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ENTRE FACTOS E RAZÕES CONTEXTOS E ENQUADRAMENTOS DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA Armando Marques Guedes 1

Entre Factos e Razões. Contextos e Enquadramentos da Antropologia Jurídica

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ENTRE FACTOS E RAZÕESCONTEXTOS E ENQUADRAMENTOS DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA

Armando Marques Guedes

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PREFÁCIO

Desde há algum tempo que tem sidolamentada a paucidade, tanto nos quadrosdos estudos jurídicos como nos dosestudos antropológicos, de trabalhossobre Antropologia Jurídica dotados deum mínimo de fôlego. A situação decarência no que a tanto diz respeito nãose limita ao nosso País. Como um rápidoescrutínio da bibliografia existentefacilmente nos mostra, têm sido raros –sem embargo da notável valia dos estudosaqui e ali produzidos - os esforçosteórico-metodológicos de conjuntolevados a cabo quanto a esta tãoimportante subdisciplina. E isto apesarde serem bastante numerosas asetnografias publicadas cujo carácter émonográfico, muitas vezes, aliás, damais alta qualidade técnica e da maiorexaustividade empírica. No texto queapresento tento, por um lado, colmatarparte da lacuna gerada por tal pobrezano plano da teorização: Nele podem

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porventura ser encontradas, por outrolado, explicações implícitas para aescassez verificada.

O estudo que ora publico retoma,sem mais do que alterações estilísticasmenores e por via de regra bastantesuperficiais, o texto do relatório dedisciplina que apresentei na Faculdadede Direito da Universidade Nova deLisboa (FDUNL), a 19 e 20 de Maio de2005, no quadro das provas públicas deagregação a que aí me submeti. Adisciplina a que o texto se refere é ade Antropologia Jurídica e Política, decuja regência o Conselho Científico daFaculdade a que pertenço me temincumbido desde o ano lectivo de 1999-2000, a primeira (e todavia a única) vezque tal cadeira constou do currículo deuma qualquer Universidade portuguesa,pública ou privada. O título de Agregadoem Direito, no grupo de CiênciasJurídicas e Afins, na área da Sociologiado Direito, foi-me concedido porunanimidade pelos membros de um júrimuitíssimo ilustre, presidido pelo Vice-Reitor Professor Doutor José Rueff.

O júri proposto em plenário doConselho Científico da Faculdade,nomeado pelo Reitor da Universidade Novade Lisboa e cuja composição foipublicada em Diário da República,

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integrou os Professores Doutores AdrianoMoreira, Diogo Freitas do Amaral,Boaventura de Sousa Santos, António M.Hespanha, Brian J. O’Neill, José Lebrede Freitas, João Caupers e Maria ManuelLeitão Marques. O Professor António M.Hespanha, Presidente do ConselhoCientífico e Professor Decano da FDUNL,viu-se na contingência de acrescentar opeso da discussão do meu Curriculum Vitaeaos muitos outros que a Faculdade e aReitoria lhe tinham já atribuído. Estou-lhe reconhecido pela disponibilidade quemanifestou ao aceitar esse encargo, bemcomo pelos comentários atentos e muitasvezes pessoais que formulou no que tocaà parcela do meu atribulado percursoacadémico (as investigações que tenhovindo a empreender em África) em quecentrou a sua bem disposta intervenção.

A arguição da Lição, que em boahora decidi gizar na área da CiênciaPolítica, uma lição subordinada ao temada aplicabilidade do conceito desociedade civil à Angola pós-colonial,foi levada a cabo pelo Professor AdrianoMoreira. Escusado será decerto sublinhara sabedoria com que o Professor AdrianoMoreira levou a tarefa a bom porto;resta-me agradecer-lhe a erudição, aargúcia, a generosidade, e acumplicidade intelectual com que

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desempenhou uma tarefa que as oitenta etal páginas dactilografadas a um espaçodo texto que redigi (e que antes lheenviei, tal como à totalidade dosrestantes membros do júri) seguramentetornavam pesada.

Coube ao Professor Brian O’Neill adiscussão do Relatório que deu corpo aoestudo se segue; o que sem surpresas fezcom cuidado, rigor, pormenor, esimpatia. Dos seus comentáriosresultaram alguns pequenos masimprescindíveis ajustes, pelos quais lheagradeço. Não fui sujeito às críticasradicais nem às tomadas veementes deposições contrárias que, em provas destetipo, tantas vezes alvejam o candidatoou o trabalho produzido. Porconseguinte, nada acrescentei aoRelatório que antes depositara naReitoria, a não ser curtas frases deesclarecimento num ou notro ponto do meutexto original, introduzidos no intutitode iluminar recantos que nele terãoporventura ficado menos claros. Esperocom isso ter feito justiça às achegasque o Professor Brian O’Neill teve abondade de equacionar, e que nalgunscasos tão úteis me foram.

Teria sido difícil ter tido um júrimelhor do que aquele que me calhou. Aresponsabilidade pelo trabalho que

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apresento permanece no entanto, como éóbvio, inteiramente minha.

ÍNDICE

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UM ENQUADRAMENTO GENÉRICO E UM MAPA

Parte I

A ANTROPOLOGIA E A ANTROPOLOGIA JURÍDICA

1. SOBRE O ÂMBITO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA

2. DAS QUESTÕES DE CIRCUNSCRIÇÃODISCIPLINAR

3. AS ESPECIFICIDADES DE UMA ANTROPOLOGIAJURÍDICA DELINEADA ENQUANTO FIGURA CONTRAFUNDO

Parte II

A PROBLEMATIZAÇÃO “CLÁSSICA” PRECURSORADA ANTROPOLOGIA JURÍDICA

4. A DELIMITAÇÃO PROGRESSIVA DOS OBJECTOSDA ANTROPOLOGIA JURÍDICA 4.1. HENRY S. MAINE. A evoluçãocomo maturação 4.2. KARL MARX. Os percursos eos ingredientes das formas de dominação

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4.3. ÉMILE DURKHEIM. Ospercursos e os ingredientes das formasde solidariedade 4.4. MAX WEBER. A razão enquantoinstituição

Parte III

A ANTROPOLOGIA JURÍDICA EM CONTEXTO

5. A ENTIDADE “CLÁSSICA” TRANSFORMADA

6. A CAMINHADA DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA 6.1. ENTRE FORMAS E FUNÇÕES 6.2. ECOS E REVERBERAÇÃO

7. O ACELERAR DO PASSO 7.1. DAS FORMAS E FUNÇÕES AOSPROCESSOS 7.2. CONTEXTOS E FABRICAÇÕES 7.3. A AUTONOMIA SUBDISCIPLINAREM RISCO

8. A “SOLUÇÃO” PÓS-MODERNA 8.1. SOCIOCULTURAL OUPRAGMÁTICO? 8.2. NAS FRONTEIRAS DIFUSAS DOJURÍDICO E DO POLÍTICO

Parte IV

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AO ENCONTRO DOS LIMITES NASGENERALIZAÇÕES COMPARATIVAS DA

ANTROPOLOGIA JURÍDICA

9. O JURÍDICO E A JURIDICIDADE ENTRE ATAXONOMIA TRADICIONAL E AS SEMELHANÇAS DEFAMÍLIA

10. NA VIA DE UM ENQUADRAMENTO UNITÁRIOMAS COMPÓSITO?

11. OS PAPÉIS SOCIAIS DO “JURÍDICO” E DAJURIDICIDADE

12. UM CURTO EXEMPLO PARADIGMÁTICORELATIVO ÀS FILIPINAS

13. IMPLICAÇÕES PARA O DELINEAR DE UMADISCIPLINA DE ANTROPOLOGIA JURÍDICA

Parte V

TRÊS EXEMPLOS ETNOGRÁFICOS DE ANÁLISESANTROPOLÓGICO-JURÍDICAS

14. A RESOLUÇÃO HÍBRIDA DE LITÍGIOS NUMCAMPO DE REFUGIADOS NO HUAMBO, EM ANGOLA 14.1. AS FORMAS “TRADICIONAIS”DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS EM ANGOLA

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14.2. A RESOLUÇÃO-ENCAMINHAMENTO DE CONFLITOS E AS“AUTORIDADES TRADICIONAIS” EM ANGOLA 14.3. A RESOLUÇÃO DE CONFLITOSNO SAMBO E NO BAILUNDO 14.4. OS CONFLITOS E A SUARESOLUÇÃO NO CAMPO DE DESLOCADOSCASSEQUE 3, HUAMBO

15. O QUADRO SOCIOCULTURAL DAS FORMAS“ESPONTÂNEAS” DE “PROCESSAMENTO” DE LITÍGIOSEM S. TOMÉ E PRÍNCIPE 15.1. ALGUNS DOS “IDIOMAS”MÍSTICOS MAIS CORRENTES NAS CONVERSASSOBRE CONFLITOS EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE 15.2. CURANDEIROS E MESTRES,FEITIÇARIA E FEITICEIROS

16. O “POLÍTICO”; O “JURÍDICO” E O PODERPERFORMATIVO NA INTERPRETAÇÃO PÚBLICA ECOLECTIVA DOS SONHOS ENTRE OS ATTA DASFILIPINAS 16.1. OS ATTA 16.2. OS SONHOS DOS ATTA 16.3. AS INTERPRETAÇÕES DESONHOS COMO LINGUAGEM E COMO ACÇÃO 16.4. HISTÓRIAS DE CASO DEINTERPRETAÇÃO PÚBLICA DE SONHOS 16.5. DISCUSSÃO 16.6. ENQUADRAMENTOS ECONCLUSÕES

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17. UM BALANÇO

Parte VI

A DELINEAÇÃO DE CASOS: UM EXEMPLOPARADIGMÁTICO DE VÁRIAS DIFERENÇASDIACRÍTICAS ENTRE O DIREITO E A

ANTROPOLOGIA JURÍDICA

18. ENTRE O “CASO” NA ANTROPOLOGIA E O“CASO” NO DIREITO

19. A DENSIDADE EMPÍRICO-FACTUAL DOSCASOS ANTROPOLÓGICOS

20. UMA ESTRATÉGIA DE ACRESCENTOS?

21. ENTRE FACTOS E RAZÕES 21.1 O PREÇO DA CASUÍSTICAJURÍDICO-ANTROPOLÓGICA

Parte VII

POR UM PAPEL PARA A ANTROPOLOGIAJURÍDICA NO ENSINO DO DIREITO

22. DO PAPEL TÁCTICO DA ANTROPOLOGIAJURÍDICA

23. OS PERCURSOS DIDÁCTICOS

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24. A CONSCIÊNCIA PROGRESSIVA DAALTERIDADE

25. A BOA FRUIÇÃO ESTRATÉGICA DO ENSINO DAANTROPOLOGIA JURÍDICA 25.1. A DIVERSIDADE NA UNIDADE 25.2. A UNIDADE NA DIVERSIDADE

Parte VIII

ENSINO, PROGRAMA E BIBLIOGRAFIA

26. O ENSINO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA NOESTRANGEIRO

27. O ESTUDO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA EMPORTUGAL

28. O ENQUADRAMENTO DO PROGRAMA 28.1. O DESIGN DO PROGRAMA 28.2. O CONTEÚDO DO PROGRAMA

29. UM PROGRAMA E UM EXAME

Parte IX

BIBLIOGRAFIA GERAL DESTE ESTUDO

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UM ENQUADRAMENTO GENÉRICO E UM MAPA

A sociologia do direito e a antropologiado direito [...] têm vindo a darcorpo a uma adesão implícita aoshorizontes problemáticos definidos pelafilosofia do direito e pela dogmáticajurídica.Boaventura de Sousa Santos, ODiscurso e o Poder (1980: 5).

1.

Apesar de um alvorecerauspicioso, durante anos a fio osantropólogos jurídicos foram forçadosa tentar afirmar-se contemplandohorizontes alheios: os dos juristas.Uma penetração de domíniospreviamente ocupados, sobretudoquando o arrumo a que estes estãosujeitos responde a uma presençaefectiva de peso, comporta sempre

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tais riscos; e nos enquadramentosintelectuais e nos meios académicosnovecentistas fundacionais não eranem fácil nem simples fugir-lhes.Muitos dos esforços formativos econstitutivos da subdisciplina podeme devem assim ser encarados comooutras tantas reacções de adaptação eposicionamento relativo, já quedurante um longo período esteve emcausa uma emancipação relativamente auma tutela “soberana” por via deregra pouco desejada.

Na sua fase inicial deconsolidação, e perante um cenáriotão pouco convidativo como o que atraço grosso acabei de desenhar, oandar da carruagem jurídico-antropológica foi tudo menos enxutoou linear. Mesmo quando nãoidentificada como tal, asubalternidade foi decerto sentidacomo pesada. O reconhecimento de umaautonomização da subdisciplina que sequeria implantar tardou. E osesforços dos praticantes, se nãodeixaram muito a desejar, mostraram-se morosos, dadas as exigências doque foi muitas vezes visto como umacontenda territorial em que se

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misturavam resistência e colaboração.Ao longo de três gerações deanalistas, reinou uma dolorosaambivalência, cujos traçosdistintivos há que saber evidenciar.

Sem quaisquer pretensõeshistoricistas, a minha primeirafinalidade, neste estudo, é a deensaiar um esboço tão cuidado quantopossível de algumas dasespecificidades conjunturais emresultado inicialmente assumidas pelaAntropologia Jurídica e da suaprogressão consequente; de uma ou deoutra maneira, as quatro partes deabertura deste trabalho, quecorrespondem a outros tantoscapítulos, versam questões a talinterligadas. Com todos os cuidadossuplementares, nas restantes parcelasdo que ora apresento tento delinearas linhas de força do que tem sido aafirmação contestada e laboriosa dasubdisciplina.

Descendo ao pormenor: emconformidade com um cenário deimplantação como esse, o meu primeirotema de enquadramento, a cuja macro-contextualização proponho dedicar aspróximas páginas, exibe duas faces;

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ou melhor, duas tónicas que, comoiremos verificar, puxam em direcçõesopostas. Por um lado, o campo deinvestigação da Antropologia Jurídica,enquanto disciplina sociológica, éordenado por análises e pelaformulação de generalizações tãoempiricamente fundamentadas quantopossível sobre as sociedades humanas,as suas estruturas organizacionaispróprias e os padrões derepresentações que as sustentam; poroutro lado, no entanto, o “jurídico”,em todos os seus aspectos e em todasas versões e conglomeradosrepresentacionais e comportamentaisem que se manifesta, forma o objectoespecífico sobre o qual se debruçamas investigações que lhe cabe,enquanto Antropologia Jurídica,empreender. A Antropologia Jurídicaostenta assim uma missão dupla: a deanalisar de uma perspectivaantropológica, e em princípio segundometodologias tradicionais nadisciplina, os domínios das práticase representações “jurídicas”.

Essa dupla missão, que numsentido forte define e localiza aAntropologia Jurídica, situando-a,

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gera e circunscreve aquilo a quechamo uma tensão fundacional de base noque toca às investigaçõesempreendidas pelos antropólogosjurídicos: encerra uma contraposiçãoentre, por um lado, um projectoindutivo, que tenta por intermédio desucessivas generalizações baseadas emextrapolações gizadas com base emexemplos etnográficos identificar umdomínio “jurídico” pensável enquantouma entidade a ir determinando deforma progressiva; e, por outro lado,a circunstância de se terincessantemente de contrabalançar atentação de adoptar de maneiraacrítica noções oriundas de outroshorizontes, presumindo quantas vezesa imanência de um campo jurídicocristalizado, um domínio em largamedida apríoristicamente deduzido apartir das exigências normativas doDireito, e da experiência socialdirecta, ou das agendas sócio-políticas, de analistas provenientessobretudo de meios jurídico-académicos “modernos” e ocidentais.

Trata-se de uma tensão, alego,cujo percurso e metamorfoses têmpontuado muitos dos encadeamentos

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lógicos e cronológicos daAntropologia Jurídica enquantosubdisciplina científica. E é umatensão que tem andado de mãos dadascom um contraposicionamento que foiencetado e encenado em palcos muitoconcretos.

Não é difícil retratar o trajectoa que aludo numa frase, ainda que talpossa ser algo simplista. Passando deum mapa físico a um político: desdeos seus primórdios a AntropologiaJurídica tem vivido como queaprisionada entre, de um lado,estudos levados a cabo porantropólogos, portadores de umprojecto científico tendencialmente“cosmopolita” (ao nível dasgeneralizações que visa produzir) e,de um outro lado, formulaçõesequacionadas por juristas “puros eduros” acantonados por detrás dassuas próprias “portas férreas”, quedão voz a exigências normativasbastante localizadas e muitoconstrangentes no que diz respeito àsconstruções nocionais que produzem;formulações essas que os juristasdurante muito tempo conseguiramdeslocar das suas frentes “naturais”

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de confrontação - asinterdisciplinares - transportando oshorizontes conceptuais que a montantedelas iam desenvolvendo para ointerior dos campos deproblematização dos antropólogos eimplantando-os (rasgando-os talvezseja um melhor termo) em domíniossubdisciplinares que não eram osseus.

Reside aí, naturalmente, a razãoprincipal que me levou a decidirdedicar os capítulos iniciais dopresente estudo à lógica doencadeamento-progressão das váriasfases pelas quais a subdisciplina tempassado: as consequências de umenquadramento tão ambivalente como oque se verificou não foram desubestimar. Como tentarei demonstrar,as duas vertentes que identifiqueiparecem-me irredutíveis uma à outra.Essa irredutibilidade exprimiu-se emvários palcos: as contraposições aque aludi operam seguramente, pelomenos em parte, como correlatos dedificuldades conceptuais e“racionais” abstractas; masconfiguram decerto também umaexpressão de conflitos disciplinares

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“territoriais” cuja lógicatransparece ser em grande partecorporativa. Ou seja, a umaambivalência tensional, tornadaexpressa no plano das ideias e dasconceptualizações, vieram-seacrescentar “interferênciassubstantivas” ligadas a diferendosdemarcacionais (no sentido de“fronteiriços”) mais concretos.

Parece-me vantajoso pormenorizarquais as características “político-topográficas” das “trincheiras”resultantes: a meu ver, asconfigurações sucessivas que asubdisciplina da AntropologiaJurídica tem assumido respondem, emlarga medida, aos vários equilíbrios,instáveis e sempre temporários, dasmúltiplas forças que, ora de um ladodo binómio disciplinar (o“antropológico” tradicional), ora dooutro (o “jurídico” tradicional), avão conformando. Equilíbrios essesque, reitero, se verificam tanto noexterior da Antropologia Jurídica(designadamente na relação desta comos estudos jurídicos), como no seuinterior, um interior por estes últimospenetrado e “colonizado”. Ou seja, os

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processos dinâmicos de que dou contano texto inscrevem-se como etapas nopercurso seguido pelo desenrolar datensão fundacional que circunscrevi,em palcos académicos inter comointradisciplinares.

Uma rápida salvaguarda. Não meproponho, com este trabalho, aformular um qualquer modelodialéctico determinista. Ireiinsistir que essas sucessivasconformações não correram, nemcorrem, em direcções que sejam a prioriprevisíveis, nem propendem paraquaisquer metas em que acabem pordesembocar de acordo com hipotéticasdinâmicas organicistas: os feedbacksconjunturais a que estão sujeitasintroduzem-lhes sempre um quocientede indeterminação que torna tanto aconfiguração delas quanto asseriações cronológicas que assequenciam em processos impossíveisde deduzir.

2.

O que tem sido, então, aAntropologia Jurídica? Será possível

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tomar em linha de contasimultaneamente, de algum modocontrabalançando-as uma com a outra,as duas faces antinómicas do“programa jurídico-antropológico” queidentifiquei, a “antropológica” e a“jurídica”? Estão elas hierarquizadasentre si? Serão as duas agendasdisciplinares que confluem neste“programa de investigação” em últimainstância redutíveis a subprogramasde facto compatibilizáveis emutuamente congruentes? Quais asacomodações e ajustamentos queengendra o tentar afeiçoá-lasreciprocamente? E ao que respondetudo isso? Todas estas questõesestruturam, subtendendo-o, o textoque ora apresento. Mas como iremosverificar, mesmo uma mera tentativade circunscrição destas questõesconstitui uma tarefa hercúlea que, emboa verdade, no que redigi, apenas meesforcei por encetar.

À partida gostaria de catalogaralgumas salvaguardas, no intuito deenunciar cautelas. Recorto-as porexclusão de partes: não é meuobjectivo ensaiar neste brevetrabalho uma qualquer ponderação

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especulativa quanto à géneseepistémica da Antropologia Jurídica,ou mesmo quanto aos papéis efectivosque esta preencheu nos tão complexosprocessos históricos em que seembrenhou e ainda embrenha, ainda quenos primeiros capítulos do que sesegue acabe por aflorar a par e passoalguns pontos que confinam com asimplicações deste último tipo deimpactos. Muito menos pretendo nopresente estudo tentar uma qualqueravaliação de pormenor (que nãopoderia deixar de socorrer-se dasrespostas a tal tipo de conjecturas)das eventuais vantagens mútuas nacolaboração, já antiga, entreantropólogos e juristas, se bem quenão me coíba de lhes fazer alusãosempre que seja caso disso. A estenível, também, a condução a bom portode um trabalho de investigaçãoexaustivo sobre qualquer um dessestópicos só seria exequível comocoroação de esforços titânicos cujasbases empíricas de sustentação aindanão estão de modo nenhum adquiridas:veleidades de por ora lhes poderacudir não relevariam, por

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conseguinte, senão do mais puro wishfulthinking1.

Não me furtei, no entanto, aredigir um texto assaz ambicioso.Longe de me cingir a um rastreio deuma tensão fundacional que, dequalquer maneira, nos anos 80 e 90 do1 Não é só no que diz respeito ao levantamento dasinterfaces que historicamente se têm vindo aconstituir entre Antropologia e Direito que muito háainda a fazer. Em relação a virtualmente todos osdomínios da transdisciplinaridade entre as CiênciasJurídicas e as Ciências Sociais se verifica um clarodeficit de investigação. Não deixa de ser verdade queo caso da Antropologia é particularmente pobre arespeito dessas ligações interdisciplinares, sobreas quais tem havido pouquíssimos estudos. Note-seque nalguns (muitos) casos, porventura preliminaresrelativamente a tais ambições, a corroboração dealgumas hipóteses de trabalho (ou a refutação deoutras) é um passo possível de dar; e um passomuitas vezes até desejável. Nomeadamente se setratar de um passo que, com a devida contenção,intente levar a cabo, ou tenha na sua linha dehorizonte, levantamentos sistemáticos da coerênciainterna dos labores teóricos dos investigadores; mastambém se for um passo cujos objectivos se constroemao redor das articulações e ressonâncias externasentre, por um lado, os corpos teóricos, mais oumenos coerentes, mapeados por duas ou maisdisciplinas (no nosso caso os estudos jurídico-antropológicos e os estudos jurídicos em geral) e,por outro lado, elaborações semelhantes (ouparalelas) esquissadas em campos epistemológicoscomuns. Em sucessivas notas de rodapé faço umrastreio de alguns dos principais estudosempreendidos sobre as interfaces entre aAntropologia e o Direito.

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século XX alterou bastantesignificativamente o seu regime defuncionamento, tento um esboço de umaabordagem das condições da suaemergência, do desenrolar a que seviu sujeita, e das suastransformações subsequentes. Umaabordagem que me impeliu na direcçãodos diálogos interdisciplinares, jáque, como se irá tornar por demaisevidente, é neste pano de fundo maiorque todos tais processos encontram asua razão de ser.

Com efeito, não faltam indíciosde uma “estruturação convergente” doque talvez possamos chamar o espaçotransdisciplinar. Mesmo a títulomeramente impressionista não é árduoverificar, como de um outro ângulo ofez em 1980 Boaventura de SousaSantos, que em epígrafe citei, quetêm sido muitos e curiosos osparalelismos profundos detectáveis nasequências de transformações e dosencadeamentos entre, por um lado, aAntropologia Jurídica e, por outrolado, os estudos jurídicos em geral.Tudo se passa como se esse espaçodefinisse o “tabuleiro” em que a

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tensão que identifiquei se temdesenrolado.

Confirmar o tipo de ressonânciasque reconheço não se salda decertonuma constatação surpreendente. Dáantes forma àquilo que seria deesperar: tanto uma como a outra dasprogressões disciplinares em causa (ajurídico-antropológica e a jurídicagenérica) tem sido encenada por viade regra em instituiçõesuniversitárias e de investigaçãoafins; por norma, as inovaçõesocorridas nas disciplinas durante umlongo intervalo de tempo emergiramnos mesmos países e nos mesmosmomentos conjunturais histórico-sociológicos2; e têm sido levadas a2 Como iremos verificar, esta dimensão “externa” e adimensão corporativa a que já aludi são peçasfundamentais para quaisquer explicações não-reducionistas das convergências que sublinho entredomínios disciplinares e horizontes deproblematização. Noto que no que se segue ensaiotomar em linha de conta o que apelidei de momentosconjunturais histórico-sociológicos tão-somente noâmbito genérico daquilo que Sally Falk-Moore (2001:95), numa magnífica recensão histórica dos trajectosda Antropologia Jurídica, chamou “a selective account[...] which [...] takes note of the resonance of backgroundpolitical events”. No entanto, e tal como irei ter aoportunidade de bem vincar a par e passo, os eventosde retaguarda que tento pôr em evidência prendem-semais com questões localizadas do que com as

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cabo, quantas vezes, pelasmesmíssimas pessoas, académicos comuma dupla formação, jurídica eantropológica.

Não causará também perplexidade averificação de que os paralelismosdetectáveis entre os estudosantropológico-jurídicos e os estudosjurídicos em geral se manifestamsobretudo no âmbito de umasobreposição-colusão (que em parte seexprime como uma partilha dehorizontes de problematização) entrea Antropologia Jurídica por um lado,e, por outro, os domínios muitoespecíficos da Filosofia e da Ciênciado Direito: como irei ter o ensejo desublinhar, precisamente duas dasáreas que com ela partilham (mesmohoje em dia, após alguns desfechosnas tensões a que aludi, ao que

conjunturas políticas macro que Sally Falk-Mooretanto prefere favorecer, ainda que não descuremestas últimas. Parece-me, com efeito, que pressõesmacro-políticas externas não podem senão agir porintermédio de patamares de mediação (tanto no planoinstitucional como a nível “intelectual”) menosabrangentes, operando por isso de forma menosdeterminística que aquela implicitamente postuladana modelização cuidadosíssima de Falk-Moore.

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parece definitivos), maisdenominadores comuns3.

Podemos ir mais longe. É fácilreconhecer algumas outrasregularidades interessantes, destafeita no que diz respeito aos pontospreferenciais de aplicação doparalelismo geral detectado no“encadeamento configuracional” dadisciplina da Antropologia Jurídica:é que as convergências que nosprimeiros capítulos tento pôr emevidência se verificam,essencialmente, a propósito das LegalTheories e da Jurisprudence britânicas, esobretudo das norte-americanas4. Mais3 Ao longo deste trabalho porei em evidência algunsexemplos disso. Bastará aqui citar os casos de SimonRoberts, Francis Snyder, Sally Falk-Moore e LawrenceRosen, aos quais farei diversas referências au fur et àmesure do meu desenvolvimento do tema primeiro doEstudo.

4 É interessante, neste contexto, notar o que pareceser uma alteração de fundo a esse nível: muito háque sugere, vê-lo-emos, que desde sobretudo osfinais dos anos 80 e os anos 90, se tenham dadomudanças que incluem uma re-emergência deantropólogos jurídicos franceses (ausentes mais decinquenta anos dos palcos disciplinaresverdadeiramente inovadores), a que se vieramacrescentar especialistas belgas, holandeses,canadianos e noruegueses, para só dar os exemplosmais óbvios. Seria no entanto arriscado tentarapurar alterações ou convergências a olho nu: o

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uma vez sublinho que nada disto éinesperado. A Filosofia e a Ciênciado Direito são decerto as áreas emque mais convergências seriamporventura de prever entre asgeneralizações do Direito e as dasCiências Sociais sobre a naturezaessencial do social, ou danormatividade. E foi justamente nasinstituições académicas e deinvestigação norte-americanas ebritânicas que durante o segundo e oterceiro dos quartéis do século XXmelhores condições existiram para assuas efectivas fruição e propagação.

Num segundo balanço genérico: aminha ambição essencial no presenteestudo é assim a de ir mostrando aexistência (no plano mais genérico erarificado dos espaços e horizontesde problematização) de concordânciasumbilicais e bastante sistemáticas

perigo espreita de que com essa estratégia dedescoberta nos limitemos a reproduzir pré-compreensões que se venham a prazo a revelar comopouco relevantes ou, pelo contrário, como abusivasnas convergências que postulam. Em termos muitoconcretos, e por razões de método, convém decertocomeçar por esclarecer percursos, para num segundomomento podermos comparar as trajectórias,convergentes ou divergentes, seguidas.

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entre esforços disciplinaresaparentemente díspares, e a de irrealçando as proximidades, asafinidades e o andamento complexo dasrelações de subordinação-superordinação mútua que relevam deuma sua coalescência num campo

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epistemológico5 pelo menos parcialmentepartilhado.

Por outras palavras e situando-menum patamar mais ecuménico eabstracto, quero tentar trazer àvista, no que se segue, o que algunsdesses esforços têm de facto tido em

5 Um ponto que remete para uma postura teóricaquanto à “história das ideias” afim da adoptada porMichel Foucault. Note-se que não penso poder, nestesmeus breves comentários, mais do que aflorarquestões de modo indicativo. Vale no entanto a penaum esclarecimento. Ao longo de todo este Estudoutilizo em abundância termos como “genealogia” e“arquitectura”. Genealogia e arquitectura são,evidentemente, conceitos utilizados por MichelFoucault. Uso-os porém aqui num sentido mais próximodo de Paul W. Kahn (1999: 91ss). Mas faço-o comalgumas diferenças. Segundo Kahn (ibid.), “genealogytraces the history of the central concepts of [an] order”;enquanto, pelo seu lado, “architecture looks at the structureof those concepts and their relationships to each other”. Concluiuo A. que “together they take up the problem of the “historical apriori”, in its double aspect of contingency and necessity – thehistorically contingent, conceptual conditions of our experience”.Conquanto concorde com esta conclusão, parecem-meexcessivamente formalizadas as definições que Kahnpropõe para conceitos tão operacionais como os dearquitectura e genealogia. Equacioná-los com“história” e “estrutura”, como Kahn acaba por fazer,redunda numa substituição puramente terminológica epor isso gratuita, que acaba por enfermar depetições “ontológicas” de princípio como, porexemplo, na eventual insistência de que o estudo da“história” levado a cabo pelo genealogista permiteiluminar a história; e salda-se por um retorno a umaforma de estruturalismo que supõe-advoga umaprodução, em última instância bastante “mecânica”,

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comum, para além (ou por de trás) dasrepresentações sobre eles produzidas,bem como as característicasestruturais (e estruturantes) quecaracterizam e distinguem orelacionamento disciplinar recíprocoque delineio.

3.

A linhagem genealógica daAntropologia Jurídica pode facilmenteser traçada a partir dos seus alvoresiluministas. Um levantamento dela,sem dúvida fascinante, ficará, noentanto, para outras núpcias:limitar-me-ei, aqui, tendo em contaos objectivos restritos deste estudo,a sublinhar que um período formativo“clássico” foi encetado num séculoXIX em que grand theories supra e dealgum modo pré-disciplinaresdelinearam problemáticas de longaduração nos novos e amplos espaços

de significados (meaning, na linguagemfenomenológica geertziana de P. Kahn) estáticosporque atemporais. Prefiro aqui uma abordagem menosformal que abra caminho a uma pragmática. Ao longodo texto tento ir esclarecendo o sentido em que ofaço.

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recém-abertos pela Modernidade; dassuas paisagens emergiu o que iriatornar-se as Ciências Sociais, umadelas a Antropologia.

O projecto que a nova disciplinaemergente veiculava era amplo,ambicioso, e não tinha limites paraalém dos visíveis: o programa a quese propunha era o de utilizar ométodo científico para esquadrinhar“o Homem”. O contexto “externo”oitocentista favorecia-o. Emconjunturas que aliavam mudançassociais e culturais vertiginosamenterápidas com processos aceleradíssimosde uma expansão colonial que aConferência de Berlim de 1884-1885tão marcadamente “racionalizou”, aAntropologia elegeu para si objectosparciais, edificando-se no processo;e instalou-se à mesa científica paraficar.

Para os pensadores evolucionistasdo século XIX e dos inícios do séculoXX, como iremos ver, os domínios dajuridicidade tendiam a ser tratadoscomo entidades inicialmente difusas,coagulações decerto essenciais, masem formação cumulativa, que se foramdestacando lenta mas sistematicamente

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das amálgamas que as tinham gestado.Só com o tempo, segundo estasnarrativas, se teria circunscrito oespaço próprio e autónomo do“jurídico” tal como hoje em dia oreconhecemos nas sociedadescontemporâneas. O jurídicovislumbrado mais como expressão dejuridicidade do que como uma entidadedefinível de maneira enxuta a quealudiam os Pais Fundadores, eranaturalmente em larga medida odefinido como tal pela dogmáticajurídica e pelos estudos jurídicos, àépoca já bem implantados; era-o,designadamente, no quadro de uma novasubdisciplina também em gestação,pelo menos na sua forma moderna, a daHistória do Direito.

Compreensivelmente, uma vez aAntropologia constituída na volta doséculo XIX, e apesar de uma curiosadelonga, cedo perspectivações dojurídico e da juridicidade formuladasem termos propriamente antropológicosse começaram a manifestar. Ao fazê-losubstituiram o espaço difuso do“jurídico” dos evolucionistas,circunscrevendo o campo analíticoespecífico do que iria tornar-se na

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Antropologia Jurídica; mas fizeram-noconstituindo-o como uma sequência dedesenlaces que foram sempre tendolugar no quadro das problematizaçõesanteriormente definidas.

Como irei ter a oportunidade demostrar, os novos tipos emergentes deenquadramento, alternativos aosprovidenciados mais espontânea etacitamente no século XIX peladogmática jurídica e pela Filosofiado Direito (e muitas vezes embutidosem narrativas históricasespeculativas sobre a emergência ou aevolução do jurídico, do droit, da law,do diritto, do derecho, ou do Direito),deveram-se em muito à obra e graça deBronislaw Malinowski, um antropólogopolaco muitíssimo influente nadisciplina antropológica como umtodo: um notável investigador eprofessor que trabalhou, primeiro, noReino Unido durante os anos 20 e 30do século XX e depois, nos anos 40,nos Estados Unidos da América e que,em grande parte graças ao seu grandecarisma pessoal, soube fazer escolaem instituições de peso em ambosestes países.

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O contributo crucial deMalinowski neste domínio foi o delograr dar início a uma reorientaçãoprofunda e radical das pesquisas“antropológico-jurídicas” (o termoentão inventado), até aí vítimas dosmagnos enquadramentos historicistas aque fiz alusão, por norma pautadospor um evolucionismo mais ou menoslinear, e marcadas por um legalismoherdado como lastro das disciplinasjurídicas duras e maduras. Em seulugar, Malinowski empurrou, logo nosanos 20 do século passado e depois denovo nos anos 30, a disciplina daAntropologia Jurídica, então nos seusprimeiros balbuceios, para quadrosfuncionais que insistiam nasvantagens de uma plena integração dasrepresentações e práticas em que seexprimiam nos respectivos contextosculturais e sociais.

Apesar de apenas ter escrito umacurta (e, em muitos sentidos,etnográfica, senão teoricamente,pobre) monografia sobre o tema6,6 Bronislaw Malinowski (1982, original 1926), Crimeand Custom in Savage Society, Rowman & Littlefield, NewYork. Noutros lugares, designadamente em introduçõesa estudos de seguidores (destaco aqui o textopublicado em 1934, que incluo na Bibliografia),

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Malinowski irrompeu nos palcosanalíticos efervescentes do segundodecénio do século XX apetrechado comuma perspectiva utilitarista epragmatista, que vislumbrava nosdomínios do “jurídico” não formasmas, numa versão muito sui generis das“funções” durkheimianas, efeitos. Aentrada em cena do ilustreantropólogo polaco foi uma empresaque radicou em campos sem quaisquerverdadeiras ligações (tácitas ouexplícitas) com os domínios emefervescência dos notáveis estudosjurídicos de então. Nos termos danova perspectivação, de algum modo“chegada de fora”, a juridicidadepatente em muitos dos relacionamentossociais observados e estudados comoque deslizara num plano inclinado,passando de essencial, como insistiamos quadros formulados pelos juristasaté então hegemónicos, a meramenteoperativa e instrumental.

Bronislaw Malinowski inaugurouuma linha de investigação separadadas que eram habituais nos “estudosMalinowski fez alguns refinamentos ao esboçogenérico de teorização antropológica que sugerira em1926.

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jurídicos”: uma trajectóriaarticulada em contraste com atradição “legalista” (no sentido delaw-centered que, como veremos, talvezseja um epíteto mais adequado) ecrescendo em paralelo com ela, focadanas mesmas questões de ordem social ede “processamento” de disputas elitígios mas não enquadrada porquaisquer versões paroquiais dadogmática jurídica. Antes aberta àvoz empírica dos factos, por assimdizer. O que teve como consequência,dadas as características muitas vezesinesperadas e até surpreendentesdestes últimos, tentativasincessantes e sistemáticas de fuga emrelação aos quadros focados em“regras” e, com isso, conduziu osanalistas a uma movimentação dedistanciamento em relação a análisesde normas e instituições, e nadirecção de pessoas concretas eminteracção efectiva.

O rasgar de horizontes a que talrecristalização deu azo surtiuefeito. Um espaço conceptual dotadode uma textura propícia para aconstrução de novos territórios foradesdobrado. Na esteira de B.

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Malinowski, muitos antropólogoscomeçaram a discutir questõesrelacionadas com ordem e comconflitos sociais, quantas vezes semquaisquer alusões ou referências aconceitos, ou sequer termos, como osde “lei” ou “regras”. Aspreocupações, nesta linha, têmrepousado, na boa tradiçãomalinowskiana, em diferentesimplicações de uma perspectivação queprefere pôr a tónica naquilo que a“lei” (law) faz e não sobretudonaquilo que presumimos que ela “é”.

Os seguidores deste percursoanalítico paralelo que Malinowskiencetou tendiam a conceder poucaatenção à Jurisprudence ou à Filosofiado Direito. No sentido em que seinteressavam por “regras”, preferiamencará-las tão-somente (ou, pelomenos, sobretudo) como recursos usadospor actores sociais; e como critériosde escolha de cursos de acção,culturalmente muito vinculados, quepoderiam adquirir por isso algumaimportância e centralidade nosresultados das numerosas variedadesde interacções que tinham lugar. Masque o não faziam por definição, e daí

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advinham consequências de peso:naqueles casos em que ocorria, porexemplo, que “terceiros” seenvolvessem nos processos sociais sobescrutínio analítico, os antropólogospropendiam a preocupar-se com asmodalidades das intervençõesverificadas em vez de presumir, demaneira automática (o que“espontaneamente”os juristas tendiama fazer) que esses intervenientesiriam adoptar papéis “judiciais”.

O potencial de choque gerado peloenquadramento empírico-comparativoalargado e inovador defendido porMalinowski era, seguramente, enorme.Desafiava a tutela. Mas, como iremosconfirmar, e apesar da agitação quede imediato tal causou na progressãoda disciplina de AntropologiaJurídica, o impacto efectivo sentidonão foi de maneira nenhuma aquele quepoderia ter ocorrido. Contra eleperfilavam-se os quadros pesados, edificilmente movíveis, deperspectivações arreigadas oriundasde estudos jurídicos de matriz“ocidental”, de grande elaboração esofisticação teórica, e de enormeprestígio, muito peso e incomparável

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influência nos meios académicos. Umavez importados esses paradigmas parao interior subdisciplinar, removê-losia revelar-se árduo e laborioso; e aexcisão transformar-se-ia numprocesso contestado e muitas vezescego, surdo e conflituoso.

Mas não impossível. O efeitocorrosivo do gesto malinowskiano delibertação (ou, em todo o caso, deautogestão subdisciplinar, sobretudouma vez descartadas asespecificidades próprias daperspectivação datada, e em tantossentidos problemática, do célebreantropólogo polaco) instalara-se demaneira indelével nos novos quadrossubdisciplinares de análise emgestação. Começara assim um labor,lento mas incansável, de erosãosistemática da relativa clausurateórico-metodológica a que oenquadramento pela dogmática jurídicaanglo-saxónica condenara, no berço,os esforços de afirmação daAntropologia Jurídica.

No andar das coisas, seriadifícil sobrestimar o papelpreenchido pelo progresso da novaperspectivação (que afinal redundava

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em pouco mais do que numa“antropologização” da subdisciplina)e da sua luta contra a corrente“jurisprudencial” (no sentido anglo-saxónico da expressão) que tãoinfluente tem sido desde osprimórdios “clássicos” daAntropologia Jurídica e nas váriasreformulações de fundo a que comregularidade ela se tem vistosujeita. Trata-se apesar de tudo deum papel liberativo que naquilo quese segue tentarei cartografar. De parcom os desígnios que atrás enunciei,é assim meu objectivo acessório, nopresente estudo, levar a cabo umrastreio do impacto, lento masseguro, da “revolução malinowskiana”nos quadros subdisciplinares que seforam sucedendo uns aos outros.

Repito contudo o que antes disse,agora num contexto muito maisalargado: percorre e ordena tudo oque se segue a ideia segundo a qualuma confluência de horizontes deproblematização geral como averificada só é explicável poralusão-recurso a uma moldura comummaior que os abrace a todos.

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Com óbvia utilidade analítica,podemos neste momento sobrepor o quechamei o mapa físico ao que apelideide o político. Como iremos ver,encontro e fundamento tal quadro nasucessão de conjunturas sócio-políticas que delas tem formadocontextos de eleição. É nesteenquadramento mais amplo, querosublinhar, que de algum modo do exteriorpara o interior da Antropologia Jurídicase tem vindo a desfiar o grosso doque chamei a tensão fundacional dasinvestigações levadas a cabo: nofundo, a busca incessante de formatosuniversais que eventualmente noslevem a uma delimitação precisa doque reconhecemos como “jurídico”.

Uma colaboração que datava dosprimórdios iluministas (em amplasversões evolucionistas) iria pormuitos e longos anos ser continuada,em contextos académicos em quefronteiras disciplinares einstitucionais cada vez maisestanques foram sendo traçadas entrejuristas e antropólogos. Essacolaboração via-se porém submetida aum jogo de forças antinómicas: umaforça centrífuga contínua, a que já

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aludi, tem vindo a agir na direcçãooposta à da pressão centrípetaresultante da partilha de um campocomum e genérico de problematizaçãooriundo nos quadros disciplinares dosestudos jurídicos gerais.

Neste trabalho a tantos títulospreliminar (e sempre numa extensão“localista” do quadro geral do“resonance of background political events” queSally Falk-Moore, com tanta lucidez,pôs em evidência como enquadramentopreferencial para uma qualqueranálise histórico-sociológica daprogressão teórica das produções dosantropólogos jurídicos) viso, numplano mais geral, tão-somente umaprimeira elucidação de algumas dasressonâncias detectáveis entre asproduções teórico-metodológicas daAntropologia Jurídica e as da Ciênciae da Filosofia do Direito7, bem como

7 O esforço salda-se em isolar e em pôr em paralelograndes configurações de ideias e não apenas“actores académicos” ou conceitos avulsos, pontosgenéricos de aplicação de análises em vez de temasempíricos isolados, interacções mais do queperspectivações “teórico-coloniais recíprocas”;redunda numa identificação de homologias concretas eefectivas nos trajectos diacrónicos de ambas asáreas disciplinares, nos seus ritmos, nas suasinflexões e direcções relativas; mostra asim como um

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da das alterações a que têm estadosujeitas as relações complexasexistentes entre estas váriassubdisciplinas.

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Vale a pena ampliar um pouco asimagens neste ponto. Fá-lo-ei em doistempos. Antes de descer ao pormenorrelacional mais concreto e a algumasdas minudências da coreografia dasdanças de colaboração, dosverdadeiros pas de deux, que têm tidolugar entre antropólogos e juristas,escalpelizando os resultados,gostaria de primeiro subir um patamar

conflito, o potencial entre a Antropogia e oDireito, foi deflectido para o interior da AntropologiaJurídica. É minha convicção que, uma vez isso feito,mais um passo útil terá sido logrado no sentido deapurar alguma coisa do carácter social (e dadimensão artefactual) das nossas noções relativas ànatureza e textura tanto do “jurídico” como do“político”. E ter-se-á conseguido fazê-lo em termosempiricamente fundamentados e não como vítimas de“incompreensões” ligadas a uma qualquer “espiralhermenêutica”, ou de acordo com quaisquerespeculações, mais ou menos apriorísticas, quepossamos ser levados a preferir sem que para elastenhamos uma verdadeira fundamentação-sustentação“etnográfica” empírica.

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e de lançar, a partir desse planomais alto, um olhada de conjunto quedê forma ao que acabei de trinchar. Oesforço é bem compensado, já queiluminar com alguma luz histórico-genealógica a as condições deemergência da tensão fundacional queidentifiquei é revelador.

Será instrutivo começar por darrealce à evidência de que o campo dajuridicidade não foi o únicoterritório imprescindível àAntropologia em que a “alçadahegemónica” (ou “colonial”, se sepreferir a expressão) de outrasdisciplinas se revelou, dando lugar atrincheiras (para usar um termogramsciano), ou barricadas, que nãopodemos ignorar. O embate com aEconomia também não pode sersubestimado. Tendo em mente a tãofamosa controvérsia que opôs PaulBohannan a Max Gluckman8, váriosinvestigadores estabeleceramparalelos entre a linha de fracturaentão evidenciada na AntropologiaJurídica e a fractura que, no caso da8 Uma polémica que suscitou reacções e discussões daAntropologia à Sociologia, passando pelo DireitoComparado e pela Filosofia do Direito. Na Parte IVdo presente estudo abordo-a com algum detalhe.

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Antropologia Económica, dispôs de umlado “formalistas” e de outro“substantivistas”.

Num rápido esquisso cartográfico:os primeiros, os formalistas, por viade regra economistas de formação (oucom um duplo background de economistase antropólogos) defendiam auniversalidade do Homo economicus einsistiam, em consequência, naaplicabilidade genérica dos modelosracionais de maximizaçãodesenvolvidos por economistas para aanálise de economias “modernas” demercado. Quanto aos segundos, ossubstantivistas, tratava-se na suaesmagadora maioria de antropólogos(ou de historiadores), quecontrapuseram a esta extensãoanalógica a ideia de que sociedadesdiferentes davam corpo a lógicasdiversas e a feixes de motivações,individuais e colectivas, de actoressociais essencialmente distintosporque envolvidos em nexossocioculturais alternativos. Opróprio Paul Bohannan teve um enormeprotagonismo nesta outracontrovérsia, enquanto figura de proa

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dos auto-denominados antropólogoseconómicos substantivistas.

Em minha opinião, e pese emboracomparações valham sempre só o quevalem, o reconhecimento de umparalelismo entre a fracturaantropológico-económica a que acabeide aludir e a jurídico-antropológicaque aqui abordo tem toda a razão deser. As duas brechas são de factoparalelas. São-no, porém, não tantopela semelhança superficial, formal eabstracta, que patenteiam nas linhasde clivagem detectáveis a olho nu nume noutro caso. Mas antes por ambas asfendas exprimirem tensõesinterdisciplinares latentes entre,por um lado, a Antropologia, com avocação abrangente que a caracterizano quadro as Ciências Sociais, e, poroutro lado, formulações científicassectoriais vocacionadas para o estudode aspectos centrais das sociedades“ocidentais” dominantes:respectivamente o Direito e aEconomia.

Verificá-lo não é árduo. Mesmo aonível institucional, nas nossasUniversidades as disciplinas daEconomia e do Direito depressa

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ganharam foros de cidadaniacientífica autónoma, reflectindo aposição de centralidade que têm osdomínios que estudam e evidenciando oascendente política e economicamentehegemónico das sociedades para cujainterpretação foram formatadas. Essaindependência tem tido uma forteexpressão corporativa: a primeira, aEconomia, logrou separar-se um poucopor toda a parte das demais CiênciasSociais e conseguiu constituirFaculdades separadas; a segunda, oDireito, uma entidade legada de umMundo anterior como jáinstitucionalmente segregada e àparte, tem garantido a manutenção deum cioso distanciamento tanto físicocomo teórico-metodológico, quantasvezes ancorado em justificaçõesracionais e numa necessidade“científica” e “puritana” –justificações que a Ciência e aFilosofia do Direito têm, aliás,abundantemente teorizado.

Se e quando encarada deste ânguloinstitucional e maior, torna-sebastante transparente a simetriaentre, de um lado, a controvérsia quecontrapôs formalistas a

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substantivistas na AntropologiaEconómica e, de outro, aquilo queapelidei a progressão da tensãofundacional na Antropologia Jurídica,que tem largamente contrapostojuristas a antropólogos: nos doiscasos o projecto generalista eabrangente da Antropologia teve defazer face a uma “ocupaçãoterritorial”9 efectiva conduzida porformações científico-discursivasmuito próximas do poder; uma ocupaçãoque se revelou, por conseguinte,muitíssimo difícil de desafiar. Asimplicações desta constatação sãoóbvias. Mais do que confrontações comumas quaisquer “sabedoriasconvencionais” kuhnianas, para além9 No sentido conceitual e não material,naturalmente, ligado, designadamente, à definiçãoexclusivista de “horizontes de problematização”. Écurioso notar, por exemplo, que tanto no que toca àEconomia como no que diz respeito ao Direito, ainterlocução com a Antropologia é hoje possível paraalém da interface minimalista (erigida num casopelos formalistas, noutro pelos positivistas) de umamera partição estanque de águas “complementares”.Salvo em bolsas mais conservadoras que remanescem àmercê de inércias institucionais, tanto o Direitocomo a Economia reconhecem hoje em dia espaçosvariados de interacção material efectiva com asCiências Sociais. Um ponto que constitui uma espéciede subtexto permanente deste trabalho.

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de lutas contra inércias psicológicasassociadas à relativa inamovibilidadede paradigmas teimosos, nos domíniosacadémicos do estudo do “jurídico” edo “económico” a Antropologia temtido de defrontar algumas dasfundações nocionais mestras, elasmesmas, das pretensões-convicções desupremacia e hegemonia tãocaracterísticas das sociedades“ocidentais”10.

Projectando este ponto sobreaquilo que antes sublinhei, querorealçar o facto de que não é porconseguinte surpreendente a lentidãodos sucessivos desenlaces verificadosao nível da tensão fundacional daAntropologia Jurídica no plano dasideias. Nem é inesperada a dureza dasconfrontações; ou será sequerdescabida a capacidade corporativa

10 Insisto, a este nível trata-se bem de fundações dahegemonia das sociedades, e não dominação “cultural”ou ideológica de uma hipotética Weltanschauung, poissenão seriam a Antropologia da Religião, ou a doParentesco, as primeiras a sofrer o grosso dosembates e a defrontar as maiores resistências, o queclaramente não tem sido o caso. A centralidade,enquanto frentes de embate e de resistência, doDireito e da Economia, argumento, ecoa a importânciaestrutural nodal atribuída pelos actores sociais aestes dois enquadramentos para essa hegemonia.

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manifestada pelas perspectivaçõesatreitas aos “estudos jurídicos emgeral” (das escolas da Jurisprudence àsda Filosofia do Direito), como lheschamei, em sempre renascer dascinzas, impávidas e serenas, mesmoapós lhes terem sido infligidasderrotas na arena “racional”idealizada das contendas científicas.Nem é difícil perceber, se não osmotivos, em todo o caso osfundamentos últimos para o alheamentodo Direito, ou para a sua aparenteligeireza em escapar de maneirasistemática a pressões e evidênciasracionais, e até empíricas, exercidaspelos dados recolhidos porantropólogos e etnógrafos.

5.

É certo que nos podemos ater auma visão restritiva, que leia aprogressão das ideias científicas emtermos abstracto-racionais puros eduros. Como a metáfora cartográfica(com alusões a imagens como as de“mapas físicos e políticos”) odemonstra, não é de modo nenhum essa

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aqui, porém, a minha posição. Osobjectivos do trabalho que oraapresento não se esgotam num planotensional e dinâmico, nem aliássequer nos espaços abertos de umaqualquer grande narration também elaidealizada. Incluem uma dimensão maiscomezinha, por assim dizer, que emqualquer caso não creio possa serdele verdadeiramente separada. Adimensão a que me refiro é a daprogressão das configurações, umpouco mais concretas, dosrelacionamentos efectivos que têmtido lugar, em arenas institucionaismuitíssimo materiais, entreantropólogos e juristas.

Quais são então, nesse plano“corporativo”, como o apelidei, asfinalidades suplementares desteestudo? Sem querer restringir a minhaperspectivação a uma qualquer“topografia configuracional” dos tãocomplexos e tão variáveisrelacionamentos mútuos entre aAntropologia Jurídica e as LegalTheories ou a Jurisprudence, parece-mefundamental esclarecer o que creioser o alcance dos relacionamentosconcretos e de algum modo mais

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directos que detectei, aos quais asvárias ressonâncias configuracionaisque a par e passo identifico foramatribuindo significados: ao longo detodo (ou quase todo) o século XX, epese embora um crescentereconhecimento se tenha verificado noque diz respeito à existência defortes afinidades electivas de baseentre os dois domínios, ao nível daspetites histoires a opinião dos juristas11

quanto ao posicionamento recíprocodas Ciências Sociais e do Direito temsofrido enormes alterações. E o mesmose passou no que toca ao balançoempreendido pelos cientistas sociaisquanto a essa arrumação. Um outrotema que aqui abordo prende-se com aprogressão enovelada da geometriacambiante desse macro-relacionamentointerdisciplinar. Todas estasquestões se associam no domínio geraldos posicionamentos institucionaisque, no que se segue, quero demaneira sucinta pôr em evidência.11 Para uma discussão deste posicionamento recíprocoaos olhos de um jurista português, é útil a leiturade J. Baptista Machado (1996), Introdução ao Direito e aoDiscurso Legitimador, sobretudo o antepenúltimo capítulodesta obra.

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Será útil começar por desenhar umpatamar um pouco mais includente doque o da contenda em causa, subindoao quadro da oposição-contraste entreo Direito e as Ciências Sociais comoum todo. Podemos começar porconstatar a falta de homogeneidadetanto nas convergências quanto nasdivergências na textura desse espaçoem muitos sentidos adversarial.

A verdade é que houve muitostipos diferentes de convergênciasdisciplinares entre as CiênciasSociais e o Direito, de acordo commodalidades variadas de articulaçãoque foram sendo impostas pelasmetodologias utilizadas. O fascínio“positivista” de raiz durkheimiana12

não era idêntico ao apelo exercido

12 Que informou, por exemplo, a decisão de AfonsoCosta em estabelecer na Lisboa da Primeira República(a partir de 1913) uma Faculdade de Estudos Sociaise Direito, num modelo “moderno” e alternativo ao daUniversidade de Coimbra, um projecto que por razõesvariadas e seguramente curiosas foi infelizmente solde pouca dura, extinguindo-se em 1921, quando foidecidido transformar a ilustre Faculdade no que naprática redundou (nessa altura) num clone daFaculdade de Direito da Universidade de Coimbra. O“positivismo” a que aqui aludo é, naturalmente, ochamado “positivismo sociológico” (ver Karl Larenz,1997, tradução original de 1991).

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pelos estudos sociológicosquantitativos que tanto atraíam osRealistas norte-americanos; nem essaatracção sociologística era fácil elinearmente equacionável com asexigências metodológicas (porventurana maioria dos casos no essencialexigências neo-weberianas) do“institucionalismo administrativista”arvorado pelos defensores posterioresdos modelos da chamada escola do LegalProcess; nem tão pouco era esseagrupamento de apelos softverdadeiramente comparável com aatracção muito mais hard exercidapelas variantes da Sociologia (pornorma muito mais sofisticadas)esgrimidas pelos membros do movimentoLaw and Society, com ainda a exercidapela fenomenologia interpretativistado grosso dos Critical Legal Studies, a daLaw & Semiotics ou as versões maisfusionais da “pós-Sociologia” dosauto-denominados Pós-Modernos. Aregra, se tem havido uma, tem sido ade variações no quadro de uma marcadaheterogeneidade.

Em todo o caso, a tabula em que oespaço de interacção a que façoalusão se foi estruturando não era

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rasa: algum “depósito residual” ficarados primórdios evolucionistas dacolaboração, como veremos sobretudooitocentista, entre juristas, por umlado, e antropólogos avant la lettre poroutro. Com efeito, e como vamos ter aoportunidade de constatar, umprocesso de tomada crescente deconsciência do preenchimento pelo“jurídico” de um papel, a váriostítulos central, nas sequenciaçõesaventadas para as sociedades, e emtodos os seus “estádios”, foisedimentando desde esse períodofundador.

Nessa acumulação progressiva(“cristalização” talvez seja um termomais adequado), ocuparam um lugarcentral e fascinante aqueles esforçosteórico-metodológicos que foraminstitucionalizando o domínio do queveio a apelidar-se de AntropologiaJurídica (ou, mais prudentemente,Jurídica e Política, já que adistinção que cada sociedade operarelativamente a estes dois camposraramente é estanque). Em resultado,depois de um longo hiato, acolaboração nascida nos primórdios

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viria a ser retomada13, agora em novosmoldes, a um tempo mais estreitos (noduplo sentido de mais próximos etambém mais canalizados) e menosíntimos, decerto dadas as fronteirasdisciplinares e institucionais cadavez mais estanques que foram sendo13 Com efeito, os processos de convergênciaacadémica efectiva entre Direito e Ciências Sociaisaceleraram o passo no decurso da segunda metade doséculo XX. Uns poucos exemplos servirão por todos.Numa curta nota publicada em fins da década de 60nas páginas da muito prestigiada Law & Society Review,H. Lawrence Ross (1969) arrolou os numerososprogramas de ensino e investigação que estavam emfuncionamento nos últimos anos em instituiçõesnorte-americanas das duas costas. Era impressionantenão só o número elevadíssimo de programas em curso,mas ainda o facto de, aparentemente, a suadistribuição contemplar la créme de la créme dasinstituições e dos investigadores da época. Umexemplo que a Europa, antes pioneira na aproximaçãoentre Direito e Ciências Sociais, tardou a seguir.Dois anos mais tarde, na aurora de uns famigeradosanos 70 que tão ricos e ambíguos em potencial seiriam revelar para o desenvolvimento da AntropologiaJurídica, Jacques Vanderlinden (1971) publicou, noentão topo de gama Journal of African Law britânico, umextenso e muito minucioso e comedido artigo sobretemas afins: os papéis preenchidos pelasinstituições académicas europeias para o estudo e ainvestigação dos Direitos em vigor em África. A tónicaafricanista dos estudos sócio-jurídicos europeus,muito maior do que a então patente nos EstadosUnidos, era compreensível no quadro dedescolonizações que pouco antes tinham ocorrido noContinente; torna-se, por isso, também inteligível olugar dominante das ex-Metrópoles coloniais nos

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traçadas entre juristas eantropólogos: uma força centrífugaque, insisto, tem vindo a agir nadirecção oposta à pressão centrípetaresultante da partilha de um campocomum e genérico de problematização.

Tudo isto convergiu na formataçãodo que apelidei de macro-relacionamento interdisciplinar quetem envolvido juristas e cientistassociais e, em particular,antropólogos. Confluiu,designadamente, no que toca aoescavar de trincheiras e aolevantamento de barricadas, mastambém no que diz respeito aoslevantamentos efectuados por Vanderlinden nesteartigo. Salvo raras excepções, o panorama era porémdesolador, se comparado com o âmbito, a escala, e aqualidade, daquilo que, no que toca às colaboraçõesentre juristas e cientistas sociais, no decursodessa viragem de decénio estavam a ocorrer nosEstados Unidos. Como iremos ver, no final do decéniode 70, J. F. Holleman (1979) fez um apeloentusiástico a uma nova geração de investigadoreseuropeus, vítimas, porventura, de menos lastrocolonial, para o que considerou uma colaboraçãoacrescida “essencial” dadas as conjunturas depluralismos densos e tensos em que então seencontravam os novos Estados independentes deÁfrica. Decerto por ter coincidido com um momento decrises, tanto ao nível político internacional comono plano disciplinar específico da AntropologiaJurídica, o apelo caiu largamente em ouvidos moucos.

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momentos de cooperação que foramtendo lugar à margem das reacçõesdominantes de resistência e rebeliãoface a uma tutela hegemónicainsinuante. Sem pretendernaturalmente esgotar a questão,comecemos por lançar uma mirada brevee sucinta às preferências dosjuristas no que diz respeito ao tipode perspectivações científico-sociaisdesencadeadas por tal colaboração. Osevolucionistas oitocentistas (ealguns dos seus herdeiros directos,como os marxistas, que sobreviverampelo século XX adentro) deram o mote,ao acriticamente equacionar asvariadíssimas sociedadesnão-“ocidentais” (em si próprio umconjunto fascinante) com as“ocidentais” do passado.

Numa espécie de primeira demãoquanto a um dos temas que percorremeste estudo, cabe aqui um melhoresboço prévio de contextualizaçãoconcreta e factual do que têm sido asprincipais interacções teóricas emetodológicas entre Antropologia eDireito. Com os benefícios daretrospecção não causará grandeespanto a ligação estabelecida entre

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uma ciência social e o domínio dosestudos jurídicos. Apelos a umainteracção eram seguramenteprevisíveis: ou não fosse aAntropologia Jurídica, repito, umcampo de investigação antropológicasobre objectos jurídicos.

Do lado do Direito, tanto asambições de abrangência da Históriado Direito (porventura sobretudo asdas suas versões de convicções maisevolucionistas) como as do DireitoComparado, como ainda oreconhecimento o lugar do “costume”enquanto “fonte”, ecoavam desde hámuito esses apelos por uma eventualconfluência de esforços. E se, nacentena de anos que decorreu até háuma geração, as empresas decolonização vieram potenciar essatendência centrípeta entre as duasdisciplinas, hoje em dia são osprocessos complexos, quantas vezesdolorosos, e cada vez maiscontestados, da globalização que vemre-acordar uma convergência dia a diamais inevitável.

No domínio específico da“investigação convergente” (para“bricolar” um conceito) a textura

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cronológica das mudanças é elaprópria interessante. Entrevê-lo aonível “macro”, por assim dizer, ébastante revelador. E reflecte, atraço grosso, os relacionamentosrecíprocos existentes entre osquadros da Antropologia Jurídica e osda Jurisprudence a que atrás aludi.Nalguns momentos do que desde cedo semanifestou como uma interacçãobastante profícua verificaram-secolaborações directas entreantropólogos e juristas, o que seconsubstanciou, por via de regra, naformação de equipaspluridisciplinares que integravam unse outros. Noutros casos, no que dizrespeito aos enquadramentos“técnicos” das investigações gizadas,a influência mútua foi menos directae resultou de processos muito maisdifusos de polinização cruzada, porassim dizer.

Em consonância, o pesometodológico relativo de juristas ede antropólogos nestes actos decooperação interdisciplinar tambémfoi variável. Não é abusiva ageneralização segundo a qual, naprogressão cronológica daquilo que

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foi sendo produzido, se constataverificar-se uma curiosa (mas muitonítida) oscilação nas posiçõesrecíprocas assumidas em equipas deantropólogos e juristas, tomando orauns ora outros as rédeas nascombinações de esforços que levaram acabo. As razões para tal não sãodifíceis de equacionar, em todo ocaso a nível formal.

Em todos os casos, pareceu aosjuristas (ou pelo menos a certosjuristas14) haver grandes e nítidasvantagens em colaborações estreitascom cientistas sociais. Para os14 Ou seja, para aqueles juristas que sequerreputavam essa ligação de questão interessante.Muitos juristas há para quem quaisquer interacçõescientíficas com cientistas sociais são uma puraperda de tempo. Para alguns outros, mais radicais,interacções destas seriam mesmo nefastas, envolvendoum verdadeiro risco de contaminação por “botas sujasde realidade”, na expressão feliz (utilizada noutrocontexto) de José Carlos Vieira de Andrade. Édifícil não notar que a “sacralização” do normativojurídico legal é particularmente veemente eagressiva em Estados, como a Alemanha, a Itália, aEspanha, ou Portugal, saídos de experiênciasditatoriais, em que muitos juristas académicoscolaboraram com regimes em que “a lei” eraindiscutível. O conservadorismo actual parece-mereflectir tanto inércias institucionais quanto umaforte dose de um autoritarismo residual (ver DuncanKennedy, 1982).

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antropólogos (como decerto para ossociólogos, e obviamente nos doiscasos de maneiras também assazvariáveis) as vantagens de umaaproximação sistemática nuncasuscitaram pejo ou hesitações, já quenaturalmente nunca houve entrecientistas sociais quaisquer dúvidasnem em considerar os domíniosjurídicos como dimensões da vidacolectiva, nem em reconhecer quetodas as sociedades de uma ou deoutra forma exibem um “sistemajurídico” em muito ininteligívelquando fora do seu contexto15.

Mais complicado será decertoaventar hipóteses que justifiquem as“cedências mútuas” verificadas; umponto em todo o caso fundamental paraum qualquer balanço crítico dosbenefícios da transdisciplinaridade15 Uma rápida palavra de salvaguarda. Apesar destadisponibilidade recíproca e tão variada, éindubitável que um eventual estudo históricominimamente credível do relacionamento efectivoentre, por um lado a Jurisprudence (e as Legal Theories)e, por outro a Antropologia Jurídica, não pode demaneira alguma prescindir de ponderar em pormenor aevolução das perspectivas que cada um dessesdomínios tem formulado (ou, mais informalmente,equacionado), quanto à sua articulação “ontológico”-epistémica com o outro.

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concretamente conseguida. Sem embargodas tão óbvias vantagens analíticasde comparações-contraposiçõessincrónicas sistemáticas destegénero, outros paralelismos vêm àtona ao encararmos a AntropologiaJurídica de um ponto de vistadiacrónico; e, em consequência, aopoisarmos a nossa atenção sobre asmudanças verificáveis ao longo dotempo e não só sobre as continuidadese simultaneidades de mais imediatadetecção. Vizinhanças e convergênciasde tempo, de ritmo, e de inflexão,que é certamente útil pôr a nu, o queaqui tentarei começar a fazer.

Aumentando de novo a resolução deimagens, não é difícil enumerar, deuma maneira minimamente ordenada,algumas das formas que tal assumiu:como referi, Jacques Vanderlinden16

16 Em meia dúzia de páginas notáveis da sua curtaintrodução à Antropologia Jurídica, JacquesVanderlinden (op. cit: 38-45) ofereceu-nos umamodelização interessante da interacção históricavariável verificada entre antropólogos e juristas.No entanto, limitou-se a uma mera descrição dasmúltiplas e mútuas “influências” entre membrosconcretos destes dois grupos, contra algum pano defundo histórico-político; e, para além do mais, adivisão de trabalho que cartografou é menospertinente para o mundo anglo-saxónico do que para odas colonizações “francófonas” e, em geral,

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decantou, em 1996, uma periodizaçãoem cinco fases distintas (apesar deinterligadas) para esta colaboração17.Numa primeira, a que Vanderlindenapelidou a fase de juristes-juristes (e queincluiu de L. H. Morgan a H. E. Post,

europeias continentais. Sem embargo da crucialchamada de atenção para “actores” por regraesquecidos como os juristas holandeses e belgas quese dedicaram ao estudo e à “codificação” dos“Direitos costumeiros indígenas” das respectivasregiões de influência colonial (o Congo, a Indónésiaou as Guianas, por exemplo), as páginas fascinantesde Vanderlinden clamam por um melhor, maisproblematizado e minucioso enquadramento teórico.Assim, por exemplo, Vanderlinden afirmou que “avecl’élimination définitive de théories évolutionnistes, qui fait sortir duchamp nombre d’historiens du droit et avec la disparition de lacolonisation, qui en élimine l’administrateur anthropologue en droit,seuls demeurent en présence les théoricien du droit, dans la mesureoù ils adhèrent aux doctrines pluralistes et les anthropologuesintéressés par le phénomene juridique” (1996, op. cit.: 44).Como se verá, ainda que de maneira nenhuma discordedestas asserções, considero insuficiente, porexcessivamente atida a uma das parcelas do que severifica ao nível superficial, a perspectivação deJ. Vanderlinden que, entre outros, secundariza opapel analítico crucial das Legal Theories, dossociólogos, de cientistas políticos e denumerosíssimos historiadores, todos eles em re-emergência acelerada devido ao novo tipo depluralismo sociológico e jurídico despertado peloacelerar pós-bipolar da globalização.

17 Ibid.: 35-45. De maneira interessante, JacquesVanderlinden assumiu como ponto focal da divisão porfases que propôs as relações efectivas de

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ou H. S. Maine) foram os juristastomar o comando das operações.

Numa segunda fase, marcada peloevolucionismo victoriano, terá sidocentral a dupla juristes-historiens du droit(do suiço J. J. Bachofen ao romanistafrancês H. Lévy-Bruhl), cuja longahegemonia se veio a ver substituída(com algumas sobreposições desde1885, data da Conferência de Berlim),numa terceira fase, pela emergênciado par juristes-administrateurs coloniaux (naslistagens de J. Vanderlinden,sobretudo belgas interessados em

colaboração produtiva entre aqueles a quem chamou“os actores” deste relacionamento. Deve-se mais umavez a este A. (idem: 9-10), o ter cartografado, nostítulos das disciplinas que se foram perfilando atéchegarmos à Antropologia Jurídica de hoje, aprogressão das relações de articulação entre aAntropologia e o Direito no que diz respeito àEuropa continental. O magistrado alemão A. E. Postdisparou o primeiro salvo, em 1891, ao intitular umseu livro Grundriss der ethnologischen Jurisprudenz(Fundamentos do Direito Etnológico, numa traduçãolivre); a Antropologia figurava aí como umasubdivisão do Direito. O italiano G. Mazzarellapublicou em 1902 uns Studia di Etnologia Giuridica, dandopalco a uma Antropologia “juridizada”. O que se viuconfirmado, ainda que em termos de fusõesdisciplinares sui generis mas ao espírito do tempo, porR. Maunier, com os seus Études de Sociologie et d’ÉthnologieJuridique e por Henri Lévy-Bruhl com a sua Sociologie duDroit.

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África e holandeses emprenhados noestudo dos adat indonésios, mas tambémdecerto inúmeros britânicos,franceses e até portugueses).

Nestas três primeiras fases, deum ou de outro modo, coube aosjuristas a iniciativa, por assimdizer: foram juristas quem liderou oprocesso de convergência táctica - demera conveniência conjuntural - , oratomando como ponto de partida um oumais pressupostos antropológicos, ouapetrechando-se com uma ou mais dasnoções que a Antropologia desenvolveu(e.g., a de cultura, ou a de“costume”, esta última usada numsentido muito mais sociológico do queaquele em que os juristas lhealudem). Viveu-se assim uma quartafase, já no século XX e que durou atéaos anos 70, que seria caracterizávelpela predominância dos anthropologuesintéressés par le droit, e envolveria (comoiremos ver) nomes como os de B.Malinowski, A. R. Radcliffe-Brown, M.Gluckman, E. A. Hoebel, P. Bohannan,C. Geertz, L. Rosen e S. Falk-Moore.Segundo Vanderlinden, este quartopasso terá significado um momento deruptura e dado azo a uma aproximação

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mais plena e efectiva: a liderançaterá desde então, de certo modo,passado para as mãos de antropólogos,por via de regra menos preocupadoscom a utilidade táctica dasconfluências do que com a suaadequação científico-analítica.

Seja como for, a quarta faseteria desembocado num quinto e últimointervalo, que dura até hoje, que emparte lhe seria temporalmentesobreponível e que dela seráresultado: a de anthropologues et juristesen tandem. Como o nome indica, trata-se de uma nova fase que conta comesforços conjuntos de uns de outros,e que envolve trabalhos tais como,logo em 1941 e nos Estados Unidos(como também teremos a oportunidadede verificar) o estudo de E. A.Hoebel e K. Llewellyn sobre os índiosCheyenne da América do Norte, e em1981 o do britânico S. Roberts e donorte-americano J. Comaroff sobre aconstrução cultural e a condução delitígios num agrupamento Tswana doBotswana. E seria esta a fase em queainda hoje nos encontraríamos18.18 Como iremos ver, foi sobretudo nesta fase, a daefectiva consolidação definitiva da Antropologia

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Seriações e periodizações como asequacionadas por Jacques Vanderlindensão decerto muitíssimo úteis, já quepermitem desenhar (pese embora ofaçam de maneira impressionística) a“topografia” de um “espaço deinteracção”, se me é permitido o usode metáforas semióticas. Mas esgota-se aí a sua fecundidade analítica:pouco ou nada dizem quanto aoreconhecimento generalizado de uma“vizinhança teórica e epistemológica”de disciplinas que, pelo menosinstitucionalmente, se encontram deforma clara muito separadas entre si.Nem aborda as “questões de alçada epoder” vividas, que me parecemprimordiais caso queiramoscompreender as dinâmicas processuaisque foram ocorrendo, deterritorialidade e hegemonia.

Quereria, nas páginas que seseguem, tentar melhorar,enriquecendo-o, o quadro-esquisso queJ. Vanderlinden com tanta nitidezpropôs. E gostaria de fazê-lo pondoem realce a utilização continuada,Jurídica, que se desenrolaram muitas das contendasque deram corpo aos sucessivos desenlaces da tensãofundacional a que aludi.

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pela Antropologia Jurídica dosprimeiros cinquenta anos, de muitosdos enquadramentos genéricos oriundosnos estudos jurídicos levados a cabopor juristas a operar no seu próprioquadro disciplinar de origem19. Mais emenos do que isso, quereria lograriluminar com uma luz fria alguns dosterritórios epistemológicos comunsque tantas vezes se escondem pordetrás de distinções aparentementeradicais de métodos, deenquadramentos teóricos, e até deobjectivos sociais e culturaisimplícitos20.19 É interessante verificar que a este tipo deperspectivação já se tinha aludido (infelizmente,sem grandes desenvolvimentos) em trabalhos levados acabo em Portugal. Ou pelo menos, foi-o num caso: noseu O Discurso e o Poder, Boaventura de Sousa Santos(1980: 5) notou, sem outras elaborações e nocontexto muito particular de uma crítica ao“esquecimento” do Estado em que incorrem “asociologia do direito e a antropologia do direito,em graus diferentes e por razões distintas”,advertindo que estas assim reflectiriam “uma adesãoimplícita aos horizontes problemáticos definidos pelafilosofia do direito e pela dogmática jurídica"[itálico meu]. Um estupendo insight que me pareceimprescindível aprofundar, como tento fazer nesteEstudo.

20 Revisitadas as coisas deste ângulo, os meusobjectivos subsidiários, neste Estudo – redigido nocontexto de um esforço preliminar que não ambiciona

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Um último ponto, este “local”.Nunca perco de vista que é nocontexto de um trabalho produzido numcontexto universitário einstitucional (no caso em apreço, nostermos de provas académicas) queabordo todas estas questões. Nãodeixo, em resultado, de retomar amaioria delas à luz do ensino e daaprendizagem da Antropologia Jurídicano quadro da licenciatura em Direitoda FDUNL.

6.

De facto, o plano do estudo quese segue prende-se tanto com asvárias finalidades que enunciei como

mais do que cartografar relações a um nível menossuperficial, mais sistémico - não são,evidentemente, o de alinhavar uma qualquerperiodização das interacções havidas, o de medir asua eventual eficácia, ou o de aquilatar os motivospara os seus eclipse e re-emergência recorrentes.Tenho como finalidades começar a delinearposicionamentos relativos. Com intuitos maisinterventivos, pretendo de alguma maneira encetar oprocesso laborioso de mostrar semelhanças ediferenças, quero tentar realçar irredutibilidades eaferir possibilidades de levar a cabocompatibilizações disciplinares parciais.

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obedece às exigências legais formaisrelativas a um trabalho apresentadopara o efeito da realização de provasacadémicas de agregação. Se asambições embutidas no primeiro destesconjuntos de constrangimentos dealgum modo ditam um tom “ensaístico”ao que escrevi, a sucessão de passose tónicas do que se segue sãoexigências que decorrem do segundodaqueles dois conjuntos: osimperativos de justificar,fundamentando-as, as escolhas que fizno plano do método científico e no daestratégia pedagógica, para as aulasda disciplina sobre a qual o redigi.

Dividi o texto do meu trabalho emnove Partes. Numa Primeira Parte,tento localizar a Antropologia, demaneira sucinta mas sistemática, noquadro das Ciências Sociais modernase, nela, a Antropologia Jurídica comoum subconjunto. Nesta primeira secçãosubstancial do presente trabalho comoque delimito e traço fronteiras,tendo sempre o cuidado de mostrarporosidades e permeabilidades.

A Segunda Parte esgota-se numadiscussão, pormenorizada q.b.,relativa ao contributo dos Founding

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Fathers “clássicos” para o que se veioa chamar Antropologia Jurídica: dealguma maneira assim logrando umadefinição inicial de “um tabuleiro”cujo design coube no essencial a H. S.Maine, K. Marx, E. Durkheim e M.Weber. Como iremos ver, o legadodeixado foi pesado e rico, e operoumais como um quadro catalizador doque uma camisa de forças no que tocaà gestação disciplinar que aquiabordo; rascunhou à partida um modelode permeabilidade interdisciplinarcujo potencial heurístico se temvindo a par e passo a concretizar.

Volto-me depois, numa TerceiraParte, para uma contextualizaçãocronológica da progressão dasproduções mais importantes do corpusantropológico-jurídico que se temvindo a constituir. Mais do queseriar teorias e o seu encadeamentológico sucessivo (do que, em todo ocaso, não prescindo), nesta segundasecção do meu estudo preocupo-meassim com mostrar o carácterrelativamente indeterminado destesprocessos de substituição, de par comuma preocupação permanente emevidenciar as ressonâncias mais

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significativas que se manifestaramentre os vários momentos destaprogressão e os seus contextosdisciplinares e os respectivosenquadramentos de problematização.

Faço-o no quadro deconstrangimentos externos, paralelosàqueles a que a Ciência e a Filosofiado Direito anglo-saxónicas também meparecem ter estado sujeitas,desigadamente as associadas aosquadros sócio-políticos amplos numMundo em mudança acelerada.Internamente, sublinho o papelpreenchido pelas teorizações de B.Malinowski e, sobretudo, pelacontrovérsia fundacional quecontrapôs M. Gluckman a P. Bohannan,naquilo em que ambos estes “momentos”vieram modular (mas sem nunca osdirigir) os desenlaces teórico-metodológicos a que deram azo aonível da tensão de base do projectoantropológico-jurídico gizado pelos“Pais Fundadores” do período queintitulei de “clássico”.

Noto aí também que parecedifícil, apesar de tudo, nãovislumbrar no percurso pequenospassos de esbatimento da tensão

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fundacional que isolei, mesmo numenquadramento de relativa indirecçãocomo aquele que, postulo, melhordescreve a lógica “interna” docaminhar da Antropologia Jurídica:não é fácil, nomeada eparadoxalmente, tornear a convicçãode que a progressão averiguada setorna particularmente inteligível see quando encarada como uma série depequenas aproximações empreendidascomo outras tantas parcelas de umatentativa sistemática de ultrapassar,“transcendendo-o”, o sério dilema“comparabilidade-autenticidade” quefoi delineado pela controvérsiagestacional (no sentido mais forte deconstituinte) que, como iremos ver,contrapôs Bohannan a Gluckman: mais,e que como tal foi sendo interpretadapelos antropólogos jurídicos.

Uma Quarta Parte, por sua vez,debruça-se sobre as dificuldades comque continua a deparar a AntropologiaJurídica nas tentativas em quepersiste (pois que a tanto o seulegado “clássico” a predestinou) numesboçar de análises contra o pano defundo de noções abrangentes cujaabertura está virada para

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generalizações indutivas. Utilizo,para o efeito, um exemplo etnográficoresultante do meu próprio trabalho decampo nas Filipinas. Sem definiçõesou um verdadeiro comparativismosistemático, pois que ambospressuporiam deduções apriorísticas,nesta quarta parte do estudo que aquilevo a cabo rebusco (é este o termo)noções de jurídico e de juridicidade.

Numa Quinta Parte, apresentoalguns exemplos, tirados mais uma vezda minha própria investigação, com osquais tento ilustrar algumas dasdificuldades e das algumas das opçõesda Antropologia Jurídicacontemporânea. Esta quinta parte abrecom uma primeira subsecção em que as“formas judiciais” híbridas emcristalização num campo de refugiadosimplantado nas cercanias do Huambo,em Angola, servem de pretexto parauma problematização de conceitos comoo de “pluralismo jurídico”. Umasegunda subsecção complementa estalinha de argumentação, virando-separa os processos multidimensionadosde “mestiçagem” do jurídico em S.Tomé e Príncipe. A última dassubsecções desta Quinta Parte do

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trabalho coroa a tríade de exemplosetnográfficos ilustrativos, ao pôr emrelevo a juridicidade muitas vezesimplícita em práticas como ainterpretação pública e colectiva desonhos entre os Atta das Filipinas.

Seguem-se-lhes uma Sexta e umaSétima Parte em que, sucessivamente,me debruço sobre diferençasdiacríticas, ao nível teórico emetodológico entre a AntropologiaJurídica e o Direito (usando comoexemplo a construção de “casos”, umasemelhança que os distingue), e sobreos eventuais papéis que uma cadeiracomo esta de Antropologia Jurídicapode e deve preencher no quadro deuma formação universitária emDireito. No primeiro contexto, ocarácter normativo do Direito écontrastado com o programa descritivoque melhor se adequa à AntropologiaJurídica e é ensaiado um rastreio dealgumas das consequências que issoengendra. No segundo, o ponto deaplicação será antes uma dasdimensões da eficácia pedagógica doestudo da Antropologia Jurídica porestudantes dedicados à aprendizagem

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do Direito: aquilo que apelido de oseu "efeito de revelação”.

Numa Oitava Parte, apresento oPrograma detalhado da disciplina deAntropologia Jurídica que desenhei, etento fundamentá-lo e justificá-lo,tanto ao nível científico como aopedagógico. Aproveito também aoportunidade para uma discussão sobreo ensino da Antropologia Jurídica eminstituições estrangeiras de EnsinoSuperior, tendo o cuidado dedistinguir aqueles casos em que o seucontexto é o da formação de futurosjuristas, daqueles outros contextosem que o que está em causa, ao invés,é a preparação de antropólogos.

Finalmente, a Parte Nona, queserve de fecho, apresenta abibliografia que utilizei para afeitura deste estudo e que nele cito.

Uma rápida última palavra desalvaguarda. Mesmo uma olhadelasuperficial ao corpo do texto queapresento torna patente que nãopretendi de maneira nenhuma redigiruma introdução à Antropologia Jurídica.Se o tivesse pretendido fazer, oconteúdo e a organização sistemáticaseriam certamente outros: havia nele

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porventura de ter incluído uma sériede secções iniciais relativas àsmanifestações mais comuns dajuridicidade e à gama de variações aque esta se vê sujeita; decerto queme teria detido em pormenor nasmodalidades de correlação (nuns casosmais estreita e directa do quenoutros) entre formas de expressãojurídica e formas sociais e culturais(por exemplo as ressonâncias entrehierarquias sociais e formalizaçãonormativa); ter-me-ia preocupado, emsuma, com produzir um trabalho dotadode uma ordem e uma cumulatividademetodológica que este não tem.

O que escrevi estáinevitavelmente marcado pelasfinalidades últimas que prossigo: ade apresentar um trabalho no âmbitode provas académicas públicas, noquadro de uma Faculdade de Direito.Trata-se, assim, e este ponto éprimordial, de erigir e fundamentaruma disciplina que irá serministrada, não a futurosantropólogos, mas a aprendizes dejuristas: uma diferença que faz todaa diferença.

