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As sutilezas metafísicas do negacionismo climático: como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista

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[-] Sumário # 9

EDITORIAL 5

ENTREVISTA CRISE MUNDIAL E LIMITES DO CAPITAL 9 Com Ernst Lohoff e Norbert Trenkle

ARTIGOS ENTRE RUÍNA E DESESPERO 24 Negação e constituição do sujeito em Robert Kurz e Slavoj Žižek Cláudio R. Duarte e Raphael F. Alvarenga

O EXÉRCITO NAS RUAS 60 Da Operação Rio à ocupação do Complexo do Alemão. Notas para uma reconstituição da exceção urbana Marcos Barreira e Maurilio Lima Botelho CIDADE OLÍMPICA 75 Sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro Marcos Barreira A TODO VAPOR RUMO À CATÁSTROFE? 109 O capital e a dinâmica do aquecimento global Daniel Cunha AS SUTILEZAS METAFÍSICAS DO 134 NEGACIONISMO CLIMÁTICO Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista Daniel Cunha LUKÁCS – A ONTOLOGIA DA MISÉRIA 155 E A MISÉRIA DA ONTOLOGIA Cláudio R. Duarte

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O DINHEIRO DO ESPÍRITO E O DEUS DAS MERCADORIAS 187 A abstracção real segundo Sohn-Rethel Nuno Miguel Cardoso Machado TESES SOBRE A COMUNA DE PARIS 225 Guy Debord, Attila Kotànyi e Raoul Vaneigem CRÍTICA SOCIAL OU NIILISMO? 230 O “trabalho do negativo”: de Hegel e Leopardi até o presente Anselm Jappe

TERÃO OS SITUACIONISTAS SIDO A ÚLTIMA VANGUARDA? 247 Anselm Jappe EXTRATOS DE POLLOCK 261

ou, Pintura e trabalho abstrato Cláudio R. Duarte TÍMIDA SIM, MAS UM TANTINHO DESRECALCADA 288 Ainda um exercício em torno da matéria de Naves e de Guignard Eraldo Santos RODRIGO NAVES E AS DIFICULDADES DA FORMAÇÃO 298 Naves, Guignard, Machado e a crítica das formas modernas Cláudio R. Duarte ADESÃO E DESBUNDE 319 Os êxtases sórdidos de um Brecht às avessas Raphael F. Alvarenga e Natasha B. Palmeira

IDEOLOGIA, COMUNICAÇÃO E VISUALIDADE 336

O sistema artístico detectado

Marcelo Mari

OS DEVOTOS DO SANTO ANÔNIMO 342

Sobre “as visitas que hoje estamos”

Cláudio R. Duarte

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TRÊS FRAGMENTOS 351

“a hora certa”, “a lição” e “com espírito”

Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

EXPEDIENTE 366

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As sutilezas metafísicas do

negacionismo climático

Como a esquerda tradicional adere à ideologia negacionista

Daniel Cunha

O negacionismo climático – o questionamento da validade da teoria do

aquecimento global – está geralmente associado a ideologias ultraconservadoras nos

Estados Unidos e à defesa dos interesses corporativos das companhias petrolíferas. No

Brasil, no entanto, a novidade é que surgem formas de negacionimo climático que

criticam a teoria do aquecimento global utilizando os conceitos da teoria crítica, nos

casos mais refinados, ou do nacionalismo terceiro-mundista, nos casos mais rústicos.1

Aqui faremos a crítica da tese de doutorado de Daniela Onça, que pretende usar a

sofisticação da teoria crítica para demonstrar a invalidade da teoria do aquecimento

global, que seria, segundo ela, uma ideologia de legitimação do capitalismo tardio.2 Não

pretendemos fazer uma crítica detalhada desta obra – falta-nos espaço aqui, e há muitas

outras obras que fazem a crítica científica detalhada dos argumentos negacionistas em

publicações especializadas e populares – mas expor as falhas nas grandes linhas de seu

argumento. Não abordaremos aqui a questão do financiamento de muitos destes

“céticos” por corporações petrolíferas e a desonestidade intelectual de muitos dos

negacionistas, que já estão documentados na literatura3 (e não estamos afirmando que

se trata disto do caso de Onça). Tampouco consideramos que a ciência climática atual

1 Seus textos são reunidos na página www.fakeclimate.com (acesso em novembro/2012). 2 ONÇA, D. (2011), “Quando o sol brilha, eles fogem para a sombra...”: a ideologia do aquecimento

global. Tese de doutorado, FFLCH/USP, São Paulo. Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8135/tde-01062011-104754/pt-br.php (acesso em dezembro/2012). A partir daqui as referências a esta obra serão identificadas no corpo do texto como “Onça”, seguido pelo número da página, como em (Onça 150).

3 Sobre isto, ver FOUCART, S. (2010) Le populisme climatique: Claude Allègre et Cie, enquête sur les ennemis de la science, Paris: Denoël e ORESKES, N. & CONWAY, E. (2010) Merchants of doubt, New York: Bloomsbury. Sobre o climate gate, uma as maiores mistificações de massa já produziadas pela indústria cultural, ver o livro de um dos cientistas envolvidos: MANN, M. E. (2012) The hockey stick and the climate wars: dispatches from the frontlines, New York: Columbia University Press.

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seja à prova decríticas (o que seria anticientífico) ou que os processos políticos

relacionados não envolvam distorções ou ideologizações. O objetivo aqui é fazer uma

crítica imanente da tese de Onça.

Evidentemente, estamos de acordo com os pressupostos da teoria crítica e do

materialismo utilizados por Onça, e consideramos desnecessário discutir isto aqui.

Assim, compartilhamos com Onça a crítica à chamada “ecologia profunda” e suas

variantes mais ou menos místicas – teoria de “Gaia”, etc. – que consideram que a

natureza é um organismo vivo mais ou menos consciente, tendendo teleologicamente a

um equilíbrio ou harmonia idealizados – o que no limite é uma forma de animismo.

Este é o terreno comum no qual se travará a crítica aqui desenvolvida.

A volumosa tese de Onça discorre por mais de quinhentas páginas ao longo de

três eixos de argumentação principais: 1) que a natureza está em constante

transformação, que não existe um estado de equilíbrio “harmonioso” natural imutável e

que, portanto, não há razão para temermos ou nos contrapormos a estas mudanças; 2)

que a teoria do aquecimento global é científica e empíricamente falsa; e 3) que o

aquecimento global antropogênico é uma ideologia de legitimação do capitalismo tardio.

Desenvolveremos aqui a crítica de cada um destes eixos.

Natureza, mudanças e limiares

Para identificar as raízes histórico-sociais da crença na imutabilidade da

natureza, diz Onça que

ao longo de toda a história do ocidente, verificamos que um dos temas dominantes em filosofia da natureza é a crença de que o universo, o sistema solar e a Terra são perfeitos demais para terem acontecido por mero acaso (...) Tanto a tradição greco-romana quanto a judaico-cristã imaginam uma ordem na natureza ditada pela divindade e encontram prova disso na notável adequação da Terra como habitat de suas espécies (Onça 49). Após discorrer sobre o desenvolvimento histórico da teologia, filosofia e ciência

ocidentais, conclui Onça:

as ideias sobre a perfeição da natureza e a interferência humana sobre ela (...) nunca desapareceram por completo da nossa ciência, deixando no ar um resquício de um ideal de que a natureza imperturbada funciona perfeitamente. (...) A hipótese do aquecimento global é um caso emblemático da persistência desses pressupostos metafísicos ilusórios sobre a estabilidade e a perfeição da natureza na ciência moderna. (Onça 66-7)

Não há o que discordar quanto ao fato de que o clima da Terra, na escala de

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tempo geológica, apresentou grandes mudanças. Basta pensarmos nas eras glaciais

disparadas pelos ciclos de Milankovitch ou na extinção dos dinossauros, provavelmente

causada pela queda de um meteoro que causou mudanças no sistema climático. É

cientificamente muito bem estabelecido em ecologia, porém, que a homeostase4 é

propriedade real de ecossistemas, em todas as escalas. Se efetivamente não se pode

esperar resiliência5 infinita de ecossistemas dinâmicos, parece ser adequado descrever a

história do sistema terrestre e seus subsistemas como a sucessão de diferentes estados

homeostáticos, com transições mais ou menos catastróficas. O salto metafísico de Onça

pode ser constatado na seguinte afirmação:

Muitos eventos interpretados hoje como catástrofes climáticas são completamente naturais e comuns, e não há justificativa para fixarmos uma determinada configuração climática como “normal” ou “preferível”. (Onça 358, grifo nosso).

