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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ECONOMIA , ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE
DEPARTAMENTO DE ECONOMIA
Monografia
Comércio de escravos em Itu na década final da escravatura: um
panorama
Aluno: Marcelo Dias de Araujo Ferreira
Número USP: 5672587
Professor Orientador: José Flávio Motta
São Paulo
2015
2
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ECONOMIA , ADMINISTRAÇÃO E CONTABILIDADE
DEPARTAMENTO DE ECONOMIA
Comércio de escravos em Itu na década final da escravatura: um
panorama
Marcelo Dias de Araujo Ferreira
São Paulo
2015
Trabalho de conclusão de curso para obtenção do
título de graduação em Economia pela Universidade
de São Paulo, com orientador do Professor Doutor
José Flávio Motta
3
Agradecimentos
Agradeço especialmente a meus pais, que sempre me amaram e me apoiaram
para chegar até aqui.
Também gostaria de agradecer à Giovanna, do Museu Republicano por ter me
recebido e facilitado o acesso à documentação e a Anicleide Zequini, também
pela recepção e pela indicação de artigos sobre a localidade.
Finalmente, gostaria de agradecer a meu orientador, José Flávio Motta, por
sempre ter sido uma inspiração como professor e apontar o caminho certo ao
longo da confecção deste trabalho.
4
Resumo
O presente trabalho busca traçar um panorama do comércio de escravos na
cidade de Itu, província de São Paulo, na década de 1880, levando em
consideração preço, aptidão, idade, entre outras características, de escravos
comercializados na cidade no período citado, contextualizando essas trocas no
momento histórico pelo qual a cidade e país passavam.
Classificação JEL: N36, N46, J49
5
Sumário 1. Introdução ............................................................................................................................ 8
2. Conjuntura econômica de Itu ............................................................................................. 12
2.1 Breve histórico de Itu ......................................................................................... 12
2.2 O advento do açúcar: produto de exportação ............................................... 14
2.3 O avanço do café: açúcar para o mercado interno ....................................... 15
2.4 Itu nos anos 1880: a onda verde do café e o declínio do açúcar .................. 18
2.5 O surto do algodão .............................................................................................. 20
2.5 Informes populacionais ................................................................................ 21
3. Revisão da literatura ........................................................................................................... 22
3.1 O fim do tráfico negreiro transatlântico ............................................................. 23
3.2 Cessam os braços vindos do além-mar, buscam-se braços no além-terra .... 25
3.3 Depois da porteira do mar, a porteira da terra fecha: o tráfico interno de
cativos relegado ao comércio intraprovincial ........................................................... 33
4. Café, açúcar e escravos: o comércio de cativos em Itu no final da escravidão .................. 40
4.1 As fontes ....................................................................................................... 40
.................................................................................................................................. 45
4.2 Antes da porteira fechar: a fazenda capoava e o ano de 1880 ...................... 47
4.3 A porteira fecha: o comércio de escravos em Itu às vésperas da abolição ... 59
5. Conclusão ........................................................................................................................... 75
6. Fontes e referências bibliográficas ..................................................................................... 76
6.1 Fontes primárias manuscritas ............................................................................. 76
6.2 Fontes primárias impressas ou disponíveis na internet ................................ 76
6.3 Fontes secundárias (autores citados) .................................................... 77
6
Índice de mapas
Mapa 1 – Divisão do território paulista por Milliet. (São Paulo, 1939) ................ 16
Mapa 2 - Distância entre principais regiões exportadoras de cativos e o oeste
cafeeiro. . ..................................................................................................................... 30
Mapa 3 - Distância extrema entre principais regiões exportadoras de escravos
e a zona algodo-sucro-eira.. ...................................................................................... 30
Índice de figuras
Figura 1- Casal Olympia da Fonseca e Carlos Vasconcellos de Almeida Prado
e filhos, 1890. ............................................................................................................... 11
Figura 2- Escritura de compra e venda de escravos ............................................. 43
Figura 3 - Escritura de compra e venda de escravos .......................................... 44
Figura 4 - Notícia sobre libertação de escravos por Manoel de Oliveira na
edição do dia 23/09/1883 no jornal Imprensa Ytuana ........................................... 47
Figura 5 - Notícia sobre libertação de escravos ..................................................... 69
Figura 6 - Notícia sobre libertação de escravos ..................................................... 69
Figura 7 - Notícia sobre libertação de escravos ..................................................... 69
Figura 8 - Nota de Falecimento ................................................................................. 70
Figura 9 - Notícia sobre júri de escravo ................................................................... 70
Figura 10 - anúncio da venda judicial da herança dos órfãos Amaral Gurgel ... 71
Figura 11 - Notícia sobre escravos em fuga ........................................................... 74
Índice de gráficos
Gráfico 1 - Pirâmide etária dos escravos vendidos pela família Nardi...............49
Gráfico 2 - Quantidade de escravos comercializados em Itu por ano entre 1880
e 1887................................................................................................................62
Gráfico 3 - Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e
1887...................................................................................................................62
Gráfico 4 - Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887
por gênero..........................................................................................................64
Gráfico 5 - Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887
por gênero, faixa etária de 15 a 29 anos............................................................64
7
Índice de tabelas
Tabela 1- Produção e exportação de açúcar no oeste paulista em
1854...................................................................................................................15
Tabela 2 - Fazendas de café no oeste de São Paulo em 1854.........................17
Tabela 3 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1877.................................18
Tabela 4 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1881.................................18
Tabela 5 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1887.................................19
Tabela 6 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1893.................................19
Tabela 7 – População em Itu em 1874..............................................................21
Tabela 8 – População em Itu em anos selecionados........................................22
Tabela 9 – Mortalidade política da escravidão..................................................35
Tabela 10 – Origem dos escravos do sexo masculino vendidos pela família
Nardi..................................................................................................................50
Tabela 11 – Idade média em anos dos escravos negociados em Itu em
1880...................................................................................................................52
Tabela 12 – Idade média em ano dos escravos negociados em Itu em 1880
sem considerar a venda dos escravos da fazenda Capoava ...........................53
Tabela 13 – Preço médio dos escravos separados por gênero em Itu em
1880...................................................................................................................53
Tabela 14 - Preço médio dos escravos separados por gênero e aptidão em Itu
em 1880.............................................................................................................54
Tabela 15 – Preço médio dos escravos por sexo e faixa etária e tamanho das
amostra..............................................................................................................55
Tabela 16 – Local de nascimento dos escravos do sexo masculino
comercializados em Itu em 1880.......................................................................56
Tabela 17 – Local de nascimento dos escravos versus local de matrícula.......57
Tabela 18 – Variação da população escrava entre 1872 e 1884 versus
população estrangeira em 1890........................................................................59
Tabela 19 – Quantidade de escravos comercializados em Itu por gênero entre
1880 e 1887.......................................................................................................61
Tabela 20 – Preço médio real dos escravos por ano: para todas as faixas
etárias e de 15 a 29 anos. Período de 1880-1887.............................................63
Tabela 21 – Local de matrícula dos escravos transacionados entre os Pacheco
Jordão................................................................................................................65
Tabela 22 – Escravos negociados segundo sexo e ocupação (Itu, 1881-
1886)..................................................................................................................67
Tabela 23 – Idade média por ano do escravos vendidos em Itu entre 1881 e
1887...................................................................................................................68
Tabela 24 – Escravos vendidos pelos órfãos Amaral Gurgel: preço do anúncio
versus preço individual de venda estimado e idade..........................................72
8
1. Introdução
Durante a segunda metade do século XIX, o Brasil passou por uma série de
transformações econômicas e políticas que alteraram características
importantes do jovem país. Aos poucos, o eixo econômico foi se transferindo
do nordeste açucareiro para o sudeste cafeeiro, levando ao país também a um
novo equilíbrio demográfico. A Monarquia deu lugar à República e o trabalho
escravo deu lugar ao trabalho livre.1 Em 13 de maio de 1888 a Princesa Isabel
assina a Lei Áurea, dando em uma canetada o triunfo a luta abolicionista, que
há anos buscava derrubar o fúnebre regime de trabalho forçado que ceifou a
humanidade de milhões de africanos e seus descendentes no Brasil ao longo
de mais de trezentos anos2.
Antes da canetada final de 1888, diversos marcos regulatórios tiveram impacto
no comércio de escravos. Dentre eles podemos citar a Lei Eusébio de Queiróz
que acabou com o tráfico internacional em 1850, a lei do ventre livre que em
1871 dava liberdade aos filhos de escravos nascidos a partir daquela data e a
Lei dos Sexagenários, que em 1885 garantiu liberdade aos escravos de 60
anos ou mais.3 Todos esses marcos reverberaram até a década de escopo de
nosso estudo.
Este trabalho tem como objetivo traçar um panorama do comércio de escravos
na cidade de Itu, estado de São Paulo, na última década em que a escravidão
vigorou durante segunda metade do século XIX. Para isso, coletamos uma
série de escrituras que nos forneceram certas características dos escravos
transacionados. Primeiramente, com o apoio da bibliografia, iremos fazer uma
breve descrição sobre a história da cidade e suas características gerais:
localização, população, características naturais, produção agrícola e economia.
1 “A SEGUNDA metade do século XIX assinala o momento de maior transformação econômica na
história brasileira.” (PRADO JÚNIOR, 2004, p. 192-204)
2 A luta contra abolição no Brasil vem de longa data, mas ainda assim, a historiografia por vezes trata o
fim do trabalho servil como apenas uma canetada. “Estas são fatos, ou circunstâncias, que devem, e
precisam ser levados em conta antes de se chegar aqui ao 13 de maio(...)em 1972, tanto tempo depois, um
dos nossos maiores pensadores, um notável professor universitário, ainda escreveria que “fora necessário
que aparecesse uma mulher de coração generoso, e na ausência do pai, e de uma penada só, resolvesse um
problema que os homens do Império não haviam sabido enfrentar com a mesma energia e intrepidez...”
(GERSON, 1975, p. 306)
3 ... legal landmarks annouced partial emancipation in 1871 and 1885 (freedom, respectly, for children
thenceforth born to slave mothers and for sexagenarians)...” (SLENES, 2004, in The Chattel Principle:
Internal Slave Trade in the Americas, p.327)
9
Em seguida, comentaremos a bibliografia sobre o tráfico de escravos no Brasil,
focando especialmente no período pós 1850. Finalmente, nos debruçaremos
sobre os dados coletados em Itu.
Pouco tempo depois da assinatura da Lei Áurea, o então ministro da Fazenda
Rui Barbosa, levou a cabo a queima de milhares de documentos referentes à
escravidão, e como consequência, durante muito tempo acreditou-se que não
haveria fontes primárias para pesquisar o comércio de escravos. Em sua
revisão da literatura sobre estudos brasileiros sobre a escravidão, com ênfase
em trabalhos socioeconômicos quantitativos, Klein relata a surpresa que muitos
historiadores tiveram ao encontrar fontes primárias riquíssimas, com grandes
detalhes sobre transações realizadas especialmente a partir de meados do
século XIX no sudeste cafeeiro4.
Várias fontes primárias vêm sido utilizadas para entender melhor a dinâmica do
comércio de cativos. Motta (2012) se vale de diversas escrituras de compra e
venda registradas em cartório em seu estudo sobre as localidades de
Constituição (atual Piracicaba), Guaratinguetá, Areias e Casa Branca para
estudar e comparar diversas características dos escravos comercializados
nessas localidades ao longo da segunda metade do século XIX. Já Mello
(1977) se utiliza de inventários de fazendeiros de café, cartas de libertação de
escravos e anúncios do Jornal do Commercio, documentos ora do município
neutro, ora da cidade fluminense de Vassouras, para traçar um panorama da
desagregação do trabalho servil e calcular a expectativa que os fazendeiros
tinham quanto ao fim da escravidão. Estes são apenas dois exemplos de
trabalhos que se utilizam de rico material primário, disponível em cartórios,
arquivos municipais e museus em diversas localidades por todo o país, muitos
dos quais ainda esperam para ser estudados.
O decreto nº2699 de 28 de novembro de 1860 determinou que transações
envolvendo a compra e venda de escravos superiores a 200 mil réis fossem
registradas por ordem cronológica em livro especial de notas. Este decreto
facilitou em muito o nosso trabalho.5 A localidade que escolhemos – Itu, na
4 Entre a queima dos registros da escravidão na década de 1890, a baixa qualidade dos arquivos notariais
e a falha de promover um Censo Nacional até 1872, foi assumido que haveriam poucas fontes primárias, e
que para estudar a história social brasileira no século XIX ter-se-ia que confiar em relatos de viajantes e
relatórios publicados pelo governo”(KLEIN, 2009, p. 112).
5 “Art. 3º A escriptura publica he da substancia de todo e qualquer contracto de compra e venda, troca e
dação in solutum de escravos, cujo valor ou preço exceder de 200$000, qualquer que fôr o lugar em que
taes contractos se celebrarem ou effectuarem.
10
região Central da província, tem preservada em excelente estado uma
quantidade relevante de escrituras desde 1860 até 1887, o que nos permitirá
realizar uma séria de descobertas sobre o comércio de escravos na localidade
na década de 1880. Podemos considerar essa quantidade relevante, pois é
seguro afirmar que a grande maioria, se não todos os escravos, tinham valor
superior a 200 mil réis – nenhuma das escrituras, nem no período final da
escravidão quando houve forte depressão de preços, apresentou escravos com
valor sequer próximo à este piso.
O Fundo Cartório de Notas de Itu, preservado pelo Museu Republicano
Convenção de Itu da Universidade de São Paulo, possui cinco livros notariais
dedicados exclusivamente ao registro de compra e venda de escravos.
Digitalizamos todos eles, num total de mais de duas mil fotos que poderão ser
utilizadas para estudos futuros. Para este trabalho, focaremos na última década
da vigência da escravidão.
Nos anos 80 foram realizadas 110 transações, sendo 2 delas de aluguel, 4 de
direitos parciais, 2 vendas duplas (vendas que foram repetidas logo em
seguida) 1 de destrato e 1 de ratificação, totalizando 215 escravos negociados.
Temos informações sobre os preços individuais de 89 destes escravos. Há
ainda 30 transações envolvendo a venda de mais de um escravo, variando de
2 a 26(curiosamente, a maior transação foi também a última, em outubro de
1887).
Em 1881 foi criado um imposto para o tráfico interprovincial de escravos que
praticamente impossibilitou a sua existência.6 O fim do tráfico interprovincial
obviamente restringiu geograficamente a compra legal de cativos em Itu à
província de São Paulo. Por isso, iremos considerar dois momentos distintos:
num primeiro momento, usaremos as escrituras do ano de 1880 para
§ 1º As escripturas serão lavradas por ordem chronologica em livro especial de notas, aberto,
numerado, rubricado e encerrado na fórma da Legislação em vigor, por Tabellião de notas legitimamente
constituido, ou por Escrivão de Paz nos lugares designados pelo art. 1º da Lei de 30 de Outubro de 1830,
e conterão, além das declarações exigidas pela Ordenação Liv. 4º, Tit. 78, §§ 4º, 5º e 6º e Tit. 80, § 7
º, os nomes e moradas dos contrahentes, o nome, sexo, côr, officio, ou profissão, estado, idade e
naturalidade do escravo e quaesquer outras qualidades ou signaes que o possão distinguir.
§ 2º Da escriptura se dará traslado ao comprador na fórma e dentro do prazo da Ordenação Liv. 1º,
Tit. 78, §§ 17 e 18 e mais Legislação em vigor.” Coleção de Leis do Império do Brasil - 1860, Página
1097 Vol. 1 pt II, disponível em :
http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=64263&norma=80168
6(GRAHAM, 2004, p.302
11
caracterizar o comércio que ocorreu até então, e em seguida, faremos uma
discussão para o período de 1881-1887, levando em conta também o impacto
causado pela Lei dos Sexagenários, de 1885, e eventuais resquícios da Lei do
Ventre Livre, de 18717.
Antes de nos aventurarmos pelas escrituras, vamos investir em entender o
momento pelo qual a cidade de Itu passava e como ela se inseria no comércio
de escravos. Também, ao longo de nossa exposição, usaremos notícias
publicadas por jornais contemporâneos8.
Figura 1- Casal Olympia da Fonseca e Carlos Vasconcellos de Almeida Prado e filhos,
1890.9
Carlos comprou em 1880 um escravo de nome Firmino, do serviço da roça e
uma escrava de nome Christina, do serviço doméstico. Além disso, Carlos foi
um dos fundadores do Clube Republicano de Itu e na época da compra dos
escravos, residia no sobrado onde hoje está localizado o museu republicano
Convenção de Itu10.
7 Ver citação 3
8 “Imprensa Ytuana” e “A Cidade de Ytu” digitalizados e disponibilizados em
http://obrasraras.sibi.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269.
9 Foto retirada de: http://historiasdeitu.blogspot.com.br/2012/03/tradicional-familia-ituana.html,
10 Fonte: http://mr.vitis.uspnet.usp.br/index.php/home/historico-do-edificio.html
12
2. Conjuntura econômica de Itu
2.1 Breve histórico de Itu
Para introduzirmos nosso estudo sobre a cidade de Itu, transcrevemos aqui a
entrada sobre a cidade no Almanak da Província de São Paulo de 1873:
“A cidade de Itú foi povoada pelo paulista Domingos Fernandes, e seu genro
Christovão Diniz, os quaes conseguirão da autoridade apostólica da diocese do
Rio de Janeiro, pelo anno de 1653, provisão para a erecção de capella curada
sob o titulo de Nossa Senhor ada Candelaria, sendo elevada a villa em 1651.