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Aquilo que ora apresento tomasempre em linha de conta essaconjuntura muito particular derecepção, e esse duplo contexto deenunciação. Mais do que produzir umqualquer texto antropológicointrodutório, esforcei-me por tentarconstruir, ou pelo menos rascunhar oesquisso dela, uma pontetransdisciplinar; naturalmente,tentei fazê-lo seguindo umaterminologia e uma ordenação deideias que creio adequadas às minhasaudiências oriundas de domínios maisjurídicos.

Nada disto deverá causarsurpresa. Como também noto naintrodução à Parte Oito do presenteestudo, enquanto no ensino-aprendizagem da Antropologia Jurídicanas Faculdades ou Departamentos deDireito de todo o Mundo a atençãotende a deter-se sobre formasnormativas e são por norma realçadosos benefícios das contextualizaçõessocioculturais e de um alargamento deâmbito empírico (“etnográfico”) que aperspectivação jus-antropológica sabeprovidenciar, quando ao invés oenquadramento académico-institucional

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contextual é o disponibilizado pelasCiências Sociais a tendência dosantropólogos jurídicos parece serantes a de insistir na importância deencarar o “jurídico” como uma dasvárias formas simultaneamenteexistentes de normatividade social, eperspectivar estas no contexto dasestruturas e da organização“política” das sociedades envolvidas.A minha opção de fundo, nessesentido, não foi atípica.

I

A ANTROPOLOGIA E A ANTROPOLOGIAJURÍDICA

It is perfectly proper to regard andstudy the law simply as a greatanthropological document.Oliver Wendell Holmes (ediçãode 1920), Collected Legal Papers:186.

O início do ano lectivo de 1999-2000 viu ser criada em Portugal, pela

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primeira vez, uma cadeira deAntropologia Jurídica: foi incluídana licenciatura em Direito ministradana Faculdade de Direito daUniversidade Nova de Lisboa. Adisciplina mantém-se, passada meiadúzia de anos. Por decisão, numa faseinicial da Comissão Instaladora, edepois do Conselho Científico daFaculdade, tem estado sempre sob aminha regência. Tratou-se daprimeira, e até ao momento a única,experiência deste tipo nas nossasinstituições de ensino, públicas ouprivadas. Como iremos teroportunidade de verificar, mesmo asproduções antropológico-jurídicasavulsas têm escasseado no nosso país.

É um truísmo afirmar que umaconjugação de circunstâncias como aque acabei de delinear funcionou emsimultâneo como uma responsabilidadee como uma liberdade. Constituiu umpeso com que tenho tido de arcar, aomesmo tempo que me tem permitido umainvejável margem de manobra. Mas umaconfluência como a que indiqueiacarretou, sobretudo, numerosasexigências implícitas. Uma delas é

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decerto a de demarcar a AntropologiaJurídica.

1. SOBRE O ÂMBITO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA

Comecemos pelo princípio, porassim dizer. Quando de uma primeiraabordagem a uma disciplina nova (oupelo menos nova no nosso ensino e aténo nosso país) como a de AntropologiaJurídica, é natural que sejamformuladas diversas questões. Logo àcabeça se põe a pergunta de saberqual o âmbito que ela reivindica comoseu. Uma dúvida que, apesar dosriscos que tal acarreta, podemos commaior facilidade manejar dividindocampos analíticos.

Trata-se, por um lado, dedelimitar o que é, pelo menos no quetoca esta sua subdivisão disciplinar,a Antropologia; sem esquecer que, emsimultâneo, há que apurar o tipo deligação subdisciplinar que está emcausa no que toca ao estudo de umdomínio tão contestado como o do“jurídico”. Por outro lado, e nessesentido, importa traçar um esboço dascondições contextuais concretas que

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levaram à circunscrição de doisobjectos conceptuais (ou conjuntos deconceitos em vários sentidosinterligados) particulares sobre osquais se debruça o programa queproponho: o de jurídico e o (nesteâmbito tão-só em sentido ancilar) de“político”. Estes são problemas quenas próximas secções do presenteestudo irei apenas equacionar21. Mastentarei fazê-lo em enquadramentosque, creio, os iluminam bem.

21 Acresce a este um outro elenco de questões, quesão complementares dessas primeiras mas não menospertinentes que elas, que giram em torno de saberquais são os tópicos, os métodos e as perspectivaspelos quais se regem os estudos agregados a estadisciplina criada na FDUNL. E há ainda quecontextualizar nesses âmbitos, justificando-a, ainclusão de uma disciplina como a de AntropologiaJurídica no currículo de uma licenciatura emDireito. Não deixará, por último, de ter interesse aenumeração dos objectivos concretos e dasfinalidades materiais que um programa semestraldeste tipo se propõe atingir. Questão, aliás, que dealgum modo abarca as duas do parágrafo anterior eque pode talvez ser enunciada de maneira maispulverizada mas mais directa: o que é que estadisciplina do Curso tem de afim com o Direito? Qualé o seu papel nesta licenciatura e nesta Faculdade?O que é que se vai nela aprender? E que utilidadeisso poderá ter para futuros juristas? Todos estestópicos (naturalmente, uns mais que outros) serãocom a minúcia possível abordados no presente Estudo.

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Resta-me salientar que aperspectiva em que me situo no queapresento e discuto não é neutra:reflecte, naturalmente, as posiçõesque sustento em relação às váriasquestões que aqui trato.

Tal como referido, começo pelasquestões relativas à circunscrição daAntropologia. No contexto da economiado presente trabalho, como não podiadeixar de ser, faço-o, num primeiropasso, não tanto para a definir (sejaem que sentido for) como para alocalizar de uma maneiraoperacionalmente útil. Como é que aAntropologia em geral se posiciona visà vis a Sociologia, a História, ou aFilosofia? Podemos dar a estasperguntas uma espécie de segundademão: de modo específico, como é quea Antropologia Jurídica convive einterage, repartindo vizinhanças, coma Sociologia Jurídica, com a Históriado Direito, com o Direito Comparado,com a Filosofia do Direito, ou (maisobliquamente) com a Criminologia -para só dar alguns exemplos óbvios22.

22 Mesmo a este nível operacional, várias respostassão plausíveis, no sentido de aceitáveis para aAntropologia. Curioso é verificar que nenhuma delas,

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Nas páginas que se seguem,delineio um primeiro esboço dasdemarcações fronteiriças, por assimdizer, da Antropologia Jurídica,recorrendo a uma sequência decontrapontos disciplinares.

2. DAS QUESTÕES DE CIRCUNSCRIÇÃO DISCIPLINAR

A Antropologia insiste nautilização sistemática de uma ououtra versão de um método comparativoe numa contextualização ampla (etendencialmente global) das partes davida social sobre as quais sedebruça, procurando semprefundamentar e propor, com base emrealidades (etnográficas) empíricasmuitas vezes assaz diferentes umasdas outras, generalizações de fundo.A finalidade do comparativismo emcausa não é tanto a de apurarsemelhanças e diferenças, mas antes a

no entanto, agrada a todos os antropólogos; o queporventura denotará alguma imaturidadeepistemológica deste domínio científico. Limitar-me-ei a dar a conta da minha perspectiva genérica sobreestas questões de demarcação de fronteirasdisciplinares.

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de viabilizar as generalizações que aAntropologia visa formular23.

Apesar de se tratar de umadisciplina sociológica, a práticateórica da Antropologia contrastaassim, por via de regra, com a daSociologia (muitas vezestradicionalmente virada paramecanismos sociais maiscircunscritos); com a da História (jáque às preocupações centrais destacom o diacrónico adiciona um focosobretudo sincrónico); ou com o23 É-o mesmo na opinião de autores mais historicistase “deterministas”. Assim, por exemplo, a vocaçãoabrangente e universalista da Antropologia Jurídicalevou autores tão influentes como o jurista eantropólogo Francis Snyder (1981: 164) a insistirque, todavia, “the anthropology of law is a myth if conceived asthe search for ahistorical or cross-culturally valid features of law, oralternatively, as the reduction of historically and culturally specificnormative forms to ethnographic descriptions of individualbehaviour”. Mas Snyder continuou, esclarecendo a suaopinião de que o desenvolvimento futuro daAntropologia Jurídica estaria decerto “not only inelucidating the relationships between social action and culturalideologies, but also in grasping the extent to which these relationshipsand the wider social processes of which they form a part are theproduct of specific historical and economic conditions” (idem,ênfase minha). Em formulações deste tipo (redigidasnuma fase “marxiana” do percurso intelectual doautor), um marcado universalismo persiste (emcontraponto com tanto uma sua versão linear como comum qualquer excepcionalismo) apesar das louváveiscautelas conjunturais.

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especular próprio da Filosofia (cujaprogressão intelectual é, porinclinação, menos empírica eindutiva). Distinções entre aAntropologia e estas disciplinas, écerto, tendem a revelar-se efémerasde geometria variável, vistopropenderem a simplesmente reflectirformatos históricos de uma divisão detrabalho intelectual em constantemudança. Não deixam todavia, porisso, de preencher a função útil deposicionar o conjunto das práticasantropológicas num âmbito científicomais amplo.

No que toca mais concreta eespecificamente à AntropologiaJurídica, há que sublinhar que sãovárias as diferenças (como assemelhanças) com “disciplinasadjacentes”. Entrevejamos algumasdelas a traço grosso, tendo sempre ocuidado de correlacionar umas com asoutras as numerosas vizinhanças e asdistâncias mapeadas.

Da Sociologia do Direito, quetende tantas vezes a entrever osocial como um contexto sobretudoexterno dos tópicos jurídicos(tipicamente investigando temas como

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por exemplo as coordenadasconjunturais das decisões judiciais,as condições institucionais para aemergência de novas formas jurídicas,ou os constrangimentos socioculturaisactuantes sobre tipos inovadores delegislação24), a Antropologia Jurídicadistancia-se muitas vezes não sópelos métodos (que prefere maisinterpretativos e por via de regraimbricados na chamada “observaçãoparticipante”), mas também por ummuito maior “internalismo” e, muitasvezes, por uma mais explícita

24 É evidente que uma perspectiva mais internalista épossível, e muita da melhor Sociologia do Direitotem-na avisadamente assumido como método de eleição.Alguns sociólogos têm também vindo a aventurar-se emestudos comparativos, e uns poucos têm mesmo tentadodebruçar-se sobre sociedades outras que não a“ocidental”, ou pelo menos têm prestado atenção apráticas jurídicas das minorias étnicas “não-ocidentais” que vivem no contexto da grande maioriadas sociedades “ocidentais” contemporâneas. Estudosdesses aproximam-se suficientemente dos focoshabituais da Antropologia Jurídica para que se tornedifícil traçar, nesses casos, a configuração “local”das fronteiras disciplinares. É curiso constatarcomo, nos primórdios da disciplina de AntropologiaJurídica, essas fronteiras raramente existiam: H.Lévy-Bruhl, por exemplo, em tantos sentidos o pai daAntropologia Jurídica francesa moderna, nunca deixoude conceber o que fazia como um sub-programainscrito na “sociologie du droit”.

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sensibilidade ao “compreender” do queao “explicar”.

A meu ver, uma hipotéticadestrinça entre Antropologia Jurídicae Sociologia do Direito baseia-se semdúvida numa validação-racionalização“tradicional”, convencional25; mashoje em dia também simultaneamente25 São inúmeras as asserções que têm vindo a serformuladas neste sentido. Limito-me a citar umadelas, a de Brian Z. Tamanaha (1993: 203), nocontexto da sua notável crítica ao conceito de legalpluralism, que afirmou que “the line separating anthropologyand sociology has never been absolutely sharp”. A partirsobretudo os anos 70 do século XX houve quemtentasse diminuir a distância entre as duasdisciplinas. Curiosamente, no entanto, as alteraçõesentão (e durante os dois decénios seguintes)consideradas como desejáveis, e até (para osdefensores de uma certa perspectivação que reputavaa investigação antropológica uma prática política)imperativas, postulavam um movimento unidireccional.Assim, considerou-se imprescindível que os antropólogosincluíssem no âmbito das suas análises as“sociedades complexas”. Que, em paralelo, ossociólogos passassem, por seu lado, a dar atenção às“sociedades simples”, foi uma coisa que não pareceter então ocorrido a ninguém. É difícil, por isso,não entrever nesses movimentos uma propensão“colonizadora” (de uma coligação improvável einstável de sociólogos, nacionalistas, estatistas,terceiro-mundistas, relativistas radicais e“cosmopolitistas”) encapotada sob o manto de“transdisciplinaridade”, e muitas vezesracionalizada com a alegação (dúbia) de que“sociedades simples” teriam desde há muito deixadode existir.

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ostenta (fá-lo sem dúvida emresultado da já longa partição deáguas), alguma justificaçãometodológica substantiva. Aconvicção, que é bastante consensualentre os analistas, de queepistemológica ou metodologicamentenada exige por princípio uma taldistinção26, pouco diminui uma

26São vários os casos exemplares de uma Sociologia doDireito mais atreita ao tipo de problematização“internalista” (no sentido sociológico do termo) queos antropólogos jurídicos preferem. A famosa “livinglaw” do austríaco Eugen Ehrlich (1975, 501ss), océlebre “founder of sociological jurisprudence” e uma dasgrandes figuras de proa da Sociologia do Direito,consiste na ordenação interna, geradaespontaneamente”, das “social associations”, entidadesque incluem desde a família, às “corporações”, aassociações, comunidades, clubes, profissões,fábricas, quintas, o Estado, etc.. As “normas deconduta” (rules of conduct) que, segundo Ehrlich,asseguram a “ordem interna” destas associações depessoas, seriam “customary practices” empiricamenteobserváveis de maneira directa visto se tratar dos“usos concretos” (concrete usages) dos actores sociais;e constituem aquilo que é de facto o “sistema legal”de cada agrupamento social. Com ecos malinowskianosevidentes, Ehrlich (ibid: 497) sublinhou, “the living lawis the law which dominates life itself even though it has not beenposited in legal propositions. […It] is not the part of the content ofthe document that the courts recognize as binding when they decide alegal controversy, but only that part which the parties actually observein life”. E. Ehrlich, é claro, tal como (conforme vimos)B. Malinowski, teve com tais formulações dificuldadesem distinguir normas jurídicas de quaisquer outras:os critérios usados não lhe permitiam uma

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separação de facto: um distanciamentomantido a nível institucional hátempo suficiente para, na prática,constituir obstáculo a uma qualquerhipotética fusão fácil entre estesdois domínios disciplinares commétodos, tónicas e preocupações hoje

dissociação simples entre a lei, a religião, aética, os costumes, a moralidade, o decoro, o tacto,a moda, ou a mera etiqueta. B. Tamanaha (1995: 505)chamou-lhe “a dauntingly serious defect”, já que este tipode definição torna uma “lei” virtualmenteindistinguível daquilo a que os antropólogos chamamum “padrão cultural” (cultural pattern). O que não serádecerto surpreendente, já que o Direito é definido,à partida, como notei, como um corpus abstraídoprecisamente a partir de padrões de comportamento.Note-se (um ponto que amiúde irei retomar maisadiante) que a ausência de uma definição enxuta, oude uma qualquer definição, não inviabiliza análisesque sejam ricas e influentes. Particularmentepertinente, ainda que certamente atípico, parece-metambém ser o caso de Niklas Luhmann (um dos pais dasteses autopoiéticas no estudo sociológico doDireito) e de alguns dos seus seguidores. Natradução para o inglês publicada em 1985 (eintitulada A Sociological Theory of Law) da magistralmonografia Rechtssoziologie que Luhmann escrevera em1972, King-Utz e Albrow inseriram o seguintecomentário relativo à mudança de paradigma aíprotagonizada: “the sociology of law is not, then, an examinationof the influence of one set of factors on another but an enquiry intowhat is found to be a necessary inner connection between law and anykind of social life” (cit. por D. Nelken, 1988: 207). Umaasserção que, a ter aceitação geral, aproximariamuito os sociólogos do Direito das preocupaçõestradicionais dos autores de Antropologia Jurídica.Um derradeiro exemplo: uma boa percentagem dos

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por via de regra bastantediferenciados27.

Da História do Direito, com aqual mantém relações genéticas defiliação, a Antropologia Jurídicadistinguir-se-ia mal28 se não fosse ateimosia que mostra em fundamentar

artigos constantes da Law & Society Review ou do Journal ofLegal Pluralism estão posicionados na fronteira difusaentre estas duas subdisciplinas.

27 Mas talvez não por muito mais tempo, já que asrealidades sociais contemporâneas parecem iresbatendo as distinções de fundo que sustentam asnossas imagens do “tradicional” e do “moderno”. Umponto magnificamente posto em evidênciaimpressionística por Sally Falk Moore, jubilada emfinais de 2002 como professora de AntropologiaJurídica em Harvard, quando escreveu que: “when, at thefoot of Mount Kilimanjaro, one meets a blanket wearing, otherwisenaked, spear-carrying Maasai man on a back path in the Tanzanianbush, one notices that he has a spool from a Kodak film packet in hisearlobe as an earring plug. That earring alone is sufficient to indicatethat he is not a total reproducer of an integrated ancestral culture. Hisfilm spindle is made of extruded plastic manufactured in Rochester,New York, his red blanket comes from Europe, his knife is made ofSheffield steel. Dangling from a thong around his neck is a smallleather container full of Tanzanian paper money, the proceeds fromselling his cattle in a government–regulated market. The price of hisanimals varies with world inflation. The roads nearby have buses withtourists. The international economy has penetrated everywhere. Ideasand information have moved with it. All peoples live within nations andhave seen the silvery side of planes flying over their lands. Thedefinitions of social part and social whole have changed” (1986: 4-5). É curioso verificar que, apesar da sua aparenteactualidade, este parágrafo foi redigido há já quaseuma geração. Não me parece carecer de demonstraçãoque a generalização de situações híbridas deste tipo

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tão observacional e conjunturalmentequanto possível as generalizações queformula, e ainda o persistir emformulá-las sobre todas as sociedadese não só as “ocidentais”. Sem dúvidaque a distância resultante é maisconjuntural que estrutural, maisacidental do que essencial: umaminimamente completa Históriaa domínios como o jurídico, o político, o religiosoe o sócio-cultural, tornam difusas as fronteirasnocionais de divisões disciplinares como a que foisendo erigida entre Sociologia do Direito eAntropologia Jurídica: o que antes era objectoprivilegiado de análise de qualquer uma delas éagora de ambas.

28 Ver, neste contexto, os comentários que constam doútil e refrescante livro sobre o Panorama Histórico daCultura Jurídica Europeia de António M. Hespanha (refiro-me à edição de 1998 e não à última, de 2003),sobretudo nas suas páginas iniciais. Tenho plenaconsciência de que para alguns autores, a distânciaque separa a Antropologia Jurídica da História doDireito pode ser tomada como sendo bem maior:nomeadamente (e outros exemplos haverá) para aquelescultores desta última que insistem que o seu objectoé normativo e não factual. Nada impede, porém, aAntropologia de se debruçar sobre a progressãodiacrónica das formas normativas; e em boa verdadealguma da Antropologia Jurídica contemporânea temvindo a fazê-lo, sob a forma de estudos quanto aformas de exercício de um “poder simbólico”, porexemplo [ver, e.g., a colectânea nesse sentidoinovadora de (eds.) J. Starr e J. Collier (1989),History and Power in the Study of Law: new directions in legalanthropology].

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académica do Direito (e esta leituraé cada vez mais consensual entrehistoriadores), para aspirar a umestatuto científico convincente, nãopode de maneira nenhuma prescindir deuma inclusividade muitíssimo maior doque aquela a que os seus pressupostosevolucionistas e organicistas portradição tantas vezes a têmcondenado; no sentido em que nalgunscasos logra fazê-lo, os programas deinvestigação da Antropologia Jurídicae da História do Direito tornam-se,senão indissociáveis, em todo o casodifíceis de destrinçar uns dosoutros29.

Além disso, e tal como é o casono que diz respeito à vizinhança deambas frente à Sociologia do Direito,a tendência parece ser cada vez maisa de que as convergênciasdisciplinares entre a História do

29 Com alguns reflexosa institucionais. Na Europacontinental, ainda hoje em dia, na linha de umatradição encetada pelos evolucionistas erevitalizada pelas múltiplas reconvergênciasmodernas, nas provas académicas de Aggrégation dasuniversidades francesas, por exemplo, a AnthropologieJuridique é tida como um ramo da Histoire du Droit; creioque é nesse contexto que devemos perceber a atitude(então refractária) de H. Lévy-Bruhl que, como atrásreferi, se tomava como um sociologue du droit.

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Direito e a Antropologia Jurídica seacentuem, num movimento centrípetocom origem em ambos os lados. Ouseja: tantas são porventura as vezesem que a Antropologia Jurídica incluium enquadramento diacrónico, enquantoparte e parcela dos seus quadrosanalíticos, quantas aquelas nasquais, no que diz respeito aocomparativismo sincrónicogeneralista, a História do Direitoalarga a base de fundamentação dassuas asserções. As fronteiras de umae de outra destas disciplinas (talvezmelhor, as suas “superfícies decontacto”) são assim, de igual modo,porosas.

O Direito Comparado mantém com osestudos antropológico-jurídicosligações fortes de germanidade. Masas semelhanças existentes formaminterfaces por via de regra tão-sópotenciais, no sentido de que muitasvezes não passam de mera declaraçõesde intenção: ao conduzir osinvestigadores a poisarpreferencialmente a atenção num dospólos (por norma o mais“sistematizado”) do campo semânticodo conceito anglo-saxónico de law

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(cuja tradução é porventuraequacionável com estando posicionadaalgures entre o termo “lei” e o“Direito”), muitas vezes, em termospráticos, o Direito Comparado tem-sevisto restringido em demasia (doponto de vista da AntropologiaJurídica) ao estudo daquelassociedades que exibem Estado (ou um“soberano”); e, de entre estas, depreferência aquelas nas quais háclaras codificações e formalizações(de raiz religiosa, por exemplo) deprincípios, normas e regras.

É verdade que este estado decoisas não é nem feliz neminevitável; porquanto desde há muitoque o Direito Comparado, pelo menosnas suas versões mais modernas e mais“ecumenistas”, advoga serem seusobjectos também os sistemas(africanos, “hinduístas”, ou“sínicos”, por exemplo) que tantasvezes escapam a uma talcircunscrição, insistindo, emconsequência, que é seu um programade investigação30 muito mais alargado.30 Tal é o caso, por exemplo, da Anthropologie Juridiquedesenvolvida com tanto sucesso, sobretudo na Françados anos 80 e 90 do século XX, por Norbert Rouland,que num sentido forte retoma o programa disciplinar

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É neste sentido que esta disciplinacientífica está envolvida num esforçocom mais afinidades com aquele quetem enformado a ambição tradicionalda Antropologia, pese embora aAntropologia Jurídica insistainvariavelmente numa contextualizaçãosociocultural dos fenómenos queaborda e na formulação degeneralizações, procedimentos maisraros nos estudos de Direito

do Direito Comparado. Significativamente, na suacurta introdução à tradução inglesa de umacolectânea de Rouland, Simon Roberts, um jurista deformação e porventura o principal impulsionadoractual dos estudos antropológico-jurídicos na Grã-Bretanha (entre outras coisas criando umalicenciatura [BSc] em Law and Anthropology na LondonSchool of Economics) escreveu: “Rouland’s “legal anthropology”is an enriched comparative law which he aims to establish firmlywithin the modern French law school curriculum” (1994: vii). Umapágina depois, Roberts nota porém, num tom de algumatristeza e com muita resignação, que apesar de“pesos pesados” como Stein e McCormick terem dado(respectivamente em Inglaterra e na Escócia) algumaatenção a estudos antropológicos, “there has been nogeneral move to enlarge comparative law in the manner which N.Rouland proposes”. Para uma excelente ponderação daprogressão teórica e institucional da AntropologiaJurídica francófona, é imprescindível a leitura doartigo relativamente recente de C. Eberhard (2001).K. Zweigert e H. Kötz oferecem outro exemplo de umalargamento convergente de âmbito, desta feitaoriundo dos domínios tradicionais da disciplina doDireito Comparado.

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Comparado. Na prática, excepcionaissão os casos em que esta ciênciaauxiliar “clássica”31 do Direito (e emparticular da jurisprudência e dadogmática jurídica) se aventurasubstancial e continuadamente nessesterritórios menos formalizados;territórios em que, como iremos ver,a própria definição do campo do“jurídico” suscita problemas teóricos31 Cuja data de institucionalização efectiva éapenas, no entanto, o ano de 1900, quando darealização, em Paris, do célebre I Congrés International deDroit Comparé. Para uma ponderação cuidada einternamente bastante bem contextualizada dadelimitação-autonomização progressiva inicial doDireito Comparado enquanto área de estudo e do seupeso académico formal contemporâneo em vários países(para além de Portugal), é vantajosa a consulta doestudo introdutório de Carlos Ferreira de Almeida(2000). Para uma tomada de posição menos categóricaquanto à data precisa de gestação do DireitoComparado, torna-se muito útil a leitura domagnífico texto ensaístico de Rui Pinto Duarte(2000: 22), em que o autor prefere chamar a estadata de 1900 a do seu “nascimento simbólico”,sublinhando nesse quadro a importância de alguns“acontecimentos anunciadores” que antecederam ofamoso Congresso de 1900: por exemplo, ainstitucionalização do seu estudo em universidadeseuropeias, nos anos de 1832 (abertura de uma cátedraem França) e 1869 (abertura, em Oxford, da cátedraatribuída a H. S. Maine), bem como a celebração devárias Convenções internacionais significativas, oque por sua vez ocorreu sobretudo na segunda metadedo século XIX.

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de fundo de difícil resolução32. Agermanidade existente entre os doisdomínios disciplinares tem-se assimmantido, lamentavelmente, e apesardas tendências recentes para algumaconvergência, como uma merapropinquidade virtual, enquanto umasemelhança fosca de família cujaclarificação efectiva tem vindo a sertravada por barreiras metodológicas einércias corporativo-institucionaiscuja transposição-ultrapassagemparece ser laboriosa.

Quanto à Criminologia (um domíniodisciplinar que seguramente, de umaperspectiva genealógica, tanto deve àSociologia como à Antropologia), ofosso sentido pode ser apenas o quedistingue um todo de uma das suaspartes, ou um modelo genérico das32 O “functional approach” não-“legalista” de K.Zweigert e H. Kötz (estipulado, e.g., na suaexcelente introdução ao Direito Comparado traduzidapara o inglês em 1987) é porventura o mais perfeitoexemplo dessa “nova” onda de estudos. Para uma muitocuidada discussão dos progressos recentes daComparative Law, é útil a leitura do artigo de fundode M. Van Hoecke e M. Warrington (1998), intitulado“Legal Cultures, Legal Paradigms and Legal Doctrine:towards a new model for Comparative Law”, publicadona The International and Comparative Law Quarterly 47 (3): 495-536.

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suas aplicações, ainda que aseparação tópica tradicional entre aCriminologia e a AntropologiaJurídica (e os seus correlativospercursos metodológicos) tornemporventura uma afirmação deste tipo,aos olhos dos cultores da primeiradestas disciplinas científicas, empouco mais do que expressão de umaeventual tendência “colonizadora”33 daAntropologia. Talvez não seja, apesarde tudo, excessivamente polémica aasserção de que a Criminologia podecom utilidade ser encarada como umdos mais antigos e veneráveis ramosdo que veio a chamar-se AntropologiaJurídica, embora enquanto projectotenha um âmbito muito menos geral.

Não são esses, porém, os únicosexemplos de uma vizinhança malcompreendida, ou em todo o caso deadjacências pouco assumidas. Nalgunscasos, a situação é bem maiscomplexa. Com a Filosofia (e até com33 Para uma visão fascinante da interdisciplinaridadecomo “colonização”, ver o magnífico artigo de J. M.Balkin (1996), o célebre Knight Professor de ConstitucionalLaw and the First Ammendment da Yale Law School, que aencara precisamente nesses termos, focando emparticular a sua atenção na quasi-total“incolonizabilidade” do Direito.

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a Ciência do Direito, sobretudo com achamada Jurisprudence, tão cara aosanglo-saxónicos, num emparelhamentoque neste trabalho tentarei a par epasso sublinhar) as afinidades daAntropologia Jurídica são múltiplas.Separa as duas disciplinas, noentanto, a escolha de um método(dedutivo vs. empírico), como muitasvezes a de objectos (sistemas vs.processos)34 e a de campos habituaisde investigação (sociedades

34 Nem sempre, no entanto, no mesmo sentido ou com amesma intensidade; e sem que essas divergênciasescondam uma convergência tácita de fundo, tal comoirei defender. Com efeito, um segundo de reflexãomostra que nalguns casos as formulações das CiênciasSociais e as da Filosofia (e sobretudo quando,naturalmente, esta última constitui como objectosfiguras sócio-históricas) se aproximam entre si maisdo que noutros. É óbvio, para não ir muito longe,que Ronald Dworkin estará porventura bastante maispróximo das preocupações empíricas e processuaistípicas da Antropologia Jurídica do que o estarão amaioria das escolas filosóficas gizadas desde opositivismo ou desde o marxismo oitocentistas; talcomo, aliás, mais próximas delas do que estas tambémestão as formulações teórico-analíticas de um NeilMcCormick. Parece-me assim, como espero irá resultarclaro da análise que se segue, que as vizinhançasefectivamente existentes devem ser gradáveis eencaradas como de geometria variável; devemos aindaestar cientes de que raciocínios centrípetosgenéricos deste tipo pecam seguramente por algumacircularidade ou, pelo menos, por parcialismo.

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ocidentais vs. todas elas). Aindaque, naturalmente e mais uma vez,estas distinções sejam mais uma vezde geometria variável, e seja porconseguinte difícil formular sobreelas quaisquer generalizaçõesverdadeiramente úteis.

Como vimos, nem sempre foi assim.É certo que, ao nível dos contrastesessencialmente formais que listei, aslinhas de diferenciação disciplinartêm sido efémeras e de superfície,porque têm sido sobretudometodológicas e conjunturais. Mascomo tive a oportunidade desublinhar, durante largos decénios, aAntropologia Jurídica viveuamplamente imersa nos horizontes deproblematização da Ciência e daFilosofia do Direito, e nesse períodoo relacionamento interdisciplinarexistente entre elas, apesar delargamente tácito, foi muitíssimoíntimo.

Iremos ver algumas dasimplicações disso: bastará todaviapor ora salientar que, passada alonga fase de subordinação-submissãono relacionamento existente entre osdois domínios, é cada vez mais

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fecunda uma “fertilização cruzada”,mais simétrica e “igualitária” acolaboração entre âmbitos que semanifestam hoje como domínios commaior nitidez bem distintos uns dosoutros; o que, naturalmente, redundaem processos de hibridização cujasvirtudes criativas e cujo potencialpara desencadear novas direcções depesquisa e para reperspectivarquestões de base não devem sersubestimados.

Assim, por exemplo, hoje em diaos resultados de estudosantropológico-jurídicos servemalgumas vezes ou de fundamentação-ilustração empíricas, ou simplesmentede lugar de arranque, parainquirições jus-filosóficas oudivagações “jurisprudenciais” (nosentido anglo-saxónico do termo). Talcomo, simétrica e inversamente,muitas são as noções e os conceitos(sofisticados ou de mera utilidadeanalítica) que a Ciência e aFilosofia do Direito desenvolvem queservem de instrumentos a antropólogosjurídicos nas investigações que esteslevam a cabo.

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3. AS ESPECIFICIDADES DA ANTROPOLOGIA JURÍDICADELINEADA ENQUANTO FIGURA CONTRA FUNDO

Este brevíssimo dimensionamentoacadémico e contextual das posiçõesrelativas destes aglomeradosdisciplinares de esforços científicos(sejam elas relações de vizinhança oude distanciamento, repito) terádecerto alguma utilidade. Permite-nos, em todo o caso, compreenderalguma coisa de uma progressãocientífica que tem sido complexamesmo nos seus processos deautonomização disciplinar. Ou, pelomenos, torna possível que comecemos aequacionar aquela delineando estaúltima contra um pano de fundotemporal; e permite que o façamos nostermos das conjunturas sociopolíticasque foram servindo de enquadramentopara esses processos.

Para começar a levar a cabo taispassos analíticos suplementares,lancemos porém a rede num arco maisamplo. O que caracteriza então aAntropologia? Com o intuito de melhorposicionar nela os estudosantropológico-jurídicos, retomemos o

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tema da circunscrição disciplinar,mas agora a um nível mais alto degeneralidade: começando pelo topo,por assim dizer. E escrutinemo-losprimeiro dessa perspectiva.

Enquanto disciplina, àAntropologia foram concedidos forosformais de cidade académica noprincípio do século XX, apesar dealguma efervescência e agitaçãoverificáveis nos domínios que veio aocupar, estruturando-os, logo emfinais do XIX. Só então começou adisciplina a ser ministrada eminstituições universitárias. Mas comoatrás referi, seria no entantomiragem considerar que essereconhecimento tenha significado aestabilização de quaisquer paradigmasconsensuais, de um hipotético núcleoduro partilhado cujos termos nospermitiriam encontrar uma verdadeiraunidade deste domínio genérico dainvestigação científica.

A verdade é que não há umaAntropologia35. Quaisquer35 Qualquer bom texto introdutório aos estudosantropológicos, ou relativo à história daAntropologia, fornece dados de pormenorrelativamente a estas tão importantes distinçõesfinas, que de algum modo fundamentam as diferentes

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concordâncias de pormenor, enunciadasentre antropólogos em relação tanto amétodos quanto a objectos são, comefeito, raras; e mesmo convergênciasde fundo tendem a constituirexcepções; na Antropologia,cristalizações e paradigmas têmtardado a chegar. O que, se por umlado dificulta os diálogos intra e atéinterdisciplinares, por outro lado ostorna muito mais ricos emultidimensionados.

A paisagem antropológica é defacto muitíssimo plural. Algunsinvestigadores (e quero sublinhar queme refiro aqui apenas a “tiposideais” destes últimos) postulam comolinha de horizonte a concretização definalidades tão ambiciosas como a de,por uma série de generalizaçõesindutivas, pôr a nu (explicando-a, noessencial à imagem do que fazem asCiências Naturais) a gama devariações dos tipos de organizaçãosocial possível dos agrupamentos

orientações teórico-metodológicas pelas quais sedistribuem os principais esforços analíticos destadisciplina científica. Não me parece ser este Estudolocal apropriado para mais do que uma delineaçãomuito genérica desta diversidade interna nasescolhas efectuadas pela Antropologia.

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humanos. Outros preferem focarconfigurações comportamentais ouculturais, e encaram diferentespadrões sociais como outras tantassoluções (utilitárias ou pragmáticas)alternativas para a resolução deexigências existenciais comuns.Segundo outros tantos (e de acordocom formulações teóricas díspares emais deterministas), a diversidadeempírica das formas etnográficasexpressaria o conjunto de limitações(intelectuais, económicas, ouecológicas, por exemplo) quecaracterizam a condição humana. Eoutros ainda, por fim, numa veia maisinterpretativa, têm vindo a sublinhara importância dos sentidospartilhados na delineação da acçãoindividual ou colectiva e até nadefinição dos sujeitos sociais.

Todos, em todo o caso (e nisso setêm demarcado de muitos sociólogos,por exemplo) convergem em apontar comfirmeza o projecto antropológico nadirecção de eventuais asserçõesgerais, construídas pela aplicaçãosistemática do método comparativo.

Mas mesmo que nos atenhamos aoobjectivo pouco ambicioso de apenas

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esboçar uma visão disciplinar deconjunto, seria seguramente um erro euma pena realçar distinções sem pôrem evidência os poucos consensosadquiridos. E as concordânciastácitas e as explícitas sãoefectivamente várias. Para conduzir abom porto os seus intuitos, osestudiosos, sejam quais forem as suaspreferências epistémico-metodológicas, têm-se esforçado porlevar a cabo levantamentosetnográficos exaustivos (quenaturalmente cada um define nos seuspróprios termos) das mais diversasrealidades sociais. De acordo compostulados teóricos que a par e passovão sendo enunciados, diferentesespecializações subdisciplinares têmcristalizado à medida dassolicitações que têm vindo a seracatadas. Como iremos ver, porém,fazem-no sem que no entanto oprocesso tenha sido simples,contínuo, ou pacífico.

A Antropologia tem sido assimobjecto de subdivisão por “temas”(económicos, religiosos, relacionadoscom o parentesco, etc.), por “áreasculturais” (mediterrânica, sudeste-

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asiática, amazónica, etc.), por“tipos de sociedade” (as agrícolas,de pastorícia, industriais, de caça erecolecção, etc.), ou por “tópicos”(do simbólico, da estética, doespaço, etc.)36. Subdivisões essas,virtualmente todos os antropólogosanuem, de natureza meramente formal econvencional. A busca de paradigmaspartilhados que radiquem em36 Divisões, aliás, como poderia ser de esperar, emque ninguém em particular se revê, mas que a poucosrepugnam se utilizadas em meros termos indicativos,ou seja sem grandes conotações “taxonómicas”. Umaarrumação conveniente (e pouco ameaçadora) paratodos aqueles que concordaram em discordar. No quediz respeito ao que viria a tornar-se naAntropologia Jurídica, cabe sublinhar que osprimeiros estudos etnográficos “modernos” sedesenvolveram largamente em referência aagrupamentos africanos, sobretudo negro-africanos(incluindo a África Oriental não-bantu), o exemploclássico é o da colectânea organizada por MeyerFortes e E. E: Evans-Pritchard, em Oxford, em 1940,sobre os então muito seca e assaz contrastivamentechamados “sistemas políticos africanos”. A estacolectânea há a acrescentar outra, virada para adimensão normativa central dos “sistemas africanosde parentesco e casamento”, organizada em 1950 porA. R: Radcliffe-Brown e Darryl Forde, e publicadapela mesma universidade britânica. Os trabalhoslevados a cabo relativamente aos ordenamentosnormativos próprios da África francófona apenaschegaram mais tarde; os relativos à África lusófonainfelizmente primaram até há meia dúzia de anos pelasua ausência.

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fundamentos mais sólidos tem vindo aser marcada por uma enormeindefinição (no sentido de umamarcadíssima falta de consensointerno) quanto a eventuais razõesteóricas legítimas que justifiquem asinúmeras hipóteses de disseminaçãosubdisciplianar aventadas.

Haverá para tanto razõesestruturais que se prendem com aprópria natureza essencial, por assimdizer, do projecto científicoespecífico da Antropologia. Bastaráidentificar uma delas. Uma dastensões conceptuais genéricas defundo que efectivamente organizam ocampo da investigação antropológicatem vindo a pôr frente a frente, porum lado, a urgência de evitarprojectar extramuros concepções econstruções ideológicas próprias dassociedades e culturas de origem dosinvestigadores; e, por outro, aconsciência de que comparações, paraserem possíveis, precisam de presumirbases comuns de algum tipo. Trata-sede uma tensão que, como sublinhei, setem vindo a refractar em todas assuas subdisciplinas, e sobretudoaquelas em que essas projecções

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extramuros se tornam mais tentadoras:o que, como insisti na introdução, meparece designadamente ser o caso daAntropologia Jurídica, na qual umaversão localizada e sui generis destatensão genérica (e de fundo) daAntropologia se manifesta como umempecilho fundacional bastanteconsequente.

O resultado tem sido umequilíbrio pouco estável, vistoresponder a uma ambivalênciafundamental, logo de difícilultrapassagem. Tem por isso mesmoredundado num jogo de balanço muitodinâmico e eivado de consequências depeso.

Esta tensão genérica manifestou-se cedo, sem dúvida dadas ascondições conjunturais existentes.Com efeito, o nascimento (ou, pelomenos, o parto) no contexto daexpansão geográfica das sociedadesocidentais soletrou para aAntropologia uma clara predilecçãopelos trabalhos relativos às regiõesdo Mundo então sob tutela colonial.Não quero com isto insinuar que entreesta predilecção e aquela expansãoseja de postular uma qualquer

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verdadeira relação causal; é contudouma questão interessante a de apuraraté que ponto o projecto humanista aque deu corpo se inscrevia no âmbitodas tecnologias políticas eadministrativas co-extensivas37 comessa expansão, e que portanto a terão

37 É longa a genealogia deste tipo de perspectivaçãohistórico-metodológica sobre a Antropologia. Desdeas formulações moderadas de Claude Lévi-Strauss, quefamosamente insistiu sempre que o tratamentocientífico de seres humanos como “objectos depensamento” só se terá tornado possível no contextoda utilização deles como “mão-de-obra”, até àsacusações mais polarizadas de investigadores como,por exemplo, Talal Asad, quanto a “cumplicidadesobjectivas” dos investigadores antropológicos com asautoridades encarregadas das administraçõescoloniais. Para uma discussão mais pormenorizadadeste tipo de questões, ver Armando Marques Guedes(2004, sobretudo pp. 60-63). Porventura a maisrecente versão destas correlações será a “pós-moderna”, equacionada e formulada por autores comoC. Geertz ou C. Marcus, para os quais os “discursosetnográficos” seriam pouco mais do que discursos dedominação eivados de uma intencionalidade-quadro“hegemónica”. Para uma posição que, ao contrário daminha, insiste de maneira assaz linear numacumplicidade entre “Antropologia e colonialismo”ver, no que toca a autores portugueses, as asserçõesde Rui M. Pereira (2001: sobretudo 127), quepresumem uma convergência estreita. Para uma leituramenos radicalizada e atendo-nos a investigadoresnacionais, é útil a leitura de João Pina Cabral(1998: 1085-1089), que, na direcção oposta, nota apreocupação comum de muitos cientistas sociais com a“pouca utilidade” das investigações fundamentais dosantropólogos, que com esse pretexto (mas muitas

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viabilizado ou pelo menosfacilitado38. Um ponto que, em todo ocaso, pode largamente ser tratado emseparado. Sem pretender aprofundarmais do que o estritamentenecessário, vale a pena aqui incluir

vezes por razões meramente corporativas) tendem asubalternizar. No contexto do primeiro artigo quecitei, R. Pereira, curiosamente, não mitiga a suatomada de posição com considerações que, porexemplo, sublinhem uma afinidade electiva existenteentre “saber” e “poder”; o autor parece baseá-la,antes, em afirmações redutoras de Talal Asad (1975)e de George Stocking Jr. (1991), dois historiadores,e acaba por assumir uma cumplicidade “útil” e muitodirecta e deliberada das investigaçõesantropológicas e dos projectos políticos dedominação colonial. No plano dos factos, trata-seporém de alegações retrospectivas de uma correlaçãoestreita que na realidade só raramente de verificou.Insistir na evidência de uma ligação parece-meóbvio; condicionar os termos dessa ligação à lógicapolítica dos Estados coloniais parece-me claramenteincorrer num exagero. Dificilmente, por exemplo,poderíamos encarar dessa perspectiva os quadrosanalíticos dos dois primeiros grandes estudosetnográficos da Antropologia Jurídica moderna, o deMax Gluckman (1955, 1965), ou o de Paul Bohannan(1957): como iremos verificar, o primeiro tinha comoobjectivo central o de demonstrar (contra as tesesimplícitas dos seus conterrâneos que defendiam oapartheid) a “racionalidade” intrínseca na“organização judiciária” tribal tradicionalafricana; o segundo estava pelo contrário empenhadoem argumentar contra a redutibilidade das noções edos conceitos “jurídicos” dos Tiv (ou de qualqueroutro grupo etnolinguístico) aos quadros

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alguma profundidade de campotemporal.

Num século XIX inicial, tudoparecia estar bem, no que tocava àsmodelizações jurídicas clássicas,muitas delas (sobretudo as anglo-saxónicas) de cepa lockiana ou

intelectuais desenvolvidos pelos juristas europeus enorte-americanos para dar conta dos seus própriossistemas. Presumir uma cumplicidade activa éesquecer a evidência que, para a maioria dasadministrações coloniais, os antropólogos e aAntropologia eram tidos como irrelevantes quando nãocomo perigosos; o que não significa que, quandofosse conveniente, o seu saber não pudesse serutilizado como fonte “legitimadora”.

38 É plausível supor que haja uma ligação de fundopara as co-variações que verificamos. Em qualquercaso, o facto é que a Antropologia na práticaalargou o seu domínio tradicional de investigação nasegunda parte do século XX, incluindo também e cadavez com maior clareza no seu repertório etnográficoas sociedades de origem da maioria dos antropólogos:as europeias e norte-americanas, na maior parte doscasos. Cumpria-se deste modo uma parcela essencialdas ambições universalistas (conceptuais comopolíticas) que tinham orquestrado a emergência dadisciplina. Uma ambição que se mantém. Um facto quenão deixa de ser interessante e significativo,sobretudo quando se trata uma disciplina cujosobjectos têm vindo a alterar-se tanto como osprivilegiados pela Antropologia Jurídica. Escreveurecentemente Sally Falk-Moore (2001, op. cit.: 95) aeste respeito que “what was once a sub-field of anthropologylargely concerned with law in non-Western society has evolved toencompass a much larger legal geography. Not only does legalanthropology now study industrial countries, but it has expanded from

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hobbesiana, enquanto a atenção semanteve focada nos sistemas jurídicos“ocidentais”. É bem certo que aclivagem entre os arranjos que sevinham tornando habituais das“codificações napoleónicas” (como osbritânicos as apelidavam) e osexemplos mais extravagantes de “caselaw” dos anglo-saxónicos em certamedida preencheram, nos círculosacadémicos, como uma espécie de pré-aviso, um sintoma; mas isso iriarevelar-se como tão-só um irritantemenor. O verdadeiro impacto iria sersentido quando dados começaram achegar, e rapidamente se acumularam etornaram disponíveis por Ceca e Meca,sobre agrupamentos sociais da África,

the local to national and transnational legal matters. Its scopeincludes international treaties, the legal underpinnings oftransnational commerce, the field of human rights, diasporas andmigrants, refugees and prisoners, and other situations not easilycaptured in the early community-grounded conception ofanthropology. […] Now, though looking at disputes remains afavoured way of entering a contested arena, the ultimate objects ofstudy are immense fields of action not amenable to direct observation.The nature of the state today, and the transnational and supra-localeconomic and political fields that intersect with states, are theintellectually captivating entities now”. No último par de anos,esta propensão para um alargamento de âmbitointensificou-se, porventura em parte em resposta aacontecimentos internacionais que empírica eprementemente o amparam e fundamentam.

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da região Ásia-Pacífico, e dasAméricas. A expansão colonialacelerada tinha-lhes aberto asportas. Administradores, bem como anova casta de “cientistas sociais”que começava a povoar os palcosacadémicos, viram-se, por todo o tipode motivos, fascinados pelos outros“sistemas jurídicos” que se lhesmostravam.

O que os esperava era umasurpresa; ou melhor, um ror delas.Politólogos e outros pensadoressociais tinham com pessimismoprevisto vir a encontrar “anarquias”:em vez disso acumulavam-senumerosíssimas descrições deagrupamentos sociais perfeitamentefuncionais, civitas que pelo contráriotendiam a exibir notáveis níveis decoesão e integridade. Regularidadesmarcadas nos comportamentos faziamdas vidas em comum uma coisaprevisível e, ademais, segundo toda aevidência disponível garantiam umareprodução estável das suas formas,mesmo nas sociedades ditas “acéfalas”nas quais monarcas, chefaturas, ouquaisquer outras instituições

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estaduais formais, brilhavam pela suaausência.

Apesar do facto de os estudiososse confrontarem muitas vezes comarranjos culturais e sociaisbizarros, por vezes fascinantes, eaqui e ali repugnantes, o que eramenos disputável era que todos osagrupamentos desvendados ostentavamordem. Mais ainda, exibiamregularidades formais ecomportamentais, ao mesmo tempo querealizavam níveis por vezesaltíssimos de “pacificação”. Ospressupostos hobbesianos ou lockianosde fundo (os quadros ontológico-interpretativos mais comuns dos“olhares distanciados” sobre eleslançados) viram-se desalojados, ou emtodo o caso revelaram serinsuficientes e mostraram-seinsatisfatoriamente fundamentados.Novos enquadramentos teóricostornaram-se imprescindíveis. Aquestão que tudo isto suscitava eraabsolutamente inevitável: como é queestas sociedades “problemáticas”asseguravam a ordem que exibiam comtanta nitidez?

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Não foi essa a única dasnumerosas questões intrigantes que anova acumulação de dados etnográficossuscitava. E se nem as perguntasarticuladas nem as suas formulaçõesdeterminaram as respostasencontradas, pelo menos uma dasresultantes deste estado de coisasfoi porventura incontornável. Numcenário genérico de embaraço empíricoe incertezas teóricas, a gestação e asedimentação de uma AntropologiaJurídica no âmbito das CiênciasSociais foi um processo laborioso;mas constituiu ao mesmo tempo umesforço metódico cuja insipiência nãoé difícil de equacionar. Ou, pelomenos, de cartografar.

Sobretudo interessante é fazê-lomuito concretamente no que dizrespeito a hesitações muitoparticulares e que se prendem com aslimitações a que os esforçoscientíficos em causa se têm vindo, naprática, a circunscrever: a que nosreferimos quando fazemos alusão ao“jurídico”, num quadro etnográficotão largamente comparativo comoaquele que virtualmente todos osantropólogos concordam dever ser o

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seu, no cumprimento de um projectodisciplinar abrangente?

Nas partes que se seguem destetrabalho tentarei, por aproximaçõessucessivas, ir respondendo,operacionalmente pelo menos, a talpergunta.

II

A PROBLEMATIZAÇÃO “CLÁSSICA”PRECURSORA DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA

Dear Mr. Gladstone […] We want ourcountry to be governed by BritishGovernment. We are tired of governingthis country ourselves, every dispute leadsto war, and often to great loss of lives, sowe think it is [the] best thing to give upthe country to you British men who nodoubt will bring peace, civilization, andChristianity in the country.Rei Bell e Rei Acqua do RioCamarões, 6 de Novembro de1881, citados em William Reno,

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Warlord Politics and African States,1998: 217.

Num segundo passo do presentetrabalho irei debruçar-me sobre afase dos primórdios, em certo sentidoavant la lettre, do que viria apenasbastante mais tarde a chamar-seAntropologia Jurídica. Uma longafase, em que muitas das questões queos novos dados empíricos acumuladossuscitavam foram tentativamenteequacionadas, de acordo com formatoscujas implicações se repercutiriam devárias maneiras nos que se lhesseguiram, mas que no essencial seiriam manter por muito tempo.

Por uma questão de pudorgenealógico, se me é permitida aexpressão, comecemos pelos primórdiosefectivos, recuando um pouco notempo. Muitos dos “antropólogos” epensadores sociais oitocentistas,como o britânico H. S. Maine39, o

39 A ligação entre juristas e “antropólogos” é antigae tem sido produtiva; nas notas que se seguem dareidisso alguns exemplos. Como é decerto sabido, HenrySumner Maine (1822-1888), foi um insigne jurista eProfessor de Direito em Oxford e em Cambridge.

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norte-americano L. H. Morgan40, oescocês J. F. MacLennan41 ou o suiçoJ. J. Bachofen42, eram juristas.Outros, como K. Marx43, enovecentistas como E. Durkheim44 e M.Weber45 atribuíram ao jurídico e aopolítico (fizeram-no, aliás, por uma

Comummente reconhecido como o grande pai fundador daAntropologia Jurídica, foi-o por via do DireitoComparado, disciplina a que soube dar forosacadémicos na Grã-Bretanha, como atrás em notareferi. O seu estudo principal intitula-se Ancient Law(1861). Escreveu também obras menos conhecidas comoThe Early History of Institutions (1875) e On Early Law and Custom(1883). Para uma comparação histórico-cronológicadetalhada e muito bem informada sobre os primórdiosformais do ensino do Direito Comparado na Europa enos Estados Unidos, é útil a leitura do artigo deGeorge Winterton (1975, sobretudo pp. 87-98). Umestudo histórico detalhadíssimo sobre o que afinalfoi a primeiro século do estudo do Direito Comparadona Inglaterra foi, pouco antes, o publicado por L.Neville Brown (1971), então Dean da Law Faculty daUniversidade de Birmingham.

40 Lewis Henry Morgan (1818-1881), mais um ilustrejurista (e historiador) norte-americano, devesobretudo a sua reputação a um trabalho de fundo,Ancient Society (1877) e à enorme influência que oesquema evolucionário embutido nessa obra teve nasteorizações de Karl Marx. Na penumbra ficou assiminfelizmente um seu estupendo estudo, que intitulouSystems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1871),um texto primordial para o que viria a tornar-se aAntropologia do Parentesco.

41 Um outro jurista cum antropólogo avant la lettre. JohnFerguson MacLellan, desta feita um escocês, de menor

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enorme variedade de razões) umaimportância que os levou (tal comoaos primeiros) a considerar estesaspectos parciais de quaisquersociedades como tendo um papelcentral para a compreensão dos nexossociais mais latos de que fazem

importância que os dois autores anteriores, foi umjurista e autor todavia crucial, com a sua obraPrimitive Marriage (1865), para a conceptualizaçãocomparativa da família e dos estudos de Direito quese lhe reportam.

42 Johann Jakob Bachofen, um Professor de DireitoRomano e Magistrado no tribunal penal de Basileia,na sua Suiça natal, tornou-se famoso pelo seu estudosobre o “matriarcado primitivo”, intitulado DasMutterrecht (1861). A ausência de quaisquerfundamentos empíricos para as suas reconstruçõesespeculativas condenou rapidamente ao esquecimento otrabalho de Bachofen, que veio apenas a beneficiarde um re-acordar efémero nalguns dos meiosfeministas dos anos 70 do século XX.

43 Também, aliás, de formação jurídica.

44 De formação filosófico-jurídica, tradição que deresto nunca enjeitou, ainda que tenha dedicado osseus notáveis esforços na direcção dainstitucionalização da Sociologia, um projectocientífico de que foi porventura o mais importanteimpulsionador.

45 Como é bem sabido, um jurista por formação, alunoe seguidor de Rudolf von Jehring, Max Weber começoua sua vida profissional como Professor de Direito,especializando-se em História do Direito.

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parte, e até para a ordenação-arrumação das várias sociedades,passadas e presentes, em grandessequências evolucionárias.

Paradigmas fortes como estesdenotam “convicções epistémicas”46 delonga duração: é interessanteverificar que em ressonânciaprevisível (dadas as afinidadeselectivas existentes) com o contextohistórico e sociopolítico ainda hojevivido (e independentemente dasposturas teóricas divergentesassumidas pelos observadores),prevaleceu a opinião firme,subjacente, segundo a qual estasdimensões centrais dos agrupamentoshumanos teriam um papel crucial numaqualquer compreensão científica cabalda vida social.

Cabe-me novamente sublinhar que,mais do que escrever uma “história”dos inícios da disciplina, pretendoaqui tão-só traçar as principaislinhas de força genealógicas dosenquadramentos conceptuais quepautaram o campo inicial de uma46 Ou, talvez de maneira mais neutra, “regras (ouestratégias) de formação de enunciados” como lheschamariam os foucaultianos.

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problematização que viria asobreviver para lá das alteraçõessuperficiais a que a AntropologiaJurídica se viu a par e passosujeita.

4. A DELIMITAÇÃO PROGRESSIVA DOS OBJECTOS DAANTROPOLOGIA JURÍDICA

Num curto artigo sobre acolaboração interdisciplinar entre oDireito e a Antropologia, Klaus-Friederich Koch47 notou com algumazedume, em 1969, que “anthropologists inthe last quarter of the nineteenth century and inthe early decades of this one were busy searchinglibraries for data with which to illustrate thedevelopment of cultural institutions.[…] Legalscholars like Post and Kohler used ethnographicrecords to compile inventories of law codes forprimitive societies which were then fitted intosome sort of evolutionary scheme. Their frame ofenquiry was their own legal systems and much oftheir labor was spent on a cataloguing of rules.47 Klaus-Friederich Koch (1969: 13).Caracteristicamente para a época, o texto de Kochreproduz uma comunicação apresentada num Semináriode Pós-Graduação realizado no Outono de 1968-1969 naHarvard Law School no âmbito de um projecto decolaboração interdisciplinar entre Antropologia eDireito.

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The social context of legal activity was lost”. Odiagnóstico foi lúcido e certeiro.Mas, em boa verdade, nem todos osevolucionistas impersonaram, naíntegra, o figurino polarizado queKoch caricaturou. Os quatro casosexemplares que aqui vasculho (os deH. S. Maine, K. Marx, É. Durkheim eM. Weber), escapam, em modalidadesvárias, a essa caracterização.Decerto por isso mesmo adquiriram,como iremos ver, o estatuto de PaisFundadores da Antropologia Jurídica.

Deixemos assim de lado osprecursores setecentistas (e os seusdescendentes intelectuais imediatos)e mergulhemos, ainda que de maneirarápida e sucinta, nas construçõesteóricas destes estudiososoitocentistas e novecentistas. Masnão apenas para desenhar “tabuleiros”iniciais: a minha finalidade é tambéma de trazer à superfície, por assimdizer, algumas das convicçõesepistémicas de longa duração que,geneticamente, formataram o domíniodaquilo que se viria a tornar naAntropologia Jurídica, designadamenteno que diz respeito à delineação doque foi considerado a progressiva

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separabilidade do “jurídico” e da“lei” em relação a outros âmbitos dosocial; e não mais que isso.

4.1. HENRY S. MAINE. A evolução comomaturação

Henry Sumner Maine48 postulou comoquadro evolucionário para atransformação progressiva da suaAncient Law os percursos (paralelos)que empurrariam a Humanidade das

48 Em França, o ensino do chamado Direito Comparado,como já tive oportunidade de sublinhar, teve inícioem 1832. No Reino Unido, o processo dereconhecimento científico da nova área disciplinarfoi mais moroso. Só em 1869 Maine criou e regeu emOxford uma cadeira cujo título era(interessantemente) Historical and Comparative Jurisprudence.Não se ficou porém por aí a sua notável carreira:fora antes titular da “cadeira” Whewell de DireitoInternacional em Cambridge, onde também ensinouDireito Romano. Maine foi ainda funcionário colonialna Índia (aí tendo sido, nomeadamente, Vice-Chancellorda Universidade de Calcutá e Conselheiro doGovernador-Geral do Vice-Reino), onde participouactivamente na então tão urgente codificação doDireito colonial britânico. O já citado J.Vanderlinden (1996: op. cit.: 36) considera Maine comoo personagem le plus influent aux origines de la discipline [deAntropologia Jurídica], uma opinião de restopartilhada pela esmagadora maioria dos cultoresdesta disciplina.

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corporations aggregate49 às corporations solee do “estatuto” ao “contrato”. Onotável jurista britânico nuncaexplicitou com muita clareza nem os“como” nem os “porquê” desteparalelismo, talvez porque se tratavada expressão de um “impensado” quepartilhava com os seuscontemporâneos.

Ao bom espírito da época, alógica implícita para a progressãoque propôs foi no entanto instrutivaquanto a esses pressupostos: associedades “antigas” e as“primitivas” eram para Maine comutilidade caracterizáveis pela suamarcada “infantilidade”. A razão, naexplicação (sub-reptícia) sugerida,operava como que a nível metafórico:nessas sociedades, segundo ele, oslaços de dependência intrafamiliar emque cada indivíduo nascia seriamprimordiais; e só com o correr dotempo e com o acumular dedesenvolvimentos intelectuais einstitucionais se foram instalando49 Numa expressão mais veemente deste ponto, Mainepropôs que as primitive societies fossem encaradas como um“agregado de famílias” e não enquanto um conjunto de“indivíduos”.

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dispositivos mais formalizados, ecomo que mais separados, da teia derelações sociais em que cada um delesse via embrenhado. O paralelo, nofundo, resultava de uma analogia.

Para esta progressão-maturaçãoMaine gizou, com efeito, um mecanismona prática bastante semelhante ao deum processo “biológico” decrescimento. Nos agrupamentos“patrilineares e patriarcais”50

primitivos (um bom exemplo disso,para ele, era o de muitos dos gruposda Índia sua contemporânea, ondevivera e trabalhara, bem como outrosdo passado clássico “ocidental”) osdireitos e as obrigações de cadapessoa eram pura e simplesmentedefinidos em termos do respectivoestatuto social. Segundo Maine, terásido apenas com a “mobilidade” (e a

50 Maine distinguiu-se, nesta sua presunção puramenteespeculativa, do célebre e já referido romanista ejurista-historiador suiço-germânico J. J. Bachofen,para quem (no seu Das Mutterrecht, por coincidênciapublicado no mesmo ano de 1861) o “matriarcadoprimitivo” era um facto iniludível. É fascinante aconstatação de que polémicas estéreis (porque emúltima instância indecidíveis) deste tipo enredaramos mais sofisticados especialistas da época, entreeles L. H. Morgan, K. Marx e o seu fiel F. Engels.

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geminada “maturação”, ambas a seu vercaracterísticas das “sociedadesmodernas”) que à “liberdadeindividual” veio a ser dada uma maisplena expressão, consubstanciada naemergência da figura do “contratolivre”. Esse não seria, no entanto, oúnico exemplo. Assim, e emsimultâneo, desenvolveu-se na Europa(e só nela, segundo Maine, dado oespecial “dinamismo” desta, por eleexplicitamente concebido em termosdarwinianos) o tão importante“processo legal” (legal process). Um“processo” que (tal como o já citado“contrato”), nos termos daperspectiva iluminista vigente, Mainevislumbrava como uma expressão (oucomo uma “encapsulação”) dessa mesmaliberdade.

De acordo com esta visãohistórica (melhor ainda,historicista), tão típica do“progressivismo” da segunda metade doséculo XIX, cumulatividade emelhorias qualitativas eramclaramente de encarar como duas facesde uma mesma moeda. A quantidade, aoaumentar, transmutava-se emqualidade: o que tinha como corolário

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implícito o horizonte de umapassagem, de uma transição, que ia do“espontâneo” ao “racional”. O timbreera o que o positivismo viria atornar canónico. Para Maine, “asleis” (o Direito), que ao longo dessaevolução e desse entrosamento seforam sedimentando, ter-se-iamalinhado (em termos cronológicos) edesdobrado em três “estádios”sucessivos. Três passos que, nofundo, tal como o esquema tripartidoinfância, adolescência, idade adulta,exprimiam precisamente esse lentoencadear de um despertar moroso damaturação-crescimento que postulava.

Num primeiro estádio, defundamentação religiosa (Moisés e oDecálogo foram aqui para ele exemplosde eleição), cria-se que a lei erauma dádiva divina indiscutível,canalizada através de lídereshumanos. Numa segunda fase, maispróxima de “nós”, a lei e o costumeeram vistos como indissociáveis, e aspráticas sociais tradicionaisreinavam de forma hegemónica eindisputada. No terceiro e últimopasso, o contemporâneo, protagonizadopela Europa e prolongado (por

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“transferência” pura e simples, queMaine concebia como uma “difusão”) àssuas zonas geográficas de influência,o Direito assumiu por fim umaidentidade separada, um estatuto deautonomia.

Prescindindo de uma qualquercrítica substantiva à posição deMaine51 (em todo o caso extemporânea),cabe sublinhar as implicações formaismais pertinentes, no que toca a umadelineação-caracterização do Direito,desta modelização historicista. ODireito, nesta perspectiva, seria umaexpressão própria de um tipo maiscomplexo e elaborado de sociedade (aOcidental, concebida pelo britânico

51 Apesar de largamente reconhecido e embora tenhasido seguido (em larga medida) por personalidadestão influentes na Antropologia como Sir Edward Tyler(o detentor da primeira Chair in Anthropology, também emOxford) a insistência de Sir Henry Sumner Maine naimportância da “tradição” e do “costume”, bem como asua propensão para atribuir primazia à religiãosobre a “legislação” como fonte da law (isto, claroestá, no seu primeiro stadium), não se coadunavam coma perspectiva de L. H. Morgan (tão central para avariante americana da Anthropology e para K. Marx),cuja ênfase teórica fundamental era posta nas“escolhas racionais”. É interessante verificar quemesmo nos seus escritos tardios, desigadamenteaqueles sobre a evolução do Direito InternacionalPúblico, a postura de Maine alterou-se pouco.

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como a “europeia”) e resultaria deprocessos históricos subjacentes deselecção; evidenciava-se como umaentidade em progressiva autonomizaçãoe por conseguinte como um ente cadavez mais fácil de circunscrever.

Em consonância com as asserçõescaracterísticas desse período áureode hegemonia do liberalismoiluminista, o Direito redundaria, deacordo com Maine, numa forma avançadade manifestação dos indivíduos, aodespertar de cuja “liberdade”ontológica incipiente como que dariacorpo de um modo muito concreto. Osecos idealistas, tão comuns naprodução intelectual da Europa de umaépoca ainda tão marcada por Hegel,eram evidentes nestas primeiras (ecomparativamente incipientes)formulações jurídico-evolucionistas52.

Sem sombra de dúvida que Maineecoou o Espírito do seu Tempo tambémnuma outra linha: tal como ClaudeBernard advogara no que diziarespeito à Biologia, Maine considerouinevitável que a evolução

52 Um ponto seguramente passível de um muitíssimomaior aprofundamento do que aquele que aqui cabe.

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constituiria uma progressão do“simples” para o “complexo”53.Presumir que a “complexidade”postulada redundaria em pouco mais doque numa descrição reificada deformas sociais existentes na época emque escrevia (e a progressão dela opercurso cumulativo que ligava assuas reconstruções especulativas deum passado remoto a um presente porsi idealizado) parece ter sido umacoisa que nunca lhe ocorreu.Evolucionismos “cumulativistas” destetipo (baseados no essencial, comotentei pôr em evidência, numa espéciede biologismo metafórico eprojectivo, e em parte tácito),tendiam quase por inevitabilidade ageneralizar-se, numa época de enormesprogressos políticos, sociais eeconómicos. Eram como que umarepresentação microcósmica daspercepções entretidas sobre o próprioperíodo que se vivia. E a época, a de

53 Outros exemplos desta propensão foram os deAuguste Comte (com a sua famosa “lei dos trêsestádios”, o “teológico, o metafísico e o positivo”)e o de Herbert Spencer. O papel destes e de outrosautores evolucionistas de época não foi, porém, tãoimportante para a gestação do que viria a tornar-sena Antropologia Jurídica.

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um Império Britânico infindo a queuma Revolução Industrial parecia darum fôlego imparável, era de enormesmudanças sociais.

Em parte sem dúvida por isso,tratou-se de um intervalo em queprogressivismos de várias formas efeitios proliferaram. E de umaperíodo no qual, sem complacências,todas as formas sociais alternativasàquelas que vigoravam na sociedadedominante eram encaradas como “fases”que a estas últimas inexoravelmenteconduziriam.

4.2. KARL MARX. Os percursos e osingredientes das formas de dominação

Mas, ao contrário de Maine, nemtodos os pensadores sociaisoitocentistas e do início do séculoXX tomaram o Direito (e o seu papelsocial, chamemos-lhe assim) de acordocom o seu valor facial. Karl Marx, umcontemporâneo de Maine mas maisapegado aos modelos evolucionistasalternativos de Lewis Henry Morgan54

54 Na Ancient Society, Lewis Henry Morgan desenvolveu umcélebre esquema evolucionário tripartido (que

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do que aos deste, foi disso um casoexemplar.

Num registo “materialista” e coma célebre boutade de que os sistemasjurídicos próprios do “modo deprodução capitalista” seriam bons“resumos da luta de classes”, Marxacabou em última instância porremeter “o Direito” (mas sem omenosprezar) para o domínio (porcomparação mais ténue) doinstrumental e dos epifenómenos. Ouseja, fê-lo relevar do domíniorelativamente irrelevante doacessório55. Segundo Marx, com efeito,

postulava uma progressão da savage, à barbarian, edepois finalmente à civilized society) sobre o qual Marxiria em larga escala ostensivamente decalcar o seupróprio modelo de sucessão cronológica e lógica de“modos de produção”.

55 Fê-lo na prática, e apesar dos (poucos) protestosem contrário de alguns marxistas mais preocupados (ameu ver) com o potencial heurístico abstracto dapostura teórica de fundo de Marx que com umadescrição adequada da operação concreta dasteorizações marxistas. Para maior detalhe quanto aeste ponto (em todo o caso, marginal relativamente àdiscussão aqui em causa) ver as minhas notas 57, 59,62 e 64, adiante, em que tento equacionar tanto aquestão da progressão histórica marxista da“mecânica de transmissão” (encarada cada vez comomais “lassa”) inicialmente postulada por Marx para oascendente do “económico”, quanto as definiçõessubsequentes de uma “materialidade” que parece ser

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as leis e o Direito, enquanto peças-chave das multidimensionadas“superestruturas ideológicas” dassociedades, constituiriam habituais evigorosas (ainda que não inevitáveis)“armas de classe”, sendo no essenciale no fundo outros tantos instrumentosutilizados para facilitar o exercíciode dominação e opressão de grupos unssobre os outros.

É verdade que, para um Marx maisamadurecido, as leis viriam a servistas como preenchendo,subsidiariamente, um segundo papel,esse suplementar e com uma óbviasemelhança de família com o primeiro:o de “mascarar” a realidade nua ecrua das “relações de exploração”.Uma exemplificação paradigmáticadisso seriam as normas contratuais docapitalismo oitocentista, queassegurariam a função ancilar de uma“mistificação”, representando comolivres, consentidas e igualitárias, oque na realidade eram aquilo que Marx(nos termos da sua teoria do valor-trabalho) via como relações brutaisde dominação-subordinação entre

cada vez menos vista como atida à “economia”.

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“patrões e assalariados”. Versõesposteriores da teoria de Marx(nomeadamente após a criação da UniãoSoviética e em grande parte comoreacção a esta, nos chamados“marxismos ocidentais”) lograriamesbater as cores desse determinismoeconómico originário56 marcado. Efizeram-no de várias formasrelativizando e pondo em perspectivatanto a sua pretensa suficiência,quanto a lógica processual da suaoperação. Mas a dimensão económica

56 Mas que (embora seja essa a versão entretida anível da “vulgata” marxista comum) importa em todo ocaso saber pôr em perspectiva. Com efeito, teóricossoviéticos como E. Pasukanis (1972: 83) desde hámuito previnem que “o próprio Marx salienta,contudo, que as relações de propriedade, queconstituem a camada fundamental e mais profunda dasuperestrutura jurídica, se encontram em contactotão estreito com a base, que se revelam como sendoas ‘próprias relações de produção’ das quais são a‘expressão jurídica’”. A alegação implícita é a deque, pelo menos no marxismo “puro e duro” do Marxmais maduro, o “jurídico” estaria simultaneamente nabase e na superestrutura. Conquanto tal me pareçaser verdade, quero sublinhar que, nas análisesconcretas efectivamente levadas a cabo, tanto Marxcomo os marxistas têm invariavelmente tratado ojurídico como parte da superestrutura, porventuravisto que fazê-lo de outro modo acarretariadificuldades logístico-analíticas paralisantes.

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das normas jurídicas era semprepostulada como o seu Leitmotiv.

Em termos comparativos, acomplexidade da análise proposta porMarx foi notável. A sofisticação e aintrincação também; tal como,decerto, a nitidez da visão propugnada,não obstante o potencial empecilhoque para isso constituía a suamultidimensionalidade. Nas suas obrasmais maduras, como Das Kapital ou aspóstumas Grundrisse57, o própriodispositivo estrutural postulado paraas transformações evolucionáriastornara-se muito mais denso erobusto, e muito menos teleológico,ao sabor das inovações “mecânico-processuais” que Darwin tão bemsoubera delinear.57 Por extenso, Karl Marx (1873), Grundrisse: foundationsof the critique of political economy, Londres, a célebre“Introdução” inacabada, em que Marx assumeporventura as posições mais “desenvolvimentistas”quanto ao Direito (ver P. Fitzpatrick, 1985: 482-483, e E. Pasukanis, op. cit., 1972). É curioso queMarx se tenha tanto atarefado na busca de níveisgerais de determinação da História, ele que escreveucontra o uso dela “as one’s master-key a general historico-philosophical theory, the supreme virtue of which consists in beingsuperhistorical” (K. Marx e F. Engels, SelectedCorrespondence: 329, citado por P. Fitzpatrick, op.cit.: 482); como Fitzpatrick secamente comentou,“sometimes Marx’s irony seems lost on himself”.

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Talvez o mais interessante nasteorizações marxistas seja, nessesentido, o tipo de “determinação” queo célebre alemão considerava serexercida pelas relações de naturezaeconómica sobre a estrutura do restoda sociedade. De um ponto de vistaanalítico, aliás, esta foi uma dasfrentes que mais modificações sofreuno percurso daquelas teorizações.Segundo o jovem Marx58 (nomeadamente58 A distinção entre o jovem Marx e o Marx maismaduro, que aqui sugiro, não acarreta nenhuma dasimplicações que, durante os anos 70, lhe foramatribuídas por Louis Althusser (1966). ParaAlthusser, o “jovem Marx” seria no essencial um neo-hegeliano de Esquerda marcado por um vincadohumanismo e então ainda apegado às teses sobre a“alienação” do Homem; enquanto que depois de 1844 edos célebres Manuscritos de Paris, Marx ter-se-iadefinitivamente distanciado do humanismo e teriaprogredido na direcção “estrutural” quecaracterizaria os seus “estudos científicos”principais. A clivagem que proponho alude antes aomodo de transmissão do ascendente do económico sobre o restodas “formações sociais” nas teorizações marxistas.Embora este tema exceda claramente o quadro dopresente estudo, cabe sublinhar que esta transmissãoconstituiu uma das frentes mais activas de tensãonas formulações “marxistas” esgrimidas pelo séculoXX adentro. É curioso verificar que no marxismo pós-Marx, porventura em resposta a um imputadoreducionismo “mecanicista” de F. Engels, parece ter-se dado um progressivo esbatimento na linearidade datransmissão postulada: assim, autores influentescomo L. Althusser e É. Balibar preferiram escreversobre uma détermination en derniére analyse (num conjunto de

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num artigo em que explicou a feiturade leis que restringiam a apanhatradicional de lenha nas florestas daRenânia59 como uma expressão directadaquilo a que, anos mais tarde, viriaa chamar as “relações sociais deprodução” constituídas com aemergência da nova “classe burguesa”)o Direito, enquanto configuraçãosócio-histórica, seria pouco mais doque um simples instrumento formal, um

causes structurelles que abarcavam outros mecanismos comoa domination e a surdétermination), enquanto outros,como M. Godelier, numa primeira fase aludiram a umaainda mais indirecta détermination en derniére instance, eem escritos posteriores distanciaram ainda mais as“causas estruturais últimas” que entreviam, falandode um mero negative feedback do “económico” sobre o tododa sociedade. Percurso mais radical foi o de muitosdos numerosos neo-Gramscianos, porventura culminadopela re-estruturação “comunicacional” do“materialismo histórico” que J. Habermas encetou nosanos 60 e tem mantido, embora em versões maisaguadas, até ao presente (ver Bibliografia Geral dopresente trabalho, desde logo J. Habermas, 1976).

59 Para uma curta mas muito interessante súmula daevolução-progressão das teorizações marxistas sobreo Direito é útil a leitura do estudo fascinante deAntónio M. Hespanha sobre “a cultura jurídicaeuropeia” (1998:219-224). A meu ver, Hespanha põe aíbem em evidência (ainda que sem a explicar) acuriosa distinção, a que historicamente os marxistastêm sido tão propensos, entre a “forma” e o“conteúdo” das normas jurídicas “burguesas”.

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artefacto desenhado60 para a imposiçãodo poder de uma classe sobre asoutras. E assim permaneceu durante umlongo período a tónica principal dasteorizações marxistas.

Não foram todavia talvez tãograndes nem tão radicais como muitasvezes se sugere61 as alteraçõessubsequentes a que as teorizaçõesmarxistas se viram sujeitas. Asmudanças quase sempre atingiram poucomais do que minudências. Limitaram-se, por via de regra, a postular umaligação instrumental mais indirecta emediada entre o “económico” e aevolução “histórica”. E assim foi emlarga escala como correlato de doisfactos: primeiro, o de, na60 Quase que numa espécie de visão austiniana avant lalettre da expressão da “vontade do soberano” vistacomo estando em operação em contextos sócio-históricos particulares a cada “formação social”.

61 Ver, por exemplo, os comentários que a esterespeito enuncia António M. Hespanha (op. cit.: 223-224), com uma clara (e a meu ver louvável)preocupação em distanciar as formulaçõesmetodológicas do chamado “marxismo europeu” das dopartisanismo instrumental excessivo da sua “pré-história” (a escolha terminológica é minha)soviética (ou, para outros, do seu “desvio”soviético), nomeadamente das teses “estalinistas” deA. Vychinski.

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arquitectura heurística das versõesposteriores do marxismo (e de umaforma muito mais nítida do que emMarx), a disjunção admitida entreeficácia e evitabilidade poder ser vistacomo um indício da complexidade dasmecânicas causais postuladas pelo modeloerigido; em segundo lugar, aimportância do papel que o “jurídico”preencheria nesses processoshistórico-evolucionários.

Com efeito, este fosso prende-se,no quadro metodológico do marxismo,com o estatuto acessório (atrásreferido) que a teorização histórico-materialista atribui aos quadrosjurídicos: segundo as regras deformatação desta dogmática teórica etal como vimos, as leis (pelo menosno “modo de produção capitalista”)darão corpo a conceitos gerais úteismas prescindíveis para o funcionamento doimportante sistema de propriedade dosmeios de produção. Por outraspalavras, formariam parte integrantedos sistemas; mas devem para efeitospráticos ser tidos como subconjuntossistémicos “superestruturais”62 por62 Para uma discussão crítica interessante (e nãototalmente conforme a que aqui esboço) da lógica

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razões que se ligam com a lógicaconcreta da “situação real eobjectiva”. Já que, segundo osmarxistas, repito, mesmo na ausênciade um aparelho de Estado e daquiloque muito mais tarde viria a serchamado um “império da lei”63, aclasse capitalista lograria (emqualquer caso) exercer um controlosocial extenso por meio do uso daforça a nível da chamada “base”, noâmbito da sua efectiva hegemoniasobre os “meios de produção”64.interna das perspectivas marxistas sobre o Direito,é útil a leitura do esplêndido livro de DuncanKennedy (1998), o detentor actual da Chair deJurisprudence na Law School de Harvard, sobre a ordemjurídica norte-americana contemporânea, sobretudo assuas pp. 281-285.

63 É nesse sentido restrito, creio eu, que as leissão por via de regra consideradas pela teorizaçãomarxista como sendo “superestruturais”: ou seja, sãoúteis e eficazes mas revelam-se (não obstante isso)contornáveis, ou melhor, prescindíveis; porqueatravés de meios não-jurídicos os “capitalistas”conseguiriam sempre forçar “os trabalhadores” aacatar o sistema económico e político desigual,mesmo na ausência de um qualquer discurso delegitimação.

64 Daí resulta, por conseguinte, a caracterização quena sua generalidade os marxistas são levados afazer, no que toca às leis e ao Direito: o encará-los como bons e fiéis indicadores (ou, talvezmelhor, indícios) da “correlação de forças” existente

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A nível epistemológico, asimplicações disso são fascinantes.Porque, em todas as versões destaperspectiva (e muitíssimas há), setrata no essencial de instrumentos(ainda que prescindíveis) desenhadospara o prossecução de finalidadesconcretas e bastante específicas,decorre que os sistemas jurídicosexpressariam (e fá-lo-iam com afidelidade própria de todos equaisquer produtos que relevam deadequações funcionais) os avataressucessivos da luta renhida entre asclasses sociais em formação e emprocesso histórico de tomada de

(para utilizar uma terminologia leninista). Segundoeste ponto de vista, o Direito é entrevisto como umaespécie de interface, ou antes, enquanto uma espéciede “caixa de ressonância”. Desta perspectiva, oDireito seria um dispositivo como que colocado “emsérie” na disposição de um mecanismo maior. Por umlado (e por via da correia de transmissão formadapela estrutura económica) para o Marx tardio e paracertas correntes marxistas, o Direito recebe inputsda sociedade; em simultâneo, e por outro lado, geracomo output uma espécie véu legitimador que institui,entre os participantes na vida social, um amploconsentimento (logrado por meio de dispositivosvários de “mistificação” ideológica) quanto às“injustiças” e à “opressão” que “mascara”,“naturalizando-as” (como dizem os neo-hegelianoscontemporâneos).

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consciência. Em modelos deste tipo, odomínio “jurídico” está longe de sersempre fácil de circunscrever: aindaque seja perspectivado como umaespécie de reflexo65 microcósmico decontendas “materiais” que têm lugar anível da “base” económica (vista,essa, como constituindo de algum modoaquilo a que hoje chamaríamos overdadeiro “núcleo duro” de cada“formação social”), o seu âmbito nemsempre era todavia fácil deconceptualizar enquanto um “espaço”passível de uma qualquer expeditacircunscrição; e isto porque se tratade um domínio que está sempre,estruturalmente, numa situação quepoderíamos caracterizar como uma quedá corpo a um deficit66 de autonomia.65 Ainda que muitas vezes um reflexo “invertido” (umconceito curioso que Marx desenvolveu essencialmenteem 1845 no seu estudo crítico, redigido contra os“jovens hegelianos de esquerda”, sobre A IdeologiaAlemã), dada a sua natureza intrínseca de “sintoma”.Nesta linha marxista de interpretação, a “realidadeconcreta” das relações sociais de dominação-subordinação seria falsa e insidiosamenteapresentada à contre-sens pela “ideologia”, que a“inverteria” com o intuito de “esconder”,camuflando-as com vestes enganadoras, as reaishierarquias de poder e de exploração.

66 Formulações mais recentes (e sobretudo“ocidentais”) das teses marxistas insistem muitas

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Os corolários de um tal estado decoisas são dignos de nota. A evolução“morfológica” do “jurídico”, se equando encarada deste ponto de vista,seria no fundo (e aí, como em tantosoutros lugares das teorizaçõesmarxistas, os ecos darwinianos sãopor demais evidentes) de algum modoredutível à progressão morosa(pensada enquanto uma “variável

vezes na autonomia e na consequente eficáciamaterial das “leis”. Julgo, no entanto, que namaioria dos casos seria um erro considerar essainsistência como um recuo, ou como o aflorar de umqualquer empirismo; trata-se, penso, de pouco maisque de uma manobra doutrinária convenientementevestida com cuidados modernistas. Tudo se passa comose, para os marxistas, a tónica nos factores materiaisde activação instrumental de legitimação culturalque no fundo (postulam) o Direito levaria a cabo,oferecesse uma espécie de ponte analítica para a tãocentral teoria das “classes”. A dominação mais oumenos hegemónica de uma classe pode assim serdefendida ao mesmo tempo que algum reconhecimento éaparentemente concedido ao Direito enquanto umfactor subsidiário: sendo apresentada enquanto, noessencial, uma “forma de consciência” que, se não éradical e integralmente “falsa”, não é também demaneira nenhuma tida como fundamental. Seriainteressante, neste contexto, um estudo detalhado doimpacto das inovações teóricas de Antonio Gramsci(designadamente da sua teoria da hegemonia) nasconceptualizações mais recentes (pós-anos 70 doséculo XX) que em quadros do marxismo têm sidoequacionadas quanto ao Direito, a algumas das quais,aliás, já fiz breve referência.

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dependente”, como decerto TalcottParsons lhe chamaria) de umatecnologia instrumental de algumaforma, lato sensu e quasi-metaforicamente, “ecológico-adaptativa”. O evolucionismoanalógico e estático fora deixadopara trás. As metáforas biológicas deMaine, ligadas aos processos sociaise “individualizantes” de maturação-crescimento, viam-se substituídas porimagens “político-relacionais”vinculadas a um novo biologismo,muito mais dinâmico e construtivista.

Tal como Maine, Marx clara etacitamente - ou pelo menos semgrandes elaborações teóricas - tratoua “complexidade” social “crescente”(bem como a cada vez maior separação-autonomização do “jurídico” e do“político”) como uma reificação dasformas socioculturais típicas dasociedade sua contemporânea. Aspróprias linhas de ordenação dessacomplexidade e dessa autonomizaçãoaparecem nas sequenciações de Marx,com efeito (e na boa tradiçãohegeliana), como uma espécie deleitura especulativa invertida daHistória; uma projecção

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“retrospectiva” em que o passado, comtoda a pompa e circunstância, severga perante a inevitabilidade doseu encaminhamento em direcção aopresente67.