Aqui, Onça faz total abstração de que as civilizações humanas nasceram e se

desenvolveram sob condições climáticas muito específicas, no período de dez mil anos

conhecido como Holoceno (ver figura 1 a seguir):

Durante o Holoceno, as mudanças ambientais ocorreram naturalmente, e a capacidade regulatória do planeta manteve as condições que permitiram o desenvolvimento humano. Temperaturas estabilizadas, disponibilidade de água doce e ciclos biogeoquímicos, todos permaneceram dentro de limites relativamente estreitos6.

Particularmente, estas condições específicas possibilitaram a estabilização dos

níveis dos mares. Sabe-se que as primeiras civilizações floresceram em estuários férteis

– Egito, Mesopotâmia, etc. – o que não seria viável sem esta estabilidade. Até hoje, a

maior parte da população mundial vive em áreas costeiras. É verdade que hoje temos

recursos técnicos para enfrentar situações adversas – vide os megadiques da Holanda –,

mas essas técnicas são muito custosas e têm limites.

4 “Homeostase” é a propriedade de ecossistemas de regular o seu ambiente, através de mecanismos de

regulação que emergem da relação entre os seus componentes, mantendo um estado de equilíbrio dinâmico.

5 “Resiliência” é a propriedade de ecossistemas de recuperar o seu estado homeostático original após sofrer um distúrbio.

6 ROCKSTROM ET AL. (2009), “A safe operating space for humanity”, Nature 461, September 2009, p. 472-475.

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Figura 1: anomalia de temperatura, CO2 atmosférico e nível do mar nos 400 mil

anos anteriores à Revolução Industrial (1750)7

A análise de Onça também ignora a dinâmica não-linear do sistema climático.

Em sistemas dinâmicos não-lineares a ultrapassagem de certos limiares pode ser causa

da brusca passagem do sistema do seu estado original para um estado alternativo

bastante diferente.8 O sistema climático também pode estar sujeito a mudanças

7 Define-se como “anomalia de temperatura” o desvio da temperatura média global em relação àquela do

período de 1951 a 1980. Adaptado da página de Makiko Sato e James Hansen: http://www.columbia.edu/~mhs119/ (acesso em novembro/2012).

8 Este tipo de comportamento, que pode apresentar multiplicidade de estados estacionários e histerese – ou seja, a propriedade de ecossistemas de apresentar dois diferentes estados possíveis para as mesmas variáveis de estado, sendo o estado efetivo determinado pela sua história anterior –, já foi demonstrado em modelos e experimentalmente em ecossistemas como lagos rasos temperados. Os lagos rasos temperados mudam subitamente de estado (de límpido para turvo ou eutrofizado e vice-versa) com a variação da concentração de nutrientes. Há registro científico da manipulação intencional (biomanipulação) para forçar a transição do estado turvo para o estado límpido. Também a evolução das espécies parece seguir este comportamento dinâmico, como proposto por Niles Eldredge e Stephen Jay Gould em sua teoria do “equilíbrio pontuado”, baseando-se no fato de que a evolução das espécies, conforme os registros fósseis, parece ser caracterizado por longos períodos de estabilidade (homeostase) pontuados por súbitas explosões evolutivas. Sobre mudanças catastróficas em ecossistemas, ver SCHEFFER, M.; CARPENTER, S.; FOLEY, J. A.; FOLKE, C. & WALKER, B. (2001) “Catastrophic shifts in ecosystems”, Nature 413: 591-596. Sobre o caso específico dos lagos rasos temperados (modelo clássico de multiplicidade de estados estacionários) ver SCHEFFER, M.; HOSPER, S. H.; MEIJER, M-L.; MOSS, B. & JEPPESEN, E. (1993) “Alternative equilibria in shallow lakes”, Tree 8 (8): 275-279. Sobre biomanipulação em lagos rasos, ver MEIJER, M-L.; DE BOOIS, I.; SCHEFFER, M.; PORTIELJE, R. & HOSPER, R. (1999) “Biomanipulation in shallow lakes in the Netherlands: an evaluation of 18 case studies”, Hydrobiologia 408/409: 13-30. Sobre equilíbrio pontuado, ver ELDREDGE, N.; GOULD, S. J (1972). “Punctuated equilibria: an alternative to phyletic gradualism”, In: Schopf, T. J. M. (ed.), Models in Paleobiology. San Francisco: Freeman, Cooper and Company, pp. 82-115.

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Tempo (milhares de anos antes de 1750)

Temperatura antártica (Vostok) Holoceno

Última era do gelo

Concentração de CO2

Nível do mar

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catastróficas, e há registros paleoclimáticos de mudanças súbitas (ao longo de décadas)

na escala regional9. O melhor exemplo deste comportamento não-linear pode ser

buscado em dados paleoclimáticos, nas transições entre períodos glaciais e interglaciais.

Este fenômeno natural é causado primeiramente por pequenas variações na órbita

terrestre (ciclos de Milankovitch). A partir disto, retroalimentações10 positivas no

sistema climático podem levá-lo a ultrapassar um certo limiar, no qual há a passagem de

um estado glacial para um interglacial. Os dados sugerem que os estados intermediários

não são estáveis, e o sistema climático tendeu a permanecer em um destes dois estados,

com transições entre eles. É isto o que prevêem os modelos de tipo Budyko-Sellers,

baseados no balanço energético da Terra e na mudança do albedo de sua superfície, que

muda a sua refletividade: quando a frente de gelo polar atinge determinada latitude, a

dinâmica interna do sistema é disparada e torna-se irreversível, e o planeta entra em

uma era glacial; o processo também ocorre no sentido inverso11, disparado pela lenta

acumulação de carbono atmosférico proveniente das erupções vulcânicas, combinada

com a redução do intemperismo das rochas em condições glaciais, que remove carbono

da atmosfera.

No caso do aquecimento global antropogênico, existe a possibilidade de um

aquecimento global irreversível (runaway climate change), no qual o aquecimento

global, devido ao incremento dos gases estufa, potencializado pelas retroações positivas,

acarreta a completa evaporação dos oceanos. Isto também é conhecido como “síndrome

de Vênus”, já que são estas as condições naquele planeta. No caso do sistema climático

9 A modelagem e previsão destas mudanças catastróficas é sujeita a grandes incertezas devido ao elevado

grau de não-linearidade, mas vários potenciais limiares (tipping points) são estudados, inclusive em dados paleoclimáticos. Para uma boa revisão sobre a possibilidade de mudanças climáticas bruscas, ver ALLEY, R. B.; MAROTZKE, J.; NORDHAUS, W. D.; OVERPECK, J. T.; PETEET, D. M.; PIELKE JR., R. A.; PIERREHUMBERT, R. T.; RHINES, P. B.; STOCKER, T. F.; TALLEY, L. D. & WALLACE, J. M (2003) “Abrupt climate change”, Science 299: 2005-2010.

10 “Retroação” ou “retroalimenção” (feedback) no sistema climático é o fenômeno que é disparado pelo aquecimento global que incrementa o aumento da temperatura global (retroação positiva) ou o amortece (retroalimentação negativa). Um exemplo de retroação positiva é o derretimento das calotas polares, que substituem superfície clara por superfície escura (que absorve mais calor) e assim catalisa o aquecimento. Uma retroação negativa é a “bomba de solubilidade”, ou seja, o fato de que mais carbono é solubilizado nos oceanos à medida que sua concentração na atmosfera aumenta (princípio de Le Chatelier; este processo, no entanto, causa a acidificação dos oceanos, com outros problemas derivados).

