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07/07/2016 Marcos Paulo Santa Rosa Matos: As representações do Nordeste em "A triste partida" de Luiz Gonzaga nº 47 Espéculo (UCM) https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero47/tristepar.html 1/18 As representações do Nordeste em "A triste partida" de Luiz Gonzaga Marcos Paulo Santa Rosa Matos Faculdade de Ciências Humanas e Sociais Ages Paripiranga, Bahia, Brasil [email protected] Localice en este documento Buscar Resumo: o presente artigo se propõe analisar a música “A triste partida” de Luiz Gonzaga do Nascimento sob o prisma da representação ideológica do Nordeste Brasileiro, procurando mostrar a via discursiva de afirmação e apologia da identidade nordestina através da análise lingüísticoliterária e do estruturalismo antropológico. Palavraschave: Nordeste; Luiz Gonzaga; Identidade. Resumen: este artículo tiene como objetivo analizar la canción "El triste partida" de Luiz Gonzaga do Nascimento a través del prisma de la representación ideológica del nordeste brasileño, tratando de mostrar los medios discursivos de afirmación y reivindicación de la identidad del Nordeste mediante el examen de lingüística y literatura, y del estructuralismo antropológico. Palabras clave: Nordeste; Luiz Gonzaga; Identidad. Matériaprima Tudo temos de primeira, sim Valor humano Gente honesta e ordeira também (Luiz Gonzaga)

As representações do Nordeste em \"A triste partida\" de Luiz Gonzaga (I)

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07/07/2016 Marcos Paulo Santa Rosa Matos: As representações do Nordeste em "A triste partida" de Luiz Gonzaga­ nº 47 Espéculo (UCM)

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As representações do Nordeste em "A triste partida"de Luiz Gonzaga

Marcos Paulo Santa Rosa Matos

Faculdade de Ciências Humanas e Sociais ­ AgesParipiranga, Bahia, [email protected]

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Resumo: o presente artigo se propõe analisar a música “A triste partida” de Luiz Gonzagado Nascimento sob o prisma da representação ideológica do Nordeste Brasileiro,procurando mostrar a via discursiva de afirmação e apologia da identidade nordestinaatravés da análise lingüístico­literária e do estruturalismo antropológico. Palavras­chave: Nordeste; Luiz Gonzaga; Identidade.

Resumen: este artículo tiene como objetivo analizar la canción "El triste partida" de LuizGonzaga do Nascimento a través del prisma de la representación ideológica del nordestebrasileño, tratando de mostrar los medios discursivos de afirmación y reivindicación de laidentidad del Nordeste mediante el examen de lingüística y literatura, y del estructuralismoantropológico.Palabras clave: Nordeste; Luiz Gonzaga; Identidad.

Matéria­primaTudo temos de primeira, simValor humanoGente honesta e ordeira também(Luiz Gonzaga)

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1 INTRODUÇÃO

Objetivamos, neste trabalho, mostrar como os elementos discursivos da representação simbólicado Nordeste na obra “A triste partida” de Luiz Gonzaga torna­se uma metanarrativa e uma apologiado ser nordestino. Ou seja, esclarecer de que modo Luiz Gonzaga, como representante e defensor doNordeste, procura, na obra analisada, por um jogo de simbolizações estabelecer a imagem de umNordeste uno e ideal, motivo de orgulho e de engajamento histórico para os sujeitos que dele fazemparte.

Para tanto, inicialmente proceder­se­á uma contextualização do autor e de sua obra, comojustificativa histórica da nordestinidade por ele assumida e defendida, e, seguidamente, uma análiselingüístico­literária e cultural­ideológica dos discursos textualizados na música analisada.

2 “A TRISTE PARTIDA” E O LEGADO GONZAGUENSE

A obra de Luiz Gonzaga do Nascimento, o “Rei do Baião”, é emblemática no que diz respeito àidentidade nordestina. Ele é o grande nome da música popular dessa região, e não somente dela, elerepresenta e encarna aquilo que o povo nordestino sente e declara como sendo sua cultura, seu modode vida, suas experiências existenciais, sua luta constante contra a fome, a seca e a opressão.

Em suas canções, Luiz Gonzaga procurava imitar a língua do povo, de seu povo, para melhorpoder lhes falar, bem como uma anamnese de suas origens e do universo que ele ajudou a consagrarcomo uma fonte de poesia, de beleza, de luta, de coragem e resistência.

Luiz cantou o sertão não apenas enquanto temática, mas sobretudo como linguagem. Eleincorporou e encarnou o homem nordestino, com suas vestimentas, seus valores, seus sonhos, esobretudo sua forma de expressar­se, e fez disso cartão de visita e emblema de sua obra artística.

O alcance de sua produção, mais do que sua pessoa, fazem daquilo que ele entoou verdadeirocatecismo do modus essendi do Nordeste do Brasil. Elba Ramalho canta, numa apologia à “pátrianordestina” que uma de suas músicas seria o Hino Nacional:

Já que existe no sul esse conceito / Que o nordeste é ruim, seco e ingrato / Já queexiste a separação de fato / É preciso torná­la de direito / Quando um dia qualquer issofor feito / Todos dois vão lucrar imensamente / Começando uma vida diferente

De que a gente até hoje tem vivido / Imagina o Brasil ser dividido / E o nordeste ficarindependente / [...] / O idioma ia ser nordestinense / A bandeira de renda cearense / “AsaBranca” era o hino nacional [2]

A canção Asa Branca possui um destaque especial porque, de autoria da dupla Luis Gonzaga eHumberto Teixeira, composta em 3 de março de 1947, foi cantada pelo próprio Luis Gonzaga eposteriormente por vários artistas, entre eles Lulu Santos, Fagner, Caetano Veloso, Elis Regina,Eduardo Araújo, Agnaldo Rayol, Paulo Diniz, Tom Zé, Chitãozinho e Xororó e Ney Matogrosso,Badi Assad, Maria Bethânia, Gilberto Gil, Luiz Bordon, Demis Roussos e Raul Seixas [3], entreoutros. Ela foi eleita pela Academia Brasileira de Letras em 1997 como a segunda canção brasileiramais marcante do século XX, empatada com Carinhoso, o choro que Pixinguinha compôs em 1917,e seguida apenas de Aquarela do Brasil, composta por Ari Barroso em 1939. O sucesso e apermanência dessa canção, que vendeu um milhão de copias logo nos primeiros anos de suagravação, são incontestes.

O que é idiossincrático em Luiz é que ele não apenas interpretou artisticamente o universo culturalnordestino, uma vez que muitos outros o fizeram, mas também porque assumiu a linguagemestigmatizada do nordestino, transformando o estereotipo em emblema, em bandeira de identidade,orgulho de ser nordestino e de falar “nordestinês”.

É a partir dessa contestação que surge o problema norteador desse estudo: como Luiz transformou

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o cantar o Nordeste no definir o Nordeste, sob uma perspectiva de narrativa da identidade e defesada cultura regional. Escolhemos para isso a música A triste partida [4] por motivações de ordemafetiva, encontradas no próprio Luiz, pois ela afirmar ser essa sua canção preferida (PIMENTEL,2007: 22).

A triste partida apareceu pela primeira em um disco de mesmo nome, vez em 1964:

[...] uma época não muito boa para Gonzaga, uma vez que, com o surgimento daBossa Nova e depois da Jovem Guarda, as emissoras de rádio das capitais e das grandescidades brasileiras deixaram de tocar as suas músicas. Até nas grandes cidades nordestinascomo Caruaru, Campina Grande e Feira de Santana, Luiz só era tocado em programasregionais que buscavam a audiência do homem do campo.

