para o
125
Ibid. p.350 126
Ibid. p.351 127
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.460
77
evento cerca de 30 mil estudantes, porém rapidamente cresceu para uma reunião de
200 mil pessoas. Nas suas homilias128
, João Paulo II deferiu palavras que logo de cara
romperam a política externa do Vaticano com Estados comunistas, a Ostpolitik, que
já durava 20 anos. Em momento algum pronunciou uma palavra sequer que pudesse
iniciar um confronto de Igreja e Estado. Cornwell129
afirma que a ―mágica que ele
realizou foi a de converter a reprimida insurgência, potencialmente violenta, numa
pacífica, mas não menos determinada transformação de consciência‖. Simplesmente
estava encaminhando a Igreja para desempenhar um novo papel não só na Polônia,
mas também na Europa Oriental, na União Soviética e em questões mundiais. Ao
tratar diretamente com os rumos de um regime comunista que era ativo no país, ele
automaticamente tornara-se uma figura de representatividade mundial nesta questão.
Bernstein e Politi registram:
Através dele, a Igreja estava reivindicando um novo papel, não mais apenas
pedindo um espaço para si mesma. Através do Papa, estava exigindo respeito tanto
pelos direitos humanos como pelos valores cristãos, respeito para cada homem e
mulher e a autonomia do indivíduo. Essas exigências representavam um ataque
frontal contra as pretensões universais da ideologia marxista, que a esta altura
havia se transformado numa casca vazia nos países sob a influencia soviética.130
Fica claro então que João Paulo II, em seu país de origem, se tornou a
inspiração e o protetor do Solidariedade, um movimento de trabalhadores não-
comunistas, que crescia no país, e recebia fundos financeiros do ocidente para sua
atuação. Um de seus líderes, devido à tamanha ligação com o pontífice, chegou a ser
recebido em audiências privadas no Vaticano. Cornwell131
afirma que existem
indicações que João Paulo doou 50 milhões de dólares para este movimento. Esta
128
Homilia é o comentário do Evangelho, depois de sua leitura, por ocasião da missa. 129
CORNWELL, John. A Face… p.121 130
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.15 131
CORNWELL, John. A Face… p.119
78
soma foi provavelmente doada através do Banco do Vaticano. Cornwell afirma que
―circulavam rumores de que o dinheiro tinha sido passado para o Solidariedade via
Roberto Calvi, o banqueiro da Máfia que em 17 de junho de 1982 foi encontrado
enforcado sob a Ponte de Blackfriars em Londres‖.
A liderança comunista da Polônia sofreu um profundo impacto com a presença
de João Paulo II, pois aquela situação era enxergada pela liderança como uma
revolução disfarçada de preces. Até porque, João Paulo II, além de inflamar o povo
em um encontro que teve com líderes poloneses, apresentou uma lista de
reivindicações e de garantias de direitos humanos básicos que era inconcebível para
um país comunista. Mesmo não querendo derrubar o sistema comunista, estava
lançando uma política pessoal de pressionar o regime para obter mudanças na
conduta do governo, uma política baseada nos princípios de igualdade e justiça, a
mesma propaganda usada pelo comunismo, mas que não ocorria na prática. Isso
causou uma desestabilização no sistema, pois o papel de igualdade e justiça que o
governo não conseguia colocar em prática, a Igreja era capaz de fazer, ou ao menos
representar. Para um país cujo governo era ateu, discursos de caráter religioso se
tornaram muito mais do que simplesmente um estado de espírito. Assim se expressa
João Paulo II132
, conforme o L’Osservatore Romano:
Nestas palavras exprime-se a doutrina social da Igreja que sempre dá apoio
ao autêntico progresso e ao desenvolvimento pacífico da humanidade; por
conseguinte – enquanto todas as formas do colonialismo político, econômico ou
cultural continuam em contradição com as exigências da ordem internacional – é
necessário apreciar todas as alianças e os pactos que se baseiam sobre o respeito
recíproco e sobre o reconhecimento do bem de cada nação e de cada Estado. (...) E
com a mesma, ou talvez até com aumentada intensidade, em conseqüência da
distancia, continuarei a sentir no meu coração tudo o que poderia ameaçar a
132
JOÃO PAULO II, L’Osservatore Romano, em 10 de Junho de 1979, p. 05
79
Polônia, e que poderia lesá-la, causar-lhe prejuízo – o que poderia significar
estagnação ou crise.
Esse impacto causado por João Paulo II diante do mundo comunista não foi
exclusividade da Polônia. William Casey, diretor da Agência Central de Inteligência
dos Estados Unidos (a CIA) se encontrou com o pontífice em Roma, no início do
governo Reagan, e entregou-lhe uma foto tirada de um satélite espião da Praça da
Vitória, Varsóvia, em 1979 na missa rezada por João Paulo II. Bernstein e Politi133
defendem a idéia de que aquela foto demonstrou que do outro lado do mundo o Papa
também era analisado. E a mesma foto ajudou a selar uma aliança secreta informal
entre a Santa Sé e o governo do presidente Ronald Reagan. Ao longo da história,
Reagan e João Paulo II se encontrariam algumas vezes até que o comunismo caísse,
primeiro na Polônia, depois na Europa Oriental e, finalmente, na própria União
Soviética. Ao longo desses anos, João Paulo II recebia informações da CIA, não
somente sobre a Polônia, mas sobre qualquer assunto que importasse ao Pontífice ou
à Santa Sé. João Paulo II foi, sem dúvidas, um fator crucial para a queda do
comunismo.
Desde quando tomara posse [Ronald Reagan], vinte meses depois de o
satélite norte-americano ter fotografado o Papa na Polônia, Casey e seu protetor,
Ronald Reagan, tinham chegado à conclusão de que havia uma possível terceira
superpotência no mundo – o quadrado de vinte quarteirões da cidade-Estado do
Vaticano – e que seu monarca, o Papa João Paulo II, tinha sob seu comando um
notável arsenal de armamento não-convencional que poderia contribuir para alterar
133
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade... p.20
80
o equilíbrio da Guerra Fria, principalmente com o apoio ostensivo e clandestino
dos Estados Unidos.134
O poder político do Papa havia aumentado tanto que Casey chegou a informá-
lo que a Polônia era a mais alta prioridade da política externa norte-americana. Para
Reagan, pouco importava se o Papa não queria o colapso do comunismo, que seus
interesses não fossem os mesmos de João Paulo II, o que importava para Reagan é
que o Pontífice poderia realizar algo que era o objetivo de suas próprias políticas
globais. A Guerra Fria agora não era mais só entre Moscou e Washington, mas agora
existia o Vaticano e Varsóvia. A Santa Sé somente assumiu que houve uma aliança
secreta com os Estados Unidos 10 anos após esta ocorrer. Bernstein e Politi135
assim
afirmam:
Uma década mais tarde, por ocasião da primeira notícia pública sobre uma
Santa Aliança entre os Estados Unidos e o Vaticano, Gorbachev (a época secretário
de Agricultura do Comitê Central) escreveria: ―Pode-se dizer que tudo que
aconteceu na Europa Oriental nos últimos anos teria sido impossível sem os
esforços do Papa e o enorme papel, inclusive o papel político, que ele
desempenhou na arena mundial‖. A essa altura, Gorbachev e Reagan tinham
deixado o cenário mundial e apenas o Papa envelhecido ficara para vociferar ante o
novo mundo que ele tinha ajudado a tornar realidade.
João Paulo II definitivamente estava tornando a atuação da Igreja cada vez
mais relevante no cenário mundial. Os Estados Unidos perceberam que o Vaticano
era um potencial ―aliado‖, pois muitos de seus interesses andavam em paralelo com
134
Idem. 135
Ibidem, p.21
81
os interesses norte-americanos. Por exemplo, na Nicarágua, em 1979, os sandinistas
derrotaram a oligarquia da família Somoza depois de 40 anos de ditadura apoiada
pelos Estados Unidos. Entretanto, surgiu no país uma linha da Igreja Católica,
denominada ―Igreja do Povo‖, influenciada por uma reflexão teológica denominada
de ―Teologia da Libertação‖, a qual seus adversários atribuíram ser simpática à ideais
marxistas. Esta corrente de pensamento não agradava aos Estados Unidos, muito
menos ao Vaticano. Por indicação de William Casey, João Paulo II foi fazer uma
visita à América Central e, dentre os países visitados, estava a Nicarágua. João Paulo
II passava uma mensagem com o intuito de encorajar a transição para a democracia
ao mesmo tempo em que procurava bloquear as forças esquerdistas que estavam
alinhadas à Cuba ou à União Soviética. Quando os sandinistas tomaram o poder, o
conflito interno da Igreja sobre a participação dos sacerdotes no governo
revolucionário, a chamada ―Igreja do Povo‖ não resistiu à ofensiva desencadeada
pelo Vaticano. Como fator político, esta Igreja progressista foi importante antes do
período revolucionário e durante este; como movimento social, nunca alcançou a
amplitude e o potencial de outros países. Sobre este assunto, Bernstein e Politi assim
registram suas observações: ―Em meio aos aplausos ininterruptos de um grande
contingente de freiras colocadas à direita do altar, João Paulo II insistiu em que, para
o bem da unidade da Igreja, era preferível para as pessoas ‗abandonar as idéias
próprias, os projetos próprios, os engajamentos próprios, mesmo que sejam bons‘‖.136
A visão de João Paulo II demonstrava que a Igreja poderia ser um fator
preponderante no cenário mundial, não apenas uma entidade episcopal e de caráter
diplomático, mas também uma força humanitária. Bernstein e Politi137
afirmam que o
Papa João Paulo II nunca se ―concentrara exclusivamente no funcionamento interno
da Igreja. Sempre vira a Igreja como um fator proeminente no mundo, não apenas
uma entidade espiritual e diplomática, mas também uma enorme força social e
humanitária‖. Para eles, a Igreja Católica educava ―mais pessoas do que qualquer
instituição não-governamental no mundo, prestava assistência a mais refugiados,
136
Ibidem, p.375 137
Ibidem, p.445
82
administrava mais hospitais, possuía mais tesouros culturais‖. João Paulo II
conseguiu um novo papel para a Igreja, principalmente nos anos 80, como
conseqüência do seu engajamento com causas sociais, vendo consolidar-se este
aspecto que deixou um caráter universal para o papado. Daí mais uma observação de
Bernstein e Politi:
O fim do comunismo marcou o começo do Terceiro Ato do Pontificado de
João Paulo II. O Primeiro Ato tinha sido de orgulhosa confirmação de sua
mensagem cristã depois de anos de incerteza: - Abram as portas para Cristo! – O
Segundo Ato, nos anos 80, viu a consolidação de um papel universal para o Papado
e a batalha vitoriosa pela libertação da Polônia do totalitarismo soviético.138
A queda do comunismo foi sem dúvidas o fato de maior repercussão para João
Paulo II e para a Igreja. Embora este Papa tenha se tornado um dos heróis da queda
do comunismo, seu ideal de evangelização se dissipou junto com o final do
comunismo. Patrick Michel139
afirma que participação da Igreja no episódio da queda
do comunismo teve dois erros: o primeiro sobre o conteúdo dos direitos do homem,
as partes que constituíram a plataforma que ocasionou a queda do comunismo
abraçaram a causa, porém sem definir quais seriam tais direitos. Segundo o autor,
para o Papa a vitória sobre o comunismo era a vitória da religião sobre a origem do
comunismo ateu, a modernidade.
Após a queda do comunismo, as sociedades que até então estavam sob o
controle comunista adotaram todos os mesmos defeitos das sociedades ocidentais.
Não existe mais um ―adversário comum‖ entre o Papa, os operários poloneses e os
Estados Unidos. O Papa eslavo que triunfara sobre o comunismo fazia o Vaticano
crer que este fato seria um aspecto importante na reconquista do mundo. Segundo
138
Ibidem, p.494 139
LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.352
83
Michel140
, essa visão por parte de João Paulo II o leva a cometer mais três erros.
Segundo o autor, João Paulo II acredita, ou finge acreditar, e leva a acreditar que o
comunismo seria uma versão bárbara da modernidade; o esquema no Leste Europeu
era uma luta entre religião e política, quando de fato era uma ―guerra de religiões‖; é
possível ser parte integrante de um conflito e ficar fora dele, pois o simples fato de
criticar a modernidade era suficiente para criar um espaço não regido por ela. Assim,
a Polônia, terra natal de João Paulo II, não é mais a favor dos ideais da Igreja, mas
contra eles na medida em que caminha para a democracia.
Para Michel141
, João Paulo II encontra dificuldade em afirmar um poder
espiritual por conta da individualização da fé, além do que afirmar um poder religioso
esbarra nessa desinstitucionalização da fé. A questão da democracia também é um
grande empecilho para o pensamento de João Paulo II. Afirmar uma hierarquia como
é a organização católica, vai ao encontro do consenso sobre a democracia, a recusa do
autoritarismo. Porém, a Igreja reafirma sua universalidade como uma permanência
em oposição à mudança. Entretanto, nos dias de hoje, o universal deixou de ser
plausível, assim, questiona o autor, ―o que sobra para Igreja então‖?
Michel142
afirma que ―todos que se exprimem publicamente expõem-se à
contradição‖. Além do mais, ocorreu um ―esgotamento do monopólio de gestão do
capital simbólico‖. A saída para esta condição que se deu no papado de João Paulo II
foi a reafirmação de valores humanos e morais, valores que nenhuma maioria ou
nenhum Estado poderá criar, modificar ou destruir. Em tempos onde o religioso é
individualizado e desinstitucionalizado, a questão do social, principalmente vinculado
com a paz, surgiu como um destes valores reafirmados durante este papado. No
universo da mobilidade o que conta não é a verdade absoluta, mas a autenticidade.
Assim, João Paulo II faz uma adaptação do discurso católico. Para Michel, a
democracia tem o respeito do Pontífice, mas tem também sua preocupação em
relação à sua ―saúde‖. É a recusa da democracia de se apresentar como árbitro da
verdade que legitima o pensamento do Papa.
140
Idem, p.355 141
LUNEAU, René e MICHEL, Patrik (orgs.). Nem todos... p.360 142
Idem, p.361
84
Essa é a situação da Igreja da qual João Paulo II foi peça chave para atingir
visibilidade e o prestígio que se moldaram no decorrer de seu papado. A Igreja chama
para si um papel humanitário que se torna o cerne para as mediações e intervenções
que fez ao longo desses anos. O carisma, a liderança e ao mesmo tempo a diplomacia
que exerceu, lhe deram uma grande bagagem e experiência em questões
internacionais. Claro que nem em todas as questões João Paulo II conseguiu seus
objetivos, como, por exemplo, em 1991 quando George Bush decidiu lançar a
operação ―Tempestade no Deserto‖, não dando a menor atenção aos apelos do Papa,
cobrindo-o com expressões de apreço e depois o ignorando, João Paulo II tornou-se
uma espécie de símbolo da paz. Ele mesmo abraçou a responsabilidade por questões
que envolvesse a paz em qualquer parte do mundo em que pudesse contribuir. É
como se Karol Wojtyla tivesse incorporado João Paulo II rapidamente, ter percebido
a importância de um Papa e de cada decisão que tomaria daqui por diante.
Conclusão
João Paulo II foi um dos protagonistas do cenário mundial no final do século
XX e marcou com seu carisma e personalidade os rumos da Igreja Católica. Oriundo
do Leste Europeu se mostrou um crítico incisivo dos totalitarismos e é considerado
por historiadores e cientistas políticos como um dos principais fatores que
desencadearam a queda do comunismo no final dos anos 80. Conseguiu apoio durante
esses anos 80 da política dos Estados Unidos, liderada por Ronald Reagan, um
convicto anticomunista.
Após a queda do muro de Berlim e o resultado da luta contra o comunismo se
mostrar desfavorável para as pretensões da Igreja, João Paulo II passou a denunciar
com firmeza os excessos do capitalismo, suas injustiças sociais, a solicitar o perdão
da dívida externa dos países pobres e também criticou o perigo de que uma só
potência dominasse o cenário mundial.
85
João Paulo II foi uma voz de peso nos momentos de investidas militares,
principalmente por parte dos Estados Unidos, que ocorreram durante o seu papado.
Ele pediu com todas suas forças que não se desencadeassem guerras imprevisíveis,
cujas conseqüências eram desconhecidas e que podia desembocar numa guerra de
religiões. Em inúmeras ocasiões públicas, ele discursou pela paz no Oriente Médio,
fez referência às guerras na África e aos conflitos na América Latina.
A condenação à guerra foi explícita ao longo de seu pontificado, tanto que
chegou a figurar entre outros para o Prêmio Nobel da Paz. Além de seus
pronunciamentos, o Papa cumpriu gestos históricos e simbólicos sem precedentes e
de grande impacto político e moral.
Foi o primeiro pontífice da história que entrou em uma sinagoga, em Roma, e a
ter estabelecido relações diplomáticas com o Estado de Israel. Foi também o primeiro
chefe da Igreja católica que entrou em uma mesquita e que pediu perdão em nome da
Igreja por todos os erros cometidos pelos católicos durante as cruzadas, as guerras de
religião, o tráfico de negros e contra os judeus. Foi também o primeiro pontífice que
visitou Cuba, o último reduto do comunismo no Ocidente, em janeiro de 1998, e a
aparecer em público com Fidel Castro. Esteve também no palácio presidencial
chileno com o ditador Augusto Pinochet, suscitando a desaprovação de muitos
católicos, que interpretaram o gesto como uma benção ao regime militar.