Transposições “darwinistas” destetipo não eram então pouco comuns. Omesmo tipo de dispositivoexplanatório, pode talvez também(mutatis mutandis) ser asseverado,encontra-se subjacente a outrasformulações teóricas da épocaimediatamente posterior. O que tinhaimplicações interessantes: eramsempre produzidas formulações que, emconsonância, insistiram em pôr oDireito em cena como um “reflexo”, ouuma “representação”, de uma outrarealidade, fosse ela qual fosse.

O construtivismo adoptado exigiaformulações nas quais, por67 Num sentido semelhante, e ecoando umaperspectivação hoje em dia assaz generalizada,António M. Hespanha (2003: 838) escreveurecentemente, num artigo curiosamente a um só tempofoucaultiano e bourdieuiano, sobre as implicações do“classificar” e tendo em mente uma crítica às visõessimplistas quanto à evidência do “senso comum”, que“por detrás da ‘evidência’ de muitos enredos podemesconder-se retroprojecções da sensibilidade dehoje”. Um ponto “gnoseológico” de fundo com que emúltima instância concordo inteiramente, mas que aquinão irei desenvolver.

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conseguinte, o mecanismo dearticulação entre a “realidade” e a“representação” ocupava uma posiçãocentral e estruturante (talvezmelhor, uma posição formatadora). Edas formulações que efectivamentevieram a ser enunciadas muitasfizeram ambas estas coisas,protagonizando e estruturando, logoneste período inicial de gestaçãodaquilo que se viria a pouco e poucoa florescer e a constituir emterritório, o domínio das CiênciasSociais.

4.3. ÉMILE DURKHEIM. Os percursos e osingredientes das formas de solidariedade

Depois de Marx, coube a umfrancês, Émile Durkheim, pôr em cenauma variante dessa progressivaseparação da “lei” (que este pensadorintitulava ora de droit ora de juridique)em relação ao resto do social. Emtermos da calorosa recepção de quefoi objecto, a formulação alternativaproposta acabou por revelar-se comode peso.

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Durkheim começou por pôr lado alado dois pares de contrastes quesupôs existir: aquele manifestoentre, por um lado, as configuraçõessociais, histórica, e portantosequencialmente, encadeadas uma naoutra, da solidarité mécanique (típicasdas societés segmentaires, de pequenaescala e baseadas no “cimento”disponibilizado pelas relações deparentesco entre os seus membros) eda solidarité organique (a dascaracterizadas por uma vincada divisiondu travail social, em que cada indivíduoou subgrupo adquirem característicaspróprias distintivas); e, por outrolado, aqueloutro resultante dastransformações de uma “lei” (de umacolecção de normas jurídicas, queDurkheim via como ligadas de maneiraindelével à conscience morale68) e de uma68 Para Durkheim, como ele tão claramente expôs nasua famosa De la Division du Travail Social (1991, original1893), o Direito (droit) deveria ser perspectivadocomo um bom “índice”, um indicador que “simboliza” otipo subjacente de “solidariedade social” que estána sua génese (1978: 27-34). Mais: Durkheimconsiderava que o Direito estaria, por isso mesmo,sujeito a uma evolução histórica resultante daprogressão dessas formas de solidariedade (as quaispor sua vez responderiam a mudanças a nível dessaentidade quasi-transcendente a que Durkheim semostrou tão apegado, a que apelidou de “consciência

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justiça primeiro “retributivas” ou“repressivas”, e só depois (hoje emdia) “restitutivas”69. Duas alteraçõesdiacrónicas que dariam corpo a doiscontrastes configuracionais, queDurkheim decidiu primeiro isolar edepois se propôs emparelhar.

colectiva”) que constituiriam a sua efectiva base desustentação. Por último, era sua presunção ahipótese central de que os “castigos” teriam como“função” (o que no contexto das suas formulaçõesteóricas significava ligação ao todo) a manutençãoda “coesão social” enquanto expressão da consciencecollective. O conceito durkheimiano de “lei” está dealgum modo aqui implícito; mas não de maneiralinear. Como muito bem sublinham Steven Lukes eAndrew Scull na esplêndida “introdução” à colectâneaintitulada Durkheim and the Law (1983), em que coligemas principais passagens dos textos nos quais esteescreveu sobre o tema, “the object of [Durkheim’s]sociologie du droit or sociologie juridique was,indeed, droit and this is only imperfectly translatable as ‘law’”(pp. 3-4). Lukes e Scull continuam, especificando asua opinião, que ecoaria a de H. L. A. Hart (opensamento de R. Dworkin teria decertodisponibilizado a estes dois autores um melhorexemplo a este nível), segundo a qual droit (tal comode resto o alemão Recht e o italiano diritto) naprática, “in fact mark off an area of morality (the morality oflaw)”. Um ponto (da difícil tradutibilidade denoções) que várias formas retomarei, por norma demaneira implícita mas manifesta, ao longo dopresente trabalho.

69 Em É. Durkheim (1991, original 1893), op. cit.: sobretudo pp.35-45.

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Segundo esta nova perspectiva,tanto esse emparelhamento quantoesses contrastes fundadores manter-se-iam (ou, talvez melhor, exprimir-se-iam) a vários níveis. Por trás,por assim dizer, das formasaparentes, estaria uma correlação-articulação entre formasorganizacionais e sistemas ideais;uma espécie de vínculo que tambémsubjazeria à sua progressão temporal.Nas sociedades mais “antigas” (e,“portanto”, menos diferenciadas) asideias entretidas em todos osagrupamentos seriam no essencialsemelhantes e, de maneira“colectiva”, seriam partilhadas. Associedades mais “modernas” seriam,segundo Durkheim, mais “egoístas”; eeram-no no sentido em que, nelas, os“valores” se localizariam nas mentes(na “consciência”) de indivíduos“separados” pela “divisão do trabalhosocial”. Isso poria em relevo adiferença considerada diacríticarelativamente às configurações“arcaicas”, próprias das sociétésprimitives, consideradas como lhes sendotanto lógica quanto cronologicamente“anteriores”.

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Com as vantagens da retrospecção,não é difícil de verificar as muitoprofundas semelhanças de famíliaentre a perspectivação durkheimiana ea marxista que a precedeu. Mas há quenotar que também são fáceis deconstatar as diferenças patentesentre elas. A complexidade e asofisticação mantinham-se. A parelha(num certo sentido, paradoxal)intrincação-nitidez também. Mas avisão durkheimiana não eraseguramente (nisso como em tantasoutras coisas) confundível com a deMarx.

É bem verdade que, tal como comtão grande lucidez o sublinhou e pôsem evidência Steven Lukes70 num estudomagistral sobre o pensamento dogrande teórico francês, ao longo dasua vida produtiva Durkheim foialterando a pouco e pouco as suasconceptualizações quanto à origem, aopapel, e à centralidade das “leis”,

70 Ver Steven Lukes (1973, pp.275-276, mas também pp.255 ss)., para uma exposição mais alargada daevolução das teses durkheimianas (a que,forçosamente, este resumo meramente indicativo nãofaz nem por sombras plena justiça) relativas àsligações entre a moral, a política, e as leis.

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da “moral” e do “Direito”. Fê-lo, noentanto, sem nunca verdadeiramentealterar a perspectivação de fundo quesempre defendeu: a ideia de que o“Direito” era uma espécie desubproduto da configuração subjacente 71de formas de organização, de nexos de

71 Uma expressão de uma ideia muito mais geral, deresto, que percorreu a obra do ilustre “sociólogo”francês: a opinião segundo a qual sistemas“intelectuais” (por exemplo os que apelidou desystèmes de classification) seriam sempre “representações”de conjuntos “materiais” de relations sociales (relaçõesessas que, lembremos, Durkheim insistia em encararcomo “coisas”). Assim, por exemplo, Durkheiminsistiu que “primeiro os ritos, depois os mitos”(ver É. Durkheim, 1912) no âmbito do seuextraordinário estudo sobre Les Formes Élémentaires de laVie Religieuse, tal como, aliás, num longo artigoescrito com o seu discípulo (e sobrinho) MarcelMauss (1901-1902), defendendo, designadamente, queos curiosos “sistemas classificatórios dualistas”reflectiriam, no plano das répresentations collectives, adivisão empírica entre os agrupmentos humanosconstitutivos das sociedades que os exibem em duasmoitiés (ilustrações clássicas disso sendo oferecidaspor vários grupos de aborígenes australianos e pordiversas grupos tribais ameríndios), um ponto demétodo que iria ser retomado e retocado, meio séculodepois, por C. Lévi-Strauss. Elizabeth Colson (1974:12), no texto de uma Lewis Henry Morgan Lecture,fundamental para o desenvolvimento da AntropologiaJurídica, abordou esta questão com algum maximalismopragmatista que me parece pouco fundamentado, aoafirmar que para Durkheim “men act before they think andthen produce a conceptual order to explain what they have done”.Tenho dúvidas quanto à boa fundamentação dapresunção de Colson de que Durkheim teria em mente

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relações sociais, concretas se bemque variáveis ao longo do tempo. Eque, por conseguinte, tanto o papeldo Direito como a sua “natureza”enquanto “facto social” (já que estanatureza e esse papel, nesses termos,seriam duas faces de uma mesma moeda)se alterariam à medida da progressãosequencial das formas básicas deorganização das relações nassociedades humanas.

É pouco árduo aduzir os motivospelos quais, neste tipo deteorização, a circunscrição do“Direito”, se fora inicialmenteproblemática, se tornava cada vezmais nítida ao longo da evoluçãosocial postulada. Para Durkheim, nalinha de uma tradição analítica quecomo se vê fazia escola, com aatomização-diferenciação cada vezmaior da sociedade autonomizar-se-iam

tanto uma separação tão estanque entre acções erepresentações quanto uma instrumentalizaçãoautomática de umas pelas outras; ao ancorar noçõesem prácticas, a intenção durkheimiana parece-me maisa de produzir uma teoria sociológica geral dosprocessos de ideação do que em weberianamenteenunciar o papel das ideias enquanto racionalizaçõeslegitimadoras. A este propósito, ) ver as minhasnotas 74 e 78, adiante, bem como o meu parágrafo quepara esta última nota remete.

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no seu seio domínios cada vez maisdiscretos em termos de âmbito: a sua“separação” como que “crescia”, com aespecialização funcional geralprópria de uma evolução socialverificada a todos os níveis. O queaconteceu com o droit seria afinal,neste tipo de formulações, apenasexpressão de um processo muito maisgeral.

Estava aqui patente uma curiosacontinuidade-transformação. Uma boaparcela do construtivismo darwinianoembutido no marxismo anteriorperdera-se; mas isso acontecera semque tal significasse um regresso àsperspectivas estaticistas das versõesanteriores da evolução histórico-social. Um novo construtivismo,porventura menos totalizante do pontode vista metodológico, assumia o seulugar. O que, por sua vez, foi tambémverdade em teorizações posterioresigualmente influentes; se bem que,sem dúvida, por imperativos“logísticos” resultantes de “razões”teóricas diferentes.

A alteração soava de facto atectónica, por assim dizer. Uma novaconjuntura metodológica vinha de

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algum modo como que reordenar o campoepistemológico implantado, apesar deo fazer sem que os seus pressupostosde fundo e os seus correlatoscentrais tivessem sido alterados:nalguns sentidos parecia assimtratar-se mais de uma re-arrumação.

A questão que a esse respeitoquero suscitar tem duas faces.Explicitemo-las. Por um lado, mesmojá bem dentro do século XX, mutatismutandis, visões alternativascontinuaram a supor o emparelhamentoresultante de uma propinquidade comoque “natural” entre a dimensãonormativa e a evolução dassociedades. Por outro lado, e emsimultâneo, considerava-se agora que“leis” e “Direito” seriam entidadesintelectuais e de algum modo“racionais”, cujo afloramento seriapaulatino. As inovações não foram dedesprezar. Muito, no entanto, semantinha incólume. Tratava-se,visivelmente, da emergência de novaspresunções de fundo a acrescentar aosvelhos pressupostos oitocentistas.Mas, num balanço geral, eramacrescentos de algum modo enxertados

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sem que o “tabuleiro” verdadeiramentemudasse.

Basta encarar as coisas em termosdiacrónicos para o entrever. Com osbenefícios da retrospecção torna-senítido que em boa sintonia com umEspírito do Tempo claramente muitoconstrangente, também Durkheim, naesteira de Maine e Marx, cedia àtentação “evolucionista” dehipostatizar o presente emreconstruções especulativas de umpassado cujos traços imaginadosseriam aqueles que asseguravam umaimagem plausível de uma maturação-desenvolvimento no caminho dessemesmo mundo em que vivia72. Ao invés

72 Apesar dessa ser uma perspectivação comum, seriaum erro pensar que Émile Durkheim manteve umaposição inalterada sobre a natureza essencial doDireito. Para além do texto clássico de 1893, queaqui já abundantemente citei, são essenciais nessecontexto dois textos de Durkheim, escritos a quasetrinta anos de distância um do outro, que de algummodo cristalizam essas mudanças: um deles (Durkheim,1893,) versa a “origem” da “ideia” do Direito; nooutro, datado de 1922 (Durkheim, 1922), o Autorprefere encarar o Direito no quadro mais geraldaquilo que apelidou a “física social” (verBibliografia). Se bem que a sua discussão não caibaverdadeiramente neste comentário, cumpre-me notarque há diferenças de monta quanto ao papel e aolugar social do Direito num e noutro destes doistextos. Sigo no presente trabalho a definição

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de Marx, no entanto, o presente queDurkheim projectou para trás era o deuma sociedade comparativamentepacificada, senão harmoniosa (talvezsobretudo precisamente nas suasconvicções quanto à progressão dodroit), marcada por fortes consensoséticos partilhados e à espera de umaiminente concretização histórica. O“gesto” foi em essência o mesmo;apenas o conteúdo narrativo mudara.Era o velho refrão revisitado, aindaque com vestes diferentes e menosconflituais.

As novidades analíticas que assubtendiam eram no entantointeressantes. E vieram a revelar-seférteis. Mesmo mantendo-se adistinção entre dois domíniosconcebidos como sendo complementaresmas separáveis (o “social” e o“representacional” que, mutatismutandis, de alguma maneirareduplicavam, pelo menos em termosrelacionais, o contraste marxista

durkheiminana “clássica” de 1893, mas faço-o pormera comodidade, tendo em conta que as diferençasarvoradas na sua obra relevam muito em particular dorelacionamento entre droit e moral e não alteram, porconseguinte, a premência das linhas de força quedelineio.

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entre o “material” e o “ideológico”),tratava-se de uma versão alternativa(se bem que paralela) das novasdinâmicas construtivas “embutidas”nas inovações conceptuais sobre anatureza da evolução que eram moda naépoca.

Em termos substantivos, note-se,muito era o que fora reconfiguradopor esta visão alternativa de É.Durkheim. Talvez valha a penadetalhá-lo, no que toca os temas aquiabordados, com algumas ilustraçõesconcretas relativas ao domíniogenérico do que talvez possamosdenominar o “jurídico”.

Três exemplos ilustrativosconvenientes para o efeito dizemrespeito à conceptualizaçãodurkheimiana sobre, respectivamente,a transformação “cronológica” dalegislação relativa a homicídios,àquela atinente à estabilização denoções jurídicas de propriedade e,finalmente, a alusiva à celebração decontratos. Três ilustraçõesparadigmáticas. Em todos estes casos,Durkheim (sem nunca se deixaraprisionar pelo “materialismo”marxista a que se mostrava tão

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avesso) anuiu quanto ao sociologismohistoricista que vinha de trás. Masfê-lo, naturalmente, nos seuspróprios termos de análise:considerou que as transformaçõeshistóricas manifestavam umaprogressão sensível nas “opiniões”entretidas pela “consciênciacolectiva”. E mais: que (tal como o“jurídico” no âmbito da “esferaideológica” marxista) também estas,por sua vez, seriam para Durkheim umaespécie do que hoje apelidaríamos devariáveis dependentes73, ou seja73 Por isso e pelo que atrás notei quanto às relaçõesque Durkheim postulou entre sistemas de“representações” e sistemas de “relações sociais”,parece-me excessiva a crítica [que R. Needham (1963:p. xv da Introduction), formulou, e que Lukes e Scull(1983, op. cit,: 6) ecoaram], segundo a qual É.Durkheim tenderia a pecar por sistemáticas petiçõesde princípio nas suas teorizações quanto ao papel ealcance da tão alegada operação de um mecanismo de“reflexão” nas sociedades; Lukes e Scull (e.g.: 6)chegaram mesmo a escrever sobre o dialectical skill, e aformular acusações de bluster e de a priori assertion[s] deum Durkheim que, no ver destes autores seguramentede má-fé, assim tentaria “distract [the] attention” dosleitores mais incautos das suas “manouevres”retóricas. O que me parece ser uma crítica injusta,tendo em vista que penso que aquilo estava em causaera, não uma qualquer postura teórico-metodológicatáctica localizada e conjuntural, mas antes aexpressão de uma hipótese “ontológica” durkheimianade fundo.

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tratar-se-ia de termos cujasinflexões seriam uma “função” demudanças profundas ocorridas na“estrutura organizacional” subjacentedas sociedades.

O pano de fundo para tal sugeridopor Durkheim era interessante, paradizer o mínimo. Segundo oenquadramento analítico durkheimiano,essa articulação, ainda que não fosseencarada como sendo estritamentelinear, era decerto vista como dotadade cumulatividade. E caminhavaclaramente na direcção dos modelosentão comuns de um “progresso” vistocomo co-extensivo com uma“modernização”.

Uma modernização e um progressoque segundo ele teriam lugar de formaconvergente mas não homogénea. Assim,por exemplo (e de maneira algodiscutível), Durkheim considerava queà medida que crescia “o valor” davida humana, decrescia emconcomitância a incidênciaestatística de homicídios74. Tal como,74 Ver Durkheim (1991, original 1893, op. cit.): 52-64,e o mais extenso artigo, dado a lume em 1901, sobrea “evolução” dos sistemas penais, há alguns anosrepublicado em S. Lukes e A Scull (1983, op. cit.):102-133. Escuso-me, nesta secção do Estudo em que

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em paralelo, o ilustre francêsensinou que a origem da propriedade75

podia ser encontrada em “ligaçõessociais arcaicas” que especificavamquais as “possessões sagradas” de umaentidade grupal primordial e“colectiva”; uma possessão da qualoutras entidades “segmentárias”semelhantes seriam excluídas,estipulando o nosso autor porconseguinte a existência de um eloimplícito entre “a propriedade e otabu”, elo esse que a crescente“secularização” e “individuação”teriam a par e passo modificado.Enquanto que, em menor congruênciacom esses processos, as regrasmutáveis dos contratos76 seriam, paraDurkheim, integralmente explicáveisabordo o período “clássico” fundador (e largamenteformatador) da Antropologia Jurídica, de remissõesbibliográficas que seriam infindas. Não posso,todavia, evitar algumas, dada a qualidade dos textosem causa. Para um estudo crítico muito minucioso eanaliticamente criteriosíssimo sobre aperspectivação durkheimiana da penalidade como ummecanismo de controlo social, é aconselhada aleitura do intrincado artigo de Steven Spitzer(1971).

75 Uma questão profusamente tocada por Durkheim,tratada em detalhe sobretudo em trinta páginashistórico-genéticas em É. Durkheim (1957).

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por recurso a “elementos não-contratuais” tais como “alianças desangue” e “ritos de comunhão”, estessegundo ele por sua vez só tornadosinteligíveis por alusão a “crençassagradas” expressivas decaracterísticas intrínsecas emanifestas de traços da “estruturasocial” existente, como por exemplo“o parentesco” e a “organizaçãoclânica”.

A complementaridade e aseparabilidade entre o “social” e o“representacional”, ou o “material” eo “ideológico”, eram como que umavariação sobre um tema conjunturalque subtendia todas estas versõespresentes no evolucionismo de76 Um ponto essencialmente elaborado ao longo de umaquarentena de páginas em Durkheim (1957, op. cit.). Ocontraste directo com Marx (como de resto, ainda queem menor grau, com Maine) é aqui revelador. Aliás,dada a sua posição de pivot que preenchem no Direito enos enunciados políticos ligados (positiva oucriticamente) às teorias e filosofias iluministasliberais, as configurações cambiantes dos contratostêm sido inúmeras vezes usados como elementosdiacríticos das formulações-quadro sócio-antropológicas. Por essa razão, e com o intuito deaumentar a comparabilidade entre os quadros teóricosque aqui exponho de modo abreviado, retenho sempreque possível exemplos de contratos como ilustraçõesparadigmáticas.

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Durkheim. Mas tratava-se de facto deuma visão inovadora quanto aosLeitmotivs da progressão postulada.Como viria a realçar Clifford Geertzno quadro de uma notável “etnografiado pensamento moderno”77, tornou-senuma quasi-“ortodoxia” a ideia neo-durkheimiana (com algum forcing abusivoimputada a Durkeim) segundo a qual“the product side and the process side [ofthought] are reconnected through a new andimproved brand of sociological determinism inwhich meaning systems become a middle termbetween social structures, which vary, andpsychological mechanisms, which do not”. Umaconvicção de longa duração e enormeinfluência em toda a Antropologia (edesignadamente na Jurídica), comoiremos ter a oportunidade deverificar.

77 Clifford Geertz (1983: 150-151). Em minha opinião,caso tivesse tido à sua disposição as teorizaçõessemiológicas posteriores, Durkheim teria aceite estetipo de interpretação quanto à formatação dos seusmodelos. Geertz intitula os seguidores destaperspectivação symbolic action theorists e define-os como“a small band, but hardy, to whom, with some reservations, I wouldgive my own allegiance”. Regressarei várias vezes, nopresente trabalho, a artigos constantes destacolectânea reeditada em 2000.

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4.4. MAX WEBER. A razão enquantoinstituição

Foi outro alemão, Max Weber, aquem farei alusão como último exemploilustrativo das perspectivas a quechamei “clássicas”, quem instalou nopalco enquanto personagens centraisos processos de “racionalização” (aseu ver) tão característicos dacivilização ocidental, sobretudo navariante protestante, a que a “lei”78,78 Talvez não seja despiciendo notar que, quandolevava a cabo o seu estágio em advocacia, em 1891,Max Weber redigiu a obra com a qual se qualificoucomo docente de Direito na Universidade de Berlim,sobre A História Agrária Romana e o seu significado no DireitoPúblico e Privado (cujo título original era Die RömischeAgrargeschichte in ihrer Bedeutung für das Staats- und Privatrecht).Logo nesse estudo, apadrinhado pelo notabilíssimojurista-historiador-filólogo oitocentista TheodorMommsen (ver ed. M. Rheinstein, 1954: xxxii-xxxiii),Weber apresentou a evolução histórica da agriculturaromana como um produto da interrelação complexaentre fenómenos e acontecimentos políticos,económicos e sociais. A carreira de Weber comoProfessor de Direito foi cortada cerce pouco depois,em 1894, quando aceitou a regência da então novacátedra de Economia na Universidade de Freiburg. Masnem tudo se perdera; como escreveu Max Rheinsteinnum texto magistral sobre Weber e o Direito(ibid.:xxxiii), “when he found it necessary in his investigations ofthe workings of society to consider the law and its functions, he did sowith the sure touch of the trained expert”.

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tal como a “ciência” e o próprio“capitalismo”, seriam maneirasparalelas e alternativas de darcorpo. Fê-lo no essencial no âmbitodos trabalhos enciclopédicospostumamente editados e publicadossobre o título genérico de “Economiae Sociedade”79; mas também no contextodo estudo comparativo monumental queempreendeu sobre a Sociologia dasReligiões. Para Weber, um jurista deformação e por convicção, o Direito(e sobretudo, o Direito ocidental,principalmente o protestante), maisdo que apenas uma causa e umaconsequência do desenvolvimentosocial, era dela o que talvezpossamos chamar um bom indicador defundo.

A linha de argumentação de Weberé em simultâneo tão simples e tão

79 No seu alemão verrnáculo intitulado Wirtschaft undGesellschaft, e cujo manuscrito inacabado e não revistofoi publicado em Tübingen, na Alemanha, em 1925. Asedições que aqui utilizo são a norte-americana,intitulada Economy and Society, M. Weber, (1968, original1917 a 1921), bem como uma outra antes publicada,também nos Estados Unidos que consiste no essencialde extractos, organizada por M. Rheinstein, (1954),e editada sob o título de Max Weber on Law in Economy andSociety.

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complexa quão interessante, e sempremarcada pelo uso caraterístico deconceito com referentes difusos nasua generalidade. Muito do velhoevolucionismo sobrevivia nas suasformulações. Mas as inovações nãoeram de subestimar.

Tal como Maine, Marx e Durkheim(e de acordo com os cânones do que hámeia dúzia de anos Duncan Kennedy80

apelidou the grand tradition), Weberpropôs abordar as sociedades modernascontra o pano de fundo das “antigas”.À imagem e semelhança dos seuspredecessores, preocupou-se comtraçar-lhes um percurso históricocumulativo. Mas viu-as como gerandoformas de ordenação dos seuselementos constitutivos segundoprincípios abstractos muito maisintelectualizados (intelectualistastalvez seja um melhor termo) do queaté aí se tinha afirmado; princípiosesses, note-se todavia, a que algunsdos detalhes particulares da evoluçãodas instituições dariam expressãoconcreta, num eco dos pressupostosessencialistas “hegelianos” que tão80 D. Kennedy, 1998: 264-265.

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bem caracterizam esta famíliaepistemológica “clássica”. Apesar de(neste como noutros domínios sobreque escreveu e dissertou) os escritosde Weber (na sua maioria ediçõespóstumas de trabalhos inacabados emuitas vezes nem sequer por elerevistos) nem sempre se mostraremfáceis de interpretar81, as travesmestras das suas reperspectivações depormenor são claras e não é árduodelineá-las, ainda que aqui apenas atraço grosso.

Algum recuo permite-nos comefeito uma fácil visualização deconjunto da teorização esboçada. Oque nos permite lançar alguma luzsobre a coerência da novaperspectiva. De uma maneirainteressante e, como era praxe,mantendo a nível formal a distinçãodicotómica entre dois níveis

81 Num prefácio resignado, o já citado M. Rheinstein(op. cit.: xv-xvii) lista exaustiva e detalhadamente asdificuldades sentidas na interpretação (ou natradução) dos escritos de Max Weber, dadas asambiguidades, as numerosas reservas e qualificações,os neologismos, o comprimento desmesurado dasfrases, e a ausência de citações habituais em tudo oque escrevia. Na maioria dos casos, os seus textosnão me parecem no entanto opacos.

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distintos mas complementares, Webersoube entrecruzar duas novas linhasde força: uma que insistia naautonomia e no peso específico dasideias; e outra, mais clássica eevolucionista e muito mais“material”, ligada à sucessãotemporal de sistemas políticos de“liderança”, ou “dominação”(Herrschaft, na colorida terminologiaweberiana). Uma ligeira reformulaçãoda velha “ontologia” que tinha omérito de repor em palco uma“política” e um pragmatismo que oorganicismo evolucionista até entãolargamente subalternizara,escondendo. O que no essencialanunciava (e enunciava) umaconceptualização inovadora dosmecanismos envolvidos na interacção,que Weber postulou como central,dessas duas partes interligadas dodomínio “social”.

Designadamente, a distinçãoconceptual prévia que Max Weberoperou entre o que chamou “poder”(Macht) e essa “dominação” torna-seessencial para a compreensão da suaSociologia do Direito (Rechtssociologiefoi a expressão que Weber usou). É

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com efeito precisamente entre estesdois conceitos que o Direito seinsinua: pois que para que o poder seexerça de uma maneira reconhecida eaceite, logo funcione para lá dasimples dominação, é preciso que eleseja legitimado. Para Weber seránessa legitimação que vai repousar asua eficácia: já que é nestalegitimação, nas formas que elaassume, que se vão inspirar as regrasdo seu exercício. E segundo ele sóhaveria três formas sobre as quaisuma dominação legítima se podiaapoiar: a tradição, o carisma, e oDireito.

O alcance desta novaperpectivação torna-se porventuramais claro ao ampliarmos imagens,como se subindo de patamar. Umexemplo sucinto e bem conhecidobastará para realçar a articulaçãoinovadora que Max Weber postulouentre um mundo de ideias e um mundode coisas: o que diz respeito aorelacionamento entre duas“movimentações sociais” que parecemter emergido em simultâneo (senão emconjunto, numa curiosa coordenação

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bem sintonizada), o protestantismo eo capitalismo.

Segundo a elaboração teóricaweberiana, a ética do protestantismopuritano e calvinista seria oprimeiro sinal “moderno” da últimadas formas que caracterizam oculminar de uma linha de evoluçãoresultante de uma propensão dasreligiões para um racionalismocrescente. Mas não se tratava de umamera secularização racionalista. Eraantes uma expressão ideacional de uma“materialidade” concomitante; poisque se tratava de um racionalismoque, estipulava-se, progrediria emparalelo com o desenvolvimento de umtipo de liderança política baseadanuma autoridade jurídica racional.Uma liderança cujo surgimento eimplantação teriam sido histórica e“materialmente” viabilizadas porfenómenos como as mudanças técnico-agrícolas, a urbanização, e o desafioconstituído pela emergência de novosactores como as burguesiasrenascentistas.

Note-se que as “ideias” seriamdotadas, nestas formulaçõesweberianas, de uma autonomia e de um

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peso específico. Mas eram-no não porserem eficazes num Mundo “material”que delas seria dissociável, masprecisamente por dele fazerem parteintegral. De alguma maneira, o velhomote revisitado; mas com subtisalterações. Sem que o tabuleiro fosserealmente alterado, a inovação levadaa cabo no espaço epistemológico forade monta: com os mesmos elementos, atopografia mudara. Os dois níveisantigos, separados e hierarquizadosentre si, tinham sido substituídospor dois lados, se bem que dois ladosem consonância, de um mesmo plano82.

Talvez isso seja mais visível numenquadramento macro, designadamenteno contexto das delineações

82 É fácil de ver por aqui a relação complexa doweberianismo com o hegelianismo: Max Weber, nofundo, não acreditava na racionalidade da História.Não aceitava a ideia, que considerava doutrinária,de que se pudesse ler na História o desenrolar deuma qualquer racionalidade supra-histórica outranscendente. Mas (o que é marcadamente diferente),Weber interessou-se muitíssimo pela história daracionalidade. A história da racionalidade, comoinsisti, constituía para ele uma espécie de chaveessencial no desvendar da progressão evolucionária(designadamente a do Ocidente, em que como vimoseste processo de manifestou de forma clara) e tambémna análise das sociedades contemporâneas modernas.

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weberianas sobre as formas sociaismais “complexas”. Para Weber, porexemplo, as “burocracias” quecaracterizam o “Estado moderno”seriam a manifestação mais plena da“eficiência” que a História ialogrando garantir nas sociedadeshumanas, uma expressão máxima da“racionalidade” nelas implícita. Étambém verdade que, para ele, aeficiência das burocracias não podiaser pensada em termos absolutos,antes sim em termos relativos. E eraencarada menos como um dadoquantitativo que enquanto uma relaçãode poder; porventura areperspectivação mais rica de todasas que Weber nos propôs. Mas, porém,essa eficiência dava igualmente e aum só tempo corpo e expressão a umamaior e qualitativamente diferente“racionalidade”. A progressão da“razão” via-se assim ligada àsucessão das “formas políticas”, numainteracção “espessa” (thick), comomuito depois asseveraria CliffordGeertz, muito mais rica e complexa doque até aí fora o caso em teorizaçõesde conjunto.

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Vale a pena resolver este pontoem maior detalhe. O pano de fundoassumido por Weber era mais uma vezclara e explicitamenteevolucionista83. Mas a mecânica dastransformações postuladas tornara-sesubtil e sofisticada84. Numa83 É extraordinária a precisão (e o preciosismo, jáque cada termo deste Autor tem um sentidoconvencionado e reflecte apenas um “lugar” exactonuma tipologia abstracta que vai erigindo) com queWeber, logo no primeiro (1964, op. cit.: 212-226) edepois no segundo volume (aliás, livro) do seupóstumo e maciço Economy and Society (ibid., op. cit.: 311-641) tratou as questões que via como pondo em jogo a“dominação” e a “legitimidade” ao longo da História,no contexto concreto da evolução das instituiçõespolíticas e da “racionalidade”. Especialmenteinteressantes são as suas páginas, nesse mesmoterceiro livro (ibid.: 956-1006), relativas ao queapelida the rule of formalistic impersonality com quecaracterizaria a operação das bureaucracies modernas.Na terceira parte do primeiro livro do Economy andSociety (ver op. cit.: 212-302), Weber abordou de maneiraminuciosa os fenómenos de “autoridade” e “dominação”antes sistematizados.

84 Com efeito, e para não dar senão um exemplo, aalegação avançada pelo Autor alemão de uma maioreficiência descansa sobre o que intitulou de um“tipo-ideal” (Idealtyp): uma estrutura impessoal deautoridade (a mais recente numa sequência queincluiria três grandes configurações em sucessão quelistei, a “tradicional”, a “carismática” e a“jurídico-racional”). Uma estrutura social nova. Euma estrutura social diferente: um arranjo composto dehierarquias baseadas numa progressão “em carreiras”,definida em termos de “competências” e de acordo com

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perspectiva não muito avessa àquelameio século antes proposta por Maine,a ideia weberiana básica era a de queo crescendo de “racionalidade”, eportanto de “eficiência”, queverificamos, seguiria (ou melhor,acompanharia) a transição históricade um mundo social baseado napredominância das relações pessoaispara outro, fundado nas impessoais85.

“regras específicas”, ancoradas em remunerações bem“contabilizadas”, em relações contratuais claras, ede acordo com regras rigorosas de “disciplina econtrolo”. Que esta formulação nos pareça hojetrivial atesta bem a adequação entre as teorizaçõesweberianas e o Espírito do nosso Tempo.

85 Sem querer entrar em grandes detalhes, aquiinjustificados, Weber não fugiu nisso muito àslições dos juristas alemães do século XIX, seusmestres. Pormenorizou bastante, no entanto, o seupróprio quadro teórico nesta frente de análise. ParaWeber (simplificando) “leis” podiam ser “criadas” ou“descobertas”. Mais: como categorias metodológicas,nos procedimentos seguidos no seu apuramento e nasua aplicação poder-se-ia distinguir entre processos“racionais”e processos “irracionais”; e por último,esses procedimentos dividir-se-iam em “formais” e“substantivos”. As diferentes formas históricas do“jurídico” (como vimos, tomados enquanto expressãode regimes políticos de “dominação”) distribuir-se-iam pelas combinações possíveis destas trêsdicotomias. A especificidade distintiva do“Ocidente” (a Europa do centro-norte e protestante)seria a do exclusivo de exibir “sistemas completosde racionalidade formal”. Parece claro, em todo ocaso, que as concepções “sócio-jurídicas” de M.

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Um outro mote revisitado. Aemergência de formas organizacionaiscomplexas inscrever-se-ia bem nessaprogressão inevitável. Estava porémlonge de ser linear ou pacífica: nanarrativa da teorização weberiana, alógica intrínseca dessa transformaçãoevolucionária era equacionada comoconflitual86 (ao invés do que fora ocaso com Durkheim, sempre preocupado

Weber alinhavam pelo diapasão da chamada“jurisprudência dos conceitos “ (Begriffsjurisprudenz)que tão cara fora aos seus mestres.

86 E, tal como Marx advogara, como “ligada àeconomia” (no seu estudo sobre A Ética Protestante e oEspírito do Capitalismo Weber denota essa “ligação” emtermos próximos dos do conceito goethiano de“afinidade electiva”, um sentido muito diferentedaquele que como vimos subjaz tanto a ideia marxistade “determinação” como a ideia durkheimiana de uma“prioridade” do “social”). Para o efeito Weberesboçou o que foi talvez o seu conceito maisinteressante (e mais incipiente) o de “EconomiaSocial”. Nos termos que sublinhei nas notasanteriores, é curioso verificar que Weberdificilmente poderia (de uma maneira coerente)defender uma qualquer ligação causal estreita entrea “lei” e as condições (económicas ou sociais) dasua emergência, sem cair, ou na “jurisprudência dosinteresses” que repudiava, ou numa sociologicaljurisprudence semelhante, por exemplo, à de RoscoePound, nos Estados Unidos. Se o fizesse, Weberestaria no fundo, nos termos do seu próprio ponto devista, a advogar a vigência, no processo de formaçãoda Modernidade, de uma substantive rationality.

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com “solidariedades”, e nissoaproximando-se antes do seuconterrâneo Marx).

Parece-me essencial realçar deimediato o facto de que Weber nãodestoou de Maine, Marx e Durkheim naleitura do passado que insistiu emlevar a cabo por intermédio de umareificação retroprojectada das formasdo presente. Mais uma vez isso énotório, agora nas próprias linhas deprogressão-racionalização do“jurídico” e do “político”, e destafeita numa versão modernizada de um“biologismo” evolucionista queinsistia em postular a insipiência,num passado imaginário, dos germes“racionais” virtuais do futurodesejado, como transformação de umpresente sentido como fonte de algumdescontentamento. Curiosamente, Weberaproximou-se muito em particular deDurkheim nas suas posturas“positivistas” relativas ao primadodo intelecto na sociedade do seutempo. De uma leitura atenta deWeber, resulta porém a impressão (tãodifícil de confirmar quão nítida) deque tal talvez se deva menos aquaisquer triunfalismos do que à

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convicção resignada de que o Mundo emque vivia era preferível a todos osoutros sobre os quais se comprazia aespecular.

Algumas rápidas comparações põemem relevo diversas novidades domodelo analítico weberiano.Reposicionemos o weberianismo nasérie de teorizações “clássicas” queaqui abordo. Ao contrário de Maine eDurkheim, que entreviam (naprogressão diacrónica a que aHistória dá vida) respectivamente umamaturação progressiva de um acquiscivilizacional, e uma manifestação(de alguma maneira automática) de umdesabrochar de uma “consciência”,primeiro “colectiva” e depois“egoísta”, sobre uma baseorganizacional que se ia modificandoao longo do tempo, Weber (tal comoMarx) não encarava essa ordenaçãocomo um desenvolvimento espontâneoque desse actualidade a quaisquerprincípios “naturais”, trans-históricos, ou transcendentes queestariam como que subjacentes à vidasocial. Antes os via como produtoscomplexos de um jogo de interacçãoentre por um lado ideias particulares

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e por outro distribuições, oudisposições, concretas de interessese de forças em conflito.

Ao contrário de Marx, porém,Weber recusava reconhecer qualquer“predominância” de um “nível” sobreoutro, preferindo mapear, camada acamada, as suas intrincadasinterpenetrações. Tal como para Marx,em todo o caso, (e sem embargo doabismo que separa as duasteorizações), para Weber o Estadoenquanto instituição preencheria noprocesso um papel absolutamentefundamental; e tal como para o seupredecessor, fazia-o visto considerarque o Estado seria um veículopreferencial por meio da qual osactores sociais, que se degladiam emconfrontos materiais87 e ideais,87 Max Rheinstein (op. cit.: xxviii-xxxiii), na magníficaintrodução atrás citada da colectânea, publicada em1954 e em Harvard, sobre o pensamento jurídico deMax Weber, insistiu (a meu ver com algumreducionismo, apesar de a apelidar de accidental cause)que Weber estava, paradoxalmente, sobretudopreocupado em rebater a influência de Marx junto àintelectualidade germânica da época, ao tender aatribuir uma enorme importância à economia como umdos factores determinantes (Rheinstein chamou-lhethat major framework do pensamento weberiano) para o“comportamento humano”; fazia-o, segundo estainterpretação, sublinhando a dimensão intelectual e

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lograriam transmutar vitóriastemporárias e efémeras em regimesmuitíssimo mais estáveis eduradoiros.

By and large, no entanto, atradicional topografia ontológica,chame-se-lhe isto, mantinha-se. Umavez postas em perspectiva asinovações-controvérsias que estapostura teórica corporizava, cabenotar que a um nível epistémico maisprofundo muito permanecia intocado eindemne. Tal como Durkheim,curiosamente, Weber fugia ao quereputava como o “reducionismomaterialista” de Marx; postulava quea progressão histórica verificadaera, como sublinhei, a de uma“racionalização” crescente (quecaracterizaria aquilo que, avant lalettre, mas bem ao Espírito do tempo emque escreveu, Weber retratava como “aModernidade”), de que as sociedadesocidentais seriam a manifestação

racional (numa posição a que depois de Karl Polanyichamaríamos “formalista”) do funcionamento daeconomia. Tal como no caso de Durkheim, pareceevidente esse ser um factor, que transparece de umaleitura cuidada; é no entanto difícil não imaginar oZeitgeist como porventura a determinante central.

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exemplar88. Tratava-se, no fundo eportanto, de pouco mais que de umanova versão do velho evolucionismo“positivista”.

Tal como nas variantesanteriores, a circunscrição do campo89

do “jurídico” (o “jurídico-88 Uma breve e tão-só indicativa visão de conjunto:era o próprio ponto de aplicação das análises, comosublinhei, que pouco a pouco mudava. É decertoverdade, repito, que o velho “tabuleiro”, jáprovecto, se mantinha. Mas com o seureposicionamento relativo de Maine a Marx a Durkheime depois a Weber, a nitidez das antinomias pré-compreendidas que o subtendiam ia-se esbatendo:passara-se de uma determinação estreita entre níveiscuja autonomia relativa estava hierarquizada a umaco-variação funcional induzida a, finalmente, umamera afinidade electiva entre linhas de força.

89 Um último exemplo das alterações de fundo que areperspectivação weberiana implicou para o estudodaquilo a que chamou Rechtssociologie (e que, pelaamplitude e ambição dos seus pontos de aplicação seaproxima mais do que hoje apelidamos AntropologiaJurídica do que da especialização em que tem vindo arecantar-se aquilo ora intitulado Sociologia doDireito) prende-se com uma profunda “alteração deponto focal”. Nas sociedades modernas, os“legisladores” e (nas de Common Law) os “juízes”,são as personagens centrais. Weber teve o enormemérito de notar que outros “sistemas jurídicos”podem ser (e por via de regra são) “dominados” porfiguras diversas, a quem chamou “honoratiores”, taiscomo “clérigos” (oficiantes religiosos),“conselheiros” com acesso privilegiado a umasabedoria temporal ou sagrada, “mediadores”, ou até“professores” (como no caso dos rabinatos, por

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racional”), nessas circunstâncias,era mais uma vez simultaneamentenítida e possível (ou antes,exequível e desejável), mas ao mesmotempo sujeita a variações: aumentariaà medida que a crescenteracionalização dos sistemas jurídicosvai formalizando o espaço em que seinscreve. O jurídico ir-se-ia comoque “separando”90, concretamente, das

exemplo). O ponto é fundamental: a questão, paraWeber, deixou de poder ser colocada meramente a níveljudicial, passando para o âmbito muito mais lato(atingido por intermédio de um raciocíniocomparativista, note-se) do pensamento jurídico.

90 A definição weberiana de “lei”, estabelecida com adupla preocupação de uma tão grande quanto possívelaplicabilidade comparativa, e de se manter “livre devalores” (wertfrei), parece formulada em contraponto àaustiniana. Weber recusou assim ver a “lei” como “ocomando do soberano”, preferindo uma versão maisgeral, menos normativa e mais “neutra”, segundo aqual “leis” seriam princípios de “conduta social”,sedeados “na mente”, e relacionados com a manutençãode uma “ordem legítima”, relativamente às quais hajaa “probabilidade” (die Chance) que seja exercido algumtipo de coerção (para garantir conformidade oucorrigir desvios) por “grupos de pessoasespecializadas” para o efeito. Uma definição que,como muitas vezes foi sublinhado, subtraía ao âmbitode “lei” o Direito Internacional da época de Weber.Weber detalha estas ideias nas duas primeirassecções do capítulo VI do segundo livro do Economyand Society; logo no primeiro livro da obra(curiosamente), pormenoriza o que depois desenvolve.

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formulações especulativas e dasexigências cosmológicas eescatológicas da religiosidadeamalgamada inicial a que apareceraassociado. Tal como deixaria de seruma simples expressão da vontadecarismática (ou nua e crua) doslíderes políticos típicos dasdiferentes sociedades característicasda pré-“Modernidade”.

Ao fazê-lo, o domínio jurídicoformalizava e autonomizava o seudiscurso, como hoje seguramentediríamos, passando a dar expressãoaos princípios abstractos da“racionalidade formal” que Webertanto valorizava. A receita para olongo sucesso dos weberianismosparece-me ser localizávelprecisamente nesta “conjuntura”heurística: Weber conseguiraequacionar uma formulação rica quemuito iria reconfigurar aperspectivação dos juristas (alemãese outros) em busca de uma porta deligação entre um sociologismo que seimpunha num novo Espírito do Temponovecentista e um racionalismo queteimava em não ceder terreno.

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III

A ANTROPOLOGIA JURÍDICA EM CONTEXTO

[W]e believe that comparative studycan aid us in our more parochial task ofunderstanding the law itself. We thinkwe can understand our own “England”better by having visited other shores,and we are confident that others canbenefit from the same experience.J. M. Balkin (1991), “Law,Music, and other PerformingArts” 4, University of PennsylvaniaLaw Review: 6.

Contra este pano de fundogenealógico, cabe-me então agoracomeçar a esboçar um apanhado deconjunto do que até aqui foi

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equacionado, por assim dizer,encetando deste modo um terceiropasso.

5. A ENTIDADE “CLÁSSICA” TRANSFORMADA

Em primeiro lugar, vale a penauma perspectivação tópica inicial: éde notar que, para além das questõesmetodológico-“ontológicas” a que fizalusão, a convicção generalizada dosautores “clássicos” de que tanto ojurídico como o político preencheriamum papel importante na vida socialsuscita uma interrogação práticacuriosa. Já que, dada esta herança,poderá parecer paradoxal que tanto aAntropologia Jurídica como a Políticasejam subdisciplinas deespecialização bastante tardia91 e91 Tardias se as compararmos, por exemplo, com aAntropologia do Parentesco, com a da Religião, ouaté com a do Económico. Uma das razões de ser destadécalage, deste desfasamento, prende-se seguramentecom a longa hegemonia de definições formais (e pornorma etnocêntricas) do “jurídico” e do “político”,que excluíam do seu âmbito estrito e restrito deaplicação muitas das sociedades estudadas porantropólogos. É curioso verificar que a utilizaçãode tais pré-compreensões foi abandonada apenas muitomais tarde no caso de domínios como o jurídico e opolítico, tendo por conseguinte o estudo destes

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ainda hoje com comparativamente poucaafirmação subdisciplinar.

O aparente paradoxo desfaz-se, noentanto, uma vez ponderadas asdificuldades com que nestas áreas,nestes domínios etnográficos, deparao método comparativocaracteristicamente utilizado pelosantropólogos. Esboroa, sobretudo, seenquadrarmos essas dificuldades noâmbito da propensão antropológica deentender todas e quaisquer formassociais em conexão com os “todos”socioculturais em que se integram.Isto é, se tomarmos em consideraçãoas inúmeras expressões empíricasalternativas do jurídico (e dopolítico) a que a Antropologia tem defazer face, designadamente asbarreiras que isso engendra92.

âmbitos sido remetido para áreas disciplinares poucoapetrechadas para levar a cabo as análisesimprescindíveis para uma renovação conceitualdevidamente fundamentada do ponto de vistacomparativo. Como iremos ter a oportunidade deverificar, na subsecção 7c. do presente Estudo, oresultado foi assim o de que só uma geraçãoacadémica mais tarde do que aquelas outrassubdisciplinas iria a Antropologia Jurídica viver asua “crise de identidade” contextual.

92 Para só dar um exemplo: Stuart Schlegel (1970:152), um antropólogo jurídico norte-americano

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Comecemos por referir que não setrata neste ponto de enfrentar umaqualquer mera questão protocolar, oude resolver um simples problema delogística conceptual linear, como lhepoderíamos porventura chamar. Asdificuldades sentidas radicam a umnível mais profundo do que talvez àprimeira vista possa parecer.

Os obstáculos confrontados são defacto muitíssimo embaraçosos, nosentido em que não são de fácilresolução. Efectivamente, aAntropologia Jurídica, para noslimitarmos a um só exemplo, debruça-se sobre numerosas sociedades eespecializado nas Filipinas, lamentou o facto de que“the definition of “laws” or “legal” is a notoriously difficult and elusiveproblem”. Ecoando em termos explícitos H. L. A. Hart(1965: 1), que identificou essa com the preliminaryquestion in jurisprudence, mas com algum maximalismo,Schlegel acrescentou que “probably no other central socialconcept has engendered so much scholarly effort at explanation anddefinition” (ibid.). Sem querer aqui detalhar um tema queexige e merece tratamento separado (o que faço maisà frente), adianto tão-só que não será surpreendenteque a inclusão de sociedades acéfalas edescentralizadas, no âmbito das nossas comparaçõesprévias, agrave o esforço requerido na busca dedefinições satisfatórias; para uma discussão maispormenorizada, ver Armando Marques Guedes (2003b),em que suscito esta e outras questões afins nocontexto de interpretações levadas a cabo quanto àsconceptualizações “locais” sobre ideias de justiça.

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culturas por vezes muito diferentesumas das outras; e tenta lidar com oproblema peculiar que é suscitadopela ausência, em muitas sociedades,de quaisquer organismos jurídicos (eaté políticos) formais. Os laboresantropológicos têm por conseguintesido exercidos em duas frentes,complementares mas largamenteantinómicas93. Face a essa93 Apesar de um muito generalizado alheamento emrelação a este tipo de questões, alguns dos juristasportugueses têm sabido (uns mais que outros) não sefurtar ao reconhecimento deste nível decomplexidade. Assim, por exemplo, Inocêncio GalvãoTelles (1999, 11ª edição,: sobretudo pp. 39-49),Diogo Freitas do Amaral (1997: 27-35), José deOliveira Ascensão (1997: 103.108), Marcelo Rebelo deSousa e Sofia Galvão (1998: 15-22) e J. BaptistaMachado (1996: sobretudo pp. 22-29). Neste contexto,é útil a consulta de J. Oliveira Ascensão (1997: op.cit.: 104-108), sobre aquilo que apelida “aindispensável função de revelar o direito vivo,quebrando a auto-suficiência do foro, que é cego àvida autêntica das populações” (idem, p. 108). Verainda J. Oliveira Ascensão (1982), num pequenoestudo sobre o “direito vivo” existente e emfuncionamento em Água Branca, Estado de Alagoas,Brasil, num texto que o autor considerou como sendode “antropologia jurídica”. Neste contexto, nãoquereria deixar de fazer alusão ao artigo da co-autoria de Maria Manuel Leitão Marques e FernandoRuivo (1982), intitulado “Comunidade e AntropologiaJurídica em Jorge Dias: Vilarinho da Furna e Rio DeOnor”, um claro (e notável) precursor dos estudosjurídico-antropológicos modernos em Portugal.Resultante de uma conferência organizada na

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informalidade e a essa diversidade,os investigadores têm tentado, por umlado, circunscrever e fundamentar(sempre segundo um programa deinvestigação rigorosamentecomparativo) a natureza e a estruturado “jurídico” nessas sociedades. Poroutro lado, na esteira dos FoundingFathers “clássicos”, muitosantropólogos têm-se dedicado aprojectos de investigação paralelosque visam compreender (e tentamexplicar) esse mesmo dimensionamentonaqueles agrupamentos sociais em queos domínios jurídicos se encontramformalmente institucionalizados. Osobstáculos com que depara este tipoambicioso de empreendimento não sãode subestimar.

Há que salientar que, de umamaneira geral, neste como noutroscampos a Antropologia Jurídica (como,aliás, a Antropologia Política) temassumido frontalmente a complexidade

Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra porBoaventura de Sousa Santos, trata-se de um estudocuidado quanto aos aspectos “jurídicos” (por via deregra tácitos e implícitos) dos trabalhos clássicosde Jorge Dias sobre duas aldeias do norte dePortugal.

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inerente a tal programa. Daí asdificuldades em edificar definiçõesfundamentais que não exerçam umaviolência inaceitável sobre factosetnográficos diversíssimos:respeitando a sua empiricidadeprópria, estas dimensões têm por viade regra sido interpretadas ou comoexpressão e manifestação, ouessencialmente como um aspecto de (comoestando imbricadas com, ouincorporadas em), outros domínios davida social, por exemplo oparentesco, a religião ou a economia.Ou seja, muito ao espíritoantropológico, o jurídico e opolítico têm sido tratados como factosempíricos primários multifacetados e têm-se por isso visto perspectivadasenquanto formas muito plásticasconstrangidas pelos seus contextossocioculturais próprios, variáveiscaso a caso94.94 Uma das implicações desta inclusividade e daconsequente indeterminação de fundo por ela gerada éque classificações e tipologias formais, jurídicas epolíticas (ainda que não raramente enunciadas) têmlogrado poucos consensos científicos, já quequaisquer definições genéricas claras, precisas elineares têm escasseado. Resta em todo o caso saberaté que ponto um projecto que no fundo exigedefinições comparativas prévias de conceitos cujas

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Uma simples ilustração põe-no emevidência. É interessante verificar,por exemplo, que logo nos anos 40,num trabalho excelente sobre osíndios Cheyenne, o célebre juristaKarl Llewellyn95 (uma das grandesfiguras de proa da escola Realistanorte-americana) e E. A. Hoebel, ummuito competente antropólogo96, se

características quer apurar e cujas variaçõespretende explicar não incorre na circularidadeprópria de petições de princípio e por isso mesmopeca por aquilo a que Karl Popper, no seu Poverty ofHistoricism (1960), chamou methodological essentialism.

95 Uma obra magnífica, intitutlada The Cheyenne Way.Conflict and case law in primitive jurisprudence, publicada em1942 (durante a Segunda Guerra Mundial e perdendotalvez por isso alguma da visibilidade que merecia)pela University of Oklahoma Press. Para umadiscussão do apport conceptual do jurista Realista K.Llewellyn para o desenvolvimento de um métodoconjunto jurídico-antropológico, sobretudo patentenesta monografia, é de recomendar a leitura doartigo de William Twining (1968). Para uma visãoalternativa, pelo contrário uma recensão rápida e enpassant, mas muito crítica do contributo deLlewellyn, ver Sally Falk-Moore (1999).

96 Num extenso artigo, laudatório mas mais analíticodo que hagiográfico, Leopold Pospisil (1973), umantropólogo jurídico de origem checa, como disseespecializado na Nova Guiné (e na juridicidade entreos Kapauku das terras-altas dessa ilha-continente),abalançou-se a uma avaliação pormenorizada docontributo de E. Adamson Hoebel para a progressão dadisciplina de Antropologia Jurídica. Começou por The

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viram forçados nas suas descrições enas suas análises a utilizarconceitos operacionais tão vagos (einteressantes) como o de law-stuff e ode law-jobs para lograr circunscrever,em termos “antropologicamenteaceitáveis”, o campo (que comparar e

Cheyenne Way, como vimos escrito em co-autoria comKarl Llewellyn, o opus magnum que P. H. Gulliverqualificou como “the beginning of modern studies in theanthropology of law”. Mas sem se esquecer do trabalhoanterior (um estudo que teve E. A. Hoebel como únicoautor) de 1940 sobre The Political Organization and Law-Waysof the Comanche Indians, nem do estudo teórico de 1954,intitulado The Law of Primitive Man, nem distinçõesoperacionais como a que Hoebel introduziu nadisciplina como aquela entre substantive e adjective law(esta última ligada aos procedures), nem desmontagensúteis para o desenvolvimento disciplinar como arelativização das dicotomias “clássicas” de H. S.Maine entre status e contract e corporations sole ecorporations aggregate, que Hoebel sempre insistiu seremmeros “tipos ideais” sem verdadeira aplicabilidadeempírica no plano de tipologias ou periodizaçõeshistóricas. Uma eulogia por causa do legado quedeixou à disciplina de um case-method que, comoiremos verificar, fora inventado por juristas comoutros propósitos, mas que Hoebel e Llewellynreinterpretaram tem também lugar de eleição noartigo de Pospisil. L. Pospisil (ibid.: 557) viu, oentanto, como o contributo maior de E. AdamsonHoebel para a Antropologia Jurídica o facto de, nosanos 40, o feito de lograr o milagre de “resurrecting itfrom the obscurity into which it had fallen after the greatachievements of early anthropologists”. É de notar que amonografia teórica que Hoebel produziu em 1954intitulada The Law of Primitive Man é pouco mais do qeuma tentativa gorada de analizar sistemas jurídicos

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tentar generalizar a partir daítornara tão difuso) do jurídico.

Dar voz ao que K. Llewelyn e E.A. Hoebel97 escreveram a estepropósito torna clara a complexidadeanalítica envolvida, e põe bem emrelevo a postura Realista por elesassumida. Mostra, para além disso,como conceberam o fosso entre a law inthe books e a law in action e comopensavam a ponte entre asinvestigações dos juristas e as dosantropólogos necessária para otranspor.

Os termos da equação foramenunciados num plano genérico.Circunscreveram os dois autores “threeroads into exploration of the law-stuff of a culture.The one road is ideological and goes to ‘rules’which are felt as proper for channelling and

como um todo, de acordo com o esquema tipológico-cronológico erigido pelo influente jurista norte-americano Wesley Newcombe Hohfeld.

97 K.Llewelyn e E. A. Hoebel, op. cit.: 21. O contextodeste parágrafo é o de um longo capítulo-quadrointitulado A Theory of Investigation., o segundo damonografia que conjuntamente redigiram. É de notarque, apesar de se tratar de um mrco na sequência dasgrandes produções jurídico-antropológicas, estamonografia acabou por, de algum modo, ocupar umlugar menos central na progressão teórico-metodológica verificada.

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controlling behaviour. Students of ethics and legalphilosophers are likely to call these felt standardsfor proper behaviour ‘norms’. Students of modernlaw, accustomed to clothing such norms in words,and to meeting them chiefly in verbalized form,speak of them as ‘rules’ for behaviour. In anyevent, they are ideal patterns, ‘right ways’ againstwhich real action is to be measured. The secondroad is descriptive; it deals with practice. Itexplores the patterns according to whichbehaviour actually occurs. The third road is asearch for instances of hitch, grievance, trouble;and enquiry of what the trouble was and whatwas done about it. Beyond this, for the thirdapproach, there lies - if it can be discovered – theproblem of motivation and result of what wasdone”.

As preocupações antropológico-jurídicas em assegurar às análisesempreendidas sob a sua égide umacomparabilidade que permitissegeneralizações passíveis de umaaplicação ampla ao conjunto dassociedades humanas têm sido nítidas.O resultado, vago.

6. A CAMINHADA DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA

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No ano remoto de 1934, B.Malinowski pode com propriedadelamentar que “the anthropological study ofthe law” tem sido negligenciado “to anextent which the layman would find unbelievableand which the specialist realizes with shock”98.Em 1979, um par de gerações maistarde, Simon Roberts pode retorquir,com amparo factual indiscutível, que“this deficiency […] has long been made up”99:já então, com efeito, inúmeras eramas monografias etnográficas dedicadasa casos empíricos particulares, bemcomo trabalhos de cariz mais teóricoe generalista. E desde aí a tradiçãode levar a cabo esse tipo de estudosestá viva, é rica, e mostra boasaúde.

Infelizmente, a identificação deum obstáculo e a sua transposição sãocoisas inteiramente diferentes uma daoutra e, é claro, tal éparticularmente agudo quando nemtodos reconhecem a presença dele. A

98 Citação extraída da esplêndida “Introduction” a H.Hogbin (1934), Law and Order in Polynesia: lxi, London.

99 S. Roberts (1979, op. cit.), Order and Dispute. Anintroduction to legal anthropology. Não discordo, quanto aeste ponto, de Roberts.

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rigidez e permanência teimosa de pré-compreensões de fundo podem ser comfacilidade constatadas nadeterminação de muitos estudiosos emcontinuar a esmiuçar não só outrossistemas jurídicos, mas também amanutenção da ordem na sociedade, eaté os diversos mecanismos utilizadospara a canalização de disputas, nointerior do quadro, ao que parece imutável, dasteorizações jurídicas ocidentais. Muitos sãoos especialistas (e, entre estes,sobretudo juristas) que, contra acorrente cada vez mais caudalosa dedados empíricos recolhidos eacumulados, parecem apostados emmanter viva esta autêntica charada100.

100 Repito o que redigi e publiquei em 2003 (op. cit.:28) a este respeito: “if 1934 is, for anthropologists (even legalanthropologists), a date fading back into the distant past, for legalscholars tout court it often appears to invoke a shallow time-depthwhich reaches only to yesterday. The sad truth is that among jurists(with some exceptions, as rare as they are noteworthy) responses toMalinowski’s oblique advice went largely unheeded. If only for thehonour of paraphrasing him, permit my indulging in the pleasure ofturning the tables and allow me the freedom of a sweeping assertion.Here goes: the anthropological study of the law has been neglected bymainstream legal scholars to an extent which the layman would findunbelievable and which the specialist realizes with shock! Let me bestraightforward: jurists of all feathers often seem to ignore (or, for allsorts of motives, appear to prefer to ignore) the profusion of studiesand data which have been piling up since Malinowski wrote that sternwarning. Allow me to stress that it is my belief that they do this at theirown risk since, perhaps more than ever before, the rapid

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As generalizações etnocêntricasimplícitas têm assim quantas vezessobrevivido mesmo naqueles casos emque a falta de quaisquer equivalentesfuncionais ou estruturais se tornamais evidente: no que diz respeito,por exemplo, àqueles agrupamentossociais que não ostentam, no seurepertório cultural, quaisquernoções, conceitos, ou sequer termosque sequer vagamente pudéssemostraduzir como “leis”, “regras”,“normas”, ou “jurídico”. Ou naquelesoutros meios sociais (e são muitos evariados) nos quais “o domíniojurídico” é refractário a umaclassificação como “domínio”, tendo

transformation of the world into a “global village” in which we(whether we like it or not) are all, somehow, neighbours, renders ourmutual interaction unavoidable, and thus makes it imperative that, insome way, we understand one another. I prudently refrain fromqualifying the nonchalance which sustains the glaring omission which,in my view and with all due respect, is still being perpetrated by somany legal scholars. Suffice it to say that, in today’s world, turningone’s back is silly. I would much rather focus, albeit briefly, on some ofits correlates. By which I mean both the implicit posture associatedwith this cavalier attitude and its consequences. The unstated pose isall too often one of an uncouth ethnocentric affectation of superiority.Its outcome is at best a systematic misunderstanding which kills off allpossibility of a mutually profitable dialogue; and at worst themaintenance of a painful distancing, with all the risks entailed by theensuing opening of gaps. Ignorance is certainly a fool’s errand, if everthere was one”.

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em vista a parente promiscuidadeneles atente entre aquilo quetendemos a arrumar taxonomicamentecomo ”jurídico”, e o que noshabituámos a pensar como relevandoantes do “religioso” ou do“político”. Ou nos casos etnográficos(e são mais uma vez numerosos) em quenenhumas “regras” (seja qual for asua origem ou natureza) são de todoformuladas, ou sequer de algum outromodo equacionadas. A impressão quefica é inevitável: parece ser total aincapacidade manifestada emreconhecer quaisquer formas que não ascontidas nos enquadramentos institucionais e dosinstitutos conceptuais desenvolvidos nassociedades de origem (ainda que tão sóorigem, ou implantação, intelectual)dos analistas101.

Dificuldades, por grandes quepossam ser, nem sempre redundam, noentanto, em impedimentosintransponíveis. E aqui foi esse o

101 Escrevi, a este respeito, também em 2003 (ibid.:33.): “it is as if, in order to carry out a study on, say, thehydrodynamics of sardines, we set out from the initial assumptionthat, anatomically, sardines are built like cats; and, consequently, thenwent on to analyse the hydrodynamics of these fishes with termsdeveloped in order to describe the ergonomics of cat food cans”.

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caso: não obstante tais restrições noenfoque e limitações advenientes dasenormes variações etnográficasverificadas, tem havido uma evidenteprogressão analítica no trabalhoantropológico-jurídico cujas travesmestras tento esboçar. Ou, pelomenos, tem sido manifesta a presençade um fio condutor102.

102 É bem conhecida a posição de partida, algodiferente, de Clifford Geertz: “in my view, by conceivingof the product of the encounter of ethnography and law to be thedevelopment of a specialized, semi-autonomous subdiscipline withintheir own field, like social psychology, exobiology, or the history ofscience, anthropologists […] have attempted to solve the localknowledge problem in precisely the wrong way. The evolution of newbranches of established fields may make sense when the problem isthe emergence of genuinely interstitial phenomena neither the onething nor the other, as with biochemistry, or where it is a question ofdeploying standard notions in unstandard domains, as withastrophysics. But with law and anthropology, where each side merelywonders, now wistfully, now sceptically, whether the other might havesomething somewhere that could be of some use to it in coping withsome of its own classic problems, the situation is not like that. Whatthese would-be colloquists need is not a centaur discipline – nauticalwine-growing or vigneron sailing – but a heightened, more exactawareness of what the other is all about” (Clifford Geertz,1983: 169). Segundo Geertz, o resultado temnotoriamente configurado, “not an attempt to join Law,simpliciter, to Anthropology, sans phrase, but a searching out ofspecific analytical issues that, in however different guise and howeverdifferently addressed, lie in the path of both disciplines”. C. Geertzfoi mais longe, declarando que a abordagem comum temsido “an hermeneutic tacking between two fields,looking first one way, then the other, in order toformulate moral, and political, and intellectualissues that inform them both” (ibid.: 168-169). Não

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Face a este género de barreiras,o trajecto percorrido pelaAntropologia no estudo tanto dossistemas jurídicas como dos políticostem-se mostrado, sem dúvida, árduo esinuoso; como seria decerto deesperar tendo em mente não só osobstáculos formais a que aludi mastambém a densíssima “cargaideológica” com que arcam estesconceitos. Mas tem-se mantido sempreencaminhado, de maneira persistente,no sentido em que tem teimosamenteinsistido em conseguir criarcondições para um comparativismosistemático que tenta ancorar (e vercomo interligados) estes doisaspectos da vida colectiva,insistindo que tanto esta comoaquelas se tornam mais facilmenteinterpretáveis em contextossocioculturais amplos (cujadelimitação tem diferido) de quefazem parte.

discordo da posião de chegada de Geertz, emboracreia que podemos ser mais ambiciosos, visto estarconvicto, como venho a insistir, de que as barreirasao diálogo interdisciplinar são diferentes(simultaneamente maiores e menores) que o que esteA. pretendeu.

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Tal como vimos, a caminhada daAntropologia Jurídica fora encetada(no sentido de para ela um tabuleiroinicial se ter visto delineado) porformulações de Founding Fathersevolucionistas que, atidos aoenquadramento iluminista que presumiauma unidade implícita de toda aHumanidade (essa nova entidade a queconcedera, em base “científico-racional”, foros de cidade num Zeitgeistque viria a revelar-se como debastante longa duração) nuncaengeitaram essa exigência teimosa.Como iremos ver, os termos-quadroviriam a ser remodelados porMalinowski e, mais tarde, novamentepela dupla Gluckman-Bohannan: mas semque a tensão fundacional que asubtendia fosse apagada ou resolvida.E também sem que o seu desenrolarfosse previsível.

O processo desencadeado, comoirei tentar demonstrar, deuefectivamente origem a um percurso ea uma caminhada. A resolução datensão congénita da AntropologiaJurídica tem sido, a um tempo, aforça motora e tem dado corpo àlógica subjacente da progressão

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disciplinar. Não me parece, todavia,que se possa detectar na caminhadauma qualquer direcção teleológica,ler nela uma verdadeira“organicidade”, ou se possa subsumiro percurso a quaisquer dinâmicas“dialécticas”.

É bem certo, como terei aoportunidade de ir sublinhando, que“soluções” conjunturais distintasforam sendo encontradas para asquestões que as “soluções” anterioresnão logravam plenamente resolver. Masnem se vislumbrou nunca uma soluçãofinal, nem os encadeamentos dassoluções parciais que foram sendoassentes se viraram em direcçõesinternamente previsíveis. Nunca foióbvio o porquê de uma qualquersolução e não de outra, ou sequerporque é que se deram inflexões numou noutro sentido no andar dacaminhada, nem ainda porque foramumas e não outras “sínteses” osveículos específicos para odesenrolar cronológico (no sentido desequencial) da tensão fundacionaljurídico-antropológica.

O que mostra a narrativa que sesegue é antes que, com regularidade,

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as “sínteses” logradas, assazconsensualmente aceites, incorporaramsempre elementos da antiga tensão nosnovos plateaux a que foram chegando,para depois os tornar a dividir aolongo de novos eixos, retomando opercurso103.

Por outras palavras, e semembargo das tentações totalizantessempre presentes, quero argumentarque apesar de tudo o percurso seguidotem mantido alguma fidelidade aoprojecto antropológico mais geral,re-afirmando-o muito sistemáticaprogressivamente, sem embargo de umenquadramento muitíssimo103 Não quero de maneira nenhuma aqui advogar umaqualquer forma de organicismo, que postule estarmosna presença de uma qualquer totalidade ao nível dojurídico-antropológico, ou que assevere queestejamos perante uma qualquer direcção para o devirdas ideias a que esse projecto daria corpo, ou queesteja em causa um qualquer finalismo seja de quetipo for. Parece-me, no entanto que o facto de oshorizontes de problematização da AntropologiaJurídica se terem historicamente encontradodefinidos, num relacionamento de subalternidade esubmissão hierárquica, pela Jurisprudence dos juristas,tem induzido um desenrolar progressivo (eaparentemente “orgânico”) porque precisamente ele teveinicialmente lugar no interior de um mesmoenquadramento que funcionou como se se tratasse deum quadro ontológico geral, que por conseguinte lheapontaria direcções e lhe definiria um fim.

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constrangente como tem sido o daJurisprudence.

6.1. ENTRE FORMAS E FUNÇÕES

Sem pretender sugerir, repito,uma qualquer narrativa históricaunitária para as sucessivastransformações da AntropologiaJurídica que foram acima referidas,cabe iluminar algumas das faces deuma morosa progressão gizada por umasequência de encadeamentos. Note-se,logo à partida, que estamos peranteum percurso que, ainda queacidentado, tem vindo a mostrar-secomo sendo transitável. Astransformações sofridas pelo caminhosão, aliás, assaz instrutivas.

Dar à nossa análise algumaprofundidade de campo temporal, aindaque o façamos de forma sucinta,revela essas faces. Porventura porquea constituição de uma disciplinaacadémica “autónoma” exigia acircunscrição de objectos científicos“discretos” sobre os quais ela seiria debruçar, em inícios do séculoXX o evolucionismo oitocentista

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“clássico” de inclusividade universalfoi largamente abandonado:“sociedades” distintas umas dasoutras, enquanto entidades pensávespor si só, substituiram os modelosantes postulados de processos mais oumenos lineares de crescimento-maturação104.

Numa primeira retoma “não-evolucionista” da problemáticaerigida na fase fundacional inicial,as preocupações dos antropólogosmantiveram-se focadas no apuramentodas várias configurações segundo asquais o controlo social seriasustentado e potenciado pelainterrelação de “instituições”, ou nadescoberta das “regras” subjacentes àmanutenção de uma “ordem” emsociedades particulares. Emconformidade, a perspectivaçãotendia, nos trabalhos levados a caboentre-guerras e nos primeiros anos dopós-guerra, a ser funcional. As104 É também certo que esta fragmentação respondia aexigências político-adminstrativas nacionalistas ecoloniais que se manifestavam nos palcos da época, emuitas interpretações têm insistido nesse tipo deressonâncias. Sem embargo de reconhecer procedênciaa essas reconstruções, prefiro acrescentar-lhes umadimensão “corporativa” como a que sugiro.

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sociedades estudadas eram, por norma,vistas como entidades essencialmenteestáticas e em equilíbrio integral.

Não havia entre os estudiosos, noentanto, um real consenso, ao mesmotempo homogéneo e substantivo. Algunsinvestigadores, na esteira de A. R.Radcliffe-Brown, um investigadorbritânico instalado em Oxford quetrabalhara sobre os aborígenesAustralianos e os Andamaneses (quevivem numa ilha entre a Índia e aTailândia), assumiram (de modo maisou menos acrítico) a aplicabilidadeuniversal de chaves conceptuais quereputavam invariantes: a “lei”, ou os“sistemas políticos”. Os ecosformalistas eram óbvios.

Outros, numa linha de tradiçãolargamente rascunhada por B.Malinowski, cujas investigaçõesdiziam respeito aos Trobriandeses dacosta da Nova Guiné, preferirammanter assestado o foco das análisesetnográficas no estudo dos mecanismos(quaisquer que eles fossem)comprometidos com a manutenção daordem e o controlo social, recusandocomo não fundamentada (porqueespeculativa) a imposição a outras

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sociedades e culturas de conceitosparticulares especificamentedesenvolvidos para a europeia, ou deorigem europeia. A atmosfera de LegalRealism então vivida nas escolasanglo-saxónicas de Direito não era,decerto, alheia a esta postura.Alguns ainda, como R. Redfield e L.Pospisil105, ambos nos Estados Unidos(o primeiro um latino-americanista, osegundo centrado nos Kapauku da NovaGuiné), esboçaram terceiras vias decompromisso, algo sincréticas.

6.2. ECOS E REVERBERAÇÃO

O contraste entre as posiçõesassumidas pelos dois primeirosantropólogos referidos no parágrafoanterior (A. R. Radcliffe-Brown e B.Malinowski) é muito revelador.Malinowski preferiu confrontar oproblema “de fora para dentro” e

105 Em várias obras, de que destaco um artigo de 1968com o título sugestivo de “Legal levels andmultiplicity of legal systems in human societies”,The Journal of Conflict Resolution 9 (1): 2-26, a monografiade 1971 intitulada Anthropology of Law: a comparative study,e outra de 1974, Anthropology of Law: a comparative theory.

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explicou como [numa frase memorável]sociedades “acéfalas” conseguiammanter a ordem “without courts andconstables”; especificando que em suaopinião “law ought to be defined by functionand not by form, that is we ought to see what arethe arrangements, the sociological realities, thecultural mechanisms” 106, que subjazem àrespeciva aplicação. As consequênciasnão foram pacíficas: em resultado, asformlações malinowskianasdesembocaram numa “definição”(melhor, numa circunscrição deâmbitos) de tal maneira abrangente

106 Na sua já referida esplêndida Introduction de 1934(p. lxiii) à monografia de H. Hogbin sobre Law and Order inPolynesia, abundantemente citada (por exemplo em S.Roberts, 1979: 28). No clássico Crime and Custom inSavage Society (1982, sendo a edição original de 1926)Malinowski refugiou-se num enfoque centrado emnormas: “the rules of law”, escreveu, “stand out from the restin that they are felt and regarded as the obligations of one person andthe rightful claims of another” (p. 55). Como muitos anosmais tarde comentou certeiramente Sally Falk-Moore(1978: 220), a definição de Malinowski “was so broadthat it was virtually indistinguishable from a study of the obligatoryaspect of all social relationships” [ênfase minha]. Para umadiscussão teoricamente (mas não historicamente) bemcontextualizada) das sérias insuficiências dadefinição excessivamente abrangente de Malinowski, éútil a leitura de Brian Tamanaha (1993) que começapor intitulá-la de ever persistent, apelidando-a depoisde unforgiving e, finalmente, encarando-a como thebedevilling Malinowski problem.

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que a law se tornou difícil dedistinguir dos costumes107.

Talvez a expressão mais nítida(mas não decerto a mais acabada)dessa inclusividade exagerada sejaaquela que Malinowski formulou naintrodução à sua monografia jurídico-antropológica de eleição, o“clássico” Crime and Custom a que jáaludi, de que o estudo da primitive law,como lhe chamou, seria no fundo “thestudy of the various forces which make for order,unformity and cohesion in a savage tribe” 108. Na107 “Costume” aqui utilizado num sentido mais lato emenos definido do que aquele em que muitos juristaso utilizam ao encará-lo como fonte de Direito de parcom, por exemplo, a lei ou a jurisprudência.Infelizmente nem juristas nem antropólogos jurídicossempre mostram consciência do uso muito diferenteque fazem deste conceito, o que tem dado azo a todoo tipo de dificuldades de comunicação: um ponto quemereceria desenvolvimentos de muitíssimo maiorpormenor. Para duas excepções, é vantajosa a leiturade J. Vanderlinden (1996): sobretudo pp. 47-59; vertambém R. David (1982 e, sobretudo, 1984).

108 B. Malinowski (1989, original de 1926): 2. Nestanotável introdução, Malinowski queixou-se com algumaveemência do desleixo dos antropólogos seuscontemporâneos em relação a uma primitive law que, noentanto, formaria uma parte essencial das savagesocieties, escrevendo, num estilo característico dessafase da sua notável e prolixa produção científica,que “law and order prevade the tribal usages of primitive races, theygovern all the humdrum course of daily existence, as well as theleading acts of public life, whether these be quaint and sensational or

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introdução que escreveu para a jácitada monografia de Hogbin,Malinowski explicitou algumas dessasforças actuantes para a manutenção deuma ordem social, designadamente“reciprocal obligations built-in to kinshipsystems”, ou seja, mecanismos ligadosao sistema económico, bem comoingredientes mais fluidos como o“medo da feitiçaria” ou, de maneiramais vaga e difusa, mas não menoseficaz, boatos e outras formas depressão e censura social109.

important and venerable. Yet of all the branches of anthropology,primitive jurisprudence has received in recent times the scantiest andleast satisfactory treatment” (idem). Para uma discussão umpouco mais detalhada e bastante mais contextualizadadesta ansiedade de Malinowski, ver Armando MarquesGuedes (2003a): 29-35.

109 B. Malinowski (1934), op. cit.: lxii-lxv. Antropólogosmalinowskianos posteriores acrecentariam mais tardea esta lista outros mecanismos de controlo socialque induziriam o cumprimento de normas (pois eraisso o que efectivamente estava em causa nestasformulações) factores como o medo do ridículo ou darejeição, a vergonha, a sensibilidade relativamentea uma aprovação (ou a sanções) pelo sobrenatural,etc.. É curioso verificar que Malinowski impunhaalgumas restrições “discricionárias” ao que aceitavacomo mecanismos “jurídicos”, ou pelo menosfuncionalmente “jurídico-penais”: relativamente a umcaso que discute de uma mulher trobiandesa, Isowa’i,que enganada pelo marido se suicidou atirando-se deuma palmeira abaixo, Malinowski recusou a hipótesede se poder encarar esta acção (apesar do que

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Abrindo uma linha de clivagemcaracterística, e funcionalmenteequivalente a outras que abriu contraMalinowski noutros domínios daanálise sociológica, Radcliffe-Brown,ao invés, fez suas as palavras doinsigne jurista norte-americanoProgressivista Roscoe Pound, entoandouma definição mais restritiva (mastambém muitíssimo abrangente) segundoa qual “law” seriam as formas de“social control through the systematic applicationof the force of politically organized society” 110; o

Isowa’i gritou logo antes de cair) como uma “pena”,remetendo-a antes para o limbo da vindictaindividual.

110 A posição de princípio de Roscoe Pound sobre opapel da law foi claramente delineada numa série deestudos e ensaios, porventura o mais importante dosquais o seu pequeno livro Social Control through Law(1997, mas sendo a edição original de 1942). Numaperspectiva muito semelhante à de Rudolf von Jheringe da famosa “jurisprudência dos interesses”, enomeadamente da convicção deste último segundo aqual todas as leis teriam um “objectivo”, ou uma“finalidade” práticas (e não uma mera naturezaabstracta como o presumiam os juristas alemãesoitocentistas que tanto influenciaram o arranque daJurisprudence norte-americana), uma opinião que em chãofértil iria fazer uma longa e variada carreira),Pound deitou e elaborou uma das pedras basilares doque teve por bem chamar a sua própria sociologicaljurisprudence: a famosa “teoria dos interesses sociais”que com ardor defendeu.

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que o levou a concluir, neo-austinianamente, por assim dizer, quemuitas sociedades pura e simplesmentenão exibiam normas de naturezajurídica111.

Sem querer entrar em minudênciasgratuitas em relação às esplêndidas ealtamente influentes tramas teórico-111 Em dois artigos de E. A. Hoebel, um de 1961 outrode 1962, este A. criticou a utilização por A. R.Radcliffe-Brown, como vimos nas páginas daEncyclopaedia of the Social Sciences (1923, vol. 10: 2002,entrada Law, Primitive) da célebre definição atribuída aRoscoe Pound. No segundo destes dois artigos Hoebel(1962, op. cit.: 836) notou, com desalento, queantropólogos tão influentes como E. E. Evans-Pritchard, Meyer Fortes e Max Gluckman tinhamacriticamente aderido de corpo e alma a estadefinição, aliás retomada para a construção de umatipologia de sistemas político-jurídicos que fezhistória (M. Fortes e E. E. Evans-Pritchard, 1940).No primeiro artigo Hoebel afirmara que a definiçãoaustiniana não correspondia à posição de Pound, quede facto a não utiliza na sua famosa An Introduction tothe Philosophy of Law, o que efectivamente Pound não fez.No segundo dos dois artigos, no entanto, E. A.Hoebel retratou-se, reconhecendo que nas Readings onthe History of Common Law, de 1913, Roscoe Pound adoptoude facto uma postura austiniana, fazendo uso de umadefinição de law semelhante àquela depois repetidapor Radcliffe-Brown. Dando voz a uma crítica comum,Hoebel (1962, op. cit.: 837) manteve, porém, o repúdioque antes expressara por uma postura teórico-definicional que reputou de “misleading”, por nosconduzir de maneira inelutável à conclusão de “nocentralized government, no law”, uma consequência que tinhapor inaceitável.

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metodológicas genéricas erigidas porum e outro dos dois autores, curiosoé verificar que o fosso escavadoentre estas duas formulações foi tudomenos enxuto112. Basta ensaiar umapanhado de conjunto das linhas defalha traçadas entre uma e outra dasposições assumidas para o pôr emrelevo.

As diferenças ao nível do designarquitectónico eram nítidas. ParaRadcliffe-Brown o acento tónicoestaria colocado, com óbviasressonância weberianas, na coesãoorganizacional de uma comunidadepolítica que interviria através douso da força em vista à manutenção deuma ordem tida como essencial113.112 Opinião, aliás, que não é de forma nenhuma sóminha. Para uma discussão detalhadíssima da destriçaentre a posição de A. R. Radcliffe-Brown em relaçãoà manutenção da ordem social pela law e a posição deB. Malinowski sobre a gestação de uma ordenaçãoregular da vida social em sociedades without courts orconstables, é essencial a leitura de Simon Roberts(1971a). De uma posição um pouco diferente da quesustento, Roberts (op. cit.: 679) insiste aí quedevemos ter sempre, malinowskianamente, como “centreof interest [...] people interacting and not [...] the formalizedlegal system”.

113 É curioso sublinhar que, numa situação a muitostítulos funcionalmente equivalente (noutrosmuitíssimo diversa), a da case law norte-americana,

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Enquanto que para Malinowski aquiloque era tomado como diacrítico (e porisso digno de atenção) se ligavaantes aos dispositivos concretos quepreencheriam papéis relevantes namanutenção dessa mesma ordem. Ambosconcordavam que a finalidade era a deassegurar uma ordem: mas enquanto oprimeiro, Radcliffe-Brown, pareciapreferir privilegiar pesquisas sobreo funcionamento de engrenagenspolítico-estruturais desencadeadaspelo todo social, o segundo,Malinowski, escolhia antes favorecero deslinde dos mecanismos empíricosque, em conjunto, militavam no

Oliver W. Holmes famosamente esclareceu que “theprophecies of what the courts will do in fact [...] are what I meanby law”. Numa veia semelhante, outro famoso juristaamericano, Benjamin Cardozo, declarou que “the law is aprinciple or rule of conduct so established as to justify a predictionwith reasonable certainty that it will be enforced by the courts if itsauthority is challenged”. Tanto uma como outra destasabordagens, preocupadas com a definição de umaentidade não cristalizada em normas escritas esujeita a reinterpretações conjunturais, puseram atónica na deductibilidade de “normas” implícitas (umelemento normativo, e de aplicação regular) e, bemassim, nos mecanismos concretos para uma suaimposição por “autoridades públicas” (mais ou menosdifusas e com graus diferentes deinstitucionalização) reconhecidas.