(...) O primeiro Imperador deu-lhe o titulo de Fidelissima (grifo no original), por
haver partido dela o grandioso pensamento que deu origem à nossa
independência. Por lei provincial de Fevereiro de 1842 foi elevada à categoria
de cidade.
A uma légua de distancia da Cidade corre o rio Tieté, formando uma catadupa
de 39 a 40 pés de altura, donde provêm o nome de Itú, que em linguagem
indígena significa agua saltando.
Esta importante Cidade é bem arruada e possue templos sumptuosos, em
que celebrão-se festas com toda a pompa e decencia.
Conta entre os seus edifícios públicos a casa da Camara, a igreja Matriz, sob a
invocação de Nossa Senhora da Candealaria, um Convento da Ordem do
Carmo e outro da de S. Francisco, um Hospital de Caridade e outro de
Lazaros, e outras igrejas e capelas. Possue bons collegios de educação, e a
primeira fabrica de fiar e tecer, movida a vapor, existente na Provincia.
Acha-se funcionando até o lugar denominado Pimenta a estrada de ferro que
de Jundiahy dirige-se à Cidade, e em breve-espera-se ser toda a linha
franqueada ao transito publico. Tambem em breve terá lugar a inauguração dos
trabalhos do ramal que, passando por Indaiatuba, dirige-se a Capivary, e trata-
se do seu prolongamento até a Cidade da Constituição.
Em seu Municipio cultiva-se café, cana de assucar, algodão, chá e outros
gêneros.11
Dista da Capital 18 leguas ou 100 kilometros (...)”12
A partir da descrição feita pelo Almanak, algumas coisas ficam claras sobre a
Itu de 1873: ela era uma cidade antiga e rica. Como não poderia deixar de ser,
sua história faz parte de uma história maior – a história da Província de São
Paulo, que por sua vez é indissociável da história do Brasil como um todo.
11 Trechos por nós negritados para chamar a atenção à riqueza da cidade e à sua produção agrícola.
12 Almanak da Província de São Paulo para 1873, p. 355
13
São Paulo foi batizada por um de seus governadores como “formosa sem dote”
no início do século XVIII. Isso porque, ao contrário das províncias do nordeste
açucareiro, não produzia nenhum bem exportável e estava desconectada do
mercado mundial. A economia era praticamente de subsistência e uma
sociedade mestiça entre brancos e indígenas, muitas vezes usados como
escravos emergiu. As bandeiras, que exploravam o interior e recrutavam
forçadamente indígenas para o trabalho escravo deram origem a figura mítica
do paulista: o bandeirante13.
A partir dos anos 1700 com o surgimento da mineração na vizinha Minas
Gerais – ouro lá encontrado, diga-se de passagem pelos bandeirantes, a
província de São Paulo se beneficiou ao produzir alimentos para as regiões
mineiras e também com o ouro que os paulistas traziam. Depois, quando foi
encontrado ouro na região do Mato Grosso, a província também se beneficiou,
e Itu teve um papel de posto de abastecimento importante por estar localizada
próxima à principal rota das Bandeiras: o Rio Tietê14.
Com esse novo dinamismo, a província passou a importar escravos africanos e
a dinâmica populacional mudou. Mas foi só após meados do século XVIII que a
aparência da província começou a mudar de fato. Pesados investimentos
públicos principalmente na rede de transporte conectando o planalto paulista
com o porto de Santos, mais a “sorte” de um aumento nos preços do açúcar
negociados no exterior deram o incentivo necessário para que a província
encontrasse no açúcar seu primeiro produto de exportação. E nesse comércio,
Itu, teve papel de destaque15.
De maneira geral, Itu situa-se numa região pouco propícia ao desenvolvimento
da agricultura, pois os solos ituanos possuem baixa fertilidade e são erodidos
facilmente, por serem solos de baixa profundidade e possuírem declives
acentuados16.
13 LUNA & KLEIN, 2003, cap. 1.
14 Ibid
15 Ibid
16 (QUIROGA, 2011, p. 35-36) baseado em AB‟SABER apud TRINDADE, Jaelson; TOSCANO, João
Walter. Diagnóstico Geral da Cidade de Itu para a implantação de um programa de ação cultural. Vol. II.
São Paulo: CONDEPHAAT, s/d, p. 14.
14
2.2 O advento do açúcar: produto de exportação
Apesar dessa característica para o longo prazo, o açúcar sem dúvidas deixara
a cidade rica, já que a região contava com solo propício para a atividade em
período anterior à sua exaustão. Situada bem na divisa entre solo rochoso e de
pouca profundidade, em região com ausência de geadas e clima propício ao
desenvolvimento da cana-de-açúcar, Itu de destacou na produção do ouro
branco17.
Como resultado, na primeira metade do século seguinte, o açúcar reinava
quase que absoluto nas paisagens rurais do município. Em seu trabalho sobre
o olhar estrangeiro de viajantes ingleses e norte-americanos que viajaram pela
província de São Paulo no século XIX, Gerbovic (2009) cita a descrição de Itu
feita por Edmund Pink em 1823:
“Esta é uma grande cidade, a princípio, próspera, mas agora em declínio por
causa da melhor localização de Campinas para o cultivo de cana-de-açúcar...
Os habitantes são principalmente plantadores de cana-de-açúcar, muitos dos
quais tivera, a atenção atraída tanto para este local como para as redondezas
de Campinas, onde o solo é muito mais rico, com mais madeira, como para o
mais distante e novo distrito de Piracicaba, onde o solo é ainda mais rico, mais
ainda no início do cultivo. A essas circunstâncias deve ser atribuído o declínio
desta cidade. Os agricultores não dão muita atenção ao reflorestamento depois
que as fazendas são desmatadas para a plantação ou a madeira usada na
preparação do açúcar. Nas redondezas desta cidade, sendo o lugar dos
primeiros cultivadores de cana-de-açúcar na província, em muitas fazendas há,
consequentemente, grande escassez do combustível necessário”18
17 "despovoada, com seus habitantes reduzidos a miséria. No fim do século a Vila achava-se á vanguarda
da produção acucareira. Em 1798 aprodução total da Capitania era de 152.840 arrôbas de acúcar. Só Itu
nesse ano, produziu 16.635 quintais, o que equivale a 66.540 arrôbas, ou seja, mais de 1/3 do açúcar
fabricado em São Paulo- estas quantidades faziam-na a mais opulenta área paulista no período"
(QUEIROZ, 1968, p. 243, através do artigo de ZEQUINI, 2010, disponível em:
http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=24225. Sobre as características do solo,
Zequini também aponta as percepções de PETRONE, 1968, p. 91: "Campinas, Itu, Moji Mirim e
Sorocaba situam-se na divisa entre os solos que tem origem na decomposição de rochas cristalinas pré-
devonianas e a área onde os solos se formam, predominantemente, pela decomposição de rochas
sedimentares".
18 Edmund Pink. A São Paulo de Edmund Pink... p. 90-91, apud GERBOVIC, 2009, p.85.
15
A decadência prevista por Pink, porém, não atingiu a cidade tão rapidamente.
Como podemos observar na tabela a seguir, a cidade chegou à segunda
metade do século XIX como uma das maiores produtoras de açúcar da
província:
Tabela 1- Produção e exportação de açúcar no oeste paulista em 1854
19
2.3 O avanço do café: açúcar para o mercado interno
Nessa mesma época, o café avançava rumo a oeste. O ouro verde havia
entrado na província a partir do vale do Paraíba por volta dos anos 20 e
avançava firme em direção ao oeste:
“Em 1836, nas pouco menos de 600 mil arrobas de café produzidas na
província paulista, calculou o autor em questão (Laërne – grifo nosso) que a
participação da Zona Norte, região que compreendia o Vale do Paraíba e o
litoral norte, era de 86,5%. (...) Em 1854, no total de mais de 3,5 milhões de
arrobas de café produzidas, o predomínio da Zona Norte era ainda
incontestável; contudo declinara sensivelmente para 77,5% do total. (...)E, em
1886, estava já nitidamente delineada a “marcha para o Oeste” da cafeicultura
paulista. De uma produção provincial total de 10.374.350 arrobas, coube uma
19 Quadro retirado de MELO, 2009, p.95
16
parcela de 20,0% à Zona Norte, 29,0% à Central, 21,8% à Mogiana, 23,7% à
Paulista, 4,1% à Araraquarense e 1,5% à Alta Sorocabana.”20
Segundo a classificação proposta por Sergio Milliet (1939), a cidade de Itu está
localizada na Zona Central da província de São Paulo, ou seja, em plena zona
de expansão cafeeira:
Mapa 1 – Divisão do território paulista por Milliet. (São Paulo, 1939)21
Porém, voltando a 1854, quando a produção cafeeira da Zona Central ainda
estava bem atrás da Zona Norte, chama à atenção a baixa quantidade de café
que é produzido no município, se comparado a outras localidades do oeste
paulista:
20 MOTTA, 2012, p. 25-28.
21 Fonte: modificado a partir de LOPES, 2012, apud MILLIET, 1938, p. 24
17
Tabela 2 - Fazendas de café no oeste de São Paulo em 1854
22
Fica claro, pelas tabelas 1 e 2, que Itu se atrasou, se comparado a municípios
vizinhos, à febre do café. Melo, no trabalho anteriormente citado, discute a
mudança do destino do açúcar produzido na província. Dados retirados do
trabalho de Petrone (1962) mostram que no biênio 1836-1837 foram
exportadas pelo porto de Santos 66.495 arrobas de açúcar procedentes de Itu,
chegando a 141.613 no biênio 1846-1847.23 Em 1836 a produção total de
açúcar em Itu chegou a 91.965.24 Ou seja, naquele ano, cerca de 73% do
açúcar foi exportado. Na tabela 1 vimos que em 1854 a quantidade de açúcar
que Itu exportou caiu mais de três vezes em relação à 1847 e estava inferior à
exportada em 1837, sendo reduzida para 40.099 arrobas. Porém, a produção
total chegou a 159.070, ou seja, cresceu cerca de 14% em pouco menos de 20
anos.
De mão de todas essas estatísticas, Melo conclui que o açúcar não deixou de
ser produzido, mas sim apenas teve seu destino redirecionado: agora ele não
22 Quadro retirado de MELO, 2009. p.68
23 PETRONE, 1962, p.166 apud MELO, 2009, p. 65
24 MULLER, 1978, apud MELO 2009, p. 62
18
era mais exportado, e sim, voltado para o mercado interno, que crescia com os
recursos do café e com a imigração25.
2.4 Itu nos anos 1880: a onda verde do café e o declínio do açúcar
Infelizmente, diferentemente da informação que traz sobre outros municípios, o
Almanak de 1873 não distingue a quantidade de fazendeiros de café e de
açúcar, colocando-os no mesmo grupo como “fazendeiros de açúcar e café”,
diferente do que ocorria em outras localidades onde os fazendeiros eram
separados por tipo de produção26.
Naquele mesmo ano, o Código de Posturas do Município de Itu de 1873
passou a determinar que se pagassem taxas para a produção de gêneros
agrícolas.27 Os jornais “Imprensa Ytuana” e “Cidade de Ytu” passaram a
publicar anualmente esses dados. Trazemos a seguir dados para a produção
de gêneros agrícolas para os anos de 1878, 1881, 1887 e 1893:
Tabela 3 – Produção de diversos gêneros em Itu – 187728
Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos
Açúcar 32 906.000 61.687,2 576.000
Café 17 667.000 45.414,31 1.980.000
Algodão 08 42.000 2.859,67 56.000
Chá 10 13.600 925,9 181.000
Fonte: Jornal “Imprensa Ytuana”, Ano IV, 17/03/1878
Tabela 4 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1881
Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos
Açúcar 19 511.500 34.821 1.364.000
Café 31 520.500 35.434 1.388.000
Algodão 12 53.250 3.625 71.000
25 MELO, 2009, p. 90-91
26 Almanak da Província de São Paulo para 1873, p. 358
27 CERDAN 2009, p.36
28 CERDAN 2009, p.36 (formato da tabela e conversão para arrobas) & Imprensa Ytuana, Ano IV,
17/03/1878, p.3 (informações sobre impostos)
19
Fonte: Jornal “Imprensa Ytuana”, Ano VII, 19/03/1882, p.4 Tabela 5 – Produção de diversos gêneros em Itu – 1887
Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos
Açúcar 8 168.000 11.437 488.000
Café 23 961.500 65.457 1.002.000
Algodão 21 109.500 7.454 146.000
Fonte: Jornal “Imprensa Ytuana”, Ano XII, 04/05/1888, p.3-4
Tabela 6 – Produção de diversos gêneros em Itu - 189329
Produto Produtores Kilos Arrobas Impostos
Açúcar 3 19.500 1.327 52.000
Café 51 982.550 66.885 2.620.000
Aguardente 16 Impreciso30 Impreciso 819.000
Fonte: Jornal “A Cidade de Ytu”, Ano I, 19/04/1894, p. 3-4
As tabelas quatro e cinco estão exatamente dentro do período de escopo de
nosso estudo, enquanto a tabela três se refere a um período um pouco
anterior, e a tabela cinco, um pouco posterior.
Podemos observar que a “virada” da transição da produção do açúcar para o
café em Itu ocorre exatamente na transição dos anos 70 para os anos 80, com
mais de 20 anos de atraso em relação às vizinhas Campinas e Jundiaí, sendo
o açúcar praticamente abandonado em meados dos anos 90 em Itu. Apesar do
grande aumento no número de produtores entre 1877 e 1881, o aumento em
termos de produção só virá em 1887, provavelmente devido à natureza da
rubiácea, que levava pelo menos quatro anos entre ser plantada e gerar
frutos31.
A rede de transportes criada para o escoamento do açúcar deixou uma
infraestrutura pronta para o avanço do café, mas não de maneira satisfatória.
Com o advento da ferrovia nos anos 60 e grande expansão a partir dos anos
70, a fronteira do café avançou para o planalto ocidental paulista, liberando
29 A Cidade de Ytu, Ano I, 19/04/1894, p. 3-4
30 A produção de aguardente foi medida em quintos, porém em escalas para cada produtor, sem a
quantidade exata.
31 “Hence, on average, full production of young trees was reached at the age of six and sometimes
between six and eight years”. MELLO, 1977, p.11
20
braços, ainda que de forma insuficiente, para o café32. Vale ressaltar que o
transporte do café antes do advento dos trens era extremamente custoso,
demorado e trabalho-intensivo, dificultado ainda mais pelo terreno acidentado
entre os portos e as regiões produtoras. Por exemplo, uma viagem ao porto do
Rio de Janeiro, a partir de uma fazenda em sua respectiva zona levava vários
dias, já que a maioria das fazendas estavam localizadas entre 100 e 300 km do
porto, e em média as excursões conseguiam fazer 12.6km por dia. O custo
elevado desse transporte caiu pela metade com o uso das ferrovias. Para se
ter uma ideia da economia de tempo, entre Barbacena e o Município Neutro
distantes 379 km um do outro, de semanas o tempo de viagem caiu para
apenas 12 horas em 1883, quando o trem ligou as duas cidades.33
A estrada de ferro Ytuana chegou a Itu em abril de 1873, ligando a cidade à
Jundiaí, e de lá para a capital e para o porto de Santos. As dificuldades de
transporte já não eram mais um empecilho para que a onda verde do café
vencesse de uma vez por todas, a produção de açúcar no município.
2.5 O surto do algodão
Até agora consideramos três fatores que determinaram a produção agrícola em
Itu na década de 1880: suas características geográficas, que foram propícias
para a implantação da produção açucareira no século XVIII; o desenvolvimento
desta, que enriqueceu o município; o advento da ferrovia, que facilitou
enormemente o acesso às terras ituanas. Falta ainda considerarmos
brevemente a produção de algodão no município e também sua composição
populacional.
Como exposto pelas tabelas citadas nas páginas anteriores, apesar de pouco
expressiva em impostos e valor, houve uma produção de algodão digna de ser
citada. A produção de algodão em Itu começou influenciada pela presença de
importadores ingleses e também por outros britânicos que sempre ocupavam
os altos cargos da ferrovia. Alguns deles procuravam opções de abastecimento
de algodão às fábricas inglesas com o advento da guerra de secessão nos
EUA. Em 1869, foi inaugurada a fábrica de tecidos São Luiz, que funcionou por
mais de 100 anos em Itu e foi a primeira indústria do tipo em São Paulo, com
32 “A expansão ferroviária levada a cabo por esse grupo, a partir da década de 1870, alargou a fronteira
agrícola para o planalto ocidental paulista e atendeu toda a lavoura com um sistema moderno de
transporte rápido e em grande escala”. MELO, 2009, p. 13
33 MELLO, 1977, p.27-28
21
toda sua maquinaria adquiridas nos Estados Unidos. Essa presença acabou
também atraindo importadoras de maquinarias e mecânicas, que ajudaram na
introdução de novas técnicas no campo.34 Com o tempo, surgiram mais
indústrias têxteis na província voltadas principalmente para o mercado interno,
mas ainda assim, a produção de algodão em Itu não passou de um rápido
surto35. Porém, no século seguinte, a produção de algodão voltou a subir na
província para alimentar a indústria têxtil paulista – 80% do algodão usado por
dita indústria, por volta dos anos 10 e 20 do século XX, era proveniente do
próprio estado de São Paulo36.