Esforçou-se também nas relações inter-religiosas. Apesar de seus empenhos a
favor da unidade, não conseguiu aproximar os ortodoxos nem cumpriu sua desejada
viagem a Moscou, para visitar o patriarca Alexis II. O Papa, que mobilizou as
multidões, sobretudo os jovens, durante suas inúmeras viagens pelo mundo e em
particular na América Latina, não pôde deter, entretanto, a redução das vocações
religiosas e inclusive o avanço das seitas protestantes nesse continente, onde vive a
metade dos católicos.
Houve também o lado negativo, se assim pode-se dizer, de seu papado.
Internamente, foi um conservador para o Vaticano. Condenou firmemente os métodos
anticoncepcionais e o uso do preservativo para evitar a AIDS. Foi defensor de
rigorosos princípios em matéria de moral sexual e família. Tais posturas acabaram
86
por ―desencantar‖ muitos católicos imersos na modernidade, pois paira uma sensação
de incompreensão diante da evolução dos costumes no mundo moderno por parte do
Vaticano.
Um papado tão rico de fatos marcantes e simbolismos certamente influenciou
as práticas retóricas de João Paulo II e da Igreja Católica naquele período.
Certamente os atos retóricos do início do papado, nos anos 70, no final do papado e
começo do século XXI, possuem significativas mudanças em sua forma. No âmbito
da doutrina católica dificilmente mudanças ocorreram, porém politicamente a prática
retórica certamente mudou. E é isto que será exposto no próximo capítulo desta
dissertação.
87
Capítulo III
A retórica da Igreja Católica no papado de João Paulo II durante a mediação no
canal de Beagle (1979) e invasão do Iraque (2003)
“A retórica ressurge sempre em período de crise”
Michel Meyer
Introdução
Neste capítulo serão analisados, à luz da teoria de Tereza Halliday (Atos
Retóricos – mensagens estratégicas de políticos e igrejas. Summus, 1988), os atos
retóricos referentes ao período do papado de João Paulo II. Os atos retóricos
escolhidos foram: o discurso relativo à mediação no Canal de Beagle no início dos
anos 80, quando a Santa Sé foi convidada a mediar o conflito entre Chile e Argentina,
conflito que quase terminou em guerra no final dos anos 1970. Será mostrado como a
retórica se mostrou adequada na mediação entre Chile e Argentina em disputas
territoriais no Cone Sul; o segundo ato retórico a ser analisado se deu durante a
invasão norte-americana ao Iraque no ano de 2003. Neste fato, a Santa Sé tentou
evitar que tal invasão ocorresse por meio da prática retórica e diplomática. O
interessante é que este fato se deu já no final do papado de João Paulo II, pois ele
faleceu dois anos após o conflito, e que o conflito envolvia duas nações não-católicas;
com forte influência protestante presente nos Estados Unidos, e o Iraque, onde
majoritariamente o islamismo predomina. Foram dois momentos distintos do papado.
Um deles situado bem no início e o outro já no final. Porém, ambos os eventos foram
relevantes para a Santa Sé e neles a retórica pode ser perfeitamente separada para
uma análise do discurso católico.
88
3.1 - O Caso do Canal de Beagle
O caso do Canal de Beagle ganhou notoriedade entre os anos 1970 e início dos
anos 1980 quando dois países vizinhos quase entraram em guerra por questões de
limites e soberania.
3.1.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica no Canal de Beagle
A situação retórica em questão teve sua origem no conflito pela posse do Canal
de Beagle, no extremo sul da América do Sul, nos limites entre Chile e Argentina. A
beligerância em questão era a disputa pela soberania das ilhas Picton, Lennox e
Nueva, situadas na entrada oriental do Canal de Beagle e do Cabo Horn, entre os
Oceanos Atlântico e Pacífico.
Fonte: Google Earth
89
A questão da soberania e a disputa entre Argentina e Chile sobre o canal já é
antiga. Porém, o objeto desta pesquisa é focar especificamente a mediação da Santa
Sé e a sua prática retórica. Entretanto, para melhor contextualizar o conflito, um
bosquejo histórico sobre os antigos tratados, negociações e questões de soberania se
faz necessário. Retomaremos aqui algumas informações contidas no texto de Salmo
Caetano de Souza em seu livro Mediação da Santa Sé na questão do Canal de
Beagle, publicado no ano de 2008.
Os limites entre a Argentina e o Chile foram estabelecidos no século XIX, onde
foi levada em conta a linha natural que é formada pela Cordilheira dos Andes, a qual
se estende por aproximadamente cinco mil quilômetros. Entre 1822 e 1833, os
chilenos estabeleceram como seu limite sul o Cabo Horn, o ponto mais antártico das
Américas. Desde 1840 o país começou a utilizar a zona do Estreito de Magalhães, um
canal que liga os Oceanos Atlântico e Pacífico, local que foi fundamental para a
navegação internacional da época porque livrava as embarcações de cruzarem a
temida Passagem de Drake, entre o Cabo Horn e a Antártida, famosa por ser o local
com as piores condições meteorológicas marítimas do mundo. Em 1856 foram
instalados assentamentos militares chilenos em Punta Arenas, cidade próxima ao
Estreito de Magalhães, ocasionando um mal-estar nas relações com a Argentina, que
afirmava serem suas estas possessões. Neste mesmo ano, ambos os países firmaram
um Tratado de Paz, Amizade, Comércio e Navegação, onde se aplicava o princípio de
que a cada Estado corresponderiam os territórios efetivamente ocupados por eles em
1810. Em caso de conflito, eles seriam resolvidos pela via diplomática ou arbitral.
Nesta época, a região da Patagônia era somente ocupada por pequenas populações
indígenas.
Os primeiros conflitos que se tem conhecimento na região datam do ano de
1888, sete anos após a assinatura do Tratado de Limites, no momento em que um
mapa argentino surge com as ilhas em questão (Picton, Lennox e Nueva ) sob a
soberania argentina. Tal tratado leva em consideração conceitos de Direito
Internacional, como o Uti possidetis iure – ―como possuía, possuirás‖. Embora as
ilhas possuam pequenas extensões, seu valor estratégico por estar entre os oceanos
90
Atlântico e Pacífico é muito grande, o que ocasionou um longo conflito entre ambos
os Estados no final do século XIX, e durante grande parte do século XX, pois a cada
novo Tratado assinado, uma série de contestações e interpretações se seguia. Isso
provocou crises diplomáticas e aumento da tensão militar na região.
No ano de 1959, depois de uma série de incidentes, foi consolidada a
declaração dos Cerrillos, onde os governantes dos dois países se comprometeram a
buscar uma solução por meio da arbitragem. Em março de 1960, os países
concordaram que a Ilha Lennox seria de soberania do Chile e que se submeteria a
decisão inapelável da Corte de Haia a questão sobre a soberania das Ilhas Picton e
Nueva. Porém, este acordo não foi ratificado por nenhum dos dois países.
No ano 1970, a fim de resolver a questão pacificamente, nomeou-se como
árbitra a Rainha Elizabeth II da Grã-Bretanha, quem em 1977 considerou como
chilena a posse das três ilhas em litígio, pois eram vistas como uma unidade. Restou à
Argentina a posse da Ilha Becasses e a livre navegação para o acesso ao Ushuaia.
Porém, para os argentinos, através da projeção territorial, a posse por parte chilena
destas ilhas atrapalharia suas futuras reivindicações e seus direitos na divisão da
Antártida. Assim, a decisão favorecendo a República do Chile não foi bem recebida
pelos argentinos, que declararam no início do ano seguinte inválido o laudo arbitral e
se mostraram dispostos a tomar posse das ilhas pelo uso da força.
3.1.2 - O Problema Retórico no Canal de Beagle
O problema retórico em questão é conhecido como ―Conflito de Beagle‖, um
desacordo entre a Argentina e o Chile sobre a entrada oriental do canal de Beagle, o
que inevitavelmente afetava a soberania das ilhas ali localizadas e seus espaços
marítimos adjacentes. O conflito chegou a seu ponto culminante quando as Forças
Armadas da Argentina se dispuseram a ocupar as ilhas pelo uso da força.
91
Segundo Souza143
, a mediação da Santa Sé, na figura de João Paulo II, foi
formalmente assinada em Montevidéu no dia 8 de janeiro de 1979. Para o autor, o
esforço bilateral da resolução do conflito perdia terreno para um conflito bélico. A
mediação do Papa foi aceita por unanimidade em ambos os governos, pois a opinião
pública nos dois países era favorável à resolução do conflito. Houve um grande
alistamento nas Forças Armadas Argentinas, enquanto o Chile já procurava a
Organização dos Estados da América (OEA) a fim de solicitar intervenção, pois as
relações diplomáticas entre ambos os Estados estavam à beira da ruptura. Souza
afirma que ―faltavam apenas algumas horas para o desfecho do conflito, motivo pelo
qual surgia a decisão do Santo Padre de intervir no litígio‖. Assim, algumas
autoridades da Argentina foram convencidas e enviaram a contra-ordem dos ataques
que, naquele momento, já havia até se iniciado, porém sem grandes danos.
Bernstein e Politi defendem que para o papado, e até pessoalmente para João
Paulo II, a mediação ia além da resolução da controvérsia dos países católicos da
América Latina. Eles afirmam que o conflito em si não era o objeto principal desta
questão, mas a mediação se mostrara um sinal de novos tempos para a Igreja.
Segundo os autores, embora alguns críticos fossem contra tal mediação por se tratar
de ditaduras militares, João Paulo II sabia que uma empreitada bem sucedida era o
próximo passo para dar seguimento ao seu pontificado.
João Paulo II apoiava a ação humanitária do cardeal [Raúl Henríquez Silva144
],
porém achava que, quando a Santa Sé estava envolvida em iniciativas pela paz e a
justiça, tinha que tratar até com os regimes mais antipáticos. A questão do canal de
Beagle, em função da qual chilenos e argentinos tinham quase chegado aos tapas
algumas semanas antes, era importante para o Vaticano porque, depois de um
século de insignificância diplomática, o Papado estava uma vez mais sendo
chamado a desempenhar um papel em negociações internacionais. (...) Do ponto de
vista territorial, a disputa pelo canal de Beagle era um assunto periférico; para João
143
SOUZA, Ibid. p.9 144
Raúl Henríquez Silva era arcebispo de Santiago, opositor de Pinochet e havia instigado a fundação do
Vicariato da Solidariedade para auxiliar as vítimas do regime e defender os direitos humanos.
92
Paulo II o que contava era o sinal que emanava disso – a Igreja tinha que fazer sua
voz ser ouvida na cena internacional.145
A mediação da Santa Sé tornou-se, assim, um ato diplomático. João Paulo II é
o porta-voz que fala ou indica quem pode falar em nome da instituição Igreja
Católica, no caso, representada na figura da Santa Sé. O cardeal Antonio Samoré foi
o encarregado da questão, pois foi figura presente na região do conflito.
A eminência de um conflito militar aberto finalmente forçou os governos,
em janeiro de 1979, a assinarem o Tratado de Montevidéu, pelo qual eles aceitaram
a mediação da Santa Sé na pessoa do cardeal Antonio Samoré, representante
especial do Papa João Paulo II. Os governos congratularam-se com a oferta de
assistência intermediária na solução dos problemas na região sul e prometeram
‗considerar qualquer idéia a ser expressa pela Santa Sé‘.146
3.1.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico no Canal de Beagle
Segundo Souza147
, quando o Papa aceitou ser o mediador da questão e escolheu
o Cardeal Antônio Samoré, pediu a ambos os países envolvidos no conflito que
enviassem representantes junto ao processo mediador. O pontífice solicitou que
fossem pessoas ―entendidas nos aspectos técnicos da disputa, mas que fossem
também hábeis negociadoras, com imaginação e boa margem de independência‖. A
partir desta solicitação, pressupõe-se que esta solicitação corrobore com a adoção da
via diplomática como meio de resolução da beligerância, vez que o processo de
mediação seria com negociadores interados da situação de litígio e não simplesmente
representantes de cada nação.
145
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Sua Santidade João Paulo II e a História Oculta de Nosso
Tempo. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996. P.203 146
Johnston, Douglas M. The Theory and history of the ocean boundary-making. Quebec, Canadá. Mc-
Gill-Queen‘s University Press. 1988. p.194 Tradução livre. 147
SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.158
93
Um fato curioso é que, ainda segundo Souza148
, o representante que o governo
chileno desejava enviar deveria ser de ―idade madura, católico e possuir ampla
experiência diplomática‖. Entretanto, o representante escolhido realmente foi de
idade madura e possuía ampla experiência diplomática, porém não era católico, era
judeu. Na Santa Sé, seu nome foi muito bem visto mesmo não sendo católico, mesmo
porque em um processo de mediação internacional não poderia haver diferenciações
por causa de credos ou raças, embora seja praticamente impossível dissociar a figura
do mediador da figura do representante chefe da Igreja Católica Romana, em
negociações com um representante judeu do governo chileno.
Um processo de mediação caracteriza-se, segundo Muszkat149
, como um
―procedimento que traz em si a potencialidade de um novo compromisso político
capaz de reduzir a desigualdade e a violência‖. A autora afirma ainda que seu
objetivo é ―buscar acordos entre pessoas em litígio por meio da transformação da
dinâmica adversarial, comum no tratamento de conflitos, em uma dinâmica
cooperativa, improvável neste contexto‖.150
Necessariamente, a mediação consiste no
envolvimento imparcial de um terceiro membro: a figura do mediador. Ele tem por
função assistir e conduzir duas ou mais partes envolvidas no litígio a identificarem os
pontos de conflito e, assim, desenvolver de forma mútua propostas que tenham por
finalidade encerrar o conflito. O mediador, ou melhor, o representante de quem foi
escolhido a mediar (no caso a Santa Sé), participa de reuniões com as partes
conflitantes, apresenta propostas sobre a questão, coordena a discussão, facilitando a
comunicação entre eles. Em casos de impasse, sua função é intervir para auxiliar uma
fácil compreensão e reflexão dos assuntos e propostas. O mediador também não
impõe às partes uma solução ou sentença, sugestões e conselhos se enquadram
melhor nesta situação.
148
Ibid. p.159 149
MUSZKAT, Malvina Ester. Guia prático de mediação de conflitos. São Paulo, Summus. 2008. p.09 150
Ibid. p.13
94
Souza151
afirma ainda que a mediação é um método diplomático de solução de
controvérsia. Sua natureza é política e comporta todo tipo de argumentação além da
argumentação jurídica. Para que aconteça a mediação, é necessário um acordo prévio
entre as partes, na forma de um pedido formal de um mediador, o que demonstra uma
predisposição de ambas as partes em solucionar o litígio. Assim, continua o autor, a
―essência da mediação consiste em aproximar possíveis divergentes e propostas‖.
O processo de mediação no Caso de Beagle começou, segundo Souza152
, com
viagens do cardeal Samoré entre as capitais da Argentina e do Chile para recolher
informações e se interar e colocar em andamento as posições de ambas as partes. O
cardeal também tinha que apresentar idéias e projetos para ambos os Estados. A fim
de reforçar a imagem de imparcialidade, quando o cardeal assistia a algum ato
religioso em um país, assistia também no outro. Souza afirma ainda que o mais difícil
para o Cardeal foi ―desbancar a desconfiança entre as partes, infundindo nelas a
virtude contrária, ou seja, a confiança na gestão do Papa e a credibilidade entre Chile
e Argentina‖.
Em maio de 1979 chegam a Roma as duas missões dos dois países para se
iniciar o processo de mediação da Santa Sé. A primeira fase da mediação foi entre
maio e junho deste ano. Embora o processo de mediação começasse apenas em maio,
a prática retórica de João Paulo II se iniciou no momento do Ângelus153
de primeiro
de janeiro daquele ano. O interessante é que em um momento de expressão de fé para
os católicos, o Papa se expressa sobre um conflito acerca de soberania estatal sem
fazer menção a qualquer ato político no conflito.
151
SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.179 152
Ibid. p.188 153
Ângelus é o momento que corresponde às 06hs, 12hs ou 18hs do dia, no qual os católicos relembram o
momento em que o anjo Gabriel anunciou a Maria a concepção de Jesus Cristo. Trata-se de uma hora
celebrada diariamente através de preces e orações. O Papa tem por hábito fazer seu pronunciamento também
nesses momentos.
95
(...)y a la más reciente controversia surgida entre Argentina y Chile sobre la
Isla del Canal de Beagle. Las Misiones enviadas por la Santa Sede han tenido, en
uno como en otro caso, una cordial acogida, tanto por parte de las autoridades,
como por parte de la población. Es necesario ahora que la plegaria de todos
obtenga de Dios abundantes dones de clarividencia, equilibrio y fortaleza para que
puedan recorrer los caminos de la paz, y se alcance cuanto antes la meta de una
solución justa y honrosa.154
Segundo Souza155
, em setembro de 1979 o Papa recebeu novamente as duas
delegações, em audiência privada em sua biblioteca, a fim de estabelecer um método
de trabalho na mediação. Novamente em um momento do Ângelus João Paulo II faz
menção ao conflito entre os países. Aqui, o Pontífice já mostra um discurso mais
aprimorado, fazendo menção indireta até às ditaduras militares, no momento em que
toca no tema das pessoas desaparecidas. Diplomaticamente, através de construções
retóricas, temas que não possuíam ligação com a religião são mencionadas em um
momento de expressão de fé.