Luiz Gonzaga andava muito triste e achava que tinha chegado o momento de encerrara carreira. A capa desse disco é emblemática, pois só traz a sua sanfona branca e umchapéu de couro. Ele, que sempre aparecia nas alegres capas de seus discos, desta vezficou ausente. Mais ou menos um ano antes, passeando pela feira de Campina Grande,viu um violeiro cantando uma toada, que é o lamento sertanejo em forma de gêneromusical. Aproximou­se e perguntou: “Essa música é sua?”. Ouviu o seguinte: “Não,senhor, é do poeta Patativa do Assaré, lá do Ceará”. Patativa que, se vivo fosse, teriacompletado cem anos em março de 2009.

Gonzaga sabia onde encontrar Patativa e assim, depois de duas semanas, lá na feira doCrato, conversou com o poeta. [...]

Luiz sabia da força daquela música e resolveu incluí­la no seu próximo LP, o qualpensava ser de despedida, dando somente os devidos créditos ao seu autor, poeta deprimeiríssima qualidade. E a esta música foram se juntando outras jóias do cancioneironordestino. (ABÍLIO NETO, 2009)

Para procedermos a análise, lançaremos mão da estilística e do estruturalismo como métodos deanálise da obra em foco. Nosso olhar se deterá sobre as imagens que compõe a produção, numatentativa de, olhando as entrelinhas do texto, enxergar o olhar atento e a voz firme de um cantadorque fez de seu próprio corpo um estandarte do Nordeste, e de suas músicas um parlatório para seupovo. Um cantador que, partindo de um Nordeste como condição inexorável de existência,transformou­o num grande projeto de identificação, ao mesmo tempo discurso de esperança e editode luta.

3 O NORDESTE EM “A TRISTE PARTIDA”

Toda a produção de Luiz Gonzaga se baseia numa escolha de um espaço narrativo e poéticoprimordial, que permanece inalterado em toda a sua obra: uma região do Brasil assolada por umasérie de hostilidades naturais e de desigualdades sociais, políticas e econômicas, e que encontra nareligiosidade um reduto de fé e de esperança na possibilidade de transformar a história.

Quando temos acesso às músicas de Luiz a primeira coisa que nos chama atenção é a adoção da“linguagem do Nordeste” como a língua por meio da qual ele fala ao Brasil e ao mundo inteiro: Luiznão toma para si um português estrangeiro, para poder ser aceito e bem entendido, ao invés, submeteseu interlocutor à adoção de uma língua muitas vezes estereotipada e desvalorizada por representar adecadência e o subdesenvolvimento do povo que a produz e sustenta. Diz­nos Pimentel:

Oiei? Quá? Vortá? Prantação? Muita gente estranha, mas esses versos foram escritos epublicados assim mesmo, intencionalmente. Reproduzem a linguagem popular do homemda roça, mostram a diversidade lingüística da região (PIMENTEL, 2007: 22)

Isso significa que, sendo consciente, Luiz Gonzaga lança mão de variáveis populares tendo emmente o juízo social do prestígio lingüístico e da estigmatização. Quando isso ocorre, segundoTarallo (2004: 50­54), o falante opta por usar a variação por ele mais valorizada, que ­ em últimaanálise ­ refere­se à valorização do lugar social dessa valorização.

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Sob essa ótica, o uso das variantes típicas dos falares nordestinos não é somente consciente, masintencional. Ao valorizar a linguagem nordestina, Luiz procura valorizar o “ser nordestino” em suatotalidade. Isso porque, conforme diz­nos Bakhtin, o signo linguístico, as palavras ­ e os seussignificantes ­ possuem um valor de relação social, uma vez que elas interagem com o contexto emque estão inseridas, ou seja, há um entonação pragmática e ideológica no uso das palavras(SANTOS, 2009).

Esse “ser nordestino”, entenda­se, é uma construção histórica que gerou no consciente coletivonacional um bloco monolítico e homogêneo chamado “Nordeste” baseado nas categorias da seca, doretirante, do cangaço e do beato. Ou seja, o Nordeste é pensado em termos de flagelo, revolta ereligiosidade. A invenção do Nordeste, segundo Albuquerque Jr. (2007) se deve às elites políticasdessa região, que se valeram do discurso da seca para atrair investimentos federais, a partir dafalência da economia açucareira no final do século XIX. um segundo grupo criador dessa identidadenordestina é constituído pelos imigrantes dessa região, que se estabeleceram no Sul e Sudeste aolongo do século XX, muitas vezes privados de seus direitos mais fundamentais, que se encontramhomogeneizados em sua diversidade, devido ao olhar da estranheza e à força da opressão, eencarnam em sua cultura e em seu modo de ser o mito do “nordestino cabra­da­peste”, valente,honrado, destemido e religioso, mas também agregado, vassalo, submisso e acrítico em relação à suaprópria condição. É o Nordeste emoldurado pelo Mito da Necessidade (ALBUQUERQUE JR., 2007:123).

O próprio Luiz experimentou a condição de imigrante nordestino no Rio de Janeiro e foijustamente por seu estilo nordestino de ser, caracterizar­se e comportar­se que passou a serconhecido, contratado e admirado como músico, conquistando fama nacional. Albuquerque Jr.(2007: 120) afirma que Luis Gonzaga vai surgir, na Rádio Nacional, como o representante daidentidade musical nordestina, ele irá inventar uma roupa que representaria esta nordestinidade aousar a indumentária normalmente usada pelo vaqueiro e um chapéu de cangaceiro, além de umasandália de couro conhecida como sandália de rabicho. Ele sofreu preconceito no início de suacarreira por ser nordestino e disso não envergonhar­se, mas justamente por seu sotaque e sua formaanasalada de fala, pelas próprias roupas que escolhera, seu talento, a qualidade da música queinterpretava e o acerto de muitas estratégias adotadas para a promoção, como fazer shows pelointerior da região patrocinado por empresas como a Colírios Moura Brasil ou a Shell, Luiz Gonzagatornou­se um ídolo daquelas populações nordestinas que viviam nas grandes cidades do Sul e quesentiam enorme saudade dos lugares de onde haviam saído, tema privilegiado de suas músicas, ondeo sertão aparecia idealizado e este desejo de voltar era permanentemente repetido.

3.1 O Nordeste linguístico

Nessa construção ideológica do Nordeste está presente o conceito e a ideia de nordestinês, umsotaque tão explorado pelas novelas e programas de televisão, caracterizado como o falar nordestino,mas que não passa de uma virtualidade, pois o Nordeste não é só uma região extensa e diversa, mas éum espaço de multiculturalismo e multilinguismo, onde a homogeneidade é tão insustentável quantoà homogeneidade brasileira. Em outras palavras: a revalorização do Nordeste começa de onde onordestino recebe o primeiro olhar de desaprovação e de riso, na maneira como ele se expressa paraexpressar seu mundo. Sobre isso, diz­nos Bagno:

É um verdadeiro acinte aos direitos humanos, por exemplo, o modo como a falanordestina é retratada nas novelas de televisão, principalmente da Rede Globo. Todopersonagem de origem nordestina é, sem exceção, um tipo grotesco, rústico, atrasado,criado para provocar o riso, o escárnio e o deboche dos demais personagens e doespectador. No plano linguístico, atores não nordestinos expressam­se num arremedo delíngua que não é falada em lugar nenhum do Brasil, muito menos no Nordeste. Costumodizer que aquela deve ser a língua do Nordeste de Marte! Mas nós sabemos muito bemque essa atitude representa uma forma de marginalização e exclusão. (2007: 43­44)

O preconceito contra o nordestino parte da linguagem, como dito, porque “todo signo éideológico, e portanto também o signo linguístico vê­se marcado pelo horizonte social de uma épocae de um grupo social determinados” (BAKHTIN, 2006: 43). Ou seja: ao marcar o nordestino com oferro da exclusão, impõe­se primeiro essa segregação sobre sua forma de expressar­se e decomunicar­se com o outro, pois descaracterizando o discurso, desconsidera­se o sujeito que oprofere.