2.5 Informes populacionais
No ano seguinte à publicação do Almanak, o jornal local “O Ytuano” publicou o
recenseamento da população local:
Tabela 7 – População em Itu em 1874 (porcentagens na primeira coluna em relação à
população total)
População
Total População
Urbana População
Rural
Homens Livres 3588 (33%) 1735 1853
Mulheres Livres 3664 (34%) 2017 1647
Homens Escravos 2006 (18%) 431 1575
Mulheres Escravas
1595 (15%) 584 1011
Total 10853 4767 6086
Fonte: Jornal “O Ytuano”, ano II, 08/03/1874
Para ter uma ideia da evolução populacional ao longo do tempo, podemos
comparar com os dados de anos anteriores:
34 ZEQUINI, 1991. No trabalho “O Quintal da fábrica”, Zequini analisa o desenvolvimento industrial em
Itu e Salto, cap.1.
35 CERDAN, 2013, p. 35
36 SUZIGAN, 1971, p.104
22
Tabela 8– População em Itu em anos selecionados (porcentagens referentes à proporção
do grupo ao total da população)
1798 1807 1818 1829
Homens Livres 1786 (26%) 2043 (20%) 1702 (18%) 1660 (17%)
Mulheres Livres 2040 (30%) 2447 (24%) 2217 (23%) 2147 (22%)
Homens Escravos 1778 (26%) 2345 (23%) 2447 (25%) 2616 (26%)
Mulheres Escravas 1154 (17%) 1550 (15%) 1366 (14%) 1557 (16%)
Total 6758 10192 9550 9809
Fonte: LISANTI FILHO, 1962 apud MELO, 2009. p. 34,
Podemos perceber que a proporção da população escrava caiu em 1874
principalmente devido à queda na proporção de escravos homens e veremos
mais adiante que essa tendência continuou. O ciclo de açúcar em Itu introduziu
os escravos africanos, que permaneceram sendo usados como mão de obra
até o fim da escravidão.
Ao chegar ao final do século XIX, Itu não estava isolada, muito pelo contrario:
estava inserida numa das regiões mais dinâmicas do Brasil. Barros de Castro
em 1980 propôs uma tipologia que dividia as regiões produtoras de açúcar da
América em três tipos: superdotadas, que seriam as mais dinâmicas,
demandando a maior parte da mão de obra escrava; membro-efetiva, que
seriam as regiões de produção mais madura e finalmente, residuais, que
seriam as regiões não exportadoras37. Numa tentativa de tentar entender o
papel de Itu nos anos 80, a seguir, vamos comentar as características do
comércio de escravos no Brasil e especialmente, durante o colapso do sistema
escravista.
3. Revisão da literatura
Nesta seção traçaremos um breve panorama sobre a literatura existente sobre
o comércio de escravos no Brasil. Esta seção está dividida em três partes:
primeiro, brevemente comentaremos sobre o tráfico transatlântico que existia
antes de 1850. Depois, nos aprofundaremos um pouco mais no comércio
interno de cativos que se intensificou enormemente após dita data. Finalmente,
trataremos da desagregação do comércio interprovincial ocorrida a partir de
1881 e também da abolição do trabalho servil. Assim, nossa intenção é
37 NOGUEROL, 2002, p. 545
23
preparar o terreno para a análise que faremos de nossa amostra, com base na
bibliografia existente sobre o tema.
3.1 O fim do tráfico negreiro transatlântico
“O Brasil é o café, e o café é o negro”. Nessa citação atribuída ao Senador
Silveira Martins38, se a tirarmos um pouco do contexto, poderíamos facilmente
substituir o café por qualquer outro gênero agrícola exportável produzido
durante a maior parte da vigência da escravidão. Na verdade, podemos ir mais
além: podemos substituir o café por qualquer produção. Recrutados
forçadamente primeiro para a lavoura canavieira do nordeste nos primórdios da
colonização39 e depois para a produção de qualquer produto exportável, como
algodão e o ouro, e finalmente para produções menos lucrativas, ao longo do
tempo foram possuídos tanto por grandes fazendeiros como por ex-escravos,
sendo utilizados nas grandes lavouras ou pequenas propriedades, apesar de
sempre ser a mão de obra predominantemente usada nas indústrias
exportadoras40.
Até 1850 os negros eram principalmente trazidos da África para o Brasil. Com
um estoque praticamente infinito de mão de obra enquanto durou o tráfico
transatlântico, o preço dos escravos no Brasil permaneceu relativamente
uniforme em diferentes regiões da colônia, e posteriormente do país, enquanto
eles poderiam ser trazidos abundantemente da África41. O fim do tráfico
internacional de cativos impôs sérias restrições ao fornecimento da mão de
obra escrava no, desde 1822, país. Com o fim do fornecimento de braços
africanos, uma estrutura econômica em que o uso da mão de obra escrava era
generalizado, voltou a concentrá-la nas regiões produtoras de exportáveis42.
38 CONRAD, 1975, p.64
39 PRADO JÚNIOR, 2004, cap. 4
40 LUNA & KLEIN, 2010, cap.5 – neste capítulo sobre a economia da escravidão no Brasil, a imagem
estereotipada do emprego da escravidão no Brasil é questionada. Há evidências em diversos estudos mais
recentes de que a escravidão permeava toda a sociedade, e que mesmo em regiões exportadoras a maioria
dos escravos não necessariamente era utilizada na produção de cash crops
41 NOGUEROL, 2002. Noguerol compara os preços dos escravos em duas regiões, uma exportadora e a
outra não, antes e depois do fim do tráfico. Não havia diferença estatística enquanto o Brasil era
abastecido por braços africanos, porém, após 1850 até a desorganização do comércio interprovincial de
escravos, a diferença de preço de cativos nas diferentes regiões se mostrou estatisticamente significante.
42 LUNA & KLEIN, 2010, pags. 135, 143 e 146
24
O Brasil foi um dos últimos baluartes da escravidão e se atrasou em relação à
maioria dos outros países em todos os passos que tomou em direção à
libertação dos negros. O primeiro destes passos geralmente foi a proibição do
tráfico internacional de escravos. Nos Estados Unidos, dito passo foi dado
através do “slave trade act” já em 1808, que proibiu efetivamente a importação
de escravos no país, abrindo espaço para o tráfico interno de cativos.43 Mas os
americanos nem foram os pioneiros: o primeiro país a abolir o tráfico
efetivamente foi a Dinamarca em 1802 e mesmo na América Latina, a maioria
dos países aboliu o tráfico entre os anos 10 e 20 do século XIX. No Brasil, o
tráfico internacional acabou a contragosto, depois de forte intervenção inglesa,
apenas em 185044.
Antes de 1850 o comércio interprovincial de escravos já existia: indígenas do
norte ou do sul do Brasil eram vendidos para as plantations de açúcar no
nordeste. Com o aumento do tráfico transatlântico, esse tipo de comércio
diminui drasticamente até praticamente desaparecer no século XVIII. Com a
descoberta do ouro em Minas Gerais, houve uma pressão econômica para que
escravos das plantations fossem trabalhar nas minas de ouro. De maneira
geral, enquanto o preço do escravo comprado na África fosse baixo, havia
poucos incentivos para deslocar um escravo que já estivesse adaptado à sua
localidade no Brasil45. Por isso, após o fim do tráfico transatlântico,
“o fluxo de escravos do norte para o sul transformou-se numa autêntica torrente
e começou sendo considerado vital para os interesses dos fazendeiros da
região do café”46.
Surgia assim o tráfico interno de escravos no Brasil, que vigorou em maior ou
menor escala enquanto sobreviveu a escravidão (após 1880 um imposto
proibitivo de importação de escravos de outras províncias em São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais condenou o comércio interno ao tráfico
intraprovincial), com características peculiares que veremos a seguir.
43 SLENES, 2004 descreve o comércio interno de escravos no Brasil fazendo algumas breves
comparações com o dos EUA.
44 LUNA & KLEIN, 2010, p.301.
45 GRAHAM, 2004, p. 292
46 CONRAD, 1975, p.65
25
3.2 Cessam os braços vindos do além-mar, buscam-se braços no
além-terra
O fim do tráfico internacional de escravos é um primeiro passo rumo ao fim da
escravidão porque a princípio, a população escrava tende a decrescer ao longo
do tempo caso não seja reposta constantemente. No Brasil era claro como boa
parte dos escravos morriam muito rapidamente após chegarem ao território e
mesmo após o fim do tráfico internacional, as melhorias nas condições de vida
dos escravos não melhoraram a ponto de, globalmente em todo o país, gerar
um crescimento vegetativo sem a importação de escravos. Além disso, a
proporção de escravos do sexo masculino que eram importados era alta o
suficiente para dificultar a reprodução – há estimativas de que 65% dos
escravos que saiam da África eram homens47. Há evidências de que foram
trazidos cerca de três milhões e seiscentos mil escravos para o país até 185048.
Vale ressaltar que já a partir de 1810, o tráfico internacional de escravos era
ilegal, mas essa primeira lei "não pegou". Em 1831 foi aprovada uma nova lei e
criou-se uma expectativa de que ela funcionaria de facto, tanto que os preços
dos escravos negociados na costa da África chegaram a um quarto do preço
anterior à promulgação da lei, enquanto no Rio de Janeiro, os preços subiam.
Entretanto, não foi o que aconteceu. Na prática, o governo fez vistas grossas
ao tráfico, que rapidamente voltou a subir e vários traficantes e até autoridades
estavam envolvidas no comércio ilegal de escravos. Aqueles que tentavam
cumprir a lei eram execrados, como o caso de Costa Pereira, que apreendeu
uma escuna com mais de 300 escravos na costa do Rio de Janeiro. A carga foi
entregue a seu destino e Costa Pereira foi "exilado" para o Pará, onde não teria
como se intrometer no tráfico transatlântico49.
Nesse mesmo momento entre os anos 20 e 30, a entrada de escravos no Brasil
diminuiu, assim como diminui o valor em libras das exportações de açúcar. A
partir dessa época, o café passa o açúcar como principal produto exportável do
país, a ameaça da interrupção do tráfico transatlântico deixa de ser crível. A
importação de escravos africanos volta a subir50.
47 LUNA & KLEIN(2010, p.162) citam essa estimativa retirada do banco de dados Emory, disponível em
http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces na aba “Summary Statistics”.
48 CONRAD, 1975, p. 37
49 CONRAD, 1985, págs. 95-103
50 LUNA & KLEIN, 2010, págs. 77 e 94
26
Mesmo com essa fabulosa cifra de importação de escravos, a matrícula de
1872, levantamento mais confiável sobre o número de escravos feito no
Brasil51, levantou apenas um milhão e meio de cativos, deixando evidente uma
taxa de decréscimo assombrosa da população escrava. Porém, essa tendência
nem sempre é verdade: no caso dos Estados Unidos, por exemplo, a
população escrava cresceu de setecentos mil em 1790 para mais de quatro
milhões em 1860. Mesmo tendo recebido muito mais escravos que os Estados
Unidos, o Brasil nunca teve uma população escrava, num mesmo momento,
superior à americana52. Portanto, o fim do tráfico internacional de escravos era
um sinal claro que a escravidão eventualmente acabaria.
Nos Estados Unidos, uma sociedade onde a libertação de escravos era mais
rara que no Brasil, após o fim do tráfico houve uma melhora nas condições de
vida dos escravos e houve uma taxa positiva de crescimento da população. Ou
seja, o fim do tráfico per se não levaria a escravidão ao fim, e por isso a luta
abolicionista culminou na guerra de secessão entre o sul escravocrata e o norte
industrial. No Brasil, foi uma luta muito mais entre classes que entre regiões, e
por aqui a elite nunca defendeu a escravidão abertamente, mas sim a sua
manutenção até que uma forma alternativa de trabalho fosse encontrada
futuramente, dificultando o avanço de qualquer movimento abolicionista que
buscasse a abolição completa e imediata53.
De fato, no Brasil havia uma clara tendência global rumo ao desaparecimento
da mão de obra escrava, tanto pelo decréscimo dessa população através, do
decréscimo vegetativo54 e libertações e principalmente, pela Lei do Ventre Livre
de 1871, que colocou de fato um prazo de validade na escravidão ao declarar
livres todos os filhos de escravos nascidos a partir de então. Além disso, a Lei
Rio Branco, que esteve longe de ser aprovada sem um longo debate55 criava
um “fundo de emancipação”, em que recursos obtidos com impostos sobre a
51 MELLO, 1977, p. 72. “This census (a matrícula de1872 – grifo nosso) is also very realiable, since this
register would provide the slaveowner with proof of legal property of the slave, and therefore give him
incentives for an honest and thorough registry”. Ver também CONRAD, 1975, p.133-134.
52 CONRAD, 1975, p.37-38
53 LUNA & KLEIN, 2010, p.304-305
54 Ibid, p. 135. Regiões residuais, onde o trabalho era menos intenso, viram o começo de um crescimento
vegetativo natural dos escravos, como no caso do Paraná antes da introdução do café.
55 CONRAD, 1975, cap. 6
27
escravidão seriam utilizados para libertar escravos, seguindo uma ordem de
preferência56.
É importante observarmos que essa tendência geral de queda não foi
observada individualmente em todas as regiões. Entre 1823 e 1872, houve um
crescimento geométrico médio da população escrava brasileira de 0.54 por
cento ao ano, a partir de então caindo bruscamente para um decréscimo de
-5,44% ao ano. Porém, ao observarmos diferentes regiões, temos figuras
diferentes: no sudeste, a população escrava cresceu ao longo de todo período,
e a uma taxa mais alta que a do país: 1,44% ao ano. Por outro lado, a
escravaria nordestina diminui nos dois períodos: no primeiro a uma taxa de
-0,29% ao ano, e no segundo, a uma taxa de -7,28% ao ano. Portanto, é
razoável inferir que a população escrava estava se concentrando na região
cafeeira, apesar de que esses dados não revelam as migrações que ocorriam
internamente dentro dessa própria região57.
Slenes, em seu artigo sobre o tráfico interno de escravos no Brasil publicado na
coletânea The Chattel Principle – Internal Slave Trade in the Americas,
organizada por Walter Johnson, classifica como “comércio interno de escravos”
a prática da compra e venda de cativos dentro de um mesmo território, apesar
de no caso brasileiro, haver dois mercados relativamente autônomos, um com
centro no sudeste cafeeiro e outro com centro no nordeste açucareiro58. Em
outro artigo na mesma coletânea59, Graham aponta que em períodos
imediatamente subsequentes ao fim do tráfico internacional, boa parte dos
escravos vendidos ainda eram africanos. Os comentários a seguir se baseiam
principalmente nestes dois artigos da coletânea citada.
Em 1852, no Rio um quinto dos escravos que passaram pelo porto eram de
nação, ou seja, africanos. De maneira geral, a partir do fim do tráfico
transatlântico, os escravos eram vendidos das regiões residuais (nordeste e
sul) para o sudeste cafeeiro - aparentemente, o maior volume veio do nordeste,
porém o sul perdeu mais braços negros proporcionalmente60.
56 Ibid, 1975, p. 134
57 MELLO, 1977, p.71-72
58 SLENES, 2004, p.325-361
59 GRAHAM, 2004, p.291-315
60 Ibid, p. 295
28
Durante os anos 60, com a guerra de secessão, houve um aumento dos preços
internacionais do algodão. As províncias nordestinas algodoeiras (notadamente
o Maranhão) acabaram segurando os braços escravos, pois deles
necessitavam. A partir dos anos 70, porém, com a volta da participação dos
EUA no mercado internacional e consequente queda dos preços do algodão, o
comércio novamente se intensificou. Um escravo no oeste de São Paulo valia o
dobro que na Bahia61.
A maioria dos escravos que iam pro sudeste saiam de pequenas e médias
propriedades, ou se não, das cidades - 60% dos escravos vendidos eram
urbanos. A lavoura açucareira não perdia braços para o café. Havia uma
pressão econômica para que os escravos saíssem da cidade para o campo e a
maioria dos escravos vendidos eram homens. O preço baixo das crianças não
compensava seus custos de transporte, o que implicava na separação de
famílias inteiras (a lei de 1871, além de libertar os nascituros, passou a proibir
não só a separação de mães e filhos, mas também a separação de casais de
escravos)62.
A grande maioria dos escravos foi transferida através da venda e não muitos
migraram junto com seus donos, o que se via muito mais nos Estados Unidos,
provavelmente devido às grandes distâncias a serem percorridas no Brasil em
comparação aos Estados Unidos. Raramente um escravo saia de uma região
residual diretamente para seu destino final na região cafeeira. Para evitar o
pagamento da meia sisa múltiplas vezes, o dono dava uma procuração para
um intermediário, que levava o escravo até o porto mais próximo, onde era
vendido e outra procuração era fornecida. A partir de então, era transportado
em navio até a corte (de Salvador ao Rio por terra levava-se seis semanas,
enquanto que de barco eram apenas quatro dias), e lá era novamente vendido
para outro intermediário, que levava o escravo para o interior do sudeste onde
finalmente era vendido para seu dono. Todo esse transporte - a separação da
família e o não saber para onde ia, causava enorme estresse psicológico, além
do fato de que o trabalho nas plantações de café era muito mais pesado que
nas zonas residuais63.