Como es bien sabido, Argentina y Chile tienen que resolver un problema,
que los divide, sobre la zona austral de sus territorios. Desde los primeros meses de
este año he aceptado la invitación a asumir la tarea de mediación. También los
obispos se están afanando para crear un clima de distensión en el que sea más fácil
superar la controversia. En la oración del Angelus de hoy, además de la alegría,
debemos hacernos eco también de las preocupaciones, inquietudes y sufrimientos
que no faltan en el mundo de hoy. No podemos olvidarnos cuando nos ponemos
ante Dios, nuestro Padre, y cuando nos dirigimos a la Madre de Cristo y Madre de
todos los hombres.
154
O discurso do Angelus de 1º de Janeiro de 1979 na íntegra encontra-se disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/angelus/1979/documents/hf_jp-
ii_ang_19790101_sp.html>. Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 155
SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... p.188
96
Así, con ocasión de los encuentros con peregrinos y obispos de América
Latina, en especial de Argentina y Chile, se recuerda frecuentemente el drama de
las personas perdidas o desaparecidas.
Roguemos para que el Señor conforte a cuantos no tiene ya la esperanza de
volver a abrazar a sus seres queridos. Compartamos plenamente su dolor y no
perdamos la confianza de que los problemas tan dolorosos sean esclarecidos para
bien no sólo de los familiares interesados, sino también para el bien y la paz interna
de esas comunidades tan queridas para nosotros.
Pidamos que se acelere la anunciada definición de las posiciones de los
encarcelados y se mantenga un compromiso riguroso de tutelar, en cada
circunstancia en que se requiere, la observancia de las leyes, el respeto a la persona
física y moral, incluso de los culpables o indiciados de infracciones.156
Até o momento, as alocuções sobre o assunto proferidas por João Paulo II
foram em ocasiões especificamente religiosas. A proposta papal para a solução do
conflito foi feita em dezembro de 1980, diretamente às delegações da Argentina e do
Chile presentes em Roma. Diferentes aspectos e temas aparecem nesta construção
retórica que caminha entre ―vontade divina‖ e ―guerra entre os homens‖. João Paulo
atribui em diversos momentos do discurso a Deus o fato de que os países nunca
estiveram em guerra.
É verdade que, desde o momento em que os vossos povos adquiriram a
independência no concerto internacional, não faltaram divergências entre eles. É
verdade que nem sempre se verificou, nas relações mútuas, uma completa e
luminosa «tranquilitas ordinis», expressão concisa consagrada por Santo Agostinho
para definir de maneira insuperável a paz.
Mas também é verdade — e salientei-o em setembro do ano passado perante
membros destas representações governamentais que «é belo e consolador constatar
156
Este discurso do Angelus de 28 de Outubro de 1979 encontra-se disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/angelus/1979/documents/hf_jp-
ii_ang_19791028_sp.html>. Acessa no dia 11 de Janeiro de 2011.
97
que nunca houve um conflito bélico entre os dois Países». Trata-se de um facto
singular, talvez único na história das relações entre as Nações limítrofes. Quase me
atrevia a dizer que vejo nisto especial assistência da Providência de Deus
misericordioso.
Perante este facto, penso que ninguém poderá encontrar infundada ou
carecida de lógica esta consideração: se Deus assistiu durante este tempo com tanto
carinho ao desenvolvimento das relações entre as vossas duas Nações, como
poderíamos eximir-nos nós a fazer tudo o que está nas nossas mãos para não perder
esse dom inestimável da paz, privilégio da vossa história comum?157
Analisando retoricamente este trecho, João Paulo II inicia o seu discurso com
uma alegoria. Segundo Olivier Reboul158
, alegoria é ―uma descrição ou uma narrativa
que enuncia realidades conhecidas, concretas, para comunicar metaforicamente uma
verdade abstrata‖. No primeiro parágrafo, João Paulo II trabalha com a questão da
divergência entre os países no âmbito internacional e encerra focando na busca de
uma paz utópica de Santo Agostinho. Já no segundo parágrafo, o pontífice utiliza-se
do exemplo como argumento. Para Reboul159
, o exemplo em retórica é ―uma indução
dialética, que vai de fato ao fato, passando pela regra subentendida‖, ou seja, procura-
se provar um fato futuro com uma ―regra‖ estabelecida a partir dos fatos passados. É
o que o Papa busca fazer ao citar que as nações limítrofes nunca estiveram em guerra.
No último parágrafo, João Paulo utiliza o argumento de autoridade: Deus. Reboul160
afirma que o argumento de autoridade ―justifica uma afirmação baseando-se no valor
de seu autor‖. Para ele, esta autoridade ―baseia-se na moralidade‖, enquanto que em
casos religiosos ―baseia-se na revelação‖. Assim, através de uma alegoria, um
exemplo e um argumento de autoridade, o Papa faz claramente uma construção
retórica neste discurso, argumentando com três figuras retóricas distintas para pousar
157
Discurso do Papa João Paulo II às delegações dos governos da Argentina e do Chile em 12 de Dezembro
de 1980. Disponível em:
<http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1980/december/documents/hf_jp-
ii_spe_19801212_argentina-cile_po.html > Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 158
REBOUL, Olivier. Introdução... p.130 159
Ibid. p.154 160
Ibid. p.177
98
sobre o nós - nós no caso eles, o governo chileno e argentino - a responsabilidade de
buscar a paz. Interessante que João Paulo II não fala explicitamente sobre o conflito,
mas exalta muito a questão da paz – algo que posteriormente seria uma espécie de
―carro-chefe‖ em seu papado.
Se desta forma a controvérsia sobre a zona austral viesse a servir para que os
desejos profundos dos dois povos se cristalizassem em tais compromissos, parece
ao Mediador que nada de melhor se poderia desejar para essa zona do que
convertê-la em símbolo e prova irrefutável de nova realidade; o que na minha
opinião, se conseguiria declarando-a «Zona de paz», zona em cujo âmbito a
Argentina e o Chile procurarão daqui por diante corroborar a sua decisão de
convivência fraterna, abandonando todo o tipo de medidas ou atitudes que possam
parecer menos adequadas para o desenvolvimento das suas relações amistosas.161
Neste trecho, novamente o papa utiliza o exemplo como argumento.
Entretanto, este exemplo está atrelado a uma condição, se desta forma..., o que não
descaracteriza o exemplo em si. A paz que tanto exalta em seu discurso junto de suas
menções religiosas, caracteriza, segundo Reboul162
, um exórdio, figura retórica que se
encontra no início do discurso, ―que visa a tornar o auditório dócil, atento e
benevolente‖. Ao exaltar a paz, ele cria um acordo com o auditório, pois ambas as
delegações, assim como a opinião pública dos países, desejavam resolver a
controvérsia de modo pacífico. Este acordo não significa o acordo pela solicitação da
mediação, mas um acordo de valores, do verossímil entre as partes. Então, após estas
construções retóricas, ele efetivamente entra na questão do litígio.
Neste contexto, sou da opinião que possíveis limitações das aspirações
naturais, compreensíveis e respeitáveis, relativas àquela zona geográfica,
161
Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 162
REBOUL, Olivier. Introdução... p.248
99
dificilmente poderiam alcançar uma entidade tal que justificassem validamente a
não aceitação de sugestões e conselhos destinados à solução da controvérsia e o
consequente fracasso dessa integração, que já desde há tempo é objecto de
negociações e aspirações muito lógicas. Por outras palavras: se a solução deste
problema é destinada a abrir o caminho para um esplêndido desenvolvimento em
benefício das duas Nações, vale bem a pena consagrar a essa solução a melhor boa
vontade: as consequências vantajosas fariam, sem dúvida, esquecer todo o resto.163
Ao adentrar no litígio em si, primeiro João Paulo II expõe sua opinião sobre o
conflito, sustentando seu raciocínio com um argumento pragmático, o que, segundo
Reboul164
, é o argumento no qual se ―permite apreciar um ato ou um acontecimento
em função de suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis‖. O Papa não deixa
também de exaltar as partes envolvidas e de valorizar o peso da opinião pública, algo
que também viria a tornar-se um ponto nevrálgico em seu papado.
Tenho a convicção de que toda a opinião pública dos vossos Países — tão
interessada neste problema — não deixará de ajudar e amparar aqueles a quem por
razão das suas altas missões, corresponde tomar decisões adequadas nas próximas
semanas. Por meu lado, considero verdadeira obrigação dar testemunho da
diligência e da firmeza com que as Autoridades de ambas as nações, e todos os que
aqui as representaram, expuseram e defenderam o que consideravam patrimônio
das suas respectivas pátrias, com documentação abundantíssima e argumentos
muito variados, explicados em centenas de conversações. Creio que ninguém —
agora ou no futuro — deverá sentir-se autorizado a acusá-los de negligência ou
incapacidade na defesa dos legítimos interesses nacionais, apesar de a aceitação,
agora, das minhas sugestões e conselhos poder comportar modificações nas
posições por eles mantidas. Fique sempre tranquila a sua consciência depois de
terem cumprido cuidadosamente o próprio dever.165
163
Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 164
REBOUL, Olivier. Introdução... p.173 165
Discurso do Papa João Paulo II às delegações... Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011.
100
Aqui João Paulo II inicia seu discurso com um entimenta, um ―silogismo
rigoroso, mas que se baseia em premissas apenas prováveis (endoxa) que podem ficar
implícitas‖.166
Tal figura fica caracterizada ao fazer alusão à opinião pública dos
países: Tenho a convicção de que toda a opinião pública dos vossos Países... Ao
discursar todo um parágrafo sobre os esforços dos países envolvidos, o Papa cria um
argumento de superação em sua construção retórica. Para Reboul167
, neste tipo de
argumentação a ―finalidade desempenha papel motor‖, na medida em que o
―obstáculo transforma-se então num meio de passar para um estágio superior‖. O
esforço dos países (o obstáculo) foi necessário para que se chegasse à resolução da
beligerância. Esta primeira construção retórica de João Paulo II do ano de 1980
acerca do conflito parece bem articulada na medida em que mescla menções
religiosas com menções políticas, propõe a paz e exalta os envolvidos. É uma
construção retórica, que visa persuadir, claramente feito na forma de um discurso
diplomático.
Segundo Souza168
, o conteúdo da proposta do mediador deveria permanecer
confidencial até a aprovação por ambos os governos. João Paulo havia solicitado que
ambos os governos deveriam expressar sua posição antes do dia 8 de janeiro de 1981.
A proposta papal de mediação concedia as ilhas em disputa ao Chile, enquanto a zona
marítima em questão seria uma zona econômica compartilhada por Chile e Argentina.
Em 25 de dezembro de 1980, o regime militar que estava no poder no Chile
professou sua aceitação à proposta papal. Já o regime militar argentino excedeu o
prazo dado pelo Papa. A resposta então veio em forma de uma declaração pública em
25 de março de 1981 onde o governo argentino solicitou mais precisões e detalhes
sobre a proposta mediadora. Assim, havia uma negativa por parte da Argentina.
A negativa por parte da Argentina se dava em torno da soberania das ilhas e
também da zona marítima em questão. Em 1982, João Paulo II recebe novamente as
delegações dos países para uma nova tentativa de conciliação. Neste mesmo ano, a 166
REBOUL, Olivier. Introdução... p.247 167
Ibid. p.175 168
SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação...
101
Argentina entra em guerra com a Inglaterra pela soberania das ilhas Malvinas. Era
mais um empecilho no processo de mediação. Diplomaticamente, João Paulo II
novamente faz menção a outro assunto além do Beagle (as Malvinas), porém, de
maneira branda, evitando assim acirrar os ânimos de mais uma beligerância. É
novamente um exórdio.
Excelentísimos Señores Subsecretario y Embajadores, y demás miembros de
las distinguidas Delegaciones acreditadas para el desarrollo de los trabajos de la
Mediación,
Las preocupaciones de cada día y en especial de las últimas semanas por el
grave conflicto entre una de vuestras Naciones y otra grande y no menos querida,
no me han hecho olvidar el compromiso asumido, hace ya más de tres años, de
ayudar vuestros Países a encontrar la solución al diferendo en la zona austral.
A propósito de dicho conflicto, que ha tenido y sigue teniendo los ánimos en
suspenso ante el temor de un lamentable enfrentamiento bélico, me he expresado
repetidamente y en público durante los últimos veinte días, manifestando el deseo
vivo —que ahora renuevo— de que se encuentre, gracias a la buena voluntad de
ambas Partes, una solución satisfactoria basada en la justicia y en el derecho
internacional, que excluya el recurso a la fuerza.169
Este discurso de João Paulo II, do ano de 1982, segue as mesmas linhas de
pensamento do discurso de 1980, exalta a paz, opinião pública e o fato de que ambos
os países nunca estiveram em guerra. Entre 1982 e 1984, ano em que definitivamente
a controvérsia seria resolvida, a Argentina não só perde a guerra, mas também a
guerra das Malvinas trouxe grandes conseqüências internas e externas ao país. Assim,
assinado em 1984, o Tratado de Paz e Amizade entre Argentina e Chile solucionou
definitivamente todos os problemas limítrofes nas ilhas e nas águas do sul dos países.
169
Audiência do santo padre João Paulo II às delegações de Argentina e Chile em 23 de Abril de 1982.
Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/speeches/1982/april/documents/hf_jp-
ii_spe_19820423_argentina-cile_sp.html> Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011.
102
O tratado incluía a delimitação marítima, um procedimento para a solução de
controvérsias, estipulava direitos de navegação e acertava de vez os limites no
estreito de Magalhães. A proposta papal é aceita e, curiosamente, embasada no
mesmo Laudo Arbitral de 1977, o qual a Argentina havia recusado. Segundo
Souza170
, o intercâmbio de direitos de navegação e a estabilidade do pacto entre as
nações foram benéficos para as relações entre ambos os países e favoreceu o
desenvolvimento da região. Tais avanços pareciam impossíveis no ano 1978.
Na redação da proposta de paz nos Relatórios de Arbitragem Internacionais171
da ONU, há o laudo arbitral de 1977. Na parte do relatório onde efetivamente consta
a mediação da Santa Sé, existe um prefácio de João Paulo II. Este prefácio é a
reprodução na íntegra de seu discurso aos membros das delegações da Argentina e do
Chile, feito no Vaticano em 1980. Em seguida, há um tratado de paz e amizade
assinado entre os países. Na primeira linha do tratado consta: ―em nome de Deus o
Todo-Poderoso, o Governo da República do Chile e o Governo da República da
Argentina‖.
Nesse mesmo tratado, ambos os países se comprometem a resolverem de forma
pacífica os futuros litígios que, porventura, possam vir a surgir, além de se
comprometerem também à cooperação econômica. Interessante é que em um
documento oficial há, logo no exórdio, uma hipérbole, figura que para Reboul172
consiste em ampliar ou diminuir as coisas em excesso. Segundo o autor, uma
hipérbole exprime o inexprimível, pois o que se tem a dizer é tão grande (ou
pequeno) que não pode ser dito. A hipérbole é uma figura que tem papel fundamental
na retórica religiosa, ―visto que só ela pode designar aquilo que não se pode
denominar‖. No caso do tratado, a fundamentação do acordo está em Deus e assim se
exprime: em nome de Deus o Todo-Poderoso. Outro aspecto interessante do
documento é que essa fundamentação divina está presente logo no início. Ora, se o 170
SOUZA, Salmo Caetano de. Mediação... 171
ONU. Reports of International Arbitral Awards: Dispute between Argentina and Chile concerning the
Beagle Channel. 18 Fevereiro 1977, VOLUME XXI, pp.53-264. Disponível em:
<http://untreaty.un.org/cod/riaa/cases/vol_XXI/53-264.pdf> Acessado no dia 11 de Janeiro de 2011. 172
REBOUL, Olivier. Introdução... p.124
103
contexto secular, especialmente na diplomacia, era a praxe, logo tal menção pode ser
um indicador que, no mínimo, a secularização não é um processo homogêneo, ou
então que a Igreja Católica tentava retomar o seu papel dos tempos medievais, pois é
um conflito em que a ICAR mediava entre dois países, não entre igrejas ou grupos
religiosos.
3.1.4 - As Contingências do Discurso no Canal de Beagle
Seguindo a fórmula de análise retórica proposta por Halliday, e considerando
que todos os discursos têm suas limitações, é necessário que o retor saiba quais são as
suas. Se tratando de uma mediação a nível internacional, a Santa Sé possui
personalidade jurídica internacional para se apresentar como mediadora do caso.
Entretanto, talvez com relação à legitimidade do Papa possa haver algum
questionamento. A primeira questão a ser apontada é o processo de secularização que
se encontrava em pleno funcionamento neste período. Recém eleito Papa, João Paulo
II não poderia ainda ter noção da dimensão que o seu papado tomaria. Até então, ele
era um Papa que possuía legitimidade oriunda de sua função religiosa e política, pois,
um papa é chefe espiritual da Igreja e chefe do pequeno, mas reconhecido, Estado do
Vaticano. Era um mediador legal oriundo de um Estado confessional.