11 Ver BUDYKO, M. I. (1969) “The effect of solar radiation variations on the climate of the Earth”, Tellus 21: 5, p. 611-619; SELLERS, W. D. (1969) “A global climatic model based on the energy balance of the Earth-atmosphere system”, Journal of Applied Meteorology 8, June 1969, p. 392-400. Para uma explanação didática, ver a página Snowballearth: http://snowballearth.org/ (acesso em novembro/2012).

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terrestre, a maior parte dos cientistas, ao menos por ora, descarta esta hipótese12.

Entretanto, cientistas mais pessimistas, como James Hansen, consideram que a

combustão de todas as reservas de carvão e petróleo não-convencional ocasionaria uma

“síndrome de Vênus” na Terra.13 Evidentemente, um planeta sob estas condições é

absolutamente inóspito a qualquer forma de civilização humana, ou mesmo às formas

de vida que conhecemos.

Além disso, a dinâmica dos fluxos de matéria e energia do planeta implica que a

escala de tempo e o progresso temporal das mudanças climáticas sejam muito distintas

daquelas a que estão acostumadas as instituições humanas. O aquecimento global

provocado pela emissão antropogênica de carbono à atmosfera é irreversível na escala

de tempo de pelo menos mil anos, mesmo que se interrompa completamente a emissão

de gases estufa para a atmosfera.14 Esse comportamento dinâmico do sistema climático

se deve a fenômenos físicos que têm os seus próprios tempos: o dióxido de carbono

tende a ser absorvido pelos oceanos, reduzindo assim a tendência de aquecimento, mas

isto é compensado pela diminuição da taxa de troca térmica com o oceano, de forma que

os efeitos se cancelam, mantendo a temperatura constante.15 Esta “inércia” do oceano,

favorecida pela sua enorme massa, implica que parte do aquecimento devido às

emissões passadas ainda está “armazenada no tubo”, vindo a realizar-se nas próximas

décadas. Devido a este comportamento dinâmico peculiar, é importante desde já

controlar os teores de carbono na atmosfera e suas emissões. Com base em dados

paleoclimáticos, já foi proposto um limite de segurança de 350 ppm de CO2

atmosférico, valor este que já foi ultrapassado.16

12 Cfe. IPCC, Thirty-first session of the IPCC: Bali 26-29 October 2009, disponível em

http://www.ipcc.ch/meetings/session31/inf3.pdf (acesso em novembro/2012). 13 HANSEN, James (2009) Storms of my grandchildren, New York: Bloomsbury, cap. 10. 14 Cf. SOLOMON, S.; PLATTNER, G. K.; KNUTTI, R. e FRIEDLIENGSTEIN, P (2009), “Irreversible

climate change due to carbon dioxide emissions”, Proceedings of the National Academy of Sciences, 106 (6), p. 1704-1709.

15 Devido ao fato de que a dinâmica de ambos os processos – absorção de dióxido de carbono e de calor pelos oceanos – são limitados pelo mesmo processo físico, a mistura das águas oceânicas profundas.

16 A cessação das emissões pode fazer este valor recuar, se ocorrer antes que se atinja um limiar ou ponto de não-retorno. Cf. HANSEN ET AL (2008) “Target atmospheric CO2: where should humanity aim?”, Open Atmospheric Science Journal 2: 217-231. Outros consideram que 350 ppm é um valor especulativo. Cf. NATIONAL RESEARCH COUNCIL (2011), Climate Stabilization Targets: emissions, concentrations and impacts over decades to millenia, Washington: The National Academies Press, p. 230. A nosso ver, Hansen et al. não procuraram estabelecer um valor exato para um nível perigoso de CO2 atmosférico, mas, a partir dos dados disponíveis, indicar um valor de precaução a ser considerado nas decisões políticas, o que é obviamente necessário. Os próprios afirmam: “Sugerimos um objetivo

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Adiciona-se a isto o fato de que nunca houve um aumento tão brusco da

concentração de carbono atmosférico quanto após a Revolução Industrial. A taxa de

aumento do teor de carbono atmosférico dos últimos anos tem sido de cerca de 2

ppm/ano. O acúmulo natural de carbono na atmosfera, quando temporariamente

ocorre, pode chegar a 0,00001 ppm/ano.17 No maior evento atípico de aquecimento

global natural conhecido – provavelmente disparado pelo movimento das placas

tectônicas, amplificado por retroalimentações –, o máximo térmico do paleoceno-

eoceno (PETM) ocorrido há 55 milhões de anos, a quantidade de carbono emitido para a

atmosfera coincidentemente corresponde ao volume das reservas de combustíveis

fósseis atuais. Porém, as emissões se alongaram por cerca de 20 mil anos, e não na

escala de décadas, como é a tendência no capitalismo do século XXI. No PETM houve

extinção de algumas formas de vida marinha e adaptação das demais18. Mas as

consequências de uma adição de carbono muito mais súbita são provavelmente

catastróficas. Além da velocidade da mudança climática ser crucial para a adaptação dos

seres vivos e ecossistemas19 (incluindo a agricultura), o aquecimento rápido deve anular

o efeito das retroações negativas lentas que tendem a amortecer o seu efeito em escalas

de tempo maiores, como o intemperismo das rochas que reduz o carbono atmosférico na

escala de milhões de anos – mas é desprezível na escala de décadas ou séculos, como é o

caso atual.

Portanto, ao afirmar que não existe “configuração climática preferível” no

planeta, sem analisar as condições materiais concretas que possibilitam a vida humana e

o desenvolvimento da civilização, e ao não levar em consideração a dinâmica peculiar

dos processos do sistema climático, Onça recai na mais pura metafísica, como se o

homem não dependesse, para o seu metabolismo com a natureza, de um “espaço de

inicial de reduzir o CO2 atmosférico para 350 ppm, com o alvo a ser ajustado à medida que o entendimento científico e as evidências empíricas dos efeitos climáticos se acumularem”.

17 Cf. HANSEN ET AL (2008), op. cit. 18 Cf. CUI, Y. ET AL (2011) “Slow realease of fossil carbon during the Paleocene-Eocene Thermal

Maximum”, Nature Geoscience 4 July 2011: 481-485. Para uma exposição em linguagem mais popular, ver KUMP, L. R. (2011) “The last great global warming”, Scientific American, July 2011, p. 57-61.

19 Com o aquecimento global, as espécies animais e vegetais precisam migrar em direção aos pólos ou maiores altitudes, devido ao deslocamento das zonas climáticas. Isto pode ser causa de extinção de espécies e colapso de ecossistemas, por exemplo, quando há barreiras para a migração (naturais, como oceanos, ou artificiais, como cidades), ou quando a mudança é brusca demais. Adaptações evolutivas também demandam tempo.

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operação seguro”20 das condições ambientais globais, e como se a sociedade pudesse

dispor dos tempos e ritmos para as necessárias mudanças sociais, econômicas e

tecnológicas como em qualquer outro tipo de decisão social. Fora daquela faixa de

condições materiais, as condições de desenvolvimento e mesmo de existência humanas

podem ser colocadas em xeque; para que se possa mantê-las dentro de um intervalo

seguro, é preciso agir a tempo.

O negacionismo como ideologia e fundamentalismo

Em sua cruzada contra a teoria do aquecimento global, Onça expõe uma grande

coleção de argumentos e contra-teorias disponíveis na literatura. Uma das fraquezas de

sua tese é que os argumentos mais diversos, por vezes mutuamente excludentes – por

exemplo, teorias alternativas para explicar o aquecimento global e teorias que negam a

ocorrência do aquecimento – são apresentados lado a lado, sem que seja feito um

balanço crítico. Aqui não buscaremos rebater detalhadamente cada um dos argumentos,

cuja refutação está disponível na literatura científica e de divulgação científica21, mas

escolheremos o mais emblemático. Trata-se da teoria da retroação negativa causada

pelas nuvens levada a cabo por Richard Lindzen, o mais conceituado dos cientistas que

discordam da teoria do aquecimento global22.