Havia incentivos do governo para a transferência dos escravos do meio urbano
para o rural, mas não para além dos limites das províncias. Restrições ao
61 Ibid, p. 296 e 298
62 Ibid, p. 297
63 Ibid p. 303-305
29
comércio interprovincial de escravos já começaram no século XVIII, mesmo
que sem sucesso. Bloquear a saída dos escravos da Bahia tinha um objetivo
claro: impedir a falta de braços para as plantations de açúcar. Porém, as
restrições impostas no sudeste para receber escravos não tem motivação
clara. A partir dos anos de 1880, Rio, Minas e São Paulo impuseram impostos
que praticamente dobraram o preço dos escravos trazidos de outras províncias,
acabando assim com o tráfico. Graham aponta que o porquê desse bloqueio é
polêmico e não há consenso sobre o assunto64.
Esse tráfico que ocorreu no Brasil apresentava características ao mesmo
tempo parecidas e semelhantes com aquelas vistas nos Estados Unidos. Assim
como na potência do norte, como já não se podia mais buscar braços na África,
demandantes por mão de obra de regiões em expansão compravam cativos de
regiões que os exportavam65. Por outro lado, Slenes aponta algumas
diferenças importantes.
Nos Estados Unidos, como também comentado por Graham, o mercado interno
de escravos se restringia ao Deep South, uma região que não era tão extensa.
No Brasil o mercado interno cobria uma área geográfica muito maior, e
compreendia principalmente o centro-sul cafeeiro e o nordeste açucareiro, que
funcionavam praticamente como dois mercados autônomos, o que ajuda a
explicar a persistência da escravidão no Brasil. Além disso, no Brasil o
comércio surgiu do nada e cresceu muito, enquanto nos Estados Unidos
cresceu mais ou menos ao mesmo ritmo ao longo do tempo e a pressão
internacional pela abolição da escravatura já era muito mais forte quando do
desenvolvimento do mercado interno de cativos no Brasil66.
64 Ibid, p.301-303
65 SLENES, 2004, .p 333
66 Ibid, p. 327-333
30
Mapa 2 - Distância entre principais regiões exportadoras de cativos e o oeste cafeeiro.
67
Vale ressaltar que boa parte dos deslocamentos cobria pelo menos a distância entre a Bahia ou Rio Grande do Sul e São Paulo.
Mapa 3 - Distância extrema entre principais regiões exportadoras de escravos e a zona algodo-sucro-eira.
68Nesse caso, vale ressaltar que muitas transações ocorriam “dentro” do
deep South, sendo as distâncias extremas bem menos percorridas em comparação ao Brasil.
67 Fonte: modificado a partir de SLENES, 2004, in in The Chattel Principle: Internal Slave Trade in the
Americas, p.326
31
Como comentamos anteriormente, na Bahia, um escravo chegou a valer
metade do que valia no oeste paulista. A princípio pode parecer óbvio que,
devido a esse diferencial no preço, o mercado nordestino estivesse fadado a
fornecer braços para a lavoura do café. Porém, ao examinar as flutuações dos
preços do café e da cana de açúcar, podemos observar que o preço do
escravo no nordeste flutuava numa tendência muito parecida à do açúcar e
bem diferente da do café. Ou seja, os braços na região serviam principalmente
ao açúcar e estavam atrelados aos preços deste produto. Melo (2009), citando
Subrinho (1992), afirma que, por exemplo, a lavoura açucareira sergipana ao
invés de ceder braços para o sudeste cafeeiro, absorveu escravos de outros
setores econômicos da província, ilustrando a inferência de Graham de que os
escravos antes de migrarem entre regiões, migravam entre setores
econômicos69.
Motta (2012) em seu estudo comparativo do comércio interno de escravos em
diferentes localidades paulista comenta brevemente sobre diversas estimativas
para o total dos escravos traficados internamente. Segundo o autor,
Gorender(1985) estima uma transferência de braços por volta dos trezentos mil
escravos ao longo de 35 anos pós 1850. Slenes (1975), em seu detalhado
trabalho sobre a demografia escrava entre 1850 e 1888 estima esse número
por volta dos duzentos mil. Motta também cita o comentário feito por Conrad
(1985) que estima que se o tráfico interprovincial chegou a duzentas mil almas,
o intraprovincial pode ter chegado a quatrocentas mil70. Finalmente, Motta
adota a avaliação mais conservadora feita por Slenes.
Chegamos ao final desse período que vai do fim do tráfico transatlântico ao fim
do comércio interprovincial com um cenário bastante divergente entre as
províncias. Várias das províncias não-exportadoras haviam perdido boa parte
de seus escravos para o sul e estavam havia tempos experimentando o
trabalho livre. Com uma diminuição considerável da importância da escravidão,
elas estavam menos árduas em defender a continuação dela71. Nas províncias
do café, ao contrário, havia uma grande dependência do trabalho escravo,
68 Fonte: modificado a partir de TADMAN, 2004, in in The Chattel Principle: Internal Slave Trade in the
Americas, p.119
69 SUBRINHO, 1992, p. 181-191 e 228 apud MELLO, 2009 . 176
70 MOTTA, 2012, p.64-65. No capítulo 2 de sua dissertação sobre o comércio de escravos em localidades
paulistas selecionadas, Motta nos oferece um panorama seletivo interessante sobre a historiografia do
tráfico interno de escravos.
71 CONRAD, 1975, p.150-156
32
notadamente nos municípios cafeeiros – municípios não produtores de café da
região passaram a perder braços para os produtores. Os fazendeiros já
flertavam com as alternativas de imigração, ainda sem sucesso. O trabalhador
brasileiro não era visto como opção e existia um medo real de falta de braços,
caso a escravidão fosse abolida. Por isso as províncias do café no começo dos
anos 80 ainda tentavam prolongar o trabalho escravo por mais três décadas72.
Não esgotamos de maneira alguma a bibliografia sobre o tema, mas em suma,
podemos caracterizar o tráfico interprovincial de escravos e suas
consequências demográficas no período entre 1850 e 1881 da seguinte
maneira:
- forte pressão altista no preço dos escravos no sudeste cafeeiro;
- transferência de braços dos setores menos dinâmicos da economia para
setores mais dinâmicos (notadamente, do setor urbano para o rural), com
ênfase na cafeicultura;
- concentração demográfica de escravos no sudeste, especialmente jovens do
sexo masculino;
- decrescimento global da população escrava, através da mortalidade e
libertações.
Este cenário assustava alguns governos provinciais que temiam desde uma
secessão ao estilo americano até a falta total de braços escravos para a
economia local. Já há anos aconteciam tentativas para “segurar” braços dentro
das províncias exportadoras, como ocorreu na Bahia a partir de 1862 com uma
taxação de 200 mil réis cobrada para a exportação de escravos, que não teve
impacto significativo no tráfico interprovincial. O golpe final a este tráfico veio
no começo da década de 1880, quando as províncias do sudeste cafeeiro
impuseram um imposto proibitivo de dois contos de réis – valor este muitas
vezes superior ao preço de um escravo prime, à importação de escravos
vindos de outra província. Esta lei por si só já desagregou o tráfico
interprovincial, mas além dela, em 1885, a Lei Saraiva-Cotegipe definiu que os
escravos não poderiam ser vendidos para fora da província em que estavam
matriculados73. Apesar de algumas exceções, tanto o imposto quanto a lei de
fato desarticularam bastante o comércio brasileiro de cativos entre províncias.
72 Ibid, p.156-159
73 NEVES, 2000, p.108-109
33
3.3 Depois da porteira do mar, a porteira da terra fecha: o tráfico
interno de cativos relegado ao comércio intraprovincial
O período que se iniciou em 1881 até 1888 foi marcado pela desagregação do
comércio interprovincial de cativos e pelo fim da própria instituição da
escravidão. Naquele momento, o Brasil era o único país grande que ainda
baseava sua economia no trabalho escravo.
Em 1881 as províncias do café impuseram um pesado imposto para a
importação de escravos vindos de outras províncias. Com isso, esperava-se
que as províncias do norte mantivessem um compromisso mais forte com a
escravidão, já que para várias delas, a inexistência do trabalho escravo e o uso
da mão de obra livre já era praticamente uma realidade74.
Além disso, os avanços conseguidos pela lei de 1871 haviam frustrado os
abolicionistas. O fundo de emancipação foi um fracasso: em 1876 apenas um
milésimo dos escravos registrados havia sido liberto pelo fundo e a partir de
1880 ele passou a ser aplicado com mais frequência e em 1885 estima-se que
mais de 214 mil escravos haviam sido libertos – quase 90 mil sem participação
do fundo. O fundo acabou sendo mais uma demonstração de humanidade, e
em muitos casos foi até usado para que os proprietários se livrassem de
escravos indesejados pelo mercado75. Quanto aos recém-nascidos, apesar da
proibição da venda dos escravos ingênuos em si, tornou-se prática vender seus
serviços ou aluga-los. No fim das contas, a vida de um escravo liberto pela Lei
Rio Branco pouco diferia da vida de um escravo comum76. Mesmo longe de
alcançar os resultados esperados, a lei serviu como um sinalizador claro do fim
da instituição, levantando o debate sobre o tema e mostrando que a abolição
estava linhada aos melhores interesses da nação77.
No começo dos anos 80, começaram a pipocar vários jornais pró-abolição,
especialmente na capital do Império, o que levou a uma forte reação pró-
escravatura e ao arrefecimento do movimento no ano seguinte78. Em 1881,
74 CONRAD, 1975, p. 208-209
75 Ibid p. 137-140
76 CONRAD, 1975, p.141-145
77Ibid, p.146
78 Ibid, p. 206
34
após a imposição dos impostos nas províncias do café, surgiu um forte
movimento emancipacionista no Ceará, cuja escravidão sobrevivia
principalmente da exportação de braços para o sul – já fazia tempo que a
província fazia bastante uso de mão de obra livre. Os abolicionistas
convenceram os jangadeiros e não embarcarem mais os escravos nos navios,
fechando assim o porto do Ceará ao comércio de escravos. O movimento
tomou vulto na província de maneira irreversível e em 1884 a província do
Ceará já estava livre, começando até a atrair escravos fugidos de outras
províncias79.
Mesmo antes de alcançar a vitória final, o movimento cearense já inspirava e
se espalhava por todo o país. Há registros de erupções abolicionistas em
diversas províncias e em 1883, o movimento abolicionista no Rio de Janeiro foi
reavivado e a abolição no Ceará teve reverberações no Amazonas e Rio
Grande do Sul 80. Além disso, as expectativas quanto continuação da instituição
moribunda criaram um certo pânico, trazendo o preço dos escravos pra baixo e
afetando negativamente até o preço de outros ativos econômicos81.
Ainda assim, em 1883, Nabuco relatou a seguinte impressão em sua coletânea
de discursos abolicionistas:
"Ninguém, infelizmente, espera que a escravidão acabe de todo no Brasil
antes de 1890(grifo nosso). Não há poder, atualmente conhecido, que nos
deixe esperar uma duração menor, e uma lei que hoje lhe marcasse esse
prazo aplacaria de repente as ondas agitadas(grifo nosso). Pois bem, não
há escravo que dentro de cinco anos não tenha pago o seu valor, sendo os
seus serviços inteligentemente aproveitados. Pense entretanto a lavoura, faça
cada agricultor a conta dos seus escravos: do que eles efetivamente lhe
custaram e do que lhe renderam, das crias que produziram - descontando os
africanos importados depois de 1831 e seus filhos conhecidos, pelos quais
seria um ultraje reclamarem uma indenização pública - e vejam se o país,
depois de grandes e solenes avisos para que descontinuassem essa indústria
79 Ibid p.215-218 e p. 229 – Conrad aponta que apesar da libertação, ainda havia alguns poucos escravos
na província após 1884.
80 Ibid, p.230-234. Para mais informações sobre a emancipação no Amazonas e Rio Grande do Sul, ver
cap. 13 do mesmo livro.
81 Ibid, p. 256
35
cruel, não tem o direito de extingui-la, de chofre, sem ser acusado de os
sacrificar."82
Nabuco não poderia ter sido mais profético: a escravidão foi pouco a pouco se
desmoronando em todo o país, e a libertação só veio quando não havia mais
como prolongar a situação.
Mello (1978) tentou capturar essas expectativas quanto ao fim da escravidão
construindo uma medida para a ela baseada na relação de preços entre o
aluguel dos escravos e seus preços de venda:
Tabela 9 – Mortalidade política da escravidão
Retirado diretamente de MELLO, 1978, p.57
Mello usa o ano de 1881 como representativo das expectativas anteriormente,
e então, a expectativa era de que a escravidão durasse ainda por mais três
décadas. É possível perceber que as expectativas só se reduziram
82 NABUCO, Joaquim: "O Abolicionismo - Conferências e discursos abolicionistas". Instituto Progresso
Editorial, São Paulo, 1949, p.198.
36
rapidamente a partir dos acontecimentos de 1886. Não temos o instrumental
proposto por Mello para calcular as expectativas em Itu, mas vamos usar esta
ideia mais a frente para mostrar que de fato, a pressão abolicionista – variável
exógena criada por Mello para tentar explicar o rápido decréscimo no preço dos
escravos na década de 1880, também afetou as transações ocorridas na
localidade paulista.
O imposto interprovincial por si só provavelmente já causou uma grande
mudança nas expectativas sobre a continuidade da escravidão. O tráfico
intraprovincial ocorria com relativa força mesmo durante o período em que as
porteiras entre províncias estavam abertas. Com as porteiras fechadas,
começou a ficar clara uma tendência ao aumento da população escrava em
municípios cafeeiros e uma perda da população escrava em municípios não
cafeeiros – ou seja, estava ocorrendo uma transferência de escravos para
essas regiões. Nesse contexto, a região central, onde Itu está localizada,
apresentou relativa estabilidade econômica assim como o leste da província,
com a região Mogiana-Paulista sendo a que mais cresceu às vésperas da
abolição83.
Motta, anteriormente citado, faz um estudo dentro da província de São Paulo
que capta um pouco dessas tendências. Dentro da província paulista havia
regiões com diferentes graus de desenvolvimento econômico e consequente
demanda por escravos. Em sua tese de doutorado, Motta, analisa o comércio
de escravos em quatro localidades: Casa Branca, no Oeste novo; Piracicaba,
próxima à Itu, na região Central; Areias e Guaratinguetá, ambas no vale do
Paraíba paulista. Como comentamos na primeira seção, o vale do Paraíba foi
pioneiro na expansão cafeeira e foi decaindo ao longo do tempo. Casa Branca
e Piracicaba por outro lado, levaram mais tempo para abraçarem o café e no
período final da escravidão, estavam famintas por braços. Nos anos 70,
observa-se no tráfico intraprovincial em Areias um fluxo de saídas maior que o
de entradas, enquanto em Casa Branca, observa-se um fluxo de entrada
superior ao de saídas, tendência que se mantém nos anos 80, porém com
volume bastante menor num cenário de incerteza crescente em relação ao
destino da escravidão84.
Até o 13 de maio, muitos donos de escravos tentaram minimizar suas perdas o
máximo possível. Mesmo em 1886, ainda era possível encontrar escravos em
São Paulo vendidos a preços elevados. Conrad (1975) cita dois comentários,
83 LOWRIE, 1938, . 13-15 apud CONRAD, 1975, p.161
84 MOTTA, 2012, p. 248, 293 e 325
37
que se verdadeiros, mostram que seria razoável ainda comprar escravos às
vésperas da abolição:
“Se é verdade, conforme afirmou o historiador econômico brasileiro, Roberto
Simonsen, que um “bom escravo masculino” podia produzir vinte e cinco sacas
de café por ano, e sendo também verdade, como afirmou Afonso de E. Taunay,
que o preço médio de uma saca de café em 1886/87 era de 30$770, o escravo
comprado em São Paulo no início de 1886 por 1:600$000 poderia produzir café
que valesse 769$250 no primeiro ano e, provavelmente, teria ganho para seu
senhor grande parte do seu custo inicial antes do sistema escravocrata paulista
começar a desmoronar-se em 1887”85.
Ou seja, mesmo com todas as reformas e impedimentos sobre a escravidão, o
comércio seguiu ativo em São Paulo - em proporção muito menor, é verdade,
quase até o fim do regime.
Até o momento final da escravidão ela nunca foi defendida abertamente, mas
apenas até que se encontrasse outra alternativa. Por essa falta de defesa
direta da escravidão, há na historiografia brasileira uma corrente que defende
que o fim da escravidão ocorreu devido a sua incompatibilidade com o
capitalismo86. Versiani (1994) traz argumentos econômicos para contrapor essa
ideia de que o trabalho escravo é inerentemente mais custoso que o trabalho
livre, e que por isso teria chegado ao fim. Segundo ele, outros autores
demonstraram que essa suposição não é valida para qualquer tipo de trabalho.
O comprador do escravo leva em conta a produtividade diferencial do escravo
em relação ao trabalhador livre, o custo de coagi-lo ao trabalho e também o
custo do investimento na compra de escravos. Para trabalhos em que é
necessária uma habilidade maior (ou seja, em que o trabalhador precisa ser
mais especializado), a escravidão é pouco aderente tanto pelo alto custo da
coação como pela possibilidade de que o trabalho mal feito seja percebido
apenas posteriormente. Já para trabalhos intensivos em esforço – ou seja, que
não é necessário grande especialização, apenas uma grande quantidade de
esforço – o controle da produção é mais fácil e a coação funciona mais
efetivamente, devido a simplicidade das tarefas.87 Por isso a escravidão
estereotípica seria aplicável a trabalhos intensivos em esforço, como nas
85 SIMONSEN, 1941, p. 267 e TAUNAY, 1945 p. 548 apud CONRAD, 1975, p.162-133
86 LUNA & KLEIN, 2010, pag. 119
87 VERSIANI, 1994, p.2-3 (versão traduzida), Luna & Klein anteriormente citados também citam o
modelo de Stefano Fenoaltea
38
grandes plantations. Porém, como já comentamos, há uma série de outras
atividades mais intensivas em habilidade em que os escravos também
trabalhavam88.