Além destes fatos, a Igreja Católica encontrava-se num período pós-Concílio
Vaticano II (1963-1965). O objetivo da convocação deste Concílio pelo Papa João
XXIII foi de buscar uma renovação para a Igreja, uma atualização de seus dogmas e
posições até então nunca discutidas e impensáveis de serem mudadas. Ou seja, a
Igreja buscava se colocar de uma forma eficiente no contexto histórico moderno.
Muitos pensavam que era o momento dela definir-se a si própria, empenhar-se nos
problemas do mundo com clareza, sabendo que era diferente do resto do globo, mas
também co-responsável pela sua salvação. Em poucas palavras, a proposta era levar a
Igreja a se atualizar no mundo e na história. O concílio encerrou-se em 1965 e os
104
papas pós- Concílio tiveram de lidar com suas conseqüências e incertezas,
principalmente em quanto ao papel da Igreja Universal, além da questão da sua
legitimidade perante o mundo. Giuseppe Alberigo173
em seu livro sobre a história dos
Concílios escreveu:
Embora falando de ―proposta‖, João XXIII não deixava dúvidas
sobre a sua determinação de convocar o concílio, dando-lhe o objetivo de
renovação, que deveria abarcar todos os âmbitos cristãos, do mais próximo (o dos
cardeais, aos quais o Papa pedia adesão e sugestões) ao mais remoto (dos não-
católicos, a quem o Papa renovava o ―apelo a seguir-nos amavelmente nessa busca
de unidade e de graça‖).
Outro aspecto que poderia pesar de forma negativa na retórica do Papa como
mediador eram as ditaduras militares nas quais se encontravam Chile e Argentina. De
1973 até 1990, uma junta militar comandada por Augusto Pinochet governou o Chile,
e quase sem oposição, pois os opositores eram presos ou mortos. Na Argentina
também havia um regime ditatorial que se escondia por detrás do chamado Processo
de Reordenação Nacional. Esse regime político dava igual poder aos três ramos das
forças armadas argentinas e previa-se a alternância no poder, mas o exército sempre
teve uma certa preponderância. Aparentemente, a Argentina se mostrava mais
inflexível com o caso de Beagle, visto as declarações dos governantes. Assim, o
cenário não se mostrava favorável a um acordo pacífico. Porém, tais condições foram
certamente levadas em conta pelo pontífice, pois ele sabia que não poderia em
momento algum dizer algo que incitasse ou levasse ambos os governos a algum tipo
de confronto.
173
ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo, Paulus, 1995. p.395
105
3.1.5 - A Interpretação do ato retórico no Canal de Beagle
O ato retórico da Santa Sé obteve êxito. Entretanto, a questão da paz que
permeou toda a construção retórica de João Paulo II não está somente atrelada à
nobreza da causa. A Igreja sabia da importância da América Latina para seus ideais e
sabia que o ―fantasma‖ do comunismo rondava a América Latina. Nos anos 60 e 70,
este continente sofria com ditaduras militares. Em 11 de setembro de 1973, os
militares chilenos tomaram o poder e instauraram a ditadura dirigida por Pinochet.
Além do caso chileno, semanas antes ocorreram golpes militares no Uruguai e na
Argentina. Brasil e Bolívia já sofriam nas mãos dos militares desde a metade da
década anterior. Como se não bastasse, Cuba aproximava-se da União Soviética,
desde 1959, especialmente após a decretação dos embargos norte-americanos à ilha.
Na América Central, no mesmo período da visita de João Paulo II ao México, a
Nicarágua derrubava a ditadura Somoza, a qual durara mais de 40 anos, e os
sandinistas tomavam o poder. Além disso, a metade dos católicos do mundo está na
América Latina, daí ser uma região de extrema relevância para a Igreja.
Quando Bernstein e Politi174
afirmaram que o sinal que emanava da mediação
era importante no caso de Beagle, podem estar certos na medida em que a mediação
incorporou positivamente o ethos de João Paulo II. Naquele momento se iniciou um
estilo peculiar no seu papado baseando-se na questão da paz mundial. O conceito de
paz da Santa Sé está baseado em encíclicas, que são documentos sociais,
fundamentados em uma passagem bíblica. Neste caso, elas são a encíclica Pacem in
Terris, o documento social Gaudium et Spes e a passagem bíblica ―Cristo é Nossa
Paz‖, retirada da Carta do Apóstolo Paulo aos Efésios, Capítulo II, versículos 14 ao
17. Esse uso da Bíblia aparece tanto na encíclica como no documento social. Ora,
essa passagem refere-se ao símbolo máximo do cristianismo, o próprio filho de Deus
que numa religião monoteísta encarnado na Terra, em forma humana, morreu
174
BERNSTEIN, Carl e POLITI, Marco. Id. p.203
106
crucificado pelos ―pecados‖ dos homens e ressuscitou, segundo os cristãos,
oferecendo-se a si mesmo como base para a reconciliação e a paz entre os homens.
A mediação feita por João Paulo II, além de dar a oportunidade de exposição a
nível global da Igreja Católica, propiciou o que este Papa enxergou ser relevante no
contexto da época, a paz. Assim, por meio desta questão, o Pontífice adquiriu
legitimidade a nível mundial, consagrando-se como líder religioso e pacifista. Não é
necessariamente fruto desta mediação tal condição, porém naquele momento a
construção retórica além de persuadir os beligerantes a evitar o conflito, iniciou
também uma persuasão sobre a dimensão da paz.
Segundo Norberto Bobbio175
, paz é sempre definida em função da definição de
guerra. O binômio "paz-guerra" dá-nos a sensação que ora a palavra paz assume
papel negativo e ora o papel positivo. Assim, se no sentido geral define-se paz no
sentido negativo, a palavra guerra é a que assume o papel relevante. Já no sentido
restrito, a paz assume papel positivo quando se quer por fim a um conflito particular.
Nesse contexto de pós-guerra, Guerra Fria e de ditaduras militares, a Igreja parece ser
a busca da paz, uma saída concreta para se adquirir legitimidade entre os povos,
nações e indivíduos, dentro de um contexto movido pelo pluralismo e secularidade.
Ao exaltar a paz, João Paulo a trata como um bem comum. O conceito de bem
comum pode ser facilmente confundido com vontade geral. Segundo Bobbio176
,
embora bem comum seja um conceito objetivo, vontade geral é subjetivo, justamente
pela relação de ambos os conceitos com bens individuais ou vontades particulares:
tanto bem comum como vontade geral demonstram uma vontade moral dos
indivíduos. Aí fica característico o acordo entre o retor e seu auditório. O acordo
pressupõe a premissa da paz. Ao exaltar desta maneira a paz, João Paulo II cria uma
figura de linguagem retórica que, segundo Reboul177
, é uma ―figura pela qual o
orador finge dirigir-se a outro auditório, e não ao seu‖. A paz torna-se um bem
comum global, não somente para as delegações de Chile e Argentina ou para a Igreja.
Ambos os conceitos encontram dificuldades. Empiricamente é humanamente
175
BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: UNB, 1986. 176
Ibid. p.106-107 177
REBOUL, Olivier. Introdução... p.244
107
impossível dizer quem seria o portador da vontade geral, podendo-se aceitar apenas a
vontade da maioria como sendo a vontade de todos. Sendo assim, é difícil saber quem
seria o intérprete do Bem comum: podendo ser o magistério da Igreja, isto é, uma
estrutura burocrática portadora do carisma, ou podendo ser os cidadãos que, ao
contrário, na prática, ―lutam e entram em contraste entre si justamente pelas
diferentes interpretações do que venha a ser Bem comum ou de qual seja o fim para
onde encaminhar a sociedade humana.‖ A esse respeito Bobbio registra que:
O conceito de Bem comum é próprio do pensamento político católico, e, em
particular, da esco-lástica nas suas diversas manifestações desde S. Tomás a J.
Maritain, e está na base da doutrina social da Igreja, baseada no solidarismo. O
Bem comum é, ao mesmo tempo, o princípio edificador da sociedade humana e o
fim para o qual ela deve se orientar do ponto de vista natural e temporal. O Bem
comum busca a felicidade natural, sendo portanto o valor político por excelência,
sempre, porém, subordinado à moral.178
O ato retórico em questão agregou valores já existentes na Igreja e no Ocidente
às novas demandas políticas, sociais e religiosas.
3.1.6 - O julgamento do ato retórico no Canal de Beagle
Depois de se discorrer sobre os antecedentes, fisiologia, o próprio ato retórico,
suas contingências e sua interpretação, é a vez do julgamento do ato retórico. Este
passo indica como avaliar um ato retórico segundo alguns critérios pragmáticos,
estéticos ou éticos à luz da formação do analista, segundo Halliday179
. Como critério
pragmático, uma ação persuasiva e tratando especificamente de Relações
Internacionais, poderíamos incluir a política externa do Vaticano aparentemente
178
BOBBIO, Norberto. Id. p.106 179
HALLIDAY, Tereza. Id. p.130
108
como wilsoniana e idealista180
, pois tais pensamentos baseiam-se na hipótese
fundamental de que a paz e a ordem são objetivos naturais à condição humana.
Pessoas agregam-se em favor de obter a organização necessária à sobrevivência, ao
bem-estar e ao progresso; neste caso, é natural que em um estágio mais avançado,
povos e nações inteiras venham a cooperar em busca de uma organização mundial,
capaz de prover e manter a paz e a ordem. Isto não seria feito por mero altruísmo,
embora resultante de uma necessidade concreta e necessária à sobrevivência. Esta é
precisamente a inspiração da Organização das Nações Unidas, a maior
exemplificação do pensamento wilsoniano.
No entanto, ao se analisar a política idealista do Vaticano, é possível ver nela
uma caracterização mais complexa. Agindo em nome de seus interesses institucionais
e de sua missão, a Santa Sé tem adotado posições realistas em sua foreign policy
conscientemente ou não, ao mesmo tempo em que promove uma visão idealista de
mundo. Os realistas enxergam os conflitos de interesse como inevitáveis em um
ambiente cujo desequilíbrio de forças produz hierarquias. Até porque a própria
condição básica para a existência de um Estado, que é a soberania, é suficiente para
suscitar atritos. Ora, se é soberano, um Estado não é obrigado a obedecer a outro, ou
então deverá necessariamente admitir que já não é mais soberano. Além disso,
existem dificuldades intransponíveis em se legislar sobre as relações interestatais.
Considerando o conflito de soberania, fazê-lo não é ―simples‖ como legislar a relação
de um Estado e o indivíduo. Podemos enxergar este realismo de modo bastante
evidente na questão da queda do comunismo, por exemplo. Durante a Guerra Fria,
nos pontificados de Pio XII, João XXIII, Paulo VI e posteriormente com João Paulo
II, a Igreja tornou-se um referencial de resistência ao comunismo, principalmente na
Polônia, no pontificado de João Paulo II, quando torna-se, então, uma figura-chave,
do ponto de vista estratégico, principalmente norte-americano, no processo de queda
dos regimes autoritários do Leste Europeu. Ou seja, mesmo que João Paulo II nunca
tenha mencionado que almejasse acabar com o comunismo, ele foi um fator crucial
180
A respeito das Teorias das Relações Internacionais, ver em: BRAILARD, Phillippe. Teoria das Relações
Internacionais. Lisboa, FGB, 1990
109
que, querendo ou não, mexeu diretamente nas estruturas socialistas e,
consequentemente, na questão da soberania dos Estados dirigidos pelos princípios do
marxismo-leninismo. A União Soviética foi desmembrada com a queda do
comunismo, surgindo então novos Estados Soberanos e uma nova Federação Russa.
Portanto, mesmo com a visão idealista, algumas de suas ações podem ser vistas como
realistas, pois podem trazer conseqüências realistas.
No caso de Beagle pode-se dizer que, embora a busca pela paz seja idealista, a
partir do momento que João Paulo II, líder da Igreja Católica Apostólica Romana
assina como mediador, chefe de Estado da Cidade Estado do Vaticano, um tratado de
paz entre duas repúblicas independentes, as conseqüências deste ato são realistas.
3.2 – A invasão do Iraque
Um segundo exemplo aqui analisado de como a retórica da ICAR foi
direcionada para questões internacionais pode ser recortado a partir do discurso por
ocasião da invasão do Iraque por forças da ONU, porém, liderada pelos Estados
Unidos no período Bush filho, em 2003.
3.2.1 - Os Antecedentes da Situação Retórica na invasão do Iraque
Embora o conflito no Oriente Médio seja longo e extenso, o recorte deste
trabalho para explicitar os antecedentes da situação retórica em questão tem seu
início no dia 11 de Setembro de 2001, dia no qual ocorreu o atentado terrorista ao
World Trade Center em Nova Iorque. Fato este que surpreendeu todo o mundo pela
sua dimensão e, devido aos avançados meios de comunicação, transmissão em tempo
real. Aviões comerciais foram usados como armas no maior ataque terrorista da
história dos Estados Unidos, onde se estima que foram perdidas mais de 3 mil vidas.
Há também as tensões não resolvidas da 1ª Guerra do Iraque na década anterior,
quando Bush (pai) invadiu o Iraque a partir do Kuwait, no que deteve as tropas ante
110
de conquistar Bagdá. A reação do Papa foi assim descrita pelo historiador John
Cornwell181
:
Assim como o resto do mundo, João Paulo soube que milhares de pessoas
tinham morrido quando dois aviões comerciais seqüestrados com seus passageiros
a bordo explodiram ao se chocar contra o World Trade Center em Nova Iorque.
Menos de duas horas depois, um outro avião seqüestrado fora jogado contra o
Pentágono, matando cerca de 200 pessoas, e um outro avião, a caminho de um
objetivo desconhecido, caíra na Pensilvânia, não longe da residência presidencial
de Camp David. Logo veio à tona que os ataques tinham sido obra de extremistas
islâmicos: levou um pouco mais de tempo para ficar estabelecido que o sombrio
organizador de tais atrocidades era Osama bin Laden e seu grupo terrorista, a Al
Qaeda.
Tais ataques desencadearam reações em todos os países e mostraram a
fragilidade da nação mais poderosa da Terra, lançando dúvidas sobre a capacidade
mundial de controlar grupos extremistas. O medo tomou conta das nações ocidentais
e as pessoas se viram obrigadas a entender suas diferenças e analisar suas
desconfianças quanto à civilização islâmica. Na caçada pelos culpados e na busca
pelo que se dizia ser ―segurança‖, a liberdade civil sofreu um baque tão poderoso
quanto as torres gêmeas do World Trade Center. O Congresso Americano aprovou
uma legislação mais dura contra o terrorismo. Países da Europa fizeram o mesmo,
sob protestos de grupos de defesa dos direitos humanos.
O 11 de Setembro produziu inúmeras conseqüências negativas. No plano
interno, os Estados Unidos experimentaram uma grave retração dos direitos civis. No
plano internacional, velhas rivalidades se acirraram. Sob o pretexto de combater o
terrorismo, Israel investiu mais pesadamente contra os palestinos. O mesmo fizeram
os russos em relação a tchetchenos e chineses em relação a uigures e tibetanos,
citando apenas algumas disputas. Desde que o presidente George W. Bush se
declarou em uma cruzada contra o terrorismo e o ―eixo do mal‖, os norte-americanos
181
CORNWELL, John. A face oculta do pontificado de João Paulo II. Rio de Janeiro, Imago. 2005. p.233
111
invadiram países muçulmanos no Oriente Médio e, dentre esses, o Iraque e o
Afeganistão.
Em contraponto a esta invasão e principalmente às conseqüências de uma
possível e eminente guerra, a Igreja Católica surgiu como uma força em prol da paz,
utilizando-se de seu legado, legitimidade e influência diante do mundo.
Imediatamente após os ataques, o Pontífice da Igreja se pronunciara repudiando os
ataques à Nova York e Washington, quando se disse afetado pelo ―horror
indescritível‖ dos ataques, manifestando toda sua preocupação com as vítimas
inocentes que lá estavam. O líder católico enviou um telegrama ao presidente dos
Estados Unidos, George W. Bush, dizendo que rezaria pelas vítimas, expressando sua
solidariedade ao povo norte-americano. João Paulo II afirmou ainda, durante seu
pronunciamento, que o terrorismo nada constrói. Cornwell182
defende que o impulso
de João Paulo II de agir contra a guerra vinha de sua leitura de um eminente
confronto armado. Para Cornwell, ―estava claro que João Paulo e alguns de seus
auxiliares, que liam pela mesma cartilha, estavam pressentindo que o mundo se
encontrava sob a ameaça de um banho de sangue‖, enquanto que ―João Paulo
preparava-se para se opor implacavelmente a uma ação militar‖.