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Luiz, no entanto, faz uma antítese de sua obra: ele tem acesso a todos os ambientes de requinte dopaís, e leva consigo o modus comunicandi de todos aqueles que são obrigados a ficar do lado de fora:ele não abre os portões régios aos “nordestinados” que lá tão piedosamente esperam, mas faztranspassá­los o olhar desse nordestino e sua maneira de dizer eu e de conceber o mundo. Em A tristepartida, por exemplo, encontraremos 63 ocorrências (sendo 50 delas palavras distintas) de variaçõesnão­padrão do léxico português; conforme a ordem que aparecem no texto, temos: oitubro, tamo,experiênça, sá, natá, natá, vermeio, janêro, feverêro, entonce, pra, sinhô, tá, ôtra, tria, famia, nóis,vamo, Palo, vivê, morrê, nóis, vamo, Palo, tá, aleia, pro, inté, vendêro, fazendêro, poco, dinhêro,famia, viajá, terrívi, pra, natá, oiando, pra, corrê, fio, iscrama, comê, morrê, fulô, rosêra, dexando,azu, fio, Su, chegaro, percura, trabaia, prano, vortar, arguma, notíça, móio, óio, famia, vorta, paú,Su.

São diversos fenômenos lingüísticos que estão presentes nessa representação da língua nordestina,entre eles: supressão de sons através de aférese (ôtra, tá, tamo), síncope (dexando, dinhêro,fazendêro, feverêro, janêro, Palo, poco, pra, pro, rosêra) e apócope (azu, chegaro, comê, corrê,experiênça, fulô, morrê, natá, notíça, sá, sinhô, Su, terrívi, vendêro, viajá, vivê); adição de sonsatravés de epêntese (nóis); transformação de sons por meio de yeísmo (aleia, famia, fio, móio,oiando, óio, trabaia, tria, vermeio), rotacismo (arguma, iscrama, prano, vortá, vortar), nasalização(entonce, inté) entre outras (iscrama, oitubro, percura, sinhô).

Há também uma série de desvios do tipo morfossintático, embora de menor importância efrequência. Assim temos desvios de: concordância (nas pedra/ nós torna a voltar/ meus brinquedo/nos fio/ dois ano/ três ano/ das banda), emprego do tempo verbal (Nós torna a voltar), regência(Chegaro em São Paulo) e colocação pronominal (lhe foge/ lhe compra/ lhe bota).

Ao lado desse linguajar próprio do Nordeste, Luiz assume também uma série de imagens quedescrevem, definem e defendem esse Nordeste, ou seja, transformam­no em um espaço idealizado ecarregado de significações afetivas, ou seja, uma “comunidade inventada” (HALL, 2005: 47­50).Para percebermos essas imagens, passaremos agora a uma análise estrutural da obra considerada:

Meu Deus, meu Deus...

Setembro passou / com Oitubro e Novembro / Já tamo em Dezembro / Meu Deus, queé de nós, / Meu Deus, meu Deus / Assim fala o pobre / Do seco Nordeste / Com medo dapeste / Da fome feroz / Ai, ai, ai, ai [5]

Nesses versos iniciais, Luiz apresenta­nos o sujeito de sua poética: “o pobre do seco Nordeste”, aprópria nomeação carrega as marcas da identidade: pobreza e secura. Em Luiz, essas característicasestão causalmente relacionadas, ou seja, aquela advém desta, por um fatalismo natural, o que escondea verdadeira causa social e política que torna as populações vítimas da seca e relegadas à pobreza,quando não, miséria.

O autor da letra, o poeta Patativa do Assaré, em entrevista concedida a Célia Leal afirma que essaestrofe foi acréscimo do Rei do Baião:

Patativa ­ [...] A Triste Partida cantada por Luiz Gonzaga é uma maravilha. Ela émuito tocante. Fiz com muito carinho e com muito amor. Ele cantava com muitosentimento, mas colocou um refrão que não tinha.

­ Qual era o refrão?

Patativa ­ O que dizia assim: “setembro passou, outubro, novembro, já tamo emdezembro meu Deus que é de nós” (aí tem uma voz que diz: meu Deus, meu Deus). De irpara o Norte, meu seco nordeste, o medo é da fome feroz. Essa parte foi ele que fez como povo dele e parece que ficou mais triste ainda, assim com esse “ai, ai” que tem pelomeio. (LEAL, 2009 ­ grifo nosso)

Luiz reproduz a mesma mentalidade ingênua de seu povo, visualizando a pobreza nordestina comoalgo advindo das condições geográficas do lugar, quando na verdade, uma distribuição responsáveldos recursos hídricos do Nordeste seria suficiente para garantir a todos condições básicas desubsistência e de desenvolvimento, ou seja, o problema da seca, longe de ser uma questão deescassez, é uma problema de gestão (REBOUÇAS, 1997).

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“Setembro passou/ com Oitubro e Novembro/ Já tamo em Dezembro/ Meu Deus, que é de nós”,com esses versos, delineia­se a questão da seca como um evento temporalmente localizado: setembroé o último mês de chuva invernal no Nordeste, se não há chuva até esse mês, então haverá uma secaprolongada. Passado setembro, pode­se apenas esperar chuvas esparsas e irregulares de verão.

3.2 O Nordeste da fé

Interessante perceber que A triste partida antes de ser uma música é uma oração: o interlocutor é opróprio Deus, conforme informa­nos os vocativos. Nessa oração, apresentam­se a Deus os medos(“Com medo da peste/ Da fome feroz”) e as dores (“Ai, ai, ai, ai”) do povo nordestino. Razão pelaqual se justifica, mais uma vez, a escolha da música, embora sua composição não seja de Luiz, maspor participar de sua produção enquanto interpretação e encarnação do discurso.

Continua o poeta:

A treze do mês / Ele fez experiênça / Perdeu sua crença / Nas pedra de sá, / Meu Deus,meu Deus / Mas noutra esperança / Com gosto se agarra / Pensando na barra / Do alegreNatá / Ai, ai, ai, ai

Rompeu­se o Natá / Porém barra não veio / O sol bem vermeio / Nasceu muito além /Meu Deus, meu Deus / Na copa da mata / Buzina a cigarra / Ninguém vê a barra / Poisbarra não tem / Ai, ai, ai, ai

Aqui, o poeta refere­se às crenças de seu povo, sua fé, sua religiosidade: para prever a secura ou afartura do ano seguinte, o nordestino guia­se pelo período compreendido entre o dia de Santa Luzia(13 de dezembro) e o dia de Natal (25 de dezembro). Para isso, faz­se uma série de experiência e derelações entre a distribuição e o volume da chuvas e determinados eventos místicos: “Essas‘experiências’ representam muito mais que exercícios de possiveis previsões de chuva. São, antes detudo, um traço cultural do povo do nordeste que tem no bom inverno a redenção de sua miséria coma fartura de sua lavoura.” (ALBUQUERQUE JR., 2009).