De fato, ao longo destes últimos suspiros da escravidão, os fazendeiros do
oeste paulista tentaram usar ao máximo os serviços de seus escravos, abrindo
mão deles só quando era absolutamente impossível dar continuidade ao
sistema escravista. Esses fazendeiros tinham em vista a imigração europeia e
pouco foram afetados pelo fim da escravidão, mas em outras localidades
menos prósperas como o interior da província do Rio de Janeiro, a abolição
gerou a ruína de muitos proprietários e foi rechaçada mesmo após a lei
Áurea89.
Depois de um longo período de discussão, em 1885 foi aprovada a Lei dos
Sexagenários, que tinha como principal objetivo libertar escravos idosos,
reforçar o fundo de emancipação, colocando preços máximos para os escravos
e proibir o tráfico interprovincial, já praticamente extinto. Durante um curtíssimo
período, o movimento abolicionista se arrefeceu, mas voltou com força logo em
seguida devido a interpretações sobre a lei que foram vista como um
retrocesso pelos que lutavam pela libertação. Já no ano seguinte, conseguiram
uma vitória bastante simbólica: a abolição do açoite90. Todos esses
acontecimentos seguramente diminuíram a expectativa quanto à duração da
escravidão, como veremos mais adiante. Porém, enquanto a maior fortaleza
pró-escravatura não fosse derrubada, a escravidão ainda teria alguma força.
Subitamente e por um mero acaso, a cidade de Santos, que já quase não
contava com escravos, tornou-se um centro abolicionista – seus escravos
foram libertos e em fins de 1886, vários escravos de várias localidades da
província começaram a procurar a cidade costeira como refúgio de liberdade91.
A partir daí a escravatura esfacelou-se. Fugas em massa começaram no final
daquele 1886 de maneira nunca antes vista, deixando atônitos tanto o governo
quanto os fazendeiros. A população apoiava os fugidos e até forças policiais se
88 Ver referência 42
89 CONRAD, 1975, p.323
90 Ibid, cap. 15
91 Ibid, p.290-293
39
negavam a capturar negros. Estava claro que a escravidão estava muito
próxima ao fim92.
O próprio comércio interno de cativos criou uma situação que antes não existia,
quando se traziam escravos da África. Antes, eles vinham sozinhos, eram de
etnias diferentes, dificilmente poderiam organizar-se. Agora não: agora eles
vinham de uma mesma cultura, falavam a mesma língua e tinham aspirações
de liberdade93. Além disso, eles haviam sido arrancados do seio de suas
famílias e de uma situação muito menos pesada, em termos de trabalho, que a
que encontravam no sudeste cafeeiro. A experiência do tráfico em si era
extremamente degradante para os cativos, em sua grande maioria, jovens do
sexo masculino, que agora sozinhos e isolados, e provavelmente com raiva de
sua situação, agora tendo muito menos a perder ao se rebelar-se. Ficou
caricata enquanto durou o comércio a imagem do escravo baiano revoltoso que
ameaçava perturbar a ordem das coisas na província de São Paulo e há até
informes de que escravos trazidos do norte eram mais revoltosos que os
africanos94. Ou seja, de certa maneira, mesmo com a porteira fechada, o “mal”
já estava feito: a semente que alimentou revoltas massivas de escravos estava
plantada e germinou em meados dos anos 80.
Os preços dos escravos despencaram rapidamente ao longo da década de
1880 e para se proteger de uma falta de mão de obra iminente, os fazendeiros
começaram a libertar seus escravos mediante um período de trabalho
obrigatório em que eles receberiam salários95. O medo da falta de mão de obra
foi diminuído com o sucesso das primeiras experiências imigratórias, tendo a
província de São Paulo recebido mais de 32 mil imigrantes em 1887. Assim,
rapidamente uma das províncias que mais defendia a escravidão passou a ser
abolicionista96.
São Paulo que tão firmemente defendeu a escravidão rapidamente tornou-se
contra ela. A situação de caos que instaurou-se com as fugas em massa tornou
a certeza da liberdade mais interessante que a incerteza da escravidão. Assim
que São Paulo mudou de lado e tornou-se abolicionista, não faltava muito para
92 Ibid, p.289-300
93 DEAN, 1977, p.125-126
94 GRAHAM, 2004, p.311
95 Ibid, p.311
96 Ibid, p. 315
40
o sistema ruir97 – poucos meses depois, foi promulgada a Lei Áurea,
encerrando um dos capítulos mais fúnebres da história do Brasil e dos que
maior peso tem em nossa sociedade contemporânea.
4. Café, açúcar e escravos: o comércio de cativos em Itu no final
da escravidão
Esta seção está dividida em três partes: na primeira iremos apresentar as
fontes primárias utilizadas neste trabalho – escrituras de compra e venda de
escravos da cidade de Itu, por nós coletadas, e notícias e anúncios de jornais
de Itu do século XIX, digitalizadas e disponíveis online no site do Sibi-USP. Em
seguida, utilizaremos dados referentes ao ano de 1880 para representar os
resultados do comércio de escravos até então. Finalmente, na última seção,
descreveremos os escravos comercializados na cidade de Itu entre 1881 e
1888.
4.1 As fontes
Neste trabalho usaremos informações coletadas em escrituras de compra e
venda de escravos do Primeiro Ofício de Itu. Tais escrituras estão preservadas
pelo Museu Republicano da Universidade de São Paulo, em Itu. Utilizamos as
escrituras de dois livros: um referente a transações efetuadas entre 1880 e
1887 ocorridas apenas em Itu, e outro com algumas transações feitas em
Indaiatuba. Como comentamos anteriormente, desde 1860 transações de
escravos com valores superiores a 200 mil réis deveriam ser registradas em
livros especiais. Há informes sobre outros dois cartórios com escrituras de
transações que ainda não foram coletadas. Como era do interesse dos
proprietários garantir a posse de seus escravos98, é razoável supor que temos
uma amostra representativa do comércio de escravos em Itu, que poderá ser
ampliada caso as escrituras do segundo ofício e do primeiro cartório sejam
coletadas.
Ditas escrituras de maneira geral contém os seguintes informes: nome do
comprador e vendedor, nome e preço do escravo, assim como sua idade, sexo,
aptidão, local de nascimento e de matrícula. Não são todas as escrituras que
97 Ibid, p.319
98 MELLO, 1977, p.72. O comentário sobre a confiabilidade dos registros é feito sobre as matrículas, que
davam uma prova de propriedade legal para o dono do escravo. Por isso, também é razoável supor que
compradores teriam interesse em ter uma prova legal de compra ou venda de seus escravos.
41
possuem todas as informações. Por exemplo, escrituras de vendas em grupo
geralmente apresentam apenas o preço total da venda, ficando impossível
nesses casos aferir o preço individual de cada escravo. Outras vezes são
informações sobre a naturalidade ou aptidão do escravo que estão em falta.
Sexo e idade estão presentes em todas as escrituras, apesar de que podemos
aferir que as informações não são 100% acuradas pelo fato de serem ditas
pelo vendedor. Ao contrário de escrituras encontradas em outros cartórios, não
há informes na maioria delas sobre a residência do comprador e do vendedor,
impossibilitando caracterizar portanto o peso dos tráficos de entrada e de
saída99.
Além das escrituras, também nos valemos de jornais publicados em Itu no
século XIX, em que vários dos personagens envolvidos nas transações são
citados100.
A seguir, a título de ilustração, disponibilizamos a imagem de uma dessas
escrituras, assim como sua transcrição. A venda do escravo Benedicto,
realizada em 1883, foi a com o segundo maior valor registrada no período entre
1883 e 1887, marcado por um declínio acentuado no preço e na quantidade de
escravos transacionados. Ele era um escravo prime, ou seja, era um escravo
do sexo masculino e estava na faixa etária mais valorizada101.
Ao coletar as informações disponíveis em cada uma dessas escrituras, uma
pergunta importante deve ser feita: quem eram as pessoas envolvidas nessas
transações? Como era a experiência delas? Graham, em seu artigo por nós
citado anteriormente, enumera várias experiências de vários escravos que
foram comercializados. De maneira geral, foram separados de suas famílias,
mas as experiências variam de jovens vendidos para trabalhar no café,
mulheres vendidas para a prostituição, e até mesmo a história de Luiz Gama,
que foi vendido ilegalmente. Apesar da diversidade de suas experiências, o
99 MOTTA (2012) usou a residência dos envolvidos nas transações para definir o tipo de comércio, de
entrada e de saída.
100 Diversos jornais ituanos do século XIX e XX encontram-se digitalizados e disponíveis em
http://www.obrasraras.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269
101 Vários estudos por nós citados, como MOTTA(2012) e Mello (1978) mostram que o preço de escravos
jovens do sexo masculino é quase sempre mais alto que qualquer outro tipo de escravo. FLAUSINO
(2006), p.137 mostra as mesmas características no comércio de escravos em Mariana, Minas Gerais:
“Quando procuramos relacionar a idade e os preços dos cativos, como mostra o gráfico 14, observamos
claramente que os escravos do sexo masculino alcançaram preços superiores aos das mulheres em todas
as faixas etárias, sobretudo na faixa etária de escravos adultos (15- 39 anos), quando o preço médio das
mulheres representou 68,9% do preço dos homens.”
42
desgaste psicológico de passar de mão em mão sem saber seu destino final e
a separação de seus laços familiares causavam grande revolta nesses cativos,
que perderam todo o pouco que tinham102.
A princípio, não podemos fazer muito além de especular sobre como foi a
experiência dos envolvidos no comércio em Itu pela pouca quantidade de
informações disponíveis nas escrituras. Ainda assim, refletir sobre como podem
ter sido essas experiências, como propôs Graham, nos impede de esquecer a
pergunta mais importante sobre o comércio de escravos: qual foi o significado
do comércio de escravos para os humanos que foram comercializados?103
102 GRAHAM, 2004, págs. 304-310
103 Ibid, pág.291
43
Figura 2- Escritura de compra e venda de escravos104
104 Fundo Cartório de Notas de Itu, caixa 32, página 80B
44
Figura 3 - Escritura de compra e venda de escravos105
105 Fundo Cartório de Notas de Itu, caixa 32, página 81A
45
* Grifos nossos
Escritura de venda e compra de um escravo, que faz Francisco Barreto de Souza a
Manuel de Oliveira, pela quantia de 1:500$000.
Saibão quantos este publico instrumento de escriptura de venda e compra de um
escravo virem, qui no anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo, de mil
oitocentos e oitenta e três, sexagésimo segundo da Independência do Império, aos
trinta e um dias do mês de julho do dito anno, nesta cidade de Itu e em meu cartório
comparecerão parte entre si havidas e contratadas, de uma como vendedor
Francisco Barreto de Souza, e de outra como comprador Manoel de Oliveira, de mim
reconhecidos e de que dou fé. O bilhete de meia sisa, que me foi apresentado, é
passado pela collectoria desta cidade, sob número um, em data de hoje, da quantia
de quarenta mil réis, assignado pelo collector José Martins de Mello e pelo escrivão
José Antonio Appolinario de Almeida Garrett. A matrícula do escravo Benedicto foi
feita na collectoria desta cidade* na data de vinte e sete de Agosto de mil
oitocentos de setenta e dous, sobre número dous mil e cincoenta da matrícula e dous
da relação. Logo pelo vendedor foi dito, perante as testemunhas adiante nomeadas e
assignadas, que elle é senhor e possuídor do escravo de nome Benedicto, preto,
de trinta e um annos de idade, da Bahia, solteiro e do serviço da roça*, do qual
escravo, no mesmo estado de saúde em que se acha faz venda, como de facto
vendido tem ao comprador pela quantia de um conto e quinhentos mil réis*, a
vista, que recebeu e dá quitação, sendo a competente meia sisa paga pelo
comprador, à quem cede e transfere a posse que em dito escravo tinha, para que
gose como seu que fica sendo pela compra feita e dá vista por represadas todas as
clausulas precisas em direito, como de cada uma d’ellas fizesse especial menção.
Pelo comprador foi dito que aceitava a presente escritura na forma n’ella declarada.
De como assim disserão e outorgarão dou minha fé e me requererão lhes houvesse
esta, que sendo-lhes lida e achando a contento se assiguão, sendo à rogos do
comprador por não saber escrever José Ferreira de Almeida, com as testemunhas
presentes Francisco Corrêa Pacheco e Antonio de Castro Andrade, todos desta
cidade e reconhecidos de mim Francisco José de Andrade, Tabelião que a escrevi. A
presente escriptura paga a sello proporcional de dous mil reis. O Tabellião.
Itu, 31 de julho de 1883. Francisco Barreto de Souza, José Firmino de Almeida,
Francisco Correa Pacheco, Antonio de Castro Andrade.
46
Não sabemos muito sobre o escravo Benedicto. Sabemos que ele era baiano e
que entrou em São Paulo antes de 1881, ou seja, antes da regulamentação do
imposto que proibiu o tráfico interprovincial, pois ele foi matriculado na coletoria
de Itu. Era jovem e solteiro, tinha 31 anos de idade. Porém, se em 1883 ele
tinha 31 anos, isso implica que em 1872 quando foi matriculado, ele tinha
apenas 20 anos de idade. Ou seja, seu deslocamento da Bahia para São Paulo
ocorreu quando ele era ainda muito jovem.
Pouco sabemos sobre Benedicto mas temos um pouco mais de informações
sobre seu comprador e vendedor. Francisco Barreto de Souza apareceu
algumas vezes em nossa pesquisa. Em 1880 ele vendeu três escravos no
mesmo dia, além de vender Benedicto em 1883. Curiosamente, mais tarde, os
dois escravos que vendeu em conjunto (um casal com três filhos ingênuos)
foram por ele recomprados. Além desta “desvenda”, ele aparece como
comprador em mais duas transações: uma em 1880 e outra em 1882, nas duas
vezes comprando escravos homens. Isso faz sentido, afinal, segundo algumas
citações no jornal Imprensa Ytuana, Francisco Barreto de Souza era lavrador
de café106.
Manoel de Oliveira também aparece mais vezes em nossa pesquisa: outras
duas como comprador de escravos do sexo masculino em 1885 e uma como
vendedor, em 1883, de uma escrava. Em 17 de maio de 1887, Manoel de
Oliveira foi listado como lavrador de algodão, numa lista em que também
aparece Francisco Barreto de Sousa como lavrador de café. Curiosamente, em
23 de setembro de 1883, Manoel de Oliveira já aparece libertando alguns de
seus escravos condicionalmente, o que nos dá uma vaga ideia sobre sua
expectativa quanto ao fim da escravidão. Aparentemente Manoel era bom em
perceber tendências futuras. Deixamos a reprodução do original como
ilustração das informações que utilizamos:
106 Na edição de 27 de agosto de 1873, Francisco Barreto de Sousa é listado como votante e elegível.
47
Figura 4 - Notícia sobre libertação de escravos por Manoel de Oliveira na edição do dia 23/09/1883 no jornal Imprensa Ytuana
Almeida Prado, Galvão de Almeida, Conceição, Nardi e diversos outros
sobrenomes poderosos de Itu e da província de São Paulo aparecem nas
escrituras coletadas. A pesquisa sobre o envolvimento dessas famílias com o
comércio de escravos por si só já renderia uma monografia e foge de nosso
escopo, mas eventualmente em transações pouco usuais vamos nos debruçar
brevemente sobre os envolvidos.
Porém, não só escravistas apareciam na imprensa. Por não terem
sobrenomes, fica difícil a busca de mais informações sobre escravos, mas
ainda assim vez ou outra encontramos algumas citações envolvendo escravos
comercializados em Itu.
Como comentamos, a escritura usada nesta transação é um exemplo de uma
escritura representativa do estereótipo do cativo comercializado no tráfico
interprovincial pós abolição do tráfico transatlântico: escravo jovem, da roça, do
sexo masculino, vindo do nordeste, provavelmente para trabalhar na lavoura
cafeeira já que foi vendido por lavrador de café.
Algumas escrituras por nós coletadas eram vendas em grupo (nesse caso
várias), alugueis ou “partes ideais” de escravos. Usaremos esses informes para
construção de estatísticas descritivas, porém não as usaremos para compor a
média dos preços de algumas características, como sexo e ocupação.
4.2 Antes da porteira fechar: a fazenda capoava e o ano de
1880
1880 foi o ano mais movimentado no comércio de escravos em Itu que
registramos em nossa coleta. Naquele ano foram registradas no primeiro ofício
de Itu as compras e vendas de 97 escravos. De um total de 110 escrituras para
todo o período entre 1880 e 1887, 43 foram registradas em 1880. Uma dessas
48
escrituras foi da compra de partes ideais de uma escrava. Uma outra venda foi
desfeita posteriormente com o vendedor original recomprando um casal de
escravos, e portanto vamos considerar apenas uma delas, diminuindo assim o
número de transações para 42 e o número de escravos negociados para 95. A
título de comparação, Motta (2012) encontra uma média de escravos
negociados por ano, registrados em escrituras de compra e venda no período
imediatamente ao ano de 1880(1880 incluído) que chega a 79,6 em Piracicaba
e 83 em Casa Branca, em plena fronteira de expansão do café107. Como
veremos a seguir, essa quantidade relativamente alta de transações teve um
motivo.