Os cientistas climáticos sérios aceitam certos fatos básicos sobre o aquecimento

global: que a concentração de carbono na atmosfera está aumentando continuamente,

como mostrado pela curva de Keeling (ver figura 2); que este carbono atmosférico causa

efeito estufa, devido às propriedades de gases como dióxido de carbono, metano e vapor

d’água, que tornam a atmosfera mais opaca à radiação infravermelha (calor); que há

20 ROCKSTROM ET AL., “A safe operating space for humanity”, op. cit. 21 Ver, por exemplo, FOUCART, S. (2010), op. cit., e o blog Real Climate, mantido por cientistas do clima

– www.realclimate.org (acessado em novembro/2012). 22 Lindzen é professor de meteorologia no MIT e possui em seu currículo algumas contribuições

relevantes para a ciência climática. Além disso, o estilo do seu texto é elegante e atraente, remetendo a um estilo de ciência mais “romântica” e menos matematizada, o que não é muito comum em publicações altamente técnicas como são os artigos científicos sobre climatologia. Nos últimos tempos, porém, Lindzen parece estar se especializando em argumentos e exposições falaciosas. Ver por exemplo a forma falaciosa como apresentou dados de outro grupo de cientistas – “Misrepresentation from Lindzen”: http://www.realclimate.org/index.php/archives/2012/03/misrepresentation-from-lindzen/ – ou como selecionou dados de forma conveniente para “provar” suas teorias – “Lindzen and Choi unravelled”: http://www.realclimate.org/index.php/archives/2010/01/lindzen-and-choi-unraveled/ (acessados em dezembro/2012).

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uma medida de sensibilidade climática ao carbono, geralmente considerada como o

aumento da temperatura média da superfície terrestre resultante de uma duplicação

instantânea da concentração de carbono na atmosfera23; e que o sistema climático

apresenta retroalimentações (feedbacks) positivas e negativas, que amplificam e/ou

amortecem esta sensibilidade climática.

Fig. 2: evolução histórica do teor de carbono atmosférico (média anual)24

A retroalimentação global do sistema climático é o resultado da composição de

vários processos individuais que podem ser positivos ou negativos. Uma

retroalimentação global positiva implica que o aquecimento dispara processos que,

globalmente, tendem a amplificar o aquecimento, enquanto que uma

retroalimentaçãoglobal negativa significa que o aquecimento dispara processos que

tendem a amortecê-lo. Os modelos climáticos atualmente utilizados possuem

retroalimentação global positiva, devido à contribuição de processos como o aumento da

concentração de vapor d’água na atmosfera25.

23 Ou seja, incluindo apenas as retroalimentações rápidas. O estudo clássico de Jules Charney de 1979

determinou este valor como 3oC +/- 1,5. De lá para cá este valor se manteve basicamente inalterado para a imensa maioria dos cientistas climáticos, variando apenas o nível de incerteza. Para se ter uma ideia do que isto significa, a grande maioria dos cientistas climáticos considera que um aumento da temperatura média global maior do que 2 oC é perigoso, e que um aumento de 6 oC é absolutamente catastrófico. Ver o estudo de Charney: AD HOC STUDY GROUP ON CARBON DIOXIDE AND CLIMATE(1979) Carbon dioxide and climate: a scientific assessment, Washington: National Academy of Sciences. Disponível em www.nap.edu (acessado em novembro/2012).

24 Fonte dos dados: NOAA, ftp://ftp.cmdl.noaa.gov/ccg/co2/trends/co2_annmean_mlo.txt (acesso em dezembro/2012).

25 Com o aumento da temperatura média, mais água evapora, e o ar passa a ter maior capacidade de “armazenar” vapor d’água (aumento da concentração de saturação).

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Negacionistas climáticos inteligentes como Lindzen percebem que a possibilidade

de refutação da teoria do aquecimento global está em descrever retroalimentações

negativas ignoradas pelos modelos climáticos. Uma retroalimentação negativa global

com magnitude suficiente funcionaria como um “amortecedor” do efeito do aumento da

concentração de carbono na atmosfera.

O que Lindzen procurou mostrar ao longo dos últimos vinte anos é que o vapor

d’água, sabidamente um poderoso gás estufa e que, portanto, é considerado como uma

retroalimentação positiva nos modelos climáticos, na verdade comporta-se de forma a

regular a temperatura terrestre – ou seja, que o vapor d’água funciona como uma

retroalimentação negativa: “As notáveis propriedades termodinâmicas da água quase

com certeza levam à sua atuação como o termostato da natureza”26 (grifo nosso).

Lindzen propôs então um mecanismo para este “termostato da natureza”: segundo ele,

ainda que o aquecimento aumente o teor de vapor d’água próximo à superfície, ele

também estaria associado a uma maior convecção em nuvens de tipo cumulus, o que

acarretaria a diminuição da umidade na alta troposfera, já que o ar esfria quando sobe e

o vapor d’água condensa e precipita. Porém, o próprio Lindzen reconheceu que esta

teoria tinha problemas.27 Mais tarde, elaborou outra elegante teoria, baseada em

imagens de satélite que mostram a distribuição horizontal das nuvens em altas altitudes.

Tais imagens mostram que há uma distribuição espacial heterogênea da umidade na

alta atmosfera, com transições bruscas entre zonas de alta e baixa umidade. Como o

vapor d’água é um potente gás estufa, as regiões de alta umidade tendem a intensificar o

efeito estufa, aprisionando o calor, enquanto as áreas de baixa umidade tendem a

permitir o resfriamento terrestre. A teoria de Lindzen é que a cobertura espacial de

nuvens cirrus na alta atmosfera, normalizada em relação à cobertura de nuvens

cumulus inferiores, se conforma de forma a compensar a elevação da temperatura da

superfície dos mares. À medida que a superfície do oceano se aquecesse, as nuvens se

configurariam de tal forma a deixar mais espaços sem umidade (e vice-versa), exercendo

26 LINDZEN, R. S. (1990) “Some coolness concerning global warming”, Journal of the American

Meteorological Society 71 (3), p. 288-299. Disponível em http://www-eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).

27 O mecanismo apresentava um “problema significativo”, já que os perfis de umidade observados empiricamente eram diferentes dos propostos no modelo. Ver LINDZEN, R. S. (1993) “On the scientific basis for global warming scenarios”, Environmental Pollution 83: 125-134. Disponível em http://www-eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).

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uma retroalimentação negativa que compensaria o efeito do aumento de concentração

do carbono atmosférico:

a região nebulosa-úmida parece agir como uma íris adaptativa de infravermelho, que abre e fecha as regiões livres de nuvens altas, que permitem o resfriamento de forma mais efetiva, de maneira a resistir a mudanças na temperatura superficial tropical28 (grifo nosso)

Esta teoria é conhecida como “efeito íris”.29 Trata-se sem dúvida de uma teoria

científica extremamente elegante, que atesta a inteligência incomum de seu autor. De

fato, pode-se dizer que esta teoria é elegante demais. Afinal, por que a Terra como tal

seria dotada de um mecanismo – um termostato, ou de uma íris – para amortecer um

efeito inédito na história natural, a emissão massiva e repentina de carbono oriundo da

combustão de combustíveis fósseis? Começa aqui a assomar a face mística de Lindzen:

seus modelos de termostato terrestre implicam um planeta que funciona como um

organismo vivo consciente, que regula sua própria temperatura e, assim, permite que

mudemos a composição da atmosfera ao nosso bel-prazer sem causar distúrbios no

sistema climático.