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sentido de garantir uma maior coesãosistémica a esse mesmo todo.

Cabe notar que tais diferenças,apesar de complexas, não eram novas.Tal como nos estudos de Jurisprudencenos Estados Unidos (com reverberaçõesna Grã-Bretanha), este formato forteassumido pela tensão fundacional dosestudos antropológico-jurídicosexprimiu-se deste modo (esta é emtodo o caso uma outra forma deencarar a disjunção mapeada) como umadistinção clara entre aqueles queprivilegiavam o estudo da leipropriamente dita e das formas legaisassociadas, e aqueles para quem taisdados eram antes vistos no essencialcomo outros tantos mecanismos quefazem parte dos dispositivos geraisde controlo social e de manutenção deordem nas sociedades114.114 É curioso verificar que, entre os juristas anglo-saxónicos ligados à investigação científica ou àsempresas coloniais e pós-coloniais, muitos foram osque preferiram a definição de B. Malinowski,rejeitando a de A. R. Radcliffe-Brown e dosnumerosos antropólogos (sobretudo britânicos) seusseguidores. Como por exemplo escreveu,malinowskianamente, C. M. N. White (1965: 86), umCommissioner for Native Courts na então já independenteRepública da Zâmbia, no contexto de uma discussãosobre “African customary law”, mesmo nas sociedadesacéfalas há “bodies of rules [...] to define the reciprocal

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Esboçara-se um contraste quetinha vindo para ficar. O diferendoentre Malinowski e Radcliffe-Brownprojectara-se em planosessencialmente sociológicos. O queera compreensível e vantajoso. Haviaainda, contudo, que traçar as linhasde força e tensão do diferendo emplanos mais atidos ao jurídico paraque o seu impacto conseguisse abarcaros quadros utilizados pelos cultoresdo Direito que se preocupassem comeste tipo de questões.

7. O ACELERAR DO PASSO

O impacto dos considerandos ereticências resultantes da oposiçãosociológica entre Malinowski e

behaviour of individuals, and mechanisms [exist] to maintain thesocial order. The latter may vary greatly between constituted authorityand various forms of self help, with religious and supernaturalsanctions, and processes of reconciliation playing their parts. Thus thesocial order was maintained, and there is little need to reject theexistence of law in such societies merely because the western Austinianor neo-Austinian criteria of law fail to apply. There is in respect of suchtraditional societies little advantage in drawing a distinction betweensocieties with law and others without law if legitimate and approvedmechanisms [operate] to maintain social order”.

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Radcliffe-Brown (ou melhor, delescorrelativo) depressa se fez sentirnesses âmbitos jurídicos mais puros eduros115, sobretudo na sequência decontrovérsias tão influentes como aque contrapôs um estudioso Oxfordianoradicado nos Estados Unidos daAmérica, P. Bohannan, que trabalharaentre os Tiv da Nigéria, e umespecialista sul-africano, M.Gluckman, cujas investigações sedebruçaram sobre os Barotse (ou Lozi)da Zâmbia. Tratou-se de uma polémicacuja arquitectura acentuou ocontraste de perspectivas antesrascunhado em termos mais adequadosàs formulações comuns entre osjuristas e, nesse referencial, maisempírico-metodológicos. Mas que, emsimultâneo o redimensionourevisitando, ex novo, o imperativocomparativista “clássico” que tinhacomo linha de horizonte a eventual

115 O já citado K.-F. Koch (op. cit.: 14), considerou,memoravelmente, que, embora as especulações avulsase desconjuntadas [os termos são meus] de B.Malinowski tenham sido “a grossly inadequate account ofassorted observations [he] made […on the WesternPacific...] his theoretical contributions to the study of law wereimportant in their programmatic compass”.

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formulação de generalizaçõescomparativas “universais”.

Em causa estava justamente aeventual necessidade (e a suaimprescindível fundamentação) dealinhavar definições nocionaisgenéricas prévias116, ainda que apenascom o valor de meros modelosoperacionais. Sem que nos percamos emgrandes pormenores, vale decerto apena que nos debrucemos um poucosobre as tónicas e linhas de forçaprincipais da controvérsia que, comoelaboração-inovação de algum modo

116 Esta polémica forma o tema de uma das sessõesintrodutórias (a terceira) do programa da disciplinade Antropologia Jurídica e Política, que abaixotranscrevo. Preocupado em demonstrar, no período desedimentação do regime de apartheid, os paralelismos“racionais” entre Lozi e ocidentais, Max Gluckmandefendeu a utilização, para a análise das “formasjudiciais” dos primeiros, da bateria de conceitosdesenvolvidos pelas “ciências jurídicas” dosúltimos; uma posição criticada, em termosradicalmente “relativistas” por Paul Bohannan, queinsistiu na imprescindibilidade de utilizar osquadros conceptuais próprios de cada “sistema”, paralograr uma sua melhor interpretação. Asreverberações desta controvérsia fundadora naprogressão encadeada da Antropologia Jurídica aindahoje se continuam a fazer plenamente sentir: trata-se de uma tensão estrutural e estruturante, a nívelmetodológico, cujas soluções possíveis não sãoconsensuais.

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construída sobre a falha aberta pelodiferendo entre Malinowski eRadcliffe-Brown veio a revelar-secomo em tantos sentidos fundadora daAntropologia Jurídica “pós-clássica”117.

Comecemos por um rápidoenquadramento prévio. Até MaxGluckman, um antropólogo cum jurista,ter publicado, em 1955, o seu TheJudicial Process among the Barotse of NorthernRhodesia118, os estudos jurídicos117 No programa da disciplina, como se pode ver,dedico uma sessão a uma discussão detalhada sobre osmeandros de uma controvérsia histórica que, paraalém de Max Gluckman e Paul Bohannan (como vimos osseus protagonistas mais directos), envolveunumerosos outros antropólogos e teve mesmorepercussões no âmbito do Direito Comparado: o quenão será surpreendente, já que a controvérsia pôs emcena questões de função, forma, e contexto comsérias implicações tanto para muitas das ambições dejuscomparatistas, como para muitas dasgeneralizações comparativas próprias da maioria dosantropólogos. Os três textos principais destacontrovérsia podem ser encontrados em M. Gluckman(1965) e P. Bohannan (1964 e 1969).

118 Ver, na Bibliografia, M. Gluckman (1955). OsBarotse (que se apelidam a si próprios de Lozi)vivem em territórios que hoje formam uma parteintegrante do território da Zâmbia. Para um“compacto” redigido pelo próprio autor, ver M.Gluckman (1959), “Ideas in Barotse Jurisprudence”,American Anthropologist 61 (5, parte 1): 743-759.

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relativos às sociedades africanastradicionais consistiam em pouco maisdo que muitas vezes extensascolectâneas ordenadas de “regras” e“princípios” decantados a partir darecolhas (muitas vezes indirectas)levadas a cabo ora por missionários,ora por funcionários coloniais, orapor viajantes ocasionais119.

Na larguíssima maioria dos casos,os “Direitos nativos” identificadosenquanto tal eram arrolados como

119 Nalguns casos excepcionais, como o de IsaacSchapera entre os Tswana, de Karl Llewellyn e E. A.Hoebel entre os índios Cheyenne, ou o de B.Malinowski nas ilhas Trobriand da Nova Guiné, comovimos, cientistas sociais tinham ensaiado estudosmais cuidados e mais críticos da sistemas jurídicos“tradicionais”. Como tive a ocasião de sublinhar,alguns deles tiveram o mérito de tornar evidente acentralidade privilegiar funções sobre formas, etodos tiveram o mérito (que se tornou num legadocentral do que viria a cristalizar-se como aAntropologia Jurídica moderna) de relativizar apresunção weberiana de que as sociedades ocidentaisde alguma forma reservavam para si o monopólio deuma racionalidade formal institucionalizada,descrevendo alternativas etnográficas que de algummodo em muitos sentidos lhe seriam funcionalmenteequivalentes. Apesar deste menor denominador comumanti-evolucionista, a verdade é que nenhum destesestudos apresentou o fôlego teórico e etnográfico epor conseguinte soube ter um impacto comparável aodo trabalho empreendido por Max Gluckman nos anos 50do século XX.

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conjuntos de normas e princípiosequacionados como “regras”,geralmente enunciadas, em versõessimultaneamente idealizadas epragmáticas, por “chefes” ou outras“autoridades tradicionais”120. Segundoessas compilações, estas seriam as“regras” do “Direito costumeiro”aplicadas tanto pelos tribunaiscoloniais (nos casos em que estesreconheciam os Direitosconsuetudinários locais), como nasinstituições “nativas” que se tambémse debruçavam sobre tensões econflitos interpessoais e grupais.

O estudo de Gluckman veio alterarprofundamente estas perspectivas, atéentão comuns. Com base numa distinçãosistemática prévia entre as “normas120 Conceitos por sua vez produzidos no quadro derelacionamentos coloniais muito particulares, cujautilidade analítica directa era por isso bastantedúbia. Para discussões quanto a este ponto abibliografia existente é extensíssima; ver, portodos, Mahmood Mamdani (1996) e M. O. Hinz (1998).Para discussões interessantes relativas àcontextualização político-conjuntural das chamadas“autoridades tradicionais” Angola, ver, entre muitosoutros, os artigos de dois investigadores angolanos,Maria da Conceição Neto (2002) e de Fernando Pacheco(2002). Em Armando Marques Guedes (2004: 52-75),discuto com algum pormenor estas e outras posturaspolítico-teóricas.

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Lozi” e os “princípios lógicos”(logical principles) abstractos e geraisque seriam utilizados pelos “juízes”Barotse (princípios esses de cujostermos dependeriam as decisões destesúltimos sobre quais as “regras” e“precedentes” a aplicar em cada casoconcreto que lhes fosse submetido, etambém como e quando fazê-lo),Gluckman procedeu a uma reconstruçãopormenorizada do que apelidou osjudicial processes dos Lozi. Os dadosempíricos em que Gluckman baseou estareconstrução detalhada resultavam deuma observação participanteprolongada, não estando por isso tãoenfeudados a perspectivaçõesparcelares de líderes políticos, oualiás às de qualquer grupo social.Mas ainda que na célebre monografiade M. Gluckman tenha sido feito usoabundante de termos em língua lozi121,

121 Um só exemplo, paradigmático. Num longo artigo,A. L. Epstein (1967) criticou a utilização, por MaxGluckman, da imagem estandartizada (mas segundoGluckman universal) do “reasonable man” que as kuta dosLozi levariam sempre em linha de conta nas“expectativas normativas” (normative expectations) que asguiavam na condução dos “julgamentos” e nas tomadasfinais de decisões. Sublinhando de váriasperspectivas e ângulos de análise os conteúdos queem diferentes contextos culturais e conjunturas

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a terminologia utilizada nasistematização etnográfica dela era adas Legal Theories comuns nasinstituições universitárias de ondeele próprio provinha.

Havia duas ordens de razões paraisso. Em primeiro lugar, como vimos,Max Gluckman assumiu confessadamente,como cidadão sul-africano, o ter porfinalidade política da suainvestigação demonstrar que, aocontrário do que Max Weber postulounos termos da progressãoevolucionária que propôs, os Lozi nãoutilizavam um tipo diferente de“racionalidade”: bem pelo contrário,segundo Gluckman os Lozi operavam deacordo com os mesmos princípioslógicos dos em uso na sociedadeafrikans. Num certo registo, o seutrabalho monográfico era uma espéciede manifesto científicoestruturalmente anti-apartheid, e autilização sistemática de umaterminologia associada com a

sociais lhe era atribuíveis e atribuídos, Epsteinsublinhou a “polisemia” do conceito de reasonable e asenormes variações no seu campo semântico, que em boaverdade, insistiu, só parecem poder ser reveladascaso a caso.

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“racionalidade burocrática moderna”tinha a virtude de tornar essafinalidade evidente e as conclusõesque a sustentavam incontornáveis.

Em segundo lugar, Gluckmandefendeu as suas escolhas teórico-terminológicas em termos da “maiorpotência analítica” de conceitosoriundos de Legal Theories que, pela suacomparativamente maior elaboração,permitiriam distinções finas de outramaneira difíceis de lograr. Estasegunda linha de argumentação foidefendida no calor da polémica comBohannan, e não é claro que Gluckmantenha tido plena consciência datensão teórica inevitável suscitadapor quaisquer eventuais tentativas deharmonizar entre elas estas suas duastomadas de posição.

Foi contra o “artificialismo”desta última escolha, que corporizavaa utilização de uma terminologia“ocidental”, que muitos antropólogos,de entre os quais avultou PaulBohannan, levantaram alto e bom somum coro de protestos. O argumentomais comummente esgrimido foi o deque Gluckman estaria no essencial a“passar gato por lebre” ao

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representar um sistema nos termos deoutro, traindo desse modo a“integridade interna” que o primeiropatentearia e a qual os seuspostulados não deixariam ver. Érelevante sublinhar o facto de nenhumdos críticos pôs em dúvida a notávelprecisão e qualidade técnico-etnográfica do estudo apresentado.

Mas Paul Bohannan, assumindo comosua uma posição radicalmenterelativista, insistiu, na polémicaque com Gluckman desencadeou, naacusação de que cada “cultura” seriauma entidade “única” (unique); de queo apuramento da especificidade decada cultura deveria constituir aprimeira prioridade de quaisquerinvestigações antropológicas; edefendeu, por conseguinte, que aanálise proposta por Gluckmanredundaria numa séria “distorção”.Com algum maximalismo, Bohannandefendeu até mesmo a ideia de quequalquer tentativa de tradução dostermos vernáculos localmenteutilizados122 se saldaria sempre numa

122 Um ponto retomado por numerosos bohannianos,aliás com óbvio fundamento. Um exemplo bastará portodos sobre as limitações empíricas de traduções,

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traição inaceitável123. No estudomonográfico que publicara, logo em1957, sobre os dois tipos detribunais reconhecidos pelos Tiv daNigéria124, Paul Bohannan tentaraprecisamente evitar esse tipo dedistorções. E fizera-o cingindo-se

ainda que muito bem contextualizadas, de termosjurídicos oriundos de sistemas cuja alteridade sejamuito marcada. Sublinhando a “indesejabilidade”commumente sentida, ao nível estadual africano, porsistemas de “propriedade da terra” (land tenure)tradicionais, e tendo em mente questões como atransferência de propriedade, ou a existência detítulos “comunais”, Kwamena Bentsi-Enchill (1965),sugeriu a possibilidade de se vir a desenvolver umanova terminologia jurídica própria para dar boaconta das reformas e figuras emergentes noContinente.

123 Esta polémica, como não podia deixar de ser, foimuitíssimo marcada pelo espírito da época. Um sóexemplo bastará. Perante a objecção de M. Gluckmande que uma postura integralmente relativistainviabilizava inevitavelmente quaisquer comparaçõesque pretendessemos levar a cabo, Bohannan sugeriu acriação e a utilização sistemática pela Antropologiade uma “linguagem neutra”, porventura “semelhante àslinguagens digitais dos computadores”, cuja virtudeseria a de manter a “neutralidade” enquanto, emsimultâneo, se assegurava a “universalidade”necessária para permitir comparações egeneralizações tão imprescindíveis para o projectoantropológico.

124 Paul Bohannan (1957). No programa da disciplinade Antropologia Jurídica, para além da sessãodedicada à polémica Gluckman-Bohannan, uma sessão

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tanto quanto possível aos quadroslinguísticos, nocionais, einstitucionais locais dos próprios.

Como tantas vezes é o caso quandose trata de fazer frente a tensõesresultantes de uma contraposição pró-activa a ideias provenientes decampos exteriores e hegemónicos, asprimeiras formulações são muitasvezes aquelas que estão dispostas amenos concessões. O gestomalinowskiano radicalmenteantropologizante de P. Bohannan nãoconstituiu excepção. Tal como ireisublinhar, Bohannan pagou um preço:as páginas que redigiu sobre os tar ouos jir dos Tiv são em consequênciadifíceis, senão impossíveis, deresumir hors contexte.

Mas não as suas conclusões, nemos minuciosos avisos deixados ànavegação. Quanto mais não seja pelapertinência que tem para uma daslinhas de argumentação que aquiprossigo, vale a pena citar os doisúltimos parágrafos da extraordináriamonografia de Paul Bohannan125:debruça-se sobre a monografia de Gluckman e umaterceira sobre a de Bohannan.

125 Paul Bohannan, 1957, op. cit.: 214.

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“Europeans and Americans use the concept of‘law’ as one of the main organizing andregularizing precepts for social action. Tiv use adifferent set of notions best covered by the Englishword ‘counteraction’ as we have defined it here; astheir key concept they have their jir. I have not,in this book, merely used the technique of showing‘differences’ whereas another anthropologist, of adifferent cast of mind, might have shown‘similarities’. To think that there are similaritiesand differences between English and Tiv law, andthat all one has to do is to compare them, is asociological oversimplification of the most blatantsort. Rather, there are two idioms and two sets ofimages in which peoples see their jural institutionsand their institutions of social control.

Two things can be done: both can beexpressed in a non-technical language, ‘thetechnical side of the law’ moved out of the centralposition, as Llewelyn and Hoebel have put it, orelse both sets of ‘technical’ concepts can becompared, each elucidating the other. I prefer thesecond alternative. Only so have I been able toexplain Tiv ideas, retaining their fundamentalsense and dignity. Only so have I been able to see‘law’ not as something universal, but as thetremendous cultural achievement that it is”.

O debate crucial entre P.Bohannan e M. Gluckman, teve lugar de

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honra em Yale, numa conferênciarealizada nuns anos 60caracterizáveis como de transição126,e deu-se em tom acalorado. Odesenlace da controvérsia não foi,naturalmente, conclusivo; algumas dasimplicações que dela decorreram nãoforam contudo de subestimar.Impunham-se reformulações; ou, nomínimo, reorganizações dos esforçosanalíticos que permitissem aosinvestigadores ir recolhendo dadosetnográficos passíveis degeneralizações comparativas (emcumprimento do projecto antropológicogenérico), mas exigia-se fazê-lominimizando, na medida do possível,definições eivadas de etnocentrismos.

126 Em meados dos anos 60, Laura Nader encetou naUniversidade da Califórnia, em Berkeley, umlevantamento bibliográfico exaustivo de toda aliteratura etnográfico-jurídica até à épocaproduzida. Dado o seu interesse, o projectotransformou-se num programa que se manteve longosanos. Em inícios da década seguinte, a de 70, BruceCox e Gordon S. Drever (1971) publicaram um estudosobre as tendências então mais recentes na“etnografia jurídica” (ethnography of law) que,curiosamente, intitularam um estudo sobre aspublicações levadas a cabo no domínio da “customarylaw”.

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O dilema torna-se maiscompreensível no quadro das intensasmudanças que a tantos níveisocorreram na época, a da primeiravaga de descolonizações de meados doséculo XX. Num primeiro momento, enum enquadramento colonial tardio emcrise, tentara-se compreender emsimultâneo o passado histórico e opresente vivo127 dos “não-ocidentais”,indo buscar em paralelo (e tentandofundi-los uns nos outros), conceitosprovenientes do evolucionismocongénito que descrevi como sendo odos Founding Fathers da AntropologiaJurídica, e conceptualizações“europeias”. Num segundo momento, noentanto, pressentia-se o fim da eracolonial prenunciada pouco depois do

127 Para uma posição não muito diferente da minhaneste ponto (ainda que mais localizada), ver S.Falk-Moore (2001, op. cit.), designadamente nainterpretação histórico-politicamentecontextualizada que propõe para as primeirasproduções teóricas de Max Gluckman: precisamenteaquelas que desencadearam a polémica deste com PaulBohannan. O ecumenismo teórico-metodológicoenvolvido nos esforços dos que cavalgaram atransição não terá sido fácil. Como notou comnotável argúcia e mordacidade Sally Falk-Moore(ibid.: 98), “in his opinions, Gluckman had managed to identifysimultaneously with Marx and Maine”.

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final da Segunda Guerra Mundial e aurgência nova de reconheceridentidades próprias às populaçõesque, no processo, se iam emancipando.

Vivia-se, num como noutro dosdomínios, um período de profundaalteração de coordenadas128. O128 Em finais da década de 60, Klaus-Friederich Koch(1969), da Harvard Law School, publicou um breve artigoapelando à interdisciplinaridade entre o Direito e aAntropologia, sublinhando que logo em 1951 o célebresociólogo e politólogo David Riesman fizera o mesmo,embora nesse caso sem grande sucesso. Koch (op. cit.:11) realçou que “communication between lawyers andanthropologists is, at times, difficult because of a certain lack of lexicalcompetence on the part of the anthropologist in talking about the“lawyer’s law” on the one hand, and the lawyer´s unfamiliarity withanthropological concepts in the other”. Prudente, mas tambémrealística e pragmaticamente, Koch começou porpropor a eliminação pura e simples da “questãoestéril” de responder à questão “what is law?”, queconsiderou “unprofitable ground for debate”: “it is true, when Isay I study the law of a people, I should know what it is that I study.But for me this requires only rough delineation of a particular focus onsome fields of social relations and the ideology connected therewith.[…] Definitional discussions have often proven to be very sterileexercises, especially if they are pursued with minimal reference toempirical data and do not result in a categorization of variables and aconceptualization of pertinent research strategies”. Noseguimento da sua crítica, Koch notou logo depoisque “no one has ever disputed the universal existence of somethingwe call economy”; e, em paralelo a uma definiçãosubstantiva e “funcional” desta última, propôs(ibid.: 12) uma law que, no essencial, “has to do with howpeople make living a relatively ordered social existence”. Com umaatitude típica desta época, Koch sublinhou que “muchenergy was wasted on questions such as, ‘Is law universal?’ or, ‘Do allsocieties have law?’”; para concluir, “today we find such

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Lebenswelt mudara; as nossasexperiências sociais também. Aintegridade funcional dos sistemassociais (antes tácita e presumida)tornara-se para todos cada vez menoslíquida e convincente, porventura emconsonância com as enormes mudanças econvulsões sócio-políticas ocorridasnos panoramas nacionais einternacionais então contemporâneos.A complexidade etnográfica do que nosrodeava era palpável, bem visível, enão se compadecia com simplificações.

7.1. DAS FORMAS E FUNÇÕES AOS PROCESSOS

Compreensivelmente, preferirpriorizar processos substantivos sobreformas emergiu enquanto solução

questions not only uninteresting, but truly unproblematic as well. Thatis, they do not direct our attention to problems we wish to explain.”Uma postura, como iremos verificar, que não seriaconsensual por muito tempo no domínio dasinvestigações jurídico-antropológicas. Koch terminouo seu excelente artigo recenseando e enumerando asvantagens recíprocas da convergência disciplinarentre Antropologia e Direito, num Mundo sob pressãode enormes mudanças socioculturais e políticas comoo que então nos rodeava.

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operativa mínima com que todos129 (ouquase todos) podiam concordar. Odesfecho não foi de maneira nenhumanecessário: não era senão um dosequacionáveis, mas era um de entre ospossíveis. Como concessão, estasaída, por assim dizer, tinha poucoscustos. Tratava-se apesar de tudo deuma resposta que redundava numamudança interpretável como uma meraampliação táctica de ponto focal.

A reperspectivação implícitatinha em qualquer caso uma óbviavantagem, de um ponto de vista dasmetodologias e conceptualizaçõesantropológicas “tradicionais”: a depermitir analisar, num mesmo quadroteórico, sociedades com instituiçõesmais vincadas e formalizadas e outras129 E não apenas os anglo-saxónicos, cuja experiênciade common law os torna porventura à partida maispropensos a encarar nestes termos “processuais” ossistemas e as práticas jurídicas. Mesmo osantropólogos jurídicos francófonos o fizeram (ver,quanto a este ponto, o notável artigo, já citado, deC. Eberhard, 2001, sobretudo pp. 188 e ss.). Bastauma leitura dos títulos dos artigos e estudosmonográficos jurídico-antropológicos desta épocapara constatar essa tónica ascendente, tãocaracterística, nos “processos sociais”, de LauraNader, a Sally Falk-Moore, ao curto estudo de GlynnCochrane (1972), intitulado “Legal Decisions andProcessual Models of Law”, em que a law é encaradacomo uma “decision-making activity”.

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mais acentuadamente acéfalas efluidas. E, ainda, outra menosevidente: a de malinowskianamente,por assim dizer, viabilizar ainterpretação em enquadramentosanalíticos paralelos, sistemasjurídicos centrados em noções de“leis”, ou “normas”, e outros em quetais noções estivessem menospresentes ou são até inexistentes. Osganhos de fundo eram em resultadoclaros: o comparativismouniversalista e “cosmopolita” ficavasalvaguardado.

Em paralelo e em simultâneo,acrescia o ganho, considerável, depermitir melhor equacionar a questãoincómoda, mas cada vez maisincontornável, de tornar inteligívelo fosso insistentemente detectadoentre formulações ideológicasidealizadas e práticas sociaisconcretas; ou, melhor ainda, lucrava-se com o facto de para esse chamadogap se poder doravante oferecermodelos pragmáticos justificativos.Esboçava-se, assim, um novoparadigma, mais tranquilizante paratodos os que se preocupavam com aadequação empírica dos enquadramentos

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teórico-metodológicos em uso. Um novoquadro que consistia, para mais, numareperspectivação epistémica quefacilmente se adequava ao novoespírito de um tempo muito maisrelativista que o anterior.

A partir sobretudo dos anos 60 e70, os pontos de aplicaçãoconvencionais das análisesempreendidas foram em consonânciaalterados; os antropólogos passaram apreferir levar a cabo estudos denatureza mais concreta e maisdinâmica, trabalhos eivados de menospressupostos formais cristalizados, emuitas vezes relacionados com processosjurídicos (como expressãoparticularmente vívida da law in action)ou políticos130; a par e passo, de

130 Esta exigência datada de um novo dinamismo inaction para formulações e análises repercutiu-selonge no Direito. Entre nós (também a este propósitoe com amargura), no domínio específico do DireitoConstitucional, escreveu memoravelmente, no anodistante de 1969, Rogério Soares, “[n]este modo desistematicamente fechar os olhos à realidadeconstitucional, o pensamento positivista conduz auma hipostasiação das soluções constitucionaishistóricas, que se absolutizam na sua fisionomiaformal como quadros de sentido intemporalcompletamente estranhos a valores. Fórmulas comoEstado de Direito, Democracia, Separação de Poderesficam assim imobilizadas, com o perigo de mais tarde

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resto (senão em consonância), commovimentos intelectuais do mesmo tipoque então se afirmavam no campo deestudo do Direito anglo-saxónico,nomeadamente do norte-americano,sobretudo no âmbito das escolas,entre si tão não-miscíveis e atéantinómicas uma em relação à outra

se manifestarem incapazes de corresponder àsalterações profundas da realidade constitucional.Donde pode surgir a tentação de as lançar pela bordafora como peças totalmente inúteis, criando-se aobrigação de forjar outras novas que as substituam”(R. Soares, 1969: 27). É curioso verificar como apulsão normativista sobreviveu incólume, entrejuristas, mesmo quando aquilo que estava em causaera, como aqui, uma melhor e mais “realista”adequação dos conceitos à realidade.

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como as apelidadas de Legal Process131 ede Law & Society132.

Numa época de relativamente poucaprodução jurídico-antropológica133

(ou, pelo menos, pouca produção quefizesse diferença para o trajecto dasubdisciplina) sobressaiu um notável131 É interessante verificar a pouca influência queas “teorizações” (de um H. L. A. Hart tardio, porexemplo) da escola “procedimentalista” Law & Processtiveram na Antropologia Jurídica. O que, no quadroda leitura de uma resolução progressiva de umatensão fundacional como a que aqui proponho não é deespantar: incorporar insights provenientes do Law &Process, ou deixar-se “colonizar” pelos “horizontesde problematização” formal-institucionaiscaracterísiticos desta perspectiva, teria soletradoum “retrocesso” apriorístico e “positivista” tãoempírica e etnograficamente incongruente comoteórico-metodologicamente inaceitável para osantropólogos envolvidos em análises do jurídico e dajuridicidade.

132 Não cabe na economia deste Estudo um grandedesenvolvimnto sobre esta ou outras escolas daJurisprudence. Algumas remissões bibliográficas podemno entanto ser úteis para uma melhor visão deconjunto sobre os temas abordados que tinhamespecial interesse de um ângulo antropológico. Numartigo publicado alguns anos depois do seu célebreestudo de 1974 intitulado “A comparative theory ofdispute institutions in society”, Richard Abelescreveu em 1980 um balanço retrospectivo queaptamente apelidou de “Taking Stock”, sobre a“sociologização” que preconizara. Do mesmo modo,Marc Galanter apresentou em 1985 um Presidential Addresssobre “The Legal Malaise; or, Justice Observed”,articulado segundo uma perspectiva sociologística

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estudo da autoria de um antropólogobritânico, Peter H. Gulliver, sobreos Arusha da antiga colónia britânicado Tanganyka134, na África oriental. Otrabalho, dado o percursoexplanatório que assumiu, tornavaabundantemente claro que a atitude

semelhante, mas sobre um tema mais amplo e difuso.Em 1988, Sally Engel Merry redigiu a sua famosarecensão intitulada “Legal Pluralism”, em que“desenhou” um mapa dos sentidos em que o tema tinhasido tratado, e proporcionou um balanço dos estudosaté então empreendidos. Todos estes artigos foramincluídos na conceituada Law & Society Review.

133 J. F. Holleman (1979: 129-130) escreveu, nosfinais dos anos 70, que era urgente uma “even closerpartnership” ente juristas e “juridicial [sic] anthropologists”(idem: 17) do que aquela, já estreita, que até entãoexistira. A posição foi defendida numa DistinguishedLecture apresentada ao Law Department do School of Orientaland African Studies, em Londres. O ilustre especialistanos Direitos locais na África Central, e nessa épocauma espécie de guru teórico dos então novosnacionalismos africanos, baseou esta convicção nasua própria experiência na antiga Rodésia e depoisnum Zimbabwe independente, amparando-se nasexperiências de outros investigadores congéneres enos dilemas com que todos se confrontavam: face asistemas marcadamente pluralistas (jurídica comosociologicamente) e em mudança social acelerada, sócom uma colaboração intensificada entreespecialistas dessas duas áreas se poderia esperarconseguir dar conta do recado. Como Holleman (ibid.:130) tão bem sublinhou: “consider the elusive quarry [bothin rural and urban areas of the developing world].[…] The law here either no longer follows its well marked ways andrules of old, or is still so young and wayward that its regular imprints

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analítica dos antropólogos em relaçãoao talvez devamos chamar a “justiçanormativa” mudara bastante. Nasdescrições ricas contidas namonografia de Gulliver a tónica eraefectivamente inusitada. O tema, écerto, continuava a ser o habitual daAntropologia Jurídica: as tensões, osconflitos e os “litígios”, e o seuencaminhamento-resolução (o que osinvestigadores anglo-saxónicosapelidaram de conflict processing). Oponto focal fora todavia alterado.

Longe de resolver as suasdisputas por via de “tribunais” (peseembora Native Courts coloniaishave yet to be discovered. Why should the man of law not join hissearch with anthropological field equipment? And would not ananthropologist more quickly spot the jural species if he looked througha lawyer’s glasses? Of course they would! And have done so alreadyseveral times with considerable success. Only, they should do it muchmore often.”. Com uma verve característica, Hollemanconcluiu que uma colaboração acrescida não eraapenas vantajosa, nem tão-só necessária: eraessencial e imprescindível.

134 P. H. Gulliver (1963), Social Control in an African Society,A study of the Arusha: agricultural Masai of northern Tanganyka,Boston University Press. S. Falk-Moore (2001, op.cit.: 103) referiu-se, neste contexto, a uma mudançaocorrida no analytic scenario, uma alteração de peso queteria segundo ela então sido protagonizada por PeterGulliver. Com algum fundamento: o passo“malinowskiano” dado por Gulliver foi seguramente umsalto de gigante.

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estivessem então em funcionamento noterritório Arusha), a população destegrupo etnolinguístico leste-africanoparecia preferir-lhes por sistemanegotiated settlements informais,“mediados” por representantes dosgrupos linhagísticos dos“litigantes”. As “soluções”encontradas pelos Arusha resultavamde qui pro quo, estandartizados mas dedesenlace variável, que reflectiam aestrutura local (e conjuntural) dedistribuição efectiva do poder entreos diversos agrupamentos Arusha.

Alusões a “normas”, como Gulliverbem sublinhou, formavam um tema comumna retórica esgrimida pelos lineagerepresentatives mobilizados pelos anciãosdaqueles agrupamentos de parentes,que ficavam na sombra; mas tratava-setão-somente de uma aparência, já que“norms did not determine outcomes”, poisque decorriam antes negociaçõespolíticas de bastidores entreagrupamentos de parentes poderosos,em que “ajustes directos” [aexpressão é minha] eram gizados. Eraa própria existência efectiva de umverdadeiro “sistema normativo”(normative system) aquilo que a

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investigação de terreno de Gulliverna prática punha em causa; comoiremos ver, foi suscitada assim nadisciplina uma dúvida “crítica” commuitos pés para andar.

A transmutação de perspectiva quePeter H. Gulliver fez questão deintroduzir nas prácticassubdisciplinares foi com efeitomarcada; e estava prenhe deimplicações. A reacção“malinowskiana” à tensão induzidapela “juridificação” conceitual eraaudível. O impacto académico que teveem meios antropológicos foi,naturalmente, enorme. O enquadramentofavorecia-o: óbvio será argumentarque, materialmente, mais uma vez asressonâncias políticas do contexto sefizeram ouvir nas orientaçõesseguidas nos planos paralelos dasreconceptualizações bastantecoordenadas que foram empreendidas.

O ritmo das mudanças de que osanos 50 e 60 tinham sido palcoefectivamente acelerara. A conjunturaexperienciada era, de facto, outra.Como de novo tão bem sublinhou S.

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Falk-Moore135, “the connection between theemerging anthropological interest in choice andchange and the political background of the 1960sand 1970s is difficult to prove but impossible toignore. Challenges to authority were prominentfeatures of public life, with substantialrepercussions in universities. With the end ofcolonial rule in the 1960s, the ex-colonizedpeoples were, at least formally and legally, incharge of themselves. Retrospective complaintsabout the colonial period were actively voiced. Inthe US the Vietnam War elicited enormous popularresistance, with legal repercussions for theprotesters. The civil rights movement was135 Op. cit.: 99-100. Por estes comentários se vê ofascinante durkheimianismo que Falk-Moorepriviligiou como mecanismo de in-put, por reflexão,das configurações sociais no universo das ideiascientíficas. Parecem-me ser de notar, por um lado, aprevalência aos acontecimentos políticos atribuídanesta reflexão do “material” no “ideal” (asdescolonizações, a luta pelos direitos civis, asnovas liberdades contraceptivas); e, por outro lado,a viva consciência da centralidade, para aprogressão do corpus de teorizações na subdisciplinada Antropologia Jurídica, do impacto assumido poresses acontecimentos nos Estados Unidos e na Europa,então como hoje os principais lugares de gestaçãoteórico-metodológicos dela. Importa, no entanto,também sublinhar omissões: o saudáveldurkheimianismo de Sally Falk-Moore ignora asdinâmicas micro-políticas académicas e disciplinaresque não poderiam deixar de também ter agido comopressões configuracionais no universo dos conceitosjurídico-antropológicos.

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launched. Legislative and social changes weredemanded and a lengthy struggle ensued. Thewomen´s movement started its task ofconsciousness-raising in a milieu in which the newtechnology of contraception altered sexualbehaviour, moral consciousness, and manygender-oriented laws. There were analogoussocial hurricanes in Europe”. A contundênciade tudo isto, no plano dasressonâncias mais do que no dequaisquer determinações causais, nãopodia deixar de ser decisiva. Talcomo incisivamente insistiu Falk-Moore, em guisa de conclusão, “in viewof all this contemporary political activity, therewas not much place for an anthropology of lawfocused on conformity. Agency came into itsown”136.

As alterações correlativas deperspectiva não foram de subestimar.Na Jurisprudence como na AntropologiaJurídica nada voltaria a ser o mesmo.

7.2. CONTEXTOS E FABRICAÇÕES

Nos domínios subdisciplinares(nesta fase meios tão agitados) da136 Ibid.: 101.

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Antropologia Jurídica coube emparticular a investigadores como anorte-americana Sally Falk-Moore137

(uma tanzanianista) e os ingleses S.Roberts e J. Comaroff138 (ambosespecializados no Botswana) começar aprivilegiar análises comparativas deformas processuais de resolução dedisputas em sociedades e culturasdiferentes. Ciosos dos acquisantropologizantes anteriormenteconquistados, mais do que a “lei”, oua “norma jurídica”, os investigadoresfocaram a “manutenção da ordemsocial”; e mais do que em mecanismossistémicos por si só, as formulaçõesque produziram acrescentaram-lhes umreconhecimento intensificado (e,muitas vezes, um posicionamento dealgum modo malinowskiano, sem queporém fossem necessariamenteadoptados os quadros metodológicostão característicos, e cada vez mais

137 Sobretudo, a nível teórico-metodológico, em 1978,no estudo intitulado Law as Process: an anthropologicalapproach e, em 1986, na monografia histórico-etnográfica Social Facts and Fabrications. “Customary” Law inKilimanjaro, 1880-1980.

138 No essencial na sua etnografia publicada em 1981.

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contestados, do funcionalismoutilitarista deste) do papelcriativo, e até “discricionário”, dosactores sociais, individuais oucolectivos.

Com Gulliver, introduzira-se umanovíssima diferença que fazia toda adiferença. Com Comaroff e Roberts,que irromperam com um outro ângulo deentrada, por assim dizer, a passadaacelerou. Definições essencialistasformais viram-se operacionalmentesubstituídas por uma renovadapreocupação com concepções vernáculaslocais, regularidades comportamentaise interacções institucionais. Asolução foi profícua: sem quetivessem sido alcançados grandesacordos de fundo, passados algunsanos tanto a acumulação de dadosetnográficos quanto um novo climaintelectual desembocaram nalgumasconvergências parciais nasteorizações antropológicas.

O trabalho jurídico-antropológicoparadigmático deste novo período foiindubitavelmente a monografiaproduzida pela parelha constituídapor um antropólogo de dupla cepaoxfordiana e norte-americana, John

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Comaroff, e um jurista e antropólogobritânico, Simon Roberts139. O tópicoera a “composição sociocultural” dasdisputes comuns entre os pastoresKgatla Tswana da África austral. A“informalidade” que uma dezena deanos antes Peter Gulliver acentuaraparecia ver-se confirmada por estenovo estudo de terreno. Como Comaroffe Roberts escreveram, “disputes [amongthe Kgatla] range between what areostensibly norm-governed ‘legal’ cases and othersthat appear to be interest-motivated ‘political’confrontations […] The point [..] is notsimply that these different modes co-exist in onecontext […] but [it is rather] that theyare systematically related [transformations of asingle logic”. Os dois pontos cruciaisseriam, a este nível, por um lado ofacto empírico de estes dois modos dedisputa coexistirem sistematicamenteentre os Tswana; e, por outro lado, aquestão analítica de o seurelacionamento “essencial” parecerintrínseco.

Os ecos estruturalistas (nestecaso, confessadamente pós-139 John Comaroff e Simon Roberts (1981), Rules and Processes. The cultural logic of dispute in an African context, Chicago University Press.

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estruturalistas) eram evidentes paraqualquer antropólogo. E os recadoseram dados alto e bom som: diferentessistemas de dispute-processing coexistiamnum mesmo espaço social “unitário”mas heterogéneo (como aliás antesLeopold Pospisil insistira e uma novageração activista de legal pluralistsdefendia, mesmo no que dizia respeitoa sociedades “ocidentais”). Mais:como Comaroff e Roberts tiveram ocuidado de realçar, os Tswana muitasvezes aproveitavam as oportunidadesformais providenciadas pelas “arenasfor litigation” para coisas tão comezinhascomo “re-negotiations of personal standing” deuns em relação aos outros, e paralograr obter “recognition of social relations[which were] being contested”140.

É verdade que os Kgatla Tswanavivem numa sociedade dotada de umahierarquia governamental vincada eformal, que inclui “agências”próprias vocacionadas para aresolução de conflitos e elaboradosrepertórios de regras eprocedimentos. À partida, porconseguinte, parecem apresentar todas140 Op. cit.: respectivamente 244 e 115.

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as condições para que os consideremoscomo pertencentes ao grupo desociedades que segue um rule-centeredparadigm (e não um mero processualparadigm, como é comum em muitosoutros casos) na condução da sua vidasocial. Contudo, uma abordagem queparta desse princípio não lograránunca capturar a essência dos“processos de disputa” entre Kgatla.John Comaroff e Simon Roberts, no quefoi um estudo monográfico riquíssimo,mostraram que quer os “litigantes”quer os “juízes” Tswana vêem nasregras que governam a comunidadepouco mais do que recursos, meiosinstrumentalizáveis na prossecussão“individual” de “utilidade”. O quecontrasta de maneira acentuada, e éincongruente, com a relação entre“regra” e “resultado” que tendemos apresumir (ainda que quantas vezes comuma inocência analítico-metodológicadifícil de explicar) quandomodelizamos, por exemplo, os sistemaslegais “ocidentais”.

Como que a corroborar a impressãode que um novo plateau teórico assazconsensual fora atingido, quase emsimultâneo Sally Falk-Moore produziu,

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a partir de Harvard, um outro estudonotável, este com uma dimensãodiacrónica, uma segundo trabalhojurídico-antropológico paradigmáticodo tipo de colheita deste período. Asvestes foram as de um estudohistórico-jurídico. A metodologiaseguida foi a de uma muito bemmanuseada sociologia crítica. Sob otítulo convidativo Social Facts andFabrications. ‘Customary’ law on the Kilimanjaro,1880-1980, escondia-se umpoderosíssimo labor de investigaçãoantropológica de arquivo e de terrenoque visava desconstruir,relativizando-os, tanto os conceitosde “tradição”, de “costume” ou de“Direito costumeiro”, como a nitidezde um qualquer linha divisória nítidae perene entre o “jurídico” (ou o“costumeiro”) e o “político”. Umlabor que a autora soube conduzir deforma muitíssimo eficaz.

Um esforço, também, de umatremenda ambição. Não se tratavaapenas de mostrar que “tradições”,longe de poderem ser encaradasenquanto entidades estáveis e perenescomo o pretendiam noções como a de“costume”, eram melhor concebidas

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como mecanismos plásticos delegitimação sócio-política porinvocação do passado. Indo maislonge, a autora demonstrou como as“mesmas” tradições “costumeiras” (ouo que parecia sê-lo) ocuparam entreos Chagga dos sopés do MonteKilimanjaro lugares estruturaisvariados ao longo de um século,preenchendo papéis diferentes delegitimação em cada uma dasconjunturas político-organizacionaisque, interna como externamente, seforam sucedendo num território quenesse intervalo se viu sujeito amudanças profundas. Não valerá a penapormenorizar aqui muito asminudências e os detalhes de maiorpormenor deste rico e intrincadíssimoestudo. Elas foram inúmeras, entre umperíodo de “colonização” alemã eoutro de “colonização” britânica,seguidos de um “retorno” a umarelativa independência política.

Para tomar o pulso às inovaçõesnele propostas, bastará citar aintrodução de Falk-Moore,nomeadamente quando ela asseverou141

que “the notion of ‘costumary law’ is itself a141 Op. cit.: xv.

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political construct with political implications. Theterm sounds as if it designates a straightforwardset of traditional rules. But the entity to which itrefers is a set of ideas embedded in relationshipsthat are historically shifting. The label ‘customarylaw’ has its own history in the colonial andpostcolonial worlds”. Parecia cada vezmais claro que a perspectivação dosantropólogos jurídicos permitiarelativizar mesmo aquelas noções,mais silenciosas e vincadas, querelevavam de um “senso comum” quevinha crescentemente a ser posto emdúvida.

Numa visão de conjunto, e comalgum benefício da retrospecção,poder-se-á decerto alegar que era aperspectiva (menos formalista)malinowskiana, que atrás descrevi atraço grosso, que se via no essencialvingada em inovadoras variantesarquitectónicas do protótipo agora detraça matricial como que mais fluida.Para trás ficavam muitos dospressupostos implícitos (bem como alarga maioria dos explícitos) doevolucionismo “clássico” dos FoundingFathers da disciplina jurídico-antropológica. Viam-se tambémdescartadas muitas das convicções

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tácitas mais espontâneas (e por issomais arreigadas), da larga maioriados juristas de matriz positivista edos seus seguidores, quanto ànatureza essencialmente separada (oupelo menos isolável) do “jurídico” e dajuridicidade. Na esteira do“radicalismo antropológico reactivo”bohannaniano, mas num quadro maiscauteloso, o insight malinowskiano dofunction rather than form via-serevisitado, agora num bastante maisalto patamar de consciência críticadesconstrutivista.

Nestes últimos pontos S. Falk-Moore não estava sozinha. Em 1979,Simon Roberts, então como hoje doDepartamento de Direito da LondonSchool of Economics, pôde escrevercom lucidez (e com algumaresignação), numa monografia teóricanotável que então publicou, sobre afutilidade de gastar energias num“effort to isolate ‘legal’ data for separateexamination, which is characteristic of law-centered studies. Given the nature of social controlinstitutions in small-scale societies, such worksmust necessarily involve ultimately unsatisfactoryefforts to extract differentiated legal materialsfrom an undifferentiated mass of data found in

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the society concerned. Apart from the fact that thematerial chosen for extraction must suffer in theprocess of being cast in a differentiated form, theoverall value of the study is almost inevitablydiminished through one type of control institutionbeing investigated in isolation from others ofpotentially equal importance to which itsoperations are ultimately related. That methodinvolves inclusion and exclusion on a basis whichis not necessarily meaningful in the societyconcerned”. Em seguida, distanciando-se cuidadosamente do que, como vimos,fora uma das tónicas “clássicas” maiscaracterísticas dos Founding Fathersoitocentistas, Roberts142 alertou-nos:“there is then often the temptation to label thematerial excluded as pre-legal, thus implyingsome quite unproven evolutionary processtowards ‘law’”.

Asserções como estas equivaliam auma autêntica representaçãocartográfica das consequências,tardias mas porventura inevitáveis,daquilo que apelidei de tensãofundacional da Antropologia Jurídicano que dizia respeito aos estudosetnográficos à época produzidos.Ampliar enquadramentos por via de142 Simon Roberts (1979), op. cit.: 193-194.

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generalizações comparativas desfocavagravosamente as fronteiras do que seconstruía como objecto de análise. Aacumulação acelerada dos dadosempíricos que as metodologiasantropológicas providenciavam induziauma desestabilização séria emformulações jurídicas cujas raízeseram muito mais programáticas emarcadamente menos “empiristas”. Asintuições antropologizantes deMalinowski viam-se corroboradas. Oradicalismo dos primeiros salvos deBohannan já não soavam a tãoextremistas.

Neste como noutros contextos aresposta foi cautelosa mas firme: adimensão “racionalista” embutida nacientificidade de um projectojurídico-antropológico radicado emideais iluministas assim o exigia.Sob a guisa de um recuo estratégicoque se limitava a permitir uma maisampla visão de conjunto, ingressou-sesem turbulências de maior num tempode fruição de novas formulaçõesparadigmáticas.

Avizinhava-se, porém, uma crise.Para a compreender importa começarpor sublinhar que, neste período, se

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as formulações e paradigmasinovadores encontrados levaram areconfigurações, também elas novas,aquelas ancoravam com facilidade numaWeltanschauung conhecida: a tónica emprocessos e disputas de algumamaneira mitigava problemas; e fazia-odisponibilizando aos antropólogos umareceita palatável, sobretudo paraaqueles (talvez mais hobbesianos) queviam na imprescindível resolução deconflitos a mais clara expressão deprocessos politico-jurídicos geraispresentes nos mais diversosagrupamentos humanos.

O lastro evolucionista via-seatirado borda fora. O humanismouniversalista matricial não.

7.3. A AUTONOMIA SUBDISCIPLINAR EM RISCO

Apesar de fértil, o resultadofinal das novas conceptualizaçõesque, na esteira de Paul Bohannan,antropólogos de terreno como PeterGulliver, Simon Roberts, JohnComaroff e Sally Falk-Moore (entreoutros) tinham protagonizado, e o dasinovadoras démarches metodológicas

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consequentes depressa se revelou comoprofundamente ambíguo. A aparentevitória de uma antropologizaçãoradical sobre as pressões de“problematização juridificante” comoque apagava um dos termos do binómioem que se inscrevia a tensãofundacional da Antropologia Jurídica:a ideia de que o objecto do seuestudo seria “o jurídico”.

Datam sem dúvida deste período osestudos mais minuciosos (e porventuramais criativos) levados a cabo porantropólogos jurídicos e políticos:tratou-se indubitavelmente de umaépoca de uma comparativamente grandeprodutividade e de uma vigorosaafirmação disciplinar. Masparadoxalmente tratou-se em paralelode um intervalo que levou, de maneiratão cumulativa como inexorável, a umaconjuntura de crise metodológica: osnovos focos processuais e políticosassumidos reintroduziram, ao insistirna importância dos contextos, senão aintegridade funcional dos “todos”sociais (uma referência funcionalistamalinowskiana que entretanto tambémse perdera, essa em batalhasparalelas), pelo menos uma

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consciência aguda de uma enorme emuito nítida interdependência daspartes.

As consequências foram sérias.Para além da especificidade de algunsdos pontos de aplicação e de algumasdas estratégias analíticas usadas,doravante pouco lograva permitirdistinguir a Antropologia Jurídica daPolítica, ou ambas de quaisqueroutros domínios da investigaçãoantropológica geral. Com acontextualização “política”, culturale processual do objecto de estudoaliada a uma continuada ausência dedefinições de fundo, eram as própriasbarreiras disciplinares que separeciam esboroar e soçobrar. Asfronteiras tornavam-se permeáveis.Respirou-se um período doloroso deincertezas, não só nestes mas tambémnoutros domínios da Antropologia.

Não inesperadamente, foi aprópria adequação de noções como a dedivisibilidade subdisciplinar docampo das investigaçõesantropológicas que cedo viu a sualegitimidade posta em causa demaneira ostensiva. Muitos (de entreos quais pontificavam mais uma vez S.

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Roberts e J. Comaroff) apelaram parauma dissolução pura e simples143 daAntropologia Jurídica no campoindiferenciado da Antropologia toutcourt.

A posição de S. Roberts144 (1978,op. cit.: 7) foi no essencial a de que,dada a carência de “discrete bodies of legaldata”, uma ausência notóriarelativamente à qual os etnógrafos143 Sobretudo em S. Roberts (1978) e em J. Comaroff eS. Roberts (1981). Embora não caiba aqui detalhá-lo,note-se que a reacção de esbatimento de maneiranenhuma se limitou à Antropologia Jurídica britânicae norte-americana. É curioso verificar, para retomaruma questão que já antes abordei, que a percepção deum risco iminente de dissolução emergira antesnoutros domínios da Antropologia (nomeadamente noque diz respeito ao estudo “comparativista” doparentesco, do casamento, da política e da religião.Como notou S. Falk-Moore (2001, op. cit.: 100),porventura com excessivo pessimismo, “in time, legalanthropologists finally decided that they could not resolve the issues ofform, function, and context that [some forms] of comparisonneeded”. A meu ver, nesta tal como noutras questõesnão convirá tomar o efémero por definitivo: insistoaliás no presente trabalho, o momento (face àglobalização e à pós-colonialidade, ou aos DireitosHumanos e às ameaças “hegemónicas” sensíveis apartir de cada vez mais quadrantes) parece hoje serde renovação e não de desalento para a AntropologiaJurídica.

144 Simon Roberts (1978, op. cit.: 7). O artigointutulou-se “Do we need an anthropology of law?”. Aconclusão foi vigorosamente negativa.

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não paravam de acumular dados, aAntropologia Jurídica enquantodisciplina não teria, afinal, razãode ser. Roberts notou, com desalento(e algum exagero), que em todos osestudos empreendidos “assumptions aremade about the nature of the legal which havetheir origin in our own folk categories.[...]Furthermore, in none is a fundamental questionadequately answered: what do we gain in insistingthat a particular mode of action is ‘legal’, whereasanother is not?”. O passo seguinteproposto por Roberts foi,naturalmente, a de um hara-kiridisciplinar.

Reacções (que expressavamcuriosamente posturas mais“racionais” do que corporativas) nãose fizeram esperar. É útil a leiturado notável artigo de uma antropóloganorte-americana, Carol J.Greenhouse145, que designadamentesublinhou que apesar de concordar coma evidência reiterada por Roberts deque estudos e teorizações centradosem “leis” e “regras” não têmcabimento empírico na larga maioriados casos, um recuo disciplinar145 Carol J. Greenhouse (1982).

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dissolutor levaria a pouco mais doque à consideração, também elaabusiva, de que a província daAntropologia Jurídica seriam todos osestudos relativos à operação dequaisquer mecanismos de controlosocial. Com argúcia, Greenhouse146

alertou que “at least as important as a shiftaway from law-centeredness is a shift away fromdisputes per se to the system that generatesthem, from outcomes per se to liability andaccountability as sociocultural phenomena”. Esublinhou a evidência de que, numpasso suplementar relativamente ao daruptura malinowskiana [a expressão éminha e não dela], “legal anthropology hasbeen moving in this direction for years”.

Bem ao espírito do novo tempo,Carol Greenhouse147 concluiu que“relocating our concept of social control fromaction to thought” é o desejável;Greenhouse148 terminou a sua crítica à

146 Op. cit.: 58.

147 Ibid.: 59.

148 Idem: 71. O apelo fo por muitos sentido como umachamada ao estudo cuidado dos múltiplos “tipos deracionalidade” patentes em sociedades diferentes:uma tradição já antiga noutras subdisciplinas daAntropologia.

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crítica de Roberts sugerindo havervantagens em “identifying the anthropology oflaw as the anthropology of reasons”. Sejacomo fôr, um novo passo tinha defacto sido dado. A direcção delepareceu a muitos ser cultural.

Uma outra reacção construtivaface ao pessimismo de Simon Robertsfoi a de Chris Fuller, que maistardiamente que Carol Greenhouse, em1994, no seu esplêndido “LegalPluralism and Legal Thought”, notoucom argúcia que nem dificuldades deidentificação de um domínio separadodo “jurídico” nem a virtualimpossibilidade de uma definiçãocomparativa geral, davam amparo aargumentos particularmente fortes, jáque “there [no] reason why every subdisciplineof anthropology has to have a universal cross-cultural coverage”149. No quadro de umaperspectivação histórica muitocursória da disciplina, Fullersublinhou que “law as a fascinating andimportant subject that anthropologists should notleave aside”, e explicou, operando umadistinção fina e batendo uma teclaempírica, que “one reason why legal149 Op. cit.: 10.

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anthropology may appear to be dormant if notdead, even though it is patently alive in the UnitedStates, is that so much of its subject-matter hasbeen taken over and developed within theframework of ‘legal pluralism’, a large andexpanding field of research dominated byacademic lawyers rather thananthropologists”150.

No que reputo de um tomadaimportante de posição, C. Fullerterminou reiterando o que claramenteentrevia como uma linha pertinente declivagem, que por isso mesmo deveriaa seu ver ser ultrapassada: que a“legal anthropology today can no longer be adistinctive subdiscipline standing apart from thestudy of legal pluralism in its many dimensions.Yet law is too important to be left entirely toacademic lawyers and it cannot be neglected byanthropologists.[…] “what is required […] isthe discipline’s reintegration into theanthropological mainstream, so that legalanthropology can anew benefit from andvigorously contribute to the development of thesubject as a whole”151. Se Greenhouse150 Idem.

151 Ibid.: 12. É curioso verificar, ao ler o texto deChris Fuller, a “pré-consciência” que este pareceuter daquilo a que chamo aqui a tensão fundacional daAntropologia e o lugar nos seus desenlaces iniciais,

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oferecera uma saída “culturalista”que levava a uma inflexão normal(porque menos extravagante para umasubdisciplina antropológica), Fullerpropunha nestes termos uma retoma“malinowskiana” explícita e directade re-inserção da subdisciplina nummainstream disciplinar de umaAntropologia já bem testada econsolidada.

Estas reacções foram típicas docoro de protestos que se ergueu. Tudose passou, no fundo, como se osesforços dos antropólogos jurídicospudessem enfim deixar a sua situação“tutelada”. Ou, pelo menos, como seum novo patamar tivesse sido atingidona progressão de desenlaces da tensãofundacional da disciplina. De algummodo as condições estavam criadaspara que fosse encetada uma espéciede B. Malinowski. Fuller parece-me exagerar nainterpretação que propõe do papel central que terásido preenchido na crise identitária da AntroplogiaJurídica de finais dos anos 70 com a progressão dosestudos sobre pluralismo; e não creio totalmenteconvincente a distinção que sugere entre a “escola”norte-americana e a britânica (uma distinção naépoca muito em voga entre os historiadores daAntropologia, que então emergiram em força, tanto naGrã-Bretanha como, curiosamente, nos EstadosUnidos). Mas a visão delineada por Fuller foinotável e o seu timing excelente.

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de “antropologização integral”malinowskiana, desta feita a um nívelmuitíssimo geral e agora sempressupostos metodológicosespartilhantes.

A verdade é que, como aliáspoderia ser de esperar, mais uma veza reacção dos investigadores não foiunânime. Para alguns círculos, aresposta deveria antes ser a deesquissar novos enquadramentosteóricos que melhor permitissemreorientar esforços. Para outros,esta fase foi vivida, ao invés, comoa libertação que muitas vezes asquebras de fronteiras e o abandono deterritórios habituais tantas vezesnos permitem sentir. Durante váriosanos pouco foi feito, para além dedelinear a crise criada e de, comalguma curiosidade mesclada decomplacência e fascínio, reconheceros cantos à nova casa.

Tratou-se de um momento deruptura, interna como externamente,embora o choque internamente sofridotenha sido, como veremos, muito maismitigado do que aquele que chegou aoexterior da disciplina. Chegara o

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tempo do que veio a apelidar-se de “opós-modernismo”.

8. A “SOLUÇÃO” PÓS-MODERNA

Embora nada o exigisse, não é porcerto surpreendente que a saídaconsensual encontrada para esta novaépoca, de um ponto de vistaetnográfico comparativamente tãoimprodutiva, de incertezas, tenhasido a de propor reenquadramentos, aomesmo tempo que foi a de convidar osinvestigadores a reacções enérgicasou, ao invés, a formas decomplacência teórico-metodológicaresignadas. A resposta foi, poroutras palavras, a de uma sugestãogeral mas sofisticada de retraçarpercursos, para assim tornearobstáculos intransponíveis; aaparente contradição que essaresposta continha foi reconfiguradacomo uma oportunidade a usufruirtanto quanto possível.

O aproveitamento foi feito semgrandes dificuldades, apesar de porvezes dolorosas desorientaçõestemporárias que induziram um

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relativamente prolongado compasso deespera. Como iremos verificar, depoisda crise de paradigma sobretudosentida durante as décadas de 80 e90, nos últimos anos a tendência temsido a de ensaiar magnasrecontextualizações: propensão essaem larga medida concretizada semgrandes descontinuidades, ainda quenem sempre fosse essa a opinião dosenvolvidos. As recontextualizações“culturais” aventadas foram sobretudohistóricas e políticas, retomando umavelha tradição antropológica.

Num enquadramento transicionalcomo esse, será talvez surpreendentenotar que as reacções mais uma vez seconformaram às tendências dosmovimentos do âmbito genérico dosestudos jurídicos anglo-saxónicosentão em voga, neste caso alguns doscírculos académicos (sobretudo, maisuma vez, os norte-americanos) doschamados Critical Legal Studies152. Não é152 Do primeiro encontro de antropólogos jurídicosdesta sensibilidade, realizado em Yale, forampublicadas as Actas por June Starr e Jane Collier,em 1989, como History and Power in the Study of Law: newdirections in legal anthropology. Esta publicação (bem comoesse Simpósio) seguiram, a poucos anos de intervaloa de Critical Legal Studies Symposium, de 1984 (verBibliografia). Não posso, neste contexto, deixar de

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caso para menos. Quando poderiaparecer que o programa alternativoque B. Malinowski traçara nos entãojá longínquos anos 20 se via enfimrealizado, e que a autonomizaçãorelativamente aos enquadramentos dadogmática jurídica e da Jurisprudence sepodia finalmente concretizar empleno, o que se deu foi,estranhamente dir-se-ia, umareaproximação.

A colagem teve, em todo o casoalgumas particularidades. Tal como deresto em muitas outras áreas daAntropologia, o chamado pós-modernismo (uma das linhas de forçafavoritas nas investigações levadas acabo durante os últimos anos doséculo XX) confrontou a AntropologiaJurídica com veemência153 mas sem

fazer alusão ao magnífico artigo de MarylinStrathern (1987), “Out of Context: the PersuasiveFictions of Anthropology”, no qual a autora sugereuma re-escrita pós-moderna das teorizações deMalinowski, no quadro da relação “problematizada”escritor/leitor/sujeito.

153 Ou pelo menos não foi uma surpresa. Em todo ocaso, é curioso verificar que a “direcção depropagação” foi da Antropologia para o Direito, enão a inversa. Como aliás seria de esperar, uma vezvista a situação no seu âmbito mais alargado. Talcomo na Crítica Literária, na Sociologia ou na

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sobressaltos de maior: as marcas deuma espécie soft pós-modernismo avant lalettre (radicadas numa espécie de anti-etnocentrismo preventivo que vinhados alvores da Antropologia) eram jápratas antigas da casa154. Na parte VI

Filosofia, o pós-modernismo na Antropologia foi aoencontro de transformações significativas e demudanças históricas sensíveis nos “referentes”tradicionais das suas investigações: assim naAntropologia, foi muitas vezes alegado que asdescolonizações (que teriam alterado tanto ascoordenadas quanto os objectos e os objectivos dosestudos antropológicos “clássicos”) e o alargamentode âmbito das investigações [que, ao incluirrealidades etnográficas “ocidentais” teriamencaminhado a Antropologia para uma aplicação“reflexiva” (no duplo sentido da expressão) dos seusmétodos de análise sobre a sua própria produçãoteórica] estariam na base de uma penetração pós -moderna mais veemente como a que se verificou nosanos 80 e 90. No Direito não terá sido assim; nessecontexto, é interessante verificar, com Alan Hunt(1990: 516-517), que no Direito se deve antes falarde uma mera generalised intellectual empathy: porque “withrespect to law there is no evidence that those most influenced bypostmodernism contend that their views are a response to some shiftin the phenomena of law which marks a passage or transition fromthe modern to the postmodern”. Muitos são os autores e asobras, tanto teórico-metodológicas quantomonografias jurídicas ou etnográficas, que aquipoderiam ser incluídas. Bastará decerto aludir anomes como os de Duncan Kenedy, Jack Balkin, PierreSchlag, Clifford Geertz, James Clifford, ou RenatoRosaldo, (três juristas e três antropólogos pós-modernos, todos eles norte-americanos), para ter umaideia da escala do movimento e das suas origens e

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deste trabalho voltarei a estespontos.

Quero salientar, no entanto, quepresumir que as re-aproximações desdeesse intervalo verificadas soletramum qualquer regresso àsubalternização dos horizontes deproblematização “jurisprudenciais ejus-filosóficos” anglo-saxónicosseria incorrer num grave erro deparalaxe. Pois redundaria emconfundir a convergência entreDireito e Antropologia Jurídica quecaracterizou os dois últimos decéniosdo século XX com a postura desubmissão tradicional até entãocausas últimas.

154 Um facto notado, entre outros, por CliffordGeertz (1983, op. cit.: 4-5, sublinhados meus) que,num texto introdutório redigido em 2000, notou que“long one of the most homespun of disciplines, hostile to anythingsmacking of intellectual pretension and unnaturally proud of anoutdoorman image, anthropology has turned out, oddly enough, tohave preadapted to some of the most advanced varieties of modernopinion. The contextualist, antiformalist, relativizing tendencies of thebulk of that opinion, its turn toward examining the ways in which theworld is talked about – depicted, charted, represented – rather thanthe way it intrinsically is, have been rather easily absorbed byadventurer scholars used to dealing with strange perceptions andstranger stories. They have, wonder of wonders, been speakingWittgenstein all along. Contrariwise, anthropology, once read mostlyfor amusement, curiosity, or moral broadening, plus, in colonialsituations, for administrative convenience, has now become a primaryarena of speculative debate”.

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detectável em muitos dos esforçosjurídico-antropológicos.

Com efeito, porém, não era já aAntropologia a aderir implicitamenteaos horizontes do Direito, mas anteso Direito a mover-se numa direcçãogenérica semelhante aquela para aqual a Antropologia se deslocava: uma“deslocação adaptativa”, de algumamaneira, que dava corpo a uma crisede legitimidade política que seexprimia, no campo teórico-metodológico, como uma crise racionalde fundamentação; e que, no planocorporativo, reflectia porventura umacrescente simetrização deposicionamentos académicos.

Um curioso exemplo disto foi atentativa, voluntarística e semqualquer sucesso, de abordagem daAntropologia Jurídica, em inícios dosanos 80, pela então novíssima escolado Law & Economics155. Um segundo155 Levada a cabo por Richard Posner (1980), numlonguíssimo artigo intitulado “A Theory of PrimitiveSociety, with special reference to law”, publicadono prestigiado Journal of Law and Economics. Nãosurpreendentemente, Posner propôs uma interpretaçãosegundo a qual a “primitive law” seria no essencialo resultado de uma “adaptação” à “pervasive uncertaintyand high information costs” que considerou endémicos nas“sociedades primitivas”. Cientes das batalhas já

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exemplo foi decerto o de escolas“jurisprudenciais” e jurídico-filosóficas, no essencial britânicase norte-americanas, como a Law &Semiotics, que inverteram agulhas ecomeçaram a procurar na Antropologiafontes de inspiração156.

travadas, os antropólogos jurídicos, confrontadoscom uma postura teórica de arriére garde (porque emsimultâneo “positivista” e “formalista”) ignoraramlargamente esta tentativa “anacrónica” deaproximação. As “portas férreas” tinham mudado delado, ou pelo menos vivia-se um compreensível“período de nojo”.

156 Penso em autores como Bernard Jackson (1996),Jack Balkin (1986) e Duncan Kennedy (1998),respectivamente nas Faculdades de Direito deCambridge, Yale e Harvard, para só dar três exemplosdos muitos possíveis. Em muitos casos essa colagemàs teorizações antropológicas foi (e é) plenamenteconsciente e assumida. Jack Balkin, o ilustreconstitucionalista de Yale, declarou na introduçãoao seu monumental “A Crystalline Structure of LegalThought”, publicado em 1986, que redigira um “ensaiode aplicação” das teorizações antropológicas deClaude Lévi-Strauss à sua própria teorização noquadro Jurisprudence levada a cabo na respectiva LawSchool. Na Law School de Harvard, depois de numerosasalusões a Lévi-Strauss feitas ao longo dos anos 80 e90, e nesse contexto tendo-se declarado em diversaspublicações um “strucuturalist to the bone”, Duncan Kennedy(2001: nota 3) num artigo recente, afirmou comentusiasmo, “I [...] worship Bronislaw Malinowski” ecitou, designadamente, a monografia “Crime andCustom in Savage Society”. É curioso realçar queambos figuram proeminentemente no movimento dosCritical Legal Studies norte-americanos (Duncan Kennedy é

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Foram duas as grandes figurasparadigmáticas que marcaram a matrizarquitectónica da época pós-modernainicial da Antropologia Jurídica: emprimeiro lugar, um antropólogo puro eduro, Clifford Geertz; depois, umjurista seu aluno, Lawrence Rosen.Ambos defenderam leituras ditas“culturalistas” do “jurídico”; ambosse afirmaram como, essencialmente,“relativistas culturais”, e nenhumdos dois, de facto, se reconheceriacomo sendo, stricto sensu, “pós-moderno”.C. Geertz funcionou sobretudo como umteórico157, enquanto L. Rosen foi

seguramente, desde meados dos anos 70 a figura deproa dos CLS), e ambos professam com ardor ser “pós-modernos”.

157 Emergiram em dois lugares os seus principaiscontributos para a Antropologia Jurídica. Umprimeiro, num longo artigo incluído numa colectâneapublicada em 1983, intitulada Local Essays: further essays ininterpretive anthropology; depois, num segundo artigo,desta feita uma comunicação formal genérica (umaDistinguished Lecture) apresentada à American AnthropologicalAssociation em 1984, versando o que apelidou o “antianti-relativismo”. É difícil fazer justiça a estesdois esplêndidos trabalhos, que tanto estimularaminvestigações criativas neste e noutros domínios. Noprograma da disciplina de Antropologia Jurídicaoptei contudo por escolher um trabalho etnográfico eteórico de maior fôlego de Clifford Geertz, o seuNegara, sobre o “Estado teatro” no Balioitocentista. É de notar qur tanto o relativismo

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muito mais um etnógrafo de terreno,produzindo, aliás na melhor tradiçãogeertziana, uma etnografia rica e emsimultâneo soberbamente densa e bemdigerida.

O tema da curta mas muitoincisiva monografia de Rosen foi aanálise dos tribunais qadi [foi esta atranscrição gráfica que preferiu]numa pequena cidade do interior deMarrocos; tribunais esses que, como ésabido, visam aplicar a lei shariaislâmica a questões que por via deregra hoje em dia se prendem com ocomo o “pós-modernismo” de Geertz (um epítetolançado por então jovens teóricos pós-modernistascomo Paul Rabinow, Vincent Crapanzano, JamesClifford e George Marcus, que em todo o caso esteautor recusou) são variantes soft de versões (algumasdelas simultâneas, outras posteriores, mas quasetodas reconhecendo uma dívida intelectual para com a“antropologia hermenêutica”, ou porventura“interpretativa” – o facto é que o próprio oscilouentre os dois termos - de Geertz) muito maisradicais (sobretudo as francófilas e as daexperimental ethnography) do que a dele. Apesar dos seusprotestos enunciados sobretudo em C. Geertz (1988),é difícil não ver no “culturalismo” interpretativode Geertz laivos de um pós-modernismo bastantemarcado, ainda que não “radical”. Note-se que, emboa verdade, não houve, até à data, contributosantropológico-jurídicos pós-modernos “não-geertzianos” realmente significativos. [Agradeço aBrian O’Neill a discussão pormenorizada que comigoteve sobre estes pontos].

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que poderíamos apelidar o Direitoreligioso da família. Basta umasimples leitura cursória para que nãopossam restar quaisquer dúvidas que ainvestigação de terreno levada a cabopor Rosen, com aturadas recolhas inloco, constituíu um esforço notável. Aposição de fundo assumida foi, porsua vez, tornada manifesta quandoRosen asseverou que “the analysis of legalsystems, like the analysis of social systems,requires at its base an understanding of thecategories of meaning by which participantsthemselves comprehend their experience andorient themselves toward one another in theireveryday lives”158.158 Lawrence Rosen (1989): xiv. Rosen ecoou aquiclaramente a ideia geral antes formulada porClifford Geertz, segundo a qual “like sailing, gardening,politics, and poetry, law and ethnography are crafts of place: theywork by the light of local knowledge” (Clifford Geertz, 1983:167). Num outro registo, note-se como, apesar doestatuto de relativa menoridade da AntropologiaJurídica, na prática esta tem vivido e crescidorodeada de uma magnífica pompa e circunstânciaprópria de uma posição de privilégio: a monografiade Lawrence Rosen (tal como, aliás, muitos outrosdos trabalhos jurídico-antropológicos que tiveoportunidade citar neste Estudo, e fui indicandoesse protagonismo) resultou de uma série decomunicações formais produzidas para as muitoprestigiadas Lewis Henry Morgan Lectures (as de 1985), naUniversity of Rochester. Raros são os ramos daAntropologia a que um papel “protocolar” tão centralé tão sitematicamente atribuído: o que mostra bem o

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Por contraposição à posturadesqualificatória que, em temposidos, Max Weber famosamente assumiracontra a “justiça kádi” (que para esteautor “clássico” constituiria oexemplo acabado de uma “margem dediscricionariedade judicial maisabsoluta e injusta”), Lawrence Rosenpropôs-se demonstrar que apesar doseu aparente “poder”, um juiz qadimarroquino contemporâneo assumeposturas e toma decisões regulares,previsíveis e altamenteestandardizadas, cuja grande “regularitylies [...] in the fit [itálico meu]between the decisions of the Muslim judge and thecultural concepts and social relations to whichthey are inextricabilly tied”159. Rosen compunha

diferencial de forças em jogo. O poder simbólico decompanhias de prestígio não é nunca de subestimar emuniversos hierárquicos como os académicos.

159 Ibid.: 18. Rosen ofereceu, como exemplos deeleição para o caso marroquino que analisou, ocarácter “permanentemente negociado” dosrelacionamentos entre os actores sociais locais, eos “locally acceptable standards” em cujos termos estesavaliariam sempre os comportamentos e as motivaçõesuns dos outros. Os juízes qadi, segundo ele, operaramneste quadro e por invocação de “princípiosjurisprudenciais” consagrados pela tradição jurídicaislâmica, de acordo com uma lógica de re-estabelecimento de equilíbrios sócias“interrompidos” pelas disputas que são chamados a

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nestes termos uma formulaçãoculturalista “interna”, por assimdizer; uma formulação que delineavaum quadro analítico que apontava comclareza para uma predilecção nítidacom noções subjacentes com as deadequação, afinidade, ouajustamento160.resolver. Na parte final da sua monografia, Rosendesdobrou-se em esforços de demonstração empírica dasua opinião segundo a qual (porventura ao contráriodo caso dos Arusha de Gulliver, a que atrás aludi)os juízes qadi de maneira nenhuma favorecemsistematicamente os marroquinos mais ricos epoderosos nas decisões que tomam. Noto, em todo ocaso, que mesmo que isso seja aceite (o que não élíquido), não deixa de ser verdade que, pela próprialógica do sistema tal como Rosen o descreve, ostribunais qadi, mais do que conseguir uma qualquer“justiça” o que garantem é a imposição de umapressão contínua (material e ideológica) no sentidode assegurar uma reprodução social contínua eempreendida em moldes “tradicionais”.

160 Um culturalismo-limite que, a ser tomado at facevalue, me parece inevitavelmente conduzir a umrelativismo arriscado porque dissolutor de eventuaisfundamentos para o apuramento de uma qualquer melhorestratégia de investigação. Está localizadoprecisamente aqui, a meu ver, o ponto maior deconvergência entre o culturalismo interpretativistade cariz interpretativo, ou hermenêutico, e asvariantes mais hard do pós-modernismo“experimentalista” propriamente dito. Para não mecoibir, no presente estudo, de uma tomada de posiçãoclara quanto a uma questão que julgo fundamental:não quero deixar de sublinhar que me parece quepostular uma ligação demasiado estreita e unívoca

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Com algum recuo parece-meindiscutível que o relativismopatente nestes e noutros trabalhos,uma postura afinal com pergaminhos jáantigos na Antropologia, pareciacristalizar-se agora, num Mundo emalteração profunda, em versões dealgum modo mais “ontológicas”. Asversões mais hard do pós-modernismofluiram, nesse ambiente de eleição.

entre Direitos e culturas está pejado de riscos.Enquanto forma de acção, expressando sempreinteresses para além de significados, todo o Direitoproduz, fabrica, cria, inventa, enquadra; e fá-losempre (e fá-lo inevitavelmente, pois é assim que umqualquer Direito se torna culturalmente inteligívele se legitima) explorando convenções socioculturaisem conjunturas de envolvimentos concretos de actoressociais uns com os outros. Facto que não deixa,decerto, de o redimensionar enquanto ordenamentonormativo. Mas convém notar que se um ordenamentojurídico tem algum domínio próprio, e conquista, oumantém, alguma especificidade sua (e por conseguintealgum grau de autonomia), esses são atributos que umDireito só adquire se o campo social em que funcionalho admite, nos termos em que este lho permite e fá-lo sempre retendo algum carácter de instrumentopolítico. Não se trata aqui tanto de afirmar umadistinção enxuta entre um domínio social e um domíniocultural, mas tão-somente de insistir na autonomiarelativa de duas lógicas de funcionamento que não meparecem de maneira nenhuma totalmente redutíveis umaà outra. Para uma discussão mais detalhada desteponto, ver Armando Marques Guedes (2003a, op. cit.).Na Quarta Parte do presente trabalho retomo esteponto, e outros conexos, em bastante maior pormenor.

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Nos âmbitos específicos daAntropologia Jurídica, muito próximosdas múltiplas normatividades a que ospanoramas sociais pareciam responder,as dúvidas já não se reduziam àsquestões metodológicas, ora genéricas,ora particularizadas, suscitadas nosanos 50 e 60, com tanta energia evivacidade, por Paul Bohannan: comoque ampliaram, “transcendendo-o”, oseu ponto de aplicação, fazendo-otransbordar para o domínio rarefeitodo gnoseológico.

Tudo, com efeito, se pareceupassar como se o esbater progressivodas certezas político-ideológicas quetanto tempo tinham vigorado setivesse durkheimianamente vindo areflectir nos palcos das produçõesteóricas sobre as comunidadeshumanas. De convicções fortes einquestionadas passara-seimperceptivelmente, nestes domíniostão atreitos à conceptualização davida em comum, à formulação firme (epor via de regra generosa naintencionalidade política“comunitarista” em que na maioria doscasos radicava) de equivalênciasabstractas (tanto éticas, quanto

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morais e políticas) que davamporventura voz às novas condiçõesexistenciais muito concretas em quese vivia na novissima ordem pós-bipolar. Sem surpresas, muitos dospós-modernistas eram liberaiscosmopolitas libertários, livrespensadores “ex”-marxistas, ou“methodological anarchists”, oraencantados ora aterrados com a recém-conquistada liberdade relacional e aaparente ausência de barreiras eexclusões ou inclusões “obrigatórias”que a vitória do bloco ocidentalsoletrava alto e bom som.

Mas repito: as consequênciaspráticas dos novos consensos (aindaque muitas vezes os antropólogos,habituados por dever de profissão apercursos, posturas e atitudes pró-activas de renitência e resistênciaface a um etnocentrismo com enormesafinidades de fundo com a hegemoniado “bom senso”, se tenham limitadoplacidamente a concordar emdiscordar) não tardaram. E depressasubiram de tom, ascendendo de patamarepistemológico. Não se retrocedeutanto quanto se repensaram os termoseles mesmos das análises

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empreendidas, desaguando em asserçõespositivas. Mais do que repensarconclusões redefiniram-se pontos departida. Muitos dos efeitosmetodológicos do novo relativismo“ontológico” pós-moderno produzidosna Antropologia foram significativos;e há que saber não desvalorizar asvirtualidadades de um movimento“cívico”- disciplinar que levou a umamaior tomada de consciência, pelosantropólogos, do seu próprio papel einfluência nas etnografias queredigiam.

De novo com algum recuo, eregressando aos quadros contextuais aque tenho vindo a fazer alusão, nadadisto será surpreendente. Pararetomar a questão de um outro ângulo,poder-se-ia sem grande esforço alegarser os ecos do Mundo aquilo que, emcuriosas ressonâncias, mais uma vezse fazia ouvir nas produções teórico-conceptuais. Para tornar a citarlongamente Sally Falk-Moore,“anthropologists presently are using the legal toengage with political questions. And no wonder:the 1980s and 1990s have seen as much politicalupheaval as the previous twenty years. We livenow in a post-socialist, post-Cold War, post-

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apartheid period in which many governmentshave been overturned or replaced. Questions areraised about the new regimes whether they are orwill be “democracies”, and about what“democracy” means. Building new regimes andreforming old ones occur in many parts of theworld. The legal dimensions of these processes arebeginning to attract new kinds of anthropologicalattention. However, the construction of nationalgovernments is not a process that can be divorcedfrom transnational matters. Global concernsinevitably enter the discussion. The academicdebate that surrounds these issues is uneasy, butit has begun to consider large-scale context innovel ways. This can be illustrated by the […]strikingly different anthropological approaches tothe legal domain [that have of lateemerged]”161.

Na Antropologia Jurídicacontemporânea, acrescentaria eu, emuito mais ainda na Jurisprudenceactual, tentava-se tornar a partir dozero; e preparava-se para tanto oterreno abrindo largo o leque. Uma

161 Sally Falk-Moore (2001), op. cit.: 105.106. Note-seque, no seu magnífico artigo-recensão alargada,Moore restringe a sua atenção aos esforços deantropólogos jurídicos, sem quaisquer preocupaçõescom a progressão concomitante dos enquadramentoscoetâneos das Legal Theories mais gerais.

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mudança substancial pareciairreversível: terminara o tempo dahegemonia inquestionada doshorizontes “legalistas” para osquais, ainda se em formatos cada vezmais atenuados, a Jurisprudence e aFilosofia do Direito serviam detradicional veículo no universoacadémico anglo-saxónico. Agorasegundo formatos de relacionamentocom os juristas mais simétricos e“igualitários”, a reconversãoantropológica retomava balanço. Masfazia-se esse esforço sem abandonar,todavia, toda a ganga acumulada aonavegar os percursos rasgados pelasconjunturas anteriores.

Qual foi, então, a “solução”resultante do impacto do pós-modernismo na subdisciplina?

8.1. SOCIOCULTURAL OU PRAGMÁTICO?

Sem pretender esgotar orepertório da multiplicidade defrentes em que hoje se move aAntropologia Jurídica, o que por sisó constituiria um novo trabalho, nãoquero deixar de a rascunhar em linhas

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fortes. O que me permitirá fazer umrastreio de algumas das linhas deforça das direcções em que sedesdobram os esforços dosantropólogos jurídicoscontemporâneos162. E, de seguida, dar-me-á a oportunidade de posicionarneste contexto as minhas própriasescolhas e preferências teórico-metodológicas.

Começo por um observação de carizgenérico, que se situa porventura numlugar não muito distante do do“descentramento” dos pós-modernos. Naprogressão das formulaçõescientíficas, como na vida social emgeral, a eclosão de crises significasempre também o despontar de novasoportunidades, abrindo frinchas quenunca deixam de ser agarradas ealargadas. E na Antropologia Jurídicacomo nas Legal Theories, reagir pareceter significado reatar com acquisteórico-metodológicos duramenteconseguidos, deitando fora oacessório de modo a salvar oessencial. Mas não se logrando

162 Faço-o para os meus alunos, com algum pormenor,na última sessão da parte introdutória do programada disciplina da Antropologia Jurídica.

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evitar, em todo o caso, algumas“pulverizações disciplinares” (chame-se-lhes isso) de monta.

Os indícios abundam de queestamos hoje frente a “dilemasdialécticos” desse tipo. NaAntropologia Jurídica, mais do quecircunscrever “regras” ou isolar“processos” para estudo separado, osinvestigadores têm-se empenhado nosúltimos anos em análises compósitasde conjunturas sociais concretasnaquilo que elas revelam, e naquiloem que redundam, quanto à acção deprocessos sistémicos em que o“jurídico” esteja envolvido. Trata-sede um enquadramento no qual todas equaisquer “questões ontológicas defundo” tendem a ser desvalorizadascomo irresolúveis. Consensossubstanciais quanto a critérios quepermitam estipular o que sãodefinições genéricas úteis de“sistemas jurídicos” ou de “sistemaspolíticos” foram atiradas para ascalendas gregas. Nas fronteirasvivas, múltiplas e difusas, tem-seprogredido como que por tacto.