Das 42 transações registradas naquele ano, 14 eram de grupos de escravos,
desde casais ou dois escravos em conjunto até um máximo de 13 cativos
negociados em uma mesma transação, totalizando 62 escravos inteiros
negociados em conjunto. Em algumas transações foi discriminado o preço
individual dos escravos, nos dando, no total, informes individuais do preço de
32 escravos. Configura-se portanto, em transações envolvendo escravos
vendidos integralmente, uma média de 2,29 escravos por transação. Nas
transações em grupo, foram negociados em média 4,42 escravos.
12 transações envolviam como vendedor algum representante da família Nardi,
tradicional em Itu, totalizando 40 escravos negociados108 – 34 em grupo em 6
transações e 6 individualmente. 28 dos escravos vendidos em conjunto e 2 dos
que foram vendidos individualmente tiveram os mesmos compradores, que
eram sócios: Virgílio Augusto de Araujo e João Guilherme da Costa Aguiar.
Essas transações entre a família Nardi e os sócios Augusto & Aguiar
representam uma proporção expressiva dos escravos vendidos integramente (e
com sua venda registrada no primeiro ofício) em Itu no ano de 1880 – 30 de 94,
tem uma explicação. Dona Leonor Garcia de Vasconcellos Noronha deixou
como herança para seus sobrinhos, filhos do capitão Antônio Nardi de
Vasconcellos, a fazenda Capoava. Em 1870 a fazenda possuía 69 escravos.
Em testamento, dona Leonor definiu que as terras não poderiam ser nem
vendidas nem alienadas, podendo ser passadas apenas de pai para filho.109
107 MOTTA, 2012, p.262
108 Desconsideramos os escravos ingênuos, pois eles a essa altura já eram considerados livres por causa da
Lei do Ventre Livre.
109 Fonte: ZEQUINI, 2005, http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6894
49
Para administrar as terras, seus herdeiros fundaram a sociedade Nardi &
Irmãos. Em 1878 entraram com um pedido de anulação de verba
testamentária, para poderem vender a fazenda, obtendo sucesso em 1880.
Assim, a fazenda foi vendida para a sociedade Augusto & Aguiar, e com elas,
30 de seus escravos. Outros 10 escravos da família Nardi tiveram outros
compradores, como Carlos de Vasconcellos de Almeida Prado (ver pág. 9) e
Francisco Barreto de Souza (ver pág. 37). Como encontramos apenas 40
escravos sendo vendidos pelos Nardi, que não se envolveram em mais
nenhuma transação após 1880, não sabemos o destino dos restantes 29
escravos presentes nas terras da família em 1870 - eles podem ter sido
vendidos em outro ofício, terem morrido ao longo desses 10 anos ou
permanecido como propriedade dos Nardi.
Essas transações são especialmente interessantes por representarem uma
fotografia do comércio de cativos antes da Lei do Ventre Livre e até antes do
fim do tráfico internacional. Antes de nos atermos aos dados totais de 1880,
vamos fazer uma descrição mais cuidadosa dos escravos envolvidos nas
vendas da família Nardi.
Temos o informe de idade para 39 desses 40 escravos – uma não teve a idade
reportada por ser inválida e foi vendida com seu esposo. A média da idade
desses escravos negociados é alta – 39,6 anos. Vejamos a seguir a pirâmide
etária dos escravos vendidos pela família Nardi:
Gráfico 1 – Pirâmide etária dos escravos vendidos pela família Nardi
Dos 40 escravos vendidos pela família, 29 eram do sexo masculino. Essa
forma estranha da pirâmide, com distribuição relativamente homogênea do lado
masculino e formato mais normal do lado feminino, representa mais ou menos
10 5 0 5 10
12 a 34 anos
35 a 49 anos
50 a 59 anos
60 a 69 anos
Mulheres
Homens
50
o que esperaríamos de uma fazenda de produto exportável: uma concentração
de escravos do sexo masculino. A estranheza aqui vem do fato da alta
proporção de escravos velhos, talvez reflexo de um período de maior
prosperidade no passado ou até de boas condições de vida dos escravos.
Zequini aponta que em 1870 a fazenda possuía 100 alqueires de café e 45
quartéis de cana, além da produção de outros gêneros de subsistência, como
feijão e milho, além de algum gado.
Como comentamos anteriormente, o tráfico internacional de escravos foi
interrompido em 1850, portanto, escravos com mais de 30 anos de idade
poderiam ser trazidos da África e escravos com menos de 30 anos de idade
poderiam vir de outras províncias. Como quase todos os escravos foram
matriculados em Itu (apenas um foi matriculado em Campinas), todos eles já
estavam na região em 1872. Vejamos a seguir de onde esses escravos vieram:
Tabela 10 – Origem dos escravos do sexo masculino vendidos pela família Nardi
Faixa Etária África São Paulo Nordeste
12 a 34 anos 0 7 2
35 a 49 anos 0 2 4
50 a 59 anos 5 0 1
60 a 69 anos 7 0 0
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Fica bastante claro que antes de 1830 a preferências por escravos vindos da
África era clara. Não sabemos por que a família não comprou mais escravos
africanos após 1830 – talvez por respeitar a lei que proibia o tráfico, apesar de
ela não ser respeitada no país, como comentamos, antes de 1850.
Aparentemente, até por volta de 1850 houve uma preferências por escravos
nordestinos, e depois disso, preponderou a preferências por escravos da
província. Dos escravos da província de São Paulo, todos eram naturais de Itu.
Entre as escravas do sexo feminino, apenas uma, de 55 anos, era de nação. 9
eram de São Paulo e 2 do nordeste: uma de 40 e outra de 34 anos.
Esta foto mostrada por essa transação – transação de escravos que estavam
em Itu ou Campinas pelo menos desde 1872 – mostra um pouco como era o
comércio de escravos na localidade no passado. Antes do fim do tráfico
internacional, quando Itu era exportadora de açúcar, os escravos eram
comprados na África. Depois, passaram a ser comprados do Nordeste, e
finalmente, da própria província. Claro que essa transação isoladamente não
representa todo o conjunto, mas, pelo seu peso no total, foi interessante
analisa-la isoladamente.
51
Dos 29 escravos do sexo masculino, 20 tiveram sua aptidão mencionada. Um
era do serviço doméstico e todos os outros eram do serviço da roça. Entre as
mulheres, o padrão se repete: das 6 que tiveram suas profissões reportadas, 5
eram do serviço da roça e apenas 1 do serviço doméstico.
Como uma parte relevante dos escravos foi vendida em grupo, não faremos
uma análise de seu preço para as vendas da família Nardi.
Voltaremos agora a nossa analise para a totalidade dos escravos negociados
em 1880. Consideraremos aqui 42 escrituras de compra e venda de escravos
para podermos fazer um panorama das características dos escravos
comercializados.
Como comentamos anteriormente, uma dessas transações feita em 31 de
março de 1880 envolvendo um casal de escravos, de Francisco Barreto de
Souza a João Baptista Pacheco Jordão foi revertida em 14 de junho do mesmo
ano:
(...) Logo, pelo vendedor foi dito, diante as testemunhas ao diante nomeadas e
assignadas, que ele é senhor e possuidor de um casal de escravos, comprados
do hoje comprador em trinta e um de março do corrente ano”(..)
O casal possuía três ingênuos e tanto na primeira quanto na segunda
transação, foram comercializados pela quantia de 4 milhões de réis. Não há
evidência de nenhuma anormalidade no resto da escritura que justifique a
venda do escravo para seus antigos donos, e nem na escritura da primeira
venda, há evidências de algum tipo de consignação. Consideraremos apenas
uma dessas transações em nosso estudo. Além desta, outra transação atípica
foi a compra de duas terças partes de uma escrava de nome Rita, feita em 16
de julho.
Em 1874, a população de escravos em Itu era de 3601 (ver pág. 10), numa
população total de 10853. Em 1882, a população escrava havia diminuído para
2878110, e em 1886, a população escrava havia declinado fortemente, para
1354, enquanto a população total subiu para 15840 indivíduos111. Apesar de
não termos informes para o ano de 1880, sabemos que ele está situado bem
no meio de um período em que a tendência da população total é de alta e a da
população de escravos é de queda, influenciada principalmente pelo período
110 CONRAD, 1975, p.356
111 Fonte:São Paulo do passado, disponível em http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos/1886.pdf
pag 107 (população total) e 212 (escravos matriculados até 1887)
52
final da escravidão112. Itu perdia escravos assim como a maioria de seus
vizinhos da região central (com a notável exceção de Campinas). Já na região
mogiana, em vários municípios da zona de expansão cafeeira, houve um
aumento da quantidade de escravos entre 1874 e 1882, evidenciando assim a
necessidade de braços devido a rápida expansão no cultivo da rubiácea113.
Dos 95 escravos negociados, 62 eram do sexo masculino e 33 do sexo
feminino, ou seja, 65% eram homens e 35% eram mulheres. Dos 94 escravos
para os quais temos informações sobre a idade, a média etária foi de 32,7 anos
– consideravelmente inferior à média registrada nas transações que venderam
os escravos da Fazenda Capoava.
Tabela 11 – Idade média em anos dos escravos negociados em Itu em 1880
Homens Mulheres
Idade média 34.75 28.71
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Nesse índice, a venda dos escravos da Fazenda Capoava teve um peso
grande. Temos o informe de naturalidade de 81 escravos. Dos 18 escravos
africanos negociados, 15 eram homens, ilustrando o peso que a razão de sexo
teve ao importar escravos africanos, ainda que num peso muito maior que a
proporção que citamos anteriormente (ver pag. 21). Dos 18 escravos africanos
comercializados em Itu naquele ano, 13 eram da fazenda Capoava. Ou seja, a
venda da fazenda acabou tendo um impacto para cima na idade dos escravos
comercializados, visto que enquanto cerca de 22% dos escravos velhos eram
de nação na totalidade dos escravos transacionados com naturalidade
identificada, no conjunto da fazenda Capoava essa proporção chegou a 54%.
Se não considerarmos a venda da fazenda Capoava, a média de idade dos
escravos transacionados seria de 27.78 anos, que é uma média mais próxima
à encontrada em outros estudos114. Notavelmente, a idade média dos homens
cai devido à presença bem menor de escravos africanos na amostra. Já a das
mulheres não se altera tanto, pois pouquíssimas escravas de nação foram
112 Ver gráfico em CONRAD, 1975 p. 77
113 Ibid p. 356 e ver pág. 31 deste trabalho
114 Ver MOTTA (2012), p. 62: em artigo sobre o tráfico de escravos velhos na província de São Paulo,
Motta encontra uma idade média dos escravos comercializados em localidades paulistas selecionadas de
23,39 o final do período de 1874-1880, com tendência de alta para o período seguinte.
53
negociadas em geral. A idade média de homens seria substancialmente
alterada:
Tabela 12 – Idade média em ano dos escravos negociados em Itu em 1880, sem
considerar a venda dos escravos da fazenda Capoava
Homens Mulheres
Idade média 28.48 26.72
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
O que podemos concluir sobre isso? Talvez os Nardi não fossem muito
interessados em tocar a fazenda Capoava, visto que ela não sofreu alterações
em tamanho desde 1856 e apenas seus compradores Araujo & Aguiar a
transformaram em uma fazenda de café115. Sem comprar novos escravos para
a fazenda, obviamente os que ali estavam envelheciam e puxavam a média de
idade dos escravos para cima. Teríamos que averiguar as escrituras de toda a
década de 70 para confirmar essa hipótese de que os Nardi não compraram
mais escravos por um longo período, mas o que fica claro é que os escravos
da fazenda Capoava tiveram um grande impacto para cima na idade média dos
escravos negociados em Itu no ano de 1880.
Escravos do sexo masculino tem seu preço médio maior que escravas do sexo
feminino. Para construir este índice, usamos apenas os informes que deixavam
explícito o preço individual dos escravos:
Tabela 13 – Preço médio dos escravos separados por gênero em Itu em 1880
Homens Mulheres
Preço médio 1822000 1237000
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Outro recorte interessante a ser feito é o de aptidão do escravo. Esse informe
está disponível para 75 dos 95 escravos. Desses 75, a grande maioria – 63, ou
seja, 84% eram do serviço da roça.
Dos 63 escravos do serviço da roça, 47 (74%) eram do sexo masculino. Em
1874, 61% da população rural escrava era masculina116, ou seja, faz sentido
115 Ver novamente ZEQUINI, 2010, em http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=6894
116 Ver pág. 18
54
que num período em que se demanda por braços no campo, a maior parte da
comercialização de escravos no meio rural fosse de escravos do sexo
masculino.
Finalmente, para 25 escravos do serviço da roça, temos também o informe
individual sobre o preço. Assim, podemos fazer uma comparação entre a média
dos preços dos escravos no geral e para aqueles que são do serviço da roça e
do serviço doméstico:
Tabela 14 - Preço médio dos escravos separados por gênero e aptidão em Itu em 1880
Preço médio/Sexo Homens Mulheres
Total 1822000 1237000
Serviço da roça 1800000 1266000
Serviço doméstico 1600000 1300000
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Este achado não é muito diferente do feito por Motta e Marcondes em sua
análise de listas de emancipação e escrituras de compra e venda de escravos
para localidades selecionadas do interior paulista. No artigo é citada uma outra
pesquisa de Marcílio et alii, que analisando uma localidade baiana, concluiu
que uma vez empregados no serviço da roça, não se encontra um diferencial
significante entre homens e mulheres. Motta e Marcondes apontam que estes
resultados não são necessariamente generalizáveis117, tanto que no mesmo
artigo, uma amostra pequena levou a um resultado mais extremo. Na amostra
de escrituras de compra e venda de escravos de Guaratinguetá e Silveiras,
foram transacionados 31 escravos e apenas três escravas da roça, levando a
um diferencial de preço em que os escravos da roça valiam mais que o dobro
que as escravas de mesma profissão. Na lista de classificação de Cruzeiro e
Lorena, esse diferencial foi consideravelmente menor – escravas da roça
alcançavam 83% dos escravos do sexo masculino da mesma ocupação, em
uma amostra que envolvia 834 escravos e 337 escravas. Em nossa amostra de
47 escravos e 16 escravas da roça, encontramos um diferencial entre escravos
e escravas da roça que era um pouco menor que a diferença da média geral de
preços entre escravos do sexo masculino e feminino.
Poucos foram os escravos do serviço doméstico para os quais conseguimos
informes individuais de preço: apenas três mulheres e um homem. A proporção
de sexo aqui se inverteu, como também se inverteu nos achados de Motta e
117 MOTTA & MARCONDES, 2001
55
Marcondes. Mas o preço do escravo masculino segue mais alto. Ou seja,
apesar do serviço doméstico ser uma profissão tipicamente feminina, um
escravo do sexo masculino tem um preço mais alto118. A propósito, o escravo
em questão tinha apenas 12 anos.
Há ainda sete outros escravos sobre os quais temos o informe de ocupação e
preço individual: duas cozinheiras, uma costureira e dois pagem, sendo um
homem e uma mulher. O único pagem do sexo masculino teve uma avaliação
bem mais alta que todas as médias encontradas para os homens: dois contos e
quatrocentos mil réis. Com exceção de uma cozinheira de 56 anos vendida por
500 mil réis, todas as outras escravas especializadas custaram entre um conto
e duzentos e um conto e quatrocentos mil réis.
Assim como Motta & Marcondes, para todas as faixas etárias encontradas nas
escrituras por nós pesquisadas, os preços dos homens foram sempre
superiores aos das mulheres:
Tabela 15 – Preço médio dos escravos por sexo e faixa etária e tamanho das amostras
Homens
Número Preço médio
de 10 a 14 anos 5 1670000
de 15 a 39 anos 10 2085000
de 40 a 59 3 1200000
Mulheres
Número Preço médio
de 10 a 14 anos 1 1000000
de 15 a 39 anos 13 1330769
de 40 a 59 2 750000
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Para a faixa etária mais valorizada – de 15 a 39 anos, foram transacionados
mais homens que mulheres. Mas isso acontece apenas nas transações para as
quais temos os informes individuais. Se considerarmos as vendas em grupo,
passamos a ter 35 escravos homens e 25 escravas mulheres comercializados.
Como já comentamos anteriormente, não poderemos informar se o tráfico
realizado era inter ou intraprovincial devido a falta de informação sobre a
118 MOTTA & MARCONDES, 2001
56
residência dos envolvidos nas trocas. Porém, a localidade de nascimento e
matrícula dos escravos nos dará uma ideia sobre a movimentação desses
escravos até então. Comecemos analisando os 56 escravos do sexo masculino
dos quais temos informes sobre o local de nascimento:
Tabela 16 – Local de nascimento dos escravos do sexo masculino comercializados em
Itu em 1880
São Paulo Sudeste Norte e Nordeste Sul África
Local de Nascimento 18 2 18 3 15
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
O peso dos escravos originários de outras províncias ou do além-mar é
bastante alto – quase 70%. Mesmo se desconsiderarmos os escravos da
fazenda Capoava, essa proporção é ainda bastante elevada.
Praticamente todos os escravos paulistas comercializados naquele ano foram
matriculados em Itu, em Indaiatuba (no mesmo termo) ou (apenas um em cada
caso) em Tietê e Campinas. O único escravo matriculado em outra província
era natural da Paraíba e tinha 33 anos. Os escravos africanos por sua vez
foram todos matriculados na região, sendo 13 matriculados em Itu e os dois
restantes, em Tietê e Porto Feliz, localidades próximas à Itu. Disso podemos
concluir que todos esses escravos africanos já estavam na região em 1872,
mas infelizmente não há como saber se eles passaram por outras províncias
antes. É razoável supor que eles foram enviados diretamente para Itu, visto
que a região era protagonista no desenvolvimento da lavoura açucareira em
São Paulo - foi entre as décadas de 1830 e 1840 - justo a época que
aparentemente os escravos entraram no país - que a província produzia açúcar
para exportação119.