Porém, 15 dias depois, em 27 de setembro de 2001, o Vaticano se pronunciou
legitimando um ataque dos Estados Unidos contra o Taleban, o grupo extremista
islâmico que foi classificado como o responsável pelos ataques.183
Em uma entrevista
à rede de televisão Televisa do México, na Armênia, o então porta-voz chefe do
Vaticano, Joaquin Navarro-Valls, repetiu os pontos básicos de uma entrevista
concedida no dia 24 de Setembro enquanto o Papa João Paulo II estava no
Cazaquistão. Navarro-Valls disse à Televisa que uma eventual ação dos Estados
Unidos não poderia ser vista simplesmente como um ataque, mas sim como uma
―ação de prevenção ativa‖ contra uma real ameaça que ocorreu dias antes e que
poderia acontecer de novo. Essa seria a visão do Vaticano. Ele ainda afirmou que o
Vaticano não estava dando "sinal verde" para Washington tomar a decisão de uma
182
Ibid. p.235 183
As datas apresentadas neste trabalho foram retiradas dos almanaques anuais da Folha de S. Paulo dos anos
de 2001, 2002 e 2003.
112
ação militar indiscriminada, como alguns meios da imprensa noticiaram no início
daquela semana. Ele frisou que a posição dele não era simplesmente ―faça o que
quiser‖, pois como um cristão no posto de porta-voz chefe do Vaticano, tinha de ser
fiel a uma ética cristã muito precisa no que se trata de ―legítima defesa‖184
, retomava-
se assim a idéia de ―guerra justa‖. Cornwell defende que esta declaração do porta-voz
foi profunda a ponto de caracterizar as ações diplomáticas deste ato retórico. O autor
defende que os ―comentários atribuídos a Navarro-Valls no vôo em que saíram do
Cazaquistão tinham sido interpretados pela rede noticiosa CNN como uma bênção
papal aos bombardeios aéreos no Afeganistão‖.185
Ele ainda reitera que a declaração
do porta-voz é a reprodução de instruções do próprio Papa.
Isso contradizia frontalmente as declarações de João Paulo quando apelou
para soluções pacíficas, bem como os comentários ufficiali de Kasper e Tucci no
fim-de-semana. Indagado mais tarde a esse respeito, Navarro-Valls recusou-se a
admitir que existisse qualquer contradição envolvida entre suas palavras e as do
papa. Evitou outras perguntas dizendo: ‗Eu apenas repeti o que está escritos no
catecismo sobre guerra justas‘.186
Ora, observamos que desde 11 de setembro de 2001 até o dia 20 de março de
2003, quando o primeiro bombardeio norte-americano caiu sobre Bagdá, foram
inúmeras as ações tanto por parte do Vaticano, que tentou evitar a guerra a qualquer
custo, quanto por parte dos Estados Unidos, que buscaram o conflito em todo
momento a qualquer custo.
184
O princípio de legítima defesa na ética cristã será melhor estudado no item 3.2.5., sobre a interpretação do
ato retórico. 185
Ibid.p.238 186
Ibid. p.237
113
3.2.2 - O Problema Retórico na invasão do Iraque: Ações Diplomáticas do
Vaticano no Conflito Entre os Estados Unidos e o Iraque
O problema retórico a ser resolvido neste caso da invasão iraquiana, é o esforço
público por parte do Vaticano, liderado por João Paulo II, que se aproveitou do
prestígio adquirido ao longo de seu papado na tentativa de evitar esta empreitada
norte-americana. Este esforço ficou característico nas atividades diplomáticas no
período pré-invasão por parte do Vaticano. A Santa Sé buscou intervir nesta invasão
também por meio de declarações de seu pontífice.
As declarações e ações diplomáticas foram relatadas por diversos meios de
comunicação em todo o mundo. As declarações completas e discursos dos membros
da Santa Sé encontram-se disponíveis no jornal oficial do Vaticano, o L’Osservatore
Romano.Segundo Thomas Reese187
, existe uma edição diária italiana, além de
edições semanais em espanhol, inglês, francês, alemão, italiano e português, além de
uma edição mensal em polonês. Este jornal não possui praticamente propaganda
nenhuma e, segundo Reese, teve um prejuízo de 5,5 milhões de liras no ano de 1994.
Os seus gastos foram reduzidos no período de sua modernização, vez que seu
maquinário era tão antigo que ―uma das prensas era tão velha que foi doada a um
museu depois de sua substituição‖. Os índices de venda deste jornal estão atrelados às
vendas decorrentes de assinaturas e bancas de jornal, porém estes índices ―cobrem
cerca de metade dos custos da publicação‖. Reese sobre isso afirma que o jornal:
L’Osservatore Romano tem sido comparado ao Pravda na época do
Kremlin anterior à Perestroika. Seu formato pesado está repleto de
pronunciamentos papais, documentos do Vaticano e comentários aprovados. Como
um serviço documental, é um instrumento de pesquisa valioso, mas para o leitor
médio é uma cura para a insônia.188
187
REESE, Thomas J. O Vaticano... p.298 188
Ibid. p.298
114
3.2.3 - Anatomia e Fisiologia do Ato Retórico na invasão do Iraque (2003)
Seguindo o esquema de análise retórica de Halliday, pode-se dizer que o ato
retórico tem seu início na primeira declaração por parte do Vaticano acerca da
invasão ao Oriente Médio, a declaração de Joaquim Navarro-Valls. Percebe-se neste
momento o esboço de um protagonismo do Vaticano pós-11 de setembro. Essa teria
sido a primeira ação diplomática do Vaticano sobre uma eventual investida militar.
Quando Joaquin Navarro-Valls diz ser uma ―ação de prevenção ativa‖ e legitima uma
eventual investida militar, faz eco a uma posição da Igreja consagrada no documento
social Gaudium et Spes e abre uma espécie de canal de conversação com os Estados
Unidos, utilizando-se muito bem das figuras retóricas, classificando a eventual
investida militar como ―prevenção ativa‖. Através destas declarações, a Santa Sé
coloca-se ao lado dos Estados Unidos, aludindo à ―legítima defesa‖ e se dizendo
―horrorizada‖ com os ataques. A Igreja entenderia ser a eventual investida militar
como uma prevenção ativa, entretanto, ainda preferia que tudo fosse resolvido através
de meios pacíficos.
Em 3 de outubro de 2001, o Papa João Paulo II declarou que a religião não
poderia justificar os conflitos no mundo e que cristãos e muçulmanos deveriam
rejeitar a violência. No dia 11 de dezembro de 2001, o Pontífice condenou o
terrorismo como um crime contra a humanidade, afirmando que o fundamentalismo
fanático é uma atitude contrária à fé em Deus. E no dia 19 de dezembro de 2001, João
Paulo II afirmou que as festividades de natal daquele ano estariam prejudicadas pela
quantidade de guerras e conflitos que havia ao redor do globo. Esta foi a atmosfera
que encerrou o ano de 2001, se tornando mais tensa em relação ao conflito na medida
em que chegava o ano novo.
No início de 2002, em seu tradicional discurso ao corpo diplomático, João
Paulo II reafirmou que a luta contra o terrorismo é legítima, classificou o bordão
―matar em nome de Deus‖ como blasfêmia, e pediu aos dirigentes políticos que
dessem preferência ao diálogo e negociações pacíficas para resolverem seus
115
conflitos189
. Enquanto isso, George W. Bush dava sinais cada vez mais claros de que
invadiria o Iraque. No dia 29 de janeiro de 2002, os Estados Unidos, na sua busca por
uma justificativa, deixava claro em sua retórica a invasão militar, referindo-se ao
―eixo do mal‖ incluindo-se nele o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. Neste mesmo
período, João Paulo II na tentativa de impedir uma guerra que se desenhava cada vez
mais rápido, enviou aos governantes de todo o mundo um texto escrito por ele que
condena a violência e o terrorismo, prenunciando a paz, intitulado o "Decálogo de
Assis"190
.
Depois dos trágicos ataques do último 11 de setembro, que nunca serão
esquecidos, e em vista da ameaça de novos conflitos, os religiosos acreditam na
necessidade de intensificar suas preces para a paz, porque isso é, acima de tudo, um
presente de Deus. Diante da violência que atinge muitas partes do mundo hoje,
sentimos a necessidade de mostrar que as religiões podem alimentar a
solidariedade, rejeitando e isolando os que exploram o nome de Deus com
objetivos e com intenções que ofendem Deus.191
Ao dizer que a paz acima de tudo é um ―presente de Deus‖, João Paulo II
transcende inclusive a própria Igreja e deixa o conceito de paz fora de qualquer
ideologia, tornando-o um conceito ―apolítico‖ e colocado como um valor universal.
Para tal, João Paulo, como é crível para um líder religioso, se utiliza do argumento de
autoridade nesta construção retórica: Deus. Características oriundas de habilidades
diplomáticas, ele fala para governantes de todo o mundo algo que interessa a todos no
momento, baseado na autoridade divina que lhe é dada: a paz. Ao mesmo tempo, não
dá margem a nenhum tipo de abordagem política ou ideológica de algum ouvinte de
sua homilia. Outro ponto interessante de se abordar neste discurso é a forma como
João Paulo II condena o uso da religião para intenções ruins. Ou seja, de uma forma
189
O discurso ao corpo diplomático na íntegra se encontra em L‘Ossservatore Romano nº 50, de 15 de
dezembro de 2001. p.8 e 9. 190
Para melhor conhecimento do Decálogo de Assis, ler em L’Osservatore Romano nº 10, de 9 de março de
2002. p.1. 191
JOÃO PAULO II, O Decálogo de Assis para a Paz in L’Osservatore Romano, em 19 de março de 2002.
p.01
116
não direta, João Paulo II faz menção aos grupos terroristas extremistas que justificam
seus ataques sob pretensões religiosas. De um modo sutil, ele não acusa ninguém,
mas dá seu recado implícito ao mundo islâmico, protagonista direto e indireto do
conflito, na medida em que os atos de guerra e de paz afetam todos os islâmicos e não
somente os extremistas.
O segundo semestre de 2002 caracterizou-se pela movimentação e preparação
de George W. Bush para invadir o Iraque, começando por embargos financeiros
contra esse país, logo em 1º de Agosto. Depois dos embargos financeiros, os Estados
Unidos começaram a tratar de questões militares e começaram a deslocar a sua
máquina de guerra para o Oriente Médio, enviando o seu porta-aviões USS
Constellation para o Golfo Pérsico com outros seis navios em novembro deste ano.
Neste mesmo período o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução que
exigia o desarmamento do Iraque. O país chegou até a entregar à ONU um dossiê
com cerca de 12 mil páginas sobre seu programa de armas, mas mesmo assim foi
insuficiente para brecar a ofensiva militar dos Estados Unidos. Já no fim do ano de
2002, próximo ao Natal, o Papa, vendo que a guerra estava cada vez mais próxima,
apela pela paz mais uma vez em seus discursos. Ele pediu, em sua mensagem de
Natal, que o mundo evitasse um conflito no Iraque e apelou pela paz entre israelenses
e palestinos. Foi a primeira menção pública que o Papa fez especificamente à crise
iraquiana e à eminente invasão192
.
Já o ano de 2003 se caracterizou pelas ações diplomáticas mais relevantes do
Vaticano. Neste caso do Iraque, podemos enumerar algumas das ações mais
relevantes por parte da Igreja, vejamos: em seu discurso ao corpo diplomático, no dia
13 de Janeiro de 2003, o Papa discorreu inteiramente baseado na encíclica Pacem in
Terris; o Cardeal Roger Etchegaray foi o enviado especial do Papa a Bagdá para
encontrar com o então presidente iraquiano Saddam Hussein, no dia 15 de fevereiro
de 2003; o Cardeal Pio Laghi foi enviado a Washington para um encontro com o
presidente norte-americano, George W. Bush, no dia 5 de Março de 2003; o Cardeal
192
Tal menção pública foi feita em uma de suas homilias na praça da Basílica de São Pedro para as
festividades de natal do ano de 2002, noticiada pela Folha de São Paulo no dia 21 de Dezembro de 2002, no
caderno Mundo.
117
Celestino Migliore, observador permanente da Santa Sé junto à Organização das
Nações Unidas, discursa sobre a situação do Iraque e Kuwait no dia 19 de fevereiro
de 2003.
Na primeira situação retórica citada acima, em seu costumeiro discurso ao
corpo diplomático, o Papa trata de alguns temas sobre a paz apropriados para o ano
de 2003. Para isto, mostrando que a Igreja tinha uma posição própria e consolidada
há 40 anos, ele recorreu às grandes declarações católicas a respeito da guerra e da
paz. Fez assim uma abordagem da encíclica Pacem in Terris (1963), permitindo, por
um lado, demonstrar a importância deste documento e sua influência e, por outro
lado, atualizar a mensagem da encíclica segundo a situação do mundo em que vivia,
mesmo depois de quatro décadas de sua publicação. O Papa, através da citação da
encíclica, fala em ―consciência espiritual‖ e suas conseqüências públicas e políticas.
Este gancho feito por Wojtila demonstrou uma relevância no campo dos direitos
humanos, sendo a paz possível somente por meio da consciência da dignidade
humana e do valor de tais direitos. Para tal argumentação, João Paulo cita a encíclica
de João XXIII e o faz como um argumento de exemplo, justificando o presente num
fato passado. Outra característica desta intervenção diplomática é a reprodução de
capital simbólico à luz do conceito de Pierre Bourdieu193
; João Paulo não produz
necessariamente algo novo para a questão, mas reproduz o conteúdo da encíclica dos
anos 60.
À vista da crescente consciência dos direitos humanos que se ia
manifestando a nível nacional e internacional, João XXIII intuiu a força contida em
tal fenômeno e o poder extraordinário que tinha para modificar a história. Uma
singular confirmação disto mesmo, temo-la no que sucedeu poucos anos depois,
sobretudo na Europa Central e Oriental. O caminho para a paz, como o Papa
ensinava na encíclica, devia passar pela defesa e promoção dos direitos humanos
fundamentais.194
193
Ver BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 1987 194
Idem, Pacem in terris: um compromisso permanente in L’Osservatore Romano nº51, em 21 de
Dezembro de 2002, p.08
118
Outro ponto que a mensagem de João Paulo II releva é a idéia de um bem
comum universal. O Papa endossa a legitimidade de uma autoridade pública a nível
internacional, com capacidade de promover o bem comum universal, bem comum
esse que fica claro se tratar da paz, visivelmente apontando para um possível papel a
ser desempenhado pela Organização das Nações Unidas, criada em 1945, e da
Declaração dos Direitos do Homem, de 1948.
Uma das conseqüências desta transformação era evidente: a necessidade de
haver uma autoridade pública a nível internacional, dispondo de efectiva
capacidade para promover o referido bem comum universal. Esta autoridade –
acrescentava imediatamente o Papa – não deveria ser estabelecida por coacção,
mas apenas com o consentimento das nações. Deveria tratar-se de um organismo
que tivesse como objectivo fundamental o reconhecimento, o respeito, a tutela e a
promoção dos direitos da pessoa.195
Para embasar sua construção retórica, João Paulo utiliza aqui o argumento
pragmático, que se sustenta pela sua conseqüência: a necessidade de haver uma
autoridade pública a nível internacional. Há também um entimenta na sua
construção retórica, na medida em que parte da premissa do verossímil, no caso o
bem comum universal. Outro aspecto neste discurso, que se torna fundamental para o
rumo das ações diplomáticas do Vaticano, é a questão moral. Neste aspecto, o Papa
busca passar a mensagem de que a realização da paz não é algo que diz respeito
somente às instituições nacionais ou internacionais, mas é também responsabilidade
de cada homem. Ao passar essa mensagem o Papa reforça seu papel de ―força moral‖
contra a guerra, incentivando a responsabilidade da paz de forma individual, em uma
tentativa, a nosso ver, de conquistar a opinião pública. Assim, para o seu discurso o
Papa passaria a agir não só em nome da Igreja, mas em nome da humanidade.
A este respeito, quero com humilde ousadia fazer notar que a doutrina
plurissecular da Igreja que vê a paz como ’tranquillitas ordinis‘ – tranqüilidade da
ordem – segundo a definição de Santo Agostinho (De civitate Dei 19, 13)
195
Id. Ibid. p.08
119
aprofundada na Pacem in terris, se revelou particularmente significativa no mundo
contemporâneo, tanto para os Chefes das nações como para os simples cidadãos.196
Para sustentar seu argumento, João Paulo se utiliza novamente do exemplo ao
citar a Pacem in terris, além de se utilizar de uma alegoria, buscando
metaforicamente mudar a realidade conhecida, enunciando uma realidade abstrata.