São experiências diversas:

O movimento dos astros, do vento e das nuvens, o canto dos pássaros, ocomportamento de insetos e outros animais, a evolução do ciclo de determinadosvegetais, a coincidência de números e datas são fatos que, aparentemente, sem qualquerrelação científica, explicam, justificam e fundamentam a previsibilidade do tempo.

Manuel Correia de Andrade em seu livro A Terra e o Homem no Nordeste descreve­nos essasexperiências:

Assim, preocupando­se com uma possível seca, o sertanejo está sempre às voltas comas “experiências” e prognósticos sobre a possibilidade de chuvas nos anos que virão. Paraestas “experiências” o dia de Santa Luzia (13 de dezembro) é o mais importante, uma vezque o toma como ponto de referência para o mês de janeiro do ano seguinte e os dias quese seguem correspondem aos outros meses (assim o dia 14 é fevereiro, 15 é março, 16 éabril e assim por diante até o dia 24 que corresponde ao mês de dezembro). No dia emque chover, o mês correspondente será de chuva e naquele em que não chover, o mêscorrespondente será seco.

Outra experiência consiste em colocar­se seis pedras de sal, representando os seisprimeiros meses do ano (vindouro) sobre um plano, no “sereno”, na noite de SantaLuzia. Pela manhã, a pedra que mais estiver dissolvida representa o mês mais chuvoso doano que se segue. Se essas experiências derem resultados negativos, o sertanejo,apreensivo, começa a pensar nos horrores da seca e na possível necessidade de retirada.[6]

De modo semelhante se configura a previsão através da Barra do Natal (clarão que aparece no céucomo abóboda do sol nascente), por exemplo, se ela tiver “fechada” de um lado a outro do nascenteé sinal de um inverno chuvoso (um “bom inverno”) [7].

Esses versos nos falam da esperança do povo nordestino, que transfere para relações místicas e

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poderes sobrenaturais a resposta para suas dificuldades. Vítima da natureza, encontra no mundo deDeus a mão carinhosa que lhe pode dar um pouco de sossego e paz.

Mas o flagelo do nordestino não encontra na esperança e na fé o termo da agonia:

Sem chuva na terra / Descamba Janêro, / Depois feverêro / E o mesmo verão / MeuDeus, meu Deus / Entonce o nortista / Pensando consigo / Diz: “isso é castigo / nãochove mais não” / Ai, ai, ai, ai

Apela pra Março / Que é o mês preferido / Do santo querido / Sinhô São José / MeuDeus, meu Deus / Mas nada de chuva / Tá tudo sem jeito / Lhe foge do peito / O resto dafé / Ai, ai, ai, ai

A maior de todas as dores é sem dúvida a perda da crença em dias melhores, isso retira donordestino o fôlego da luta e o faz entregar­se à fatalidade da vida. Interessante perceber que a seca évisualizada como um castigo (“isso é castigo/ não chove mais não”), que religiosamente representaum sofrimento imposto por uma falta cometida. Novamente a culpa social pela pobreza e pelosofrimento é retirada das mãos dos poderes constituídos e colocada na natureza e no própriosofredor: pensar a seca como castigo é pensar numa pena imposta por Deus por um pecado cometido,como se fosse pecado ser nordestino.

A figura de São José de do mês de março é aqui emblemática. Diz­nos Patativa do Assaré:

O que lhe inspirou a compor “A Triste Partida”? Patativa ­ Foi em 1958. A viagem a São Paulo era a coisa mais penosa do mundo. Nãohavia estrada naquele tempo. As famílias viajavam em caminhão, numa bancada rudecom cobertas rudes e saíam por esse mundo. E vendo o movimento criei na minhaimaginação uma família saindo do sertão com destino a São Paulo. Fiz o trabalho commuito cuidado, com muito carinho porque também sou sertanejo, sei das experiências doscaboclos. Sei que quando tudo dá errado, no dia 19 de março, dia da esperança para ossertanejos e não há melhora, eles vão embora com toda a família para São Paulo”.(LEAL, 2009 ­ grifo nosso)

O dia 19 de março é a grande esperança do povo nordestino, como disse Patativa, todos esperamque nesse dia chova, pois assim iniciam as plantações, “plantam milho em São José para colher emSão João”, pois três meses é o período que normalmente é suficiente para a maturação desse vegetal,usado como prato principal da festa de São João (24 de junho), no mês que marca o início doinverno propriamente dito. O dia de São João é, alías, o grande natal nordestino.

Quando não chove no dia de São José, o nordestino passa a desacreditar que sua safra será boa, ecai na descrença. Esse momento é de particular importância simbólica para a identidade nordestina:quando os sinais místicos apontam em direção indesejada, não procura mudar o seu destino, mas sesubmete procurando uma nova história para si, ao invés de procurar inverter o destino aparentementeinexorável que o vitimiza.

Zezito Guedes em seu artigo O folclore e a seca (Revista folclore, nº 216) registra alguns ditadospopulares que evidenciam essa crença:

­ A seca é um castigo para o povo que não tem mais fé.

­ A seca só aparece quando o povo está pecando demais.

­ A falta de merecimento traz a seca para o sertão.

­ A seca acontece de vez em quando para desconto dos pecados.

­ A seca vem para que o povo se lembre de Deus.

­ Pela desobediência do povo é que vem a seca para a terra.

­ O povo profana a Deus e a seca vem com castigo. [7]

3.3 O Nordeste viandante e oprimido

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Sem alternativas nem esperanças, o nordestino parte para São Paulo, e a partir desse momento, amúsica passa a retratar desde a tomada de decisão em partir até a chegada à megalópole:

Agora pensando / Ele segue ôtra tria / Chamando a famia / Começa a dizer / MeuDeus, meu Deus / Eu vendo meu burro / Meu jegue e o cavalo / Nóis vamo a São Palo /Vivê ou morrê / Ai, ai, ai, ai

Nóis vamo a São Palo / Que a coisa tá feia / Por terras aléia / Nós vamos vagar / MeuDeus, meu Deus / Se o nosso destino / Não for tão mesquinho / Ai pro mesmo cantinho /Nós torna a voltar / Ai, ai, ai, ai

E vende seu burro / Jumento e o cavalo / Inté mesmo o galo / Vendêro também / MeuDeus, meu Deus / Pois logo aparece / Feliz fazendêro / Por pôco dinhêro / Lhe compra oque tem / Ai, ai, ai, ai

Em um caminhão / Ele joga a famia / Chegou o triste dia / Já vai viajá / Meu Deus,meu Deus / A seca terrívi / Que tudo devora / Ai, lhe bota pra fora / Da terra natá / Ai,ai, ai, ai

O carro já corre / No topo da serra / Oiando pra terra / Seu berço, seu lá / Meu Deus,meu Deus / Aquele nortista / Partido de pena / De longe acena / Adeus meu lugar / Ai,ai, ai, ai

No dia seguinte / Já tudo enfadado / E o carro embalado / Veloz a corrê / Meu Deus,meu Deus / Tão triste, coitado / Falando saudoso / Com seu fio choroso / Iscrama a dizer/ Ai, ai, ai, ai

De pena e saudade / Papai sei que morro / Meu pobre cachorro / Quem dá de comê? /Meu Deus, meu Deus / Já outro pergunta / Mãezinha, e meu gato? / Com fome, sem trato/ Mimi vai morrê / Ai, ai, ai, ai

E a linda pequena / Tremendo de medo / “Mamãe, meus brinquedo / Meu pé de fulô?”/ Meu Deus, meu Deus / Meu pé de rosêra / Coitado, ele seca / E minha boneca /Também lá ficou / Ai, ai, ai, ai

E assim vão dexando / Com choro e gemido / Do berço querido / Céu lindo e azu /Meu Deus, meu Deus / O pai, pesaroso / Nos fio pensando / E o carro rodando / Naestrada do Su / Ai, ai, ai, ai

É nesse momento que a música toma um tom ao mesmo tempo lírico e épico e se desenvolvenuma conjunção de três elementos: terra, família e trabalho. Perceba­se como a noção de terraenquanto “lugar” confunde­se com o conceito de “casa”, donde advém a idéia de um Nordeste comocasa, lugar familiar, espaço primordial de existência e de identidade, que não somente dá nome aosnordestinos, mas sobretudo representa o carinho familiar e vicinal, o Nordeste como um espaço deser e de sentir.