É pertinente aqui fazer uma análise comparativa com a clássica teoria de Gaia

elaborada por James Lovelock e Linn Margulis. Segundo a teoria, a biosfera atua de

forma a moldar o ambiente, tornando-o favorável à vida. De fato, como mostram os

autores da teoria, a composição da atmosfera terrestre seria completamente diferente se

não fosse a presença dos organismos vivos30 – os ciclos biogeoquímicos têm ativa

contribuição da biosfera –, de forma que não apenas o ambiente influencia os

organismos vivos, mas também os organismos vivos influenciam o ambiente. Para

Lovelock, isto implica a homeostase ativa, ou seja, o controle das condições ambientais

28 LINDZEN, R. S.; CHOU, M.-D. e HOU, A. Y. “Does the Earth have an adaptive infrared iris?” Bulletin of

the American Meteorological Society 82 (3), p. 417-432. Disponível em http://www-eaps.mit.edu/faculty/lindzen.htm (acessado em novembro/2012).

29 Impressiona a falta de rigor com que as teorias de Lindzen são analisadas por Onça. A teoria do termostato das nuvens cumulus e do “efeito íris” são diferentes, mas são apresentadas por Onça como se fossem a mesma coisa (Onça 276-277). Como já destacado, o próprio Lindzen reconheceu que havia problemas com a sua teoria do termostato baseada na convecção das nuvens cumulus. Ver LINDZEN (1993), op. cit.

30 Não haveria, por exemplo, a presença constante simultânea de substâncias reduzidas como metano e oxidantes fortes como oxigênio; a forma preponderante do nitrogênio seria o nitrato dissolvido, etc., ou seja, a atmosfera terrestre não está em equilíbrio termodinâmico, podendo ser mantida neste estado apenas pela ação dos organismos vivos. Cf. LOVELOCK, J. E. & MARGULIS, L. (1974) “Atmospheric

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planetárias pelos seres vivos. Para ilustrar o seu conceito, Lovelock e Watson

elaboraram um modelo matemático, o “mundo das margaridas” (daisyworld)31. Neste

mundo simplificado, plano e sem atmosfera, os seres vivos se resumiriam a margaridas

pretas e brancas, que teriam uma temperatura ótima de crescimento idêntica32.

As margaridas brancas refletem mais radiação solar do que as pretas, que a

absorvem mais. Assim, as margaridas brancas tendem a resfriar o planeta, enquanto as

pretas tendem a esquentá-lo. Mostra-se então que quando ocorre variação da radiação

solar há uma subsequente mudança na proporção de margaridas pretas e brancas – pois

as pretas estão mais adaptadas à radiação solar menor, já que absorvem mais energia,

enquanto as brancas à radiação solar mais intensa, já que a refletem mais – de forma

que a temperatura deste mundo imaginário é mantida constante, como se fosse

equipado de um termostato. Esta seria uma ilustração da maneira pela qual os

organismos vivos tendem a controlar as condições ambientais do seu ambiente, sem

violar os princípios darwinianos.33

No sistema climático real, sabe-se que, na escala de tempo de centenas de

milhares de anos, o aumento da temperatura provoca o aumento da taxa de

intemperismo de silicatos da crosta terrestre, o que remove carbono da atmosfera,

funcionando como retroação negativa34. Lovelock propôs para a sua Gaia que as

bactérias intensificariam esse processo, já que a sua atividade influi na concentração de

dióxido de carbono no solo35. A proposição de uma retroação negativa para controlar a

temperatura do planeta não é novidade, portanto. Ocorre que a teoria da retroação

negativa de Lindzen é uma combinação extremada da retroação geológica com a Gaia de

Lovelock: se em Gaia, na sua melhor versão, a homeostase emerge como resultado da

homeostasis by and for the biosphere: the Gaia hypotehsis”, Tellus XXVI: 1-2. Disponível em http://www.jameslovelock.org/page34.html (acessado em novembro/2012).

31 LOVELOCK, J. E. e WATSON, A. J. (1983) “Biological homeostasis of the global environment: the parable of Daisyworld”, Tellus 35B: 284-289. Disponível em http://www.jameslovelock.org/ (acessado em novembo/2012).

32 Ou seja, a velocidade de crescimento máxima se dá a uma temperatura específica, e decresce à medida que a temperatura se afasta deste valor, para mais ou para menos, até eventualmente tender a zero.

33 Outros autores, entretanto, mostram que nem toda seleção natural é homeostática, ou seja, ao contrário do “mundo das margaridas”, elas podem instabilizar o ecossistema.

34 Ver WALKER, J. C. G.; HAYS, P. B e KASTING, J. F. (1981) “A negative feedback mechanism for the long term stabilization of Earth`s surface temperature”, Journal of Geophysical Research 86 (10): 9776-9782.

35 LOVELOCK, J. E. (1982) “The regulation of carbon dioxide and climate: Gaia or geochemistry”, Planetary Space Science 30 (8): 795-802. Disponível em www.jameslovelock.org (acessado em novembro/2012).

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interação cega dos seres vivos36 (de forma análoga ao equilíbrio de preços como

resultado da “mão invisível” do mercado), e pode ser perturbada pela ação de forças

suficientemente fortes37 , em Lindzen é o próprio planeta inorgânico que se autorregula,

não na escala de tempo geológica (como no intemperismo de rochas), mas como uma

retroalimentação rápida, capaz de compensar a súbita emissão antropogênica de

carbono. Estamos próximos aqui de uma espécie de animismo, de um “mundo das

margaridas” sem as margaridas, com resiliência tendendo ao infinito.

Porém, homeostase e resiliência são propriedades emergentes, que resultam da

interação entre os diferentes componentes de um ecossistema em sua evolução natural.

Imaginar uma regulação homeostática para processos significativos de magnitude

desconhecida na história natural de um sistema dinâmico, que mantenha este sistema

no mesmo estado de equilíbrio, sem mudanças de estado ou estados transientes, é

apostar na metafísica.38 É isto que faz a teoria do “efeito íris” de Lindzen: aposta na

existência de um sistema de regulação natural para a súbita adição de grande

quantidade de carbono na atmosfera a uma taxa inédita na história planetária – ou seja,

um sistema com resiliência metafísica, que não se caracteriza como uma propriedade

emergente de um sistema natural, mas como a mais pura teleologia. Um entendimento

materialista da resiliência, porém, implica necessariamente a possibilidade de que o

estado homeostático de um sistema possa ser rompido.

Pode-se argumentar, porém, que o “termostato” e o “efeito íris” são apenas

metáforas, e que não há nenhum sentido metafísico nas expressões utilizadas por

Lindzen, assim como se usa o termo para o caso da retroação negativa do intemperismo

de rochas combinado com as emissões de carbono das erupções vulcânicas. No entanto,

o próprio Lindzen descreve o controle da temperatura atmosférica como “uma ideia de

36 Versões “fortes” da teoria de Gaia afirmam que os seres vivos controlam a Terra de forma ativa,

inclusive no sentido a “otimizar” o ambiente, de forma que o planeta como um todo poderia ser considerado um ser vivo. Aqui Gaia definitivamente deixa de ser uma metáfora eventualmente útil e adentra o terreno do misticismo.

37 Como é o caso do aquecimento global antropogênico ou mesmo o “mundo das margaridas”, onde a ultrapassagem de limiares máximos e mínimos de radiação resulta na morte de ambas as variedades de flores. Ver LOVELOCK, J. E & WATSON, A. J. (1983), op. cit.

38 De fato, Odum e Barrett propõe que o termo “homeostase” seja utilizado apenas até a escala do indivíduo, onde há um setpoint geneticamente definido – como, por exemplo, na regulação da temperatura corporal dos mamíferos. Para escalas maiores, eles propõe o termo “homeorrese”, para indicar que se trata de um equilíbrio muito mais contingente e instável. Cf. ODUM, E. P. & BARRETT, G. W. (2004) Fundamentals of ecology, 5th edition, Thomson Brooks/Cole.