Em relação à divergência no âmbito internacional entre os países, a alegoria se faz
presente na busca metafórica de uma paz utópica de Santo Agostinho. Estes são
alguns dos aspectos relevantes do discurso de João Paulo II ao corpo diplomático, em
2003, meses antes da invasão do Iraque. Esta é a primeira ação diplomática
importante a respeito de tal invasão no ano em que ela ocorreria. Aqui vale relembrar
o historiador Cornwell:
No primeiro dia do ano, Dia da Confraternização Universal, ele [o Papa]
antecipou o quadragésimo aniversário da grande encíclica Pacem in terris (Paz na
Terra) do seu predecessor João XXIII. Era como se ele estivesse se firmando para
enfrentar uma investida de retórica de guerra. Uma vez mais, recorreu a um papa
do passado para sustentar sua visão pontifical.197
A segunda e mais intensa ação diplomática devido ao deslocamento de
membros da Cúria, no caso o presidente do Conselho para a Justiça e a Paz, Cardeal
Roger Etchegaray, para encontrar-se com Saddam Hussein em Bagdá. Este encontro
se deu em 15 de Fevereiro de 2003, onde o cardeal entregou uma mensagem do
próprio Papa ao presidente iraquiano. Ao mesmo tempo em que Etchegaray estava
em Bagdá, o pontífice recebia em audiência no Vaticano Tarek Aziz, Vice Primeiro
Ministro do Iraque. É importante salientar que a grande maioria da população
iraquiana é muçulmana e não católico-cristã. Mesmo assim, ocorre a ação
diplomática por parte do Cardeal, que mesmo sabendo de tal condição repassa a
mensagem de João Paulo II. A mensagem exalta a paz acima de qualquer governo ou
religião, característica no jogo de palavras, onde o auditório da construção retórica é
196
Idem. p.08 197
CORNWELL, John. A face... p.281
120
chamando de ―descendentes de Abraão‖, englobando assim cristãos, judeus e
muçulmanos, as principais partes envolvidas no conflito. Etchegaray afirma depois o
seguinte:
Não fiz senão segui-lo pelo meio das comunidades cristãs, de todo o povo
iraquiano, junto do Presidente Saddam Hussein, que manifestou uma intensa e
profunda escuta da palavra viva que vem de Deus e que todos os crentes,
descendentes de Abraão, recebem como o fermento mais seguro da paz.198
Analisando retoricamente, ao fazer referência a descendentes de Abraão, João
Paulo estabelece o acordo como orador com seu auditório. Entretanto, pela dimensão
da expressão, o pontífice tenta ampliar o alcance de sua construção retórica partindo
em busca do auditório universal. Reboul199
afirma que o ―auditório universal poderia
ser apenas uma pretensão, ou mesmo um truque retórico‖. Porém a sua função seria a
do ―ideal argumentativo‖. O autor afirma que o orador ―sabe bem que está tratando
com um auditório particular, mas faz um discurso que tenta superá-lo‖. A mensagem
assim se dirige na direção de outros auditórios ―possíveis que estão além dele‖, onde
o orador considera ―implicitamente todas as suas expectativas e todas as suas
objeções‖.
Outro ponto que a mensagem ao presidente iraquiano realça é a necessidade de
aderir às resoluções das Nações Unidas. Entretanto, Etchegaray apresenta a Saddam
Hussein essa adesão como em nome da comunidade internacional, se referindo à
tensão entre o Iraque e a ONU devido à inspeção de armamentos de destruição em
massa. ―A nova e breve trégua que se impôs deve ser utilizada por todos,
integralmente e num espírito de confiança recíproca, para corresponder às exigências
da comunidade internacional‖.200
Aqui novamente o entimenta; a premissa da
comunidade internacional em função do argumento pragmático da conseqüência da
adesão à comunidade internacional.
198
ETCHEGARAY, Roger. A paz ainda é possível no Iraque e para o Iraque! in L’Osservatore Romano nº
8, em 22 de Fevereiro de 2003. p.01 199
REBOUL, Olivier. Introdução... p.93 200
ETCHEGARAY, Roger. Id. p.01
121
Quase ao mesmo tempo em que enviava um mensageiro à nação que
provavelmente seria invadida, João Paulo II enviava também um mensageiro à
provável nação invasora. Em 5 de março de 2003, o Cardeal Pio Laghi, delegado
apostólico do Papa em Washington, se encontrou com o Presidente dos Estados
Unidos, George W. Bush. Naquele país, a maioria da população é protestante.
O conteúdo daquela mensagem continha dois aspectos relevantes que podem
ser caracterizados como uma evocação dos princípios de convívio internacional
consagrados após a II Guerra Mundial. O primeiro aspecto foi a insistência de que
diferenças podiam ser resolvidas por meios pacíficos, uma vez que, neste período, a
invasão por parte dos Estados Unidos parecia muito próxima. Porém, neste momento
a Santa Sé não se pronuncia classificando a investida norte americana como uma
prevenção ativa como a primeira declaração de Joaquim Navarro-Valls, mas sim
como uma guerra, a qual deveria ser evitada e o impasse resolvido através de meios
pacíficos.
Ao longo destas últimas semanas, ele [Papa João Paulo II] não poupou
esforços, recorrendo a todos os instrumentos de que dispõe, com vista a pedir a
quantos estão investidos da mais alta autoridade política, a fim de que tomem
decisões justas para resolver, com o recurso a instrumentos adequados e pacíficos,
o conflito que impede a humanidade de percorrer o seu caminho no nosso tempo.201
Aqui o Cardeal ao fazer menção ao esforço público por parte do Vaticano
utiliza do argumento de autoridade ao citar João Paulo II. Na questão de Beagle,
havia desconfiança acerca do papado de João Paulo II devido à sua recém eleição.
Em 2003, no caso da invasão iraquiana, o nome de João Paulo II é usado em uma
construção retórica na qual ele próprio encontra-se envolvido, porém desta vez seu
nome é um argumento de autoridade, contrastando com o ambiente de uma de suas
primeiras ações de âmbito global como pontífice.
201
LAGHI, Pio. Unidos a ―Cristo, nossa paz‖, podemos salvaguardar e preservar o dom precioso que é
precisamente a paz. in L’Osservatore Romano nº 11, em 5 de março de 2003 p. 06
122
O segundo ponto relevante da mensagem do cardeal Pio Laghi foi acerca da
Organização das Nações Unidas. O motivo alegado pelos Estados Unidos para a
invasão do Iraque foi sobre o ―armamento de destruição em massa‖ que o ―Iraque
dispunha‖ e, durante o período pré-guerra, a ONU ficou encarregada de descobrir a
verdade sobre tais armas. O Iraque chegou a entregar um relatório sobre o assunto à
ONU, entretanto todos estes trâmites foram muito lentos e suscitaram dúvidas sobre a
legitimidade deste relatório. Portanto, da mesma forma que logo após os ataques de
11 de Setembro o Vaticano declarou que uma guerra de defesa seria legítima,
aproximando-se da posição americana de retaliar um possível inimigo e conferindo a
ela uma legitimidade moral, nesta mensagem do pontífice se apresentou uma aparente
coincidência de posições. Entretanto, esta mensagem fazia menção à ineficiência e/ou
impotência das Nações Unidas sobre a questão do desarmamento iraquiano. O
Cardeal Pio Laghi escreveu no jornal oficial da Igreja:
Pois bem, as instituições podem ser imperfeitas, e por vezes podem agir de
maneira demasiado lenta, e talvez ainda não tenham aprendido a enfrentar as
realidades contemporâneas que ameaçam a ordem mundial. Todavia, elas
fundamentam-se sobre princípios autênticos e válidos para todos os tempos: o
diálogo honesto e paciente entre as partes interessadas e o dever absoluto de cada
um dos membros da Família das Nações, respeitar integralmente as suas
obrigações.202
Este trecho do discurso do Cardeal em análise retórica caracteriza uma
alegoria, na medida em que anuncia uma realidade conhecida - as instituições podem
ser imperfeitas, e por vezes podem agir de maneira demasiado lenta, e talvez ainda
não tenham aprendido a enfrentar as realidades contemporâneas que ameaçam a
ordem mundial – em função da busca de uma realidade abstrata: o diálogo honesto e
paciente entre as partes interessadas e o dever absoluto de cada um dos membros da
Família das Nações. É interessante notar também o termo ―Família das Nações‖ que
o cardeal Pio Laghi utiliza em seu discurso. Este termo engloba simbolicamente todas
202
Ibid. p.06
123
as nações e, quando o cardeal fala em diálogo honesto e paciente entre a ―Família das
Nações‖, ele fala também em nome de uma comunidade global definida em termo de
família.
Após declarar ao corpo diplomático a necessidade de paz, após enviar cardeais
ao Iraque e aos Estados Unidos, o Vaticano também se manifestou na ONU, através
do Observador Permanente da Santa Sé no local, o Cardeal Celestino Migliori.
Novamente um discurso por parte da Santa Sé fez referência à comunidade de
nações. Desta maneira, o discurso se enquadra do orador para o auditório universal,
pois não é simplesmente a opinião da Igreja, mas sim um entimenta, uma condição
que se pressupõe. Ao exaltar a comunidade de nações, o discurso se enquadra
também como uma manifestação de boa parte das nações do mundo, algo parecido
com o que vimos que fez o cardeal Pio Laghi. Sobre isso escreve Migliori: ― No
que diz respeito ao Iraque, a vasta maioria da comunidade internacional está a pedir a
uma resolução diplomática da disputa e a exploração de todos os recursos, em ordem
a um resultado pacífico de tal problemática. Por isso, este apelo não deveria ser
ignorado‖.203
Há ainda outro aspecto que vale ser ressaltado. A questão retórica da invasão
iraquiana se deu em ações diplomáticas. Uma ação diplomática pode ser interpretada
como um meio de argumentação da análise retórica. Reboul204
afirma que uma
apóstrofe é uma figura retórica ―pela qual o orador finge dirigir-se a outro auditório, e
não ao seu: auditório que poderá ser uma pessoa ausente, um morto, um príncipe,
etc.‖. Assim, quando um discurso de um cardeal, por exemplo, dirigido a um líder de
um país, o cardeal no momento do ato retórico passa a ser o orador e o líder seu
auditório. Porém, a ação diplomática não visa somente àquele instante. Visa, por sua
essência, a resolução de uma questão de litígio que não naquele lugar. Assim, quando
um ato diplomático com um governante torna-se uma apóstrofe, é na medida em que
o discurso se dirige também a outros líderes que não presentes naquele momento.
203
MIGLIORI, Celestino. A vasta maioria da comunidade internacional pede uma resolução diplomática da
crise iraquiana. in L’Osservatore Romano nº11, em 15 de Março de 2003. p.10 204
REBOUL, Olivier. Introdução... p.243
124
3.2.4 - As Contingências do Discurso na invasão do Iraque (2003)
Neste ponto da análise de Halliday são levados em conta os limites e restrições
deste tipo de discurso. Porém, antes de relatar as contingências do discurso na
invasão iraquiana, vale discorrer acerca das contingências desta pesquisa. O
levantamento dos discursos sobre a invasão iraquiana foram feitos nas publicações do
jornal do Vaticano, o L’Osservatore Romano. O jornal relatou todos os discursos das
personagens envolvidas por parte da Santa Sé no conflito. Houve cardeais falando
diretamente com o presidente norte-americano como também com o primeiro
ministro iraquiano. Houve também um contato com Saddam Hussein. Os discursos
encontrados neste veículo de comunicação se referem a tais encontros e suas
conseqüências. Porém, como se trata de uma negociação diplomática, não se sabe o
quanto podem ter ocorrido de negociações confidenciais. Portanto, esta pesquisa
trabalha com os discursos publicados e divulgados amplamente pela mídia
especializada.
Ao se tratar de contingência de discurso, o ―terreno‖ a se percorrer por parte da
Santa Sé é um empecilho. O Iraque é islâmico e os Estados Unidos em sua maioria
protestante, como uma doutrina diferente destas poderia se sustentar onde o campo
não lhe é favorável?
Segundo Cornwell205
, nos Estados Unidos os bispos estavam unânimes à
decisão de João Paulo II em ir contra a invasão. Porém, eram somente os bispos que
defendiam esta posição, pois outros clérigos e leigos eram ―inflexíveis em sua
convicção de que a guerra era não só justa, mas uma ‗obrigação moral‘‖. Em relação
à visita de Etchegaray a Saddam Hussein, Cornwell206
afirma que ―bem-intencionado,
embora senil, o bom cardeal revelou uma certa ausência de realismo quando relatou
que Saddam tinha escutado ‗atenta e profundamente‘ o apelo do papa em favor da
paz‖.
205
CORNWELL, John. A face... p.282 206
Idem, Ibidem, p.285
125
O fato de maior repercussão sobre os atos diplomáticos em relação às
contingências do discurso foi a visita de Tariq Aziz ao Vaticano. Cornwell207
afirma
que Aziz anunciou no aeroporto que ―tinha vindo a Santa Sé para apelar a Sua
Santidade em pessoa para que ajudasse a mobilizar ‗todas as forças do bem contra as
forças do mal‘‖. Em uma conferência em Roma, o vice - primeiro ministro entrou em
uma discussão ao afirmar que não entraria naquela conferência se soubesse que havia
judeus lá após ser questionado por um correspondente de Israel. Além do mais, o
mandatário iraquiano foi ao santuário de São Francisco e rezou com os franciscanos.
Cornwell208
afirma que ―aqueles que conheciam bem Aziz, incluindo os iraquianos no
exílio, protestaram, afirmando que os frades franciscanos tinham sido manipulados‖.
Mesmo sendo cumpridos todos os protocolos diplomáticos, no âmbito
individual não se pode dizer que o alcance do discurso é o mesmo entre a opinião
pública norte- americana e a postura dos governantes do Oriente Médio em face da
opinião pública mundial e a doutrina da paz católica.
Outro aspecto interessante de se apontar como contingência é o fator de saúde
do pontífice. No ano de 2003, João Paulo encontrava-se totalmente debilitado.
Cornwell209
afirma que ―uma vez mais, era evidente que ele estava a preparar-se para
embarcar em sua última grande jornada pontifícia, sem deixar nada ao acaso para
garantir a segurança de sua visão quanto ao futuro da Igreja Católica‖. Tal fator de
saúde levanta questões sobre a capacidade do pontífice de ainda ser efetivamente o
líder da instituição, tendo havido inclusive debates sobre uma possível renúncia do
Papa.
3.2.5 - A Interpretação do ato retórico na invasão do Iraque
Estas ações diplomáticas nos demonstram algumas peculiaridades.
Diferentemente do início do papado de João Paulo II quando ele interveio na América
207
Idem, p.285 208
Idem, p.286 209
Idem, p.288
126
Latina, neste início de século XXI a Igreja se preocupava com todas as nações do
mundo, fossem elas influenciadas pelo cristianismo (países com muitos católicos
principalmente) ou não, como no Iraque, um país onde católicos são praticamente
inexistentes. Tal condição, distinta da legitimidade do Canal de Beagle, mostra entre
outras coisas uma evolução e crescimento do ethos de João Paulo II.
A Santa Sé durante o papado de João Paulo II consolidou um status mundial de
portadora da mensagem de paz. Nos atentados de 11 de Setembro sua atitude não foi
diferente. A legitimidade alcançada pela Igreja neste período permitiu que ela se
manifestasse em lugares onde não possui enraizamento cultural. O poder simbólico
que isto representa é oriundo do capital simbólico adquirido também ao longo de
diversos papados, especialmente de João Paulo II. Uma característica desta condição
é a doutrina da paz, que vem de antes com a idéia de João Paulo II de transformar a
zona do litígio de Beagle em ―Zona da Paz”. Na questão iraquiana, a paz assume a
―vontade das nações‖ e exprime explicitamente um bem comum universal.
À luz da teoria de Bourdieu no livro A Economia das trocas simbólicas, a
reafirmação da encíclica Pacem in terris e do documento social Gaudium et spes
indicam a reprodução do capital simbólico. Tal encíclica e documento se mostraram
atualizadas mesmo em contextos diferentes daqueles de sua criação. No papado João
XXIII foi publicada a encíclica Pacem in terris (11/4/63), expressão latina que
significa paz na terra. Sua confecção se deu em uma época bastante conturbada, com
alguns fatos marcantes ao redor do globo. O ano de 1945 marcou o final da II Guerra
Mundial; neste mesmo ano, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), para
substituir a extinta Liga das Nações. Em 1947 ocorre a constituição do Bloco
Soviético, reunindo países do leste europeu ao redor de um bloco que ganhou o nome
ocidental de ―Cortina de Ferro‖, dando início ao que se chamou de ―Guerra Fria‖. No
ano seguinte, 1948, inicia-se uma corrida armamentista entre a União Soviética e os
Estados Unidos, em que triunfou o argumento de que a paz seria mantida por meio do
equilíbrio de poderes, ou seja, o temor que um tinha do outro era o que mantinha
ambos afastados de um confronto direto. Na verdade, o que os políticos tinham em
mente era o perigo de uma guerra sem limites. Tudo isso sob o medo da recente
127
descoberta, a aplicação de energia atômica aos armamentos de guerra. O ―pesadelo‖
atômico e o medo da destruição do planeta mostravam a fragilidade da segurança
global. Em contrapartida a tal situação, em 1948 a ONU aprova a Declaração dos
Direitos dos Homens, a primeira iniciativa mundial pela condição humana no planeta,
o ponto de partida para o que hoje de chama de Direitos Humanos.
Decorrente da Guerra Fria, em 1961 foi erguido em Berlim, na Alemanha, um
muro que se tornou conhecido como o Muro de Berlim. Esse muro, além de dividir a
cidade de Berlim ao meio, simbolizou a divisão do mundo em dois blocos ou partes:
Alemanha Ocidental, que era apoiada pelos países capitalistas encabeçados pelos
Estados Unidos e Alemanha Oriental, mantida e apoiada pelos países socialistas
simpatizantes do regime soviético. No ano seguinte, 1962, ocorreu a Crise dos
Mísseis em Cuba, três anos após a vitória da Revolução Cubana210
. Os soviéticos
haviam instalado mísseis nucleares em Cuba e os Estados Unidos descobriram,
divulgando fotos de um vôo secreto realizado sobre a ilha, onde havia cerca de 40
silos para abrigar mísseis nucleares. Consequentemente houve tensão mundial e
parecia que uma guerra nuclear parecia próxima pela primeira vez. O presidente
norte-americano, John F. Kennedy, avisou aos soviéticos que os Estados Unidos não
teriam dúvidas em usar armas nucleares contra esta iniciativa russa. Ou desativavam
os silos e retiravam os mísseis ou a guerra seria inevitável. Foram 13 dias de suspense
devido ao medo da guerra nuclear, até que no mês de outubro houve um acordo entre
as partes e os mísseis foram retirados de Cuba. Desde então, até o início dos anos
1990 o mundo esteve polarizado em duas superpotências ideológicas e vivendo o
temor constante das armas atômicas.