Continua a identificação do nordestino com a natureza, que deixa de ser uma natureza distante eterrível ­ aquela que lhe fornece a certeza do destino em termos de seca e fartura ­ para tornar­seuma natureza doméstica: o galo, a flor, o gato, o cachorro... Tudo ganha colorido e brilho,afetivamente marcado no imaginário, que irá constituir a memória comum do Nordeste.

Interessante perceber que a terra seca e árida incapaz de fornecer aos seus habitantes o sustento,agora é vista como ideal, e deixá­la é algo que surge por meio de forças externas: a saída da terra éuma verdadeira tragédia, se morrer nela é algo terrível, deixá­la parece ainda mais recheado dehorror, mas é também imperativo.

A poesia marca esse momento como um corte de cordão umbilical: as coisas deixadas para traz,que ocupavam um lugar “de direito” na vida daquelas pessoas ­ o que evidencia a naturalização que onordestino faz de sua vida social e cultural, impedindo­o inclusive de um olhar crítico mais apurado­ deixam um vazio que na verdade é ocupado pela idealização do ausente e pela saudade que fazsofrer mais que a fome.

Parece que as pessoas preferiam morrer ali, no seu lugar, no seu berço, no seu lar. Uma só coisa

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justifica a saída: é preciso garantir a vida aos filhos, no embate entre o amor à terra e o amor àfamília, vence este último, mas aquele permanece como um peso nos ombros dos que partem: partemos nordestinos, e o Nordeste vai com eles. O terceiro elemento completa o quadro: é precisotrabalhar, se não como trabalhar no Nordeste, então que seja noutro lugar.

Perceba­se como é clara a construção imagética desse lugar abandonado: o que é deixado tempouco valor econômico, mas é de incomensurável valor para os que vão embora.

A poesia agora ocupa­se da vida do nordestino em São Paulo:

Chegaro em São Paulo / Sem cobre quebrado / E o pobre acanhado / Percura umpatrão / Meu Deus, meu Deus / Só vê cara estranha / De estranha gente / Tudo é diferente/ Do caro torrão / Ai, ai, ai, ai

Trabaia dois ano, / Três ano e mais ano / E sempre nos prano / De um dia vortar /Meu Deus, meu Deus / Mas nunca ele pode / Só vive devendo / E assim vai sofrendo / Ésofrer sem parar / Ai, ai, ai, ai

A diáspora nordestina conhece apenas uma mudança espacial, no fundo permanece a mesmasituação de opressão e de pobreza: se agora não falta agia, continua a escassez de vida e de esperança.A situação parece ainda mais grave: continua espoliado, mas em terra estrangeira.

O nordestino sublimiza sua revolta e transforma­a em saudade de sua terra, ao invés de contestarradicalmente as relações de trabalho que na verdade são as responsáveis por sua infelicidade. Aofazer isso, o nordestino escolhe, inconscientemente permanecer no atraso cultural e na subserviênciasocial e política.

Estrangeiro na terra alheia, esse sujeito enclausura­se na sua própria cultura para encontrar nelacoragem para a resistência, mas essa resistência transforma­se quase sempre em labuta e nunca emluta por dignidade, igualdade e justiça.

Essa mudança de espaço só faz consolidar a imagética do Nordeste. Para compreensão dessaimagética, retomemos o conceito do Nordeste caracterizado por Albuquerque Jr. (2007) nosseguintes eixos:

i. O discurso da seca e a indústria da seca ­ após a grande seca de 1877­1879, o Brasil que sóconhecia duas divisões regionais ­ Norte e Sul ­ vê a emergência do conceito de Nordeste, criadopelas elites políticas da região, falidas devido à crise de seu sistema de produção agrícola, tambématingidas pela seca, para captar recursos do governo federal e sanar os prejuízos advindos dela. Naverdade, porém, os projetos governamentais nunca atingiam os verdadeiros fins, pois eram sóoportunidades de corrupção. Esse discurso bem como esse modelo de corrupção acompanhará oNordeste até os dias atuais, e será, inclusive, motivo de oposição e de preconceito das regiões maisricas do país.

ii. O tradicionalismo ­ a elite nordestina foi perdendo gradualmente seu poder sobre a políticanacional, e o golpe fatal foi dado com a proclamação da República e a política do Café­com­Leite,ou seja, com a exclusão da participação das classes dominantes do Nordeste. A cultura dessa regiãoviveu, por isso, um apego ao passado, uma idealização exagerada da tradição e uma resistência aoprogresso e ao desenvolvimento, pois viam neles uma ameaça ao poder e uma descaraterização domodo de produção material e imaterial ali praticado.

iii. A religiosidade ­ o beato e o romeiro marcam também o imaginário nordestino, emolduradospelo fanatismo religioso. As figuras messiânicas, o devocionismo, a guerra entre os seguidores dePadre Cícero e as tropas de Franco Rabelo, em 1914, a transferência do poder de mudança dahistória da esfera humana para a divina, solidificaram a imagem de um Nordeste intrinsecamenterelacionado a uma mística extremada e capaz de levar homens e mulheres a uma espécie de insâniaem nome de suas crenças, constituídas de um sincretismo entre o catolicismo popular e o animismo efeitichismo africanos e indígenas.

iv. A violência ­ encarnadas pelo coronel e pelo cangaceiro, representantes do poder reacionário erevolucionário da região, respectivamente. Amplamente divulgados e explorados pelo movimentocultural tradicionalista e regionalista da Literatura, do Cinema e das Ciência Sociais, essas figuras

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passaram a definir a identidade nordestina a partir das relações de violência: aquele que mandaestabelece seu poder porque tem uma tropa de capangas e não perdoa desobediência e traição; aqueleque contesta o poder o faz pela via da ameaça, do roubo, do banditismo; e o homem mediano épacato, mas um potencial assassino se sua honra for atingida. O nordestino é um pacifista queembainha uma faca na cintura.

O discurso da seca produz a figura do retirante, assim definida por Albuquerque Jr.:

A migração crescente e nordestinos para os grandes centros urbanos do Sul [...] éatribuída e explicada pela ocorrência das secas, marcando todos os migrantes nordestinoscom a pecha de retirantes ou flagelados, quando, na verdade, esta vinha apenas agravar ascausas mais fundamentais deste processo migratório que eram a concentração depropriedade da terra da região, as péssimas condições de trabalho oferecidas por umaeconomia em estágio ainda incipiente de capitalização e as modalidades de trabalho aliprevalecentes, que não privilegiavam o assalariamento nem respeitavam as lei trabalhistas[...].