Os ganhos são óbvios. O preçotambém: ao diluir consensos, foi como

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que desdobrado um espaço (conceptuale corporativo) para novasdiscordâncias generalizadas,porventura irredutíveis. E, retomandoaquilo que atrás disse, mais uma vez,mutatis mutandis, e desta feita já semquaisquer submissões hierárquicas eimplícitas a “horizontes deproblematização” vindas da parte detrás de “portas férreas” cada vezmais apenas simbólicas, as clivagensde perspectiva e método que se vãofendendo mostram porém afinidades esimetrias evidentes com as que sevislumbram nos círculos intelectuaiseuropeus (agora com uma reentrada deteóricos franceses163) e norte-americanos da Jurisprudence e daFilosofia do Direito.

Talvez valha a pena pormenorizarum pouco algumas das muitascoordenadas dessas novas posturas

163 Para discussões minuciosas da “reentrada” teóricade antropólogos francófonos no domínio daAntropologia Jurídica é particularmente útil aleitura de alguns dos sub-capítulos históricos doestudo de N. Rouland (1994), bem como do já citadoartigo de C. Eberhard (2001). Faz falta uma recensãogenealógica ponderada sobre as condições-quadrodeste autêntico renascimento que envolveu francesese belgas.

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interpretativas emergentes no âmbitodos estudos antropológico-jurídicos164. Vários subprogramas deinvestigação têm sido desencadeados.Incompatíveis entre si, mas quemutuamente pouco se perturbam uns aosoutros.

Não é difícil propor umaarrumação para as várias novasfrentes jurídico-antropológicasactivadas. De modo a melhor oequacionar em termos teórico-metodológicos, comecemos por repetirque, com os novos ventos, novamentese modificou a trama interna daAntropologia Jurídica. E a disciplinatem-no feito em direcções múltiplas

164 Frentes de acção científica abertas, a meu ver,sem que as posições assumidas necessariamenteredundem em (ou sequer resultem de) quaisqueragendas particulares de intervenção política.Parece-me importante focar este ponto, já que elenão é de maneira nenhuma consensual: muitos são oscientistas sociais e os juristas, com efeito, quepersistem em classificar as arrumaçõescontemporâneas em termos dos quadros político-ideológicos transpostos directa e acriticamente deum passado que ficou para trás. A alegação de que ofazem porque os problemas permanecem, no essencialinalterados, parece-me um substituto pobre para oreconhecimento de que os “mesmos” problemas, quandoem novos contextos, exigem abordagens e soluçõesdiferentes.

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mas bastante previsíveis nasrecontextualizações que propõe:alguns têm abordado “as leis” (ou osordenamentos jurídicos em geral) e apolítica de uma perspectiva cultural,atendo-se os estudos empreendidos àsdimensões simbólica e comunicativadestas, ao seu enquadramentoetnográfico de detalhe.

Outros têm-nas encarado comointegradas em instituições sociais maisou menos abrangentes, e têm preferidotomá-las como expressões de teiasactivas de interesses e de posturascorporativas específicas. Outros,ainda, têm optado por umaperspectivação mais explicitamenteinstrumental, vendo na política e nasleis meios pragmáticos em termos dosquais indivíduos e grupos prosseguemfinalidades próprias165. A larga165 Uma palavra de advertência. Proponho estaconstelação tripartida de “famílias” em termospuramente operacionais. A escolha que fiz deve,assim, ser aferida meramente em termos de purautilidade analítica: não tem quaisquer pretensõessistemático-ontológicas. Não quereria, no entanto,eximir-me a alguns comentários de fundo que aquipodem caber. Será porventura possível (e atéinteressante) articular estas três perspectivaçõescomplementares que delineio num plano mais próximoda ontologia jurídica strictu senso, segundo distinçõesde orientação metodológica detectadas, por exemplo,

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maioria dos antropólogos jurídicos,como aliás decerto seria de esperar,tem assumido uma postura teórica maisecuménica, mas de maneira nenhumaunitária já que por sua vez exibeinúmeras variações166.

na progressão do pensamento jurídico moderno comoaquelas que o subdividem no “historicismo” deSavigny, na “jurisprudência dos conceitos” de Puchtae o “racionalismo” de Windscheid, no positivismojurídico de von Jehring, e na mais recente“jurisprudência dos valores” ou “da valoração”. Parauma discussão “clássica” (datada da segunda metadedo século XX) destas diferentes orientações,equacionada do ponto de vista da metodologia doDireito ver, por todos, Karl Larenz (1997, originalde 1991: sobretudo pp. 9-261); para umaperspectivação mais histórica sobre as mesmas ver,também por todos, Franz Wieacker (1993, original de1967: sobretudo pp. 397-536 e 645-679). Para umameta-discussão desta complexíssima progressão, verAntónio M. Hespanha (1998, original 1997: 137ss).Não pretendo, neste Estudo, mais do que sugerirfeixes de perspectivações operacionais.

166 Para esta divisão tripartida de predilecçõesteóricas quanto ao estudo dos sistemas jurídicos, éútil a leitura do esplêndido e aqui já tão citadoartigo de S. Falk-Moore (2001, op. cit.: sobretudo pp.95-99), sobre a progressão de conceptualizações-interpretações histórico-sociológicas sobre os“fenómenos jurídicos” dominantes nas CiênciasSociais dos últimos cinquenta anos. Sem que issosignifique uma total concordância com o que Falk-Moore escreveu (nomeadamente no que diz respeito aocarácter discreto destas três “classes”), sigo deperto o presente trabalho a tripartição aí proposta

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Poder-se-ia decerto asseverarque, por fim, se vive uma situaçãonormal de disseminação deperspectivas analíticas num processode maturação, que tardou, de umasubdisciplina que se implantara numafronteira contestada.

8.2. NAS FRONTEIRAS DIFUSAS DO JURÍDICO EDO POLÍTICO

Esta é a situação, delineada atraço muito grosso, em que aAntropologia Jurídica se encontrahoje: numa frente com várias frentes.Num primeiro tempo, a nova “sabedoriaconvencional” antropologizada que seinstalou, apesar de em certo sentidoformulada a contrario (ou, pelo menos,reactivamente), pareceu a muitos sernítida, hegemónica, e até absorvente:“normas jurídicas” em geral, ou“leis”, segundo as novaspor esta autora. Para uma discussão muito maisdetalhada quanto às reticências teórico-metodológicas que tenho quanto a divisões destetipo, ver Armando Marques Guedes (2003a, op. cit.):40-43. Retomo esta tripartição, em muito maiorpormenor, na secção que se segue (a quarta) dopresente estudo.

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epistemologias, não seriam senão“objectos culturais”, maisconcretamente “artefactos políticos”(como é óbvio, numa definição latosensu de “político”), na lógica dosquais se diluiriam. A suaindeterminação concreta, postulou-seem consonância, seria por conseguinteenorme. Talvez a mais curiosaformulação disso na AntropologiaJurídica moderna tenha sido a deLawrence Rosen167, quando esteescreveu, com algum humor e com umculturalismo que raiava o pós-modernismo ontológico hard em que,tal como Geertz, não se revia, sobreaqueles que insistem na busca da “Law(spelled with capital letters and utterd in

167 Lawrence Rosen (1989), op. cit.: 4-5. As asserçõesde Rosen são paralelas às de Clifford Geertz (1984:272), que afirmou, sobre o “jurídico”, este lheparecer “a sweeping, schematic, and content-hungry concept,conformable to just about any shape that comes along, Wilsonian,Lorenzian, Freudian, Marxian, Benthamite, Aristotelian (“one of thecentral features of Human Nature”, some anonymous genius issupposed to have remarked, “is a separate judiciary”), becomes theground upon which the understanding of human conduct, homicide,suicide, rape … the derogation of Western culture, comes definitively torest. Some gods from some machines cost, perhaps, rather more thanthey come to”. A última frase de Geertz, sobre o custode oportunidade do conceito, parece-meparticularmente feliz.

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stentorian tones)”, acrescentando “I tend toregard those who have lost themselves deeply inthe quest for the ultimate definition of law asmaking even seekers after the Holy Grail appearthe very embodiement of the Reality Principle”.

Todavia mesmo essa postura dedescrença genérica e difusa tem vindoa mudar (tal como de resto, repito,tem acontecido no âmbito maisincludente dos estudos jurídicos).Curiosamente, parece cada vez maiscomum, entre os antropólogosjurídicos168, a convicção de que tantoa “política” como as “leis” semanifestam em domínios que gozamsempre de uma relativa autonomia, nãosendo por isso redutíveis a meros“epifenómenos” de quaisquer outrasdimensões da vida social; non nova sednovae, um ponto infelizmente aindapouco teorizado, ou teorizadoa emtermos hoje em dia inaceitáveis.Note-se que a consciência de umarelativa autonomia operacional de

168 Como se poderá, em particular as sessões 4, 15 e18 do programa da disciplina tocam muitas dasfrentes em que se têm vindo a desdobrar os esforçosanalíticos mais recentes dos antropólogos jurídicos.Muita da Bibliografia Suplementar, que incluo emanexo ao programa, o retrata.

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“regras” e “normas” já vem de trás.Alguns autores dos anos 50 e 60, cujobackground era jurídico, ou que poroutra razão se viam fortementeinfluenciados por enquadramentosteóricos muito atidos ao estudo dosDireitos estaduais “ocidentais”,asseguraram-no: a tónica nos corpus deregras, uma postura tradicional nosjuristas de formação positivista,militou nesse sentido169.169 Por exemplo, num longo artigo publicado em 1973,Max Gluckman insurgiu-se contra a postura, queatribuiu a P. Gulliver e a E. A. Hoebel (vendo nela,explicitamente, a “influência dos Realistas norte-americanos”) segundo a qual “it is fruitless to be concernedwith what ‘law is, instead of concentrating in what ‘law’ does”. Nãodiscordando na necessidade de pôr o acento tónico na“função”, e não na essência, nos estudosantropológico-jurídicos, Gluckman argumentou demaneira bastante convincente que nunca é em todo ocaso possível levar a cabo uma sem a outra destasduas démarches. De par com esta crítica, Gluckmanlamentou ainda a obsessão dos estudos antropológico-jurídicos da época com a resolução de conflitos.Talvez o melhor sumário da linha de argumentaçãoseguida seja o resumo que o próprio Gluckman delafez no final do seu artigo (op. cit.: 636) quandoescreveu “in short, I argue that if the study of disputes is erected asa slogan it can be as stultifying as the reporting of rules on their own.Both have to be set […] in the social environment in which the wrongoccurred”: e ambas, advogou Gluckman, tanto o foco emdisputas e outros processos sociais quanto umaanálise das “regras”, têm de ocorrer em simultâneo.Só assim, alegou, se logra construir uma visão aomesmo tempo mais abrangente e mais precisa sobre o“jurídico” e a juridicidade.

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Num segundo tempo, ainda emcurso, reiniciou-se assim (de algummodo) o velho projecto de levar acabo levantamentos etnográficosdetalhados, e muito amplos, deprocessos “jurídicos” em sentidogenérico170. Um programa em aberto,quanto mais não seja porque asmudanças a que temos vindo a assistirno Mundo reformulam diariamente asrealidades empíricas com que neledeparamos.

Mais uma vez, também e noentanto, algum consenso tem lenta evagarosamente vindo a emergir. Umnovo denominador comum que como que

170 Muitas vezes não só sem grandes preocupações“definicionais”, mas até apostados em pôr emevidência conexões (como entre o normativismo“moral” e outros tipos de normatividade) que osautores considerem reveladoras para uma melhorcompreensão dos casos etnográficos em apreço. Doisexemplos relativamente recentes e bastante bemsucedidos desta tendência bastarão por todos: paraum colecção de artigos jurídico-antropológicos sobreas conexões da normatividade jurídica e da“moralidade”, ver o livro editado pela antropóloganorueguesa Signe Howell (1997). É útil também aleitura do riquíssimo e mais antigo estudomonográfico, durante anos tão injustamente ignorado,de T. O. Beidelman (1986), sobre os meandros da“moral imagination” dos Kaguru da Tanzânia.

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desenha os contornos de um novoplateau. Seria prematuro atribuir aesse consenso emergente um qualquersentido preciso: mas todos osanalistas contemporâneos parecemconcordar em declarar pontos de vistasegundo os quais, mais uma vez non novased novae, tanto as leis como apolítica têm uma dimensão genética ou“generativa”, com papéis emsimultâneo repressivos e criativos,que se tornam tanto maiscompreensíveis quanto mais sejamencaradas como formas socioculturaiscom características dinâmicas171. E,sobretudo, quanto mais sejamcontextualizadas em conjunto e,ambas, nos âmbitos sociais maiores (sejameles quais forem) de que formam partee são parcela.

Um campo de concórdia a queMalinowski decerto teria aderido, ouque em todo o caso aplaudiria, aindaque o tivesse certamente feito a

171 Para uma discussão muitíssimo mais pormenorizadadesta tripartição que aqui proponho, ver o queescrevi no que diz respeito a uma sua aplicação aocaso específico dos Direitos africanoscontemporâneos (Armando Marques Guedes, 2004: 42-47).

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partir de convicções de fundo suigeneris que não são as contemporâneas.E um campo que dá corpo, nasubdisciplina da AntroplogiaJurídica, a uma nova postura,largamente partilhada por outrosdomínios do saber, da investigação, eaté da especulação.

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IV

AO ENCONTRO DOS LIMITES NASGENERALIZAÇÕES COMPARATIVAS DAANTROPOLOGIA JURÍDICA

Today, cultural difference is a sectoralpolitical cause with many parts of theworld. No wonder that culture as asource of legal form remains a liveproposition […]. It serves those whohave their own political reasons toemphasize collective boundaries, and todistinguish themselves from others.Sally Falk-Moore (2001),“Certainties undone: fiftyturbulent years of legalanthropology”, The Journal of theRoyal Anthropological Institute 7: 98.

Neste trabalho, comecei pordisponibilizar algum enquadramentogenealógico ponderado quanto a duasquestões interligadas: primeiro,quanto ao desenrolar progressivo daarticulação-entrosamento detectável

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entre as várias fases por que temvindo a passar o trabalho teórico-metodológico antropológico-jurídicosobre o Direito; em segundo lugar,quanto aos paralelismos detectáveisentre estes estudos e outrasinvestigações (nomeadamente as daCiência do Direito e as da Filosofiado Direito anglo-saxónicas) que, emsimultâneo, têm vindo a serempreendidas.

Fi-lo, sempre, em alusão aosestudos concretos de caso, nocontexto das teorizações que foramlevados a cabo pelos autores centraisno encadeamento das investigaçõesjurídico-antropológicas. E tivesempre o cuidado de evitarorganicismos deterministas seja deque tipo for: os desenlaces, comolhes chamei, com que foram deparandoas várias “soluções” que se foramperfilando para as sucessivasexpressões do conundrum fundacionalda Antropologia Jurídica, foramsempre apenas algumas alternativaspossíveis, escolhidas mais pela suaadequação às conjunturas político-sociais da época do que por quaisquer

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considerandos organicistas de ordem“lógica” ou “dialéctica”.

Nas duas subsecções que se seguemdo presente estudo (e que integramesta Quarta Parte), deixando de ladopreocupações genealógicas, abordareibreve e levemente a “arquitectura” dequestões de fundo que se prendem comas “dificuldades” defrontadas e as“soluções” encontradas pelo projectode base da Antropologia Jurídica (noque toca, designadamente, ageneralizações empiricamentefundamentáveis sobre o “jurídico” e ajuridicidade), pelo menos nos termosem que elas têm sido equacionadas eformuladas. Aproveito para, nessecontexto, explicitar com maiorpormenor algumas das posições quesustento quanto a este tipo dequestões de base.

Dada a natureza e a economiadeste trabalho, não teria grandecabimento aqui ensaiar quaisquertentativas de circunscriçõesempíricas empreendidas de fio apavio, ou esforços de definiçõesformais cuja utilidade, mesmo noplano operacional, seria em todo ocaso muitíssimo dúbia. Mas não as

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ensaiar seria também problemático, jáque nos remeteria para domíniosmarcados por uma enormeindeterminação. Numa primeirasubsecção, tento assim pouco mais doque um mero esboço de abordagem doslimites com que deparam quaisquertentativas de generalizações. Numasegunda subsecção, debruço-me deseguida sobre as fronteiras difusasde alguma da juridicidade patente numexemplo etnográfico concreto queconheço bem, o dos Atta dasFilipinas.

9. O JURÍDICO E A JURIDICIDADE ENTRE ATAXONOMIA TRADICIONAL E AS SEMELHANÇAS DEFAMÍLIA

Na parte que precede do presenteestudo dei por encerrada a minhatentativa de delineação de umencadeamento “genealógico” ponderadodas produções que formam o corpuscentral da Antropologia Jurídica.Insisti que estaríamos, hoje, face auma versão transformada do velhodilema fundacional com que osantropólogos jurídicos se têm vindo a

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confrontar, designadamente dasdificuldades inerentes àcircunscrição enxuta de um objectoanalítico de utilidade eaplicabilidade etnográfica geral172.

Sublinhei aí que, mais do que umverdadeiro ponto de chegada, esta172 Um exemplo recente destas dificuldades é ocontido numa asserção recente como esta: “natradição da sociologia e da antropologia jurídicasdo século XX e da filosofia do direitoantipositivista de finais do século XIX, entendemoso direito como um corpo de procedimentosregularizados e de padrões normativos, com base nosquais uma terceira parte previne ou resolve litígiosno seio de um grupo social” (Boaventura de SousaSantos, 2003, op. cit.: 50). Sousa Santos disponibilizouesta definição no contexto de um arrolamento das“três componentes estruturais” que alegou integrareme subtenderem o Direito: “a retórica, a burocracia ea violência”. Se aceitarmos o entendimento quanto aoDireito proposto por este notável sociólogo, todasas sociedades cujo igualitarismo político nãocontemple, por incongruência estrutural, opreenchimento de qualquer um papel de intermediação,mediação, ou arbitragem, por uma “terceira parte” (oque, como é bom de ver, para ser contemplado implicaa presença de clivagens sociais hierárquicas que dealguma forma viabilizem a conceptualização deentidades tidas como estando acima, ou de um outromodo separadas, das minudências do quotidianosocial) seriam sociedades que não seriam dotadas de“direito”. Ficariam assim de fora do mundo“jurídico” dos eleitos, por exemplo, as sociedadesde caçadores-recolectores como, aliás, uma grandeparte das sociedades acéfalas; embora das primeirasnão haja notícia em Moçambique, das segundas há.Dada a restrição implícita no entendimento inicial

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parece-me ser apenas a etapa actualdo percurso em que hoje nosencontramos. Em última análise, éverdade que a Antropologia Jurídica,com o seu comparativismo sociológicopersistente, não conseguiu todaviafornecer uma definição aceitável de“jurídico”, ou sequer uma suacircunscrição definitiva173, dados osque Boaventura de Sousa Santos advoga e a divisão emcomponentes que depois sugere, é efectivamentedifícil não ter a impressão de que o A. estáimplicitamente (e porventura de maneira nãoconsciente) a restringir a aplicação das definiçõesque propõe às sociedades dotadas de Estado ou, pelomenos, às eivadas de diferenciações hierárquicasmuito marcadas: precisamente o horizonte deproblematização dos antipositivistas do século XIXque a esse preço cita.

173 Um ponto, aliás, com que os juscomparatistas maisatentos da mesma época não teriam dificuldades emintegralmente concordar. Limitar-me-ei a um sóexemplo. Citando Max Gluckman, R. David (1982, op.cit.: 565) notou, com um tom de anuência plena, que“les auteurs européens se sont demandés, en présence de ce qui leurapparaît comme une inextricable confusion, s’il n’était pas artificiel devouloir retrouver en Afrique et Madagascar notre notion du droit, et sile droit coutumier de ces pays ne devait pas être considéré comme unobjet de recherche pour l’anthropologue plutôt que pour le juriste”.A resposta dada por muitos investigadores tem sidopositiva. Sempre atento à dimensão normativa poucaspáginas depois, e criticando tanto as políticascoloniais conduzidas por europeus como as pós-colonais sob controlo nacional independente, comobom jurista R. David (idem: 579) particularizou“político-pragmaticamente” as hesitações queexprimira, lamentando que “en voulant réaliser

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problemas, ao que pareceintransponíveis, a que tenho vindo aaludir, de forma, função e contextoque quaisquer comparaçõessuficientemente alargadas não deixamde suscitar174. Tal como insisti,tendo em conta a complexidade e amultidimensionalidade dos objectosque a Antropologia Jurídica defrontae sobre os quais se debruça, nadadisto nos deverá surpreender.prématurement le régne du droit conçu à l’européene, on a boulversél’ordre de sociétés qui réglaient leur existence par d’autres moyens etqui n’étaient pas preparées à accepter l’idée européene moderne dudroit”. David fê-lo, no entanto, num quadro sui generise, a meu ver, muito pouco interessante ou produtivo:como atrás referi, propondo uma distinção quaseestanque entre “o Direito” e “o costume”, o que meparece reflectir mais uma conveniência jurídica doque uma realidade empírica.

174 Alguns antropólogos reagem a isso com desânimo,outros racionalizam a inviabilidade com que sedefrontam. Como escreveu J. Vanderlinden (1999, op.cit.: 32), “combien de fois n’ai-je pás entendu dês collègues, derenommée mondiale, enseignant soit l’ethnologie, soit l’anthropologie,dire qu’ils ne concevaient pas l’existence d’une ethnologie ou d’uneanthropologie du droit, puisque aussi bien les sociétés qu’ilsétudiaent n’identifiaient pas une realité juridique distincte des autrerealités”. Um dilema que a busca de “funções” e não de“formas”, como Malinowski advogou ser preferível, meparece eficazmente tornear. O mais interessante,vistas as coisas deste ângulo, é apurar a gama devariação das condições sócio-políticas em que paraum preenchimento considerado adequado de funções éexigida uma cristalização insitucional de formas.

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Quero agora virar-me para essasquestões definitórias e decircunscrição, com o intuito de asdesdramatizar. Não vejo, com efeito,que, seja de que maneira for, haja aíuma qualquer hipotéticaintransponibilidade conceptual eparticularidade disciplinar que nosate as mãos: em todo caso aconjuntura, que não é nova, nãoparece incomodar muito os juristas,cuja situação, ainda que por outrasrazões, não é muito diferente175.Mesmo teóricos tão “ortodoxos”(apesar da sua heterodoxia aparente)como H. L. A. Hart que, como járeferi, famosamente considerou adefinição de law como sendo apreliminary question in jurisprudence, se viuem apuros para encontrar umadefinição que recobrisse toda a gamade variação empírica observável; e emúltima instância Hart preferiu de175 Para um notável estudo crítico que aborda a crisedesta e de outras noções entre os juristas, ver oestudo de Paul Kahn na sua obra The Cultural Study of Law(1999). Para um rastreio das conceptualizaõeslevadas a cabo por cientistas sociais, ver BrianTamanha (1995), no seu famoso “An Analytical Map ofSocial Scientific Approaches to the Concept of Law”,publicado no muito reputado Oxford Journal of Legal Studies.

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algum modo alijar o problema por meiode um expediente metodológicointeressante: recorrendo às célebresPhilosophical Investigations de L.Wittgenstein (em todo o caso um seuguia intelectual dos tempos deOxford), o grande filósofo jurídico,então em Harvard, fez uso operacionaldo conceito de family resemblance.

Num pequeno excurso lateral, valea pena dedicar algumas linhas aosvários pontos que a solução hartianasuscita. A estratégia explanatórianeo-wittgensteiniana adoptada porHart foi muitíssimo interessante e,mais, é indicativa das dificuldadescom que esbarrou: mantendo a atençãofocada em regras, Hart argumentou que“the key to science of jurisprudence” podia edevia ser encontrada na associação devários tipos de regras. Segundo ele,reconhecemos e identificamos“sistemas jurídicos” (legal systems)enquanto tal, “not because they all conformto any minimal set of universal criteria, butbecause they display what Wittgenstein hastermed a family resemblance in the sorts andrelationships of their constituent rules”. Damesma forma que “jogos” (games, umtermo finalmente indefinível, segundo

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Wittgenstein), as combinações de rulese de secondary rules que subtendem ojurídico formariam conjuntos (sets)cujas afinidades reconhecemos dada afamily resemblance existente entre eles.

Para L. Wittgenstein, como paraH. L. A. Hart, esta family resemblanceresultava da presença, em váriosconjuntos, de alguns elementos comuns(e esses variáveis) a apenas alguns dosoutros conjuntos que com elesconsideramos “aparentados”, e quefacilmente identificamos como tal.Mesmo caso esses conjuntos integremapenas elementos pertencentes aoagrupamento maior de que provêem,facilmente os reconhecemos comopatenteando uma “semelhança defamília” entre si. Note-se que essasemelhança (e este era o pontofundamental de Hart no que tocava aoseu eventual reconhecimento, numqualquer caso concreto, de queestaríamos perante um “sistemajurídico”) não dependenecessariamente da presença deeventuais denominadores comuns fixosentre os conjuntos que exemplificavamas suas “associações de vários tipos deregras”: bastava que em cada um dos

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conjuntos estivessem presentes algunselementos comuns reconhecíveis comopertencentes ao metaconjunto total176.

Um ponto seguramente fascinante,que há que saber elaborar. Sem umaexcessiva colagem177 à postura deHart, quero fazer eco da posição176 Na senda de Ludwig Wittgenstein e de numerososnaturalistas, R. Needham apelidou estes conjuntos depolythetic sets. Para uma discussão fascinante (masinfelizmente sem grande seguimento na Antropologia)da utilidade desta noção de polythetic sets para asinvestigações antropológicas, ver Rodney Needham(1975).

177 Seja qual for o entusiasmo suscitado, vale a penasublinhar que muito há no hartianismo de menostransponível para o projecto comparativista daAntropologia Jurídica. Para os positivistas doséculo XIX, como Jeremy Bentham ou John Austin, o“jurídico” resultaria de relações entre pessoas (osoberano e os que lhe estão sujeitos) no quadro deum sistema político, enquanto que para os seussucessores do século XX, como Hans Kelsen e H. L. A.Hart, o “jurídico” tendeu antes a serconceptualizado como uma hierarquia de regras noquadro de um sistema normativo. Ao contrário deKelsen e da sua insistência numa pirâmide coroadapor uma Grundnorm, que existiria fruto de umanecessidade lógica pura e simples, independentementeda sua aceitação ou sequer conhecimento pelosactores sociais, Hart (op. cit.: 47) viu “union of primaryand secondary rules”, a marca do que chamou um developedlegal system, que nisso contrastaria com o set of separatestandards típicos, segundo ele, de uma simple society.Essas secondary rules seriam “regras sobre regras”,especificamente “rules of recognition, adjudication andchange”. A legitimidade de um sistema jurídico

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epistemológica geral que eleassumiu178. Para um antropólogojurídico a atitude analítica hartianaé fascinante: efectivamente,habituámo-nos desde há muito adeparar com casos em que, apesar dedificuldades aparentemente

resultava, para Hart, da sua aceitação “social”, ou“psicológica” pelos membros de uma determinadasociedade, ou pelo menos pela officialdom estadual.Muito diversamente do que era o caso para Kelsen, umtal desenvolvimento de secondary rules constituía, paraHart, uma condição para a incorporação de “valoresliberais” (liberal values) na Law, designadamentedesiderata como a certeza e a previsiblidade, ambossine qua non das rules of law características de Estadosde Direito, rules of law essas que, por sua vez,manifestariam valores centrais da doutrinailuminista como a liberdade e a autonomia: umcidadão deve conhecer antecipadamente as leis quelhe são aplicáveis, de modo a poder livrementeescolher um curso de acção sabendo de antemão asconsequências jurídicas que daí possam decorrer.Como é óbvio, quaisquer definições do “jurídico”produzidas neste quadro estão presas aperspectivações político-ideológicas cuja exportaçãosó não será problemática se assumirmos uma posiçãoevolucionista que ponha a democracia liberal nalinha de meta.

178 Para uma discussão precisa das dúvidas de Hartsobre a definição de law, encaradas sob uma ópticaantropológico-jurídica (a da gama de variaçãopatente nas law ways), ver Laura Nader (1965, op. cit.:5); Nader concluiu, num understatemnt cauteloso, que“direct attempts to define law [...] have not borne much fruit”.E notou (idem: 5-6) que “presently [ou seja, meadosdos anos 60] our interest has shifted from this philosophical and

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inultrapassáveis, intuímos (porconstatarmos entre elas uma óbviafamily resemblance) estar peranteprácticas ou representações eivadasde juridicidade. E não temos, porisso, dúvidas em tomar taisrepresentações e práticas comolegítimos objectos de análise nosnossos quadros disciplinares.

Parece-me claro, no entanto, queintuições soam a pouco e queconstituem uma base particularmentefraca para a construção e o

theoretical question to empirical questions as to universal attributes oflaw and multiple legal levels within a society”. Uma posição,saliento, típica para a Antropologia Jurídica daépoca. Para uma discussão genérica notável sobre oimpacto da “definição” anti-austiniana de Hart nasCiências Sociais, ver Martin Krygier (1982), “’TheConcept of Law’ and Social Theory”, Oxford Journal ofLegal Studies 2 (2): 155-180. Noto que o próprio Hartconsiderava o seu trabalho de definição ecircunscrição como um contributo tanto à “analyticaljurisprudence” quanto à “descriptive sociology”, pelo que ofascínio que suscitou não surpreenderá muito. PaulBohannan, por exemplo, aproximou-se de Hart com asua conceptualização relativa à “doubleinstitutionalisation”, que caracterizaria a juridicidade.De lado ficou, naturalmente, o contraste que Hartoperou (decerto por dispor de informação deficiente,mas também porventura com o objectivo teórico menosneutro de sublinhar diferenças) entre sistemas“modernos” e “primitivos”, estes últimoscaracterizados como “descentralized systems of custom-typesrules”, ou seja, dotados apenas de primary rules.

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desenvolvimento de esforçoscientíficos sistemáticos179. Nãoquero, por conseguinte, fugir a umaconfrontação mais directa com oslimites “arquitectónicos” impostospelo chamei a tensão fundacional daAntropologia Jurídica. Não, sublinho,para a tentar resolver de uma vez portodas, o que em todo o caso me nãoparece sequer possível; mas antes como intuito de dar mais um passo. Etendo sempre em mente que, numtrabalho tão preliminar e ensaísticocomo o que afinal esboço nestetrabalho, não faria sentido umapreocupação excessiva com definiçõesou apuramentos formais: cabe-me, issosim, ir circunscrevendo, por passos

179 Embora alguns antropólogos discordem deste tipode reservas. Para tornar a citar Clifford Geertz(1983, op. cit.: 232), “Santayana’s famous dictum that onecompares only when one is unable to get to the heart of the matterseems to me, here at least, the precise reverse of the truth: it isthrough comparison, and of incomparables, that whatever heart wecan get to is to be reached”. Um autêntico hino àsgeneralizações indutivas. Numa formulação cautelosa,Rodney Needham (1978: 32) notou sobre osantropólogos e a Antropologia em geral que “ifcomparison is the characteristic method of social anthropology, itdoes not follow that we shall be very effective with it”, abrindoassim o caminho para um repensar do próprio métodode comparar.

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sucessivos, tanto os problemas comque vamos esbarrando quanto aseventuais direcções de uma sua futuraresolução.

10. NA VIA DE UM ENQUADRAMENTO UNITÁRIOMAS COMPÓSITO?

Talvez valha a pena, para oefeito, principiar por uma espécie deresumo do que até aqui aventei. Semquaisquer pretensões de equacionaruma hipotética narrativa totalizante(o que a relativa indeterminação dassoluções encontradas, que referi logona minha introdução geral a estetrabalho, em todo o casoinviabilizaria “logo no estirador”,por assim dizer), ou sequer de proporuma qualquer descrição “histórica”,não deixa de ser útil começar poroferecer uma espécie de “guiãovirtual retrospectivo” que sirva deorganizador lógico e cronológico quearrume de maneira inteligível asequência de acções, reacções, eacontecimentos que abordei nasprimeiras partes do presente estudo.Uma re-leitura que (em lugar do

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relevo que antes dei às rupturas edescontinuidades) dê a devidasaliência às continuidades e linhasde força patentes na progressão doshorizontes teórico-metodológicos doque tem sido a Antropologia Jurídica.

Reatando, então, deste ângulo dealgum modo mais minimalista, com aminha perspectivação teórico-metodológica: ao decidir debruçar-sesobre os aspectos “jurídicos” dassociedades que toma como seusobjectos de estudo, a Antropologiavirou a atenção para um domíniodisciplinar intensamente“disciplinado”. Como vimos, jáincursões noutros domínios, desde oda religião, ao da economia, ao dopolítico, tinham causado dissaboresaos antropólogos. Mas nunca haviaocorrido nada de comparável com o queveio a acontecer ao entrar nosterrenos jurídicos.

O estudo do “jurídico” constituidesde há longos anos (certamentedesde os alvores da Modernidade) umterritório politicamente muitíssimocontestado, um autêntico campo debatalha ocupado por subdisciplinasafectas a formas normativas e ao

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exercício do poder, formações deenunciados que, em relativo uníssono,tendem por isso a sentir poucacondescendência em relação aquaisquer formulações que possam serinterpretadas como desafios aos seuspróprios quadros metodológicos e aosseus respectivos mecanismos“teóricos” de legitimação racional.Durante o grosso do século XX, essaera decerto a situação. Partilhas deterritórios ou de objectos, mesmoquando se tratava de projectospacíficos que assentavam numa co-habitação tranquila, não eram porconseguinte soluções consideradascomo particularmente bem-vindas.

Tudo se passou como se a reacçãodos juristas, ao serem confrontadospelas ambições da Antropologia, fosseaquela que seria de esperar: asmanobras e propostas conceptuais doque era sentido como uma intrusão porcientistas sociais foram contidas porintermédio de formas judiciosas detutela da totalidade dos horizontesde problematização nos espaços deconstituição de objectos que maisprecisassem de uma protecçãodefensiva continuada. A impressão que

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fica é a de que face à persistênciade alguns antropólogos e aindiferença dos outros, a organizaçãodisciplinar logisticamente superiordos juristas, e a soberba implantaçãoacadémica de que usufruem de hámuito, viabilizaram formatoscompósitos de resistência queincluíram desde estratégias demarginalização sistemática até formasde colonização ideacional“hegemónica” pura e simples daquelasformações discursivas invasivas quese revelasse ser impossível conter deoutra maneira.

Por outras palavras, os juristasreagiram à ameaça dos antropólogos,ora subalternizando-lhes os discursossobre o jurídico, aniquilando-os noberço, por assim dizer, sem lhesconceder quaisquer hipóteses deenraizar e medrar; ora, maisinsidiosamente, penetrando oterritório do “adversário” ereformatando as formulaçõesemergentes, reproblematizando-lhes astónicas discursivas nos termos dosseus próprios horizontes teórico-metodológicos. Transformando num mal-estar intestino, intradisciplinar,

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aquilo que num quadro de uma menordisparidade de poder académico-institucional teria sido uma meraescaramuça fronteiriça deconfrontação interdisciplinar.

Os antropólogos, pelo seu lado (efoi este o tema primeiro das últimaspartes deste trabalho), viram-se nacontingência de ir fazendo aqui e alipequenas concessões tácticas que lhespermitissem salvar o essencial do seuprojecto indutivo, ao mesmo tempo queo iam re-alinhavando. No processo,foram recapturando terreno. E a pare passo foram logrando erigirteorizações reconduzíveis aos seuspróprios horizontes deproblematização.

Uma breve recapitulação genéricado desenrolar da tensão fundacionalque identifiquei como estando noâmago da dinâmica da subdisciplinapõe-no em evidência. Basta seriar as“soluções” encontradas como respostaaos embates que se foram verificando:se fosse possível reduzir a uma ouduas as contribuições significativasde cada um dos autores paradigmáticosdas várias fases que referi para aprogressão-encadeamento da

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Antropologia Jurídica, insistiria,por exemplo, que Bronislaw Malinowskie, em menor escala teórica mas com ummuitíssimo maior conteúdo empírico-etnográfico, E. Adamson Hoebel e KarlLlewellyn, encetaram a abertura deuma linha e de um programainterpretativos, vigorosamentealternativos aos horizontes deproblematização da Jurisprudence anglo-saxónica e da dogmática jurídica atéentão dominantes. Fizeram-noindicando-nos o caminho de descriçõesfuncionais em lugar do reificar“clássico” de definições formais cujautilização reflectia pouco mais doque uma expressão racionalizada dasupremacia dos nossos própriosformatos jurídico-políticoshistóricos. “Antropologizaram”, paripassu, a subdisciplina.

O trajecto, todavia, não foifácil de percorrer. Max Gluckman, comos seus estudos sobre os Lozi,ofereceu-nos a primeira grandedescrição analítica dos “raciocíniosjudiciais” encarados no seu contextosociocultural, ao mesmo tempo quedemonstrou as vantagens dasgeneralizações comparativas para a

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elucidação tanto dos sistemasjurídicos “ocidentais” como dos seus“equivalentes funcionais” emsociedades tribais. Paul Bohannan,com exemplos extraídos da suamonografia e em múltiplos artigosposteriores sobre os Tiv, preveniu-nos contra as dificuldades earmadilhas inerentes em quaisqueraplicações a outros contextos“sistémicos” dos nossos conceitos, eensinou-nos a confrontar a hipóteseda eventual inviabilidade última deconseguirmos análises capazes deoutros sistemas jurídicos se otentarmos levar a cabo nos termos dosquadros conceptuais desenvolvidospara a análise do nosso própriosistema. Leonard Pospisil, com baseem ilustrações Kapauku, lembrou-nosque “leis” existem em vários níveisda organização institucional de cadasociedade, e recordou que estesníveis estão muitas vezeshierarquizados entre eles. PeterGulliver mostrou-nos que, para acompreensão de muitos procedimentosjurídicos, entre os quais os dosArusha, é imprescindível umconhecimento detalhado dos contextos

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sócio-políticos de resolução-encaminhamento de disputas e muitasvezes informação pormenorizada sobrea litigação passada das partesenvolvidas.

Simon Roberts e John Comaroffexplicaram-nos que os própriosconflitos e disputas, designadamenteentre Tswana, são padronizados eculturalmente construídos, e que porconseguinte as análises que façamosdo seu fluir não podem prescindir dosredimensionamentos, muitas vezesprofundos, implicados por tomá-lo emlinha de conta. Sally Falk-Mooremostrou-nos que, no caso dos Chagga enoutros, nunca podemos confiar naoperacionalidade, e muito menos na“sensatez”, de conceitosaparentemente tão “básicos” como o de“tradição”, ou o de “cultura”, noçõescujos conteúdos só por incauçãotomamos por adquiridos. CliffordGeertz e Lawrence Rosen deram o passosuplementar (e porventura excessivo,ainda que apontado numa direcçãoútil) de insistir na necessidade dereduzir a uma expressão inteiramenteconforme ao seu enquadramento“cultural” todas as formas e

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processos jurídicos (tal como, aliás,quaisquer outros). Sally Falk-Mooreinterveio, demonstrando queutilizações de conceitos como o de“cultura” são actos interpretáveiscomo armas políticas de arremessoesgrimidas por actores sociais aoperar em contextos específicos queimporta sempre saber elucidar, e quepor conseguinte é assumindo um riscoque tomamos mesmo um termo“antropológico” como esse como sendode algum modo neutro.

É na “linha da frente” desenhadapela acumulação de desenlaces davelha tensão fundacional, a que sejunta o novo tipo de relacionamentomenos assimétrico que as conjunturasactuais têm vindo a delinear para ainteracção entre juristas eantropólogos, que se desenrola o quede novo há na Antropologia Jurídicade hoje. É no espaço conceptual assimaberto que são congeminados conceitose encontradas as “soluções”heurísticas propostas pelosinvestigadores. E é no quadro destanova topografia de problematizaçãoque linhas de investigação, variadase em muitos casos encantadoramente

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inovadoras, têm vindo a serdelineadas pela última geração deespecialistas que está a dar uma novaface à disciplina180.

Posto isto, quais são então asprincipais premissas sobre as quaisrepousam, em minha opinião, os maisrecentes estudos jurídico-antropológicos, agora que osprocessos de “antropologização” dasanálises empreendidas seintensificaram com a relativa“libertação” dos horizontes deproblematização que tal implica?Enumerarei uns poucos:(i) um sistema jurídico torna-se tãomais inteligível quanto mais oreinserirmos, por um processo dereconstrução racional, nos contextospolíticos, religiosos, económicos,culturais e sociais densos que são osseus;(ii) os processos a que aludi têmsempre de incluir duas tarefasinterligadas: por um lado, precisamos180 Ver, para vários exemplos representativos deoutras tantas frentes vivas de investigaçãocorrente, os estudos paradigmáticos que incluí naderradeira sessão da parte introdutória do programada disciplina de Antropologia Jurídica que apresentona última Parte deste trabalho.

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sempre aferir, e posicionar umas emrelação às outras, as categoriascognitivas utilizadas no exemplo sobescrutínio analítico, o que implicadelineações precisas dos domíniossemânticos de aplicação daquelas queirão ser manuseadas nos nossosprocessos de reconstrução racional emcausa; em segundo lugar, devemosensaiar uma “tradução” (porventurapor paralelismos analógicos) dessascategorias cognitivas nos termos deum sistema analítico que as modelizee nos permite vir a formulargeneralizações comparativas;(iii) por via de regra, os sistemasjurídicos são mais fáceis de estudarse nos empenharmos em análisespormenorizadas de procedimentos e“processos” no que diz respeito aosnossos objectos de investigação; e,(iv) dadas as exigências decontextualização que referi e tendoem mente as vantagens advenientes denos empenharmos em análisespormenorizadas de “processos”socioculturais densos, a utilizaçãode um extended case method constitui umprocedimento de “descoberta” e

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redunda numa estratégia quase semprepreferível.

A gama de questões sobre as quaisse devem debruçar os esforçosantropológico-jurídicos é, como seráóbvio, amplíssima. A suacircunscrição, no entanto, varia casoa caso. Apurá-la requer sempre manterem vista a “mecânica de manutenção”de uma ordem social, e também implicauma preocupação, tão poucoapriorística quanto possível, com umabusca de mecanismos e dispositivosmais ou menos “institucionais” quepreencham papéis regulares e“regulamentares” nas vias deconcretização desse esforçocolectivo. A determinação do tipo defunções preenchidas por taisdispositivos e mecanismos não podesenão ser lograda a posteriori; e devesempre ser baseada nas categoriascognitivas locais, na medida opossível devidamente “traduzidas”,para além de beneficiar se incluirrastreios tão pormenorizados quantoos consigamos delinear, das múltiplase multidimensionadas conexõessistémicas por norma em operação.

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De uma maneira muito genérica etão-só em termos de um esboço, cabe-me aqui, porventura, esquissar umpossível enquadramento para um estudodos tão complexos emultidimensionados ordenamentosjurídicos que a Antropologia temvindo a descrever e a pôr em relevo.Trata-se de sugerir um quadro deanálise (reitero, apenas tentativo eindicativo, e sem quaisquerpretensões teóricas de fundo) que nospermita abarcar, no seu conjunto,tanto quanto nos seja possível davariabilidade nos complexosnormativos com que deparamos.

Parece-me claro que váriosenquadramentos alternativos podem serutilizados, que preencheriam bem essafunção, desde uma perspectivação quedê realce à natureza funcional emaximizante dos princípios normativosa outras que, ao invés, frisem antesos aspectos dos sistemas jurídicosque estão mais atidos ao exercício deum poder. Ou, ainda, aquelas outrasque preferem pôr o seu foco empíricona dimensão essencialmente cultural

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dos sistemas jurídicos181, assim porconseguinte considerados comoentidades condenadas a umaintegridade normativa própria quelhes confira legitimidade.

Todas estas perspectivas têm asua razão de ser e encontram, napanóplia de exemplos empíricosrecolhidos pelos investigadores,algum bom fundamento. Mas nenhumadeles, ao que me parece, chega, porsi só, para recobrir um domínio tãocomplexo e variável como o dojurídico e da juridicidade. Cada umdeles, por si, aponta na direcção decontextos, enquadramentos, eeventuais motivações para a acção epara representações sociais; masnenhum nos permite circunscrever

181 Por uma questão de comodidade utilizo, naspáginas que se seguem, a palavra “Direito” comosinónimo contextual de “jurídico” e de “conjunto deprácticas dotadas de juridicidade”. Tenho plenaconsciência de que não é este, por norma, o quadrosemântico em que a dogmática jurídica o utiliza. Oseu uso neste sentido amplo é, no entanto, comum naSociologia, Antropologia e História do Direito,sobretudo naquilo em que o âmbito assim recobertoaproxima o termo do de law, no sentido maisabrangente deste último vocábulo, ou seja aquele emque muita da Filosofia do Direito e da Jurisprudenceanglo-saxónica o manejam.

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inteiramente um domínio dotado dascaracterísticas do que aprendemos,por analogia e intuição, a reconhecercomo o “jurídico” e a “juridicidade”.O que apenas significa que não serãoparticularmente convincentesexplicações monistas baseadas tão-sónuma delas.

Para retomar neste trabalhoaquilo que antes escrevi182, não serádecerto excessivo simplificarasseverando que tem havido trêsgrandes “famílias”, por assim dizer,de interpretações da naturezasociológica essencial do “jurídico”.Uma delas insiste em encarar sistemasjurídicos (Direitos) como entidadessocioculturais, nuns casos gizadas enoutros modificadas pela “tradição” epela cultura (cultura aqui na acepção182 Para esta divisão tripartida de predilecçõesteóricas quanto ao estudo dos Direitos (law),insisto que é útil a leitura do esplêndido artigo deS. Falk-Moore (2001, op. cit.: sobretudo pp. 95-99), otexto da Huxley Memorial Lecture proferida em 1999 naUniversidade de Manchester de que já falei. Discutoaqui a arrumação-modelização mais geral do queaquela que esta A. aí delineia. No que toca àdiscussão que se segue a essa tripartição, não querodeixar de notar que repito nas próximas páginas,ainda que com alterações bastante significativas,muito do que escrevi em Armando Marques Guedes(2004, op. cit.: 42-51).

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de uma colectânea de costumes,valores, hábitos e práticas, mantidosao longo do tempo). Trata-se de uma“leitura” de claros ecosdurkheimianos e weberianos, que hojeem dia tem sido retomada, como vimos,em investigações sócio-jurídicas tãodiversas como as de Clifford Geertz,Paul Bohannan, Norbert Rouland ouLawrence Rosen, por exemplo.

Uma outra destas famílias deinterpretações prefere encarar asfunções essenciais e o papel dojurídico como expressão de interessesde elites e dos poderosos, vendo-oantes como uma forma de dominação.Esta é uma leitura sócio-política deecos mais marxizantes, e tem sidoesgrimida por autores tão dísparescomo Pierre Bourdieu, Francis Snyder,ou a própria Sally Falk-Moore. Édeste tipo, para além disso, aperspectivação mais comummenteassumida pelos defensores dautilização de modelos analíticosditos “neo-patrimonialistas” paraexplicar as versões mais recentes dos“Estados pós-coloniais”(designadamente os africanos) e dolugar que neles o Direito ocupa.

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A terceira e última destas trêsperspectivas, é a partilhada pornumerosos juristas dogmáticos e émuito mais funcional e abstracta doque as duas anteriores. Nas suasvariantes sociológicas, convoca umaou outra das muitas versões do quetalvez possamos chamar umracionalismo institucionalista, porvia de regra concebido como dandocorpo a uma modelização de carizevolucionário. No essencial, estetipo de modelo de análise tende aencarar o jurídico (o Direito) comoum mecanismo racional desenvolvidopara minimizar conflitos e resolverproblemas interpessoais eintergrupais. A aplicabilidade destaperspectiva, também de ecosweberianos foi, como vimos, defendidapor Max Gluckman e pelos seusseguidores. E tende a ser a assumida,ainda que muitas vezes de maneiraimplícita, pelo grosso dosjuscomparatistas.

Como é evidente, dada acomplexidade patente num mundoempírico resistente a reconstruçõeslineares, estas três perspectivaçõesaparecem, na maior parte dos casos,

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profusamente interligadas umas com asoutras; apenas o doseamento de um ououtro dos ingredientes varia, no quetendem a ser análises compósitas quetomam os três factores (chamemos-lhescultura, poder, e coerência racional) emlinha de conta. Para as discutirneste estudo, abordá-las-ei a partirdaquelas duas que mais impacto têmtido nos estudos levados a cabo pelaAntropologia Jurídica moderna: aculturalista e a relativa ao poder.Quais são as implicações que decorremde uma perspectivação que entrevejaos sistemas jurídicos, ou asexpressões do jurídico, como parcelasde culturas, ou de uma outra que osvislumbre e decifre, antes, comoformas de exercício de um poder?

Progridamos por fases. Podemoscomeçar por notar, muitosucintamente, que sustentar qualqueruma destas duas perspectivaçõesoferece-nos três grandes e óbviasvantagens, de um ponto de vistasociológico.

Em primeiro lugar, encarar ofuncionamento empírico de cadasistema jurídico como fazendo parteintegrante da operação de uma cultura

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minimamente coesa (no sentidoespecífico de dotada de um módico decoerência), considerados como umdispositivo instrumental dedicado àobtenção de quaisquer vantagens porum qualquer grupo social, tornapossível que tomemos consciência dofacto de que “sistemas jurídicos”são, em simultâneo, sistemas de acçãosocial e sistemas de significação.Tal resulta facilmente da observação,que nesse quadro se torna evidente,de que um sistema jurídico(“ocidental” ou não, note-se aliás)dá sempre corpo a maneiras de tentarjuntar (e não se atém a merasestratégias de escolher entre)interesses sociais concretos esignificados culturais abstractos.Para além de empiricamente maisunitária e abrangente, uma observaçãocomo esta não é, de maneira nenhuma,um acquis neutro: bem pelo contrário,previne-nos de que, embora a suaoperação enquanto “conglomeradosnormativos”183 não seja decerto nunca183 Para uma discussão detalhada quanto ao conteúdoque atribuo a este conceito, ver Armando MarquesGuedes (2004, op. cit.: 19-51), em que o desenvolvi ediscuti no que diz respeito ao estudo dos Direitosafricanos contemporâneos.

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totalmente indeterminada184, sistemasjurídicos são sempre entidades comalgum carácter intrínseco deimprevisibilidade, por se tratar deentidades dotadas de uma forte dosede abertura.

Em segundo lugar, entreversistemas jurídicos enquanto entidades(por mais ou menos difusas que estaspossam ser), que dão corpo a formasculturais ou a mecanismos e formas doexercício de um poder, torna-nospossível começar a compreendê-los,descodificando-os: bem ou mal, este éum ponto de vista que corresponde,decerto, de algum modo àsexpectativas geradas pela “ideologiaespontânea” dos cidadãos comuns. Efá-lo ao insistir na detecção de umaespécie de lógica causal facilmenteinteligível, que seria possívelentrever como que por detrás deformulações que muitas vezes nosparecem ser “distantes” e estar“separados” da vida quotidiana por seencontrarem como que embebidas em

184 Discuti-lo levar-nos-ia para os meandros,fascinantes mas localizados para lá do âmbito desteestudo, dos limites da coerência normativa (e dacompletude) destes sistemas jurídicos.

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todo o tipo de formalidades eracionalizações.

Em terceiro lugar, oenquadramento dos “jurídicos” nasculturas ou, lato sensu, nas estruturaspolíticas locais (e este pontoresulta dos dois anteriores) tornapossível deslindar alguma da lógicainterna de práticas e teorias sociaisparticulares: as dos actores sociaisconcretos que estejam sob escrutínio.Conquanto seja seguramente possíveltratar estes dois grandes planos (onormativo abstracto e o experiencialconcreto) sem os articular um nooutro, interligá-los por via dacultura ou do poder acrescentaseguramente alguma inteligibilidade aambos.

Estes três níveis são, é claro,insisto, apenas separáveis uns dosoutros em termos analíticos; devemospor conseguinte tê-los todos sempreem mente no decurso de um qualquerestudo que estejamos a empreender.Mas enumerá-los não é gratuito,porque põe em evidênciadimensionamentos de fundo com algumgrau de autonomia entre si, para osquais importa explicitar as

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manifestações concretas. Mais aseparação destes três níveis operauma repartição funcional dos papéispreenchidos pelos tão complexosDireitos, o que nos facilita oesforço imprescindível de localizaros lugares sociais que eles caso acaso efectivamente ocupam.

11. OS PAPÉIS SOCIAIS DO “JURÍDICO” E DAJURIDICIDADE

Será então um qualquer formato dejuridicidade (insisto, ocidental ououtra) verdadeiramente redutível auma mera forma de expressão culturalou a um simples exercício do poder?Como vimos, no plano metodológico eepistémico, parece-me que a respostaa esta pergunta deve ser negativa.Não é, também, particularmentedifícil conseguir equacionar aquestão a um nível mais técnico-sociológico. Basta, para isso,esmiuçar um pouco os pressupostosintrínsecos (e muitas vezes tácitos)que subtendem tais correspondênciasredutoras.

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Julgo fundamental frisar que háum número de conexões diferentes(articulações que é essencial saberdistinguir) que se escondem pordetrás do postulado aparentementeunívoco e pouco problemático segundoo qual Direitos, ou sistemasjurídicos, seriam parcelas deculturas ou de sistemas de poder.

Um mínimo de atenção revela-nosque afirmá-lo pode querer significarcoisas bastante diferentes umas dasoutras. E alerta-nos para o facto deque não deve haver confusão entreestes vários sentidos (em abstractotão independentes uns dos outros) quese escondem por trás das relações quepossamos querer afirmar existir entreum tipo de juridicidade e aconfiguração de um sistema jurídico,por um lado, e por outro uma culturaou uma estrutura de poder185.

Cabe aqui cartografá-las. Quandoequacionamos um sistema jurídico euma cultura, ou uma forma de poder,185 Numa colectânea que já citei, que integra artigosde qualidade desigual, (eds.) J. Starr e J. Collier(1989) agregaram uma série então novasperspectivações pragmáticas, numa tentativa derenovação dos estudos antropológico-jurídicos.

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podemos estar a afirmar,alternativamente186,(i) uma definição do jurídico (ou doDireito, se se preferir) segundo aqual um instituto, ou instituiçãojurídica, se torna legítimo se e sóse for apontado na direcção de umafinalidade ou de um interesse ou objectivocultural ou político;(ii) uma definição de sistemajurídico segundo a qual um instituto,ou instituição jurídica, se tornalegítimo se e só se for motivado porpreocupações ou quaisquer outros

186 Retomo aqui, com algumas alterações, aquilo queescrevi num artigo relativo aos sentimentos dejustiça em Macau sobre a natureza “cultural” doDireito (law) e depois repeti a propósito do estudodos Direitos africanos contemporâneos. Em termosmuito semelhantes aos que utilizo nos próximosparágrafos, distanciei-me então das perspectivasculturalistas enraízadas naquilo que S. Falk-Moore(2001: 96) tão graficamente intitulou “the elementaryforms of social unanimity” (Armando Marques Guedes,2003b). Insisto, como antes fiz, que asistematização de alternativas que aqui exponhosegue de perto os termos formais da discussãobrilhante de Steven Lukes (1973: 417-418) quanto àsconceptualizações de Émile Durkheim relativas ao queeste apelidou, ao bom estilo oitocentista francês, a“éducation morale”. O meu ponto focal, no entanto, émuito diverso, e guardo das formulações de Lukestão-somente o espírito geral.

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sentimentos culturais, ou por motivaçõesou motivos políticos;(iii) uma definição de sistemajurídico segundo a qual um instituto,ou instituição jurídica, se tornalegítimo se e só se for política ouculturalmente prescrito e/ou congruente comas ideias e os valores do grupo socialem tem assento e vigora, ou compatívelcom as agendas e as finalidades de um oumais dos grupos sociais em presença;(iv) a alegação de que uma cultura ouum sistema de poder (ou, talvezmelhor, um contexto social),constitui uma precondição para aexistência (seja ela um prerequisitoconceptual, uma exigência prática, ouambas as coisas) de um dado institutoou instituição jurídicos; ou,finalmente, e numa versão maisabrangente e ambiciosa,(v) a hipótese empírica segundo a qual aadesão a um sistema jurídico (queincluiria a atribuição de legitimidade avalores e bens jurídicos específicos,e envolveria subordinação ousubmissão, sejam elas resultado dedeferência ou acatamento, explícitos ouimplícitos, em relação a decisões deuma autoridade soberana particular ou

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a um poder constrangente) é algosocialmente determinado; e, comocorolário disto, o preceito metodológicode que o sistema jurídico em causapode ser explicado nesses termos.

Todos os pontos enumerados sãodefensáveis e em vários momentos têmsido advogados por diversos autoresque sobre este género de questões setêm vindo a debruçar. Qualquer umdeles pode ter uma enorme utilidadeanalítica. Para todos eles se podeinvocar alguma boa fundamentação. Masdiferem imenso uns dos outros nasimplicações que geram.

Repito: visto que as resultantesda interacção entre significações einteresses são sempre tãoimprevisíveis, quaisquerinterpretações estreitas de sistemasjurídicos ancoradas num seu eventualajustamento substantivo em relaçãoseja a um sistema de poder seja a umacultura, acabam por ser,inevitavelmente, ao mesmo tempoinsuficientes e excessivas.Argumentar que um certo tipo de“jurídico” equivale apenas a meraexpressão de uma cultura, ou de umaforma de poder, implica que assumimos

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que os cinco tipos de relações quepostulei tenham pesos idênticos, nosentido de que indicaria queconsideramos que todas elas seajustam, igual e simultaneamente, aosfactos empíricos observáveis. O quenem sempre será o caso, como é fácil(mesmo se apenasimpressionisticamente) de verificar.Nem parece compatível (ou sequercongruente) com a complexidadeestrutural e o multidimensionamentoetnográfico patentes nasvariadíssimas formas assumidas pelojurídico, nem com a fluidez defronteiras que, como vimos, as (e o)caracterizam.

Significa isto que não devemosdeitar fora o bebé com a água dabanheira. Ou que, por outraspalavras, as equações entre poder eDireito, ou entre cultura e jurídico,nunca são senão parte da verdade. Masuma fracção dela serão: explicam,seguramente, uma parcela dosordenamentos normativos complexosque, ainda que tão-só por nelesdetectarmos uma semelhança defamília, como iremos verificar comfacilidade reconhecemos preencher

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funções definíveis como “jurídicas”ao vislumbrarmos, ainda que derelance, que estão dotados dejuridicidade.

De um ponto de vista sociológico,em que ficamos, então? Se olharmos ascoisas de um ângulo mais pragmático,estou com estas reticências ainsistir em dois pontos fundamentais,que como tivemos a oportunidade deverificar foram de resto muitíssimobem enunciados por dois antropólogosjurídicos já abundantemente citados,Sally Falk-Moore e Lawrence Rosen.Por um lado, estou de algum modo afazer eco à posição de Lawrence Rosenquando este asseverou que a análisede um qualquer sistema jurídico“requires at its base an understanding of thecategories of meaning by which participantsthemselves comprehend their experience andorient themselves toward one another in theireveryday lives”187. Como atrás escrevi, se187 L. Rosen (1989), op. cit.: xiv. Clifford Geertz(1983, op. cit.: 175), num espírito semelhante,afirmou que “any legal system that hopes to be viable mustcontrive to connect the if-then structure of existence, as locallyimagined, and the as-therefore course of experience, as locallyperceived, so that they seem but depth and surface versions of thesame thing”. Regressarei a este ponto (e a estacitação) na Parte VI deste Estudo.

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bem que neste concorde com Rosen eGeertz, parece-me que devemos ir maislonge: não chega atermo-nos a umaformulação culturalista “interna”,por assim dizer; uma formulação quesugere um enquadramento analítico queaponta para uma preferência pornoções como as de adequação,afinidade, ou ajustamento, seja comofor que adjectivemos estes termos.

Estou assim também, por outrolado, a tentar escapar a este ângulode visão tão profunda e puramentefenomenológico. Faço-o vestindo aperspectivação culturalista com umaindumentária (por assim dizer) maispragmática. Como iremos ver nosexemplos etnográficos em que me voudeter e sobre os quais me ireidebruçar, prefiro um plano“pragmático” (no sentido técnico-linguístico do termo) não muitodiferente do das famosas “fabrications”de Sally Falk-Moore: a ideia de quedecisões normativas, seja qual for asua natureza e apesar de o fazerem emquadros culturais pré-existentes, sãosempre também moduladas por inovaçõeslevadas a cabo enquanto “exploitations ofconventions”, mais ou menos utilitárias

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ou teleológicas, suscitadas emcontextos de “engagements”específicos, conjunturais econcretos, entre actores sociais. Umaoutra formulação, complementar masdiferente das de Geertz e Rosen,desta feita com afinidades comideias-mestras como a de utilidade, ade instrumentalidade, ou até a demanipulação.

Faço-o porém, por outro ladoainda, sem descurar os óbvioselementos de coerência interna e de“obediência sistémica” que, mesmo sede maneira fragmentária e pejada deincompletudes várias, sistemasjurídicos nunca deixam de exibir.Muito há, em todas as formas do quereconhecemos, por “semelhança defamília”, como relevando do jurídicoe da juridicidade, que também temessa dimensão, weberiana se sequiser, essa vertente de mecanismoracionalizador, de dispositivo que,pelo menos em termos funcionais eoperativos, está vocacionado para aminimização do impacto de conflitospessoais e sociais, actuando comoinstrumento eficaz na resolução detensões e disputas por intermédio de

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um consenso retórico formalmentedesenhado para resistir a contra-argumentações provindas dos quadrosculturais em que são produzidos.

Decorre de tudo isto a implicaçãoincontornável de um alto grau decomplexidade na textura do jurídico eda juridicidade. Uma manifestaçãosocial cuja natureza reconhecemoscomo “jurídica”, quero nesses termosinsistir, é sempre mais inteligívelse encarada, em simultâneo, como sendouma forma de expressão cultural, comodando corpo a formas de dominação epoder, e se vista também enquantoentidade vocacionada para expressarmecanismos racionais virados para aresolução de problemas concretos. Umapostura como esta, exprime umaperspectivação que sou tentado aapelidar de construtivista188.188 Os antropólogos notarão que estou a ir mais longedo que estaria se se tratasse de meramente insistir,ecoando Marcel Mauss, que todos os factos sociaissão “factos totais”. É também minha intençãoformular aqui uma asserção teórico-metodológicaespecífica quanto à caracterização essencial (porassim dizer) de fenómenos que, como o “jurídico”, meparecem partilhar com os rituais uma dimensãocomunicacional particular que os posiciona alguresentre a linguagem e a acção, acumulando propriedadesde ambas. Para um maior desenvolvimento deste ponto,ver Armando Marques Guedes, 2004, op. cit.: 18, nota

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Embora possa não o parecer, umaopção sincrética como esta nãoredunda num empobrecimento resultantedo recurso a um menor denominadorcomum, pois não significa nenhumaredução; bem pelo contrário,caracteriza-se por acrescentos. Éporém evidente que assumir umapostura metodológica desta ordem nãose salda, no plano heurístico, noestabelecimento de um unitarismoanalítico muito forte, visto quetanto a mecânica postulada como adinâmica dela resultante presumem apresença actuante não de um factormas antes de um conjunto deles. Umconjunto de factores, ademais, cujascaracterísticas são mais descritivasdo que analíticas.

Trata-se todavia de gizar econstruir um degrau que nos oferece a

3, em que equaciono algumas das consequênciasmetodológicas desta minha perspectivaçãolinguístico-pragmática (no sentido de“performativa”) sobre o “jurídico” e as expressõesde juridicidade (incluindo as estaduais). A questãoconstitui um dos temas nucleares que desfio noterceiro e último dos exemplos que estudo na ParteeV do presente Estudo, relativo à institucionalizaçãoda intrepretação pública e colectiva dos sonhospelos Atta.

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possibilidade de facilmente articular(seja quais forem os termos em queprefiramos fazê-lo) os “jurídicosvigentes” com os processos dedefinição dos nexos de relaçõessociais de que fazem parte e formamparcela. Mais do que se veremdefinidos, os vários Direitos, osdiversos sistemas jurídicos, destaperspectiva, vêem-se contrastados entresi: distinguem-se em larga medida unsdos outros pelo doseamento relativodos três ingredientes queidentifiquei e pela dinâmica, semprevariável, da sua interacçãorecíproca189.189 Enquanto alguns antropólogos desesperam com osobstáculos, outros encontram neles fontes dedivertimento e iluminação. Assim, Étienne Le Roy(1999), um investigador francês que dirige oLaboratoire d’Anthropologie Juridique de Paris, na Sorbonnepropôs uma análise fascinante da “dinâmica” dossistemas sociais, e do lugar, neles, do droit,comparando-os com um “jeu de l’oie” (que apelidou de “jeude lois”), um Jogo da Glória. Numa análise que,segundo ele, se deve dividir sempre por níveisencadeados uns nos outros, os jogadores (os sujeitossociais) progrediriam, neste “jogo jurídico”, de umaprimeira casa constituída pelos “estatutos sociais”,até uma décima e última, intitulada “regras dojogo”. As casas sucessivamente transitadasincluiriam as “escalas” (échelles), os processos, osfora, os “enjeux” e as “ordens sociais”. Umaperspectivação, que só me ocorre caracterizar comoestrutural-wittgensteiniana, curiosa e muito rica em

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Ao nível do seu potencialconstrutivista, este tipo de esforçoé também (e por conseguinte),seguramente dotado de um alcancemaior. É-o no sentido em que nospermite ultrapassar algumas daslimitações habituais nasconceptualizações empreendidas sobreo jurídico e a juridicidade,designadamente a convicção de que um“sistema jurídico” de algum modosimplesmente reflecte e corresponde aosvalores e sentimentos de umacomunidade.

Decerto que para todas ascomunidades tal é verdade, emboranalguns casos o seja mais do quenoutros, em todos os casos o sejamais para os sentimentos e valores deuns do que os de outros dos seusmembros, e em nenhum caso, paranenhuma comunidade, tal seja tudo oque um sistema jurídico faz. Como numestilo inconfundível declarouClifford Geertz190, “law, rather than a mere

potencial. A hipótese de uma “théorie ludique du droit” édiscutida em detalhe em François Ost e Michel van deKerchove (1993).

190 Clifford Geertz (1983, op. cit.: 218). A citação foiextraída do longo artigo sobe Local Knowledge, a que já

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technical add-on to a morally (or immorally)finished society, is, along of course with a wholerange of other cultural realities from thesymbolics of faith to the means of production, anactive part of it. Haqq, dharma, and adat…ius, recht and right,…animate thecommunities in which they are found (that is, thesensibilities they represent do): make them – againwith a great many other things and to differentdegrees in different places – what juristically, ifyou will permit, humanly if you will not, they are.Law, even in so technocratized a variety as ourown, is, in a word, constructive; in another,constitutive; in a third, formational”. Mais doque se esgotar em meros reflexos, ojurídico gera, no interior mesmo dascomunidades, imagens vividas devalores, de categorias de pessoas, demotivações, de vontades, de deveres,de comportamentos, que acompanham aacção dos actores sociais, e osenformam activamente no processo191.

fiz alusão, e que inclui o texto de três Storrs Lecturesque, em 1981, Clifoord Geertz apresentou na Yale LawSchool.

191 Parece-me, a este outro nível, que não deixa deser útil uma leitura sociológica compósita como aque sugiro, visto que permite resolver alguns dosproblemas com que deparam as generalizaçõesindutivas que a Antropologia Jurídica éprogramaticamente levada a formular. Já que a

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O potencial analítico deste novopatamar de complexidade parece-meóbvio, apesar de não ser de fácilexploração. Quero em todo o casosublinhar que um tipo de leitura comoaquela que proponho não nos conduz,nem inevitável nem inexoravelmente,no sentido de uma qualquer reificaçãohipostatizada de um “Ur-jurídico”enquanto entidade ontológica prévia,de que reconheceríamos amultiplicidade de manifestaçõesempírico-etnográficas vendo nelassemelhanças e denominadores comunsque de algum modo trairiam a suapresença imanente. Menosambiciosamente, a posiçãometodológica que sugiro limita-se aindicar a óbvia utilidade analítica

unidade sintética e a decomposição analítica queproponho para o seu estudo nos tornam viável encará-las, num sentido forte, como sendo entidades relacionaise não essencialistas. Trata-se de uma postura que,para além do mais, torna possíveis análises tãodetalhadas quanto se queira das formas assumidaspelo jurídico que o repõem, com toda a firmezaanalítica, nos seus âmbitos próprios, que são os doslaboriosos, complexos, e tantas vezes altamentecontestados, relacionamentos sociais verificáveis aonível etnográfico (designadamente político-institucionais e socioculturais) que, numa qualquerconjuntura, se vão estabelecendo.

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de denotar por intermédio de um termocomo esse domínios de práticas erepresentações que, apesar de seremcomo vimos etnograficamentevariáveis, mantém contudo relações,patentes em todas as sociedades, comoutros domínios, (também elespensáveis como sujeitos a variações enão reificados) como o “económico”, o“político”, o “religioso”, o“cultural”, ou o “social”.

Entre outras coisas, tal implicaque a definição do “jurídico”, numaqualquer sociedade, nunca seja umaquestão inteiramente intra-“legal”, ede facto raramente o é senão demaneira efémera e marginal. Oproblema principal suscitado pelosimples facto de estarmos perante apresença de uma juridicidade, sejaqual for a sua forma e o seu veículo,ou correia de transmissão, é por issosempre o de saber como posicioná-lono contexto de outras modalidades deacção e actividade sociocultural, ode lograr encontrar o seu lugar deincorporação na textura dinâmica deum determinado padrão de vida. É essainserção que lhe dá um sentidocultural reconhecível pelos actores

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sociais e o torna num instrumento poreles manipulável. Estende-se ao“jurídico” uma variedade do mesmotipo daquela que nos comprazemosdesde há muito a reconhecer nascrenças e nas práticas religiosas erituais, nos sistemas e estruturas deparentesco, nas formas de organizaçãopolítica ou económica, ou nas formase sistemas de classificação; devemosencará-los não só como formatos econfigurações, insisto, mas tambémcomo visões do Mundo e como formas denele estar que configuram, e a quedão corpo e substância etnográficaconcreta.

Em paralelo com o que C. Geertz192

com tanta lucidez sublinhou no quediz respeito ao carácter de “sistemacultural” da Arte, é a ausência deconsciência disso que leva muitosanalistas a afirmar que os actoressociais das “sociedades primitivas”não falam do jurídico, ou a ele nãose referem tanto como “nós”. ComoGeertz astutamente notou193, etransponho aqui de contexto as suas192 C. Geertz (1983, op. cit.: 97 ss.).

193 Ibid.: 97.

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palavras, “what is meant is that they don’t talkabout it in the way the observer talks about it – orwould like them to – in terms of its formalproperties, its symbolic content, its affectivevalues, or its stylistic features, except laconically,cryptically, and as though they had precious littlehope of being understood”. O facto étodavia que muitos são os actoressociais que em todas as sociedades sepreocupam com a juridicidade; masque, ao contrário dos ocidentais“modernos”, o levam a cabo como ofazem com tudo aquilo que integra assuas vidas: em contexto.

Deparamos aqui com algumas dasdificuldades de comparação suscitadaspelo novo tipo de complexidade quedefrontamos. O uso do termo“jurídico”, neste sentido, salda-seem pouco mais do que numaqualificação contrastiva, e tão-sóoperacionalmente conveniente, defeixes de relacionamentos sociais ede representações culturais, dealguma maneira próximas dosrituais194. Não deixa, por isso, de se194 Para repetir o que antes afirmei, providenciandoalguma elaboração secundária: parece-me claro que alocalização das expressões do jurídico e dajuridicidade tal como aqui entendo estes termos, osposiciona algures entre as palavras e a acção.

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revelar imprescindível para (aindaque só retrospectivamente) sabermosdesenvencilhar, distinguindo-as umasdas outras, modalidades de nexos dearticulações que com utilidadereconhecemos como estando, num ounoutro formato específico, presentesem todas as sociedades humanas: aabordagem “europeia”, que não datasenão dos finais do século XVIII,cega-nos quanto à própria existênciados dados empíricos sobre os quaisuma eventual comprensão comparativa

Partilharão, assim, muitas características de fundocom os rituais, uma outra categoria sociológica que,na definição hoje em dia clássica de Edmund Leach(1954) é conveniente conceber como aludindo à“dimensão comunicacional” da vida social,constituuindo por isso não um tipo separado decomportamento, mas um aspecto da padronização detodos os comportamentos colectivos. Por outro lado,porém, ao contrário dos rituais, cujos desenlacessão previsíveis, o jurídico e a juridicidade paecem-me efectivamente próximas de noções como a de“jogo”, neste contexto salientando aimprevisibilidade relativa que, como Claude Lévi-Strauss famosamente sublinhou há uma quarentena deanos, jogos geram quando contrapostos a ritos. Umponto a desenvolver. Noto, em todo o caso, que aninguém ocorre opor-se à ideia (considerando-a, porexemplo, abusivamente etnocêntrica) de que todas associedades têm jogos ou rituais. No último exemploetnográfico que providencio na Parte V do presenteEstudo afloro, ainda que apenas de maneiraimplícita, estas questões.

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do jurídico e da juridicidadepoderiam ser elaboradas.

Não se vislumbram quaisquervantagens na hipótese alternativa, ade reservar, em regime deexclusividade, o uso do conceito paraapenas alguns tipos de sociedade (eporventura tão-somente a “ocidental”,e à la limite esta apenas na sua versãomais contemporânea)195. Em boaverdade, não carece de demonstração aevidência de que ao jurídico, no“ocidente” de hoje, cabe sem dúvidaum papel em vários sentidosmuitíssimo diferente daqueles quenoutros tempos e noutros lugaresforam os seus. É difícil contudoperceber que seja necessário arrumá-lo numa categoria normativa esociológica inteiramente distinta detodas as outras para que consigamosreconhecer tal tão evidente facto.

Parece patente e manifesto, porexemplo, que os meios de uma

195 A não ser, é claro, que façamos questão desublinhar mais uma diferença hierárquica; o queacaba, em última instância, ou por se saldar naprodução de mais um grau de incomparabilidade, oupor exigir, para a assegurar, uma adesão a modelosevolucionários grosseiramente especulativos.

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juridicidade e o sentido da vida queos anima são em última instânciafactos radicalmente inseparáveis umdo outro, sob pena de nos condenarmosa os não compreender. É tão absurda ahipótese de que se possa lograr umentendimento do jurídico e dajuridicidade com uma concatenação deformas puras ou depuradas como aseria a convicção descabida de queserá possível decifrar uma expressãolinguística nos termos estritos eestreitos de uma colecção devariações sintácticas, e as relaçõesde parentesco ou os mitos como umconglomerado mais ou menos aberto(ou mais ou menos fechado) detransformações lógico-formais que seorquestrariam a elas próprias numespírito humano para o efeitoreificado. A juridicidade e ojurídico podem ser melhorcompreendidas enquanto entidades querecebem e atribuem sentidos: e isto coma dupla conotação de que se trata dedispositivos eivados de significados (eportanto passíveis de análisessemiológicas) e em simultâneo deindicadores de direcções (o que, porsua vez, os remete para análises

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pragmáticas). Um ponto teórico-metodológico de fundo a que ireiregressar na próxima parte desteestudo.

Será seguramente mais fácil exporas coisas por outras palavras: ahipótese que aqui exponho, a de que a“recuperação” da noção comparativa de“jurídico” possa com vantagens sertratada como um processo indutivo eintuitivo (no sentido em que aquiutilizo, emparelhando-os, estes doistermos, ou seja como oreconhecimento, por relance, de umasemelhança de família) e não umprocesso reflectivo (ou seja, que, noseu processo de reconstruçãoracional, a indução-intuição não sejanecessariamente substituível por umargumento), apenas significa que umanoção como esta nem sempre éredutível a uma ideia conversacional,no sentido de extra-contextualmentereferenciável: pode, em muitos casos,tratar-se de construir, por um saltoindutivo generalizante, uma entidadetão-só convencional, que em simultâneopreencha as funções explanatórias quelhe sejam atribuídas, e dê conta dassemelhanças de família detectadas

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entre todos os casos etnográficosconhecidos, uma vez tomadas em linhade conta tanto a variabilidadecultural conjuntural de que é dotadaquanto a concomitante variabilidadesocial que tão fascinante eobviamente exibe.

12. UM CURTO EXEMPLO PARADIGMÁTICORELATIVO ÀS FILIPINAS

Tudo o que escrevi pode parecermuito interessante, mas trata-seseguramente de teorizações bastanteabstractas e rarificadas, que são porconseguinte porventura poucotangíveis de um ponto de vistaempírico. Sem querer entrar por oraem grandes detalhes, cabe aquiinserir um exemplo paradigmático dapertinência, da urgência, e doalcance destas deambulações daAntropologia Jurídica, providenciandonum primeiro passo uma ilustraçãoetnográfica que em simultâneo ponhaem evidência algumas das dificuldadescom que em termos muito concretosefectivamente deparam quaisqueranalistas antropológico-jurídicos,

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hoje como ontem apostados em reter olegado comparativista que viabilizageneralizações de fundo empiricamentefundamentadas.

Na curta ilustração que se seguetoco tão-só algumas das dificuldadesde delimitação de fronteiras nasexpressões locais de juridicidade. Emexemplos subsequentes abordo váriasoutras das questões que susciteinesta Quarta Parte do estudo. Porcomodidade atenho-me a um casoproveniente de uma das minhaspróprias investigações de terreno:neste primeiro passo etnográfico,afloro assim brevemente questõesrelativas ao domínio difuso do“jurídico” entre os Atta dasFilipinas, um grupo etnolinguísticode caçadores-recolectores com quempassei trinta meses entre 1979 e1982196.

196 Mais à frente no presente Estudo, ao retomar adiscussão de outros aspectos da “vida jurídica” dosAtta, reato com alguns dos pormenores relevantes dasua organização social, que nesta subsecção apenastoco ao de leve. Nas páginas seguintes sigo de pertoaquilo que escrevi, num contexto muito diferente, emArmando Marques Guedes (2003a: 35-37). O meuargumento não corresponde inteiramente, no entanto,ao que aí expendi, já que lhe acrescentei um passosuplementar, que aqui me pareceu imprescindível, que

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Uma rápida introdução. Os Attasão caçadores-recolectores nómadasdas Filipinas que nomadizam pelosvales e encostas densamenteflorestadas do extremo nordeste daCordilheira Central, no norte da ilhade Luzon. A sua movimentaçãoresidencial é incessante. Asinterrupções não são mais do queparagens temporárias em pequenos emuito fluidos acampamentos. Entre osAtta não são reconhecidos quaisquerchefes, quaisquer clãs ou linhagens,ou sequer verdadeiras parentelas. Nemsequer há reais hierarquias sociaisestáveis e formais, que não asligeiras diferenciações contextuais econjunturais baseadas no sexo ou naidade relativa que as pessoas porvezes operam entre si. Os Atta sãobons representantes dos váriosagrupamentos vigorosamenteigualitários de caçadores erecolectores197 contemporâneos, a quemcreio demonstra a juridicidade implícita no conceitoAtta de djikko’.

197 Para uma discussão pormenorizada dascaracterísticas distintivas deste grupo desociedades (de caçadores-recolectores) e o seuigualitarismo radical e peculiar, o trabalho teóricofundador é o de James Woodburn (1982), “Egalitarian

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todas as desigualdades estatutáriastendem a repugnar.

Num meio relacional como este,tribunais, “conselhos de anciãos”,“colégios de representantes”linhagísticos ou de parentelas, tantoquanto quaisquer outros mecanismosformais mais ou menos hierarquizadosdedicados ao encaminhamento e àresolução de conflitos (as famosasdispute institutions dos antropólogosjurídicos anglo-saxónicos) são, naprática, social e culturalmenteimpensáveis. Para além disso, os Attanão dispõem de nenhum termo (nem, deum qualquer outro modo, têm oconceito) de “lei”, ou sequer“normas, regras ou regulamentos”; ou,pelo menos, tais conceptualizaçõesnão existem num sentido “mundano”, ou“profano”. Formam, no entanto,comunidades muitíssimo amistosas epacíficas. Como? Há várias razõespara tanto.

Podemos começar por notar, comalgum cuidado, que não há entre osAtta, enquanto nómadas e caçadores esocieties”, Man 17 (3): 431-452. Em Armando MarquesGuedes (1997), discuti muitas das questõessuscitadas pela modelização de Woodburn comreferência à etnografia Atta.

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recolectores, muito a que se possachamar “propriedade”, e por issopoder-se-ia argumentar que há nãomuito sobre que “litigar”. Enquantocaçadores-recolectores, os Attavivem, de facto, de uma apropriaçãodirecta de produtos naturaisespontâneos e por conseguinte podemandar bastante livremente de um ladopara o outro numa espécie deecosistema-supermercado: o que, comoverificámos, efectivamente fazem. Osagrupamentos de co-residentes mudamconstantemente de lugar (em média,cada 4 ou 5 dias) e, o que é crucialnos termos deste meu exemplo, osindivíduos estão sempre a mudar deacampamento – numa visão gestaltistado todo, os agrupamentos locais deco-residentes estão sempre numaespécie de estado de “fluidez” de“fluxo”, no sentido de serem dotadosde uma composição social muitíssimopouco permanente.

Como será fácil imaginar, tudoisto é magnífico no que toca ao“processamento” de disputas. Namaioria dos casos, conflitos nãochegam sequer a eclodir, já quepessoas em situações de tensão

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recíproca pura e simplesmente seevitam umas às outras: votam com ospés, por assim dizer, mudando deacampamento. Conflitos abertos são emresultado de tudo isto raros, e aviolência interpessoal é raríssima.Como irei argumentar mais à frenteneste estudo198, práticas deinterpretação pública e colectiva desonhos e séances de possessão porespíritos também preenchem a suaquota-parte no atenuamento detensões.

Mas então e o que significalocalmente “justiça”, como operam a“retribuição” e o “castigo”, quandoeventuais transgressões de factoocorrem? E o que quer dizer, numcontexto deste género, uma“transgressão”?

Os Atta efectivamente utilizamdois conceitos alternativos paradenotar comportamentos perigosos ouproibidos (e por isso, do ponto devista deles, “castigáveis”): o que198 Seria um erro pensar que o exemplo que se seguecorresponde a um caso isolado e atípico. Para uma demuitas etnografias paralelas, ver o estudo de KirkEndicott (1986), sobre a ausência de uma qualquerterminologia “jurídica” formal entre os Batek De’,um grupo Semang da Malásia peninsular.

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apelidam de liwa’ e aqueloutro a quechamam djikko’.

Sem querer entrar em detalhes,que aqui seriam descabidos, emrelação aos meandros da semânticaAtta, bastará asseverar que nenhumdestes dois conceitos é facilmentetraduzível. Não deixa, no entanto, deser possível conseguir boasaproximações. Liwa’ parece estar comoque a meio caminho entre “erro”,“malfeitoria” e “pecado”, e é termoutilizado em contextos empíricos quevão da má educação e das pequenasfalhas “protocolares” na partilhasdas omnipresentes mascas de noz debétel à falta de destreza na caça comarco e flecha, ou às infracções daregras de etiqueta (assaz informais)associadas a visitas entreacampamentos. Trata-se assim de umconceito bastante inteligível danossa perspectiva. “Infracções” liwa’podem dar azo a retaliações que vãode críticas ligeiras a mexericos eboatos, até ao evitamento sistemáticode co-residência num acampamento como “culpado”. Mas raramente redundamem mais do que isso.

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O vernáculo djikko’ levanta muitomaiores problemas de interpretação-conversão. O referente primário doradical embutido na palavra (quetambém aparece, por exemplo, na forma“verbal” Atta madjikko’) é fácil detraduzir como “viscoso”, ou, talvezmelhor, “pegajoso”. Assim,designadamente, a seiva arbóreavermelha de que os Atta fazem usoabundante na fabricação de flechas decaça é (ou causa) madjikko’; tal como,aliás, o é o veneno utilizado nasflechas, ranho, sémen, ou quaisqueroutras substâncias aderentes oupastosas.