A Pacem in terris surgiu nesse contexto e foi uma ―resposta‖ às condições em
que estava o mundo. Tal Encíclica já se mostrara diferente das outras, pois foi a
primeira declaração da Igreja dirigida a todos os ―homens de boa vontade‖, ou seja, a
todas as pessoas do mundo e não somente aos membros da Igreja. Ela também
estabelecia a paz como um bem comum universal, trazendo à tona um conceito muito
210
Para melhor conhecimento sobre a Crise dos Mísseis em Cuba: GOTT, Richard. Cuba: uma nova história.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar. 2006.
128
conhecido no meio das Relações Internacionais, a reciprocidade, insistindo na
afirmação de que o mundo é uma Comunidade de Nações. A Encíclica foi uma
―aposta‖ da Igreja de que conflitos armados não são os melhores caminhos para
resolução de controvérsias, mas sim o diálogo. O documento papal exalta ainda
muitos aspectos dos direitos humanos, seguindo linha de pensamento semelhante à
Declaração Universal dos Direitos dos Homens (1948). Quando João XXIII escreve
esta encíclica, ele se baseia em alguns pontos que servem de pressupostos para sua
retórica: a paz como manifestação divina; a paz como construção obrigatória de
justiça; a paz como obrigação de governantes e povos; a paz e a justiça social; a paz e
os órgãos internacionais; ações urgentes.
João XXIII inicia a sua encíclica afirmando que ―a paz na terra, anseio
profundo dos seres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem
consolidar senão no pleno respeito da ordem instituída por Deus‖.211
Por isso, a paz
para ele é uma manifestação divina na história humana. Mais do que uma simples
afirmação, ao dizer que a paz é uma dádiva divina, João XXIII neste aspecto impede
de se vincular a paz a qualquer ideologia ou política humana. Sua convicção de que a
paz só é possível através da consciência da dignidade de cada ser humano pretende
ser uma afirmação totalmente apolítica, que transcende a própria Igreja. João Paulo II
usa muito bem esta posição apolítica em relação à paz e em suas ações contra a
invasão no Iraque, permitindo que a Santa Sé dialogue tanto com os Estados Unidos
quanto com o Iraque. A paz vem de Deus e é o desejo de todos os homens, não é a
vontade de nenhum líder político. Dessa forma o conceito ―paz‖ é universalizado.
Esta encíclica foi dividida em cinco partes e a terceira parte trata direto das
relações entre as comunidades políticas. João XXIII, neste capítulo da encíclica,
começa discorrendo sobre sujeitos de direitos e deveres, afirmando que os
governantes não podem jamais renunciar à sua dignidade natural, ou seja, não
escapam da lei moral. Os homens não podem perder sua condição humana à frente de
governos, que chegaram lá justamente por terem sido escolhidos por outros homens.
Em seguida, o documento trata das relações dos Estados na base da verdade e da
211
Pacem in Terris, introd., 1963
129
justiça, afirmando que as relações entre os Estados devem basear-se na verdade. O
que João XXIII trata aqui é um de seus eixos, a paz como construção obrigatória de
justiça, onde cria-se um vínculo entre a política e a moral. A paz para a Igreja é fruto
da ordem divina, e que deve ser realizada pelos homens de maneira justa. Sendo fruto
da justiça, é uma virtude moral. Como diz a encíclica, a política é uma atividade
humana e está sujeita ao juízo moral.
João Paulo II retoma esses aspectos da retórica de João XXIII em seu discurso
ao corpo diplomático em 2003, meses antes da invasão no Iraque, no entanto ele
amplia o conceito de paz para a política internacional, dizendo que as políticas não
estão em uma zona franca, livres de qualquer julgamento moral, pois ainda assim a
política é uma atividade humana. ―Enquanto aqueles que ocupam posições de
responsabilidade não aceitarem pôr corajosamente em questão o seu modo de gerir o
poder e de procurar o bem-estar dos seus povos, será difícil que se possa
verdadeiramente progredir rumo à paz‖.212
Um outro ponto importante nesta terceira parte da encíclica é referente ao
tratamento das minorias e à solidariedade ativa. O Papa João XXIII começa
afirmando que é injusta qualquer ação para reprimir as minorias. Os governos devem
promover o desenvolvimento das minorias raciais, através de medidas eficazes sobre
língua, cultura, tradições, etc. Na questão da solidariedade ativa, o Papa afirma que as
Relações Internacionais se desenvolvem através de solidariedade em diferentes
formas, como colaboração econômica, social, etc. Esta parte da encíclica é o outro
eixo de João XXIII, a paz e a justiça social. Sobre a ascensão das comunidades
políticas em fase de desenvolvimento econômico, o Papa instrui as nações
economicamente mais desenvolvidas a auxiliarem as menos desenvolvidas. As
nações menores não podem ser privadas de seus direitos a autonomia política e a
tutela em seu desenvolvimento econômico. Entretanto, as nações que ajudam as
menos desenvolvidas devem respeitar as características de cada povo, abstendo de
qualquer tipo de domínio. A paz e a justiça social também passam pelo campo
212
JOÃO PAULO II. Pacem in terris: um compromisso permanente in L’Osservatore Romano, em 21 de
Dezembro de 2002. p.08
130
econômico. João Paulo II também utiliza esta linha de pensamento em seu discurso
contra a guerra em 2003, só que a paz como justiça social utilizada por ele, fica como
uma crítica aos países desenvolvidos e um pedido para que se auxiliem os países em
desenvolvimento. No jornal oficial da Igreja assim ele se expressa: ―Ao mesmo
tempo, somos testemunhas de um fosso preocupante que se vai alargando entre uma
série de novos direitos promovidos nas sociedades tecnologicamente avançadas e os
direitos humanos elementares que ainda não são respeitado sobretudo em situações de
subdesenvolvimento‖.213
A corrida armamentista e o desarmamento não ficaram fora desta encíclica.
João XXIII enxergava que países desenvolvidos empregavam muitos esforços na
construção de armamentos enquanto outros menos desenvolvidos careciam de ajuda.
Estes países justificavam esta corrida armamentista através da afirmação de que a paz
se assegura com o equilíbrio de forças. Para o Papa, o resultado deste pensamento e
de suas conseqüentes ações era uma ameaça constante para a paz e um terror
permanente. Assim, por meio da Encíclica, a posição da Igreja fica clara acerca deste
tema, uma vez que, para ela, a paz não se constrói com armas. João XXIII acreditava
que era necessário reduzir e eliminar os armamentos das nações, na base de garantias
mútuas e eficazes. O que vemos aqui é uma espécie de programa de princípios,
deixando bem claro a responsabilidade dos atores internacionais com seus atos ao
redor do mundo. O pontífice também instrui os chefes de Estado a não pouparem
esforços enquanto o curso dos acontecimentos humanos não se conformarem (ou não
fizerem parte) da razão e a dignidade do homem. Ainda neste ponto, João XXIII faz
uma leve menção às Assembleias Internacionais ocorridas na ONU, dizendo que tais
reuniões não devem ser esquecidas. João XXIII condenava as armas e a guerra em
qualquer hipótese. Para ele, nenhum tipo de conflito era justificável, nem mesmo um
eventual para se defender ele não achava certo.
Em outras palavras, João XXIII fala em responsabilidade e apoia-se na questão
da paz como obrigação de governantes e povos, já que havia definido a paz como um
bem comum universal. Diferente é a retórica de João Paulo II, que em 2003, acerca
213
Ibid. p.08
131
da questão do Iraque, vincula a esta obrigação não só os líderes políticos, mas
também todas as pessoas, individualizando a responsabilidade. Nesse aspecto a Santa
Sé mostra, na perspectiva cristã, que a paz não está vinculada unicamente às
instituições nacionais ou internacionais, mas é também responsabilidade de cada
homem e cada mulher, de maneira pessoal. Do mesmo modo que a paz é um bem
comum universal, um direito do homem, o homem tem que cumprir com seus
deveres. A paz como obrigação de governantes e povos é a afirmação de que cada um
tem um dever para com a paz: a mensagem é para todos, de ser humano para ser
humano. O auditório universal. Esse ponto de vista é externado por ele com as
seguintes palavras: ―Uma maior consciência dos deveres humanos universais seria de
grande benefício para a causa da paz, porque lhe daria a base moral do
reconhecimento compartilhado de uma ordem das coisas, que não depende da
vontade de um indivíduo ou de um grupo‖.214
Estes são alguns dos aspectos principais da encíclica Pacem in Terris em
âmbito internacional. A paz para a ICAR passa também por um documento social:
Gaudium et Spes, do latim, as alegrias e esperanças. Este documento foi publicado no
ano de 1965, ao final do Concílio Vaticano Segundo, portanto dois anos após a
Pacem in Terris.
A Gaudium et Spes foi o último trabalho feito no Concílio Vaticano II. No
entre período de Concílio, falecera o Papa João XXIII e fora eleito seu sucessor,
Paulo VI. Independentemente da troca de papas, a Guerra Fria era uma realidade. A
preocupação com a questão de armamentos era crescente e foi um tema muito
debatido na Gaudium et Spes. Este documento segue basicamente a mesma linha da
Pacem in Terris, entretanto, a Gaudium et Spes foi feita no concílio, ou seja, foi
debatida entre diversas pessoas, enquanto a encíclica predecessora desta foi feita
somente pelo Papa João XXIII.
A quinta parte deste documento trata da promoção da paz e da comunidade
internacional. A encíclica assinada por Paulo VI afirma que a paz não é a ausência de
guerra nem o equilíbrio de forças adversas, condena também dominação despótica.
214
Ibid. p.08
132
Em uma seção deste mesmo capítulo, discorre sobre o princípio da defesa, afirmando
que uma guerra de defesa é justa, pois a guerra nunca foi eliminada do mundo dos
homens, não podendo negar aos governos o direito de legítima defesa quando
esgotados todos os meios de se resolver algum impasse. Entretanto, continua
condenando a corrida armamentista. Paulo VI afirma que para dissuadir possíveis
inimigos, muitos pensam que o acumulo de armas é o meio mais eficaz para
assegurar certa paz entre as nações, porém a corrida dos armamentos é um flagelo
para a humanidade e prejudica os pobres de um modo intolerável.
Notamos a diferença no princípio da legítima defesa, pois na encíclica Pacem
in Terris de João XXIII, a guerra é condenada de todas as formas, e já na Gaudium et
Spes de Paulo VI, fica legítimo o direito de um Estado defender-se em último caso.
Esta é a principal diferença entre elas.
Esses dois documentos são semelhantes entre si, pois o que foi tratado por João
XXIII também aparece na Gaudium et Spes, a encíclica que afirma ser necessário um
comum acordo das nações, fazendo clara alusão ao papel da ONU. A visão sobre a
paz e os órgãos internacionais mostra como a posição de João XXIII na época da
encíclica (1963) e o Concílio Vaticano II (que se encerrou em 1965) colocavam
esperanças na ONU e na Declaração dos Direitos Humanos. João Paulo II, 40 anos
depois, a Igreja ainda utiliza essa mesma posição só que agora pedindo uma atitude
mais efetiva das Nações Unidas, uma vez que estar a ONU mais consolidada, 40 anos
depois desta publicação. Por isso, João Paulo II em sua retórica se refere a esta
instituição como uma autoridade pública a nível internacional, com uma capacidade
efetiva de promover o bem comum universal, a serviço dos direitos humanos, da
liberdade e da paz. A Igreja aposta na eficácia da ONU, tanto que uma das ações que
se encaixa dentre as mais relevantes para evitar a guerra do Iraque em 2003 foi a
declaração do observador permanente da Santa Sé na ONU, o Cardeal Celestino
Migliori, que exaltou o papel dessa organização na relação entre os povos:
Com efeito, em tal Declaração [Declaração Universal dos Direitos dos
Homens de 1948] estavam fixados os fundamentos morais onde seria possível
apoiar a edificação de um mundo caracterizado pela ordem em vez da desordem,
133
pelo diálogo em lugar da força. Nesta linha, o Papa [João XXIII] deixava a
entender que a defesa dos direitos humanos pela Organização das Nações Unidas
era o pressuposto indispensável para o aumento da sua capacidade de promover e
defender a segurança internacional.215
Outro aspecto tratado na Encíclica é a construção de uma comunidade
internacional, onde fica clara a idéia de que as instituições internacionais devem
prover as necessidades dos homens como alimentação, saúde, educação, trabalho, etc.
Afirma também, como na encíclica Pacem in Terris, que nações desenvolvidas
devem ajudar as menos desenvolvidas, não como dominadora, mas sim como
cooperadora.
Importa, porém, evitar equívocos: aqui não se pretende aludir à constituição
de um super-Estado global; a intenção é, antes, sublinhar a urgência de acelerar os
processos já em curso que visam responder à solicitação quase universal de formas
democráticas no exercício da autoridade política, quer nacional quer
internacional, e também ao pedido de transparência e credibilidade a todos os
níveis da vida pública; penso, também, no direito à alimentação, à água potável, à
casa, à autodeterminação e à independência. A paz exige que esta distância seja
urgentemente reduzida, até ser superada.216
João Paulo II quando tenta interferir contra a invasão do Iraque, não o faz por
livre e espontânea vontade. Ele baseia-se na posição cristã consolidada no início dos
anos 60 nestes documentos e ressignifica a questão da paz, adaptando-se aos
interesses dos Estados Unidos. Em seus respectivos contexto, estes documentos da
Igreja foram como uma resposta à situação em que o mundo se encontrava. Enquanto
as duas superpotências se armavam na suposição de que estariam assim garantindo o
equilíbrio mundial, o Papa João XXIII percebia que um outro caminho podia ser
traçado, escrevendo uma Encíclica voltada para todas as pessoas, trazendo a paz
como um bem comum universal e tratando o mundo como uma comunidade de
nações. Ele estabelece isso como princípio e começa a exigir retoricamente para a
215
Idem, p.08 216
Idem.
134
Igreja um papel de interlocução. É criada, então, uma espécie de ―doutrina‖ da paz,
uma paz quase que utópica e que pode ser consolidada sem armas, através do diálogo
e da consolidação dos direitos humanos. Este viés fica claro no papel da Igreja no
mundo neste período final do papado de João Paulo II.
3.2.6 - O julgamento do ato retórico na invasão do Iraque (2003)
Para julgar este ato retórico, utilizamos neste texto o critério pragmático.
Novamente à luz da teoria das relações internacionais, foca-se o discurso da Igreja
versus a ação da Igreja. O discurso da Igreja não é conflitante com a ação, como
muitos pensam, e sim o discurso é uma das peças-chave de suas ações. A arma para
as ―batalhas‖ diplomáticas que a Igreja trava ao redor do mundo é a palavra. A
habilidade com que a Igreja, principalmente através do Papa João Paulo II, utilizou-se
do jogo de palavras em prol de seus interesses é algo relevante. Ela manda seus
recados ao mesmo tempo em que não abre lacuna alguma para qualquer tipo de
conflito vindo de uma posição contrária. Dentro de um mesmo contexto, a Santa Sé é
capaz de transitar desde uma ação ativa de prevenção ao invés de retaliação, até o uso
da expressão ―filhos de Abraão‖, falando em nome de judeus, muçulmanos e cristãos.
O discurso da Igreja e a utilização minuciosa de palavras é o grande trunfo que
esta instituição utiliza para tentar evitar a invasão no Iraque. Embora houvesse um
grande esforço, para a teoria das Relações Internacionais, a ICAR agiu por princípios
idealista e wilsoniana, na medida em que mostrou o que se deve fazer e não o que é.
Seu discurso neste caso não trouxe conseqüências realistas a sua investida, vez que o
Iraque foi invadido, o único fato que seria de ordem realista e o próprio objeto da
investida da retórica católica.
135
Conclusão
Ao analisar retoricamente através dos seis passos propostos por Tereza
Halliday, notam-se algumas diferenças e semelhanças entre os atos retóricos nos
extremos do papado de João Paulo II – um no início e outro no final. Os antecedentes
retóricos de ambos os atos contextualizaram uma época propícia ao conflito armado.
Porém, um conflito quase ocorreu por questões limítrofes, enquanto o outro ocorreu
por uma premissa muito além das fronteiras. O Vaticano em ambos os casos só pode
se utilizar da habilidade retórica para ser um ator retórico nos conflitos.
Contextos semelhantes, problemas distintos. O ato retórico em questão no
Canal de Beagle foi a mediação de um litígio entre dois países vizinhos na América
Latina, local de grande concentração de católicos. Já o ato retórico no Iraque foi uma
ação diplomática por parte do Vaticano sobre os integrantes do conflito, os Estados
Unidos e o Iraque, a fim de impedir a invasão premeditada por parte dos americanos.