A maior parte desses migrantes vêm da zona rural, a maioria não tem o mínimodomínio dos códigos que regem a vida numa grande cidade; seus hábitos, costumes,formas de pensar, de andar, de falar, estão marcados por sua vivência do campo e por suacondição social de homens pobres, analfabetos, submetidos a uma dura rotina de trabalhoe a muitas privações, o que reforçará esta imagem, construída pelas própria elitesnordestinas, em seus discursos políticos, de que seríamos uma região presa ao passado,uma região que reagia, inclusive, aos padrões modernos da sociedade ocidental. (2007:107; 102)

Inferior e espoliado, a figura do retirante é acompanhado do cabra­macho, uma invenção dopróprio migrante para fugir da humilhação insuportável de sua condição e subordinação, que de fatose concretizou em muitos episódios de violência.

3.4 A falácia discursiva da nordestinidade

Na verdade, a nordestinidade além de ser inventada é exterior, é um discurso produzido pela elitepolítica e intelectual, assumido pelos nordestinos quando homogeneizados num lugar distante de suaterra natal e até certo ponto ininteligível. O fato de serem vítimas do preconceito, partilhar asmesmas condições de vida e participar das mesmas manifestações culturais faz com que os homens emulheres, tão heterogêneos em suas regiões de origem, divididos pelas identidades estaduais e porsuas rivalidades, se reconheçam como iguais.

A primeira falácia da nordestinidade é o nordestinês, pois não nenhuma possibilidade de unidadelinguística da região, senão a idiomática. No entanto, esses tão diferentes homens unem­se, assumemo discurso do Nordeste e recompõem esse Nordeste no estrangeiro, genericamente chamado de Sul,através de suas feiras, de suas músicas, festas e danças e de suas celebrações religiosas.

Para marcar a idiossicracia dessa identidade, a imagem de nordestino é reduzido à figura dosertanejo, que é a síntese de todas as imagens anteriormente mencionadas, mas assim definida nointerior do próprio Nordeste: o sertanejo é o excluído, quando em sua terra natal; o nordestino é oexcluído quando está fora do Nordeste.

Essa unidade forçada é agora a temática das estrofes finais do poema de Patativa e de Luiz:

Se arguma notíça / das banda do Norte / Tem ele por sorte / O gosto de ouvir / MeuDeus, meu Deus / Lhe bate no peito / Saudade de móio / E as água nos óio / Começa acair / Ai, ai, ai, ai

Do mundo afastado / Ali vive preso / Sofrendo desprezo / Devendo ao patrão / MeuDeus, meu Deus / O tempo rolando / Vai dia e vem dia / E aquela famia / Não vorta maisnão / Ai, ai, ai, ai

Distante da terra / Tão seca mas boa / Exposto à garoa / A lama e o paú / Meu Deus,meu Deus / Faz pena o nortista / Tão forte, tão bravo / Viver como escravo / No Norte eno Su / Ai, ai, ai, ai

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Essa é a parte da composição que de fato fala­nos de uma unidade real e concreta, a situaçãosocial que gerou a idealização expressa em todos os versos antecedentes: o nordestino, nordestinadonas regiões ricas do país, passa a cantar as saudades de sua terra, mera evasão, pois no Nordeste nadalhe era diferente, senão o clima e a possibilidade de escolher o modo como seria nomeado, e nãoobstinadamente subordinado à designação de “nordestino” ou de “nortista”, quando não de “baiano”e de “paraíba”.

O discurso de Nordeste, tal como encarnado em Luiz Gonzaga é, ao mesmo tempo, o discurso daselites sulistas e o discurso dos retirantes nortistas. E sobre isso, alerta­nos Patativa:

Ele chegou a deturpar a sua obra? Patativa ­ Ele deturpou porque eu estava me referindo ao nordestino subordinado lá emSão Paulo. Ele disse: viver como escravo no Norte e no Sul. Não é assim. Ele fez issopara agradar aos paulistas. (LEAL, 2009) [9]

O discurso da unidade cultural e da resistência nordestina, como uma idealização, embora sirvapara uma afirmação enquanto identidade, uma afirmação da cultura e do modo de ser nordestino,constitui também um entrave ideológico à ruptura da história de exploração do nordestino: afortaleza do nordestino cantado por Luiz serve para a luta pela sobrevivência, mas não para a lutapela transformação social.

A carreira musical do Rei do Baião trata­se de uma afirmação categórica, consciente e intencionalda identidade nordestina, que se torna também a máxima expressão do ser nordestino, através dosamplos holofotes midiáticos que Luiz teve ao seu favor. Essa afirmação, porém é ambígua, pois aomesmo tempo que solidifica a identidade, reforça o preconceito:

Mas as músicas de Gonzaga também foram responsáveis pela veiculação daquelestemas que iriam servir para reforçar o preconceito contra o nordestino, como a percepçãodeste como sendo um matuto, que teria o jumento como irmão, homem atrapalhado como mundo da cidade, homem simplório, desconectado com as transformações que sepassam no mundo, que não sabe se automóvel é homem ou mulher, homem reativo àstransformações trazidas pela história, pela modernidade, homem moralista, machista,para quem cabeludo não tinha vez, embora suas músicas também tenham servido paraquestionar a própria forma como o nordestino era visto e para denunciar as condições devida que a maioria da população sertaneja vivia. (ALBUQUERQUE JR., 2007: 120­121)

Nos versos finais, o poema fala­nos de um nordestino deslocado e infeliz, saudoso, eternamentesaudoso de sua terra, um sujeito que não assumiu o novo espaço social em que se encontra, que nãose abriu à novidade e refugia­se num passado cada vez mais distante. Um nordestino neurótico: viveem função de um possível retorno, mas uma mera utopia que não o ajuda a viver melhor e cada vezmais o oprime.

O herói de Luiz Gonzaga participa apenas da Ilíada, desconhece a Odisséia. Na verdade, oheroísmo nordestino é um anti­heroísmo: o que canta­se é a grandeza do oprimido não­liberto, deum sujeito ainda preso aos grilhões que sempre o acompanharam, do habitante da caverna que mudade endereço, mas nunca sobre a dura e íngreme inclinação que leva para fora dela.

Para não ter o ônus de inverter essa situação, o nordestino naturaliza a seca, a opressão, adesventura. A solução vem sempre do alto: a providência de Deus, as benesses das autoridadescivis... Cabe ao nordestino a esperança, e a submissão a esse poder maior. Essa é a descrição daprópria vida de Luiz: um nordestino “arretado”, mas cuja denúncia social é arte que agrada aoshomens que oprimem o seu povo, ele mesmo senta­se à mesa e agrada àqueles que são a causa detanto horror e dor causada aos nordestinos.

Saudade, opressão e passividade são as categorias que definem a situação desse nordestinodeslocado, e a forma viril e forte com que ele é retratado é mero subterfúgio discursivo, pois suavirilidade e força são moedas de troca no mercado de trabalho, não armas de luta social e política. Aindústria política do Nordeste engrandece para consolidar a pequenez e a escassez que de fato sãoidentificações concretas do ser nordestino nesse novo espaço.

Assim se explica até essa condição subalterna do ser nordestino: ele é um bicho do mato, que está“acuado” no espaço das grandes cidades, obrigado a viver a li contra sua vontade. Na verdade, essa

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imagem de inadaptação assumida pelos nordestinos foi produzida pelos seus concorrentes nomercado de trabalho, isto é, os migrantes estrangeiros e as populações locais, conforme informa­nosAlbuquerque Jr.:

O nordestino seria o produto da natureza hostil em que vivia. O nordestino seria umhomem telúrico, figurando em seu corpo e mente a paisagem desolada e rude em quetinha de viver. Era quase um homem­cacto, um homem caatinga, por isso mesmo um serseco, espinhento, agressivo, inóspito, hostil, pouco acolhedor, sofrido, torturado, denatureza imprevisível. Esta visão de que o nordestino é um homem próximo da natureza,também o estigmatizou como sendo um homem incapaz de conviver com o fenômenourbano. (2007: 115)

Diante de todas essas evidências, deixando de lado juízos sociológicos acerca do discurso sobre oNordeste, no tocante ao seu valor positivo ou negativo, podemos afirmar como inegável o fato deque a produção musical de Luiz Gonzaga tem como temática salutar a defesa do Nordeste e de seupovo, seja por meio de emblemas ou estigmas.