Em contextos mais amplos,todavia, o âmbito semântico do termodjikko’ parece roçar noções como a de“seriamente proibido”, “crime”,“tabú”, ou mesmo até qualquer coisada ordem de “Violação Grosseira daOrdem Cósmica em Vigor”. Como tal,conota acções ou práticas tidas comoparticularmente perigosas, e que porisso mesmo somos supostos devercuidadosamente evitar. Maisinteressante (e é esse o meu pontoprincipal com este exemplo) oconceito de djikko’ é imensamente

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revelador no que diz respeito àsligações de fundo que os Attapostulam como adequados entre (estestermos são obviamente meus e nãodeles) “crime” e “castigo”.

Alguns rápidos exemplosetnográficos ilustram bem, ao quecreio, precisamente isso. É djikko’,por exemplo, manter relações sexuaiscom os seus próprios pais ou irmãos,ou ainda misturar culinariamentecarne de laman (javali) com sibanglan(as folhas tenras de um feto arbóreocomestível); é também djikko’ deixar umcão de caça deitar-se na plataformade um abrigo, ou que as pessoas tomembanho nos rios da floresta, ou comam,na altura do nascer ou do pôr do sol,momentos em que os anitú (como iremosver, as “almas boas”) gostam de andarpelos arredores; é ainda djikko’,curiosamente, mostrar os dentesdurante uma trovoada. Transgredir umqualquer destes djikko’, insistem osAtta, desencadeia consequênciasabsolutamente catastróficas.

Mas consequências também,estruturalmente muito interessantes.Basicamente, segundo os Atta, podemem resultado acontecer três géneros

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de coisas: o mar pode transbordarpela terra adentro, galgando oscampos de arroz das terras baixas esubindo velozmente pelos leitos dosrios das montanhas alagando afloresta; em alternativa, o afu kila’(literalmente, o “Senhor Relâmpago”)pode “morder”, descendo sinuosamentedos céus e atingindo as pessoas ondequer que elas estejam; ou,finalmente, o chão da floresta podeabrir-se, fazendo jorrar torrentes deágua a esguichar para cima edestruindo tudo no seu caminho. Emtodos estes casos, se não tivermosmuita sorte, morreremos.

Deixando por ora de lado asóbvias conexões entre o “religioso” eo “jurídico” a que representaçõesdeste tipo dão corpo, não énecessária uma grande dose de atenção(ou astúcia) para constatar aemergência de um padrão nítido: tudose passa como se, para os Atta,juntar entre si coisas que deveriam,na ordem cosmológica normal, sermantidas bem separadas(designadamente, parentes próximos emrelações incestuosas impensáveis, ouporcos bravos e fetos, cães e casas,

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risos e trovões, ou humanos eespíritos, para me cingir tão-só aosmeus exemplos anteriores), ou seja,associar indevidamente coisas separadas,resulte, de maneira assaz mecânica,em efeitos curiosamente semelhantes,mas desta feita na ordem natural.Estabelecendo pontes entre algumasdas mais importantes divisões econtiguidades existentes no plano dasrepresentações cosmológicas maisbásicas dos Atta, o “mar” acaba emconsequência por se misturar com a“terra”, o “céu” liga-se de formamalsã com o “chão” ou, inversa massimetricamente, o “mundo de baixo”conecta-se com o “céu” que estáacima.

Note-se que “crimes” e“castigos”, neste tipo de“jurisdição”, são no essencialentidades, senão isomorfas, pelomenos pensadas em relação dehomologia uma com a outra. E,porventura apropriado no que dizrespeito à “juridicidade” dos djikko’(que, poder-se-ia argumentar, deoutro modo relevariam apenas da“religiosidade popular”, no sentidode que se cingiriam ao meramente

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“simbólico”), os Atta muitas vezesnão esperam pelas punições simétricascosmicamente desencadeadas pelo afu nanamaratu 199 e, de algum modopreemptivamente tomando a justiça nassuas próprias mãos (e como se com umacuriosa preocupação austiniana de“legalizar” o “religioso”,juridificando-o), agem sobre os“culpados” ora cortando-os em rarosactos de agressão física levada acabo com machetes, ora ostracizando-os (e portanto separando-os da vidacomunitária dos acampamentos, aindaque temporariamente). Num como nooutro plano, em termos “religiosos”ou “jurídicos”, as simetrias internase as ressonâncias que se fazem ouvirsão manifestas, mesmo numa primeiraabordagem superficial dos conceitos“jurídico”-normativos Atta.

Não quero de momento estender-meem elucubrações sobre o eventualalcance e significado deste exemplo.Na Parte V, que se segue, regressareiao caso Atta. Mas não posso deixar de199 Literalmente “o Senhor fazedor” que “construiu a“terra”, o “céu”, o “mar” e o “mundo subterrâneo”;uma entidade vaga de que os Atta pouco sabem, masque não confundem nem com o afu kila’ das trovoadas,nem com os antepassados mengngal.

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fechar esta curta ilustração dasdificuldades associadas àcomplexidade daquilo que está portrás de conceitos cuja alteridade étão marcada como os que acabei deaflorar, com uma nota suplementar queme parece mostrar que a um certonível os logramos efectivamenteentender: ou seja, conseguimosperceber como funcionaríamos casoestivéssemos imersos no interior dosistema, reconstruindo-oracionalmente. Refiro-me a uma noçãocomo a de djikko’. Tendo em mente asressonâncias e simetrias que acabeide expor [e sem querer serexcessivamente “culturalista”, numsentido geertziano, por exemplo],basta um pouco de recuo, penso eu,para que nos seja possívelcompreender com relativa facilidade arazão pela qual os Atta utilizam umtermo com um âmbito semântico tãoamplo, difuso e aparentementedescabido como o de djikko’ (“pegajoso”)para aludir a certos tipos de acçõesou atributos: trata-se de um termoque constitui, dado o “meio cultural”a que pertence, uma excelentemetáfora.

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Mais do que isso, porém, e porisso o escolhi como exemplo eparadigma neste estudo, é umexcelente indicador de uma“sensibilidade normativa” muitoprópria (a “local” dos Atta), embora,por razões didácticas, no que por oradiscuti me tenha restringido a poucomais do que uma “análise simbólica”de ressonâncias internas, e bastanteabstractas, de parcelas de umaWeltanschauung que, na prática, na vidasocial concreta, convivem com lógicasexternas relativamente autónomas emuitíssimo constrangedoras.

Insisto, relativamente autónomas:pois noções como a de djikko’, longe deexprimirem meras refracções de umestilo representacional preenchempapéis construtivos e constitutivoscruciais nas maneiras como os Atta seconcebem a si próprios e ao mundo emque vivem, e por conseguinteenquadram as acções, sejam elas quaisforem, que nele levam a cabo. Nãochega, por isso, comparar, como aquifiz, as pré-compreensões, aspreocupações, e os quadros de acçãodos Atta nos termos do quereconhecemos como sendo congéneres

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dos nossos. Há ainda que saberreinseri-los nos quadros sociaisdinâmicos que, por um lado, elesajudam a edificar, mas que, poroutro, lhes dão alento e vida. Umponto metodológico central, quedecorre claramente daquilo que antesdisse, e a que na Parte V do presentetrabalho irei também regressar.

13. IMPLICAÇÕES DO QUE PRECEDE PARA ODELINEAR DE UMA DISCIPLINA DE ANTROPOLOGIAJURÍDICA

Tudo aquilo que até este momentoaduzi nas Partes I, II e III (e nestaParte IV, naturalmente) do presenteestudo, traça várias linhas de forçaque delineiam e circunscrevem o quelevo a cabo ao nível do ensino deAntropologia Jurídica no contexto dalicenciatura em Direito da FDUNL.

O conteúdo que dei ao programa dadisciplina de Antropologia Jurídica ePolítica, desde que no passado anolectivo de 1999-2000 a regência destacadeira me foi atribuída pelaComissão Instaladora da Faculdade,

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apesar de variável tem sido maisanalítico do que descritivo. E éainda hoje (no ano lectivo de 2003-2004) muitíssimo menos completo doque tópico e indicativo.

Não podia ser de outra maneira.Face à complexidade, à diversidade, eà mutabilidade dos pontos deaplicação (ou dos centros degravidade se se preferir a metáfora)da Antropologia Jurídicacontemporânea, optei por proceder nasua leccionação a uma abordagem a umtempo mais teórica e maisilustrativa. O meu intuito tem sido ode lograr equacionar bases para umenquadramento metodológico (semprenuma perspectiva multidisciplinar)que melhor nos permita perspectivarsociologicamente, e assim melhorcompreender, o “jurídico” que nelaproblematizo.

Antes de regressar de maneiramais pormenorizada aosconstrangimentos que actuam sobre omeu Programa (e às suas implicaçõesno que diz respeito à estruturação deuma disciplina como a de AntropologiaJurídica e Política, o que farei napenúltima parte deste estudo) parece-

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me, porém, útil dar corpo e conteúdoconcreto ao tipo de “olhar” e métodosda Antropologia Jurídica moderna, porintermédio de alguns exemplossuplementares relativos ainvestigações etnográficas de terrenoque eu próprio conduzi.

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V

TRÊS EXEMPLOS ETNOGRÁFICOSDE ANÁLISES ANTROPOLÓGICO-JURÍDICAS

Dreamers, shapers, singers, makers.Part of me says we will not see their likeagain. And the part of me that stillbelieves in magic says don’t be so sure.Captain John Sheridan, “Thegeometry of shadows”, Babylon5: 2.2.

No seguimento das ilustraçõesetnográficas que fui disponibilizandoao longo do presente estudo, e paramelhor ilustrar o tipo de abordagemque preferi nesta disciplina, ireidebruçar-me com maior pormenor sobretrês exemplos paradigmáticos. Muitodaquilo a que até aqui fiz alusão nomeu rastreio genealógico seráesmiuçado e utilizado em termosoperacionais no decurso dasdiscussões que se lhes seguem.Apresento os exemplos como outrastantas expressões da nova geração detrabalhos de investigação (num planoarquitectónico mais

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“antropologizado”) levados a cabopela Antropologia Jurídicacontemporânea.

Em primeiro lugar, dispensareialguma atenção a Angola,designadamente a uma curiosa forma deresolução de conflitos utilizada nopassado ano de 2002 num campo derefugiados implantado no planaltoCentral, nas cercanias do Huambo. Numsegundo passo, tocarei, ainda que ofaça apenas de maneira breve esucinta, alguma da “lógica cultural”(no sentido comaroffiano erobertsiano da expressão) que subjaza alguns dos diversos meiosalternativos “espontâneos” deencaminhamento e resolução de“litígios” comum em zonas urbanas erurais de S. Tomé e Príncipe. Emterceiro e último lugar, tentareiesmiuçar aspectos da “juridicidade”implícita na prática pública ecolectiva de interpretação de sonhosentre os já referidos caçadores-recolectores Atta das Filipinas.

Escolhi estes três e não outrostópicos de entre os numerosos queirão ser discutidos no decurso dosemestre que disponibilizo aos meus

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alunos por razões de coerênciadidáctica e de transparênciametodológica. Trata-se, com efeito,de três temas, cada um deles relativoa um exemplo etnográfico de que tenhoexperiência directa, três exemplos,para além de tudo o mais, cujasanálises (ainda que aqui tão-sósuperficiais e indicativas) mepermitem aclarar recantos do métodoque prefiro para empreender o estudo(e o ensino) da AntropologiaJurídica.

Em todos eles faço uso abundantede metodologias interpretativasmarcadamente jurídico-antropológicas:um dos motivos que me levaram aseleccionar para aqui estes e nãooutros dos muitos temas possíveisretirados dos meus próprios trabalhosde campo prendeu-se precisamente como facto de as escolhas que fiz melhorme permitirem tornar salientes ascoordenadas analíticas por que mepauto nas descrições e nasinterpretações que empreendo.

A relação de ordem que preferipara as exposições liga-se a umprogressivo distanciamento dos temasque seleccionei e dos enquadramentos

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em que os abordo relativamente àspreocupações habituais dos juristas.Mais do que sublinhar diferenças,pretendo com isso realçar eventuaiscontributos prestados pelaAntropologia Jurídica quanto atópicos de interesse central tantopara esta como para o Direito; eevidencio direcções de abertura denovos territórios para ainvestigação.

14. A RESOLUÇÃO HÍBRIDA DE LITÍGIOS NUMCAMPO DE REFUGIADOS NO HUAMBO; EMANGOLA200

200 A recolha dos dados empíricos expostos nestasubsecção do meu Estudo constituiu uma pequenaparcela dos resultados obtidos durante uma rápidavisita de estudo efectuada a Angola entre 15 deAgosto e 3 de Setembro de 2002. Aí me desloquei nacompanhia de N’gunu Tiny, Francisco PereiraCoutinho, Ravi Afonso Pereira e Ricardo doNascimento Ferreira, por um curto período de trêssemanas; pouco antes tinha lá estado Raquel Barradasde Freitas. Integraram ainda o grupo doisProfessores angolanos de Direito, Carlos Feijó eCarlos de Freitas. Em Agosto de 2003 regressei aoterreno (e, entre muitos outros lugares, regresseiao Huambo), com o N’gunu Tiny, o Ravi Afonso

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As autoridades dos novos Estadossoberanos em África, reatandotacitamente com projectos anteriores,quantas vezes sem de tal terem plenaconsciência, têm vindo a defrontardificuldades de algum modosemelhantes (mutatis mutandis, e muitohá que as distingue) àquelas com queos poderes coloniais se confrontaram.O âmbito jurídico tem decerto sido umdos domínios de eleição dessa tãointeressante convergência. Tendo emvista alguns paralelismos políticosmais evidentes, não será por issosurpreendente que as soluções pós-coloniais encontradas neste domíniotantas vezes não difiram muito dascoloniais; sobretudo se tivermos emmente, designadamente, osconstrangimentos actuantes e asPereira, o Pedro Velez e o Gonçalo Almeida Ribeiro.Tanto a obtenção como o tratamento destas e demuitas outras informações recolhidas reflectem umesforço conjunto, que aqui faço questão detestemunhar. Nas páginas que se seguem, sigo demuito perto parte do texto que publiquei em 2003c,na SubJudice 25: 21-35, que intitulei “Entre a justiçatradicional e a popular. A resolução de conflitosnum campo de refugiados, em finais de 2002, nascercanias do Huambo, Angola”; fiz-lhe, no entanto,vários acrescentos.

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restrições formais (lógicas epolíticas) que sempre actuam sobreprocessos multidimensionados deintegração-harmonização de regras enormas.

Com efeito, muitos dos problemasde fundo suscitados recapitulam oantigo e esse não sofreu grandesalterações. Comecemos porcaracterizá-lo. Aquilo que está emcausa, numa como noutra dasconjunturas, é o controloadministrativo e político de pessoase regiões201. Em extensas porções daÁfrica dos finais do século XIX e dopassado século XX, administradorescoloniais, sobretudo nas áreas detutela britânica, muitas vezesoptaram por uma “indirect rule” nas suastentativas de encontrar leis eregulamentações que lhes permitissemefectivar o controlo que desejavamdas populações locais. Um dosresultados foi o que seria de201 No que toca a este background histórico e àtransição pós-colonial que se lhe seguiu ver MahmoodMamdani (1996, op. cit.), para um excelenteenquadramento histórico-metodológico e BernardDurand (2002, op. cit.) para um sem número dedescrições e minudências empíricas quanto àsdiferentes experiências jurídicas pós-coloniaisafricanas.

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esperar. Em parte com o intuito desimplificar a sua própria governação,em África como noutros lugares aspotências coloniais muitas vezesreconheceram alguma autoridade àschefaturas tradicionais, investindo-as com autoridade judicial e com ummódico de poder executivo: segundo osquadros político-jurídicos europeusas condições mínimas para que elaspudessem dirimir conflitos e litígiossegundo os “usos e costumes” locaistidos como “tradicionais”, ao mesmotempo que era assegurada uma suasubmissão ao novo poder colonial. Umaarticulação nem sempre pacífica eraramente enxuta.

Acrescem a questões destas, noessencial e lato sensu político-administrativas, problemas maistécnico-jurídicos, por assim dizer. Éfácil verificá-lo. Para além dosproblemas inerentes nos processos deintegração de práticas costumeiras,está a questão de saber dar boa contado pluralismo jurídico existente queelas indiciam. Disso depende não só ocontrolo político-administrativoefectivo de muitas vezes numerosaspopulações e extensíssimos

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territórios, mas também a próprialegitimação dos Estados estabelecidoscom as independências.

Vale a pena determo-nos um poucosobre este autêntico pano de fundo.No chamado “período colonial”, assoluções encontradas não foramhomogéneas. Variaram de região pararegião, ao sabor das diferentesestratégias de colonização seguidaspelas potências coloniais tutelares;e foram sendo diacronicamentealteradas à medida que a eficácia dasequações implementadas se iarevelando pouco satisfatória. Na novafase pós-colonial, como um pouco deatenção aos factos nos revela, asrespostas a este tipo concreto dequestões também não têm sidouniformes.

As reconfigurações ereajustamentos que tal inoperânciatem suscitado têm naturalmentevariado. Num extremo, temos assistidoa reacções minimalistas econservadoras, que têm insistido naretenção do Direito costumeiro comoparte e parcela de um patrimóniocultural próprio valioso. O que emconsequência têm redundado numa

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manutenção (ou numa reconstituição)da “estrutura jurisdicional dualista”(a expressão era a dosadministradores e dos juristascoloniais) que permitem acoexistência, em paralelo, detribunais tradicionais e modernos,cuja articulação se reduz a umarevisão jurisprudencial levada a cabode cima para baixo em meros processosintegrados de revisão judiciária: foio que fizeram, por exemplo, Estadosrecém-independentes como a Guiné-Bissau, o Chade e o Congo, para sódar alguns exemplos dos muitospossíveis.

Outras respostas pós-coloniais,no entanto, têm sido maismaximalistas e menos conservadoras.Em consonância com isso, têm algumasvezes sido levadas a cabo reformasmuitíssimo mais abrangentes. Nalgunsoutros Estados, o objectivoprogramático explícito de unificar osistema de organização judiciárialevou (foi o caso, por exemplo, noGana ou no Senegal) a esboços detentativas de integração-unificaçãode diversas das regras costumeirassubstantivas em uso com as leis

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modernas, em códigos únicosapelidados de “leis nacionais”.

Em experimentações mais radicais,as reformas estatais culminaram com aabolição pura e simples de todos os“tribunais tradicionais”: o quedesignadamente foi levado a cabo emMoçambique e na Tanzânia, depois dasrespectivas descolonizações. Comosabemos, infelizmente nenhuma destasvariantes estratégicas ensaiadas emÁfrica foi bem sucedida.

A situação vivida em Angola apósa independência não escapou a estetipo de dificuldades. E talvez emnenhum lugar com tanta premência comono Planalto Central angolano, e noque diz respeito à administração dajustiça em territórios de implantaçãode grupos umbundos. É fácil perceberporquê: a conjuntura regional sofridanão é para menos. Na maioria doscasos, trata-se populações que,durante anos, viveram sob o controloa um tempo militar e indirecto daUNITA, em regimes político-administrativos sui generis que aliavamum domínio estrito e estreito depessoas e grupos com uma enormemargem de autonomia local por

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subsidiaridade, por assim dizer202. Ogrosso das gentes foi vítima dearbitrariedades sistemáticas às mãosde uns e outros dos agrupamentosfortemente armados que iam ocupandoou cruzando o território: dechacinas, a mobilizações forçadas,passando por roubos, raptos,violações e queimas públicas de“bruxas”, houve de tudo um pouco. Aconcentração de agrupamentosdeslocados dos seus lugares de origeme acumulados (“empilhados”, éporventura termo mais adequado) emcampos de refugiados em condições deuma precariedade indizível atingiu oauge em 2002; calculou-se em quatromilhões o número de refugiadosexistentes nesse ano em Angola, amaior parte dos quais concentrados naregião central do país.

No plano da juridicidade,consequências não se fizeram esperar:202 Para uma descrição detalhada da organizaçãopolítico-administrativa e judiciária das “terraslivres de Angola” (nome dado pelos próprios àsregiões, essencialmente “regiões militares” e degeometria variável sob controlo da UNITA), ver A.Marques Guedes (2003, op. cit.). para umaperspectivação alternativa menos detalhada, e muitoaguerrida e partisanne, ver Nelson Pestana (1999).

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tanto a pluralidade dos domíniosjurídicos existentes, como a presençae vigência de referenciais culturaismuitíssimo “particulares” foram portudo isso potenciados. Uma qualquernoção de uma “lei geral”, ou umaverdadeira “organização judiciária”que recobrisse todo o território ealcançasse todas as populações (ambasrealidades em todo o caso degeometria variável, dados os vai-venstípicos da violenta situação deguerra que durante anos a fio assoloua região central angolana), nuncaforam mais do que um sonho distante.

O fim da guerra, com a morte deJonas Savimbi em Fevereiro de 2002, ea consequente rápida celebração dofamoso Memorando de Entendimento paraa Paz, composto em início-meados domesmo ano, na sequência da efectivavitória militar do Governo (e dopartido do poder, o MPLA) vieramalterar tudo isso. Ou, pelo menos,viabilizou ao Estado angolano pós-colonial, quanto mais não seja emprincípio, lograr tentar fazê-lo. A“reposição” do controlo governamental(na expressão localmente utilizada)significou a possibilidade de uma

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extensão às antigas “terras livres deAngola” (o termo usado pela UNITApara as fatias do país sob suaocupação) da administração estadualda justiça.

Mas não soletrou muito mais doque essa mera possibilidade. Aadministração estadual angolana, eporventura em particular a relativaao âmbito da justiça, está malequipada203. Aquelas que incluemunidades “tradicionais” umbundo,habituadas a uma forte clausura sobresi mesmas e vítimas de prepotênciasquantas vezes brutais dos sucessivos“outsiders” que os pretendem tutelar,tendem compreensivelmente a nãoencarar com bons olhos intervençõesprovindas do “exterior”. Osagrupamentos existentes, seguindoaliás os modelos umbundo tidos comoimemoriais, parecem mais preocupadoscom a sua salvaguarda enquantocomunidades e com o reatamento dosrelacionamentos sociais normais do203 Para um estudo recente, ver o trabalho redigido epublicado pela Comissão dos Direitos Humanos daOrdem dos Advogados de Angola (2001), intituladoDiagnóstico Preliminar sobre o Sistema de Administração da Justiça –perspectiva estático-estrutural.

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que a aplicação de uma justiçaexterna, cega e tida como abstracta.A tendência, por tudo isso, é paraque a maioria dos conflitos queeclodem sejam vistos como “privados”,no sentido em que são consideradoscomo devendo relevar da estritacompetência das próprias comunidadeslocais.

14.1. AS FORMAS “TRADICIONAIS” DERESOLUÇÃO DE CONFLITOS EM ANGOLA

No estudo relativo ao pluralismojurisdicional em Angola, interessa-meaqui, essencialmente, esmiuçar algumadas estratégias sociais que ascomunidades angolanas“espontaneamente” criam para darresposta às situações de conflito quesurjam e que, por uma ou outra razão,não sigam os trâmites dasinstituições do Estado204.204 Cabe aqui um breve comentário. A existência emAngola de mecanismos alternativos de realização dejustiça é uma das principais causas de afastamentodas pessoas em relação aos tribunais. Em muitoscasos, o recurso a dispute institutions “tradicionais”reflecte a desconfiança dos actores sociaisenvolvidos numa qualquer quesília relativamente àsinstituições estatais; em muitos casos, o recurso

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Tal ocorre, por vezes, por opçãodos actores sociais envolvidos.Noutros casos, porém, não está emcausa nenhuma escolha: o desenrolardas coisas resulta antes do facto deque as estruturas estatais pura esimplesmente não chegam a todo oterritório205: uma vez que aaos tribunais é mesmo considerado uma “afronta”,porque segundo uma representação comum entre muitosangolanos, os conflitos devem poder, ou serresolvido pelas partes, sem necessidade de um tertiusque se torne parte envolvida, ou ver-se sujeitas auma “mediação” mais ou menos formalizada, de “maisvelhos”, notáveis, ou “chefes tradicionais” (estasclasses não são necessariamente mutuamenteexcludentes). Por outras palavras, muitos angolanosoperam uma distinção entre o “domínio público” e o“privado” (no seu sentido mais amplo) que nãocoincide necessariamente com a do Estado.

205 Como é decerto bem sabido, a administração dajustiça estadual (chame-se-lhe assim), está ausenteda maior parte do território nacional angolano:neste momento só funcionam em Angola uma pequenaparcela dos Tribunais Municipais existentes, “nopapel”, nos 164 Municípios do país. Para além disso,a grande maioria do pessoal dos serviços de justiçaestá sediada em Luanda e o sistema judiciárioangolano é ainda muito centralizado e concentrado. Àdistância física das instituições estatais deadministração da justiça junta-se a distânciapsicológica em populações que, por razões de váriaordem, não configuram sequer a possibilidade derecorrer a um sistema judiciário formal, quantasvezes profundamente alheio à sua realidade culturale sócio-organizacional.

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administração local do Estado, emAngola, por via de regra apenasfunciona até ao nível da Comuna,deixando de fora território epopulação que correspondem àsPovoações das áreas rurais e aosBairros das zonas urbanizadas. E,quando lá chega (o que é raro), nemsempre se lhe reconhece uma reallegitimidade. Por outras palavras:muitas vezes, o recurso a instânciastradicionais manifesta uma situaçãoconcreta de “pluralismo jurídico” emque os actores sociais se vêemenvolvidos; noutros casos, porém,aquilo que está em verdadeiramentecausa é uma simples ausência doEstado, mesmo onde e quando ele possaser desejado e procurado. Aodefrontar a primeira destascircunstâncias, os angolanos escolhementre alternativas; ao confrontar asegunda, resignam-se por uma qualqueralternativa que esteja disponível.

O primeiro grupo de casos éaquele a que neste meu primeiroexemplo irei dar atenção. É por issoexclusivamente sobre um casoilustrativo (embora se trate de umailustração porventura atípica) desse

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pluralismo que me irei debruçar nesteartigo. Num longo trabalhomonográfico que redigi em co-autoriacom dois docentes de Direitoangolanos e de estudantes (na suamaioria doutorandos) da Faculdade deDireito da Universidade Nova deLisboa, descrevi as estruturasorganizativas, estaduais ou infra-estaduais, do poder judicial emAngola206. No presente estudo, ireitentar pôr em relevo algumas dasmaneiras como os actores sociais vãobuscar uma resposta para osproblemas, tensões ou conflitos(inter-pessoais ou inter-grupais),que de alguma forma os afligem, a umconjunto de regras, ou tão-somente depráticas, próprias e consuetudinárias(práticas e regras nas quais o“jurídico”, o “político-social” e o“religioso” caracteristicamente seconfundem, ou pelo menos seentrecruzam).

206 Nomeadamente em Armando Marques Guedes et al (2003,op. cit.). Toda a segunda parte desse estudo foidedicada a essa organização, às “formas híbridas” deresolução de litígios, e aos meios alternativos queas suplementam.

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Interessar-me-á, naquilo que sesegue, descrever alguns dosmecanismos deste tipo utilizados emAngola. Mecanismos esses que, emboraem última instância possam serencarados como estando direccionadospara a realização de uma justiçamaterial, se distinguem pelo seucarácter muito local, peloinformalismo das suascaracterísticas, e pelo seu suportena religião, na organização social eno parentesco207.207 Antes de partir para um breve esboço de análisedos casos específicos de realização da justiçamaterial através de formas tradicionais e, em muitoscasos, não estatais, convém fazer uma referência,sumária mas substantiva, ao papel desempenhado poralgumas organizações não governamentais (ONG´s)tanto durante o período da guerra como no presenteentre as forças governamentais e a oposição do GaloNegro. Embora muitas ONG´s trabalhem em Angola,existem poucas verdadeiramente angolanas, das quaisse destacam a ADRA (Acção para o DesenvolvimentoRural e Ambiente) e a Cruz Vermelha Angolana, muitoembora a primeira não seja reconhecida pela UNITA,que a acusa de ligação estreita ao Governo (naverdade, o sucesso ou insucesso da actividade destasorganizações junto das populações depende, em grandeparte, da independência e imparcialidade queconsigam manter e demonstrar relativamente ao poderpolítico). Já no que tange às ONG´s internacionais(como a Africare, a World Vision, a Catholic Relief Services, aCaritas e a Save the Children), a verdade é queraramente elegem as bandeiras da paz e dareconciliação junto da sociedade, por receio de

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Do ponto de vista do Direito, asinstâncias tradicionais de justiça eos “direitos consuetudináriostradicionais” (expressão que aquitomo como sinónima de formastradicionais encontradas para darresposta a conflitos emergentes) queajudam a regular as relações sociaissão, com efeito, elementosfundamentais da sociedade angolana.Como sublinhei, são-no em parte pelafalta de presença do Estado e dassuas instituições em grandes fatiasdo território, em parte também pela“distância nocional” muitas vezesexistente entre as instituições doganharem a inimizade dum lado e do outro e, porconsequência, com medo de verem negados o seu acessoe a liberdade de exercer a sua actividade emdeterminadas zonas do território angolano. Todavia,alguns esforços têm sido dispendidos no sentido dereconciliarem as duas partes do conflito angolano,assumindo as ONG´s, por diversas ocasiões, asfunções que ao Estado competem e ganhando, dessaforma, maior legitimidade junto das populações (ediminuindo a dependência destas face ao Estado). Deentre eles, destacam-se: promover o contacto e ainteracção entre as facções contrárias, utilizar osmedia como veículo de transmissão das ideias de paz,organizar conferências e debates com a temática daresolução do conflito, promover estudos nessesentido, treinar mediadores independentes capazes dearbitrar as disputas existentes, fomentar odesenvolvimento económico, etc..

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Direito positivo formal e asinstituições tradicionais. A situaçãoé potenciada pelo facto de estasinstituições serem em muitos casostidas pela população (e por muitosdos responsáveis governamentaisangolanos) como sendo entidades dealgum modo “anteriores ao poder doEstado” (embora, como irei sublinhar,tal formulação me suscite algumasdúvidas) e às quais “ainda” se deve“por isso” reconhecer um papelimportante no quadro global daadministração do território e das

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populações208. Uma questão complexa,que discuti noutro lugar209.

Acrescente-se a isto aconstatação de que objectosconceptuais e institucionais como ode “justiça tradicional” são muitasvezes entidades difusas eparticularmente difíceis decircunscrever, dada a sua naturezacambiante, e as dificuldadesanalíticas com que deparamos aumentam208 As principais funções das instituições do poderdito tradicional são, em Angola, basicamente, asseguintes: o estabelecimento de ligações com osantepassados, a concentração dos poderes mágico-religiosos, a administração da justiça no seuterritório, a gestão das terras (tanto no que tocaao seu uso, como conflitos em torno da sua“propriedade”, ou dos critérios da sua apropriação),a gestão da vida comunitária, a defesa da populaçãosob seu controlo, o estabelecimento de normassociais e “jurídicas”, o recrutamento de jovens parao exército, a construção e manutenção de infra-estruturas, a gestão das relações com os numerososagentes externos (Estados, ONGs, agentes económicos,partidos políticos, etc.), a representação das suascomunidades e a intermediação na ligação das mesmascom o Estado.

209 Mais uma vez em Armando Marques Guedes et al (2003,op. cit.). Nesse estudo monográfico de bastantefôlego, são esmiuçados em pormenor muitos dosproblemas empíricos, formais e informais, jurídicose políticos, tanto dessas representações ideológicascomo da mecânica de articulação entre aadministração periférica do Estado, ao nível local,e os “poderes tradicionais” aí instalados.

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vertiginosamente. Na verdade, ajustiça tradicional está (em Angola,como em toda a parte) sujeita afortes rupturas e a óbviasdescontinuidades. Vê-se, ademais,quantas vezes deslocada espacial egeograficamente, sendo remetida parazonas distintas das dos seus lugaresde origem (devido, nomeadamente, amigrações internas, sejam elas oresultado de fluxos de refugiados deguerra, sejam consequência de simplesêxodos rurais de motivações maispuramente económicas). Além disso, ofacto de existirem no território dopaís variadíssimos “direitosconsuetudinários” (como reflexo darealidade ricamente multicultural edensamente pluri-étnica de Angola)tem tido como consequência fusões queresultam de uma mistura dessesDireitos tradicionais muitas vezestão diferentes uns dos outros.

Não é tudo. Junta-se-lhe adimensão sociológica “compósita”própria desses Direitos. Muitas daspopulações angolanas, sobretudoaquelas que se encontram instaladasem áreas periféricas e rurais, estãoprofunda e profusamente marcadas por

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uma consciência de interdependência ecoexistência mútuas (representaçõesessas que pesam na imagem queconstroem daquilo que é “a sociedade”em que participam); e pautam-setambém pela convicção de uma co-existência, que têm por antinómica,entre um mundo visível e um mundoinvisível (sendo este últimoconsiderado como a fonte de toda aautoridade e um instrumentotradicional para o sancionamento deactos considerados, a um tempo,transgressões do que chamaríamos oDireito e a religião). Uma dasprincipais fontes de autoridade elegitimidade nos “direitostradicionais” angolanos são ascrenças religiosas e os rituaiscomunitários. E estes “direitos” sãoainda sempre encarados comoincorporando uma forte dimensão“política” (fazendo-o, aliás, emvários sentidos).

Com todos os riscos desimplificação que generalizaçõessempre acarretam210, não será210 No par de páginas que se segue, não pretendosenão contrapor a imagem de uma juridicidade com queconvivemos o nosso dia a dia a uma outra, que aquipara o efeito apresento, de alguma maneira

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excessivamente abusivo asseverar que,nas várias microcomunidades políticasangolanas, o grupo social (ou“tribal”, se se preferir o termovernáculo, de adequação e utilidadeduvidosas, e que em todo o caso nãopode ser utilizado para uma boaporção da população de Angola) tendea ser considerado como resultado eresultante de uma sucessão contínua ebastante longa de gerações, como umagrupamento em que vivos e mortoscoexistem. Pelo que os “direitos dascomunidades” (ou, pelo menos, asregularidades nas suas práticas) sãopor via de regra concebidos comoheranças provindas de cadeias

caricaturalmente, como “tipo ideal” contrastivo.Seria difícil sublinhar de outro modo as diferençasdiacríticas que quero pôr em realce. Ao contrário demuitos antropólogos jurídicos actuais (desinadamenteos do que gosto de apelidar a “escola franco-belga”), não creio que possamos formulargeneralizações empiricamente bem fundamentadas sobrequaisquer “Direitos originariamente africanos”, emuito menos me parece aceitável a ideia, tambémpropalada, de que “os africanos” seriam,espontaneamente, uma espécie de “comunitaristas” emsentido forte. Para além de soarem a generalizaçõessuspeitamente convenientes e politicamentecorrectas, afirmações desses tipos colam mal àrealidade. Não deixa de ser curioso que meros tiposideais como os que rascunho se acerquem tanto dessasreificações.

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virtualmente infindas de gerações; eos rituais e as cerimónias sagrados,que lhes dão corpo, são emconsonância com isso encarados comoformando uma parte inseparável detodos e de quaisquer processossociais, mesmo aqueles de maismarcada “incidência jurídica”.

A fundamentação para este tipo derepresentações partilhadas é simplesde compreender. Trata-se desociedades em que as relaçõesconstitutivas de cada actor socialnão são pensadas como as de um homemisolado, e nas quais por conseguinteideias como a de uma “personalidadejurídica” estão condicionadas pelapertença a uma entidade grupal e aoestatuto social (e até ao recortenocional da noção de “pessoa” e“indivíduo”) com tanto compatível. Oque, naturalmente, tem implicações eum alcance enormes: não deixa, porexemplo, de se reflectir nas formasde propriedade reconhecidas, e até nanatureza daquilo que é tido comosusceptível de apropriação.

De uma ou de outra forma, os“sistemas jurídicos” tradicionaisangolanos reportam-se, em congruência

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com esse tipo de representações, aosproblemas das respectivascomunidades. E resolvem-se,frequentemente, em diferentes níveis:por um lado, a resolução dosconflitos faz-se de uma ou de outramaneira publicamente (todas asmatérias pessoais controvertidas sãode algum modo tidas como sendo dointeresse da comunidade, dando lugara discussões públicas em que todosnalgum sentido participam); ou seja,as linhas divisórias entre o públicoe o privado são traçadas de formasespecíficas e sui generis. Por outrolado, desses constrangimentosresultam implicações interessantes.Para retomar de um outro ângulo oexemplo que atrás aflorei: os“direitos de propriedade”, porexemplo, não são nesse tipo de formasde organização social por via deregra concebidos como pertencendo auma só pessoa, por exemplo ao chefeda “aldeia” ou da “família”: tendem aser antes pensados como pertença detoda ou de parte, da comunidade,representada por esse “indivíduo” e

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que nele deposita a responsabilidadedesses direitos211.

Naquilo que acabei de afirmar,limitei-me a esquissar (com todos osriscos de simplificação ereducionismos que isso acarreta,repito) uma delineação genérica etão-só formal da juridicidade“tradicional” angolana. Mas as váriasdimensões sociológicas própriasdestas representações e práticastradicionais têm também e aindaconsequências a um nível maisprocessual. Consistente com a ideiasubjacente de que são infracçõesespecialmente graves todas aquelasque ponham em perigo a própriacomunidade (ou uma sua parcela), asua resolução-encaminhamento devemigualmente tomar esse mesmo facto emlinha de conta; pelo que o “decisordo conflito” (seja este intitulado umchefe de linhagem, ou um chefe da211 Para um estudo clássico deste tipo de “sistema”na África austral, ver a monografia (que já citei eque, repito, está incluída na bibliografia dadisciplina de Antropologia Jurídica quedisponibilizo aos alunos da FDUNL) de John Comaroffe Simon Roberts (1981), relativa à “padronização-construção cultural” da emergência e da resolução deconflitos num agrupamento local Tswana do Botswana.

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terra, para só darmos dois exemplos)não tem muitas vezes por missão umamera aplicação de um “direito”; masvisa antes e também a reconciliaçãodas “partes”.

Logo, fá-lo com a preocupaçãoomnipresente de produzir os efeitosda sua decisão no futuro das mesmas;e com o intuito de repor o normalfuncionamento do tecido socialatravés de uma resolução negociada,que todos possam acatar212.

14.2. A RESOLUÇÃO-ENCAMINHAMENTO DECONFLITOS E AS “AUTORIDADESTRADICIONAIS” EM ANGOLA

No Planalto Central angolano,tudo aquilo que apresentei comoquadro geral africano de uma ou deoutra maneira se verifica. Embora nemsempre existam entidades (as chamadasdispute institutions) bem definidas comoformas tradicionais de resolução deconflitos (tal como, aliás, acontece212 Um exemplo de um trabalho monográfico empreendidodesta perspectiva, é o do estudo, também járeferenciado, de Lawrence Rosen (1989) sobre ostribunais cádi no Marrocos de hoje.

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nos casos de S. Tomé e Príncipe eCabo Verde), é possível descobri-lasmuitas vezes, tanto em meios urbanoscomo em meios rurais. Nuns como nosoutros destes meios, na maioria doscasos, a via dos tribunais estataisparece, para muitos dos actoressociais angolanos, ser o caminho“mais idóneo” (tanto em termos deeficácia, como nos de “modernidade”)para o encaminhamento dos seus“litígios”213. Não são, porém,difíceis de encontrar exemplos einstâncias em que prevalece um maiorenvolvimento das estruturas sociaislocais e “tradicionais”, nos quais aresolução dos conflitos assume umadimensão familiar (com recurso aosmais velhos, por exemplo, ou aos“anciãos” linhagísticos).213 Embora não me tenha esquecido da frase do então(Setembro de 2002) Bastonário da Ordem dosAdvogados, Manuel Gonçalves, de que “a percentagemde litígios que chegam aos tribunais é ínfima”.Mesmo em cidades como Luanda. Em parte, isso derivado facto de também nalgumas cidades angolanasexistirem sobas que para elas se deslocaram duranteperíodos de êxodos rurais maciços com as suaspopulações - nos musseques de Luanda, existem aindasobas e sobetas, por exemplo na Kazenga, na ComunaHoji Ya Hende, e na Maianga, Kikolo, Comuna RochaPinto.

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Equacionada nestes termos, asituação pode parecer simples. Nadadisto, no entanto, é linear. Ummomento de atenção crítica mostra-nosporquê. Muitas das autoridadestradicionais angolanas214 herdaram oseu estatuto do tempo colonial.Outras, são de cepa mais recente.Algumas legitimaram a autoridade quetinham por terem resistido àsinfluências do Estado colonial e daguerra. Há também as que, ao invés,colaboraram com essas mesmasautoridades; destas últimas algumassouberam manter o poder que detinham,outras não. Estes são os casos de214 De acordo com o Estudo sobre a Macro-Estrutura daAdministração Local, realizado, em 2002, pelo Programadas Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), soba superintendência do Ministério da Administração doTerritório angolano, os recentes debates (de quedemos eco na primeira parte desta monografia) àvolta do poder tradicional e das suas instituiçõesquestionam a sua legitimidade, representatividade,os títulos, as funções, o território de jurisdição,a autonomia, o poder de decisão e as relações delascom o Estado. Relativamente à legitimidade, põem-seem causa os costumes sucessórios e a ligação dedescendência das autoridades tradicionais dessas“autoridades” em relação aos chefes ancestrais.Quanto ao poder de decisão, contesta-se aacumulação, na autoridade tradicional, dos poderesexecutivo, normativo e judicial, sem a existência dequaisquer verdadeiros e eficazes mecanismos demoderação.

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muitos régulos, regedores (que tiveramimportantes funções no âmbito dodesenvolvimento social e se situavamnum plano intermédio entre acomunidade a que pertenciam e oEstado central) e sobas.

Sem querer incorrer emreducionismos simplificadores, cabeaqui dizer que o termo soba écomummente utilizado, na terminologiaquotidiana, para denotar os chefestradicionais (quaisquer que elessejam) de muitos os agrupamentossociais tradicionais existentes emAngola. O título que de facto lhes éatribuído varia porém imenso nointerior do país. Além de que aimportância, o peso, e o acervo de“competências” que têm, variam degrupo para grupo e, em cada umdestes, têm vindo a sofrertransformações, muitas vezes demonta. Como “modelo ideal”, podemosno entanto delinear uma espécie de“retrato robôt” destes “sobas”.Trata-se, por norma, de entidades quegozam de poderes amplos como“representantes” dos poderes“temporais” e “espirituais”reconhecidos pelas populações que

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“tutelam”, e são muitas vezes“chefes” tidos como de algum modoresponsáveis pelo regularfuncionamento das instituiçõespolíticas locais. Além disso, têm porvia de regra poderes para resolvertodas as questões conflituais quelhes forem apresentadas.

Tende na Angola moderna a haver,no entanto, a percepção de que nemtodos os casos são da competênciadestes sobas: quer dada a suagravidade (mais uma vez há aquiinúmeras variações, mas para casosmais graves, tende a haver a ideia deque as entidades estatais deverão serchamadas a intervir); quer peladimensão sobrenatural que neles possaexistir (casos em que se seconsiderar que o soba não podeintervir, é muitas vezes o curandeiroe adivinhador – o termo genéricoangolano para estas entidades é o dekimbanda, muitas vezes uma espécie de“conselheiro espiritual” do soba215 –215 Como referi, estes chefes têm denominações (e é-lhes reconhecido um acervo de poderes) diferentesconsoante as áreas em que estão estabelecidos:chamam-se assim, por exemplo, ohamba, no Cunene;totela, no Zaire; mfumu nzi, em Cabinda; soba, em todaa região ambundo - Luanda, Malanje, Kwanza-Norte;

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que o faz). Em muitos casos, comovimos, devido à guerra e à falta derecursos financeiros, sobretudo foradas grandes cidades e no interior, osistema judicial formal-estatal nãofunciona e as formas tradicionais desolução de conflitos constituemverdadeiras alternativas no plano daadministração da justiça216.

dembo, no Bengo. Para apenas detalhar a abrangênciasemântica de um destes termos: chamba significa (atradução é inevitavelmente uma traição abusiva) “odono da terra”, mas o seu verdadeiro poder eragovernar a kanda (agrupamento de pessoas que possuemum território comum) e resolver todos os conflitosque surgissem entre as comunidades, entre as kandaou entre as mikunda (Províncias). Além disso, eratambém o chefe máximo da guerra, era ele que chamavaa chuva e organizava a defesa de todo o seuterritório contra as invasões dos “estrangeiros”.

216 Mutats mutandis podemos afirmar em relação a Angolaaquilo que G. J van Niekerk (1995: 84) asseverou arespeito de uma questão semelhante quanto à Namíbiae à África do Sul: “unofficial dispute resolution has been thenorm in [...] metropolitan areas in South Africa for as long asthese areas have existed. Official legal institutions have been regardedto be of secondary importance, seemingly because their inability tosatisfy the community’s sense of justice. This was the position not onlyin urban areas. In rural areas the very first magistrates’ courts werewidely dispersed over large areas. Because of a lack of policemen ortroops, they were not able to enforce the [...] official law imposedon the indigenous people, nor curb the influence of the unofficialtraditional courts”. Em Angola, a situação de guerravivida foi um motivo suplementar para umavitalização das dispute institutions tradicionais.

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Como asseverei, as diferenças aeste nível verificadas em Angola sãomuitíssimas. No sul e no sudeste doterritório angolano, por exemplo, ossistemas de organização social sãomuitíssimas vezes pouco complexos, epor isso neles as chefaturas nãoassumem papéis importantes, ou sãomesmo inexistentes. Nalguns outroscasos (vários deles no PlanaltoCentral, tal como, aliás, no noroestedo país) os sobas estão contudoorganizados em autênticos “reinos”,profundamente hierarquizados.Diversos grupos etnolinguísticoslocais de Angola apresentam níveis deintegração política que os colocariaalgures217 entre estes dois pólos.

No que toca ao estudo destaschefaturas e das suas “competênciasjurisdicionais”, no presente exemplolimitar-me-ei a esboçar três passospreliminares. Primeiro (e aquirestrinjo-me a uma recomendação

217 No final da primeira secção da Parte VIII dopresente estudo discuto, com algum pormenor, o“jurídico” patente num agrupamento “intermédio” (doponto de vista da integração política hierárquica)do sul de Angola, os Kwandu, estudados por CarlosLaranjo Medeiros.

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genérica), tento encaminhar o leitorpara os (poucos) trabalhos publicadosneste domínio. Em segundo lugar,farei alusão a duas recolhas de dadosque logrei levar a cabo em duaslongas conversas com outros tantos“informadores” de eleição: os “reis”do Sambo e do Bailundo, com quemestive no Huambo. Primeiro para umdesses casos e depois para o outro,exponho aquilo que me foi dito emrelação às dispute institutions locais218.Noto com toda a ênfase que nãopretendo, de maneira nenhuma, ao daresses dois primeiros passospreliminares, oferecer um estudoetnográfico, para o qual nem porsombras recolhi dados em quantidade(e de qualidade) suficiente: tentoapenas identificar questões.

218 Quero aproveitar para manifestar aqui a minhagratidão tanto aos dois líderes que (um de cada vez,para evitar melindres protocolares) connoscopassaram uma manhã inteira, como ao notável Dr.Paulino Máquina (por quem todos ficámos com forteadmiração e respeito, pela sua simpatia esabedoria), que pacientemente nos serviu deintérprete durante horas a fio. Sem a sua ajuda, adisponibilidade de Augusto Cachitiopololo, deCipriano Kaningi e de António Pinto, a recolhadestes dados não teria sido possível.

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Na subsecção do meu exemplo quese segue a essa, como terceiro eúltimo passo irei fazer alusão aosmecanismos utilizados num campo derefugiados dessa região centro-angolana, o campo Casseque 3, para aresolução de muitos dos “litígios”que aí eclodem. Novamente o façoapenas em termos genericamenteindicativos. Concluo com algumasconsiderações de índole geral eteórico.

14.3. A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NOSAMBO E NO BAILUNDO

O rei (o soba dos sobas) do Sambo,com quem tive oportunidade de trocarimpressões, falou-nos da “estruturaadministrativa e judiciária” doterritório que tutela: chama-seCipriano Kaningi, controla 48 embalas(“cortes”), tem 21 conselheiros (ossekulos), cada um deles ocupando umlugar atribuído em função do seunascimento, e responsáveis pelacomunicação do “reino” com asinstâncias estaduais. É CiprianoKaningi que tem o poder de fazer

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chuva e que comunica com os outrossobas e os seus sekulos, através demensageiros.

Segundo Cipriano Kaningi, existemtrês níveis de resolução de conflitosno território sambo, julgando-seneles as matérias em função da suagravidade e, portanto, em função dasua incidência no todo da comunidade:começando pela “instância mais baixa,temos assim, em primeiro lugar, onível dos sekulos (os conselheiros) quefunciona como a instância de base eque julga, sobretudo, roubos; nosegundo lugar está o nível dos sobas,no qual são julgados, por exemplo, oscasos de infidelidade das mulheres;em terceiro e último lugar está onível do rei, a instância máxima, naqual se resolvem, essencialmente, oscrimes de traição e todos os queatentem contra a organização socialtradicional da comunidade219.219 De acordo com um estudo feito por Raúl Davidsobre a administração da justiça no território dosUmbundo (Da Justiça Tradicional nos Umbundos, 1989,Instituto Nacional do Livro e do Disco, pp. 37 ess.), são crimes considerados graves a mulherencontrada em flagrante delito de adultério, aviolação de menor ou de mulher casada, a bruxaria efeitiçaria, o incêndio provado, o roubo de bens egado e o assassínio. Por outro lado, os delitos mais

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Quanto ao “julgamento” (ekanga)dos casos, de acordo com Kaningi,este processa-se da seguinte forma:os crimes são participados à“instância” que vai julgar; estaconvoca as partes; são ouvidos osconselheiros (que analisam o peso dasacusações, ponderam os argumentosapresentados pela defesa e dãoparecer sobre a sentença a aplicar);são mobilizadas testemunhas de defesa(ocyame) e de acusação (epindikiso); esó depois o “presidente do‘tribunal’” (muenlekanga) decide,tentando alcançar, muitas vezes pornegociação, um acordo que as partesaceitem de livre vontade.

Falei, também, com o rei doBailundo, Augusto Cachitiopololo. Natambém muito detalhada conversa quecom ele tivémos, AugustoCachitiopololo descreveu aadministração da justiça no seuterritório. Trata-se de uma

comuns são a sedução e rapto de mulher casada, acalúnia e a difamação (ofensa à moral), as ofensascorporais e os litígios respeitantes à delimitaçãode propriedades. O trabalho de R. David diz respeitoà “justiça tradicional”, generalizada e idealizada,dos umbundo de antes da guerra civil angolana.

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configuração geral no todo muitosemelhante à anterior (ambos osgrupos etnolinguísticos que estes“reis” representam– Sambos eBailundos – são falantes de Umbundo),ainda que com algumasparticularidades: este rei tem 122sobas sob a sua égide, na Província doHuambo; outros na do Bié.

Em território bailundo, ao que mefoi dito, casos de roubo einfidelidade são julgados pelos sobas;os conflitos no seio dos sekulos sãoresolvidos por eles mesmos, sendo aacusação feita pelo representantelegal do soba (excepto quandoconsiderem que lhes falta capacidadeou competência para isso, caso em quesão os próprios sobas que julgam); acompetência para o julgamento deconflitos é de tal modo definida,que, quando um determinado caso éjulgado por órgão incompetente, esteé sancionado pela “instância”imediatamente superior; antes (nãoficou claro quando), quem matasse erajulgado e condenado a pagar uma multaà família do morto (ou, no caso deinsolvência, a trabalhos forçados),enquanto que hoje o condenado (apiswa)

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é detido num njangu220 e levado àpolícia ou ao administrador; o“julgamento” faz-se, muitas vezes,através de adivinhação levada a cabopor um kimbanda221.

Conforme foi referido, também nascidades é possível encontrar sobas quepara aí se deslocaram com as suaspopulações, durante o período daguerra.

14.4. OS CONFLITOS E A SUA RESOLUÇÃONO CAMPO DE DESLOCADOS CASSEQUE 3,HUAMBO220 Uma construção circular, sem paredes e comtelhado de capim ou adobe, em cujo interior sesentam e congregam os co-residentes num agrupamento.Com poucas variações, constitui, em numerosasregiões da África subsaariana, o ponto de encontro ediscussão tradicional para questões de “índolepública”.

221 Posso acrescentar alguma cor conjuntural. Umadessas formas de advinhação-ordália é a do“juramento por veneno”: no auge do conflito, uma daspartes dirige-se ao kimbanda e o acusado aceitabeber o chamado mbulungu; o acusado bebe a dose deum só trago; se for culpado, fica com dores deestômago e cai morto, diz-se que por norma ante acomoção e a revolta dos familiares que o cercam;caso não seja culpado, segundo esta modelizaçãoidealizada, o “suspeito” resiste aos efeitos doveneno e é assistido pelo kimbanda, ficando então deimediato ilibado da acusação.

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Além de se fixarem nos musseques,dentro das cidades ou seusarrabaldes, é também verdade quemuitos sobas inicialmente seestabeleceram nos campos derefugiados, desempenhando, longe dassuas terras de origem, as funções quesempre se lhes reconheceu. Raramente,porém, ao que nos foi dito, o fizerampor muito tempo. Muitas vezes, ossobas, dotados tanto de meioseconómicos próprios como de ligaçõespolíticas e familiares extensas eactivas, preferiram instalar-se emmeios urbanos ou peri-urbanos em queas condições de vida são mais fáceis:a maior deles partiu assim há muitopara Luanda.

Nesses outros casos, o papel“judicial”, tradicional nos sobados,é preenchido por outras entidades.Essa é a situação com que deparei no“Campo de Deslocados de Guerra”,localizado a uma trintena deQuilómetros da cidade do Huambo, queem finais do último Verão tive aoportunidade de visitar. Na viagemque fiz ao Huambo com um grupo dealunos, deslocámo-nos ao campo de

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refugiados Casseque 3 (um centro que,até três meses antes, contara comcerca de 2500 refugiados; mas o qual,em Agosto de 2002, muitas das pessoastinham já lentamente abandonado,saindo de regresso às suas terras).

Aí tive o gosto de conhecerAntónio Pinto, um homem jovem emuitíssimo afável, destacado peloGovernador (trata-se de um militantedo MPLA) para coordenar a “áreacultural” do campo. Aquilo que sesegue resume a longa conversa que comele tive (juntamente com três membrosda minha equipa que comigo aí sedeslocaram) e que contou com apresença de numerosos residenteslocais que se nos associaram numnjangu.

Nesse campo de refugiados quevisitámos (e onde a organizaçãocertamente, ao que me foi assegurado,não será muito diferente da dosrestantes), estiveram até há bempouco tempo sobas, responsáveis não sópela comunicação com as autoridadesestatais (os Delegados Provinciais,por exemplo), estabelecendo a ligaçãoentre a “comunidade” e o Estado, e

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assegurando também a disciplina daspopulações tão duramente congregadas.

A fazer fé no que me foi dito, oformato desses “tribunais” não terádiferido muito das formas canónicastradicionais na região. Ao que nosfoi narrado, quando surgiamconflitos, o soba reunia com os sekulosnum dos njangu do Casseque 3, onde ahistória da desavença ocorrida era“contada por mais velhos”,“representantes” das “partes”. Estas,porém, não intervinham. Eram ouvidaslogo a seguir as testemunhas dedefesa (ocyame) e de acusação(epindikiso). E só depois o soba ,enquanto “presidente do ‘tribunal’”(muenlekanga) decidia, tentandoalcançar, muitas vezes pornegociação, um acordo que as partesaceitassem de livre vontade.

Segundo me foi confiado, com apartida dos sobas do campo (o que cedoocorreu, dados os contactos e meiosmateriais que estes possuíam), deu-seuma sua substituição pelo“responsável cultural” local do MPLA,o já referido António Pinto. Esteúltimo explicou-nos que sempre faziaquestão de cumprir à risca o formato

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“tradicional” acima descrito, queantes os sobas tinham utilizado. Mas,acautelou, introduzira algumasalterações-acrescentos ao processo.

Os conflitos mais comuns emCasseque 3, segundo o representante doGoverno que comigo conversoulongamente, são facilmentetipificáveis. Resultam, nalarguíssima maioria dos casos, de umde três “tipos de ocorrência”: ora deinfidelidades conjugais entre osresidentes, ora de acusaçõesrecíprocas de feitiçaria, muitasvezes no seio de uma família dedeslocados, ora ainda de roubos aaglomerados residenciais davizinhança do campo.

Também as penas, ao que parece,estão bastante estandartizadas. Amaior parte dos conflitos (fossemeles originados por infidelidades222,

222 Curiosamente este rol de ilícitos não parecediferir muito daquilo que terá sido historicamente ocaso entre as populações umbundo não deslocadas. Najustiça tradicional dos umbundo (conforme explicaRaúl David, op. cit., pp. 54 e 55), as questões deadultério seriam resolvidas, inicialmente, emreunião de família e só depois vão à embala. Asprovas tiram-se das declarações do ofendido; oacusado raramente é interpelado; e a mulher éouvida, para se saber se houve sedução ou adultério

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feitiçaria223, roubos224, oubebedeiras), António Pinto (tal comoantes dele os sobas) decidia por normamultar o acusado, podendo essa multaconsistir numa mera proibição (defazer feitiço, por exemplo), ouredundar num pagamento pecuniário, ouna prestação de um determinadoserviço ao lesado.consentido. Uma vez provada a culpa, o “réu” éobrigado a pagar o etevo (nome dado a uma“indemnização por adultério” localmente aplicada) e,caso não o possa fazer, é torturado e condenado a“trabalhos forçados”.

223 A feitiçaria (designada por wanga nas línguasumbundo e quimbundo) consiste por via de regra numaagressão mística levada a cabo por um kimbanda,através do recurso aos seus poderes especiais,quando consultado por alguém que quer agir contraoutrem (é o caso da entrega de amuletos para usarcontra quem o deseja molestar e que provocam mal-estares físicos de gravidade e intensidadevariáveis, esterilidade nas mulheres, alienaçãomental ou uma qualquer doença mortal). Um ataque deum feiticeiro pode consistir, também, na acçãodirecta através de veneno ministrado para o efeito,ora subrepticiamente, ora ostensivamente, comotambém aliás acontece em alguns julgamentos, nesstescasos com o intuito de se apurar a culpa do acusado.

224 De acordo com Raúl David, op. cit., p. 53, osumbundo serão ensinados desde cedo a repudiar aprática do roubo, e os ladrões são sempre condenadosa pagar multas pesadas (o autor, um angolano deBenguela, acrescentou, sendo muitos deles, porvezes, “torturados antes do julgamento”).

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Quando António Pinto (e, antesdele, um soba “devidamentecredenciado”) não conseguia resolverum qualquer conflito (ou porque esteapresentava grande complexidade, ouporque não estava na posse de todosos elementos, ou porque se tratava desituações de extrema gravidade, comohomicídios225), era por todos tidocomo lícito recorrer às autoridadesoficiais para o julgamento dos casos.O que então era feito.

Mas regressemos às inovaçõesprocessuais introduzidas por AntónioPinto. Ao que me foi com dignasobriedade relatado pelo próprio,estas adições coadunuar-se-iam bemcom os modelos idealizados de uma“justiça popular” com os quais,enquanto militante activo do partidono poder, António Pinto comungava.Envolviam aquilo que sou tentado acaracterizar (porventura com algum225 Nos casos de assassínios, ainda segundo David, no“contexto umbundo” deixou de se aplicar o brocardo“olho por olho, dente por dente” (em que o assassinoera morto da mesma forma que usara para matar avítima), ficando o culpado obrigado a servir afamília do morto por um período determinado, “atítulo de compensação”, quando não pudesse pagar combens materiais.

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exagero) como estando a meio caminhoentre uma “consulta popular” directae pública, e uma sessão colectiva de“crítica revolucionária”. Se encaradodeste ponto de vista, o acrescentoprocessual encontrado foi umatrouvaille.

Depois de ouvidas as testemunhas,António Pinto, inovadoramente,passava sempre a palavra a todos ospresentes. Instados a fazê-lo, estesentão “criticavam, defendiam,atacavam” e, interactivamente,sugeriam uma solução para “o caso”.Tinha lugar assim uma espécie deconsulta generalizada e semi-informalàs opiniões locais. O que não faziaantes parte do rol de tradiçõesumbundo, mas que o jovem “responsávelcultural” tivera por bemacrescentar226. Só então António Pinto226 Nada disto é particularmente surpreendente.Boaventura de Sousa Santos (2003) coordenou arecolha de dados relativos a numerosas situações domesmo tipo em Moçambique, aliás num muito mais ricopormenor do que aquele – meramente um esquisso - queaqui apresento. Neste contexto, não prescindo decitá-lo, ao generalizar que “tal como aconteceraantes com a cultura eurocêntrica, revolucionária esocialista, a cultura eurocêntrica, capitalista edemocrática [que se instalou em Moçambique a partirde 1992] pretendeu ser a única referência culturallegitimada, mas de novo teve de conviver numa

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se sentia legitimado na eventualdecisão que tomasse. Por outro lado,essa decisão mais facilmente seriaacatada227, explicou-nos, em virtudedessa consulta popular alargada epública, e tomados em linha de conta“considerandos de fundo” que

constelação cultural todavia mais complexa, não sócom culturas de maior duração, a colonial e astradicionais, como ainda com a culturarevolucionária do período anterior. É que estaúltima tinha-se traduzido numa importantematerialidade institucional que, apesar deformalmente revogada, continuava a vigorar no planosociológico”. A tradição, de facto, já não é o queantes se postulava que deveria era.

227 Formas compósitas deste género não são raras umpouco por toda a África austral contemporânea. Parauma discussão pormenorizada sobre adaptações“democráticas” a que têm sido recentemente sujeitasdispute institutions tradicionais deste tipo no sul doContinente africano, ver G. J. van Niekerk (1995, op.cit.: em particular pp. 84-94), em que sãoequacionadas questões ligadas à progressãohistórica, na Namíbia e na África do Sul, de algunsdos mecanismos locais de articulação-compatibilização de legitimação “tradicional” e delegitimação “democrática” dos dispositivos eprocessos “judiciais” utilizados. Numaperspectivação mais dinâmica, podemos tambémentrever dispositivos “judiciais” como aquele queesbocei para o campo Casseque 3 nos termos de umenquadramento político local decerto muitocompetitivo entre o Governo angolano e a UNITA. Comoescreveram S. Burman e Wilfred Schärf (1990: 735)relativamente aos Comités de Rua “espontâneos” queemergiram nos ghettos sul-africanos nos últimos anos

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permitiam aos participantes melhorpôr o caso em perspectiva.

Em resposta a uma minha perguntasobre o acatamento das suas“sentenças”, António Pinto assegurou-nos ter invariavelmente tido umenorme sucesso: as decisões quetomara foram “sempre”, ao que comconvicção e alguma alegria e orgulhoafirmou, integralmente respeitadas ecumpridas. Não tive maneira de apuraraté que ponto tal corresponderáefectivamente aos factos.

Em guisa de conclusão para estejá longo primeiro exemplo, não querodeixar de fazer alguns comentáriosgerais, no intuito de sugerir228 um

do regime de apartheid, “when there is a lack of agreement onbasic ideals in a society, as when new values are being generated,competition for followers is likely to take the form of offeringalternative sets of values”. É questão intrigante a deapurar o sentido em que ingredientes deste tipopossam estar em causa no exemplo que ora apresento.Só com mais informação do que aquela de que disponhoseria possível testar as tão interessantes hipótesesque de imediato são suscitadas e desencadeadas porasserções como essa.

228 E tão-somente sugerir, já que não disponho dedados empíricos suficientes para mais do que isso,visto ter sido curtíssima (de pouco mais de um dia)a minha permanência no Huambo. Tento não especularpara além daquilo que as informações factuaisrecolhidas me permitem. Parece-me todavia

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mais amplo enquadramento para asquestões que a cristalização de“formas judiciais” destas não podemdeixar de suscitar.

Comecemos pelo topo. O que maisinteressante se afirma no estudo dossistemas jurídicos africanos actuaisé decerto aquilo que, ao mesmo tempo,os torna mais refractários em relaçãoa quaisquer explicações simples eunitárias: a saber, o enovelardensíssimo das múltiplas ordensnormativas que neles se conjugam, umentretecer que emerge sobre a base deuma difícil dissociabilidade entre osordenamentos normativos estaduais“europeus”, de que desses conjuntosfazem parte integrante, e as matrizesculturais locais que muitas vezes tãoprofundamente os redimensionam.Trata-se de uma indissociabilidadeque muitas vezes, a nosso própriorisco, tendemos a subvalorizar.

No exemplo angolano que acabei defornecer, a hibridização não é tãolinearmente “estadual” e ajuridicidade não parece ser a de umindiscutível a interesse de futuras e maispormenorizadas investigações sobre este tipofascinante de “miscigenização judiciária”.

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contratualismo, como é o caso, iremoster a oportunidade de verificar, emS. Tomé e Príncipe. Mas também aqui,neste exemplo angolano229, osprocessos complexos de integração-harmonização de regras eprocedimentos passam por um229 Um outro rápido paralelo. Num curto masriquíssimo artigo, Albie Sachs (1984) narrou-nos aexperiência que teve, em 1979, ao confrontar-se comum Tribunal Popular moçambicano, que a Frelimoimplantara a 1500 Km a norte do Maputo. O texto deSachs é perpassado por um enorme entusiasmo pelaexperiência, politicamente motivada, dereorganização judiciária a que um Tribunal como essedava corpo; mas sente-se também tratar-se de umentusiasmo muito mesclado com dúvidas sistemáticasem relação a capacidade dessa experimentaçãopolítica em resolver as questões que se prendemtanto com o pluralismo jurídico e jurisdicionalmoçambicano (que, uma dúzia de anos depois,Boaventura de Sousa Santos apelaria “a paisagem dasjustiças”) como com o pluralismo sociológico quecaracteriza o demos moçambicano [as palavras sãominhas e não dele]. Pena é que A. Sachs não entre empormenores relativamente ao que decerto exprimia jáentão (no contexto de uma 1ª República cujaideologia marcava profundamente as representaçõesesgrimidas pelos arautos desses Tribunais) uma“hibridização” cultural nítida. Para um retratoinverso, mas simétrico, relativo à forma como os“tribunais” tradicionais sobreviveram e se foramintegrar no sistema nacional do Estado,“miscigenando-o”, ver, por todos, Simon Roberts(1972), sobre os tribunais Tswana, vários aspectosdos quais estão hoje em larga medida implantados anível oficial na estrutura da organização judiciáriado Botswana.

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entretecimento criativo que visaassegurar alguma eficácia no controloadministrativo e político efectivo,pelo Estado, de pessoas e regiões230.

E, neste caso também, tal comomutatis mutandis no exemplo santomenseque se segue, aquilo que me parece

230 Um ponto cujo desenvolvimento nos levaria longe.Num curto mas denso artigo com já alguns anos,Boaventura de Sousa Santos (1984) começou porsublinhar a sua convicção segundo a qual, embora ospaíses africanos lusófonos devam ser concebidos comopaíses africanos integrados nas suas respectivasregiões do Continente, dois factores os tornamcomparáveis com, e diferentes dos, outros Estados deÁfrica: a guerra prolongada (a qual, segundoBoaventura de Sousa Santos, com a excepção de S.Tomé e Príncipe a todos envolveu), e o facto dassuas ascensões à independência política teremocorrido tardiamente e num clima internacional muitosui generis. O que justificaria as suas marcadasespecificidades. Sousa Santos deu realce à“profissionalização da administração da Justiça”, à“politização” e à natureza íntima, nasrepresentações comuns, da “relação entre a lei e oEstado” como os três maiores obstáculos a umaaproximação entre o costumeiro e o popular, queconsidera imprescindível: como este A. escreveu(ibid.: 84), “perante formas claras de pluralismojurídico”, o risco é o de que “an excessive preocupationwith centralization and uniformity may end up being detrimental tothe acceptance of the new law and administration of justice now underconstruction. It is necessary to use prudence to safeguard the basicunity of the polity, without, however, destroying the capacity fortraditional popular creativity,at the local and regional level, withoutwhich it will not be possible to create a true national identity towards amore just society”. Num trabalho anterior sobre os

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estar em jogo é uma reduplicação, porhomologia e como que por contágio, deuma experiência social prévia desubmissão ao poder, ou melhor, àsformas mais óbvias do seu exercício.

Viremo-nos, então, para oarquipélago de S. Tomé e Príncipe, epara um segundo exemploantropológico-jurídico.

15. O QUADRO SOCIOCULTURAL DAS FORMAS“ESPONTÂNEAS” DE “PROCESSAMENTO” DELITÍGIOS EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE

Comecemos pela asserção de que aesmagadora maioria dos litígios econflitos que eclodem em S. Tomé ePríncipe, de uma forma não-trivialnão chegam às autoridades judiciaisestaduais, por serem resolvidos porrecurso a meios alternativos locais

Tribunais de Zona em Cabo Verde, infelizmente nuncapublicado, Sousa Santos defendera uma versãomitigada desta co-optação do “tradicional” pelo“revolucionário”.

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bastante específicos231. Mas os quechegam (e são aí configurados comoisso mesmo, conflitos e litígios,individuais ou colectivos) sãolevados a essas instâncias por quem?E em que casos isso se verifica?

Não tenho conhecimento dequaisquer estudos minimamentefidedignos que sobre estas questõesse tenham debruçado. Mas, com basenas conversas entretidas comresponsáveis bem informados e dosdados mais fiáveis que obtive pelaminha própria, ainda que muito curta,“observação participante”, não éimpossível esboçar uma primeiraimagem (ainda que parcialmente

231 Para muito mais pormenores sobre estas e outrasquestões, ver Armando Marques Guedes et al. (2002, op.cit.). Não posso deixar de aqui exprimir a minhagratidão a N’gunu Tiny, Ravi Afonso Pereira,Margarida Damião Ferreira e Diogo Girão por todo oapoio empenhado que me prestaram na recolha etratamento destes dados, tanto em S. Tomé e Príncipequanto em Lisboa. Dedico também o meu agradecimentoa todos os santomenses, de numerosíssimos meios edas mais diversas condições sociais, pela simpatia ecarinho com que me ouviram, com que responderam aperguntas incessantes que muitas vezes lhes devemter parecido absurdas, e pelos numerosos convites,que sempre aceitei de muito bom grado, paraparticipar em vários dos “segredos” da sua vida emcomum.

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impressionista) quanto a eventuaisrespostas para estas (e outras)questões.

Encontram-se porventura sobretudoentre aqueles com maior poder sócio-económico os que em S. Tomé ePríncipe mais preparados estarão paraprocurar no poder judicial estadual amelhor resposta para resolver os seusconflitos. Isso está decerto muitoligado ao facto de ser entre estesque se encontra o mais alto nível deescolaridade e educação formal. Poroutro lado, no entanto, uma maiorconsciência “jurídica”, e umacorrelativa maior convicção nacapacidade do poder estadual para aresolução de conflitos, vislumbra-se,no arquipélago, entre as camadas maisjovens (cujo nível médio de instruçãoé também mais alto).

Outras entidades que naturalmenteprocuram os tribunais são asempresas. O sector privado, emcrescimento em S. Tomé e Príncipe,necessita de um sistema judicialforte e eficaz, que possa resolver osinevitáveis e crescentes litígiosentre empregadores e trabalhadores eentre empresas e a administração

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estadual. As empresas (nacionais eestrangeiras) são pois naturaisadeptas do desenvolvimento de todo umcorpo jurídico formal e de mecanismospúblicos, homogéneos e precisos eminuciosos de resolução de conflitos.É de resto reconhecida, na maioriadas opiniões que recolhemos, aimportância do desenvolvimento detais questões para a evolução dosistema judicial santomense232.

Para estes novos e velhos grupossociais, quais os tipos de litígiosque chegam aos tribunais? Se, na suagrande maioria, os conflitos parecempoder ser “resolvidos” no contactodirecto entre as pessoas, nos seuspróprios termos e (pelo menos nalgunscasos) a contentamento relativo detodos, que tipo de casos restam para

232 Dado o alargamento em curso do sector económicoprivado, e sobretudo do sector económico privado nasmãos de nacionais santomenses, também nisso seevidenciam expectativas específicas. Sobressaidaquilo que ouvi repetidamente, a urgência sentidapor muitos no que diz respeito à constituição umórgão de poder soberano que não hesite em tomareventuais decisões contra a administração estadual,evidenciando relativamente a esta uma largamentedesejada e natural independência.

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levar a tribunal, ou a instânciasestaduais inferiores233?

O grosso dos casos que sobem àsinstâncias judiciais parece ser dematéria criminal, normalmentepequenos delitos como, por exemplo,os envolvendo furtos de pequenovalor. Estes, além de em geral maiscomplicados de resolver entre aspartes, beneficiam do facto (do pontode vista dos projectos hegemónicos doEstado) de dizerem respeito a acçõesconsensualmente consideradas comosendo públicas. Assim, desde quePolícia ou Ministério Público delestenham conhecimento, casos destespodem (com a anuência tácita damaioria da população santomense) serencaminhados para o aparelho judicialdo Estado, mesmo que para tal nãocontem com a colaboração dasentidades em litígio.

Um exemplo bem diverso é, nessecontexto, o relativo a essa matériasensível que são, no arquipélago, asquestões de Direito da Família, parausarmos uma terminologia nossa

233 Como em S. Tomé e Príncipe funciona tantas vezes,na prática, a Polícia.

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conhecida. Em São Tomé esta é umamatéria com contornos muito próprios.O casamento, como passo ritualizado(seja em termos religiosos, sejacívicos), não é por via de regrapraticado, sendo as relações entrehomem e mulher mais próximas daquiloa que chamamos “uniões de facto”.Para além disto, é corrente cadahomem ter mais do que uma família(sobretudo, foi-nos ditorepetidamente, em meios urbanos e emcírculos mais abastados),constituindo-se assim, nalgunscírculos, vários agregados familiaresparalelos com alguma dose inevitávelde inconsistência orgânica entresi234.

De qualquer modo, algumas dascaracterísticas próprias da vidasocial em São Tomé, a proximidade e234 Tudo isto origina diversos escolhos, e fá-lo deuma maneira complexa e multidimensionada tal que,por vezes, só uma autoridade externa pode esperarsaber resolver os imbroglios, senão a contento detodos, pelo menos de forma conclusiva. Aquilo a quefaço alusão são aqui por exemplo questões como afiliação, o reconhecimento da união, o direito aalimento, entre outros, que fazem com que por vezessó um tribunal possa assumir decisões (resta saberse acatadas) que de outro modo só raramente seriamsequer tomadas.

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intimidade entre muitos dos seushabitantes, a integridade (presumidae idealizada) da família e o seucarácter assumidamente privado, asrepresentações entretidas quanto àrealidade como uma configuração quereleva do domínio místico-espiritual,levam a que muitos casos as pessoaspura e simplesmente não queiram ir atribunal. Para muitos santomenses, aesfera considerada privada é ampla; equaisquer interferências nela depoderes públicos (poderes esses que,de qualquer maneira, a ninguémparecem inspirar grande confiança)seriam, por isso mesmo, absolutamenteinaceitáveis.

O que suscita alusão a um pontoque vale a pena bem sublinhar. Osentimento que resulta destadicotomia categorial popular, muitofirme e assimétrica, entre o privadoe o público, é agudizado, em S. Tomée Príncipe (e isto um pouco a todosos níveis sociais, embora aí hajadecerto distinções finas a fazer),por uma desconfiança bastante radicalem relação ao Estado235. Uma235 Outra coisa, aliás, não seria de esperar de uma“sociedade civil” que se foi constituindo numa

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desconfiança, aliás, recíproca, jáque o Estado tende, em S. Tomé ePríncipe, em marcar uma claradistância, pelo seu lado também, emrelação às dicotomias ecategorizações “populares” dossantomenses236. Para a maior parte dos

colónia esclavagista, com uma população sujeita auma economia de plantação, para depois sofrer asagruras de um período marcado por uma discriminaçãoracial sistemática e que, num período mais recente,se viu submetida aos melindres dos forcings de umaengenharia social típica dos regimes políticos comoo da 1ª República santomense.

236 Bastará aqui dar um exemplo, dos muitospossíveis: o relativo à atitude do Estado no quetoca ao dimensionamento sociocultural “místico” queos santomenses tendem a entrever nas relações entrepessoas, e ao consequente papel que nela preenchemfiguras como as dos curandeiros, mestres efeiticeiros. Tornamos a citar Paulo Valverde (op.cit., 2000: 76): “como em muitos contextos coloniais,a figura do curandeiro atraíu suspeições eperseguições por parte das autoridades. Conformeoutros antropólogos sugerem [...], esta hostilidadefoi motivada, em parte, pelo lastro históricointenso da repressão na Europa sobre as práticasconsideradas como bruxaria, feitiçaria, magia, etc.,e, em parte, porque – umas vezes erradamente, outrasacertadamente – se considerou a figura docurandeiro/feiticeiro africano como um potencialfoco de subversão política. Estas reflexõesadmitiam, assim, a continuidade entre os processosterapêuticos que incidem sobre a corporalidadeindividual e os processos de acção politizada”. OEstado parece assim ter sido levado a encarar estaspráticas e representações com uma atitude que tem

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santomenses com quem falei, a esferaprivada abarca a fatia maior da vidasocial, sendo mínimas (e, de algummodo, curiosamente quaseintegralmente residuais) as áreas emque admitem (no sentido de que lhereconhecem alguma legitimidade) aintervenção-interferência do Estado.Nesse contexto, parece ser fortíssimaa “sociedade civil” em S. Tomé ePríncipe.

Junta-se a isto a presença defortes sentimentos de agressividade evingança, desencadeados, por exemplo,relativamente a questões localmentemelindrosas como aquelas que envolvamideias de difamação ou injúriaspessoais, o que não deixa defavorecer a propensão para formasdaquilo que os juristas decertoapelidariam de “justiça privada”.

estado a meio caminho entre a arrogânciaexclusionária e a tolerância condescendente. Desteponto de vista, pouco ou nada mudou em S: Tomé ePríncipe desde a independência. Para efeitoscomparativos genéricos, é aconselhável a consulta deH. Moore e T. Sanders (op. cit.: 19) e, para o casoparticular dos Camarões, a do artigo de C. F. Fisiye P. Geschiere (op. cit.: 234-243)

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15.1. ALGUNS DOS “IDIOMAS” MÍSTICOSCORRENTES NAS CONVERSAS SOBRECONFLITOS EM S. TOMÉ E PRÍNCIPE

Quais as formas que assume essajuridicidade espontânea noarquipélago? A questão, naturalmente,não logra ser respondida com base nasinformações e dados empíricosrecolhidos numa curta visita deestudo como foi a nossa. Mas algumacoisa pode e deve, sem sombra dedúvida, ser dita.

No âmbito de uma tentativa dedelinear o “mapa topográfico” daquiloque se adivinha em S. Tomé e Príncipeno que diz respeito às representaçõeslocalmente entretidas sobre o queapelidamos de “litígios”(interpessoais ou intergrupais) e oseu processamento, irei no que sesegue descrever algo do que fuicompilando ao longo de numerosasconversas e entrevistas que tive,tanto com personalidades políticas eoutros membros das elites locais comoainda com pessoas que fui conhecendoem zonas urbanas e em zonas ruraisnas curtas visitas que fiz a

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praticamente todos os cantos da ilhade S. Tomé.

De toda uma organicidade da“juridicidade tradicionalsantomense”, que se apresenta comomanifestamente muito complexa, apenasdestacarei algumas das figuras dodomínio místico, personagens dasrepresentações populares locais comoalgo que toma face, como alguma coisapresente espiritual e fisicamente navida quotidiana, sendo este um doscampos dos mecanismos aceites e tidospela generalidade das pessoas como,senão o único eficiente, decerto umdos (ou o) mais eficientes, para“exprimir” e “processar” os“litígios” e “os problemas” com queas pessoas localmente se defrontam nasua vida quotidiana.

Não irei muito longe, neste camporiquíssimo e fascinante das práticase representações sociais em que S.Tomé e Príncipe é tãoreconhecidamente profuso. Mastentarei começar a circunscrevê-lo.

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15.2. CURANDEIROS E MESTRES,FEITIÇARIA E FEITICEIROS

Não me foi difícil, através deproveitosas conversas cruzadas comalgumas considerações de ordem maisgeral, apurar algumas das razõesfundamentais que levam os santomensesa muitas vezes optar por mecanismos“alternativos” de “resolução” deconflitos. Mas porquê os deste tipo?

Várias razões podem ser aduzidaspara o tentar explicar. Em primeirolugar, destaca-se a importância decrenças e convicções partilhadas noarquipélago quanto à acção de forçassobrenaturais e à constante intrusãodestas na vida social como fonte dasrepresentações entretidas e daspráticas seguidas pela larguíssimamaioria dos santomenses, desde os querepresentam os agrupamentos sociaismais rurais, remotos e despossuídos,até aqueles que ocupam os mais altoscargos políticos237. Podemos desde já237 Quantas vezes de maneira inconsciente, diríamos.São, neste contexto, particularmente interessantesas atitudes marcadamente racionalistas dos membrosdas élites santomenses relativamente a estaspráticas e crenças “populares”. Poderíamos citar umafrase de um antigo Ministro da Justiça de S. Tomé e

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avançar uma diferença gritante, quese nos afigura que os actores sociaisconsideram estar presente na justiçaoperada através destes mecanismosextra-estaduais, quando esta écomparada com os mecanismosexistentes na orgânica estadual: adiferença reside na acessibilidadegeral de todos à primeira,potencializada pelo facto de se“receitar” a mesma solução aopolítico de maior respeitabilidade eposses económicas do arquipélago e aoempregado que lhe limpa o gabinetediariamente. Não há assim, nessaversão (e nisso os actores sociaisopõem-na à outra) a “justiça dosopressores” e a “justiça dosoprimidos”; não há lugar a “partesdébeis” ou “contraentes dominantes”.

Príncipe que se propunha esclarecer, para nossobenefício, o que irá na mente de um cidadãosantomense quando este (ou esta) decide ir a umfeiticeiro ou curandeiro: “a ciência por vezes levademasiado tempo, tenta-se a superstição paraassegurar algum resultado”. Como irei teroportunidade de sublinhar, estas “convicçõesmísticas” não deixam em S. Tomé de ter o seu quê deambiguidade (como, aliás, ainda que de modo algodiferente, também é o caso em Cabo Verde, cfr.Armando Marques Guedes et al., 2001, op. cit.: emespecial pp. 48-53).

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E o reconhecimento generalizado dessefacto é sem dúvida uma motivação parao santomense.

Em segundo lugar, tal comosalientei, põem-se duas questões: nãosão só enunciadas dúvidas quanto àceleridade com que um problema é ounão solucionado pelo Estado (sendocomum ouvir-se comentáriosderrogatórios quanto à lentidão, bemconhecida, com que opera o sistemaoficial); mas são também suscitadashesitações, a cujas razões de fundojá fiz alusão, relativas tanto àadequação entre soluçõesestadualistas e clivagens tidas comoprivadas, quanto à legitimidade de aoEstado recorrer seja por que motivofor.238 Por último confronta-se, a um238 No que diz respeito a este conjunto particular demotivos que podem levar ao recurso a estesmecanismos mais familiares (no sentido forte dotermo) de “processamento” de conflitos, será aindade referir exemplos que, embora parciais, não deixamde ilustrar este quadro. Assim, muitos homensparecem em S. Tomé, ao ter qualquer tipo dedesentendimento familiar, preferir que a sua mulherrecorra à feitiçaria, mesmo se contra eles próprios,já que, dizem, evitam deste modo a consumação de umaofensa tão grave como a perpetrada pela instauraçãode um processo contra si. Por outro lado, é emmuitos casos a mulher a preferir ela mesma socorrer-se deste tipo de apoio, talvez como forma deamplificar o pouco poder que por norma tem em S.