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natureza teológica ou filosófica”39. E é o próprio Lindzen que afirma: “O efeito estufa é

tão poderoso que a Terra sabiamente encontra maneiras mais eficientes de resfriar a

sua superfície”40 (grifo nosso). Vejamos agora o que diz Lindzen em testemunho no

parlamento britânico:

Temos trabalhado nisso [a retroalimentação negativa causada pela distribuição espacial das nuvens] desde então, e isto se parece muito com uma retroalimentação negativa que seria forte o suficiente para amortecer todas as retroalimentações positivas no modelo. É uma área de pesquisa, mas é politicamente incorreto nestes dias falar do mundo, ou da Terra, como sendo de alguma forma projetada [engineered]. Se algum de vocês tem formação em engenharia (...), você nunca constrói nada com retroalimentações positivas, a não ser que queira amplificar algo. Você constrói tudo de forma que as retroalimentações o mantenham em equilíbrio.41 (grifos nossos)

Lindzen está aqui claramente utilizando o argumento do design inteligente, ou seja, está

afirmando que a Terra deve ser dotada de um mecanismo de retroalimentação negativa

que regula a temperatura do planeta, mesmo para fenômenos de dimensões inéditas na

história natural, porque foi projetada, e o projeto não poderia ser defeituoso, não

poderia estar sujeito a distúrbios previsíveis a um projetista onisciente, que um projeto

deveria prever estes distúrbios de antemão e precaver-se contra eles: a Terra é sábia.

Um argumento que mergulha nas águas turvas do criacionismo e do misticismo. De

fato, tal argumento é, mais do que politicamente, cientificamente equivocado. Ele atenta

contra aquilo que Jacques Monod chamou de “postulado da objetividade”:

A pedra angular do método científico é o postulado da objetividade da Natureza. Isto é, a recusa sistemática em considerar como capaz de conduzir a um conhecimento “verdadeiro” toda interpretação dos fenômenos dada em termos de causas finais, ou melhor, de “projeto”.42

Esta postura não-científica ou anti-científica é escancarada sem pudores por Roy

Spencer, outro negacionista climático que defende ardorosamente a hipótese da

39 Cf. KERR, R. A. (1989) “Greenhouse skeptic out in the cold”, Science 246, December 1989, p. 1118. 40 LINDZEN, R. S. (1990) “A skeptic speaks out”, EPA Journal 16, p. 45-47. Kerr (1989), op. cit., p. 119,

relata: “Em outra de suas asserções filosóficas, Lindzen acredita que as retroalimentações negativas (...) dominam todas as retroalimentações de aquecimento, ou positivas. Em escalas de tempo de poucos séculos ou menos, ele diz, até mesmo a mais forte perturbação, de qualquer origem, não iria levar o sistema climático relativamente insensível a um estado distintamente mais quente”.

41 Disponível em http://www.publications.parliament.uk/pa/ld200506/ldselect/ldeconaf/12/5012508.htm (acessado em novembro/2012).

42 MONOD, J. (1971/1989), O acaso e a necessidade, 4a. ed., Petrópolis: Vozes, p. 32.

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retroalimentação negativa do vapor d’água43. Ele firmou uma declaração evangélica

sobre o aquecimento global. Alguns termos da declaração:

Acreditamos que a Terra e os seus ecossistemas – criados pelo projeto inteligente e infinito poder de Deus e sustentados pela Sua divina providência – são robustos, resilientes, autorreguladores e autocorretivos, admiravelmente adequados ao desenvolvimento humano, e demonstram a Sua glória. O sistema climático da Terra não é exceção. (...) Negamos que a Terra e seus ecossistemas sejam produtos frágeis e instáveis do acaso, e particularmente que o sistema climático da Terra seja vulnerável a alteração perigosa por causa de minúsculas alterações na química atmosférica [sic].44

E eis aqui, expresso sem pudores, o paradigma ideológico de Lindzen, Spencer e

outros obstinados caçadores de retroalimentações negativas no sistema climático

terrestre. Ao que parece, Onça, que dedicou tantas páginas em sua tese para

(corretamente) criticar a noção mística de uma natureza em equilíbrio eterno e

idealizado, não foi suficientemente crítica para perceber que o paradigma subjacente ao

negacionismo climático de suas referências é um tosco fundamentalismo criacionista.

Tanto Lindzen quanto Spencer são referências-chave para Onça, e são sistematicamente

citados, nunca com viés crítico, mas para apoiar o seu argumento. Quando ironiza

vertentes místicas da ecologia – “A natureza, em prefeito equilíbrio na ausência de

intervenções humanas, possui um termostato maravilhosamente regulado para os

propósitos humanos, basta não interferirmos. A atmosfera imperturbada regula a

temperatura ideal do planeta, especificamente designada para manter o conforto

térmico dos seres humanos. Afinal de contas, foi para os seres humanos que este planeta

foi criado...” (Onça 68) – a autora não percebe que está sendo mais mística do que os

místicos, já que o modelo que utiliza como referência prevê que mesmo a atmosfera

perturbada regula a temperatura do planeta. É irônico que ela tenha gasto várias

páginas em sua tese para criticar o uso de modelos climáticos45, e acaba por utilizar

43 Spencer e Lindzen citam-se mutuamente em seus artigos sobre aquecimento global. 44 CORNWALL ALLIANCE (s. d.), An evangelical declaration on global warming, Disponível em

http://www.cornwallalliance.org/articles/read/an-evangelical-declaration-on-global-warming/ (acessado em novembro/2012).

45 Onça critica o uso irrefletido de modelos, como se eles não tivessem limitações e pudessem substituir o mundo real, o que é um truísmo. De fato, modelos matemáticos não são perfeitos e não descrevem todos os possíveis processos envolvidos no sistema estudado, e isso nem é desejável. Diz-se no meio que a modelagem é a arte da simplificação, de modo que a identificação dos processos-chave de um sistema permitem compreender a dinâmica do todo, desprezando-se os processos que apenas tornariam as simulações mais lentas, custosas e de difícil compreensão. De qualquer forma, todo modelo deve sempre ser utilizado criticamente, e validado com dados empíricos. Os modelos climáticos apresentam

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como referência um modelo altamente idealizado e especulativo, crivado de teleologia,

que foi várias vezes refutado empírica e metodologicamente.46

A declaração evangélica não se preocupa em disfarçar os motivos mais mundanos

de suas preocupações teológicas. Na mesma declaração, lê-se:

Negamos que combustíveis alternativos e renováveis possam, com tecnologia presente ou de curto prazo, substituir os combustíveis fósseis e nucleares, seja na sua totalidade ou de parte significativa, para fornecer a energia abundante e barata necessária para sustentar economias prósperas ou superar a pobreza.

Faltou apenas afirmar que o petróleo foi uma dádiva divina predestinada ao

desenvolvimento do capitalismo – e ao enriquecimento dos capitalistas. De fato, os

argumentos de Onça analisados até aqui poderiam ser tiros vindos da direita – e de fato

o são: autores como Richard Lindzen e Luc Ferry47, usados por Onça, são referências

conservadoras cativas. Ao final, o que se tem é uma apologia da flexibilização das

relações com a natureza – tal qual a flexibilização dos direitos trabalhistas – para que a

acumulação de capital fique desimpedida. Como argumenta Naomi Klein:

os deniers não decidiram que a mudança climática é uma conspiração de esquerda ao descobrir algum conluio socialista. Eles chegaram a essa conclusão considerando seriamente o que seria necessário para reduzir as emissões globais tão drástica e rapidamente quanto a ciência exige (...). Eles não estão errados.48 Mas Onça faz um enxerto em sua teoria para torcê-la em direção à esquerda,

como veremos agora.

imperfeições (como a magnitude do efeito dos aerossóis e o comportamento das nuvens), mas estão em constante aperfeiçoamento; tampouco são as únicas ferramentas para a análise da mudança climática, já que também se pode extrair informações do clima passado (dados paleoclimáticos). O que se estranha é que modelos são utilizados em praticamente todos os processos produtivos e econômicos da atualidade, e Onça parece querer dispensá-los justamente no caso onde eles são mais necessários, tanto pela gravidade e dinâmica peculiar da questão, onde se fazem necessários projeções e cenários, quanto pelo fato de que não se pode conduzir experimentos controlados com o planeta.