Cabe­nos, portanto, fazer uma ressalva: de fato, o que Luiz propagou como identidade nordestinanão só engrandecia, como constituía entrave à libertação do povo nordestino do jugo de seusopressores, mas isso não é por má fé do grande Rei do Baião. Luiz é vítima da mesma mentalidadeque fez os nordestinos assumires os estereótipos e engrandecer mais seu passado que lutar pormelhores condições de vida no presente, além do mais, Luiz foi um grande defensor de seu povo elutou bastante para desenvolver a sua terra natal.

É preciso reconhecer que o nordestino, e nessa classe inclui­se Luiz, foi um grande responsávelpelo preconceito de que é alvo. No entanto, esse protagonismo do nordestino na construção doestereótipo estigmático nunca pode ser dito consciente, pois como seria um responsável por excluir­se voluntariamente um sujeito que sequer sentia­se dono de sua própria história e de sua forçaprodutiva? Se o nordestino reforçou o preconceito, foi porque sua condição de vulnerável o deixavarefém de seus próprios passos, tal como a difícil decisão de morrer de fome no sertão, ou penar nas“bandas do Sul”: assumir o preconceito, e mesmo produzi­lo é mera imperatividade das condiçõesexistenciais. A própria acriticidade do nordestino a que nos reportamos anteriormente não éimputável a ele mesmo, por ser fruto de seu analfabetismo cultural e político.

Uma coisa porém é certa, Luiz cantou o Nordeste, proclamou o ser nordestino gestado pelospoderosos e assumido pelos humildes, mas, não obstante suas conotações pejorativas, um ser quedava orgulho aos pequeninos, bem como força e sentido para continuar a luta interminável de seusdias. A imagética do Nordeste é uma imagética da necessidade, em que a escassez é a própria vida, eo retirante é o sujeito eternamente em busca de um lugar para viver e, paradoxalmente, preso à suaterra natal.

5 CONCLUSÃO

A triste partida torna­se, portanto, uma bandeira que acena para a direção de um Nordesteeternamente curvado sobre si mesmo, e de um nordestino que, apesar da distância e daimpossibilidade do retorno à sua “terra ideal”, encontra nas cacimbas da infância a água doce querenova as veias da vida. Por isso, Luiz, em seu último show, no dia 6 de junho de 1989 no TeatroGuararapes do Centro de Convenções de Recife, em que recebeu homenagens de vários artistas dopaís, proferiu as seguintes palavras, antes de finalizá­lo:

Boa Noite minha gente! (...) Minha gente, não preciso dizer que estou enfermo. Venhoreceber essa Homenagem. Estou feliz, graças a Deus, por ter conseguido chegar aqui. Eestou até melhor um pouquinho. Quem sabe, né?

“Quero ser lembrado como o sanfoneiro que amou e cantou muito seu povo, o sertão;que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes, os valentes, oscovardes, o amor. Este sanfoneiro viveu feliz por ver o seu nome reconhecido por outrospoetas, como Gonzaguinha, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Alceu Valença. Quero serlembrado como o sanfoneiro que cantou muito o seu povo, que foi honesto, que criou

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filhos, que amou a vida, deixando um exemplo de trabalho, de paz e amor.

Quero ser lembrado como o sanfoneiro que amou e cantou muito seu povo, o sertão;que cantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes, os valentes, oscovardes, o amor.

Gostaria que lembrassem que sou filho de Januário e dona Santana. Gostaria quelembrassem muito de mm; que esse sanfoneiro amou muito seu povo, o Sertão. Decantouas aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes. Decantou os valentes, oscovardes e também o amor. (...) Muito obrigado.” (MOTA, 2007)

Dada a intencionalidade de sua linguagem, a natureza estilística do uso das variações, esse uso émotivado pela própria defesa do universo nordestino. Isso significa que a linguagem de LuizGonzaga não apenas reforça a identidade por ele incorporada, veiculada e defendida, mas sobretudoé pensada de modo a transparecê­la. Essa linguagem compõe um quadro de riquíssima imagética, daqual participa A triste partida, imagética que fala­nos de um Nordeste, que dá unidade a uma regiãotão diversificada quanto os sofrimentos de seu povo.

O estilo de Luiz Gonzaga tem por fundamento e forma a cultura que ele idealizou e solidificou nocenário político­ideológico nacional: sua linguagem foi pensada segundo o “estatuto danordestinidade” sócio­historicamente inventado, e seu uso da linguagem nordestina não é meracoincidência, mas é planejada, medida e avaliada segundo essa ideologia de seu autor.

As imagens por ele veiculadas são aquelas que fazem do Nordeste um mosaico, recompostoquando a terra natal torna­se distante e o outro, o outro sofredor tão diferente de mim, torna­seigual, conterrâneo, nordestino. O Nordeste de que nos fala Luiz é o nordeste da necessidade,recomposto como uma tentativa de resgate da própria história e da dignidade, uma reinvenção dolugar de origem daqueles para os quais sua nova situação histórico­social é fatalmente ininteligível.O Nordeste de Luiz é a busca de uma feição.

REFERÊNCIAS

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ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. Preconceito de origem geográfica e de lugar: asfronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. 49 ed. São Paulo: Loyola,2007.

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. de Michel Lahud e YaraF. Vieira. 12 ed. São Paulo: HUCITEC, 2006.

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TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 2004.

NOTAS

[1] MATOS, Marcos Paulo Santa Rosa. Graduando em Letras (Licenciatura) e Direito(Bacharelado) pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais ­ Ages.

[2] Nordeste independente, composição de Bráulio Tavares e Ivanildo Vilanova.

[3] Estes dois últimos gravaram a versão inglesa White Wings.

[4] Composição de Patativa do Assaré.

[5] Vide Anexo, composição completa.

[6] Citado por Albuquerque Jr. (2009).

[7] Baseado em Marques (2010).

[8] Citado por Linhares (2010).

[9] Para um conhecimento mais apurado das diferenças entre A triste partida composta porPatativa do Assaré e a música cantada por Luiz Gonzaga, vide Anexo.

ANEXO ­ Quadro comparativo das letras de Luiz Gonzaga e de Patativa do Assarépara o poema A triste partida

Estrofe Letra de Luiz Gonzaga Letra de Patativa doAssaré

1ª Meu Deus, meu Deus... 2ª Setembro passou

com Oitubro e NovembroJá tamo em DezembroMeu Deus, que é de nós,Meu Deus, meu DeusAssim fala o pobreDo seco NordesteCom medo da pesteDa fome ferozAi, ai, ai, ai

Setembro passou,com oitubro e novembroJá tamo em dezembro.Meu Deus, que é de nós?Assim fala o pobredo seco Nordeste,Com medo da peste,Da fome feroz.

3ª A treze do mêsEle fez experiênçaPerdeu sua crençaNas pedra de sá,Meu Deus, meu Deus

A treze do mêsele fez a experiença,Perdeu sua crençaNas pedra de sá.Mas nôta experiença

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Mas noutra esperançaCom gosto se agarraPensando na barraDo alegre NatáAi, ai, ai, ai

com gosto se agarra,pensando na barraDo alegre Natá.