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nível económico, o fácil acesso asoluções do tipo local e“tradicional” por um lado. E, poroutro, o carácter dispendioso que umqualquer processo estadualinevitavelmente acarreta.

Mas porquê feiticeiros ecurandeiros? Para introduzir demaneira analiticamente útil figurassociais com uma posição social tãorelevante como os feiticeiros ou oscurandeiros, teremos primeiro queprecisar as raízes do estatuto detais personagens no mapa da sociedadecivil santomense. Poder-se-ia dizerque o carisma dos protagonistas dabruxaria flui dos espíritos com quemcomunicam; existe no entanto umafonte de legitimidade terrena quedelega competências aos seussucessores, traçando uma linhahereditária de poderes e,consequentemente, de crentes. Alegitimidade de que goza umfeiticeiro advém de um prestígioalcançado pelo seu mestre, de quemfoi discípulo toda a vida. Se um“forro” (um natural do gruposantomense maioritário e dominante,Tomé, mesmo no âmbito da sua esfera familiar.

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segundo a terminologia local) temsempre o mesmo feiticeiro comoconselheiro e conhece o assistenteque trabalha com este, é em S. Toméconsiderado como “natural” que esteseguidor obtenha como clientes todasestas pessoas que confiavam no seupedagogo, transmitindo-se desta formao reconhecimento da legitimidade dosfeiticeiros.

Para que melhor se compreenda aorganicidade extra-estadual dopluralismo jurídico santomense, háainda que destrinçar duas categoriasde sujeitos activos das relaçõespara-jurídicas que comummente seestabelecem: a distinção, localmentecom firmeza operada, entre osfeiticeiros, por um lado, e por outrolado, os curandeiros. Não é nadaárduo diferenciá-las, principalmentese tivermos presentes as suas missõese funções que, segundo ossantomenses, são bem distintas. Ofeiticeiro, em S. Tomé e Príncipe, éuma personagem invariavelmenteprocurada para “lançar feitiços”contra uma outra pessoa com a qual setem um conflito, consistindo issonuma actividade que se resume a

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“rogar e desfazer pragas”, mais oumenos fortes (por vezes mortais)conforme a intensidade das paixõesdesencadeadas pelo “conflito”subjacente ou em causa. Por outrolado, os curandeiros tal como opróprio nome indica, são personagensmobilizadas no essencial para curar“doenças”, “perturbações” ou, como é(significativamente, como iremos teroportunidade de ver) localmentedesignado, para assim lograr pagádevê239.

Assim, o primeiro (o“feiticeiro”) terá uma conotaçãobastante mais negativa que o segundo(o “curandeiro”), já que, de acordocom a convicção de quem a estesrecorre, um deles faz o mal e o outroajuda a fazer o bem. O contrasteparece assim basear-se numa oposição

239 Este figura do “pagar dever” funda-seempiricamente no facto de as pessoas estaremconvictas na existência de “uma vida anterior aesta”, em que dívidas teriam sido incorridas por“contrato”, que, no presente as pessoas se vêemchamadas a saldar. Voltarei a este ponto, enomeadamente ao facto, fascinante, da caracterização“político-jurídica” que parece subtender todo ovocabulário e toda a imagética utilizados pelossantomenses quando se referem a tópicos deste tipo.

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“ética” local, relevando da“imaginação moral”240 dos santomensesque a entretêm (e, ao que apurámos,tratar-se-á, no que a estasrepresentações diz respeito, daesmagadora maioria da população241).

240 No notável trabalho, já citado, Paulo Valverde(2000 op. cit.: 88-89) ofereceu para estas distinçõesuma reperspectivação diacrónica e subjectivista,insistindo que “pode dizer-se que [em S. Tomé] asuspeição e a luta contra os inimigos mais ou menostangíveis se articula, intimamente, com umainstabilidade existencial que define o percurso doscurandeiros. Ser curandeiro – ou, na categoria localmais respeitada, mestre – é uma condição reversívele volátil, que deve ser renegociada incessantementecom múltiplos interlocutores – os espíritos ousantos auxiliares, talvez o Diabo e sobretudo osclientes. Só os curandeiros mais temidos, cujacategorização se torna ambígua – pelo seu poderimenso nunca se sabe bem se são do bem ou do mal,isto é, feiticeiros – alcançam uma espécie detranquilidade axiomática e não mais precisam dereafirmar quotidianamente a sua autodefinição decurandeiros”.

241 Dividindo a população de S: Tomé segundo umcritério estritamente religioso, parece ser o casoque temos, de um lado, os católicos (nominalmente,pelo menos, a grande maioria da população), e dooutro, os não católicos. Uma maior resolução deimagens, produz um gradiente. Entre os que seafirmam católicos poderemos destrinçar dois tipos dereacções ao fenómeno dos “mestres” e da“feitiçaria”: os que o conciliam com a vida cristã eos que não conseguem compatibilizar as duas.Fundamentando-se explicitamente na Bíblia (enquanto

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A convicção popular santomense naeficácia desta fórmula para oencaminhamento de conflitos émuitíssimo forte. E a níveletiológico apoia-se numa “teoria daagência” (traduzo propositadamente“mal” a expressão theory of agency) muito

testemunho religioso que, a explicação é comum noarquipélago, não fecha as portas à existência de umdemónio e à sua acção terrena mediante a utilizaçãode pessoas que se deixam levar pela tentação),muitos são os católicos que em S. Tomé dizem serseus intermediários todos estes feiticeiros ecurandeiros e que, por conseguinte, quando é casodisso recorrem ao seu poder para actuar contra osque os seus “inimigos”, ou “adversários”. Taiscatólicos parecem conseguir conciliar semturbulências cognitivas (ou sem grandesdissonâncias, pelo menos) duas convicções: acreditamfirmemente na existência e no poder dessesintermediários, embora publicamente neguem sempreter qualquer contacto que seja com eles. As muitaspessoas com quem falámos deram-nos constantementerespostas como: “sim tudo isso existe, mas eu nãosei como é porque nunca fui”; ou, “o diabo só usa aspessoas que gostam dele, ele gosta de quem faz tudoo que ele manda”. Um outro tipo de catolicismo, maisraro em S. Tomé, afirma que um verdadeiro crente nemsequer reconhece veracidade a qualquer história quelhe seja contada sobre bruxaria; toma-as como boatose nunca as comenta, senão para logo afirmar: “eu nãoacredito em nada disso porque isso é coisa dodemónio e eu acredito só em Deus” (tudo se passacomo se os santomenses deste grupo pensassem emsimultâneo, num primeiro passo, as duas hipóteses,considerando-as contudo, ainda que apenas numsegundo passo, como sendo incompatíveis). Assimnegam completamente qualquer peso à prática da

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particular: segundo a totalidade dossantomenses com quem trocámosimpressões, não faz verdadeiramentequalquer sentido atribuir a umaqualquer morte, ou doença, uma causanatural. Nem é posta em causa aversão que a conta como sendoresultado de uma intervençãosobrenatural; já que todas as mortes edoenças, afirmam, terão causasprofundas, em última instância sempreligadas a agressões místicasempreendidas por outrem. O que leva aque se viva no arquipélago, senão nummedo constante potenciado pelapossibilidade de ser alvo, a todo otempo, de um “mau olhado”, e numadependência insaciável relativamentea este fenómeno que paira no ar dia enoite, pelo menos com as cautelasdevidas242. Curioso é notar que osbruxaria. No que diz respeito à minoria não católica“ilustrada”, estes não acreditam “em nada”: sãomuitas vezes ateus e só admitem, dizem, “aquilo quevêem”.

242 Numa conversa com D. Abílio Ribas, o notávelBispo de S. Tomé (com quem tive três longas eminuciosíssimas trocas de impressões) deu bastanterelevância a estas representações e convicçõesgeneralizadas no arquipélago como “imprescindíveis”para quem queira “perceber aquilo que aqui se passaa nível político”. Foi-me dito que todos os

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próprios feiticeiros estãohierarquizados, tendo também elestemores, tanto numa linha verticalcomo horizontal, e manifestandomuitas vezes estes receios mútuos deforma peremptória. E padronizada: nãoousam, por exemplo, desafiar osfeiticeiros de Príncipe: já que é dosenso comum que estes gozam de mais emaiores poderes que os de S. Tomé243.santomenses no fundo acreditavam nos feiticeiros(embora alguns o negassem) “desde o mais necessitadoaté ao político que antes de tomar posse encarrega oseu feiticeiro de entrar no seu gabinete à suafrente, para que este lance sal pelo chão e destemodo desfaça qualquer feitiço que hipoteticamentepossam ter lançado sobre si”. Os governantessantomenses, foi-me por exemplo asseverado,sobretudo se à nascença não foram devidamente“trancados” (como habitualmente é feito com todas ascrianças), antes de tomar posse de um qualquer novocargo preventiva e cuidadosamente “trancam o corpo”;pois “a superstição”, foi dito, levá-los-ia a crerque “um corpo aberto” estará muito mais susceptívela ser vulnerável a eventuais “feitiços deixadospelos seus antecessores no posto governativo”.Vários outros exemplos me foram sublinhados dacentralidade da dimensão “mística” para ainteligibilidade das dinâmicas políticas noarquipélago. O caso de S. Tomé e Príncipe nesteâmbito não é de maneira nenhuma excepcional emÁfrica.

243 Ao discutir (muito superficialmente) com membrosda intelligentsia local, no âmbito de uma rápida visitaao sudeste de S. Tomé, a situação dos Angolares,tornou-se evidente que, de acordo com as asserções

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Importa, no contexto de tudoaquilo que acabei de referir, saberpôr em perspectiva a postura ambíguacom que é encarada em S. Tomé ePríncipe esta dimensão “mística” davida social. Porque não é só o Estadoque mostra quanto a ela uma estudadarenitência. Muitas são também asresistências com que este complexo deconvicções-crenças e práticas deparaa nível da “sociedade”, e porventurade maneira especial entre as elitesmais instruídas e “ocidentalizadas”.

Como escreveu Paulo Valverde244,que aqui merece ser longamentecitado, “a feitiçaria e os complexos

locais, também neste ponto os Angolares sedistinguem dos “forros”: uma vez que (foi insistido)os Angolares seriam “gente em que essas ideias sevão desvanecendo cada vez mais”, “não havendo entrenós um medo tão acentuado e generalizado dafeitiçaria” como entre os “forros”. Entre Angolares,foi assegurado, os conflitos que surjam no seio dafamília são imediatamente resolvidos pelo familiarmais velho e “com mais experiência”, que por estarazão é visto como o mais apto para ajudar emsituações “difíceis”. Mais uma vez, note-se, trata-se aqui de asserções categóricas formuladas pormembros das élites, asserções identitáriascontrastivas que valeria a pena tentar confirmar ouinfirmar.

244 Paulo Valverde (op. cit.: 128).

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sociais que lhe estão próximosconstituem um domínio fortementeproblemático, podendo suscitar, entreos são-tomenses, reacções dramáticase diametralmente opostas. Em termosmuito gerais, à semelhança do queocorre em muitos outros contextosetnográficos, a feitiçaria revela-se,conforme os indivíduos, sedutora ourepulsiva pelo facto de ser umacompetidora de discursos e praxisinstitucionais hegemónicos que têmcomo objecto prioritário a definiçãoe o controlo da pessoa humana e dasrelações físicas e metafísicas em queesta está comprometida. A feitiçariae a medicina tradicionais são muitasvezes concorrentes directas erelativamente eficientes dabiomedicina ocidental e de religiõespoderosas como o cristianismo ou oislamismo. Além disso, sobretudo noséculo XX [...], as administraçõescoloniais e pós-coloniaispressentiram a sua apetência políticaou a sua potencial aptidão paradesestruturar e deslegitimar ospropósitos de hegemonia e de controlodos novos poderes centralizadores. As

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práticas repressivas foram assimgeneralizadas...”.

Talvez tanto como antes, na“época colonial”, o Estado pós-colonial santomense tem vido aencarar com um misto de hostilidade,repulsa e indiferença (mas a fazê-loem doseamentos variáveis), este tipode expressões socioculturaislocais245. Tal como, aliás, embora demaneira muito diferente, a“sociedade” santomense.

Não quereria, neste precisocontexto, deixar de salientar uma dasformas pelas quais a sociedadesantomense tem historicamente vindoa, senão advertir, pelo menosanunciar, ao Estado o que pode(porventura sem grande distorção) ser

245 A relação, aliás, é complexa. Não chegaria aoponto de afirmar que as élites que controlam oEstado as tem como uma afronta ao sistema judicialinstituído; mas podemos adiantar desde logo que oEstado as categoriza como práticas presas a umpatamar de invalidade racional e ineficáciamaterial, que não permite a sua integração numsistema misto e conforme a uma “realidade africana”que os membros dessas élites tendem a descrever emtermos muito “positivistas” e “materialistas”. Osseguidores destas instâncias não oficiais, pelo seulado, conotam como uma “jurisdição paralela” aprotagonizada pelo Estado, vendo-a como ineficiente.

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interpretado como uma quasi-apetênciapara essas formas de mediaçãopública. Com efeito, basta cingirmo-nos, ainda que tão-sósuperficialmente, às representaçõeslocais santomenses relativas aodomínio genérico daquilo que o Estadoapelida de “conflitos” e da sua“resolução”, para darmos conta de umafascinante colagem verbal ecategorial dessas práticasconsuetudinárias relativamente afiguras estaduais típicas246. Ummimetismo notável. Ponhamo-lo emevidência.

O tópico genérico dos discursoslocalmente entretidos no arquipélagosobre tensões sociais parece ser, noessencial, económico-político-moral;246 De alguma maneira à contre sens, não tenho assimgrandes dúvidas quanto a afirmações como a de H.Moore e T. Sanders (op. cit.: 17 e 19), segundo osquais “contemporary witchcraft and anti-witchcraft in Africa need tobe understood in terms of state power, actual political processes, andlocal political institutions”. Nem quando, tomando em linhade conta as ligações complexas entre formas“consuetudinárias” e formas estatais em África,asseveram que “witchcraft and the occult are […] not just aboutpopular ways to resist the state. They are constitutive of state powerand legal process”. O diferendo reside no lugar e nopapel que atribuo à “feitiçaria” e, por isso, ao seusentido “instrumental” e ao seu significadosimbólico mais genérico e “teológico”.

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ou relevando, mesmo, de umvocabulário “jurídico” (e dasrepresentações nele embebidas) queparece ter colonizado aquilo que (talcomo o fizemos em relação a CaboVerde) talvez não seja abusivodescrever como “o imaginário e ovocabulário sociais e políticos”247 emS. Tomé e Príncipe. São os própriostermos crioulos (e portugueses)utilizados que o traem: pagá devê,pagamento, contrato, sentença,castigo, disprezo, xicote, vingança,preso, justiça, mestre, paço do247 Armando Marques Guedes, et al., 2001 op. cit.: 53-54.No caso presente, de S. Tomé e Príncipe, estacolagem é ainda porventura mais nítida do que aquelaque sublinhei existir em Cabo Verde. Tal como fiz noestudo anterior, agradeço a António Hespanha o ter-me inicialmente chamado a atenção para este ponto epelo paralelismo que então aventou existir com aEuropa meridional do Ancien Régime, durante muitosséculos “uma civilização construída sobre oDireito”, la civilità de la carta bollata. Mais uma vezacrescento, no entanto, uma consideraçãosuplementar; é interessante verificar os diferentesníveis de permeabilidade à “colonização ideológica”aqui em causa: a aparente porosidade ideológica dasélites, que tendem a preferir, de maneira linear,adoptar “por atacado” modelos europeus, e aporosidade relativamente menor do resto dapopulação, que ao que tudo parece indicarinstrumentaliza antes “à peça” e em termosporventura mais tradicionais, apenas uma poucas dasfiguras e alguma da terminologia “importada”.

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mestre, etc., são termos queobviamente nos remetem para metáforasalusivas a subordinações económicas eà dominação política, acorrespondências que aludem asituações e experiências sociaisentrevistas em quadros conceptuaispor sua vez marcados por uma“juridicidade contratualista” de ecostambém curiosa e claramenteestatizantes, ou “estadualistas”.

Não será decerto preciso assumiruma postura muito durkheimiana paradar relevo ao facto de que toda estaterminologia (que as expressões“tradicionais” santomenses decategorizacão, conceptualização eprocessamento de tensões e conflitospartilham com as estatais suas afins)alude visivelmente a experiências desujeição a formas de poderrepresentadas segundo quadros ematrizes implantados pelo Estado noarquipélago. A incorporação destaterminologia pelos santomenses torna-se, deste ponto de vista, numaquestão fascinante; sobretudo semantivermos em mente o padrãocontinuado de renitência eresistência face ao poder do Estado

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que, como noutro lugar sublinhei, temsido apanágio da articulação complexaentre este e a população do pequenoarquipélago248.

Irei, de seguida virar-me para umterceiro caso jurídico-antropológico,desta feita relacionado com os Attadas Filipinas.

16. O “POLÍTICO”; O “JURÍDICO” E O PODERPERFORMATIVO NA INTERPRETAÇÃO PÚBLICA E

248 Ver Armando Marques Guedes (2002, op. cit.,sobretudo a parte final do volume). Ao que tudoindica, não se trata apenas uma questãoterminológica. Tanto quanto consegui apurar, muitasdas práticas “tradicionais” santomenses recorrem aum marcado mimetismo relativamente às estaduais suasafins. Assim, por exemplo, há fortes semelhançasentre a distribuição espacial das personagens emocorrências jurídico-políticas públicas e colectivase os protocolos “consuetudinários” aí seguidos e osseus equivalentes funcionais estatais; ou entre asformas (bastante formalizada, adversarial e“mediada” por um discurso com pretensões à isenção)tradicionais e estaduais de encaminhamento deconflitos interpessoais no arquipélago. Um temafascinante para investigações futuras, que mais umavez nos remete para a interacção complexa entreEstado e sociedade em S. Tomé e Príncipe.

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COLECTIVA DOS SONHOS ENTRE OS ATTA DASFILIPINAS

No que a este derradeiro exemplodiz respeito, gostaria de começarretomando e aprofundando alguns dospontos que atrás assentei (na ParteII deste estudo) no que diz respeitoà organização social dos Atta249. Talcomo muitas outras sociedades quevivem da caça, da pesca, darecolecção e das trocas comerciais,os Atta exibem poucos dos traçossócio-organizacionais que temos porregra vindo a associar a sociedadestribais. E estas diferenças devem serentendidas num sentido forte. Pensoem características como, por exemplo,a primazia relativa dos idiomas deparentesco, a solidez e até oascendente, ou mesmo a permanência,249 Recapitulo aqui sem grandes alterações, mas demaneira bastante simplificada, aquilo que discuti emArmando Marques Guedes (1999), num trabalho queconsta da bibliografia recomendada para uma dassessões (a 6) do programa da disciplina deAntropologia Jurídica; como poderá ser facilmenteverificado, muito do que aqui e aí discuto radica,do ponto de vista teórico, em modelizações sobre a“performatividade”, que são parcialmente discutidasnas referências que incluí na sessão 7 desse mesmoprograma.

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dos agrupamentos sociais corporativosou das relações de propriedade, paranomear apenas algumas.

Não quer isto dizer, obviamente,que os Atta tenham de alguma forma“menos” organização social que outrassociedades, ou que a organizaçãosocial que têm não possa serestudada. Conceitos como os de fluxoe de fluidez250, ou o de “sistemas

250 Sem querer aqui entrar em grandes detalhes, vistoesta questão ser marginal para os meus objectivos,bastará referir que fluxo foi definido por C.Turnbull como “as mudanças constantes de pessoasentre os grupos locais (dos pigmeus Mbuti do Zaire),assim como as deslocações frequentes dosacampamentos ao longo das estações do ano” (ColinTurnbull, 1968: 132, tradução minha). Turnbullconcebeu estes movimentos, a dois níveis, comorespondendo essencialmente a coordenadas políticas,o que tem suscitado diversas reacções polémicas, noestudo de caçadores e recolectores, que não cabeaqui senão indicar. Assim, B. Morris (1982),insistiu que, pelo menos no caso dos Malapandaram dosul da Índia, o fluxo resultaria muitas vezes deconsiderandos economico-jurídicos ligados à fuga adívidas a comerciantes vizinhos. Enquanto J.Pederson e E. Wochle (1988) insistiram que, tantoentre os Efe como entre os Bamgombi da RepúblicaCentro-Africana, o fluxo resultaria de uma variedadede factores que não só os políticos, nomeadamente depressões económicas ligadas às exigências daprestação de serviços agrícolas aos agricultoresbantu das redondezas.

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sociais lassamente estruturados”251,têm sido abundantemente utilizadosnuma tentativa de ultrapassar asnotórias insuficiências das análisesestrutural-funcionalistas de taisagrupamentos.

Mas podemos ir mais longe. Seaspirarmos a uma teorização adequadadestes sistemas, parece-meimprescindível procurar as práticasou os construtos alternativos,típicos desta área cultural e destetipo de sociedades, em termos dosquais são atribuídos suportessignificantes destinados a darsentido tanto à experiência como àsinteracções dos actores sociais.Trata-se de esquemas e práticasconceptuais, argumento, que longe de251 Um conceito elaborado por James Embree (1950), umdiscípulo de A. R. Radcliffe-Brown, para dar contado facto de, na sociedade urbana tailandesa, parecerhaver pouca definição da “rede de direitos eobrigações entre indivíduos” que a cartilhaestrutural-funcionalista definia como formando onúcleo duro da “estrutura social”. Uma redefiniçãodeste último conceito esvazia naturalmente deconteúdo a ideia segundo a qual as sociedadessudeste-asiáticas teriam uma “estrutura social lassa(loose)”. Com efeito, estas sociedades tendem aatribuir pouca importância a princípios jurídicosdeste tipo, preferindo maneiras alternativas deenformar as relações sociais.

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preceder, ou determinar, essasexperiências e essa acção social, asacompanham, enformando-as esimultaneamente dando-lhesinteligibilidade; são formassimbólicas que me parecem dever serconceptualizadas como estando de umacerta maneira a meio caminho entre apalavra e a acção, porque partilhamtanto das características dossímbolos e da linguagem como das deperformances pragmáticas. A sua forçailocucionária é marcada.

No caso particular dos Atta, queroaqui ilustrá-lo, há várias formascomportamentais deste tipo que meparecem ter implicações positivaspara um desempenho social apropriadodos indivíduos, na medida em que lhesfornecem mecanismos, ou dispositivos,de acordo com os quais estes seinformam mutuamente das maneiras comoidealmente ordenam as suas relações evidas sociais e com as quaisactivamente as reordenam a ambas aofazê-lo.

Não quero deixar de ser explícitono que toca a este particulardimensionamento do domínioetnográfico que abordo. O que

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pretendo sugerir é que, pelo menos nocaso dos Atta, há modelos,simultaneamente formalizados epúblicos, largamente acatados eutilizados na interpretação dossonhos, que integram e dão forma aalgumas configurações performativas.Não são os dispositivos maiselaborados que operam nesse sentido,nem são particularmente importantes:mas parecem ser de óbvio interessecomparativo. E assumem uma clarafeição “política”252. Sustento que asinterpretações colectivas dos sonhosdos indivíduos adultos – as quais,como iremos ver, têm lugar quasediariamente nos acampamentos Attanómadas de floresta – evocam earticulam, por um lado, o que são, nofundo, expressões simbólicas centraisa algumas imagens sustidas comomodelações ideais do comportamentosocial. Neste sentido (e só nestesentido) tratar-se-ia assim de uma252 Parece-me importante realçar que, no texto que sesegue sobre a interpretação dos sonhos entre osAtta, nunca utilizo o termo “jurídico”, embora penseque o poderia ter feito com propriedade. O meu pontoé que tal não é preciso para que um qualquer leitorse possa aperceber de imediato da juridicidade, quereputo de óbvia, presente no que exponho.

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espécie de idioma, como que dumalinguagem, dos Atta, relativa aossonhos. Uma esquematização conceptualque, de uma maneira abstracta eidealizada, daria corpo a umasistemática desvalorização de valoressociais e morais negativos e, bemassim, a uma valorização correlativade valores ideais positivos. Ummecanismo ético e normativo, de algummodo.

A conceptualização desse mecanismocomo linguagem fica porém aquém dorequerido a nível explanatório;porque não esgota o que asinterpretações públicas dos sonhosefectivamente logram. É verdade que,a um nível puramente semiológico,estes verdadeiros comportamentosrituais colocam sem dúvida emevidência alguns símbolos cruciais,alguns esquemas conceptuais e, ainda,alguns axiomas morais centraisreferentes às tarefas quotidianas,que recobrem desde aspectos da esferada vida da sociedade Atta àquela dassuas relações tradicionais com osgrupos vizinhos, quer os das terrasaltas quer os das terras baixas.Defendo, no entanto, que para além de

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evocar e sustentar, enquanto umalinguagem, imagens abstractas ideais,estes comportamentos rituais menoresdos Atta operam também a um nívelmuito mais material.

Um ponto a reter, sugiro, prende-se com o facto de as interpretaçõespúblicas dos Atta sobre os seus sonhosserem, ao mesmo tempo, enunciados, ouasserções, que exprimem uma ordemconceptual ideal e também ocasiõesparticularmente propícias para umaatribuição prática e situacional de“significados que se associam àsacções dos indivíduos”. Como tal,estas actividades ritualizadas deinterpretação contribuem muitoconcreta e activamente para a produçãosimbólica e para a manutenção pública ecolectiva de uma ordem social emoral. Essa construção ou fabricaçãosimbólica de relações sociais nãopode ser compreendida, decerto, senãoem termos do seu âmbito semânticomais geral, do seu amplo significadoideológico, ou cosmológico, para osAtta, e certamente não apenas deacordo com critérios formais fixosque lhe possamos querer impor.

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É daí que deriva, sem dúvida, ogrosso do que S. J. Tambiah253,seguindo J. L. Austin, apelidaria asua força proposicional específica.Todavia essa produção significante sóadquire verdadeiramente significadosna medida em que contribui para adefinição social de situações com queos Atta se confrontam, ao atribuíremfamiliaridade (logo inteligibilidade)e força ilocucionária (logo eficácia)às suas experiências e acções, emcada uma das conjunturas concretas emque os actores sociais se encontramimersos; é nos termos precisos eminuciosos de cada configuraçãosituacional, irei insistir, quesignificados passam de potenciais aactuais, ou seja, adquirem sentido.Por outras palavras, quaisquerinterpretações analíticas queelaboremos nunca podem descontar oalcance pragmático destes processospara os actores sociais, já que osseus significados, como tentareidemonstrar, não são independentes dascoordenadas particulares da suarealização.

253 Ver S. J. Tambiah (1985).

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Devo advertir à partida que não éde maneira nenhuma minha intençãoaqui levar a cabo uma qualquerclassificação (tipológica ouhistórica) das interpretaçõespúblicas dos Atta sobre os seussonhos. Ou, sequer, uma recensão detodos os papéis que preenchem. Osmeus objectivos são muito maismodestos. No que se segue, tentareidelinear, para alguns casosetnográficos concretos, tanto algunsdos contextos, como algumas dasconjunturas sociais dasinterpretações públicas e colectivasde sonhos a que assisti.

Começo assim por uma breveintrodução à organização social dosAtta, detendo-me sobretudo nalgunsdos aspectos que julgo maisrelevantes para uma melhorcompreensão da interpretação desonhos. Passo a uma breve (e muitorápida) sinopse do que são estessonhos e de como são, genericamente,contados e decifrados no contexto dosacampamentos Atta de floresta;debruço-me sobre aquilo a que talvezse possa com propriedade chamar aorganização social da interpretação dos sonhos,

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para a qual proponho uma modelizaçãogenérica ideal e virtual. Centro-meem seguida em várias histórias decaso particulares, que me parecemilustrar bem vários tipos de ligaçãoentre estes processos ritualizados eoutros processos sociais típicos dosagregados Atta. Finalmente, enquadroe discuto então estes casos em termosdos seus contextos sociais eculturais de detalhe e no âmbito dasconjunturas políticas muito precisasem que ocorreram, tentandoredimensionar, situacionalmente, osmodelos virtuais ideais (chame-se-lhes isso) que antes esbocei.

16.1. OS ATTA

Os Atta são um dos menosconhecidos grupos Negrito decaçadores-recolectores que habitam asterras altas do norte de Luzon, amaior ilha do arquipélago dasFilipinas. Como tive já oportunidadede referir, vivem nos sopés doslimites mais nortenhos da CordilheiraCentral, a cadeia de montanhas que,geográfica e historicamente, forma

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uma espécie de espinha dorsal donorte da ilha. Falam uma línguamalaio-polinésia estritamenteaparentada com outras (o Ibanag e oItawis) utilizadas por alguns dosagrupamentos adjacentes. São apenasum dos muitíssimos grupos etno-linguísticos existentes na área254.

Os Atta perfazem cerca de 3.000indivíduos, no total, dos quaisapenas um pequeno número (umas duas254 Uma pequena anotação de contexto. Para localizaros Atta a nível do seu “espaço social”, é talvezmais fácil começar por dividir os seus vizinhos, porum lado, em vários grupos de cultivadores nómadasdas terras altas, de que a maioria tem um estilo devida bastante tradicional e ainda se dedica à caçaàs cabeças; e, por outro lado, em vários grupos deFilipinos cristãos das terras baixas, dedicados porregra ao cultivo intensivo dos campos irrigados dearroz ou ao comércio de bens e serviços, cujaeconomia está muito integrada com a do Estadofilipino e, através dele, com a do sistema mundial.Utilizo aqui a expressão num sentido semelhante aode E. Wallerstein, que em inúmeros livros e artigostem defendido, desde os anos 70, a ideia de que, apartir pelo menos do século XVI, temos vindo aassistir à emergência de um world system, uma questãona época polémica, mas hoje bem mais pacífica.Particularmente pertinente para o caso dos Atta é,penso, a distinção que Wallerstein insiste em fazerentre, por um lado, “centros” e “periferias”, eaquilo a que chama a “arena externa” do sistemamundial. Os Atta, a meu ver, estão ainda nesta arenaexterna, se bem que possivelmente por pouco maistempo.

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ou três centenas) ainda retém umaconfiguração de subsistência baseadana caça, na pesca e na colecta deprodutos naturais espontâneos dafloresta húmida. Muitos dos Atta,talvez a maioria, têm hoje em dia umaresidência estável, estando quasetodos permanentemente estabelecidosnas proximidades dos aglomerados deum dos seus vizinhos agricultores eencontrando-se muito dependentes docomércio e de uma agriculturaincipiente para o suprimento das suasnecessidades básicas de subsistência.Nesta secção do presente trabalho, noentanto, as minhas atenções debruçam-se exclusivamente sobre os Atta dafloresta primária tropical húmida,uma minoria composta de caçadores-recolectores nómadas, devotados aoseu modo de subsistência tradicional.Os Atta a que aqui faço referêncianão praticam, por regra, qualquertipo de agricultura e os fluxos dassuas trocas com os vizinhos sãoregulares, embora relativamente maisténues que os dos seus parentessedentarizados. A maioria dosagrupamentos que descrevo sãocompostos por indivíduos que

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nomadizam ao longo de um extenso valeravinoso do extremo norte da áreagenérica de ocupação Atta, que osresidentes apelidam de Gara-Garraw.

Os caçadores-recolectores Attaocupam, se bem que com uma baixíssimadensidade populacional, vastas áreasda floresta tropical húmida dasterras altas que, como foi járeferido, cobre os sopés desta regiãobastante montanhosa. Estãosubdivididos em numerososacampamentos, que incluem em média deentre 10 a 15 indivíduos (incluindomulheres e crianças) associados, porregra, em 2-5 famílias nucleares,vivendo cada uma no seu abrigosimples (amingan). Tal como é o casopara muitos outros caçadores-recolectores, é norma nestesagregados residenciais uma situaçãode intensa fluidez. Indivíduos Attamudam regularmente de acampamentopara acampamento. Algumas pessoas nãopermanecem num acampamento mais que 2ou 3 noites, às vezes apenas uma, oumesmo nenhuma, limitando-se a passarlá o dia. Os acampamentos estão, elespróprios, constantemente em movimentode local para local sobre uma vasta

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área, raramente ficando em qualquersítio mais que 4 ou 5 dias. Nenhumacampamento, pelo menos durante o meuperíodo na floresta, durou mais decinco semanas num determinado local.O fluxo é contínuo. No entanto, noscurtos dois ou três meses da estaçãodas chuvas, os Atta juntam-se emacampamentos muito mais alargados edensos, de entre 20 a 40 pessoas,localizados relativamente perto dasaldeias dos agricultores seusvizinhos com os quais o comércio éentão intensificado.

A família conjugal é, sem sombrade dúvida, o agrupamento mais estávele mais bem definido na organizaçãosocial dos Atta. O primeiro casamentoocorre por regra a meio daadolescência e pode normalmente serconcebido como uma experiência sociale doméstica de uma jovem mangigánay ede um jovem bagitólay. Tipicamente,duram pouco tempo e resultam dointeresse e da atracção pessoais queum rapaz e uma rapariga sentem umpelo outro quando se conhecem; essessentimentos desenvolvem-se, dizem osAtta, durante as visitas mais oumenos periódicas a que levam os

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passeios constantes dos homenssolteiros pelos vários acampamentosdas redondezas.

Não são só as famílias conjugaisque resultam destes primeiroscasamentos, no entanto, que são poucoestáveis. A taxa de divórcio de todosos Atta é bastante alta. Oscasamentos são vistos como relaçõespor norma temporárias, dissolúveis aqualquer momento com um mínimo depreocupações públicas ou formais.Caracteristicamente, um homem e umamulher limitam-se a construir umpequeno abrigo e começar a aí viverjuntos; o reconhecimento de um casal(magatawa) pelos co-residentes numacampamento é considerado suficiente.Os divórcios também raramente sesaldam em mais que o simples abandonode um dos esposos pelo outro, sem quese levantem quaisquer discussõescolectivas para a adjudicação dasdisputas que lhes tenham dado origem,ou de pagamentos compensatórios sejade que tipo for.

As razões mais tipicamenteaduzidas para uma separação (nesinná)são acusações de infidelidadesconjugais, ressentimentos acumulados

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pela possessividade ou pelos ciúmesimputados por um membro do casal aooutro, ou queixas (de autenticidadedúbia, regra geral) de agressõesfísicas. Na grande maioria dos casos,no entanto, um parceiro é na práticapura e simplesmente deixado poroutro, sem que quaisquer questõessuplementares entrem em jogo. Numarápida estimativa, calculo que umAtta contraia, em média, no decursoda sua vida, quatro ou cincocasamentos em série; alguns Attabastante mais, já que alguns outrostendem, em contrapartida, a umarelativa estabilidade matrimonial. Umcasamento Atta típico envolveportanto meramente o divórcio, por umhomem, ou uma mulher, do seu parceirode momento, e o seu re-casamento comoutrem. De uma perspectiva maismicro, os indivíduos tendem por issoa transferir-se simplesmente doagrupamento doméstico de um cônjugepara o de outro e não de um grupo deconsanguíneos para um de afins.

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Em termos gerais, creio queressalta claramente do que já expus acentralidade de mecanismos como ofluxo residencial e o divórcio para aintegração global da sociedade Atta.Tanto o divórcio como a fluidez dosagrupamentos locais são, com efeito,dispositivos essenciais que asseguramuma circulação constante das pessoasna comunidade Atta mais alargada. Ascrianças Atta cedo se habituam apartilhar um abrigo com um largoespectro de meios siblings e siblingsadoptivos e com padrastos e madrastase muita da sua vida de adultos iráser passada a co-habitar e tratar deenteados e enteadas. Mais: fazem-noem acampamentos sempre em mutação,que caracteristicamente integram umavariedade de ex-cônjuges de co-residentes e futuros cônjuges uns dosoutros.

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De um ponto de vista físico, umacampamento Atta consiste numconjunto de abrigos frágeis e semparedes, no essencial telhados defolhas de palmeira apoiados em quatrotroncos finos espetados no solo dafloresta. Na maioria dos casos, porcausa das chuvas e das sanguessugas,destes abrigos consta uma plataforma,por vezes levantada do chão e feitade troncos por regra mais finos eflexíveis que os das quatro estacasprincipais. Cada família conjugalvive num abrigo próprio, eadolescentes solteiros, homens oumulheres, muitas vezes também ofazem. A arrumação dos abrigos numacampamento não é neutra,reflectindo, pelo contrário (tanto emtermos de proximidade física, como deorientação das frentes dos abrigos),a conjuntura política do momento dasrelações pessoais entre os co-residentes. E os abrigos são muitasvezes separados, ou reorientados,para exprimir modificaçõesconjunturais sentidas comosuficientes. Cada abrigo tem a suaprópria fogueira, perto de uma dasesquinas anteriores da construção. Os

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poucos objectos dos seus habitantes(roupas, panelas, arcos e flechas,armadilhas, etc.) estão colocados numcanto ou, se mais pequenos ou maisvaliosos, são entalados sob os seustelhados de folhas.

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Referi-me já à extrema mobilidadedas famílias conjugais queperiodicamente se separam umas dasoutras, juntando-se a outrosacampamentos. Há no entanto grandesregularidades na estrutura ecomposição dos grupos, já que amaioria das famílias prefere acamparcom parentes próximos, afins, ouamigos255. Reveste-se de particularimportância, neste contexto, oautêntico “efeito gravitacional” dosgrupos de siblings, que tendem areconstituir-se (total ouparcialmente) de maneiraintermitente. Um agrupamento255 Parece evidente, de um ponto de vistacomparativo, que uma análise sociológicasatisfatória da estrutura e composição dosacampamentos de muitas das sociedades de caçadores erecolectores torna imprescindível a obtenção dedados diacrónicos sobre estas unidades residenciaistemporárias. Entre os bosquímanos !Kung da àrea deDobe, no Botswana, por exemplo, R. Lee mostrou que,por detrás do caos aparente, há um “núcleo estável”de irmãos e irmãs, a nível local, cuja presença éfacilmente detectável por comparação entre os dadosdemográficos relativos à composição social deagrupamentos sucessivos de pessoas (Richard B. Lee1972: 350-356). James Woodburn (1968: 103-110) tinhajá desenvolvido a mesma ideia relativamente àdeterminação de regularidades na estrutura ecomposição dos agrupamentos residenciais nomádicosdos Hadza da Tanzânia.

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residencial típico é assim oconstituído por duas ou três famíliasconjugais de qualquer um dos esposose os respectivos siblings, a que sejuntaram uma ou duas outras famíliasde amigos, de consanguíneos ou deafins próximos.

Apesar do alto grau de autonomiade cada uma das famílias conjugaisque forma cada um destes agrupamentose não obstante a ausência dequaisquer regras fixas de residência,ou de lideranças seja de que tipofor, os acampamentos formam umaunidade moral clara. Os Atta põem umagrande ênfase na partilha de animaiscaçados com todos os co-residentes,independentemente da sua participaçãona captura ou de quaisquercontribuições anteriores levadas acabo256. Menos importância é atribuída256 Facto cujo conhecimento levou famosamente KarlMarx, em meados do século XIX, a intitular o “modode produção” deste grupo de sociedades como“comunismo primitivo”. Não são, infelizmente, tãoabundantes quanto seria desejável para efeitoscomparativos as ilustrações etnográficassuficientemente detalhadas sobre os processos departilha da caça tão comuns entre caçadores erecolectores. Os casos mais bem conhecidos são osdos !Kung do Botswana (L. Marshall 1961: 238-239; R.Lee 1972: 247), o dos Mbuti do Zaire (C. Turnbull1965: 158), o dos Hadza da Tanzânia (J. Woodburn

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à repartição de produtos de pesca oude recolecção, se bem que do ponto devista ético e político sejaimpensável que algum dos co-residentes passe fome se os outrosdisso não padecem.

É, de resto, notável a integraçãomoral dos acampamentos dos Atta dafloresta. As relações entre aspessoas co-residentes são por via deregra cordatas e mesmo entusiásticas,se bem que estas característicassejam algo mitigadas pela marcadaautonomia de cada um e vivam lado alado com o interesse egoísta demuitos e com alguma invejaigualitarista, atenta e semprepresente257. Resta realçar que, entre

1982: 441), o dos Pandaram do sul da Índia (B.Morris 1982: 103), e o dos Batek da Malásia (K.Endicott 1979: 11). Cada um destes casos tem,naturalmente, especificidades próprias. Em todos, noentanto, a partilha (sobretudo a de carne) éutilizada como uma oportunidade para exprimirigualitarismo, certamente, mas também para marcarsimbolicamente distinções sociais cruciais. Noutrolugar (Armando Marques Guedes 1997) discuti emdetalhe este último ponto.

257 No seu excelente artigo sobre o igualitarismo demuitas das sociedades contemporâneas de caçadores erecolectores, J. Woodburn (1982, op. cit.) sublinhourepetidamente a importância deste individualismomuito agressivo tão típico destas sociedades, que

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os Atta, a repartição da comidaassocia-se a uma marcadíssimaselectividade na co-residência egarante uma grande harmonia eintimidade na vida da maioria dosacampamentos.

Há que sublinhar, porém, ainstabilidade deste equilíbrio.Tensões de vários tipos vão-se muitasvezes acumulando que levam à fissão,consubstanciada pela partida de co-residentes. São os próprios Atta aexplicar que acampamentos com mais deuma dúzia de pessoas são de evitar,“porque há muitas discussões”.Ocasiões em que indivíduos sezangaram e perderam a cabeça, sãoconstantemente lembradas comapreensão e mal-estar. As flechasenvenenadas estão à mão de todos.Nenhum Atta que conheci sabia dealgum caso de homicídio no interiorda comunidade (excepto casos queenvolvessem incesto); mas muitasvezes falavam de violência com enormepreocupação. Qualquer expressãodirecta de discordância, qualqueratribui à relativa independência dos membros, uns emrelação aos outros, destes grupos cuja economia sebaseia sobre um retorno imediato (immediate return) nosinvestimentos de trabalho.

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confrontação, os assusta. Adissipação de tensões (normalmentepelo evitamento total, ou parcial,entre as partes) é reputada como ummeio fundamental para evitarconflitos. Não é, porém, o únicodisponível.

Entre os Atta, o falar, no sentidode “conversar”, preenche importantesfunções na manutenção de boasrelações entre os membros de umacampamento. Mantém abertos canais decomunicação entre os co-residentes; éum meio salutar para a libertação deemoções; e permite a criação deinúmeros mecanismos de controlosocial. Está fora de questão, entreos Atta, qualquer confrontação, oucrítica directa, entre adultos, quesó teria como consequências a perdapública de face e uma escaladaperigosa. Mas nada impede, bem pelocontrário, os mexericos, nem asalusões críticas oblíquas formuladassegundo diversos formatos mais oumenos estandardizados.

As conversas num acampamento Attasão uma torrente constante eimparável, entrecortada por gritos egargalhadas. Durante o dia e ao cair

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da noite, as pessoas juntam-se empequenos grupos, dentro ou logo àfrente de um dos pequenos abrigos econversam, enquanto cozinham,preparam arcos ou flechas ou cortamuwáy (lianas) para trocas comerciais.À noite fica-se normalmente a falar àvolta de uma das fogueiras, com ascrianças às cavalitas ou ao coloquando já têm sono; ou então pequenosgrupos amontoam-se na plataformamínima de um dos abrigos, ombro aombro ou de pernas entrelaçadas, numaproximidade física de uma intimidadeque os Atta consideram confortante.Para adormecer, cada família conjugalretira-se para o seu próprio amingan;e não é raro que, quando todo oacampamento se quedou já no silêncioda floresta, um dos Atta desatealegremente a contar um qualqueracontecimento humorístico ou comece acantar ou a conversar com o cônjuge,desencadeando um recomeçogeneralizado de conversas e risos detodos os co-residentes presentes.

Há sempre muito que contar. OsAtta contam histórias e descrevemeventos, discutem as chegadas e aspartidas de parentes e amigos e

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combinam saídas de caça, de pesca epasseios. Conversas sobre animaisabundam e em Gara-Garraw formavamdecerto um dos principais tópicos dofalar. Destas, as histórias de caçaestimulam sobretudo a imaginação, commuitos detalhes e repetições, comimitações de ruídos e chamamentos àmistura, tudo intercalado pelosapartes de uma audiência sempreatenta. As mulheres falam da pesca edas crianças, da comida do dia e denovos locais para estabelecer umacampamento entre co-residentes.Cantam-se allirí ao desafio, comdisputas entre homens e mulheres ecom frequentes alusões obscenas queresultam em estrondosas gargalhadasque visivelmente libertam muitas dastensões que, pouco a pouco, se vãoinexoravelmente acumulando. Cantam-seadédé, em pidgin de Atta e Ilokano, comum conteúdo mais lírico. Muitas vezeseclodem nos acampamentos expressõesperformativas (umoman) de Attapossuídos pelas almas familiares oupor espíritos malévolos e canibais. Econtam-se sonhos.

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16.2. OS SONHOS DOS ATTA Os Atta consideram sonhar(matagena) como um assunto bastantesério. Não são porém habituaisespeculações ou explicações quanto aofacto de as pessoas sonharem, exceptoas implícitas nas afirmações, muitocomuns, de que os sonhos são comopensamentos (nono) que alguém temenquanto está a dormir. O tema, oumelhor o enredo, concreto dos sonhosnão é também assunto de preocupaçãoespecial para nenhum dos muitos Attacom quem falei (ou que ouvi falar)sobre esta questão. No entanto, eseja qual for o seu tema, os sonhossão considerados como incorporandoimagens simbólicas com significadoseminentemente decifráveis e, comotal, são objecto de uma grandecuriosidade. Mesmo se excluirmos ossonhos mais místicos, como osrelativos às saídas de almas doscorpos ou os ligados à possessão porespíritos, ficamos ainda com um vastocorpus de sonhos diários de rotina, acujos símbolos e imagens os Attadedicam uma intensa e substancialatenção.

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Os Atta são unânimes em concordarque os sonhos mais comuns sãoinvariavelmente premonitórios decoisas que hão-de acontecer. Atravésde mecanismos mais ou menos linearesde associação simbólica – que os Attase esforçam por decifrar – os sonhossão tomados como autênticosindicadores de acontecimentosfuturos. Do ponto de vista dosindivíduos é crucial ter a capacidadede os “ler” e, como tal, a hipótesede adquirir algum pré-conhecimento deacontecimentos iminentes. A morte, adoença e outras formas mais difusasde infortúnio ou sofrimento sãomuitas vezes assim previstas. Eapenas pela interpretação dos sonhospode alguém esperar a garantia, parasi próprio, de uma segurançarelativa. O conteúdo dos sonhos, sobo ponto de vista Atta, não condenaporém de maneira alguma os indivíduosaos acontecimentos futurosprofetizados. Existe sempre um espaçopara a intervenção humana que pode,diz-se, realmente modificar aquiloque os sonhos prevêem. Ainterpretação dos sonhos pelos Attaconstitui, neste sentido, um esforço

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colectivo de determinar, de formaprecisa, o que essa intervençãopreventiva deve ser em cada casoparticular.

De madrugada, todas as manhãs,assim que a vida no acampamentolentamente desperta, as mães e ascrianças258 Atta podem ser vistas asair das suas frágeis habitações e,caracteristicamente, a juntar-se aoredor das suas pequenas fogueiras.Rapazinhos e raparigas corremsonolentos, colhendo galhos epequenos ramos com os quais reacendemas suas brasas incandescentes. Como oamanhecer é o momento mais frio dodia e a baixa de temperatura é muitomarcada, os homens adultos costumamtambém agrupar-se em torno dasfogueiras, normalmente em pequenosgrupos de dois ou três caçadoresocupados em trocas entre eles deingredientes para as constantesmascas de bétel e balbuciandoconversas estremunhadas enquanto se258 É curioso notar a terminologia utilizada pelosAtta neste contexto. “Mãe”, em Atta, diz-se inno,filho (ou filha), abbing (literalmente, bebé) ou anak(criança ou filho). Os Atta têm no entanto um termoespecífico, masinná, que denota mãe e filho, oufilha, como uma unidade.

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aquecem em torno das chamasreanimadas.

Nesta altura do dia osacampamentos Atta estão como quepontilhados por pequenos epreguiçosos grupos de pessoas;periodicamente – pelo menos duas aquatro vezes por semana –, alguémcomeçará vagarosamente, mas num tomde voz claro e aberto, a contar osonho que teve na noite anterior. Asconversas ficam suspensas. Oscontadores de sonhos não falamnormalmente para ninguém emparticular, dirigem-se antes àtotalidade do grupo de co-residentespresentes no acampamento. As pessoasescutam casualmente, embora de formabastante atenta e, uma vez terminadaa descrição, interpretaçõesespontâneas são caracteristicamenteoferecidas, as quais pretendemdescobrir o significado do sonho e oque ele implica. Estes pontos sãofundamentais. Ao contar os seussonhos, é muito raro que um Atta sedirija a outro directamente, face aface, ou de uma qualquer outra formaque personalize a narração ou exijauma resposta. De uma maneira muito

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característica falam virados para ochão, com curtos relances para o céu,ou vão contando o que têm a contarenquanto estudiosamente preparam umamasca de bétel, avivam a fogueira, ouse anicham como que à sua volta. Ocontador pode mesmo estar de costaspara os outros presentes enquantorefere o seu sonho. Os ouvintes têmabsoluta liberdade de ignorar odiscurso de quem fala e notei algumasvezes Atta que, manifestando o seudesinteresse (por vezes, mesmo, comeste intuito), encetavam conversassobre assuntos diferentes. Ouvintesinteressados ou curiosos podeminterpelar directamente quem fala,pedindo detalhes, esclarecimentossobre o sonho, ou simplesmenteencorajando o narrador a continuar.Fazem-no, por regra, em voz alta eneutra e sem que isso dê azo a umqualquer diálogo com o contador.

Os Atta não reconhecem quaisquerespecialistas para a interpretaçãodos sonhos. As opiniões das pessoasmais velhas e mais experientes, ousimplesmente as de indivíduos maisrespeitados que acontece estarempresentes num dado acampamento,

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podem, no entanto, receber umaconsideração especial. Tal nãosignifica porém, de maneira nenhuma,que os outros aceitem as opiniões poreles expressas. Em todo o caso, mesmose um consenso interpretativo tenda aser alcançado, nenhum esforço é feitopara o conseguir e, se atingido, ofacto não é considerado como tendouma qualquer consequência especial.

Se nos debruçarmos sobre os sonhosAtta em si mesmos, creio que o maissurpreendente é logo à partida aregularidade dos seus tópicoscentrais, a sua homogeneidade mesmo.A grande maioria dos Atta afirma queos seus sonhos mais comuns serelacionam com as visitas a parentese amigos (magtullun, dumallaw) e com asviagens (magpasear) entreacampamentos. Os segundos sonhos maiscomuns contados pelos Atta são talvezaqueles que envolvem os parentesmortos do sonhador, normalmente umdos seus pais; quase com a mesmafrequência é porém com parentes vivos(kanakanayon) que os indivíduossonham. Não é raro os Atta contaremsonhar com os maridos ou as mulheresdos outros, ou com a separação

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(nesinná) do seu próprio cônjuge.Imagens eróticas são também comuns:muitas vezes as pessoas dizem tersonhos envolvendo vaginas (puki) –curiosamente nunca ouvi contar desonhos com pénis, embora os sonhoscom flechas (pana) não pareçam seruma ocorrência rara. Fiquei fascinadocom o que parece ser um outro tópicobastante comum nos sonhos: correratrás de cães de caça.

Mas do ponto de vista dos Atta, ossonhos mais perturbadores, os maisangustiantes mesmo, envolvem disputasfísicas, lutas (makifungngo) comoutros Atta. Escutar tais sonhos ésempre uma fonte de considerávelansiedade para aqueles que na alturasão co-residentes no acampamento; e,como veremos, esta preocupação leva arápidas acções preemptivas levadas acabo no intuito de como que deflectirdo sujeito as consequências preditas.Finalmente, há sonhos, que aquiapelidaria de residuais, que envolvemmulheres bonitas de pele clara e aperseguição de animais invulgares eestranhos. Deve ser referido quedurante a descrição dos seus sonhosos Atta raramente entram em quaisquer

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detalhes narrativos. Pelo contrário,os contadores limitam-se por regrasimplesmente a referir o que elespróprios acreditam ser os símbolos ouimagens mais significativos dos seuspróprios sonhos, uma vez que os Attanormalmente reclamam não se lembrardas sequências narrativas, dosenredos, em causa.

16.3. AS INTERPRETAÇÕES DE SONHOSCOMO LINGUAGEM E COMO ACÇÃO Debrucemo-nos agora sobre ainterpretação dos sonhos enquanto umexercício colectivo Atta de análisesimbólica pública. Através de ummétodo compósito de listagem dasinterpretações individuais queobservei e de questões directasquanto às “chaves” utilizadas para asua descodificação, foi-me possívelconseguir levar a cabo o que eu creioser um levantamento bastante precisodas grelhas interpretativas virtuaismais correntes. Existe muito poucavariação a este nível, pelo menos nosdiversos acampamentos localizados novale interior de Gara-Garraw ondepassei o grosso do meu período de

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permanência no terreno. De umamaneira muito própria os Atta tendema ser analistas de sonhos bastanteortodoxos; das interpretaçõesfornecidas parece emergir um clarodenominador comum. Devo sublinhar queinterpretações alternativas desímbolos nos sonhos, quandoexpressas, são sem dúvida facilmenteaceites como questões de pura esimples opinião pessoal, de poucointeresse geral para os outros. Estainformalidade, ou “variação nascrenças”259, é comum entre os Atta enoutras sociedades de caçadores erecolectores. Existe porém uma claraunidade subjacente nos quadrosinterpretativos formais favorecidospor diferentes pessoas.

Os critérios utilizados em cadauma destas formas interpretativas“ortodoxas” não são no entantolineares. Os Atta crêem efectivamenteque os sonhos em geral têm, na suaraiz, um, ou mais, tipos designificados, ou talvez sentidos259 Uma expressão usada por K. Endicott (1979, op. cit.:26-28) para denotar a “instabilidade cosmológica”existente em grupos deste tipo, porventuradurkheimianamente caracterizáveis como institucionale ideologicamente “fluidos”.

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(kebalinan). E parecem existir fortesideias consensuais acerca destasformas alternativas assumidas pelossignificados dos sonhos. Estessignificados, repito, são sempreprocurados a nível das imagens esímbolos centrais dos sonhos e nuncados seus enredos. Por um lado, oselementos de um sonho são muitasvezes considerados como de algumamaneira representando a vidaquotidiana, à qual se encontrariammetafórica ou metonimicamenteassociados. Assim por exemplo,flechas, em sonhos, diz-serepresentarem as cobras do mundoreal. Enquanto que os sonhos sobredinheiro são tomados como indícios deiminência de doenças de pele (buni),cujas marcas redondas se propagam nocorpo dos doentes. Da mesma maneiraque se diz que o arroz representasarampo (kamorras). Também, asvaginas, em sonhos, sugerem aos Attacortes profundos ou feridas(makattal), uma equação simbólica queseguramente encantaria muitospsicanalistas.

Mas há imagens e símbolos nossonhos, para os Atta de Gara-Garraw,

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que não são reflexos da experiênciaquotidiana, que são mais que simplesrepresentações. Porque mais do que selimitar a reclamar a existência deuma conexão simbólica estática entreuma série de objectos dos sonhos euma série de objectos do mundo real,os Atta afirmam ainda que osprimeiros estão de certa formacausalmente relacionados com ossegundos. Assim, sonhar com flechas,segundo eles, previne-nos daiminência de ser mordido por umacobra – e como tal, o sonhador serácuidadoso e manter-se-á noacampamento no dia seguinte, em vezde enveredar pelo arvoredocircundante, aquando das suas fainasdiárias. Da mesma forma, sonhar comdinheiro ou arroz, leva os sonhadoresa esforços higiénicos obstinados numatentativa laboriosa de tentar evitaro aparecimento de doenças da pele oude sarampo. Na mesma linha, sonharcom vaginas alerta as pessoas para aurgência de se manterem afastadas deobjectos cortantes ou de armas com asquais se poderiam ferir.

A complexidade dimensional destasformas interpretativas é

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efectivamente notável. Se oselementos dos sonhos são, por umlado, considerados como representaçõesdos elementos do mundo real emassociações simbólicas unívocas e,por outro, são vistos como profetizaçõesde um estado futuro de coisas, poroutro lado ainda os Atta parecemsugerir que muitos sonhos são, naprática, uma espécie de sintomaspessoais, na medida em que revelamdisposições dos sonhadores, oudaqueles sobre quem se sonha.Disposições, ademais, que deveriamser cuidadosamente controladas. Ossonhos mais frequentemente relatadosinserem-se nesta categoria, se bemque outras não sejam incomuns.

Assim, por exemplo, os Atta dizemsonhar sobretudo com viagens erelações de visitas a parentesresidentes noutros acampamentos. Epor isso fazem-no uma vez que taissonhos são tomados como indicadoresde um forte desejo do sonhador em ofazer. Da mesma forma, os sonhos queenvolvem parentes desencadeiam, porregra e de facto, visitas, uma vezque são tidos como significando quãofortemente o sonhador se ressente da

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falta daqueles. Mais, o sonhar comparentes mortos é sempre interpretadocomo um sinal da fome (mabisin)destes, de modo que, mal acorda, osonhador faz-lhes rapidamente umapequena oferenda de comida (atang).Isso também acontece com os sonhos deseparação do cônjuge: o sonho deveser tornado público e é-ofrequentemente; compete então aosonhador ir ao encontro da pessoa comque sonhou e dialogar sobre umasituação que se mantém assim aosolhos do público. Sonhos que envolvamcorrer atrás de cães de caça sãoefectivamente considerados como sendosonhos relacionais; são tidos comodenotando simbolicamente umaperseguição real a uma qualquerpessoa do sexo oposto (que ospróprios sonhadores ou sonhadorasmuitas vezes alegam não conseguiridentificar) e são sentidos comobastante misteriosos; os sonhadoresde tais cenários, ao contarpublicamente estes seus sonhos,despertam sempre muitos mexericos,gáudio e curiosidade, ao nãorevelarem a identidade da pessoa tãodesejada.

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Talvez os sonhos mais inquietantespara os Atta sejam, no entanto,aqueles que envolvem o cônjuge deoutro Atta ou que aludem a luta e aagressões. Também aqui o foco dointeresse e das interpretações éposto em nexos de imagens e não emsequências narrativas inseridas numqualquer enredo. Em ambos os casos,seguem-se consequências desastrosas amenos que sejam dados de imediatocertos passos específicos. Sonhar como marido ou a mulher de outro étomado como revelador de uma cobiçasecreta desse cônjuge. Em resultado,diz-se, cai-se doente (mataki) a nãoser que o sonho seja pública eexplicitamente apresentado a todo ogrupo.

São porém os sonhos que envolvemagressões os que constituem osverdadeiros pesadelos. Se o sonhoenvolver lutas não específicas, quenão precisem a identidade do, ou dos,adversários, o sonhador, diz-se, écolocado em perigo imediato de serapanhado (afan) por um crocodilo. Emtrês casos por mim testemunhados emGara-Garraw, os Atta envolvidospermaneceram cuidadosamente afastados

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dos rios – o que significouefectivamente o quedar-se abandonadono acampamento – durante os dois outrês dias seguintes. No entanto, se aquestão implica um adversárioespecífico, o sonhador, logo apósacordar, tem de procurar a pessoa emquestão e deve contar-lhe o sonhoinfeliz, fazendo acompanhar esta suadenúncia de uma suave massagem(mangilu’) do corpo da “vítima”. Casocontrário, dizem os Atta, o sonhadorpura e simplesmente morreria.Testemunhei dois destes casos. Emambas as circunstâncias, umaenvolvendo uma sonhadora idosa, aoutra um jovem, a sua ansiedadelevou-os durante algumas horas aopânico, até conseguirem encontrar apessoa que feriram nos seus sonhos.No último dos dois casos, acompanheio jovem, Kontés, de Gara-Garraw a umacampamento vizinho, Namilagan(Massissi), a umas duas horas e meiade distância na floresta, e lembro-meainda vivamente do seu suspiro dealívio quando, finalmente, encontroua sua “vítima”.

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16.4. HISTÓRIAS DE CASO DEINTERPRETAÇÃO PÚBLICA DE SONHOS As histórias de caso que seseguem são apresentadas comoilustrações dos processosinterpretativos dos Atta, mas tambémcomo exemplos das implicaçõespolíticas, no sentido mais lato dotermo, das sessões públicas deinterpretações dos sonhos. Envolvemcircunstâncias e conjunturas quetento elucidar a par e passo.Caracterizam as formas processuaisassumidas por estes comportamentosritualizados e os contextos sociaisde enunciação em que são eficazes.Demonstram, pelo menos nalguns casos,a capacidade dos contadores de sonhose das audiências que disponibilizaminterpretações, em pôr a nu (e muitasvezes em exacerbar) tensões, medos econflitos dos co-residentes numacampamento, de uma maneira neutra,indirecta, e em que aos agentessociais são dificilmente imputáveisquaisquer responsabilidades por essaintervenção. A ocorrência dos sonhosé vista como involuntária; as formasda sua interpretação são

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convenientemente estandardizadas.Mais, estes casos mostram que demuitas das interpretações decorre anecessidade de recorrer a actividadesconjuntas, o que é um imperativomuitas vezes claramente gerador deproximidades e cumplicidades, paradeflectir as consequênciaspotencialmente nefastas dos sonhos.

Caso 1

Depois da visita indesejada de umparceiro comercial Ilokano a umacampamento em Gara-Garraw,localizado na floresta, mas a um oudois escassos quilómetros da“estrada” dos madeireiros da empresaTaggat, os Atta co-residentesdecidiram em peso nomadizar eestabelecer um novo acampamento maisinterior. O agregado era composto porum grupo de quatro siblings e peloscônjuges de dois deles e uma criançade cinco anos. Pilés, o irmão maisvelho (aká), muito voluntarioso e,por isso, considerado cansativo, forao causador da partida, já que forapor indicação sua que o comerciante

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Ilokano se deslocara, a medo, aoacampamento. Para grande desolação detodos (sobretudo do seu cunhado Simpíe do grande amigo deste, La’íng)Pilés elegeu seguir também para onovo local. Sem a mulher, de visita aparentes, Pilés manifestara já umaenorme propensão para se pôr nadependência de quem quer que fosse, econstantemente pedia coisas a toda agente.

Pequenos amingan (abrigos detroncos e folhas) foram rapidamenteerigidos a cerca de três horas dedistância, numa área densamentearborizada do vale do Gara-Garrawonde o Simpí, numa saída solitária decaça, tinha uns dias antes falhado acaptura de um macaco. Os co-residentes eram Pilés, a sua irmãTuffiang com o marido, Simpí e afilha Djuli, La’íng, irmão dos doisprimeiros e a sua mulher, Karring, umquarto irmão, solteiro, Kontés e eupróprio; no total cinco amingan. A primeira noite noacampamento, a de 22 de Julho de1981, foi abalada por gemidoslancinantes da Tuffiang que, com um

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pano amarrado em banda na cabeça,entrava claramente no seu períodomenstrual. Tuffiang contorcia-se comdores e, mal acordei, vi o marido,Simpí, que tentava acalmar-lhasaquecendo, para o efeito, água nafogueira do seu amingan. Foi Pilésque, possuído por um anitú familiarcujo peso o fez tremer e que “falou(umoman)” através da sua boca, quemassajou (mangilú’) o baixo ventre daTuffiang e lhe fez passar ascontracções. Pilés diagnosticou oacesso como o resultado de um ataquepor uma barruká, uma classeparticularmente voraz e perigosa de“espírito”. Para consternação deSimpí e La’íng, ficou assim como queconsolidada a sua presença noacampamento. O facto foi aproveitadopor Pilés para, nos dois diasseguintes, expressar opiniõesveementes sobre locais de caça,expedições futuras, novosacampamentos a estabelecer, e visitasa cumprir. Os seus pedidos,constantes, de comida, mascas debétel e artefactos de caça,incomodavam toda a gente. Aos olhosdos co-residentes, sobretudo dos dois

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cunhados, as maneiras agressivas eimpositivas de Pilés atingiram asfronteiras do intolerável.

23 de Julho: Na manhã seguinte aoataque a Tuffiang, Djuli fezacidentalmente um pequeno corte numdedo a brincar com uma catana(bunang). Um dia depois, o pai,Simpí, saiu do acampamento paraapanhar galhos de lenha e colher rotaubbut’ e, ao cortar uma liana, fez como seu bunang um golpe feio eprofundo, também num dedo. Toda agente ficou incomodada com a rápidasequência de acidentes que pareciavitimar o agrupamento doméstico doamingan de Simpí, de Tuffiang e deDjuli.

24 de Julho: Na manhã do terceirodia, La’íng acordou e contou o seusonho dessa noite. Uma barruká,explicou, tinha-lhe dito que estava arondar o acampamento porque queriapara si o amingan de Simpí. Poucasinterpretações eram possíveis para umsonho tão explícito. Simpí limitou-sea concordar, sublinhando a beleza(nakastá) do amingan que construíra.Tuffiang anuiu à interpretação esugeriu, para o ar, que agora Pilés,

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que já lutara com a barruká, iria terde novo de a confrontar. Nesse mesmodia o acampamento foi abandonado ePilés separou-se do grupo alegandoquerer visitar os parentes da mulher.

Três meses mais tarde, relembrandoo caso, La’íng afirmou-me que o Simpíe a Djuli tinham cortado os dedosporque Simpí, na véspera do primeiroacidente, tinha sonhado com vaginas(puki). Simpí corroborou esta versão eTuffiang, risonha, secundou-o.

Caso 2

Na noite de 2 de Abril de 1981, annanimalignos foram ouvidas por residentesnoutro acampamento de Gara-Garraw,bastante isolado, mas situado numazona secundária da floresta bemconhecida de agricultores itinerantesIsneg e de Atta sedentarizados. Oacampamento era composto por quatroamingan: um, o de La’íng, de Karringe eu próprio; outro, de Simpí, deTuffiang e de Djuli; um terceiro, deTorni, marido de uma prima paterna deLa’íng e Tuffiang; e um último, deBoni, um adolescente irmão de uma ex-

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mulher de Kontés, um sibling ausentedestes dois. La’íng pediu-meemprestada a minha lanterna eléctricae, com os outros homens, armados dearcos e flechas, tentaram cercar olocal de onde vinham os ruídos. Aonada encontrar, desistiram, mas nãoantes de serem agredidos com pedrasoriundas das ramagens escuras.

3 de Abril: O dia seguinte foi fartoem acontecimentos. Chegaram de manhãao acampamento dois adolescentes Attasemi-sedentários, respectivamente deMassissi e de Labbá’. O desagrado dosco-residentes foi óbvio, mas, como éda praxe, pouco explícito. Enfadado,Simpí mudou-se com a família para olado oposto do rio, a uns dez ouquinze metros de distância,justificando repetidamente que ofazia para evitar “as sanguessugas eo barulho”. À tarde, os homens(excepto La’íng, que saíra à procurade bétel selvagem nas redondezas doacampamento, e eu próprio) foramcaçar. No acampamento, composto sópor mulheres, uma criança e eu,apareceram repentinamente novemembros de uma expedição Isneg(Yapayao) de caça, um deles armado

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com uma espingarda-metralhadora M-16.O pânico, agravado pelo facto de setratar de membros de um grupo vizinhode conhecidos caçadores de cabeças,apoderou-se de todos, até que La’íngapareceu, exuberante, de arco eflechas, a saudar os Isneg e aoferecer-lhes bétel. Confusos poresta erupção súbita e esfuziante, osIsneg aceitaram, ofereceram-lhe emtroca lagostas de rio acabadas deapanhar e seguiram caminho. Noregresso dos homens Atta, mudámosrapidamente o acampamento de sítio,para evitar visitas nocturnas.Connosco foram, aterrorizados, osdois jovens Atta de Namilagan eLabbá.

4 de Abril: Na manhã seguinte, já nonovo acampamento, Boni e Tornirevezaram-se a contar os sonhos quetiveram nessa noite. Ambos tinhamsonhado com mulheres brancaslindíssimas, o que foi interpretadoconsensualmente (e segundo o modelo“ortodoxo”) como significando aiminência de um ataque por annanicanibal. Quando o ambiente estava jápesado com interpretações destas,Boni interrompeu Torni e assegurou a

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todos, enfaticamente, ter ouvido umruído a montante do riacho. Torni eBoni correram rio acima, a gritar“uma barruká enorme, uma barrukáenorme”. La’íng, divertido, resolveuir investigar, o que fez durantealguns minutos, até que se fartou evoltou. Simpí riu-se, algumas dasmulheres ignoraram toda a situação eKarring, a rir, chamou mentirosos aBoni e a Torni.

Os dois adolescentes de Labbá’ eNamilagan, que tinham construído umamingan justamente a montante, pertodo lugar da barruka, ficaram transidosde medo, abandonaram o abrigo ecorreram a sentar-se perto dosabrigos de La’íng e de Simpí,colocados lado a lado. Torni e Boniseguiram-nos, aos gritos, exclamando“vem aí uma barruka branca enorme,enorme”. Cinco minutos depois oincidente estava esquecido.Justificando-se com um desejoirreprimível de visitar uns parentes,os dois adolescentes saíram de Gara-Garraw nessa mesma tarde.

Casos 3 e 4

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A meados de Novembro de 1981, leveicomigo a uma breve visita aos Atta umantropólogo americano, o Dr. ScottGuggenheim, então envolvido numainvestigação de terreno, a umacentena de quilómetros a sudeste deKalinga-Apayao, sobre trabalhadoresItawis produtores de cana de açúcar.Ficámos num acampamento bastanteinterior, a um dia e meio das terrasbaixas, sempre no vale de Gara-Garraw.

12 de Novembro: Ao acordar, Scottcontou-me casualmente que tinhasonhado com um assalto a um Banco,que teria levado a cabo comigo (!).Repeti o sonho em público, segundo oscânones Atta, e Tuffiang e Karring,duas das co-residentes, foramparticularmente activas a oferecerinterpretações. Tuffiang declarou queScott ia em breve ser afligido porbuni, uma doença de pele; Karringconcordou. Tuffiang preocupou-se emseguida com um detalhe: se o dinheiroroubado era, ou não, em moedasredondas. O consenso, que incluiuLa’íng, foi que moedas seriam umsinal claro de buni, uma doença que

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forma manchas cutâneas tambémredondas. Mas, aventadas váriashipóteses, o acordo final unânime foide que, mesmo se no sonho estivessemem causa notas (do que Scott não selembrava), o resultado seria semprebuni. Karring inquiriu ainda se nosonho do assalto não apareceria umamulher branca, alta e bonita, ao queScott respondeu negativamente.Karring e Tuffiang sossegaram-no,explicando-lhe que então nãoprecisava de evitar o rio duranteesse dia.

Aproveitei a oportunidade paracontar também o sonho que, nessamesma noite, eu próprio tive, talvezestimulado por uma longa conversa quena véspera tivera com Scott sobrePortugal. Narrei, assim, em voz alta,que sonhei com um meu tio, se bem quenão me lembrasse de mais nada. La’íngexplicou-me que o sonho me informavaque o irmão do meu pai tinha saudades(maradam) minhas e que me queria ver.Tuffiang concordou, mas aventou quetambém podia querer dizer que eupróprio tinha saudades do meu tio, e,portanto, vontade de estar com ele. Oconsenso foi, em todo o caso, que se

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impunha uma visita. Simpí e La’íngacudiram logo dizendo que o idealseria que o meu tio fosse a Gara-Garraw sem que fosse preciso ser eu asair. Simpí atirou para o ar ahipótese de ir comigo, caso eudecidisse ser eu mesmo a tomar ainiciativa da visita ansiada.

Caso 5

Este é um caso complicadíssimo de queaqui apenas esboço um resumo muitoparcial. Kontés, o bagitólay irmão deLa’íng, conheceu em Namilagan, uma“aldeia” de Atta sedentarizados pertode Massissi, uma “mestiça” Atta-Ilokano, Myrna. Depois de umaprimeira aproximação durante um ritofunerário na estação das chuvas, em1981, Kontés e Myrna, acolhidos pelopai desta, Basiak, estabeleceram uma“casa (balay)” em Namilagan, o queefectivamente parecia fazer preveruma longa estadia de Kontés na orlada floresta; levou consigo dois cãesde caça. Pouco mais de um mês depois,estava porém de volta a acampamentosnómadas, “para caçar e visitar”,

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trazendo um dos cães; o outro,emprestara-o a Basiak. Ao chegar aGara-Garraw, anunciou que a mulher,Myrna, que estava grávida, ficara emNamilagan. Passados três meses,Kontés continuava em acampamentosinteriores, sem sequer visitarNamilagan e começou a confidenciar(publicamente) que Myrna tinha“outros homens”.

10 Julho: Um primo de Kontés, Iniyó,esteve em Labbá’ para trocar rota porarroz e ananases e voltou com anotícia, explosiva, que Myrna estavaem Namilagan mas casada com um Attasedentarizado, de Purrák, Karling,que para o efeito se divorciara deBuwena, outra Atta sedentária. Kontésficou furioso e queixou-seamargamente (i) da “infidelidade” deMyrna, mesmo estando grávida, (ii) dofacto que Buwena, de quem ele“gostava”, ter sido deixada, com umacriança; o caso era tanto mais gravequanto Buwena, envolvida uns anosantes num caso de incesto com o pai(morto, em consequência, pelo próprioirmão) era órfã e pouco querida nas“aldeias” Atta sedentárias, (iii) de

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ameaças físicas que lhe teriam sidofeitas por Basiak e “por outraspessoas” de Namilagan, e, (iv) de umadoença de pele aí contraída e queentretanto se generalizara de maneiramuito visível e desagradável. SegundoKontés, o seu regresso à floresta e asua permanência em Gara-Garrawjustificavam-se pela raiva (mapporráy)que sentia. Tuffiang, irmã de Kontés,dissertou longamente contra Myrna,dizendo que ela apenas se casara comKontés por este ser muito industriosoe que, em qualquer caso, os hábitos(ugali) dela eram péssimos, visto ser“meio-Ilokana”. Kontés confirmouperante todos que Myrna não gostavade cozinhar e que o pai, seu sogro,Basiak, constantemente o confrontava,opondo-se, por exemplo, à presença dePurráw (branco), um dos cães de caçado genro. Confidenciou a toda agente, ainda, que, já que Basiak era“como um Ilokano”, ele, Kontés, tinhadecidido pedir-lhe reparaçõescompensatórias pelo divórcio.

30 de Julho: De passagem, sozinho,por Labbá’, encontrei casualmente olakkáy Basiak, que depois de umavisita aí decidira erigir um amingan

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e trabalhar nos campos de arroz deuns agricultores pioneiros Ilokanodas redondezas. Quandodescuidadamente referi o nome deKontés, Basiak disse-me que o tinhaencontrado na véspera num acampamentoperto de Namilagan, que este lhetinha pedido uma compensação, “comose ele fosse Ilokano”, e que lhatinha recusado, dizendo-lhe que todasas faltas (liuwá’) que tinham dadoorigem a esta triste situação eramdele. Kontés, lamentou-se Basiak, talcomo os outros Atta de Gara-Garraw,era preguiçoso (natalakak) e nãogostava de cultivar. Ademais, eraviolento e batia a Myrna, por issotinha-se escapado para Gara-Garraw;compreensivelmente, passados trêsmeses, Myrna, grávida, tornara acasar. Em consequência, explodiuBasiak, a criança ia agora ter doispais (já que os sémenes de Kontés ede Karling se “misturariam” com osangue menstrual dela), o que, comoera bem sabido, aumentava os riscosde o parto vir a correr mal. Parapiorar tudo, queixou-se, Myrnainsistia obsessivamente que queriater Karling e Kontés juntos com ela,

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durante o nascimento, para que cadaum lhe segurasse numa mão; o queKontés liminarmente recusava.

3 de Agosto: De visita a Purrak,outra “aldeia” Atta semi-sedentária,com La’íng e Simpí, encontrei aíMyrna e Karling, ela já obviamentegrávida e ambos a rir alegrementemontados num nwang, um dos possantesbúfalos de água utilizados por Ibanage Ilokano para trabalhos agrícolas.Karling teve medo de nós, mas nãoMyrna. À tarde, na baláy de Orké, estee Kandro, dois anciãos com parentesAtta nas “aldeias” e na floresta,falaram longa e preocupadamente sobreo caso complicado e Orké expressou asua preocupação que Kontés retaliassecontra alguém. La’íng interrompeu, edisse que isso não iria acontecer,visto Kontés não estar zangado(mapporráy), mas sim triste(maradam). Todos os presentes ficaramclaramente aliviados.

4 de Agosto: De volta à floresta,La’íng, Simpí e eu próprioencontrámos Buwena, que culpoutaxativamente Karling de toda asituação, indignando-se com o factode que Karling justificara abandoná-

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la dizendo a todos que ela tinha umoutro marido. Uma mentira, disse, quesó era acreditada porque muitos Attanão lhe perdoavam o seu incestojuvenil com o pai. Um dos homenspresentes no acampamento, um jovemAtta, Ku’an, confidenciou-nos noentanto que Buwena estava a mentir.Segundo Ku’an, uma vez que o casalfoi com ele e Undá’ visitar parentes,ela teria de facto encontrado um novomarido, perto de Tappá’; e fora aosaber disso que Karring fugira comMyrna.

5 de Agosto: De regresso a Gara-Garraw, juntámo-nos a Tuffiang e aKarring, num acampamento onde estavamtambém Kontés e dois casais: Sano eLitang (ele um ex-marido de Tuffiang)e Enri e Isang (esta última filha deUssé, um amigo e co-residente regularde Estó, o pai de La’íng, Tuffiang eKontés e portanto habituada a co-residir com eles), com os respectivosfilhos e um meio-irmão de um destes.Contámos o que acontecera em Labbá’,com Basiak, e em Purrák, com Orké.Kontés ficou pensativo, mas poucointeressado.

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6 de Agosto: Chegou Boni, umbagitólay amigo de Kontés, aoacampamento. Começam-se a sentirfortes repercussões laterais do casode divórcio. Isang e Litang vieramter comigo e declararam-me quererdeixar os maridos que, alegaram, lhesbatiam. Mais, estavam fartas dosciúmes (mangabobo) deles, que asacusavam de ter relações sexuais àsescondidas com Kontés. Ambasconfirmam a veracidade deste facto,mas sustentam que os ciúmes dosmaridos eram insuportáveis. TantoLitang com Isang, afirmam gostar decasar com Kontés, mas cada uma delasdiz não o querer por causa da outra:“somos amigas”; a poliginia(kambbalan), uma opção, não lhesinteressa. Entretanto, recusamcozinhar para os maridos, ambas lhesviram as costas quando eles seaproximam e, durante todo o dia,explodem curtas discussões. Apesar detodos os presentes se relacionaremalegre e facilmente com Kontés, ocerco começa a apertar-se – La’íng,divertidíssimo, começa a tratarKontés por “meu bagitólay”; Simpí,sempre mais recatado, mas cúmplice,

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fá-lo só duas ou três vezes. Umaprima paterna dos siblings, Idess,chega a Gara-Garraw e instala umamingan.

7 de Agosto: Ao acordar, Kontés estáem pânico. Conta, aflito, que sonhouque tinha lutado (makifungngo) comBasiak. Repete obsessivamente“sonhei, sonhei”. As interpretaçõesfluem rápida e unanimemente: ouKontés encontra hoje Basiak e lhemassaja (mangilú’) o corpo, ou pura esimplesmente morre. Kontés ficaaterrado com a iminência da morte eBoni diz-lhe que, na antevéspera,vira Basiak, ainda em Labbá’.Ofereço-me de imediato paraacompanhar Kontés e, com La’íng eBoni, saímos rapidamente para Labbá’.Ao cair do dia chegamos, exaustospelo esforço e Kontés corre paraBasiak e conta-lhe o sonho emcatadupa, enquanto lhe faz uma mangilú’aos ombros e ao tronco, numamanifestação pública de intimidade. Ànoite, sanada a questão e obviamentealiviado, Kontés canta, dança e mascanoz de bétel com Basiak e Boni.

10 de Agosto: De regresso a Gara-Garraw, Isang e Litang vêm-se queixar

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que desde que voltou, há já doisdias, Kontés não lhes dá atenção. ComBoni, Kontés vem-me propor irmosvisitar acampamentos Atta “distantes,para procurar jovens mangigánay”.

16.5. DISCUSSÃO O primeiro ponto comum anotar sobre estes Casos é o papelcrucial das narrativas de sonhos edas suas interpretações na definiçãodas fontes de alguns dos ataques edas agressões místicas a que os Attaestão sujeitos. A isto junta-se,ainda, o seu potencial, a suacapacidade consequente, de mediar (oupelo menos, de canalizar) disputaspolíticas. Em pelo menos três dasconjunturas (os Casos 1, 2 e 5) ossonhadores em causa nosacontecimentos descritos eram pessoasdirectamente envolvidas nosdesagravos correntes nos, ou entremembros dos, acampamentos. Em todosestes Casos também, as pessoas queofereceram publicamenteinterpretações para os sonhoscontados tinham óbvios interesses

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“políticos” comprometidos com odesenlace das situações de tensão. Seuns ou outros manipularam mais oumenos conscientemente o desenrolardos acontecimentos, não tenho maneirade o saber. Nalgumas instâncias,nomeadamente no Caso 2, pareceu-me naaltura que Torni e Boni o fizeram.Noutros, como nas atitudes de La’íng,Simpí e Tuffiang, no Caso 1, seriadifícil ir mais longe do que aventara hipótese de que a série deinfortúnios ocorridos em cadeia foiretrospectivamente interpretada,manuseada, de maneira convenientepara todos. Já no Caso 5, reputoarriscado supor uma qualquer astúcia,ou má fé, de Kontés, genuinamenteaflito com o sonho em queincautamente se envolvera com Basiak.

Mais claro é o facto que, emqualquer dos Casos, o consensopúblico conseguido na interpretaçãodos sonhos dependeu muito, por umlado, da selecção prévia das imagensa decifrar segundo grelhas“tradicionais”. E dependeu, por outrolado, da cooperação de membros daaudiência empenhados em acordar quaisas grelhas a utilizar (uma

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colaboração particularmente evidentenos Casos 3 e 4). Uma vez atingido, éconsiderável o poder deste consensoem se propagar a todos os membros deum acampamento Atta. Vale a penadebruçarmo-nos um instante sobre estaquestão. Este poder apoia-se emdeterminadas crenças que todospartilham: primeiro, na ideia de queos sonhos de alguma maneirarepresentam a mecânica escondida dosacontecimentos, algumas vezes atéprofetizando eventos futuros;segundo, que uma das maneiras decompreender essa mecânica, e assim deevitar acontecimentos nefastos, é pormeio da cooperação dos co-residentesnum agrupamento local, mesmo queapenas através do expediente dadecifração colectiva de sonhos;terceiro, a convicção de que sonhossão actos involuntários e a suainterpretação estandardizada, logotambém não contaminada, pelo menospor manipulações políticas nuas ecruas; e, quarto, que muitos, talveza maioria, dos acontecimentosprevistos ou explicados nos sonhosrequerem uma rápida acção daspessoas, pois “deixar correr o

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marfim” pode ter consequênciasgravosas. Estes consensos potenciamas interpretações formuladas, paraalém de as fundamentarem. A atençãopública é desviada dos conflitos, dastensões e das ocorrências nefastasque envenenam o dia a dia, para aurgência da sua solução. Em muitosdos casos a opinião pública deixaassim os protagonistas concretos dastensões e disputas, foca-se nasvítimas e pressão moral começa aexercer-se sobre os responsáveis.

No Caso 1, os membros do grupodoméstico de Tuffiang foram vitimadosuns a seguir aos outros e a tensãodevida à presença e ao comportamentode Pilés foi tacticamente substituídapelo diagnóstico formulado para estasequência de infortúnios. Uma revisãopública e consensual semelhante dediagnóstico foi levada a cabo no Caso2, pela atribuição deresponsabilidades pelas agressões eameaças a uma barruká gigante que atodos punha em risco. O Caso 5 é maislinear: ao encontrar-se subitamentena situação de potencial vítimamortal, por eleger Basiak como suavítima simbólica, Kontés mobilizou

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para si e para o ex-sogro toda asimpatia e empatia da comunidade;mais, ao massajar pública eurgentemente Basiak, Kontés asseguroutambém a simpatia deste.