46 Dessler, por exemplo, partindo do mesmo tipo de dados que Lindzen, chega ao resultado de que a retroalimentação das nuvens é provavelmente positiva, com uma pequena probabilidade de que seja negativa, mas com magnitude baixa, não suficiente para amortecer o efeito das emissões antropogênicas. Ver DESSLER, A. E. (2010) “A determination of the cloud feedback from climate variations over the past decade”, Science 330, December 2010, 1523-1527.

47 Ferry faz uma crítica da “ecologia profunda” do ponto de vista liberal, com as graves limitações subjacentes, mostrando as tendências regressivas, em alguns casos tendentes ao fascismo, de algumas ideologias ecologistas. Ver FERRY, L. (1992/2002) Le nouvel ordre ecologique: l’arbre, l’animal e l’homme, Paris: LGF.

48 KLEIN, N. (2011) “Capitalism vs. the climate” , The nation, November 28th 2011, disponível em http://www.thenation.com/article/164497/capitalism-vs-climate (acessado em novembro/2012).

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Quando o marxismo tradicional se une à direita

Qual seria a razão da teoria do aquecimento global ser de tal forma difundida e

aceita socialmente, já que, segundo Onça, ela é científica e filosoficamente falsa?

Sobretudo, ela teria função ideológica para justificar um novo ciclo de acumulação:

A Climatologia aparece hoje como uma importante força produtiva do capitalismo tardio. Com a hipótese do aquecimento global, atual mãe de todos os medos ambientais, ela se posiciona na linha de frente do desenvolvimento de novas tecnologias e do controle dos interesses sociais, atuando em prol do saneamento de empresas por parte do Estado e assim, consolidando-o em seu papel de grande gerenciador da economia. (Onça 411)

Assim,

O IPCC é o órgão responsável por compilar a pesquisa climática produzida de acordo com os interesses de governos e empresas e idealizar as estratégias de mitigação da mudança climática, sempre atreladas ao desenvolvimento de novas tecnologias e fontes de energia e aos mecanismos de desenvolvimento limpo, tão interessantes a governos e empresas nos dias atuais. (Onça 409)

Isto estaria inserido no contexto mais geral do Estado intervencionista:

O Estado capitalista moderno interfere diretamente na economia, manipula as crises, protege os produtos nacionais através do controle das importações e das exportações, incentiva e dinamiza a economia com investimentos em infra-estrutura e saneamento de empresas. Da mesma forma, o Estado interfere no mercado da força de trabalho, combate o desemprego, reforça as políticas sociais de saúde e educação e procura controlar a mão-de-obra excedente. Ou seja, o Estado capitalista moderno se converte no Welfare State, o Estado de Bem-Estar que desativa a luta de classes e minimiza os conflitos entre operários e industriais em nome do bem-estar coletivo. (Onça 404).

Primeiramente, é preciso observar que a ciência da mudança climática se desenvolve

desde o século XIX. Fourier descreveu primeiramente a física do chamado “efeito

estufa” em 1824 e 1827; Tyndall descreveu suas pesquisas sobre os gases traço que

aprisionam calor na atmosfera em 1861; Arrhenius investigou o efeito do aumento da

concentração de dióxido de carbono na atmosfera em 1896; Callendar, Revelle & Suess e

Bolin & Eriksson voltaram a investigar a questão em 1938, 1957 e 1958,

respectivamente; e Keeling começou a medir a concentração de carbono atmosférico em

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Mauna Loa em 1958.49 Teriam todos estes cientistas previsto as necessidades do

capitalismo do século XXI, e formulado suas teorias com o fim de satisfazê-las? Parece

ridículo considerá-lo. Onça, em todo caso, sempre pode alegar que a compilação do

IPCC é ideológica.

De qualquer forma, a autora permanece presa ao paradigma do primado da

política de Friedrich Pollock.50 A verdade histórica deste paradigma estava ligado ao

período do capitalismo fordista nos países do centro, quando, de fato, o Estado assumiu

a função explícita de garantidor do bem-estar social e indutor do desenvolvimento

econômico, onde o pólo político até certo ponto se sobrepôs ao pólo econômico na

estrutura polar dualista do sistema social moderno. Porém,

49 Fourier foi o primeiro a tentar determinar a temperatura da superfície terrestre a partir de um modelo

físico (balanço energético), e nisso considerou o efeito da atmosfera (o chamado “efeito estufa”). Arrhenius chegou a um valor supreendentemente preciso para a época da sensibilidade climática à duplicação da concentração de carbono atmosférico, mas não considerou as emissões de carbono de seu tempo perigosas para o clima, pois considerou que elas aumentariam linearmente (tivesse Arrhenius conhecido Marx, talvez fizesse uma projeção exponencial). Callendar chegou a conclusão semelhante à de Arrhenius, também assumindo progressão linear das emissões, mas já admite a influência humana no clima por emissões de carbono (ainda que pudesse ser positiva): “Poucos entre os que estão familiarizados com as trocas de calor naturais da atmosfera que contribuem para forjar o clima e o tempo estariam preparados para admitir que as atividades humanas poderiam ter influência sobre fenômenos de tão grande escala. (...) Espero mostrar que esta influência não apenas é possível, mas que está realmente acontecendo no presente”. Revelle & Suess descartaram a possibilidade de aquecimento global antropogênico devido à suposição de uma absorção de carbono pelos oceanos muito mais rápida do que o que ocorre na realidade, mas admitem: “Nas próximas décadas a taxa de combustão de combustíveis fósseis continuará a crescer, se as exigências de combustível e energia de nossa civilização industrial global continuarem a crescer exponencialmente (...) Portanto, a humanidade está agora levando a cabo um experimento geofísico em grande escala, de um tipo que não poderia ter ocorrido no passado e nem ser reproduzido no futuro”. Finalmente, Bolin & Eriksson, levando em consideração química do “tampão” do oceano, que desacelera a absorção de carbono atmosférico, e a aceleração das emissões de carbono, concluíram que as emissões poderiam ser perigosas: “As implicações em relação ao equilíbrio radiativo da Terra (...) podem ser consideráveis”. Ver FOURIER, J.-B. J. (1827) “On the temperatures of the terrestrial sphere and interplanetary space”, Mémoires de l’Académie Royale des Sciences 7: 569-604; TYNDALL, J. (1861) “On the absorption and radiation of heat by gases and vapours, and on the physical connexion of radiation, absorption, and conduction”, Philosophical Magazine 4 (22): 169-194, 273-285; ARRHENIUS, S. (1896) “On the influence of carbonic acid in the air upon the temperature of the ground”, The London, Edinburg and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science 5th Series, Vol. 41, no. 251; CALLENDAR, G. S. (1938) “The artificial production of carbon dioxide and its influence on climate”, Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society 64: 223-240; REVELLE, R. & SUESS, H. E. (1957) “Carbon dioxide exchange between atmosphere and ocean and the question of an increase of atmospheric CO2 during the past decades”, Tellus 9: 18-27; BOLIN, B. & ERIKSSON, E. (1958) “Changes in the carbon dioxide content of the atmosphere and sea due to fossil fuel combustion”, In: The Atmosphere and the sea in motion: scientific contributions to the Rossby Memorial Volume (ed. B. Bolin), New York: Rockfeller Institute Press, p. 130-142; KEELING, C. D. (1960) “The concentration and isotopic abundances of carbon dioxide in the atmosphere” Tellus XII (2): 200-203.

50 Pollock é citado explicitamente como referência de sua análise (Onça 400-ss.).

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embora os dois pólos do ‘campo’ não possam existir somente para si e pressuponham sempre o pólo contrário, eles não são hierarquicamente iguais. Muito pelo contrário, há um sobrepeso estrutural do pólo econômico, que, por um lado, pode parecer superado (aufgehoben) temporariamente em benefício do pólo estatal-político, mas que, por outro lado, sempre se restabelece novamente. (...) A evidência desse predomínio do mercado pode ser demonstrada com base num fato fundamental: o Estado não possui nenhum meio primário de regulação, mas depende do meio do mercado, isto é, do dinheiro. Entretanto, o meio ‘poder’ atribuído ao Estado e, teoricamente, na maioria das vezes, identificado com o dinheiro não possui nenhum grau hierárquico primário, apenas um grau secundário, pois todas as medidas do Estado precisam ser financiadas51.