Uma realidade um pouco distinta se desenha para os escravos que nasceram
em outras províncias do Brasil.
119 LUNA & KLEIN, 2010, p. 88
57
Tabela 17 – Local de nascimento dos escravos versus local de matrícula
Nascimento x Matrícula São Paulo Sudeste Norte e Nordeste Sul
Sudeste 1 1 0 0
Sul 1 0 0 1
Norte & Nordeste 7 0 11 0
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Dos 18 escravos de origem nortista ou nordestina, sete foram matriculados em
São Paulo. Novamente, a venda da Fazenda Capoava tem um peso grande:
dos escravos nordestinos, apenas os escravos vendidos pelos Nardi foram
matriculados em São Paulo. Ou seja, os outros 11 escravos foram trazidos
para a província após 1872, quando ocorreu a última matrícula até então. No
total, dos 23 escravos originários em outras províncias, 13 não foram
matriculados em São Paulo. Essa informação está em acordo com a
periodização do comércio de cativos feita por Gorender e citada por Motta
(2012)120: nos anos 70, o comércio interprovincial era muito intenso. Motta
verificou que para Piracicaba – cidade próxima a Itu, o período de 1874-1880
apresentou características típicas da expansão cafeeira, ou seja escravos
jovens, do sexo masculino, vindos de várias localidades121.
De fato, se olharmos mais atentamente para algumas dessas transações,
encontraremos fortes evidências de que algumas delas de fato fizeram parte do
tráfico interprovincial. Em 14 de julho de 1880, Francisco Fernando de Barros
Junior, republicano e rico fazendeiro que circulava entre as elites da
província122, comprou oito escravos de Guilherme Augusto Raposo. Francisco
também aparece como comprador de outros dois escravos em 1883.
Guilherme Augusto Raposo por sua vez era negociante e morador do Rio de
Janeiro, segundo outra escritura registrada na cidade de São Paulo em
1878123. Naquela ocasião ele vendeu sete escravas para um fazendeiro da
província de São Paulo, todas muito jovens (de 13 a 23 anos) e com matrículas
feitas no nordeste. Em Itu, os oito escravos vendidos por ele a Francisco
120 MOTTA (2012) p. 73
121 MOTTA (2012), p.355
122 ZEQUINI, 2014. Disponível em: http://www.itu.com.br/colunistas/artigo.asp?cod_conteudo=48076
123 Escritura disponível em: http://lemad.fflch.usp.br/es/node/7883
58
Fernando de Barros eram prime, e por isso mesmo o preço do conjunto
alcançou a cifra de 2 milhões e 275 mil réis por cabeça. A título de
comparação, há informes de Casa Branca e Piracicaba (localidades também na
zona de expansão do café) de escravos prime custando pouco mais de 2
milhões de réis nominalmente, mas ao longo de toda a década de 70, ou seja,
essa média captando também preços de anos anteriores que estavam em
patamar mais baixo e com tendência altista124. Para Rio Claro, outra cidade
próxima à Itu, há informes de escravos prime sendo vendidos em 1880 por 2
milhões e 300 mil réis, enquanto no interior da Bahia escravos semelhantes
eram vendidos por apenas 1 milhão e 200 mil réis125.
Todos os escravos envolvidos nesta transação eram nordestinos, do sexo
masculino, jovens com média de idade de 21.75 anos (mínimo 15, máximo 35),
solteiros e do serviço da roça. Ou seja, exatamente o perfil do escravo
demandando pela lavoura cafeeira e que também alimentou a combustão do
fogo abolicionista. Claro que não podemos saber se esses escravos estiveram
diretamente ligados a qualquer insurreição, porém, por suas características, é
bastante razoável supor que foram cortados de seus laços familiares e sociais.
Nossos achados tanto para o ano de 1880 como um todo quando olhando
especificamente para a venda da fazenda Capoava, parecem corroborar as
hipóteses levantadas por nossa revisão bibliográfica. Em 1880 o tráfico
interprovincial de escravos ainda ocorria livremente e a região cafeeira absorvia
braços escravos de outras regiões. Dentro desse contexto, por estar em uma
época de transição, podemos caracterizar Itu como uma zona de madura a
residual quanto a produção de açúcar, e prestes a se tornar superdotada
quando da invasão do café. De qualquer forma a localidade havia perdido seu
protagonismo para outras cidades e nunca mais o recuperaria.
124 MOTTA (2012), pags. 231 e 255.
125 NEVES (2010), pág. 111, com informações sobre Rio Claro retiradas de DEAN, 1976
59
4.3 A porteira fecha: o comércio de escravos em Itu às
vésperas da abolição
A dificuldade em classificar a natureza do tráfico (de saída ou de entrada) a
partir das escrituras pela falta do local de moradia dos envolvidos nos atrapalha
a conjecturar se Itu era de fato uma região madura/residual ou se estava
voltando a ser superdotada. Ainda assim, pelos informes demográficos (ver
pág. 48), sabemos que a população escrava em Itu estava declinando em meio
a uma população total que crescia. Segundo dados para 1890126, Itu contava
logo depois do fim da escravidão com uma população de cerca de mil
estrangeiros em quase 14 mil habitantes. Enquanto isso, a vizinha Campinas,
que havia observado um aumento de 1980 escravos entre 1874 e 1882127,
tinha uma população de mais de sete mil estrangeiros em 33 mil habitantes.
Podemos observar uma correlação entre aumento dos braços escravos no
período 1874-1882 e quantidade de imigrantes em 1890, visto que várias
cidades do vale do Paraíba, então em declínio econômico, segundo as
mesmas fontes, tiveram um aumento no número de escravos entre 1872 e
1884 bem menos expressivo que cidades da região mogiana e contavam com
poucos imigrantes em 1890:
Tabela 18 – Variação da população escrava entre 1872 e 1884 versus população
estrangeira em 1890
Região Mogiana
Aumento 74-82 População estrangeira 1890
Ribeirão Preto 529 1282
São Simão 417 0
Casa Branca 1822 0
Descalvado 1521 4254
Araraquara 621 1522
São Carlos 1897 2266
Pirassununga 2174 4560
Jaú 989 393
Brotas -420 924
Rio Claro 917 151
Mogi Mirim -1577 1395
Limeira 570 3257
Amparo 2500 0
Total 11960 20004
126 BASANEZI, 1998, disponível em: http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos/1890.pdf
127 CONRAD, 1975, p. 356
60
Continuação da Tabela 18 – Variação da população escrava entre 1872 e 1884 versus
população estrangeira em 1890
Região Leste e Vale do Paraíba
Aumento 74-82 População estrangeira 1890
Mogi das Cruzes -448 87
Jacareí -96 108
S, José dos Campos 228 38
Caçapava 1007 0
Taubaté 1033 7
Pindamonhangaba 459 119
São Luís -17 16
Guaratinguetá 960 254
Lorena 1126 202
Queluz 57 91
Areias 395 17
Bananal -1113 266
Total 3591 1205
Região Central
Aumento 74-82 População estrangeira 1890
Campinas 1980 7045
Capivari 423 882
Bragança -365 0
Tatuí 51 338
Porto Feliz -423 150
Itu -620 1063
Jundiaí -221 1735
Atibaia -130 249
Itapetininga -36 37
São Roque -457 175
Total 202 11674
Fontes: Basanezzi, 1998, págs. 144-145 e Conrad, 1975, p.356
Essas medidas nos ajudam a classificar Itu como uma região madura na
década de 1880, com tendência à expansão. Isso porque em boa parte das
cidades da região Mogiana, a essa altura boa parte delas cobertas de café128,
havia uma quantidade de estrangeiros bem maior que na região Central.
Enquanto as cidades do Vale do Paraíba tiveram um saldo maior de escravos
entre 74 e 82, receberam poucos imigrantes até 1890, indicando uma certa
perda de competitividade por braços livres em comparação à região Central.
Esta por sua vez, apesar da perda de escravos em boa parte de suas cidades,
128 MELO 2009, págs. 80-89
61
tinha uma quantidade alta de estrangeiros em 1890, o que indica uma maior
atratividade a mão de obra. Tudo isso, é verdade, são apenas conjecturas, mas
nos sentimos seguros em afirmar que Itu era uma cidade em transição de
produções durante a última década de vigência da escravidão(ver pág. 15).
A partir de 1881 com a imposição da taxa que praticamente proibiu o comércio
interprovincial juntamente com as expectativas sendo formadas cada vez mais
no sentido da abolição, a quantidade de escravos comercializada por ano em
Itu diminuiu sensivelmente. Entre 1881 e 1887 foram comercializados 77
homens e 43 mulheres, totalizando 120 escravos comercializados no período,
com informe individual de preço de 32 escravas e de 47 escravos em 67
escrituras, nos dando uma média de 1,79 escravos por transação. A última
venda, ocorrida em 1887, envolveu 26 escravos. Vale lembrar que apenas em
1880, haviam sido comercializados 95 escravos. A queda na quantidade dos
escravos comercializados também foi acompanhada por uma forte queda nos
preços reais a partir de 1882. Vale ressaltar que pela baixíssima quantidade de
escravos comercializada em 1884 e 1886 – e por, no caso desses dois anos,
todos esses quatro escravos serem do sexo feminino, a média de preços para
esses anos pode estar enviesada. Além disso, a própria desagregação do
mercado de escravos pode ter levado a distorções consideráveis, como as que
observaremos nos dados a seguir (desconsideramos os anos de 1884 e 1886
por não haver transações com informe individual de preço de escravos do sexo
masculino):
Tabela 19 – Quantidade de escravos comercializados em Itu por gênero entre 1880 e
1887
Homens Mulheres Razão do sexo
1880 62 33 187,8
1881 34 10 340
1882 11 7 157
1883 4 6 66
1884 0 2 -
1885 9 9 100
1886 0 2 -
1887 19 7 270
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
62
Gráfico 2 – Quantidade de escravos comercializados em Itu por ano entre 1880 e 1887
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Gráfico 3 – Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 – Ano
Base = 1880129
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
129 Índice de inflação retirado de BUESCU,1973, p.223. O período entre 1880 a 1887 foi caracterizado
por uma leve deflação de preços.
0
10
20
30
40
50
60
70
1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887
Homens
Mulheres
0
200000
400000
600000
800000
1000000
1200000
1400000
1600000
1800000
1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887
Preço real médio (Ano Base = 1880)
Preço real médio
63
Após a lei de 1885 há uma leve recuperação no comércio de escravos. Essa
recuperação talvez tenha ocorrido devido a Lei dos Sexagenários. Motta
(2012), que também observou um leve reaquecimento do mercado em sua
amostra para Piracicaba, infere que como a lei dispunha de uma lista com
preços fixos de escravos e uma taxa anual de declínio em seus valores que
chegaria a zero em treze anos, talvez as expectativas do mercado tivessem
sido alteradas na direção de um prolongamento da escravidão. Mas essas
expectativas duraram pouco: já no ano seguinte, o comércio voltou a cair
novamente130.
Conforme os anos foram passando, as distorções no mercado de escravos
ficaram mais aparentes. Não foi só a tradicional distribuição de gênero que foi
alterada, mas também os preços médios reais. A amostra pequena
provavelmente também distorce os resultados, como podemos ver no ano de
1883, quando ao contrário do esperado, o preço das mulheres superou o dos
homens. Os três escravos negociados naquele ano eram jovens e não há
aparentemente motivo para que todos custassem, como ocorreu, menos de um
conto de réis. Das cinco escravas negociadas naquele ano, quatro custavam
um conto de réis ou mais, também sem motivo aparente que as
sobrevalorizassem.
Tabela 20 – Preço médio real dos escravos por ano: para todas as faixas etárias e de 15
a 29 anos. Período de 1880-1887
Todas as faixas etárias
Homens Mulheres
1880 1822000 1237000
1881 1730260 1616910
1882 1717182 1007445
1883 716989.5 1080486
1885 716688.5 600018
1887 474100.5 426565.1
15 a 29 anos
Homens Mulheres
1880 1938462 1295833
1881 1716925 1450218
1882 1836265 1170351
1883 716989.5 967102
1885 800024 816691.5
1887 6005337 450396.3
Fonte: Escrituras de compra e vendas de escravos
130 MOTTA, 2012, p. 359
64
Gráfico 4 – Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 por gênero
– Ano Base = 1880
Gráfico 5 – Preço real médio dos escravos comercializados entre 1880 e 1887 por
gênero, faixa etária de 15 a 29 anos – Ano Base = 1880
Fonte gráficos 4 e 5: Escrituras de compra e venda de escravos
0
200000
400000
600000
800000
1000000
1200000
1400000
1600000
1800000
2000000
1880 1881 1882 1883 1885 1887
Preço médio real dos escravos: 1880-1887
Homens
Mulheres
0
500000
1000000
1500000
2000000
2500000
1880 1881 1882 1883 1885 1887
Preço médio real dos escravos entre 15 e 29 anos: 1880-1887
Homens
Mulheres
65
Algumas transações nos chamaram a atenção e embora não tivessem informes
individuais sobre o preço, continham outras informações interessantes. Em
abril de 1881, José Elias Pacheco Jordão vendeu a seu filho Elias Fausto
Pacheco Jordão131 a de 16 escravos, e houve também a troca de escravas
entre os envolvidos na transação132. José Elias foi o primeiro presidente da
Compania Ytuana de Estradas de Ferro e era um dos chefes do partido
conservador133. Já seu filho Elias Fausto foi empresário e político de
sucesso134. Foram negociados 13 escravos do sexo masculino e apenas três
do sexo feminino. Todos esses escravos eram muito jovens – tinham de 12 a
26 anos, o que explicaria seu preço alto de um conto e 875 mil réis por cabeça.
Cinco foram matriculados na província de São Paulo e os outros 11 foram
matriculados no sul e no nordeste:
Tabela 21 – Local de matrícula dos escravos transacionados entre os Pacheco Jordão
Local de matrícula Quantidade
São Paulo (SP) 2
Recife (PE) 1
Porto Alegre (RS) 1
Sorocaba (SP) 3
Ipu (CE) 1
Imperatriz (AL) 1
Souza (PB) 1
Sobral (CE) 1
Una (SP) 1
Limoeiro (CE) 1
São Cosme (CE) 1
Lapa (PR) 1
Nazaré(PE) 1
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Esta transação foi a maior até 1887, quando a maior venda do período
transacionou 26 escravos. Não há informações sobre preços individuais,
131 Fonte: http://www.arvore.net.br/Paulistana/Tenorios_2.htm
132 Decidimos não contabilizar as escravas permutadas em nossas estatísticas descritivas.
133 ZEQUINI, 2013
134 Fonte: http://www.itu.com.br/conteudo/detalhe.asp?cod_conteudo=24115
66
naturalidade e nem sobre as aptidões desses 16 escravos, apenas seu sexo e
local de matrícula.
Dos 53 escravos para os quais temos informes sobre província de origem e
local de matrícula (lembrando que aí não estão incluídos os escravos
negociados em 1887, pois a maioria deles, não tinha informe de origem), 46
nasceram na província de São Paulo. Dos que eram de outras províncias (Rio
Grande do Sul, Bahia, Maranhão, “do norte” e um escravo de nação), apenas
dois foram matriculados em outras províncias e logo no começo do período,
sem nenhuma menção ao pagamento do imposto sobre o comércio
interprovincial. Ou seja, a grande maioria dos escravos comercializados no
período dos quais temos informes detalhados não sofreram movimentações
interprovinciais após 1872-73.
No mês seguinte à transação dos Pacheco Jordão, Frankin Basilio de
Vasconcellos alugou um escravo de nome Couto, de 26 anos, do serviço da
roça e crioulo de Itu pela quantia de um conto e 200 mil réis, pelo período de
sete anos, a Joaquim Egydio do Campos Bicudo. Curiosamente, como a
transação ocorreu no dia 9 de maio, a data do fim do contrato sete anos depois
foi poucos dias antes de abolição total. Esse negócio não se mostrou tão bom
para Franklin no futuro, pois outros escravos com características similares
foram vendidos no mesmo ano por uma quantia maior que um conto de 200 mil
réis.
Outra escritura que chama a atenção é uma escritura de destrato data de 13 de
junho de 1882. A transação ocorrida originalmente em abril de 1882 entre João
Evangelista de Carvalho que vendeu para José Sampaio Gois seu escravo
Innocencio, de 18 anos, do serviço da roça, natural de Sarapuí – SP, localidade
próxima a Sorocaba. Poucos meses depois, devido ao escravo ser fugitivo, a
escritura foi anulada como se não tivesse ocorrido.
Um aspecto interessante do período é uma mudança na composição da
aptidão dos escravos transacionados. Dos 65 escravos para os quais temos o
informe sobre aptidão e foram vendidos até 1886, apenas 34 são do serviço da
roça, ou seja, enquanto em 1880 84% dos escravos eram do serviço da roça,
entre 1881 e 1886, essa proporção foi de apenas 52%. Conseguimos identificar
também uma tendência declinante na proporção de escravos do serviço da
roça ao longo da década135.
135 Para esta análise, também escolhemos deixar de fora os 26 escravos negociados em 1887.
Analisaremos a transação separadamente.