4ª Rompeu­se o NatáPorém barra não veioO sol bem vermeioNasceu muito alémMeu Deus, meu DeusNa copa da mataBuzina a cigarraNinguém vê a barraPois barra não temAi, ai, ai, ai

Rompeu­se o Natá,porém barra não veio,O só, bem vermeio,Nasceu munto além.Na copa da mata,buzina a cigarra,Ninguém vê a barra,Pois barra não tem.

5ª Sem chuva na terraDescamba Janêro,Depois feverêroE o mesmo verãoMeu Deus, meu DeusEntonce o nortistaPensando consigoDiz: "isso é castigonão chove mais não"Ai, ai, ai, ai

Sem chuva na terradescamba janêroDepois, feverêro,E o mêrmo verão.Entonce o roceiroPensando consigo,Diz isso é castigo!Não chove mais não!

6ª Apela pra MarçoQue é o mês preferidoDo santo queridoSinhô São JoséMeu Deus, meu DeusMas nada de chuvaTá tudo sem jeitoLhe foge do peitoO resto da féAi, ai, ai, ai

Apela pra março,que é o mês preferidoDo Santo queridoSenhô São José.Mas nada de chuva!tá tudo sem jeito,Lhe foge do peitoO resto da fé.

7ª Agora pensandoEle segue ôtra triaChamando a famiaComeça a dizerMeu Deus, meu DeusEu vendo meu burroMeu jegue e o cavaloNóis vamo a São PaloVivê ou morrêAi, ai, ai, ai

Agora pensandosegui ôtra tria,Chamando a famiaComeça a dizê:Eu vendo meu burro,meu jegue e o cavalo,Nós vamo a São PaloVivê ou morrê.

8ª Nóis vamo a São PaloQue a coisa tá feiaPor terras aleiaNós vamos vagarMeu Deus, meu DeusSe o nosso destinoNão for tão mesquinhoAi pro mesmo cantinhoNós torna a voltar Ai, ai,ai, ai

Nós vamo a São Palo,que a coisa tá feia;Por terras aleiaNós vamo vagá.Se o nosso destinonão fô tão mesquinho,Pro mêrmo cantinhoNós torna a vortá.

9ª E vende seu burroJumento e o cavaloInté mesmo o galoVendêro também

E vende o seu burro,o jumento e o cavalo,Inté mêrmo o galoVendêro também,

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Meu Deus, meu DeusPois logo apareceFeliz fazendêroPor pôco dinhêroLhe compra o que temAi, ai, ai, ai

Pois logo aparecefeliz fazendêro,Por pôco dinhêroLhe compra o que tem.

10ª Em um caminhãoEle joga a famiaChegou o triste diaJá vai viajáMeu Deus, meu DeusA seca terríviQue tudo devoraAi, lhe bota pra foraDa terra natáAi, ai, ai, ai

Em riba do carrose junta a famia;Chegou o triste dia,Já vai viajá.A seca terrive,que tudo devora,Lhe bota pra foraDa terra natá.

11ª O carro já correNo topo da serraOiando pra terraSeu berço, seu láMeu Deus, meu DeusAquele nortistaPartido de penaDe longe acenaAdeus meu lugarAi, ai, ai, ai

O carro já correno topo da serra.Oiando pra terraSeu berço, seu lá,Aquele nortista,partindo de pena,De longe inda acena:Adeus, Ceará!

12ª No dia seguinteJá tudo enfadadoE o carro embaladoVeloz a corrêMeu Deus, meu DeusTão triste, coitadoFalando saudosoCom seu fio chorosoIscrama a dizerAi, ai, ai, ai

No dia seguinte,á tudo enfadado,E o carro embalado,Veloz a corrê,Tão triste, coitado,falando saudoso,Um fio chorosoEscrama a dizê:

13ª De pena e saudadePapai sei que morroMeu pobre cachorroQuem dá de comê?Meu Deus, meu DeusJá outro perguntaMãezinha, e meu gato?Com fome, sem tratoMimi vai morrêAi, ai, ai, ai

­De pena e sodade,papai sei que morro!Meu pobre cachorro,Quem dá de comê?Já ôto pergunta:­ Mãezinha e meu gato?Com fome, sem trato,Mimi vai morrê!

14ª E a linda pequenaTremendo de medo"Mamãe, meus brinquedoMeu pé de fulô?"Meu Deus, meu DeusMeu pé de rosêraCoitado, ele secaE minha bonecaTambém lá ficouAi, ai, ai, ai

E a linda pequena,tremendo de medo:­ Mamãe meus brinquedo!Meus pé de fulô!Meu pé de rosêra,coitado, ele seca!E a minha bonecaTambém lá ficou.

15ª E assim vão dexandoCom choro e gemido

E assim vão dexando,com choro e gemido,

07/07/2016 Marcos Paulo Santa Rosa Matos: As representações do Nordeste em "A triste partida" de Luiz Gonzaga­ nº 47 Espéculo (UCM)

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Do berço queridoCéu lindo e azuMeu Deus, meu DeusO pai, pesarosoNos fio pensandoE o carro rodandoNa estrada do SuAi, ai, ai, ai

Do berço queridoO céu lindo e azu.Os pai, pesaroso,nos fio pensando,E o carro rodandoNa estrada do Su.

16ª Chegaro em São PauloSem cobre quebradoE o pobre acanhadoPercura um patrãoMeu Deus, meu DeusSó vê cara estranhaDe estranha genteTudo é diferenteDo caro torrãoAi, ai, ai, ai

Chegaro em São Palosem cobre, quebrado.O pobre, acanhado,Percura um patrão.Só vê cara estranha,da mais feia gente,Tudo é diferenteDo caro torrão.

17ª Trabaia dois ano,Três ano e mais anoE sempre nos pranoDe um dia vortarMeu Deus, meu DeusMas nunca ele podeSó vive devendoE assim vai sofrendoÉ sofrer sem pararAi, ai, ai, ai

Trabaia dois ano,três ano e mais ano,E sempre no pranoDe um dia inda vim.Mas nunca ele pode,só veve devendo,E assim vai sofrendoTormento sem fim.

18ª Se arguma notíçadas banda do NorteTem ele por sorteO gosto de ouvirMeu Deus, meu DeusLhe bate no peitoSaudade de móioE as água nos óioComeça a cairAi, ai, ai, ai

Se arguma notíciadas banda do NorteTem ele por sorteo gosto de uvi,Lhe bate no peitosodade de móio,E as água dos óioComeça a caí.

19ª Do mundo afastadoAli vive presoSofrendo desprezoDevendo ao patrãoMeu Deus, meu DeusO tempo rolandoVai dia e vem diaE aquela famiaNão vorta mais nãoAi, ai, ai, ai

Do mundo afastado,sofrendo desprezo,Ali veve preso,Devendo ao patrão.O tempo rolando,vai dia, vem dia,E aquela famianão vorta mais não!

20ª Distante da terraTão seca mas boaExposto à garoaA lama e o paúMeu Deus, meu DeusFaz pena o nortistaTão forte, tão bravoViver como escravoNo Norte e no SuAi, ai, ai, ai

Distante da terratão seca, mas boa,Exposto à garoa,À lama e ao paú,Faz pena o nortista,tão forte, tão bravo,Vivê como escravoNas terra do Su.

07/07/2016 Marcos Paulo Santa Rosa Matos: As representações do Nordeste em "A triste partida" de Luiz Gonzaga­ nº 47 Espéculo (UCM)

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© Marcos Paulo Santa Rosa Matos 2011

Espéculo. Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid

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