Nesta questão a Igreja Católica caminharia por terrenos desfavoráveis, pois nos
Estados Unidos a maioria é protestante e no Iraque a maioria é muçulmana. A prática
retórica do Iraque foi muito mais trabalhosa do que a da América Latina, pois era um
conflito além de qualquer perspectiva da Igreja. Porém, por um ideal de paz
universal, ela interveio diplomaticamente com uma legitimidade que era não só dos
fiéis, mas do auditório universal. Isso caracteriza um papel diferente dos habituais
desta instituição, não era somente episcopal.
Os atos retóricos se caracterizaram como tal por se utilizarem de figuras
retóricas e terem por função persuadir. No conflito de Beagle o discurso foi feito pelo
próprio João Paulo II, enquanto na questão iraquiana a ação diplomática envolveu
diversas autoridades católicas. Como afirma Halliday, todos os discursos possuem
suas limitações. Em Beagle a legitimidade de João Paulo II era questionável devido a
sua recém eleição, já no Iraque, seu ethos era de uma autoridade em questão de paz.
Até um de seus cardeais o utiliza como argumento de autoridade. Em Beagle, os
governos eram ditaduras militares, porém católicas. Já no caso da invasão do Iraque,
ambos os países eram em sua maioria, de outras religiões e não a católica, nos
136
Estados Unidos majoritariamente predomina o protestantismo e no Iraque os
muçulmanos. Porém, a autoridade moral do pontífice era considerável a ponto de sua
investida diplomática conseguir certa notoriedade.
A questão da paz mostrou-se constante na retórica de João Paulo II durante o
seu papado. Em Beagle ele esboçava algo com relação a ela, tentou até declarar o
local como Zona de Paz. Já no Iraque a paz era o bem comum da população mundial.
Isto só é possível ao seu capital simbólico adquirido na construção de seu ethos no
decorrer de seu papado. Tal perspectiva corrobora com a leitura à luz das Relações
Internacionais que o Vaticano é um ator global em plena atividade.
137
Considerações Finais
Há muito tempo atrás, na Grécia antiga, a Retórica já estava presente entre
filósofos e oradores. Sua função e seu legado mudaram no decorrer dos anos, porém,
ela sempre esteve presente em todos os povos e línguas. Sua função é persuadir, levar
a crer em algo. Para que isto aconteça, é necessário que exista um orador e um
auditório a ser persuadido. Entretanto, este termo pode tomar conotações negativas
em relação ao seu sentido original. Isto pode levar a uma grande confusão e
desvalorização da retórica; este sentido pejorativo apareceu muito tempo depois do
surgimento da Retórica. Para que um ato retórico tenha efeito, é necessário um
acordo prévio entre o orador e seu auditório. Como persuadir quando este acordo não
parece tão óbvio? Esta é a questão que permeia a retórica da Igreja Católica no
papado de João Paulo II.
A instituição milenar que é liderada entre 1978 e 2005 por João Paulo II parece
estar fora do contexto secular em que se deu este papado. Além disto, trata-se
também de uma retórica que envolve necessariamente a religião. Como articular,
então, uma retórica religiosa em dissonância com o mundo em que habita? Esta é a
questão que tentamos responder na pesquisa empreendida.
O caminho escolhido para a busca desta resposta passou pela definição de
retórica que, segundo Reboul, é a arte de persuadir pelo discurso. Quem quer
persuadir se utiliza da palavra, ou melhor, da combinação ou jogo de palavras que lhe
é favorável. Os atos retóricos se caracterizaram como tal por se utilizarem de figuras
retóricas e terem por função persuadir. Mas persuadir quem? Quem quer persuadir?
Por que persuadir? Estas respostas não são possíveis somente se sustentando na
definição de prática retórica sem seus respectivos atores e contextos. Na elaboração
do referencial teórico procuramos nos basear nas contribuições de Tereza Halliday.
A Igreja Católica foi, por muito tempo, a referência de comportamento moral,
jurídico, econômico e ético no Ocidente. Seu poder era enorme e sua influência
praticamente impossível de se esquivar. Tudo passava necessariamente por ela. O
138
controle da sociedade estava em suas mãos. Ao longo do tempo, frutos de diversos
processos sociais, este poder foi se esvaecendo. A secularização é um destes
processos. Secularização é comumente associada ao esvaziamento da Igreja, porém
sua conseqüência principal é a perda de referência religiosa no Ocidente. Quando
uma grande instituição como a Igreja Católica perde o poder de outrora, não pode
continuar com os mesmos discursos e ideais, pois já não são compatíveis com o
mundo em que se encontra. Ora, vivemos em uma sociedade que não se pode querer
estar fora dela estando dentro dela. Este parece ser o primeiro ponto destoante do
pensamento da Igreja Católica instituição.
O outro processo que mudou radicalmente o papel da Igreja, principalmente
nos séculos XIX ao XXI foi a modernidade. Assim como o conceito de secularização
é associado ao esvaziamento das igrejas, o conceito de modernidade é comumente
associado à evolução das tecnologias. Porém, este conceito perpassa esta questão e
está diretamente ligado à mentalidade do indivíduo. Na modernidade, o individuo
passa a questionar os valores que lhe são inculcados por uma instituição, no caso, a
Igreja Católica. Este indivíduo pensa e escolhe o seu destino por conta própria. Não
mais existe uma referência religiosa que detém o absoluto do conhecimento. Este
indivíduo adquire uma autonomia devido ao desencantamento que se processa nas
sociedades ocidentais.
Assim, quando falamos em religião, naturalmente pensamos no mistério, no
transcendente que ela pode proporcionar. É um mundo encantado pelo sobrenatural, o
não palpável para os humanos. A partir do momento que a religião passa a não
conseguir mais explicar ou prover este mundo sobrenatural, é que ela se desencanta.
O desencantamento do mundo, conceito clássico de Max Weber, passa pela evolução
das ciências. A partir do momento que a ciência explica a maioria dos fenômenos -
prova a tese por A mais B - a religião perde sua capacidade de ―domar‖ este
sobrenatural. Assim, a secularização, a modernidade e o desencantamento foram
fatores preponderantes para a mudança do papel central da religião no cotidiano das
sociedades ocidentais para um papel secundário, ou melhor, para um papel de
coadjuvante.
139
Considerando que o cristianismo, primeiramente em sua forma católica, se
tornou a religião oficial do Império Romano em torno do ano 300, até o século XIX
foi um longo período de hegemonia e enraizamento cultural. Quando chegamos ao
início destes processos de secularização, modernidade e desencantamento, mesmo
com o declínio de seu poder, a religião cristã possuía uma bagagem adquirida ao
longo destes séculos. Isto é o que Pierre Bourdieu (A Economia das trocas
simbólicas, 1987) chama de capital simbólico. Isto mantém certa legitimidade diante
dos indivíduos. Eles passam a não precisarem mais de uma referencia religiosa ou da
força da tradição, embora ainda reconhecem a Igreja como uma instituição religiosa
importante.
No período em que a Igreja foi hegemônica, o capital simbólico acumulado por
ela foi significativo. Dentro deste capital, pode-se afirmar que a prática retórica está
presente. Mesmo que esta pesquisa foque a retórica no papado de João Paulo II no
século XX, a prática retórica já foi há muito praticada por muitos papas antes do
pontífice polonês. Bourdieu (A Economia das trocas lingüísticas, 1988) afirma que a
língua é um reflexo do contexto social da época. Assim, fica claro que, embora a
prática retórica sempre estivesse presente, seu conteúdo e aplicações sempre foram
diferentes, porém, nenhuma prática retórica antiga da Igreja Católica foi feita em um
contexto desfavorável não somente para a Igreja em si, mas para a própria religião.
Fazendo eco ao contexto desfavorável, Gauchet (El desencantamiento del
mundo, 2005) ainda afirma que o surgimento do Estado foi o fator nevrálgico para a
mudança de papel da religião. Quando então a Igreja se separa do Estado, o poder da
Igreja fica ainda mais comprometido, pois o Estado passa a prover os indivíduos de
coisas que até então a religião lhes oferecia. Além disso, o autor afirma que o
cristianismo foi a ―religião para a saída da religião‖, pois é ela que fornece as
condições para que a religião inverta sua lógica: ao encarnar humanamente o Deus
vivo e ser uma religião racionalizada e institucionalizada, automaticamente o caráter
original de encanto e magia que se tinha nas sociedades primitivas deu lugar a uma
religião onde o contato com a divindade se dá de maneira direta, entre o homem e o
Deus. Esta relação que passa a ser direta não se dá mais de cima (o além) para baixo
140
(o mundo terreno). É este o contexto em que se localiza e com o qual o papado de
João Paulo II se depara.
Para uma instituição burocrática, de longa existência, que não detém mais o
monopólio do poder, mas que possui uma bagagem adquirida ao longo de quase duas
dezenas de séculos, o caminho que lhe parece mais favorável é o caminho político.
Como já foi afirmado, a Igreja é uma instituição burocrática, daí ser impossível a
inexistência de uma ação política em sua essência. Mesmo sendo uma instituição
confessional ela possui um território soberano que lhe dá condições de ser um ator
com certo destaque no campo das relações internacionais. E por se tratar de soberania
e relações internacionais, é impossível que não haja diplomacia, afinal, existem
diversos Estados soberanos no mundo com quem mantém relações. Neste contexto, a
prática retórica ganha mais força ainda. A Igreja Católica tem em mãos um capital
simbólico e um caminho onde a habilidade política é o meio de sobrevivência. Em
outros tempos, ou melhor, em outras condições, a violência pode ser um artifício
comumente usado nas relações entre os Estados. Porém, justamente por se tratar de
uma instituição confessional, a não violência é o alicerce principal de sua prática
retórica, o único meio dela se fazer presente e atuante neste contexto.
Um aspecto interessante que a pesquisa nos mostrou é o volume de relações de
hierarquia e poder existentes dentro da própria instituição. Isto é necessário para sua
sobrevivência. Assim como um atleta ou um artista treina por muitas horas ao longo
de todos os dias sua especialidade, quando este vai se apresentar ou competir, o seu
feito nada mais do que um reflexo de seu treinamento cotidiano. Em paralelo a este
exemplo, se o cotidiano da Igreja Católica nas suas relações dentro do Vaticano é
essencialmente político, quando ela atua no contexto internacional sua postura é
também um reflexo de seu funcionamento. Porém, algo que lhe caracteriza como
diferente de outros atores internacionais é seu caráter confessional; é praticamente
impossível distinguir quando um sacerdote ou o próprio Papa, por exemplo, pratica
um ato diplomático como Papa ou como Chefe de Estado. Não dá para saber o ponto
exato onde começa a função de líder espiritual ou onde termina seu papel de
141
governante laico. Isto pode ser um trunfo para o pontífice como pode ser também um
fardo a carregar.
No papado de João Paulo II, diversos autores defendem que a dimensão que
este tomou, em termos de alcance tanto geográfico como simbólico, só foi possível
devido ao uso do político e da mídia pelo Pontífice. João Paulo II foi uma das
personalidades mais conhecidas do século XX em todo o mundo. Em um contexto
secular, plural e sem referência religiosa, parece coerente que este status alcançado
por João Paulo II seja oriundo de seu caráter político.
Autores como Patrick Michel (Nem todos os caminhos levam à Roma, 199)
defendem que o divisor de águas deste papado foi a queda do comunismo no leste
europeu. A dimensão política do papado foi tamanha que uma questão como esta, que
influenciou diretamente a soberania de diversos países, foi uma façanha realizada
somente através da prática retórica (que aqui envolve diplomacia, simbolismo,
ideologia, entre outros fatores) sem o uso da violência por parte do ―vencedor‖ da
queda de braço. A retórica é uma infantaria poderosa se o seu general sabe como usá-
la.
Como tudo que envolve relações entre indivíduos, nada se dá da noite para o
dia. Assim como a prática retórica da Igreja Católica foi um processo ao longo dos
séculos, João Paulo II também foi aperfeiçoando sua peculiar prática retórica ao
longo de seu papado. Justamente por ser um papado em um contexto relativamente
recente, do qual se conhece o começo, o meio e o fim, é que foi escolhida por nós na
analise da retórica da Igreja neste período. Mesmo assim sendo, duas práticas
retóricas aparentemente distantes uma da outra, foram escolhidas foi para se tentar
identificar alguma evolução ou involução nesse processo. Retórica trata de discurso,
um orador e um auditório. Quando se buscou analisar o discurso no conflito pela
soberania do Canal de Beagle entre Chile e Argentina em 1979 e sobre a invasão do
Iraque pelos Estados Unidos em 2003, os discursos a serem analisados foram os de
caráter oficial e disponíveis ao público. Em nenhum momento o pesquisador teve
acesso a possíveis documentos secretos que nem se sabe se possam existir. Mesmo
assim, os discursos oficiais obtidos se tornaram uma rica fonte de pesquisa.
142
Nos atos retóricos escolhidos, João Paulo II enfrentou, como líder da
instituição, contextos diferentes e que foram preponderantes na elaboração da prática
retórica. No caso de Beagle, João Paulo era um pontífice recém eleito e não se sabia
ainda o quanto sua imagem era carregada de capital simbólico. Já no conflito do
Iraque o Papa havia consolidado seu ethos de pacificador e de um homem que estava
além da sua função de líder espiritual.
Ambos os conflitos foram questões de violência premeditada. João Paulo II,
porém, não cria nenhuma idéia nova sobre a questão, ele reproduz um capital que a
Igreja já possuía. Isto reflete o quanto o capital simbólico da instituição ainda tem seu
peso. Caminhando por entre diversas figuras de linguagem a fim de por em prática
sua retórica, vale ressaltar que algumas dessas, que se fazem presente não só pela
ocasião dos conflitos em si, mas também pela condição da retórica religiosa de um
pontífice em momentos de tensão militar; procuramos nos atar à hipérbole, à figura
que tende ao exagero, principalmente em questões religiosas, com o objetivo de
aumentar o divino; e a apóstrofe, figura na qual o discurso vai também para um
auditório que não é o do orador. Quando João Paulo II fala de questões como a paz,
por exemplo, ele não somente fala para o auditório do conflito em Beagle ou no
Iraque, ele tenta alcançar a todo mundo, o que é outra figura retórica, o auditório
universal. Em todo o momento elementos que caracterizam o discurso retórico, o
discurso que tem por finalidade persuadir, aparecem nas alocuções de João Paulo II.
Quando João Paulo II intervém na questão iraquiana, seu discurso teoricamente
não teria peso perante os envolvidos nos conflitos, pois ambos os países não são de
tradição católica. Entretanto, o fato de ele agir politicamente, não abre margem ao
confronto religioso, mas sim moral. Pois neste período final do seu papado seu ethos
já está consolidado não somente como líder religioso, mas também como pacificador
e portador não só da voz da Igreja Católica, mas também da voz da opinião pública
mundial.
No primeiro conflito, a prática retórica foi na forma de uma mediação – o que
não deixa de ser diplomática. No segundo momento desta análise retórica, a arte da
persuasão se deu na forma explícita de diplomacia, com atos simultâneos com os
143
envolvidos, sendo sempre noticiados em tempo real por diversos veículos de
comunicação em todo o mundo. Claro que não se pode negligenciar a evolução dos
meios de comunicação para tal feito, porém não se pode também dedicar este
panorama somente aos meios de comunicação. Caso a visibilidade de João Paulo II,
para não se supor em demasia, fosse diferente, com certeza a cobertura dos modernos
meios de comunicação seria outra.
Um aspecto interessante que ficou também explícito nesta pesquisa, é que a
articulação por parte da Santa Sé nestes conflitos é centrado na figura emblemática do
Papa. A todo o momento é citado João Paulo II, porém a mediação em Beagle foi da
Santa Sé. Na invasão ao Iraque quem designou os embaixadores foi a Santa Sé.
Como afirma Reese (O Vaticano por dentro, 1997), o Papa além de um indivíduo é
uma instituição e isto fica claro nas conotações em que parece que João Paulo II
perpassa a própria Sé Apostólica Romana.
Esta pesquisa mostrou também que a prática retórica é um meio poderoso não
só de persuasão, mas também de poder. Em dois momentos distintos um líder
religioso assume ethos diferentes, houve uma evolução neste sentido, e enfrenta em
ambos os momentos a real possibilidade de conflitos armados ocorrerem. Em uma
das ocasiões, onde não se tinha ainda conhecimento ou idéia de como seria seu
papado, o conflito foi evitado. Em outro, onde seu papado já estava consolidado e
tinha um legado, o conflito não foi evitado. Isto pode ser um indicador de uma
ascensão e queda do seu papado, como também pode indicar alguma outra mudança
no contexto das sociedades que somente uma nova pesquisa pode tentar responder.
Outras considerações que abrem lacunas para que esta pesquisa continue,
também aparecem. Por exemplo: houve alguma evolução no papel de João Paulo II?
Se houve, como e quando ela ocorreu?
Finalmente ficou claro para nós que as diversas situações retóricas colocadas
em prática pela Igreja Católica estão atreladas a determinados momentos históricos,
econômicos e culturais. A ação retórica não ocorre, portanto, no vazio, mas sempre
em contextos reais e concretos.
144
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