67
Gráfico 6 – Evolução da quantidade de escravos vendidos por aptidão: 1881-1886136
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Há também uma maior diversidade de ocupações, se compararmos apenas ao
ano de 1880. Além disso, vale notar que os homens ocupam a mesma
diversidade de profissões que as mulheres137. Se no serviço da roça os
homens reinam absolutos, no serviço doméstico, para escrituras das quais
conseguimos informes de profissão, a presença das mulheres é muito mais
forte, assim como:
Tabela 22 – Escravos negociados segundo sexo e ocupação (Itu, 1881-1886)
Ocupação Homens Mulheres
Serviço da roça 31 3
Serviço doméstico 2 10
Cozinheiro 0 5
Pagem 4 2
Pedreiro 1 0
Carreiro 1 0
Carpinteiro 1 0
Costureira 0 2
Mucama 0 2
Fonte: Escritura de compra e venda de escravos
136 Escolhemos o ano de 1887 dessa amostra por ter ocorrido apenas uma única transação envolvendo
grande quantidade de escravos.
137 MOTTA 2012 p. 315 – Para uma amostra de Piracicaba, é encontrada maior diversidade de profissões
para os homens para o mesmo período, assim como predomínio das mulheres no serviço doméstico.
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
1,881 1,882 1,883 1,884 1,885
Evolução da quantidade de escravos vendidos por aptidão:1881-1885
Roça
Doméstico
Cozinha
Pagem
68
Ao olharmos para os informes sobre a idade dos escravos, podemos perceber
o impacto da lei do ventre livre. Apenas um escravo transacionado – Paula, de
nova anos, que teve sua metade vendida em 1885 e era parte de uma herança,
pareceu “burlar” a lei (não havia nada em sua escritura apontando que ela
poderia ser vendida). Todos os outros escravos vendidos tinham nascido antes
de 1871. Quanto aos sexagenários, não tivemos em nossa amostra para o
período nenhum escravo comercializado com idade superior aos 60 anos de
idade138. Dos 120 escravos para os quais temos o informe de idade, 71 tem
entre 15 e 29 anos (60% da amostra) e 32 (26%) tem entre 30 e 44 anos.
Apenas 6 (5%) tinham até 14 anos e 11 tinham mais de 45 anos (9%), sendo
que o escravo mais velho negociado no período tinha 56 anos e foi negociado
em 1881.
Tabela 23 – Idade média por ano do escravos vendidos em Itu entre 1881 e 1887
Idades médias por ano
Homens Mulheres
1881 25 28
1882 23 27
1883 24 25
1884 0 25
1885 24 28
1886 0 35
1887 36 28
1881-1887 27 28
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos
Podemos observar que a média por ano fica muito próxima a média para o
período, com algumas exceções: para 1886 apenas duas mulheres foram
vendidas, sendo uma delas com 52 anos de idade, puxando a média para
cima. Já em 1887, a amostra é bem maior, mas assim como na fazenda
Capoava, envolvia muitos escravos de uma mesma fazenda, o que pode
indicar uma permanência prolongada desses escravos em tal propriedade.
Finalmente, nos debruçaremos sobre a última transação de compra e venda de
escravos feita na história de Itu. Ela ocorreu bem tarde – aos 22 dias de
outubro de 1887, poucos meses antes da abolição e mais de um ano após o
ultimo registro que tinha sido feito, datado de agosto de 1886.
138 MOTTA, 2012, p. 297-298: para a cidade de Areias, verificou que com o impacto nas faixas etárias
extremas, as faixas intermediárias (15 a 29 anos e 30 a 44) ganharam maior importância.
69
A essa altura, diversos proprietários de escravos estavam oferecendo a
liberdade em troca de mais algum tempo de serviço, às vezes acompanhados
por um salário. Segue abaixo algumas notícias do jornal Imprensa Ituana, entre
1887 e 1888, ilustrando essa tendência:
Figura 5 - Notícia sobre libertação de escravos
Figura 6 - Notícia sobre libertação de escravos
Fonte figuras 5 e 6: Jornal Imprensa Ytuana, 10/03/1888
Figura 7 - Notícia sobre libertação de escravos
Fonte: Jornal Imprensa Ytuana, 10/08/1887
Encontramos diversas referências a essas libertações entre 1887 e 1888. Elas
deixam clara a expectativa do momento: a escravidão duraria pouco tempo.
Mas talvez os fazendeiros não esperavam que ela durasse tão pouco como de
fato aconteceu.
70
Em 1884 morreu o senhor José Balduino do Amaral Gurgel:
Figura 8 - Nota de Falecimento
Fonte: Imprensa Ytuana, 12/10/1884
Muito pouco tempo depois, em dezembro do mesmo ano como relata a edição
de 7 de dezembro do mesmo jornal sua viúva Dona Maria do Amaral Gurgel
também veio a falecer. Um ano antes, foi noticiado o júri de um escravo do
falecido senhor do Amaral Gurgel, acusado do assassinato de seu reitor, tendo
sido condenado a prisão perpétua, o que ilustra um pouco como estava o clima
da época.
Figura 9 - Notícia sobre júri de escravo
Fonte: Imprensa Ytuana, 02/12/1883
Desde 1869 estavam proibidos os leilões de escravos, mas as “praças
judiciais”, ou seja, vendas supervisionadas por autoridades locais para o
pagamento de dívidas ou divisão de bem entre herdeiros eram permitidas139.
Foi assim que três anos após o falecimento de seus pais, os órfãos Amaral
139 CONRAD, 1975, p.107
71
Gurgel viraram notícia em Itu: a venda judicial de sua herança de 26 escravos
foi anunciada pelo juiz de órfãos de Itu algumas vezes ao longo de 1887.
Figura 10 - anúncio da venda judicial da herança dos órfãos Amaral Gurgel
Fonte: Imprensa Ytuana, 31/08/1887
A venda foi concretizada em 22 de outubro do mesmo ano e todos os escravos
foram vendidos, pela quantia de 12 contos de réis, para o poderoso fazendeiro
Manuel Ernesto da Conceição, o conde de Serra Negra. Nossa sorte em
encontrar o anúncio é que assim podemos estimar os preços individuais
desses escravos. Nem todos os escravos anunciados tiveram seus preços
discriminados, mas por existirem outros escravos com características parecidas
e seus preços definidos nos anúncios, pudemos estimar o preço dos cinco
escravos cujo valor não foi determinado.
Estimamos o preço de venda individual dos escravos multiplicando o preço do
anúncio pelo diferencial entre os valores totais da transação – o valor da
transação representou 66% do valor total anunciado. No valor total da idade,
colocamos a idade média. Dos 26 escravos envolvidos na transação, 22 eram
72
do serviço da roça, dois não tiveram aptidão identificada, um era feitor e um
outro era carpinteiro140. O preço médio por escravo alcançou apenas 460 mil
réis, sendo os escravos prime comprados por cerca de 600 mil réis – valor
entre três e cinco vezes menor que o valor que poderiam ter sido vendidos até
o começo dos anos 80.
Tabela 24 – Escravos vendidos pelos órfãos Amaral Gurgel: preço do anúncio versus
preço individual de venda estimado e idade (continua na página seguinte)
Nome Idade Preço no anúncio Preço de venda estimado
Marcelino 45 600000 400500
Sebastiana 36 600000 400500
Gabriel 20 900000 600750
Zacharias 29 900000 600750
Maria 18 675000 450562.5
Joaquina 39 450000 300375
Juliano 30 800000 534000
Zeferino 29
534000
Lourenço 45 600000 400500
Pedro 30
534000
Manoel 40
400500
Ricardo 35 800000 534000
Roberto 50 400000 267000
Marcelino 50
267000
Cyriaca 31 600000 400500
João 45
400500
Lydia 22 675000 450562.5
Constantino 36 800000 534000
Leodoto 50 400000 267000
Josepha 30 800000 534000
Zacharias 21
600750
Job 25 900000 600750
Maximiamo 35 800000 534000
Esther 21 675000 450562.5
Cesario 27 900000 600750
Timotheo 41 600000 400500
Total 33.8 17975000 11998312.5
140 Como esta foi a única transação ocorrida em 1887, informações sobre a distribuição de gêneros e
preços médios podem ser encontradas nas páginas de 59 a 61.
73
Fonte: Escrituras de compra e venda de escravos e jornal Imprensa Ytuana de
31/08/1887
Considerando que cada escravo em idade produtiva conseguia em média
quase 800 mil réis de café por ano, em menos de dois anos o fazendeiro já
teria coberto seus custos(ver pág. 35). Obviamente não usamos o mesmo
instrumental usado por Mello(1977), porém chegamos a mesma conclusão que
ele(ver pág 33): a essa altura, ninguém mais acreditava que a escravidão fosse
durar muito. O Conde de Serra Negra assumiu um enorme risco.
Alguns dias antes da data da venda, a 18 de outubro, o foi noticiada uma fuga
na região. O relato dizia que os escravos fortemente armados haviam
derrotado a força policial local no caminho de Salto. Houve troca de tiros e
feridos quando os negros avistaram as forças policiais, mas rapidamente
atravessaram a cidade rumo a São Paulo. Alguns estavam a cavalo e entre os
negros havia mulheres e crianças. Essa notícia, assim como diversas outras,
ilustra bem o clima de tensão da época141.
Mesmo com a onda de libertações que estava ocorrendo em 1887 e também
com a proposta dos fazendeiros de libertar os escravos após um certo período,
as fugas em massa de escravos – fenômeno novo que pegou os fazendeiros
de surpresa, continuaram com força no segundo semestre de 1887. As
propostas dos fazendeiros não mais contentavam os escravos: eles queriam
liberdade imediata142.
Manuel Ernesto da Conceição era filho do também poderoso Francisco José da
Conceição, o Barão de Serra Negra. No dia 10 de dezembro de 1887, as
agitações que ocorriam em várias fazendas da província atingiram a
propriedade da família:
“No final de novembro e início de dezembro, a agitação parecia aumentar em
São Paulo. Os jornais publicavam relatos cotidianos de escravos abandonando
as fazendas, alguns deles armados. Em certos pontos, os fugitivos saqueavam
e assaltavam nas estradas, recusando trabalhar. As unidades do exército
enviadas para controla-los nada fizeram. Em 22 de novembro, o Barão de
Serra Negra libertou mais de quatrocentos escravos com contratos de três
anos, esperando sem dúvida que isso contentasse suas exigências e os
conservasse pacificamente no trabalho, mas três semanas mais tarde esses
escravos estavam cercando a “casa da moradia” e o próprio barão só
141 Essa fuga também foi relatada por CONRAD, 1975, p. 305
142 CONRAD, 1975, p.306
74
conseguiu escapar com vida devido à ajuda de “escravos fiéis”, que repeliram o
ataque dos rebeldes”.143
Figura 11 - Notícia sobre escravos em fuga
Fonte: Jornal Imprensa Ytuana, 14/12/1887
Não sabemos se os escravos comprados pelo Conde de Serra Negra estavam
envolvidos na rebelião da fazenda de seu pai, mas seguramente os herdeiros
do Amaral Gurgel tiveram muita “sorte” ao encontrarem um comprador para
seus escravos. Em 28 de outubro de 1887 em meio a toda essa agitação
abolicionista, foi anunciada uma outra venda judicial, dessa vez referente a
uma execução que fazia João Baptista Correa de Sampaio aos herdeiros do
finado José Ferreira Alves Gila. Os 14 escravos com idade média de 29 anos
foram ofertados por um preço médio de apenas 350 mil réis – quase metade do
valor pelos quais os escravos dos órfãos Amaral Gurgel foram ofertados e
cerca de 80% do valor pelo qual eles foram pagos menos de dois meses
depois. Não sabemos se o fato de ser uma execução puxou muito o preço dos
escravos para baixo, mas sem dúvida, muita gente já não levava mais a sério a
143 Correio Paulistano, 22, 27 e 28 de novembro e 13 de dezembro de 1887 apud CONRAD, 1975, págs.
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escravidão: a transação nunca foi efetuada o esses 14 escravos nunca mais
foram mais vendidos144.
5. Conclusão
As características por nós encontradas no comércio de escravos em Itu
corroboram, na maior parte dos casos, os achados de autores sobre o assunto.
Verificamos na seção 4.2 o peso do tráfico transatlântico antes de 1850, numa
época em que Itu era uma importante produtora de açúcar, na transação da
família Nardi que continha grande quantidade de escravos velhos. Também
verificamos em outras transações ocorridas no ano de 1880 a presença de
escravos comercializados no tráfico interprovincial, vindos do norte, nordeste e
sul do país entre o fim do tráfico transatlântico e o fim do tráfico interprovincial.
Além disso, encontramos preços altos e proporções etárias, de gênero e se
aptidão parecidas com o que esperávamos.
A partir de 1881, o cenário “previsível” de 1880 se esfacela. Houve anos que
apenas mulheres foram comercializadas, a proporção de escravos no serviço
da roça diminui e as transações em média envolviam menos escravos. Houve
distorções nos preços e quantidades dos escravos transacionados, tornando
nossa amostra muito pequena para dela podermos tirar conclusões
generalizáveis145.
O que sim ficou claro é: os fazendeiros paulista sabiam que a escravidão
estava chegando ao fim. Os desequilíbrios no mercado de escravos
aparentemente foram remediados pela mão de obra imigrante. Como
discutimos no começo da seção 4.3, localidades com mais imigrantes logo
após o fim da escravidão também foram aquelas que tiveram o maior saldo de
escravos transacionados na década anterior. Assim, Itu se preparou para
abraçar o café com força entre o final do século XIX e o começo do século XX.
144Jornal Imprensa de Ytu, 22/10/1887 Apesar de ser possível supor que ela não ocorreu devido ao
cenário da época, é possível também que ela tenha sido registrada em outro cartório.
145 A digitalização e tabelamento dessas escrituras seria fundamental para criar um panorama do comércio
de escravos na província. Existem estudos isolados, mas ainda não um esforço conjunto para preservar
essas fontes primárias. Ver http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/05/1633017-cartorios-de-sao-
paulo-guardam-registros-da-escravidao.shtml
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6. Fontes e referências bibliográficas
6.1 Fontes primárias manuscritas
Livros especiais para transações envolvendo escravos (termos de abertura)
Fundo Cartório de Notas de Itu, livro 32 - “Servirá este livro para n’elle se lançar
as escripturas de escravos, do 1º Tabellião desta cidade, e são suas folhas
rubricadas com a minha rubrica – Assis Pacheco Junior – de que uso. Itu, 14
de fevereiro de 1880. Francisco de Assis Pacheco”
Fundo Cartório de Notas de Itu, livro 34 – “Servirá este livro para o lançamento
das escrituras de compra e venda de escarvos. São suas párginas rubricadas
com a minha rubrica que diz (....) leva no fim do termo de encerramento. Itu, 2
de junho de 1876. ( Assinatura e título Ilegíveis)“
6.2 Fontes primárias impressas ou disponíveis na internet
BASSANEZI, M. S. C. B. (org.), 1998. São Paulo do passado: dados demográficos. Disponível em: http://www.nepo.unicamp.br/publicacoes/censos.html Coleção das leis do império do Brasil, 1808-1889. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio Jornal "A cidade de Ytu". Disponível em: http://www.obrasraras.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269 Jornal "Imprensa Ytuana". Disponível em: http://www.obrasraras.usp.br/xmlui/handle/123456789/4269 LUNÉ, A. J. B. (org.)Almanak da província de São Paulo para 1873. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/bbd/handle/1918/00038100#page/1/mode/1up Voyages database. Banco de dados com informações sobre mais de 35 mil viagens de navios negreiros. Disponível em: http://www.slavevoyages.org/tast/database/search.faces
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6.3 Fontes secundárias (autores citados)
BUESCU, M. 300 anos de inflação no Brasil. Rio de Janeiro. APEC: 1973. CERDAN, M. A. O tempo que os escravos tinham para si: um estado sobre autonomia escrava em Itu de 1850 a 1888. Tese(doutorado em história) Franca: UNESP, 2013. CERDAN, M. A. Praticando a liberdade: um estudo sobre resistências escravas em Itu (1850-1873). Tese (mestrado em história). Uberlândia: UFU, 2004. CONRAD, R. E. Os últimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 1975. CONRAD, R. E. Tumbeiros: o tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. GERBOVIC, T. O olhar estrangeiro em São Paulo até meados dos oitocentos: relatos de viajantes ingleses e norte-americanos. Tese (mestrado em história). São Paulo: USP, 2009. GERSON, B. A escravidão no império.Rio de Janeiro: Editora Pallas, 1975. GRAHAM, R. "Another Middle Passage? The Internal Slave Trade in Brazil". In: JOHNSON, W. (ed.). The Chattel Principle: Internal Slave Trade in the Americas. New Haven & London: Yale University Press, 2004, p. 291-324. KLEIN. H. S. "American Slavery in Recent Brazilian Scholarship, with Emphasis on Quantitative Socio-economics Studies". In: Slavery and Abolition. Routledge, vol. 30, p.111-133, 2009. LOPES, L. S. "Os proprietários de escravos e a estrutura da posse na antiga freguesia de São Simão, 1835". Estudos Econômicos,vol. 42, n.2, pag. 363-400. São Paulo, abr-jun. 2012. LUNA, F. V. & KLEIN, H. S. Slavery and the economy of São Paulo, 1750-1850. Stanford: Stanford University Press, 2003. LUNA, F. V. & KLEIN, H. S. Slavery in Brazil. Cambridge University Press, 2010.
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