A Terceira Revolução Industrial, portanto, esfacelou a estabilidade do welfare

state: o capitalismo baseado em exércitos de trabalho fordista se desfez com a

microeletrônica e a automação. A utilização de conceitos pollockianos do capitalismo de

welfare state para teorizar o capitalismo de crise do século XXI constitui flagrante

incompreensão da dinâmica do sistema. No capitalismo pós-fordista, o primado da

política desfaz-se no ar:

pela primeira vez na História, a velocidade de racionalização eliminadora de trabalho supera a expansão dos mercados. A produtividade aumenta com rapidez cada vez maior, ao passo que a expansão do modo de produção, considerada na sua totalidade, chegou ao fim. Por isso, a esperança por um novo surto de acumulação é bastante ingênua. (...) Quanto mais fraca se tornar a acumulação real, tanto menos o crédito estatal será financiável, e, quanto menos o Estado puder ser financiado, tanto maiores se tornarão as suas tarefas em virtude da crise estrutural da acumulação. É nesse círculo vicioso que a própria modernidade produtora de mercadorias se aprisionou (...) Com efeito, só existe, a rigor, um único “regime de regulação” e “acumulacão”, que é simultaneamente o primeiro e o último, a saber, o modelo fordista52.

Assim, no capitalismo de crise, o Estado do welfare state foi há muito substituído

abertamente pelo Estado policial do regime de exceção permanente, administrador de

crises53. Mas o anacronismo histórico de ancorar a teoria do aquecimento global como

suposta ideologia estatal para uma nova fase de acumulação capitalista pressupõe o

velho primado da política, o Estado como ente independente de suas próprias fontes de

financiamento. Pois se sabe que a quase totalidade do financiamento do Estado provém

de estruturas e corporações carbono-intensivas. O Estado como indutor

51 KURZ, R. (1997) “A falta de autonomia do Estado e os limites da política”, In: KURZ, R. Os últimos

combates, Petrópolis: Vozes, p. 91-115. 52 Ibid., p. 113-114. 53 Ver DUARTE, C. R. (2012) “O capitalismo como estado de exceção permanente”, Sinal de Menos 8: 51-

71. Disponível em www.sinaldemenos.org (acessado em novembro/2012).

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desenvolvimento de tecnologias de baixo carbono, portanto, pressupõe uma concepção

metafísica do Estado como deus ex-machina, que nega a sua própria base de

sustentação.

O marxismo tradicional de corte pollockiano de Onça também transparece em

sua crítica exclusiva do modo de distribuição capitalista, relegando ao esquecimento o

modo de produção54: “a pobreza e a miséria não são provocadas pelo aquecimento

global, mas sim pela concentração de renda” (Onça 448); “Como este capitalismo e este

Estado tão alinhados podem hoje, com este nível de riqueza e de tecnologia à disposição,

justificar a continuidade e o agravamento da miséria global? É simples: negando que ele

seja o resultado da concentração de renda, da ação de uns poucos conglomerados

industriais, da falta de vontade política, e escolhendo a dedo um novo culpado paratudo:

o aquecimento global” (Onça 449). De fato, o aquecimento global não é o responsável

por todas misérias do mundo, e pode ser utilizado ideologicamente em favor do capital,

como argumenta Onça55. Mas não se pode confundir uma possível instrumentalização

da teoria do aquecimento global pela direita com a validade científica da própria

teoria56.

Ao apontar como causa daquelas misérias a mera desigualdade de distribuição da

riqueza, e não a própria forma assumida pela riqueza – como valor abstrato que se

sobrepõe ao valor de uso sensível, social e ecológico, como forma-mercadoria –, forma

da riqueza esta que tem como consequência lógica a contínua produção social de

proletarizados, precarizados e não-rentáveis, de um lado, e de poluição e tecnologias

54 Para uma crítica do marxismo tradicional, ver POSTONE, M. (1993/2003) Time, Labor, and Social

Domination: a reinterpretation of Marx’s critical theory, Cambridge: Cambridge University Press; KURZ, R. (1991/2004) O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial, São Paulo: Paz e Terra.

55 “A ciência climática constitui hoje uma mitologia” (Onça 427); “a Climatologia trabalha pela continuidade e agravamento da apropriação privada da riqueza socialmente gerada e das tradicionais estruturas de dominação social, eximindo o Estado da responsabilidade de suas ações” (Onça 411); “Esta é a função da ideologia do aquecimento global: a perpetuação da exclusão social travestida de comprometimento com as gerações futuras” (Onça 462).

56 De outra parte, o movimento pela “justiça climática” é ignorado. Ele parte da constatação de que a maior parte das emissões de carbono foi originada nos países ricos, mas, segundo as projeções científicas, os mais prejudicados pelo aquecimento global seriam os países pobres – incluindo o Brasil, que teria áreas costeiras inundadas e poderia perder a floresta amazônica. Exige-se, portanto, compensação. Sobre o movimento por “justiça climática”, ver KLEIN, N. (2009) Climate rage, disponível em http://www.naomiklein.org/articles/2009/11/climate-rage (acessado em novembro/2012). Uma das iniciativas mais notórias neste sentido é a do Equador, que demanda ser compensado pelos países ricos para que não explore o petróleo de Yasuní, onde há um floresta tropical, evitando as emissões de carbono e a destruição da floresta. Ver http://www.sosyasuni.org/ (acessado em novembro/2012).

[-] www.sinaldemenos.org Ano 5, n°9, 2013

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destrutivas, de outro, Onça permanece em um nível deficitário de crítica do capitalismo.

Ao assumir acriticamente os pressupostos da modernização capitalista implícitos na

esquerda tradicional, Onça se vê obrigada a negar os seus limites ecológicos, da mesma

forma que a direita conservadora. Se os limites ecológicos do planeta denunciam a

destrutividade da valorização do valor e a necessidade de superação das categorias

fundamentais do capitalismo (mercadoria, valor, trabalho abstrato), então estes limites

é que não devem existir, pois nada pode se contrapor à metafísica do “progresso” e do

“desenvolvimento” compartilhada pela esquerda tradicional e pela direita. Ambas se

unem quando seus pressupostos comuns são ameaçados57. Naomi Klein propõe inverter

a lógica dos deniers conservadores:

se você perguntar aos membros do Instituto Heartland, a mudança climática faz com que algum tipo de revolução esquerdista seja inevitável, e é precisamente por isso que eles estão tão determinados a negar a sua realidade. Talvez devêssemos prestar mais atenção às suas teorias – eles podem ter entendido algo que a esquerda ainda não captou58.

Porém, isso não pode se tratar de uma mera distribuição de renda – que, mantida

a sociabilização capitalista, talvez decretasse definitivamente a catástrofe ecológica

global – mas de mudar a forma da riqueza e de sua materialização técnica

correspondente (a transição solar). Como a esquerda tradicional ontologiza o valor e o

trabalho abstrato, não surpreende que rejeite ideologicamente tudo aquilo que os

ameace, como o aquecimento global.

(Setembro/2012-Janeiro/2013)

57 Esta identidade categorial de esquerda e direita também pode se manifestar como o outro lado da

moeda da teoria de Onça, ou seja, quando se reconhece a crise ecológica e se propõe, a partir de ponto de vista de esquerda, um novo ciclo de acumulação baseado em tecnologias ecológicas – um New Deal verde. Ver SCHWARTZMAN, D. (2011) “Green New Deal: an ecosocialist perspective”, Capitalism, nature, socialism 22 (3): 49-56.

58 KLEIN, N. (2011), op. cit.