É difícil alegar que tenha havidoda parte de Kontés eventuais errostácticos ou uma qualquer falta detacto político. Como Atta defloresta, caçador-recolector, era-lheimpensável a ideia de trabalhar deforma sustida para outrem e sobretudoo fazê-lo em actividades agrícolas;comer galinhas e porcos domésticos,uma parte habitual da dieta deNamilagan, foi-lhe, certamente,profundamente desagradável e deve tê-lo enojado muitas vezes. Pior terásido compreender as interferências deBasiak na sua vida conjugal:habituado a uma ciosa autonomia,Kontés só por um curto período e comtruculência permitiria ao seu sogrointrusões (ou lhe reconheceria algumaautoridade) em questões domésticasque, do seu ponto de vista, lhe nãodiziam respeito. Mas também sepoderia prever a atitude desgostosa eindignada de Myra e Basiak perante oque decerto viram sempre como

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“irresponsabilidades” de Kontés.Parece-me que mais do que quaisquererros políticos (ou tácticos) dequalquer uma das partes, o Caso 5demonstra a irredutibilidade, um aooutro, de dois tipos de orientação defundo perante a vida e as relaçõessociais. Da perspectiva de Kontés,estava fora de questão o recurso aogénero de solução que seguramenteseria aceitável para Basiak e Myrna:confrontá-los com o seu desagrado,aventar hipotéticas saídas para oconflito de interesses eeventualmente (caso tal nãoresultasse) negociar compensações quepermitissem um recuo mutuamenteaceitável. Enredado numa situaçãoextremamente difícil, Kontés começoupor fugir-lhe, mas as repercussõespolíticas da situação inicial e dapercepção dos outros quanto à suareacção deram origem a uma escaladaperigosa e difícil de controlar. E (oque me parece crucial) uma situaçãoque era inicialmente insustentávelpara Kontés, Myrna e Basiak, agravou-se com a sua insustentabilidadegeneralizada a um número cada vezmaior de pessoas. Kontés viu assim

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lenta mas progressiva einexoravelmente aumentar acentralidade da sua posição no caso,transformando-se, de apenas um dosprotagonistas, na personalidadecentral decisiva. Num ambiente em quea pressão da opinião de um públicotornado vítima se veio adicionar àsdificuldades pessoais de Kontés, oseu sonho e a sua interpretaçãopública apareceram como uma saídaprovidencial.

O Caso 3, como o Caso 4, demonstrabem a disponibilidade dos Atta emformular interpretações mesmorelativamente a contextos de que nãotêm qualquer experiência directa. Oque sublinha claramente a opinião quetêm quanto à aplicabilidade genéricados esquemas interpretativosutilizados; e, talvez maisimportante, a neutralidade com queestes são encarados relativamente àsconjunturas concretas a que seaplicam. Os Casos 3 e 4, para alémdisso, ilustram com nitidez as formasprocessuais (se se quiser a “lógicados procedimentos”) segundo as quaisconsensos fáceis são atingidos: porconfluência de hipóteses

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alternativas, construídas nestescasos como complementares. Ilustramtambém o cuidado com que, na geraçãodestes consensos, os Atta tentamevitar quaisquer melindres políticos.O que, por sua vez, é expressivo daconsciência viva que têm do poder eda eficácia das interpretaçõespropostas: fazer a asserção públicade que um meu tio me chamava, porexemplo, poderia facilmente serentendido (por mim e por todos ospresentes) como um convite oblíquo àminha partida; o que foi habilmentetorneado pelas rápidas e simpáticasintervenções, primeiro de Tuffiang edepois de Simpí e de La’íng. Asensibilidade aguda dos Atta paraobliquidades deste género emergetambém no Caso 2, em que o convite àpartida dos dois jovens bagitólayindesejados foi de tal formasimultaneamente explícito e indirectoque me sinto tentado a vê-lo como umdouble entendre. Mas se, para consensospoliticamente fáceis, os Attaprocessualmente tendem a enunciarinterpretações complementares, emrelação a consensos mais urgentes omelindre político é tal que se parece

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impor, ab initio, uma unanimidadeexplícita nas decifrações sugeridaspelos co-residentes num acampamento.Os Casos 1 e 5 demonstram bem o modosimples de construção destesconsensos quase automáticos: parainduzir Pilés a ir-se embora, ou paraconvencer Kontés a aproveitar aoportunidade de resolver um imbroglio,salvando no processo a face, nãoforam enunciadas quaisquerinterpretações alternativas ou sequercomplementares; deu-se um acordotácito.

Em resumo, portanto, contar sonhospublicamente e vê-los interpretadosde forma consensual permite aos Atta,nalguns casos, redefinir tensões econflitos como ocorrênciaspoliticamente neutras. Viabiliza aosactores sociais, noutros casos, oencarar acontecimentos desagradáveis,ou até suspeitos, como questõesinteligíveis e controláveis.Possibilita, sempre, à opiniãopública e a eventuais protagonistasconjunturais, conceber situaçõescomplicadas como nocionalmentecausadas por agentes de alguma formaexteriores à comunidade, que agem nos

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seus próprios termos, de acordo comos seus próprios motivos, ou por suaprópria volição; o que torna ascomunidades (e os seus membros)vítimas inimputáveis. E, sobretudo,ao prescrever pública ecolectivamente acções preemptivas ousoluções de fundo mais cirúrgicas, ocomplexo Atta para a interpretação desonhos pode ser utilizado como umdispositivo facilmente acessível aosactores sociais; um mecanismo quelhes permite um empenhamento digno emsalvar a face a rivais actuais oupotenciais, disponibilizando,simultaneamente um forum visível parao reatamento público de relaçõesamigáveis. Mais: como o mostra o Caso5 (o facto de o sonho bendito deKontés só ter ocorrido depois deLa’íng, Simpí e eu próprio lhe termoscontado a nossa conversa com o lakáyOrké), as interpretações públicas eas suas soluções também podem servircomo quadros politicamente neutros emque compromissos, ou recursos,conseguidos noutros contextos,recebem algum reconhecimento formal ecolectivo. A regra mais geral, tantoa nível dos conteúdos da

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consensualidade lograda como no quediz respeito às formas de aconseguir, parecem ser a obliquidadee a indirecção pragmática.

16.6. ENQUADRAMENTOS E CONCLUSÕES Para terminar este já longoterceiro e último exemplo, nãoquereria deixar de tecer algumasconsiderações genéricas sobre oenquadramento destas interpretaçõespúblicas que vi concretizadas emGara-Garraw. Como é claro daetnografia, muitos dos conteúdos dossonhos dos Atta estão fortementerelacionados, ao nível temático, coma vida quotidiana dos sonhadores. Oque será trivial e não constituiráuma surpresa. Os sonhos, tal comoquaisquer outros aglomeradossimbólicos, são sem dúvida sempre,entre outras coisas, uma expressão deum conjunto de relações sociais queforma um dos contextos primeiros dasua produção. O mesmo pode ser ditoem relação aos conteúdos dos esquemasformalizados virtuais que os Attausam como moeda corrente para a sua

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interpretação. A um nívelsubstantivo, os próprios quadrosconceptuais que os Atta utilizam nassuas decifrações dos sonhos expressamou “reflectem” sem dúvida, de algumamaneira, práticas e traçosestruturais da organização socialAtta. Assim, por exemplo, ainsistência no seu desejo de viajar ede fazer visitas é bem compreensívelnuma sociedade nómada onde estasactividades constituem mecanismosnormais, que são de facto cruciaispara a integração política global,para a activação e reafirmação dateia de relações sociais. O mesmoacontece no que diz respeito àsfortes sanções contra comportamentosanti-sociais considerados disruptivostais como o ciúme, o erotismo nãoreprimido ou a agressão, que sãosusceptíveis de desencadear aseclosões de violência tão temidaspelos Atta. Ou no tocante à ênfase(esbatida mas firme) colocada nasobrigações simples, mas permanentes,entre pares diádicos de parentes,extensíveis mesmo para além da mortede um deles.

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Contudo, a prática pública deinterpretação dos Atta sobre os seuspróprios sonhos está longe de serneutra ou de ser redutível a um meroidioma, ou a uma simples colecção derepresentações. Gostaria de acentuaraqui que os contextos sociaisconcretos da interpretação públicadiária e colectiva dos sonhos entreos Atta são, de maneira evidente,particularmente relevantes para a suainteligibilidade. O seu significadonão é apenas função de decifrações decódigos. Os seus temas e conteúdosnão são tudo o que importaesclarecer. Mais que significados, asinterpretações têm sentidos, direcções, eestes dependem em larga escala dasconjunturas exactas da suaenunciação260, que só uma cuidada260 A importância dos contextos sociais, ou dasconjunturas de enunciação, têm sido largamentesublinhadas em teorizações tão diversas (masaparentadas) como as dos speech acts do J. L. Austin,a dos Sprachspielen de L. Wittgenstein passando pelahermenêutica de H. G. Gadamer, a metodologia críticade J. Habermas, e mais socioantropologicamente oimpression management de E. Goffman, os speech events deDell Hymes, as performances de S. J. Tambiah, aséchanges linguistiques de P. Bourdieu e a ritual action de G.Lewis ou a de M. Bloch. Sem querer aqui fazer maisque tocar questões metodológicas de fundo, parecer-me-ia uma falaciosa petição de princípio pretender

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observação participante permiterevelar; como espero ter mostrado nasilustrações que aduzi. Não podemos,como me parece ter demonstrado e aocontrário do que pretenderia algumestruturalismo, reificar os esquemasinterpretativos virtuais separando-osda sua utilização particular num dadoacampamento, num certo contextosocial, numa determinada conjunturapolítica. É certo que algumaestabilidade interpretativa é postaem evidência, como tentei fazersobressair nas minhas descrições. Masa flutuação pragmática é tambémnotável. E não deixa de serinteressante que as váriasconjunturas, nos exemplos que expus,sejam sobretudo marcadas por questõespolíticas relativas, essencialmente,à co-residência, ao ciúme e à inveja,tipificar contextos, conjunturas ou situaçõessociais, reificar esquemas conceptuais ou sequer,pace Goffman e Bourdieu, presumir a existência desujeitos (actores) racionais e integrais que dealguma forma precederiam as acções, linguísticas ououtras. Tal como sugeri noutro lugar (A. MarquesGuedes 1997: 146-152), julgo preferível encararperformances enquanto acontecimentos imersos no quechamei “configurações de troca” que, seguindo ThomasGibson (1988), tendo a preferir vislumbrar enquanto“rituais políticos” dotados das suas própriasracionalidades.

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ao igualitarismo ou à agressão.Parece-me também crucial ter presenteque as mecânicas interpretativasexibidas tendem a focar, como pontospreferenciais de aplicação,resoluções de tensões e conflitos, oua sua mediação informal. A sugestão éiniludível: as grelhas Atta para ainterpretação dos sonhos formam, maisque um simples idioma, como que umoperador complexo nos termos do qualconfigurações de solidariedadeorgânica de grupo (sobretudo a dostão importantes agrupamentos locais)são enfática, reactiva econtinuamente geradas no interior davida social.

Como espero também terdemonstrado, este dimensionamento dasinterpretações é fundamental. E nãodeixa de ter importantes implicaçõesteóricas. Talvez valha a penaenunciar claramente a questão. Nainteracção discursiva ecomunicacional quotidiana, os actoressociais Atta, como vimos, utilizamreservas disponíveis de sabercultural, grelhas interpretativasvirtuais que dependem de enunciadosproposicionais mais ou menos

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estandardizados para lograr definirsituações de maneiras susceptíveis deconseguir consensos. Usam modelosconvencionais. Como sublinhei a par epasso, podem seguir-se discussões epodem ser manifestadas discordânciasque tornem imprescindíveis revisõesde esquemas tradicionais deinterpretação ou dos modos habituaisda sua aplicação; como se se buscasseuma qualquer adequação ideal. Masmesmo ao fazê-lo, como tentei aindamostrar, formas processuais bastantefixas e normalizadas são utilizadaspelos participantes, fortes pressõesformalizantes são evidenciadas. Nãoque fosse impossível escapar a estesconstrangimentos culturaissecundários, chamemos-lhes assim.Seria sempre pensável para um Attainventar modelos alternativos; ou,mais plausivelmente, fabricarinterpretações. E por vezes issoacontece. Nos casos em que a tal élevado a cabo, no entanto, parecesempre tornar-se evidente para ospresentes que as “regras do jogo”estão de alguma maneira a sertransgredidas, que manipulaçõesvoluntarísticas abertamente

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teleológicas e instrumentais (e porisso pouco convincentes) entraram emfuncionamento.

Este ponto é crucial. Ao reagircom humor, indignação, ouconsternação, a essa percepção, osactores sociais Atta, creio, põemjustamente em evidência ascaracterísticas distintivas dosprocessos interpretativos "normais":não se trata de comportamentosindividuais e livremente criadospelos actores sociais, nem decorroborações ou confirmaçõesempíricas de grelhas analíticas; nãosão processos cooperativos deinterpretação empreendida com oobjectivo de assegurar, ou decontrolar, a validade abstracta dequaisquer esquemas conceptuaisrelativos à descodificação pura esimples de sonhos, ou à sua eventualadequação ideal, ou aplicabilidadeconcreta e conjuntural, a umaqualquer narrativa onírica. São, isso sim,interacções públicas e colectivas levadas a cabono intuito de coordenar a acção dos presentes pormeio de um entendimento táctico e tácitogeneralizável, dado que construído pelaconjugação sistemática de categorizações

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cognitivas fundamentais partilhadas por sujeitossociais envolvidos na prossecução de objectivostambém partilhados. Em sociedades commais diferenciações e hierarquiassociais, é frequente queespecialistas dirijam as operaçõesrituais, controlem as narrativas querelatam a audiências mais ou menospassivas e liderem eventuais análisese intervenções profiláticas oupreventivas, durante ou após osritos.

Em contraste, os Atta queinterpretam sonhos comunicam uns comos outros e com todos os presentes,mesmo os que não ofereçam sugestões,de modo a se entreajudarem no esforçocomum de decifração, e por forma anão excluir ninguém de umaparticipação claramente concebidacomo devendo ser de todos. Seria porisso incorrecto (e coadunar-se-iapouco com os dados etnográficos, comoindicia o que foi dito) presumir umaqualquer intencionalidade sistemáticade actores sociais que se decidiriampor um determinado curso de acçãointerpretativa como meio para atingirfins pré-concebidos, num qualquersentido instrumental, utilitarista ou

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estratégico; como seria descabidosugerir uma qualquer legitimação deinterpretações em termos“teoricistas”, ou de acordo com algumautoritativismo de especialistas. Édos consensos pública ecolectivamente conseguidos, queroinsistir, que advém o notável poderdas asserções resultantes dasinteracções dos co-residentes. Daí parteda sua força.

Mas não é contudo a dimensãoproposicional a única fonte dessevigor. O suporte geral da suaeficácia, sublinho, é o que soutentado a apelidar a correcção política,evidente para todos os presentes, dossignificados e dos sentidospartilhados, sem dúvida, mas tambémda utilização de formas processuais de tomada dedecisão para o seu apuramento cujasconfigurações são comummente reconhecidas eaceites; e que revestem, também elas,pela sua indirecção e obliquidade, poucosriscos para a integridade do grupolocal. Esta reperspectivaçãopolítico-processual é essencial. Asformas interactivas de transacção aque é dada expressão são condiçõescentrais no que toca a esse

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redimensionamento. As sessõespúblicas colectivas mapeiam comgrande nitidez etnográficaformatações processuais econfigurações dinâmicas específicas.

Os Atta que oferecem umainterpretação, como aquele ou aquelaque conta um sonho, falam sempre paraum colectivo anónimo; dirigem porregra o olhar para o chão ou para oar. Sonhos e interpretações confluempara um centro impessoal, numaenfática submissão igualitária detodos perante o todo. Consensosfáceis são tácitos e automáticos; nosdifíceis, diálogos articulamdiferendos, mas sempre na busca de umacordo anónimo e unânime a que todosconsintam sujeitar-se. Para atotalidade dos Atta presentes, oalcance dessas configuraçõescomportamentais é evidente. Mais: sãotais formas processuais as únicasaceitaveis e são claramente “políticas”;são "como" a repartição da caça noacampamento, "como" uma oferenda.Soletram igualitarismo. Logo, são fonte devalidação; melhor, são um mecanismoperformativo de legitimação. Daítambém a sua força.

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O poder e o peso específico deoperadores complexos deste tipo sãoatributos que não podem sersubestimados. Não se trata de simplesinstrumentos rígidos manipulados poractores sociais pré-existentes quelhes sejam exteriores: ajudam acircunscrever acções segundo formaspúblicas e colectivas igualitáriascongruentes com muitas outraspráticas locais. Mesmo os seus pontosprincipais de aplicação militam afavor da eficácia. Da mesma maneiraque em sociedades mais hierarquizadasritos tendem a centrar-se naquelasrelações sociais que incorporam maisdireitos e obrigações entreindivíduos, os ritos dos Atta estãocomo que focados nas relações entreas pessoas e os seus co-residentes,já que é nesse nexo relacional que seconcentram as obrigações e osdireitos de todos e de cada um.

As sessões ritualizadas deinterpretações em que os Attadecifram os sonhos uns dos outroslogram ainda por isso mesmo implicaçõespara o comportamento colectivo e paramuitos dos papéis sociais dos co-residentes num acampamento. As formas

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processuais das interacções interpretativas,enquanto configurações comunicacionais ediscursivas, adequam-se sem perturbações aoutras actividades locais com que se articulam.Activam, mantêm e potenciam ciosamente, aintegridade política, organicamente igualitária,dos agrupamentos. Muitas vezes desencadeiam eexprimem realinhamentos difíceis, que estimulam.Fazem-no, fornecendo significados e alcance paraos diversos tipos de experiência e de interacçõesque, simultaneamente, contribuem para produzir,entre sujeitos sociais que ajudam a constituir.

Recapitulando, algumas conclusõesmais gerais que daqui podemos extrairparecem-me iniludíveis. As formassimbólicas aventadas, indissociáveisdas tácticas interpretativas maisconjunturais e específicas utilizadasem decifrações públicas concretas desonhos constituem meios poderosos deacordo com os quais os Attaactivamente ordenam (e muitas vezesreordenam) as suas relaçõespolíticas, a sua vida moral e social.Mais que aglomerados derepresentações cristalizadas, sãointerfaces entre linguagem e acção,como entre sujeitos e objectos.Exprimem e realizam. São operadorescomplexos porque transversais e

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multidimensionados. A sua eficácia éconstruída de forma que devemoschamar performativa, já que os seussentidos só são verdadeiramenteinteligíveis nos contextos precisosda sua realização. A sua forçailocucionária é notável, tendo emvista a eficiência dos dispositivos aque fazem recurso. As suas indirecçãoe obliquidade são justamente o quelhes consente ser por todosentendidas com clareza. Ao deslocar aatribuição de responsabilidades parao exterior neutro da comunidade,garantem a inimputabilidade de todose disponibilizam, ao mesmo tempo,palcos para o reatamento de relaçõessociais normalizadas. Asconfigurações interpretativaspúblicas, colectivas e organicamenteigualitárias a que dão corpofundamentam a enorme legitimidadelocal destes processos.

17. UM BALANÇO

Tanto no plano teórico como noetnográfico, muito mais poderia ser

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dito. Não me parece, porém, ser esteo local mais adequado para tal, jáque o meu objectivo, neste estudo, étão-só o de fundamentar o programa deuma disciplina. Para esse efeito,para além de delinear um encadeamentocronológico e de tentar pôr emevidência a lógica de uma progressãometodológica (o encadeamento dearquitecturas de problematização noquadro de uma genealogia, pararepetir as noções macro-organizadorasque tenho vindo a usar nestetrabalho), convém decerto sublinharalguns contrastes interdisciplinares.

Com isso em vista, voltemo-nosagora para um exemplo-tipo dasnumerosas diferenças que, em planosque interessam ao que aqui trato, demaneira significativa separam aAntropologia Jurídica do Direito. Oexemplo escolhido (apenas um, dosmuitos possíveis) diz respeito àdelineação de casos, uma estratégia dealgum modo comum ao Direito e àAntropologia.

Na parte que se segue destetrabalho, olhá-lo-emos nalgumpormenor. A perspectiva é sempre a daAntropologia. Por uma questão de

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coerência, os tópicos a que façoalusão implícita continuam a serfenómenos “jurídicos” e “políticos”.A finalidade é a de sublinhar pontosde aplicação para acentos tónicos deuma disciplina como esta numalicenciatura em Direito; com efeito,em muita da bibliografia que serve debase a uma grande parte das sessões éutilizada uma ou outra versão desse“método de casos” (case method).

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VI

A DELINEAÇÃO DE CASOS: UM EXEMPLOPARADIGMÁTICO DE VÁRIAS DIFERENÇASDIACRÍTICAS ENTRE O DIREITO E AANTROPOLOGIA JURÍDICA

If you have a mind that can thinkabout something that is inextricablyconnected with something else, withoutthinking about the something else, thenyou have The Legal Mind.

Thomas Reed Powell (citadopor Pierre Schlag (1996),“Hiding the bull”, New York LawReview 71: 1681, nota 62.

Comecemos por uma verificaçãotrivial. Basta um momento de reflexãopara que se torne evidente que asdiferentes finalidades que osjuristas e os antropólogos prosseguem

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condicionam de maneira muitíssimoforte as metodologias que uns eoutros utilizam e o seu alcance261.Com o intuito de o delinear no quediz respeito ao tema deste trabalho,ainda que tão-só o façamos a traçogrosso, deixemos de lado a vertentepropriamente analítica de cada umdestes dois grupos de investigadores,e atenhamo-nos tão só aos seusrespectivos esforços “descritivos”.

Um rápido esclarecimento prévioquanto à emergência da organização eanálise de “casos” na Antropologia.Em boa verdade foram E. AdamsonHoebel e Karl Llewellyn quem, na jácitada monografia que publicaram em1941, intitulada The Cheyenne Way,insistiram em registar e estudar (o261 O que, de todo o modo, é uma constatação que nãodeixa de ter corolários interessantes: visto que,por exemplo, isso implica que o papel preenchido pormetodologias como a de case studies varia conforme astransformações diacrónicas ocorridas nas finalidadese objectivos das disciplinas que as utilizam. Seriadecerto um estudo fascinante esmiuçar os avatares daprogressiva adopção deste método por disciplinas tãodíspares como o Direito, a Antropologia e a Medicina(em que os estudos levados a cabo por via dedelineações de casos estão também desde há muitogeneralizados), tentando encontrar paralelismosepistémicos que estarão seguramente subjacentes àsdiferenças “superficiais” mais manifestas.

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exemplo etnográfico da “lei dosCheyenne e a perpectivação teóricaque escolheram utilizar, como vimos,exigiam-no) o que apelidaram de“trouble cases”. É curioso verificar quedecerto uma das fontes que deu origemao formato de “casos” foi o modelo deChristopher Columbus Langdell naJurisprudence anglo-saxónica, a queLlewellyn terá sido especialmentevulnerável por formação e opção. Ofacto é, porém, que desde pelo menosos anos 20 do século passado que nasCiências Sociais (a começar pelaCiência Política e pela Economia,passando pela Sociologia) crescia ainsistência em análises concebidascomo um desenvencilhar da estruturade situações particulares contra ospanos de fundo sociais mais genéricosda sua ocorrência. E não há dúvida deque, qualquer que seja a genealogiada utilização deste tipo de método,os percursos disciplinares que eledepois seguiu escavaram um fosso dediferença262.262 Par uma discussão aturada da utilização do “case-method” na Antropologia Jurídica dos finais daprimeira metade do século XX, e depois nos anos 50 e60, ver M. Gluckman (1973, op. cit.: sobretudo pp.611-622). É curioso verificar (e seguramente um bom

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Importa, apesar de tudo, operaruma distinção entre a versão soft docase method inicialmente utilizado naAntropologia Jurídica e a variantemais hard que depois a veiosubstituir. De início o método decaso pouco mais era de que umaestratégia de exposição do que M.Gluckman graficamente chamou uma “aptillustration”263.

O “extended-case method” que tomou oseu lugar era de outra liga: incluía(ainda o faz) o traçar para trás, notempo, de uma transgressão oudiscórdia para apurar o contexto da

indicador das vantagens e da imprescindibilidade docase method face às características de fundo dasrealidades etnográficas abordadas) que a lista dosseus utilizadores se lê como uma listagem dos maisimportantes (no sentido de paradigmáticos das fasesdo desenvolvimento da disciplina) antropólogosjurídicos. Na Antropologia Jurídica africana, orecurso a este método nos trabalhos de A. L.Epstein, Max Gluckman, Paul Bohannan e Peter H.Gulliver garantiu-lhe foros de cidadania. No que dizrespeito aos estudos levados a cabo sobre a Ásia-Pacífico, foi decisiva a influência de LeopoldPospisil e do seu “casuistic approach”, como este chamouà sua versão desta estratégia de exposição eanálise. B. Malinowski, é claro, tinha aberto ocaminho para tanto; um ponto que irei, uma vez mais,retomar.

263 Ibid.: 612.

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sua emergência, e depois o seurastreio ao longo do mesmo eixo tempode modo a seguir o evoluir dosrelacionamentos sociais entre osenvolvidos, mesmo depois de eventuaismediações, julgamentos oureconciliações mais ou menosritualizadas que entretanto possamter ocorrido. Sally Falk-Moore264

caracterizou com lucidez a utilizaçãodeste método em análisesantropológico-jurídicas como dandocorpo a “the principle of expanding dispute”.Na Antropologia em geral e decertotambém na Jurídica, como ireisublinhar, o tipo mais influente deextended-case method foi o quecristalizou ao redor daquilo queVictor Turner famosamente chamou socialdramas: nexos complexos deacontecimentos interligados em váriosplanos que afectam as histórias devida de pessoas individuais ouagrupamentos.

Tendo em mente, para usar um sóexemplo, aquilo que acabei de exporsobre a juridicidade presente nainterpretação dos sonhos entre osAtta das Filipinas, e na certeza de264 Sally Falk-Moore (1972).

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que (apesar das suas especificidades)esse exemplo de maneira nenhumaconfigura uma situação atípica,viremo-nos para o contraste tãoaparentemente inócuo e neutro entre aconstrução de “casos” pelaAntropologia Jurídica e a levada acabo pelo Direito.

18. ENTRE O “CASO” NA ANTROPOLOGIA E O“CASO” NO DIREITO

Começo por esta última, aconstrução de “casos” pelo Direito.Não será certamente excessiva aafirmação de que o jurista, mesmoquando o trabalho concreto a que sededica não visa senão retratar umcaso, está preso a um objectivoúltimo normativo, regulador; ou, se oque se pretende é uma mera descrição,vê-se sempre atido a seleccionar tão-somente aqueles elementos do queocorreu que aconteça tenham alcance erelevância jurídicos265. Enquanto que265 É de notar que, neste âmbito, são marcadas asdiferenças específicas que distinguem os common lawsystems anglo-saxónicos, nos quais muitas vezes o“corpo da lei” (body of law) mais não é que osomatório de pequenas “regras” (rules) implícitas,

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o etnógrafo se encontra na posiçãomais livre de arvorar como finalidadea disponibilização (melhor, a oferta,ou a partilha) de um relatoconvincentemente minucioso e ricodaquilo que concreta e efectivamentese passa na vida social.

O contraste ao nível geral nãocusta a equacionar266. Montar um“caso” jurídico é sempre, de um ou deoutro modo, compor um “problema deilustradas por diferentes “casos” (cases) concretosanteriormente julgados. Tanto a pertinência quanto oalcance dos chamados “factos de um caso” (the facts of acase) dependem, em tais sistemas, de interpretaçõescujos pontos de aplicação são diversos dos daquelasrelativas a sistemas (como os romano-germânicos) emque as “leis” estão codificadas, logo plasmadas, deforma mais explícita.

266 Como é inevitável, o que exponho reflecte umaposição de entre muitas possíveis; trata-se, porém,de uma posição que me parece pouco problemática paraa linha de argumentação que aqui prossigo. Muitostêm sido os estudos que sobre este tipo de problemasse têm vindo a debruçar, equacionando-os daperspectiva do Direito. Bastará citar dois exemplosportugueses: o de J. Baptista Machado (1961) e o deJ. Castanheira Neves (1967). Para além de CliffordGeertz (1983), que aflora indirectamente temas afinsdestes, não conheço quaisquer textos que alinhe asmúltiplas questões suscitadas por uma comparaçãocomo esta, quando encaradas da perspectiva daAntropologia Jurídica; note-se, no entanto, queLlewelyn e Hoebel, bem como Gluckman, estabelecem,en passant, comparações parciais implícitas.

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Direito”; trata-se por isso pordefinição de uma questão que merece eexige resposta do sistema jurídico. Anormatividade do Direito preencheneste ponto um papel essencial: comouma ordem de tutela de bens jurídicosque “devam ser” protegidos, o Direitoimpõe como tarefa ao jurista odesimplicar do âmbito da facticidadesocial uma qualquer “conotaçãonormativa”. Delinear um caso nunca éassim inteiramente dissociável daexigência de dever resolvê-lo.

Uma norma (ou mesmo um conjuntode normas, qualquer que seja a suaescala), não se pode por conseguintenunca confundir, nem pouco mais oumenos, com um texto. Excede-o sempre.O texto de um caso não é senão adescrição de uma história, de umanarrativa, à partida vocacionada para oDireito; a norma mais não é que ajuridicidade conotada pelo(s)texto(s), a proposição do dever-ser.

Uma outra forma de o dizer ésalientando que, para um jurista queconstrói um caso, o que é tido comojuridicamente relevante tem semprepor horizonte a unidade de um sistemao qual, por sua vez, está pré-

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ordenado a valores como “a justiça”ou “a segurança”. O “juridicamenterelevante” é assim em si mesmo jáimplicitamente normativo, i.e. visateleologicamente solucionar o casoque delineia emprestando-lhe, logo àpartida, o método jurídico267.

Podemos especular não só quantoao significado a atribuir àteleologia da normatividade a queacabei de aludir mas até mesmo quantoao sentido que adquire o fazê-lo. Semcom isso perder muito tempo, limitar-me-ei a realçar um caminho possível,como é natural aquele que me parecemelhor. Como notou Clifford Geertz268,se no “adjudicar” [ou seja, na

267 Num artigo relativamente recente sobre a“semiótica crítica”, D. Kennedy (2001:1154) dizoutro tanto de forma curiosa, mas precisa, aoasseverar que “processing information means transforming rawdata by turning it into inputs organized within a set of categories thatreside in [a] processor. The facts of the case as recounted by theparties are scanned and winnowed to select those that the legalsystem has identified as determining the application in one way oranother of a rule of the legal system. Who cares whether the horse waswhite or black? Horse color is irrelevant to the crime of horse theft”.Uma espécie de versão digital e cibernética dealgumas das implicações do imperativo normativista aactuar retroactivamente nos procedimentos deconstrução de casos no Direito.

268 Clifford Geertz (1983, op. cit.: 175).

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prática do “jurídico”] reconhecemos arepresentação de situações concretasnuma linguagem que é, ao mesmo tempo,uma linguagem que articula ligações econsequências específicas e umalinguagem de “coerência”, entãoavaliar “juridicamente” um “caso” émais do que tão-somente juntar provasem apoio de um ponto: torna-se numaprodução de actos de “descrição” desequências particulares deacontecimentos empreendida no quadroda expressão de uma visão conjunta daexistência, idealmente de forma detal maneira “integrada” que acredibilidade de cada uma destas duasparcelas confirma e reforça acredibilidade da outra269. Resolver um269 Na frase feliz de Geertz, nesses termos, “any legalsystem that hopes to be viable must contrive to connect the if-thenstructure of existence, as locally imagined, and the as-therefore courseof experience, as locally perceived, so that they seem but depth andsurface versions of the same thing. Law may not be the broodingomnipresence in the sky, as Holmes insisted rather too vehemently, butit is not, as the down-home rhetoric of legal realism would have it, acollection of ingenious devices to avoid disputes, advance interests,and adjust trouble cases either. An Anschauung in the marketplacewould be more like it”. Infelizmente, Geertz nãodesenvolveu muito mais este último ponto; mas paraos efeitos em que aqui o cito, a delineação queenunciou quanto ao significado analítico da“esquematização” levada a cabo no âmbito do“jurídico” ao nele se representar um “caso” (mesmotendo em conta as hesitações que quanto a este ponto

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“caso”, deste ponto de vista, ésempre o que está em causa na suaedificação ela mesma, e o objectivodisso é a reafirmação de uma certavisão do Mundo.

O antropólogo jurídico, aocontrário do jurista, está livre parase dedicar às especificidadespróprias de cada caso, ainda que paratal se sirva de um método comparativoque lhe impõe algunsconstrangimentos. O objectivo que sepropõe é estudá-lo e não procurarresolvê-lo. Esta diferença de tónica nãopode deixar de se espelhar no recorteque leva a cabo no que diz respeitoaos “factos do caso”. As diferençasque esta diferença induz, tanto aonível de estratégia de recolha dedados, como ao do seu enquadramento eda sua interpretação, sãoefectivamente de monta.

Não é nada difícil detalhá-las empormenor. Uma descrição etnográfico-jurídica de um acontecimento, de umacadeia de factos, de uma história,pode conter muitas coisas que nunca

antes sublinhei) é mais do que suficiente para pôrem relevo o contraste que aqui tento evidenciar.

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teriam um lugar, por seremdesnecessárias e poderem por issoinduzir em erros, na descrição de umcaso levada a cabo por um jurista.Pense-se nas análises que propussobre interpretações concretas desonhos dos e pelos Atta e sobre asimplicações estruturais quedesencadearam: um antropólogo pode,por exemplo, ir buscar e encadear unsnos outros vários ângulos de visãopara além daqueles que dão forma àversão de cada uma das partesenvolvidas num qualquer evento ousequência de eventos. Tal como poderelativizá-los e fugir-lhes, indoprocurar outros pontos de entrada,outras perspectivações.

Ao fazer qualquer destas duascoisas, a descrição que empreende vê-se reconfigurada. Mas mais ainda,pode até convir-lhe sublinhar apresença de ausências, e assimampliar de outra forma a sua matériaprima, por assim dizer: como noutrocontexto notou o norueguês FrederikBarth270, numa monografia sobre270 Frederik Barth (1987), Cosmologies in the Making. Agenerative approach to cultural variation in inner New Guinea,Cambridge University Press: 21.

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variações regionais neo-guineensesquanto a temas cosmológicos, “perhapseven real absence, like silence, may sometimesspeak more loudly than the presence of thephysical element”. Numa palavra, aAntropologia Jurídica poderedimensionar imensamente umadescrição de um caso que um juristaleve a cabo, alterando, poracrescentos e ampliações de tiposvariados, as coordenadas que asubtendem e que em última instâncialhe dão forma e consistência.

É o que os antropólogos chamam oextended case method 271. As vantagens271 Muito diferente, repito, do case method utilizado,nomeadamente, pelos juristas anglo-saxónicos, apesarda conexão genealógica parcial (e portanto daligação congénita) entre ambos. Valerá decertoapenas incluir aqui alguma profundidade “histórico-genealógica”. Como é bem sabido, este último foiprimeiro introduzido, em 1870 e no ensino do Direitolevado a cabo em Harvard, por Christopher ColumbusLangdell. Trata-se de um método aplicado sobre abase de legal briefs que sumarizam factos, questões,regras e raciocínios, relativamente a casosempíricos particulares sobre os quais os tribunaisse debruçam. Langdell, desencadeando “diálogossocráticos” com os seus alunos, encaminhava-os,progressivamente, pela ilação-transmissão das“regras” e pelo ensino do “raciocínio jurídico”(legal reasoning) adequado, na direcção da aprendizagemdo “corpo jurídico” (body of law) maior de que fazemparte. Um modelo particularmente adequado aossistemas de case law. O case method é hoje comumente

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deste case method reforçado, umaestratégia de recolha e organizaçãode dados de algum modo inaugurada (ouque com ele encontrou a sua primeiraexpressão plena) por Victor Turner nasua esplêndida monografia272 sobre asfissões e as fusões característicasda organização social clânica elinhagística dos Ndembu da Zâmbia,são várias: para além de incluir eentremear vários pontos de vista,implicam seguir os participantes,permitem-nos como que filá-los notempo, e tornam assim viável umadescrição dos acontecimentos à medidaque estes ocorrem; mais ainda, ganhamao fazê-lo, aceitando de maneiraimplícita que tanto acidentes como

utilizado, enquanto estratégia pedagógica, namaioria das Faculdades anglo-saxónicas de Direito.Aquilo a que neste Estudo aludo é o que Langdellchamou a delineação dos “factos de um caso”, quedesse método faz parte, e que aqui contraponhoàquela que os antropólogos jurídicos hoje em dialevam a cabo.

272 Victor Turner (1957), Schism and Continuity in an AfricanSociety, Manchester University Press. Esta obra e a deEdmund Leach (1961), Pul Eliya. A village in Ceylon,Cambridge University Press, são seguramente ostextos antropológicos seminais no que toca autilização do extended case method, na sua variantemais hard ligada à narrativa de social dramas.

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incidentes formam parte integrante einalienável de um retrato que sequeira fiel da situação, acatando-osem tempo real, e delineando no âmbitoda conjuntura vivida aquilo a que aspessoas envolvidas se vãoprogressivamente acomodando, bem comoa panóplia de minudências a que elasse vão sucessivamente tendo queajustar no decurso das interacçõesque têm umas com as outras.

Ora é indiscutível que o avulso,o casual, o fortuito, o inesperado,que o extended case method é capaz desurpreender, fazem muitas vezes parteda natureza das coisas. Como escreveuhá não muito tempo Gilbert Lewis, nocontexto de uma extensa edetalhadíssima monografia273 relativaao estudo de apenas um único longoincidente de “doença” entre os Gnaudo interior da Nova Guiné, “if theconstructs of science or theory serve to organize agiven body of knowledge, and selection makes the273 Gilbert Lewis (2000), A Failure of Treatment, OxfordUniversity Press: 9, uma monografia extraordinárianão só pela riqueza etnográfica das descrições queleva a cabo na progressão da doença fatal de umGnau, em Sepik Oriental, mas ainda pela força daargumentação teórica na perspectivação que faz douso de case stories em estudos sociológicos.

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presentation look false or too neat, then theaccidents and incoherences of life in ethnographicnarratives provide an antidote to that”. Umantídoto, acrescentemos, da maiorutilidade também num plano maissingelamente formal: já que restituiàs situações a completude que lhes éprópria, que as caracteriza edistingue, ao mesmo tempo que asredimensiona e as torna passíveis demúltiplas reinterpretações. Modeliza-as a uma distância tão pequena quantopossível da “realidade”.

O que é perdido por um lado éassim ganho pelo outro. A pobreza doesboço, a formalização excessiva dorascunho, a simplificação induzidapelo esquisso, são em larga medidaneutralizadas pelos sempre ricos equase inevitavelmentemultidimensionados e densosenquadramentos narrativos destashistórias de casos. São de algum modocomo que contrabalançadas, na suanarratividade “processual”, por umaespécie de modelização analógica docorrer da vida.

Há longos anos que tal éreconhecido pelos mais diversosanalistas sociais. Mas infelizmente

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raras vezes o é de maneira explícitae directa. Curiosamente, muito antesda publicação do trabalho de VictorTurner sobre as dinâmicas políticasde fissões e fusões entre os Ndembuzambianos, Bronislaw Malinowski tinhajá tornado isso evidente em Crime andCustom in Savage Society274: quando, na suamonografia jurídico-antropológicaclássica relativa aos trobriandeses,para rebater a imagem estereotipadaentão vigente do “primitivo” como umescravo mecânico do costume, umnativo sem individualidade porquesubmetido a regras sociaisconstrangentes que não lhe permitiamqualquer margem de expressão,contrapôs a este construto umadescrição vívida e minuciosa de umacontecimento complexo e cheio devolte-faces, que testemunhou. BronislawMalinowski interpretou em grandepormenor o acontecimento (um suicídioa que já fiz alusão, o de uma mulher274 O já citado estudo teórico geral de BronislawMalinowski (1932); ver Bibliografia Geral apensa aofinal do presente trabalho. Noto que alguns autores,designadamente M. Gluckman (1972, op. cit.) discordamimplicitamente desta interpretação, insistindo queMalinowski nunca practicou ele próprio aquilo queadvogava constituir o melhor método.

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trobiandesa, Isowa’i, que enganadapelo marido o “puniu” suicidando-seao se atirar de uma palmeira abaixo,o que teve as suas sequelas nacomunidade ao nível local) contra opano de fundo da análise queempreendera sobre as regras eexpectativas formais e tradicionaisdos trobriandeses, de algum modo emcontraponto com estas – e fê-lo pondoem evidência a especificidade dascircunstâncias e o jogo interactivodos traços de carácter individuaisdas suas personagens e dasrespectivas ambições pessoais.Acrescentando a uma perspectivaoutras, com ela concorrentes. Eredimensionando assim a análise maisformal que antes levara a cabo.

Ou seja, dito de outro modo,Malinowski soube usar a riqueza doparticular contra o geral, doacontecimento concreto contra omodelo virtual, da densidade factualdo empírico versus a parcimónia daconstrução. Soube modelizar “perto darealidade”, como depois o fizeram,refinando as coordenadas dessaaproximação, os autores que citei.Uma lição que, felizmente, muita da

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Antropologia contemporânea (incluindoa Antropologia Jurídica) aprendeu econtinua a saber compreender.

19. A DENSIDADE EMPÍRICO-FACTUAL DOSCASOS ANTROPOLÓGICOS

Vale seguramente a pena detalharum pouco mais este último ponto. Acomplexidade “textural” dos “casos”descritos pela Antropologia Jurídicanão é de maneira nenhuma sempre umatributo inconsequente desse modo derepresentar as coisas. Pelocontrário, só muito esporadicamente éesse o caso. E os antropólogosjurídicos, sobretudo os que nosúltimos anos se têm preocupado com asrecontextualizações (que, como antessublinhei, consideramimprescindíveis) do “jurídico” e do“político”, têm disso tido agudaconsciência.

A questão começa por serepistémica. Pense-se, uma vez mais,nos exemplos Atta que esmiucei.Condenados que estamos a umametodologia observacional, o problematorna-se (para quem o escalpeliza em

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termos analíticos) num de tentardescrever aquilo que aconteceu etransmuta-se num processo deencontrar nexos num espaço conceptualmultidimensionado. Os factos aparecemcomo dados polifacetados, eventosembebidos em sequências eencadeamentos espessos dispostos emvários planos, por via de regra comtimings próprios, exibem convergênciase coincidências interessantes, esuscitam por isso mesmo questõescausais e conexões múltiplas (eirredutíveis umas às outras) designificados, intenções e sentidos.Resumi-los, parece-nos nítido, é porvia de regra traí-los.

Em consequência, asreperspectivações destes factos pornós empreendidas enquanto analistas,em muitos casos fluem: apercebemo-nosque aquilo que alguns dosparticipantes sabiam, outrosignoravam, uns tantos escondiam eassim por diante. Verificamos quantasvezes, com os benefícios daexterioridade e distância, que oimpacto de acontecimentos paralelosimprevistos os distrai ou os cega.

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Enquanto analistas, e seestivermos convictos dos méritos deprocessos de reconstrução racional,podemos tentar interpretar o quealguém fez à luz forte do que ele ouela afirmou saber, do que pretendianegociar, ou dos seus motivos. Ou, sepreferirmos assumir um ângulo maisexternalista, podemos mesmo ensaiarexplicações de acções, ou até deresultados, por recurso aconstrangimentos relativamente aosquais as pessoas podem ou não terestado conscientes. Como podemosutilizar (e é o que regra geralfazemos) modelos compósitos ehíbridos do ponto de vista do métodode decifração seguido. Em resumo epor outras palavras: há vantagens emrecorrermos a todos os instrumentosde interpretação disponíveis. Sabermais é assim conhecer melhor, paraquem, como todos nós, está condenadoa apenas poder compreenderobservando.

Reiterando: para a AntropologiaJurídica (ou pelo menos para aquelaAntropologia Jurídica que aposta nosbenefícios do extended-case method e nosdo rastreio do que Victor Turner

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chamou social dramas), a análise do queacontece pode com efeito, deve até,envolver tudo isto. Ganha com osacrescentos, com a multicentralidade.Recolhe vantagens e mais-valias detodas essas ampliações, desde oincluir razões ou intenções ao tentarcompreender ligações significativasnuma interpretação das acções eactividades observadas, até aoaventar de conexões relevantes paraas ausências detectadas. E umaanálise vê-se também enriquecida aodedicar-se ao labor metódico debuscar causas primeiras e causasúltimas num esforço sistemático deexplicação dos acontecimentos.

Em termos ideais, o motivo paraisso é simples: a melhorinterpretação sociológica que podemosoferecer será porventura sempreaquela que se revele como sendo amais adequada simultaneamente aonível do significado e da causação275:275 O que, evidentemente, não é necessariamenteverdade se a nossa análise for de índole jurídica, esobretudo se assumirmos uma posição formalista epositivista “clássica”. Como escreveu Thomas ReedPowell (citado por Pierre Schlag num artigo de 1996,intitulado “Hiding the bull” e publicado na New YorkLaw Review 71: 1681, nota 62), “if you have a mind that canthink about something that is inextricably connected with something

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aquela que ao mesmo tempo nos consigainduzir uma compreensão dosacontecimentos e nos permitaarticular uma explicação para delesdar conta.

20. UMA ESTRATÉGIA DE ACRESCENTOS?

É assim prática tradicional nosestudos antropológicos uma estratégia

else, without thinking about the something else, then you have TheLegal Mind”. É curioso notar que T. Reed Powellformulou esta afirmação em tom de distanciamentodivertido e até jocoso (e é nesse sentido, aliás,que P. Schlag, o cita). Também com fina obliquidade,um jurista académico norte-americano, P. Rothstein(1970, cit. por Clifford Geetrz, 1983, op. cit.: 172),explicou num manual de Direito a não admissão de umapergunta em tribunal como uma decisão de um juiz queconsidera que “the trial [will be] better off without theevidence”. Na minha experiência pessoal, quando umjurista em Portugal louva os dotes de outro jurista,apontando-lhe “um dom para o Direito” (o que não éraro, dada a dimensão que tais louvores têm, emsimultâneo, de tributo intelectual e de afirmação deco-pertença corporativa) a intenção é precisamente ade elogiar essa capacidade que o outro ostenta de seabstrair do “inextricável” nos raciocíniosnormativos que logra produzir. Seria fascinanteempreender uma análise “etnográfica” do papelpreenchido por este tipo de interacções verbais,bastante padronizadas ao nível da sua “ritualização”por agrupamentos sociais, na comunicação-consolidação de enquadramentos teóricos específicos.

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de acrescentos sistemáticosrelativamente ao que seria uma versãosimples resultante da mera soma dasperspectivas, conscientes eponderadas, dos participantesdirectos num qualquer acontecimento“jurídico-político” (e até dealterações muito sui generis na própriacircunscrição daquilo que tomamoscomo constituindo um acontecimento dealguma forma discreto). Acrescentospor camadas, por assim dizer. O queredunda em ganhos, certamente emtermos empíricos.

Não é árduo sublinhar algunslucros. Vejamo-lo indirectamente,transpondo e generalizando: levar acabo algo de semelhante àquilo queClifford Geertz apelidou de“descrições espessas” (thickdescriptions)276 tem as vantagensindubitáveis de despertar em quemaborde por essa via narrativaindirecta o fluxo das interacçõessociais um maior interesse geral,276 Um conceito utilizado por este autor em numerososestudos, mas formalmente desenvolvido em vários dosartigos congregados na colectânea de artigos deClifford Geertz (1973), intitulada The Interpretation ofCultures.

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aliado ao facto de com toda aevidência essa démarche exibir ummuitíssimo maior rigorrepresentacional na empiricidade maisprecisa (ou menos imprecisa) emultidimensionada dos acontecimentosque retrata. Narrativas densas não osfazem perder tanto da polivocalidadedensa mas friável que por via deregra os caracteriza, ao mesmo tempoque aliam a essa sua maior colagem àrealidade um encantamento e umfascínio que desencadeiam, em quemcom elas depara, uma empatiacognitiva do maior alcanceontológico: aumentam a compreensãoque temos das coisas aproximando-nosdelas, sem deixar (pelo menos semmetaforicamente o fazer) que delasexcessivamente nos distanciemos.

No intuito de melhor pôr emevidência alguns dos contrastes entreas estratégias analíticas seguidaspor antropólogos jurídicos e as dosjuristas, revisitemos a questão de umoutro ângulo. Olhemo-la daperspectiva da multiplicidade deversões que os actores sociaisinevitavelmente exprimem quanto aacontecimentos e ocorrências, e em

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particular quanto àqueles em que osseus interesses ou estatutos estão emjogo. O enriquecimento conquistadopor démarches deste tipo é com efeitopatente. Na teia intrincada da vidacomum quotidiana, de facto, muitassão, tantas vezes, as discordânciasdos participantes quanto àinterpretação do que vai acontecendo.E esta policentralidade na leituradas coisas é em muitos casos matériade fundo sobre a qual estudosantropológico-jurídicos se debruçam.

As dificuldades“representacionais” que tal suscitasão incontornáveis. Mas não se trataapenas de ter de dar conta de umamultiplicidade de ângulos quecorrespondam a diferentes posiçõesestruturais dos sujeitos sociais e dealguma forma as reflectem. Envolvetambém os motivos e as identidadeseventuais que estes ostentam e quepossamos querer apurar. Para operceber, bastará considerar oseguinte: mesmo se recolhermos dadosda perspectiva de apenas um dosactores sociais, ainda que o façamosde um só ponto de vista “individual”,

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dá-se muitas vezes um descentramentoque é inevitável.

Infindas vezes, aliás, não podiadeixar de ser assim. Os actoressociais nem sempre têm identidadessimples e unitárias, nem por via deregra são capazes de certezas nasnumerosas premonições que empreendemno seu dia a dia: por exemplo, muitossão os planos e projectos quedelineiam que esbarram (e é curiosoverificar que quantas vezes o fazemsem que sequer as partes interessadasdisso se apercebam) em imprevistos eque por conseguinte fazem falhar osprojectos ou agendas que se propunhamconcretizar. As pessoas não deixam noentanto por tanto de ter queconfrontar a vida. Quer não lheconsigam fazer frente, quer logremtriunfar nos embates, vão tendosempre de fazer múltiplas concessõesàs expectativas que cultivam e àsregras por que se regem; e porconseguinte têm não raramente dedefrontar o que lhes calha, e pornorma têm de fazê-lo de maneirabastante incerta, dada aimprevisibilidade genérica dodestino: o que não deixa,

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seguramente, de abalar o sentido quetêm de si mesmas enquantoparticipantes em relacionamentossociais. Quantas vezes, por outraspalavras, o andar das coisas não fazcom que “deixemos de ser nóspróprios”, como é comum dizer-se...

Recapitulando de um ânguloligeiramente diferente e a um nívelum pouco mais alto de abstracção:para um qualquer antropólogo(jurídico ou outro), a complexidade ésempre tida como uma propriedadeestrutural das situações que ocorrem navida social. E é-o no sentido forteem que introduz no correr das coisasalterações quantas vezes muitíssimomais do que quantitativas277. Nadadisto interessa a um jurista. Pelomenos na sua prática profissional, noque toca a definição de “casos” que

277 Da perspectiva do analista, isto dá azo a umaoportunidade: a de tratar a textura dosacontecimentos quase que como se fosse experiênciaúnica e irrepetível, mas uma experiência sobre cujascondições e coordenadas de ocorrência e sobre cujosdesenlaces, tal como os participantes directos, oobservador não tem efectivamente qualquer controlo.

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leva a cabo278, tudo isso é mais oumenos irrelevante.

Mas para um antropólogo trata-sede dados cruciais. A razão é simples:reduzir a indeterminação e amulticentralidade empíricas, tãofacilmente verificáveis, a que fizalusão, seria assumir o risco defalsear de maneira dramática amecânica efectiva das conjunturas.Recusar permitir que “as botas sesujem de realidade” redunda sempre emfazermos distanciar-se dela osmodelos que produzimos pararacionalmente a reconstruir. Emtermos líquidos, salda-seinvariavelmente numa perda deempiricidade que só pode serempobrecedora, quer queiramoscompreendê-la quer a desejemosmodificar.

21. ENTRE FACTOS E RAZÕES

278 Sobre este tema, é útil a leitura de I. GalvãoTelles (1999, op. cit.: 48-49), que insiste nacomplexidade, mas também no contraste, entre arealidade “factual”, a que interessa à “Sociologiado Direito ou Sociologia Jurídica”, e a realidade“normativa”, cuja ordem interessa ao Direito.

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Recusá-lo tem porém um preço,tanto no plano empírico como no dainteligibilidade, já que ao nívelmuito concreto e comezinho da práticade investigação antropológico-jurídica este tipo de estratégia deanálise não deixa de suscitarproblemas, ainda que apenas se tratede dificuldades potenciais. De algummodo trata-se porém de um custotrivial, pois que é o cobrado pelaslimitações gerais com que deparamosao encarar o Mundo, pensando-o ecomunicando-o.

É fácil esquissá-lo. Torna-seclaro, por exemplo (um curto momentode ponderação revela-o emabundância), que seja qual for oaprofundamento que possamos levar abom termo nas descrições que fazemos,isso não nos torna imparciais, nem nosentido de reconfigurar os “factos”de uma maneira menos incompleta(vendo deles apenas uma parte) nemnaquele outro de lhes reduzir opotencial enviesamento (distorcendo-os, ou estirando-os, por assim dizer,em qualquer caso reperspectivando-oscomo que por efeito de paralaxe).

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Desde há muito que a escolahermenêutica tem vindo a essepropósito a insistir no papelincontornável de “pré-compreensões”formatadoras.

Este ponto é crucial e importapor isso dar-lhe devido realce,quanto mais não seja para sabermosevitar tentações de poder invocarquaisquer tipos de um empirismo“neutro” e “factualista”. AAntropologia Jurídica, tal como aliáso Direito, não pode, de maneiraconvincente, alegar o privilégio deuma qualquer ligação especial ao“mundo real”. As observações a que dáazo não são nem factuais nem neutras.Os acontecimentos que descrevemoscontinuam, no fundo, a ser sempreolhados de um determinado ponto de vista,seja qual for a densidade deingredientes, a intrincação dosenredos, e complexidade dimensionalque possamos ter escolhido para acomposição deles. Não há, em boaverdade, nenhuma maneira de oevitar279.

279 Apesar de múltiplos pontos de contacto, é algodiferente a posição de Clifford Geertz quanto a umaquestão bastante semelhante à que aqui suscito. No

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A meu ver, tal não significatodavia que, enquanto analistas,estejamos condenados ao subjectivo eao arbitrário. O que me parece é que,ao contrário daquilo que argumentamos pós-modernistas de cepas evariantes mais cépticas ou, como as

que toca ao que chamou “the relationship between fact andlaw” Clifford Geertz comentou, com precisão, que “itappears […] in the form of quite specific concerns quite concretelyexpressed in the practical discourse of both law and anthropology: inthe first case in connection with the relation between the evidentiarydimensions of adjudication and the nomistic, what happened and wasit lawful; in the second, in connection with the relation between theactual patterns of observed behavior and the social conventions thatsupposedly govern them, what happened and was it grammatical”.Mas depois acrescentou que, “between the skeletonization offact so as to narrow it moral issues to the point where determinaterules can be employed to decide them (to my mind the defining featureof legal process) and the schematization of social action so that itsmeaning can be construed in cultural terms (the defining feature, alsoto my mind, of ethnographic analysis) there is a more than passingfamily resemblance” (Clifford Geertz, 1983 ,op. cit.:169). Parece-me curioso que Gertz tenha decididorealçar as semelhanças e não as diferenças entre asduas “reduções” que equacionou. Para o efeito, deforma muito característica, Geertz implicitamentepôs o Direito e a Antropologia num mesmo plano: odos discursos “socialmente construídos” porintermédio de uma modelização; e foi nesse plano queo A. comparou a “skeletonization of fact” empreendida peloDireito com a “schematization of social action” levada acabo pela Antropologia. Discordo da convergência queGeertz faz disso decorrer, e insisto que me pareceque o realce dado às semelhanças resulta dapresunção dela. E discordo não por não considerarexistir um paralelo, ao nível “representacional”,entre as práticas teóricas antropológicas e as

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apelidei, mais hard, a circunstância(inevitável, sem sombra de dúvida) detoda e qualquer descrição ser sempreparcial, incompleta, e formulada evista de um certo ângulo, ou de umacombinação, por complexa epluridimensional que ela seja, dediversos ângulos, não a tornainevitavelmente numa descrição queseja por conseguinte incorrecta ounão-“totalmente objectiva” (o quequer que tal signifique). E muitomenos faz dela mera ficção.

Todos os observadores têm, querqueiram quer se recusem a assumi-lo,uma posição. E se multiplicar osnossos pontos de vista de algumamaneira despersonalizaartificialmente a descrição queempreendamos, isso em nada adesvaloriza. Ainda que o perca pelarazão inversa, uma descrição,evidentemente, nunca descarta o seuestatuto de objectividade e correcçãojurídicas (que, como resulta claro, creio ser útilpresumir), mas dada a minha convicção de que hádiferenças diacríticas que respectivamente asremetem para planos muito distintos: designadamentena dimensão normativista e programática de umDireito virado para a acção, que contrasta com adimensão científica indutivista de uma Antropologiamuito mais virada para a análise.

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pelo simples facto de incluir mais deum ponto de vista. Bem pelocontrário: porventura melhor desseestatuto se aproxima. E o facto denão nos ser possível aferir nunca ograu preciso da factualidade (nosentido de empiricidade)efectivamente lograda não nos impedede poder saber deduzir se dela maisou menos nos aproximamos.

Parece-me ser precisamente aquique se dividem as águas, naAntropologia Jurídica contemporânea.É este o ponto onde, em minhaopinião, muitas das críticascorrentes se revelam insatisfatórias.

Quero retomar o ponto que atrássublinhei quanto ao reduzido impactodo pós-modernismo nas metodologiasantropológicas. A questão pode serequacionada (de certo modo a contrario eaté ad absurdum) no quadro de umaantinomia de base. Se a empresa a quenos dedicamos ao produzir umamodelização fosse pura e simplesmenteficcional, literária (comoargumentaram os pós-modernos maiscépticos), ser-nos-ia à la limite

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possível280 a nosso bel talante deixarcoisas de fora, modificar personagense acontecimentos com vista a umamaior nitidez, nada em princípio nosimpediria de pôr em evidênciasimetrias e configurações no intuitode ampliar a capacidade que queremoster de persuasão, ou de forma amelhor consigamos expressarconvicções de fundo que possamosnutrir. Mesmo na hipótese menosextrema de nos vermos na contingênciade uma qualquer submissão a limites,a “folga” de que disporíamos seriaenorme. Poucos, ou nenhuns, seriam osconstrangimentos a actuar“objectivamente” sobre a nossacapacidade criativa de gizar modelos.

Se, por outro lado, a nossaempresa fosse radicalmente“positivista” (no sentido filosófico-sociológico da expressão, e não no

280 Estou aqui a presumir uma forma extrema deficcionalidade, para efeitos da discussão. Éevidentemente possível, como o fez por exemploBernard Jackson, argumentar que apenas o“encadeamento” e as “tónicas” e “nexos causais” dosmodelos que produzimos são ficcionados. Mutatismutandis, no entanto, estas versões menos radicaisparecem-me passíveis do mesmo tipo de crítica da queaqui formulo, quando muito apenas quantitativamentemitigadas.

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jurídico), estaríamos decerto muitorestringidos no acto de escolher,reduzir, modelizar. Ver-nos-íamoslimitados no fazê-lo aos termos, porexemplo, de um eventual interesse quevislumbrássemos numa hipotéticaalmejada simplificação que maisfacilmente permitisse a inclusão dosdados no quadro sistemático daquiloque deduzimos subjazer (ou que comintencionalidade normativa queiramosque o faça) à mecânica visível darealidade que pretendemos decompor noâmbito estrito e estreito dasanálises que dela realizamos. Nestecaso, ao invés do anterior, nãodisporíamos praticamente de nenhumamargem criativa de manobra,embrenhados que nos encontraríamos emprocessos de modelização fortementeconstrangidos por regras e exigênciasa que nunca poderíamos lograr fugir.

Estas duas versões do melhoresforço interpretativo não me parecemmuito procedentes, ainda que se tratede tentações analíticas hoje em diacomuns. Qualquer delas acarreta umaenorme polarização cognitiva. E ambastêm implicações ontológicas curiosas.

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Na segunda das duas hipótesesantinómicas que enunciei, a“positivista”, ao questionar mais doque de dúvidas seríamos vítimastemporárias de hesitações, pois que nocurioso optimismo positivo indagar ésempre premiado, mais tarde ou maiscedo, por decifrações e apuramentos aque os bons “procedimentos dedescoberta” (o chamado “métodocientífico”) nos conduzem casoactuemos com rigor, precisão e segurança.Na primeira hipótese, a “pós-moderna,na sua versão hiper-céptica”, asdúvidas, mais do que metódicas seriamem boa verdade incontornáveis e, faceàs inevitáveis indeterminações e àindiscriminabilidade última dascoisas, não haveria quaisquerautênticas razões fortes paratentarmos ser objectivos, precisos,honestos, ou “empíricos”: só nosrestaria ambicionar ser interessantes.

Numa hipótese alternativa a estasduas, bem pelo contrário, quanto maisinteressantes e criativas forem asnossas segurança e precisão, e quantoao mesmo tempo mais firme, rigoroso esistemático for o interesse queostentemos, melhor a qualidade das

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descrições e explicações quelograremos formular. Convergem paratal, em minha opinião, tanto osméritos da coerência como asvantagens de uma empiricidademinuciosa. Pois que quanto mais“ricas” mas consistentes forem anossas descrições, mais difícil setorna refutá-las, sem que no entantoa sua refutabilidade se veja de tododiminuída: as “falsificações” quedelas possamos aventar (para usar umtermo popperiano) terão apenas de sermais precisas para conseguir ser maisconvincentes.

O método da observaçãoparticipante preferido pelos estudosantropológicos “modernos” (termo queaqui utilizo no sentido limitado e“local” de pós-malinowskianos) permitebem conciliar como complementaresestes dois eixos dos processos derecolha de dados, a densificaçãoempírica e a precisão conceptual.Como escreveu G. Lewis281 num outro281 Gilbert Lewis (op. cit.: 10). O escrutínio exaustivode um caso de doença de um dos membros de um pequenoagregado populacional das terras altas da NovaGuiné, que Lewis traça nesta monografia, constituium excelente exemplo das virtualidades destemultidimensionamento na descrição de casos. Noto que

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contexto (e faço minhas as suaspalavras) “an anthropologist in the field isluckier perhaps than the historian in being able tofind out, to ask, to choose, to look directly. Part ofthe appeal of fieldwork lies in that possibility ofconversation, of being present and able to listento what people say at the time, to see what theynotice or ignore, what they forget, the intrusion ofthe unforeseen, how memories shift or new factscome to life”. A observação participantedialogada e interactiva permite-noscomo que ver por detrás dassituações, viabiliza que asreconstruamos noutros termosalternativos que as complementam, semque por isso descolemos do empírico.Pormenorizando, por outras palavras,o enriquecimento empírico-factualdirecto proporcionado pela observaçãoparticipante como que sobe a paradaaos inevitáveis esforços de refutaçãoe ultrapassagem que caracterizam oprocesso científico.

No vai-vem do diálogo vivo noterreno, para um analistaantropológico cada caso ése trata mais de um estudo de Antropologia Médica(uma área cujo estatuto subdisciplinar écomparativamente difuso e incipiente) e nãoJurídica.

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efectivamente um caso, e quanto maisrica e multidimensionada a suadescrição mais elucidativas asexplicações que sobre ele logramossaber formular e reformular no ir evir constante de interpretações (e dacomunicação delas) em que se salda o“conhecer”282.

282 E as conotações conjunturais que esse processomuitas vezes assume. Para discussões de bastantefôlego sobre a observação participante dosantropólogos (e designadamente a opinião fundadorade Malinowski sobre esta questão) encarada como oestudo de uma prolongada “conversa” que tem lugarentre os actores sociais e a que o analista seassocia enquanto parceiro dialogante, ver R. H.Robins (1971) e M. Bloch (1977). Em particular osegundo destes dois autores discorre em pormenorsobre o papel estrutural e estruturante essencialpreenchido pela semântica da temporalidade nasconceptualizações locais sobre o status quo “político”(o sentido genérico da distribuição conjuntural dopoder num dado contexto) e sobre os processosincorporados de mudança social e na comunicaçãodeles. Quando a vida social é encarada de umaperspectiva deste tipo, torna-se evidente a profundacentralidade normativa das formas de elaboração de“modelos situacionais” a que a delineação de casosdá sempre corpo: ou seja, torna-se decifrável muitada ratio sócio-política subjacente ao gestoteleológico de afeiçoamento normativista dos “casos”às modalidades preconizadas para a sua “solução”.

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21.1. O PREÇO DA CASUÍSTICA JURÍDICO-ANTROPOLÓGICA

Como será evidente, porém, acasuística analítica dos extended casemethods jurídico-antropológicos(chame-se-lhe isso) não deixa, porsua vez, de ter um custo logístico,por assim dizer. Um ónus sobretudoconceptual, stricto sensu, mas quepodemos tentar contabilizar; e umencargo “organizacional” cujo valor(ou desvalor) é, de resto, fácil deidentificar: o reconhecimento de umaconfiguração específica para cadacaso, se não os impede (e não creioque o faça), pelo menos dificultabastante quaisquer projectos quepossamos querer nutrir deconseguirmos elaborar conceitos comutilidade comparativa; ou, pelomenos, ceteris paribus, resulta naassunção de uma posturainterpretativa que atira taisconceitos “transversais” para ascalendas gregas. Fá-lo porque derrogana comensurabilidade de eventuaisgeneralizações que possamos quereresboçar.

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Concorrem para estaincomensurabilidade váriascondicionantes283, que podem serencaradas como dizendo respeito,todas elas, ao papel da temporalidadena vida social. Vale a pena esmiuçarum pouco o problema, dadas as suasimplicações metodológicas para aAntropologia Jurídica; ainda que ofaçamos apenas com o intuito de operspectivar.

Uma das razões de fundo para aincomensurabilidade resulta quase quede maneira mecânica das limitaçõestemporais284 inerentes a esta“estratégia de descoberta” utilizadapelos antropólogos jurídicos: a suasincronicidade. Detalhá-lo revela-o com283 Mutatis mutandis, sigo de perto, nos próximosparágrafos, as notáveis considerações formuladas emGilbert Lewis (op. cit.), sobre a importância dos casestudies para a inteligibilidade sociológica dos factosindividuais e colectivos.

284 A centralidade da dimenão temporal dos extended-casemethods sempre foi evidente para os seus proponentes.Malinowski, Llewelyn, Hoebel, Gluckman e Bohannan,para só dar alguns exemplos, testemunharam-no.Turner tornou-se em peça central da sua re-teorização em social dramas. No quadro do programa dadisciplina de Antropologia Jurídica, realço também acentralidade da temporalidade no trabalho de RenatoRosaldo (1982), aliás inovadora em ários sentidos,que consta da bibliografia do programa disciplina.

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nitidez. No decurso da observaçãoparticipante em que podemos esperarlevar a cabo a recolha de históriasminuciosas de casos, porque não somosubíquos somos de maneira inevitávelforçados a seleccionar; os interessesque nutrimos puxam a nossa atençãonuma ou noutra direcção, excluímosperspectivas, truncamos dados edescrições, mas fazemo-lo sempre asonhar com uma objectividade que nosescapa todas as vezes que sentimosque dela nos aproximamos. Temos pornorma, no processo, consciência agudade que o acaso, a repetição, e asinúmeras trivialidades do quotidianofazem parte indissociável do correrempírico dos acontecimentos, temos anoção bem arreigada de que todosestes factores podem em muitoinfluenciar o andar das coisas. Masnão sabemos nunca o seu desenlace.

E não o conhecemos porque seesconde aqui uma ambiguidade defundo. Quando da estada no terreno,na vivência in loco permitida pela nossaobservação participante enquantoantropólogos jurídicos, tudo isso nãofazia senão parte do campo potencial derelevância, pelo menos no que diz

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respeito à nossa selecção de dadosempreendida com vista a ampliar ainteligibilidade das ocorrências. Omero facto de estarmos a produzir umretrato, uma imagem “congelada” deum, e num, momento particular,aumenta decerto a nitidez dosdetalhes: mas esconde tambémporventura a sua “significância”.

A opacidade do futuro é assim umasegunda razão. O sentido preciso, oefeito e as implicações das coisas,iludem-nos de maneirainultrapassável. No processo da suareconstrução racional, porém, algumacoisa nisso se modifica. Asignificância, como lhe chamei, dealguns dos acontecimentos, acabamospor verificar, é muitas vezesalterada por desenvolvimentosposteriores, ou assume outras feiçõesquando olhada retrospectivamente.

Não podemos também descontar omovimento dos factos como outra dasrazões de fundo, a terceira, com queesbarramos. Tanto a cadência como oencadeamento daquilo que acontecetornam bastante laborioso parar decada vez que nas nossas descrições deum caso introduzimos um outro

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elemento ou factor. Trata-se decircunstâncias que dificultam osublinhar da centralidade e dapertinência (a significância a quealudi) de cada gesto, expressão, ouobjecto, particulares; sãocondicionantes que tornam na práticade todo em todo inviável a ambição(de algum modo embutida na agendaempírica que escolhemos comoestratégia) de mencionar todos osnomes e de tentar o esforço inglóriode delinear todas as relaçõesrelevantes entre os presentes. Trata-se de um limite material de encontroao qual esbarram quaisquer esforçosempíricos deste tipo, quer sejamprospectivos quer não.

Mais uma vez, muito mais poderiaser dito. Não será de novo porémdecerto este estudo o local maisindicado para o fazer. Dado umredimensionamento tão significativodo “jurídico” e do “político” como oque o projecto antropológico implica,de maior utilidade é seguramentedebruçarmo-nos sobre algumas das

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dimensões pedagógicas da disciplinaem apreço.

Voltemo-nos então agora para oensino da Antropologia Jurídica noâmbito de uma licenciatura emDireito. A atenção será focada nasvantagens e desvantagens destadisciplina. A tónica irá ser colocadana dimensão cognitiva da aprendizagemda Antropologia Jurídica na formaçãode futuros juristas. Alguns paralelos(escolhidos de entre os menos óbvios)com aquilo que se passa com adisciplina Sistemas JurídicosComparados são de forma sucintapostos em foco; quanto aos maisevidentes, todavia não.

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VII

POR UM PAPEL PARA A ANTROPOLOGIAJURÍDICA NO ENSINO DO DIREITO

If the integration of law andanthropology is to flourish, it must beon a truly functional basis. Each mustcontribute to the dynamic of the other;each must add to the operativeeffectiveness of the other; each mustnourish the other as a process. Merestatic comparison, a paralleling ofcivilized rules of law with selectedexamples from sundry primitive tribes,is a sterile accomplishment.E. Adamson Hoebel (1946),“Law and Anthropology”, VirginiaLaw Review 32: 835

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É curioso verificar que, há tãopouco tempo como em 1997, pôde comuma muito vigorosa plausibilidade serpublicada a asserção de que, nasFaculdades de Direito portuguesas“convencionais”, “a Antropologia e aSociologia Jurídicas”, seriamdisciplinas fortemente “indesejadas”.A imprescindível “função crítica” queobviamente adquiririam, foi aíalegado com algum fundamento, “poriaem risco a natureza implicitamente

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apologética”285 de muitos dos estudosjurídicos nelas levados a cabo.

Como “táctica”, era entãosugerida a sua substituição peloensino de uma nova versão datradicional História do Direito. Umahistoire sociologique crítica: uma démarche

285 António M. Hespanha (1997): 15-16; num sentidoforte, muita da tensão fundacional a que aAntropologia Jurídica tem estado sujeita exprime ostermos eles mesmos dessa indesejabilidade. Num outro contextoe com objectivos certamente bastante diferentes,Carlos Ferreira de Almeida (op. cit., 2000: 73)valorizou um ponto de algum modo semelhante aoafirmar que “chamando a atenção para que asconcepções e soluções do direito nacional não são asúnicas concebíveis e nem sempre são as melhores, [oestudo comparativo de sistemas jurídicos] contrariaas tendências para a auto-suficiência e ochauvinismo, o isolacionismo e o provincianismo”. Oestudo da Antropologia Jurídica, sobretudo quandoesta se debruça sobre formas “jurídicas”radicalmente diversas, potencia enormemente estaimportante função, que dá corpo a um dos objectivosque presidem ao seu ensino. Fá-lo realmente, noentanto, apenas no sentido em que leve àsnecessárias relativizações e reconfigurações,empiricamente justificadas e analiticamentefundamentáveis, de conceitos gerados no quadroestrito e estreito dos estudos jurídicos ocidentaise abusivamente generalizados a partir dessa base.Manter uma definição etnocentrada do “jurídico” eexcluir dela quem nela não caiba não resolveinquietudes suscitadas pela exclusão do Outro: namelhor das hipóteses, institucionaliza-as, sob acapa de um reconhecimento-subalternização dasdiferenças que no processo “exotiza”; o seu papel émuito mais o de sublinhar a alteridade do que o de a

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decerto nodal na estratégia“política” de pôr em evidência algumdo carácter “contingente” do Direito,um passo tido como recomendável umavez assumido enquanto um objectivoestratégico do ensino na Faculdade oassegurar da asserção dessa tãoimportante função.

22. SOBRE O PAPEL TÁCTICO DA ANTROPOLOGIAJURÍDICA

Surpreendentemente, logo no anoseguinte (em 1999) começou a serministrada na Faculdade uma cadeirade Antropologia Jurídica e Política.A ironia da ocorrência permite-nosreconhecer, seguramente, o espíritoinovador que presidiu à criação daFaculdade de Direito da UniversidadeNova de Lisboa. Possibilita tambémmais que isso: sublinha que avantagem pedagógica da inclusão deuma disciplina como a de AntropologiaJurídica num Curso de Direito seprende, em primeiro lugar, com acircunstância mesma de ensinar os

reduzir.

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estudantes, sem que sejam precisasgrandes especulações teóricas, afocar a conexão entre, por exemplo epor um lado, debates sobre as formastípicas do domínio jurídico e, poroutro lado, as controvérsiasrelativas às suas substâncias (ououtras relativas à sua presumívelinevitabilidade).

Não é difícil verificar porquê.Ao chamar a atenção dos alunos pararealidades etnográficas diversas (oupara as que lhes são habituais, massegundo uma perspectiva nova), e aosistematizar e “institucionalizar”essa chamada de atenção, a meraexperiência de alteridade providenciadapela Antropologia Jurídica podeservir como um antídoto forte eeficaz para os rigores de umadescontextualização histórica esociológica complacente de boa parteda educação jurídica clássica, pelomenos aquela que tem vindo a serveiculada em Portugal286. O estudo de286 Por essa e por outras razões (que abaixoaduzirei) parece-me defensável a opinião de quesublinhar um hipotético reducionismo da (aparente)predilecção antropológico-jurídica por sociedades“outras”, seria ignorar o reducionismo ainda maisconsequente que está na base de esforços mais

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casos do ponto de vistaantropológico-jurídico, tal como aprópria textura compósita do“jurídico” em muitas outrassociedades, forçam-nos a re-contextualizações saudavelmentedesestabilizantes.

Assumir frontal e plenamente esteganho em inteligibilidade impele-nos(e às nossas análises do jurídico eda juridicidade) em direcções quejulgo congruentes com o projectometodológico fundador destaFaculdade; e fá-lo sem implicar (mastambém sem as excluir) quaisquerperspectivações político-ideológicasde princípio, seja qual for acoloração que tenham. Não o assumir,em minha opinião, redunda em que noscoloquemos numa postura teórico-metodológica em última instânciaatabalhoados e mais especiosos de estipular umauniversalidade de ideias gestadas em enquadramentos“ocidentais”, sem ter em vista as ligações de fundo,e de facto, estreitas e indeléveis, entre o jurídicoe algumas das várias dimensões (políticas,económicas, religiosas ou sociais, por exemplo)incontornáveis desse mesmo contexto. Olhar paraoutras sociedades não é redutor: contitui, bem pelocontrário, um excelente caminho para a neutralizaçãocientífica de pseudo-universalismos mascarados deconceitos.

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incompatível com o projecto fundadorda FDUNL.

Antes de passar a outro tema, nãoquereria prescindir de uma notaporventura desnecessária, dado aquiloque afirmei em partes anteriores dopresente trabalho: ao falar em re-contextualizar, reperspectivandosociológica e historicamente aanálise dos domínios em que se move eé decantado o jurídico, repito quenão quero de maneira nenhuma sugerirque a Antropologia Jurídica pretendede alguma maneira subordinar oDireito (seja enquanto sistemaobjectivo seja enquanto sistemacientífico) a uma realidade que otranscende, ou sequer transformá-lonuma Ciência Social. Não o faz, não opretende fazer, nem nunca em boaverdade poderia consegui-lo, quantomais não fosse dado o carácternormativo que o Direito exibe e aAntropologia Jurídica (como qualqueroutra Ciência Social) não ostenta.Bem pelo contrário, os antropólogosjurídicos reconhecem sem grandeshesitações ao Direito uma relativaautonomia e uma diferença específicamarcada e indelével. Insistem, porém,

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em que um redimensionamento deste nosseus contextos aumenta a suainteligibilidade287.

23. OS PERCURSOS DIDÁCTICOS

287 O que não será novidade em Portugal, onde desdehá muito esse tipo de reperspectivação tem sidoenunciado noutros meios: Rogério Soares, a propósitoda necessidade absoluta da abertura dosjuspublicistas à realidade constitucional, foilapidar ao escrever: “[e]sta atenção para com arealidade não significa, porém, uma capitulação.Dizer que a constituição não é independente dosdados históricos concretos do seu tempo, nãosignifica que ela seja pura e simplesmentedependente deles” (Rogério Soares, 1969, op. cit.: 30).Cabe aqui um comentário teórico-metodológico, que noessencial recapitula parte de uma nota de rodapé (a22) que incluí em Armando Marques Guedes (2004).Depois da frase que citei, o A. prosseguiu,afirmando que as transformações estruturais sentidasno seio da sociedade (vd. Jürgen Habermas, 1965)“faz[em] surgir para o jurista preocupado com osproblemas do Estado a obrigação de articular os seustradicionais processos de interpretação dogmáticacom os meios de interpretação funcionalista dasciências do comportamento” (op. cit.: 33-34),alimentando a esperança de “a ciência do direito[poder] aproximar-se das outras ciências sociais e apouco e pouco ir quebrando o gelo que as separa. Nãosó quebrar o gelo provocado por ela mesma, aoconsiderar as novas indagações da ciência políticaou da ciência da organização como temas de ciênciasdoutro clima, mas diminuir também a ‘fria distância’com que estas ciências encaram as possibilidades deconciliação com a ciência do direito. Esta

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Contra este pano de fundo, vale apena entrar nalgum pormenor quantoaos percursos didácticos estratégicosem que, por consequência, envereda enos quais se embrenha o programa dadisciplina de Antropologia Jurídica ePolítica cuja regência me tem sido

conciliação impõe à ciência do direito a necessidadede tratar o seu objecto de modo particular: em vezde se voltar para indagações sociológicasindividualizadas, tentar acentuar imediatamente quenuma sociedade moderna existe um dado fundamental,um sistema normativo de ordem jurídica. A sua tarefaserá a de descobrir a função do direito na sociedadede hoje” (idem: 34-35). Diga-se que R. Soares, a pardesta “necessidade” contextual e histórica quemotivou uma profunda reflexão sobre o objecto e ométodo do Direito Constitucional, encontrou como suacausa um certo descomprometimento por parte dajuspublicística em relação ao formalismo da suaciência (razão que explicaria, segundo o A., opredomínio do Direito Administrativo até essemomento): “[u]ma espécie de complexo deinferioridade dos publicistas em face do direitocivil vai atirá-los, desde os tempos de um Laband,para a investigação daquele sector onde maisfacilmente se possa construir um sistemaestritamente jurídico, apto a surgir sem vergonha emfrente da secular dogmática dos outros juristas.Assim, por este processo de afirmação daindependência, não admira que os publicistas viessema exercitar-se nos temas que lhes parecem homólogosdos que fizeram glória do direito privado” (ibid.:7). Em minha opinião (ecoando R. Soares) só a partirde uma revisão geral destas se torna pensável aconstrução aberta e atenta de um melhor Direito. Umaposição que julgo se distingue com clareza do“sociologismo” oitocentista e noventista menos

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atribuída. Tendo em mente aquilo queaté aqui expus, proponho tentartorná-los explícitos de uma maneiraem simultâneo objectiva e subjectiva.Ponhamo-nos, como protagonistasimaginários de um thought experimentfenomenológico, na posição de um(a)estudante do Curso de Direito.

É natural que qualquer jovemdiscente comece os estudos comalgumas reticências quanto à alegação(que verá e ouvirá um pouco em todasas disciplinas “jurídicas”) de acordocom a qual existiria, e seria defacto aplicado, um corpus legal formal(in the the books e não in action) que é dealguma forma abordado e utilizadoindependentemente de quaisquerconsiderandos “sociais” (no sentidomais lato) e, seguramente, dequaisquer considerandos “políticos”.As eventuais (e compreensíveis)suspeitas que tenha poderão relevardas observações que fez e do que leusobre a actuação dos poderesjudiciários cá ou lá fora(nomeadamente o julgamento de O.J.

criterioso, na sua variante comum entre alguns dosjuristas da I República em Portugal.

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Simpson nos Estados Unidos, asdecisões do Supreme Court norte-americano sobre as contagens dosvotos nas eleições Bush-Gore, ou asdecisões quanto à legalidade dasextradições, de Inglaterra paraEspanha, do General Pinochet, ou daex-Jugoslávia para Haia de SlobodanMilosevic, ou ainda a legalidade dasintervenções militares, lideradaspelos norte-americanos, quedesencadearam a queda do Iraquebaathista de Saddam Hussein e o fimdo Afeganistão dos taliban); poderãover-se corroboradas por umacompreensível surpresa face aorecurso sistemático à prisãopreventiva durante a fase deinquérito, quotidianamente observávelem Portugal; ou poderão deixar ecoardentro de si a vox populi mais comum quetêm ouvido no que toca à actuação dostribunais portugueses ou aotratamento preferencial de quebeneficiariam, frente à Justiça e aosseus agentes e funcionários,entidades públicas, políticas, ou“forças vivas” dos partidospolíticos, do desporto, da economia edas finanças nacionais: casos como o

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da Universidade Moderna, dacorrupção-colusão entre futebol epolítica, ou o da pedofilia, seriamdisto bons e óbvios exemplos.

Ninguém poderá negar, ademais,que o, ou a, nossa(o) estudantereconheça mesmo uma clara progressãotemporal do processo: muito mudoudesde o 25 de Abril de 1974, tantocom as investigações e investidas dosmeios de comunicação, quanto até como processo de integração europeia doEstado português. Pode ser assaztentador para muitos dos jovensestudantes de Direito, por tudo isto,firmar-se na infeliz convicção de queos critérios políticos exercem umainfluência dominante e quase directano sistema judicial, em eventualassociação com ponderações sócio-económicas apenas ligeiramente maisoblíquas. E é compreensível que osnovos discentes possam esperar, comoresultado, que os Professores, nasaulas ministradas na Faculdade,analisem e expliquem as práticasjudiciais (para só dar um exemplo)precisamente nesses termos.

Mutatis mutandis, o nosso estudantepartirá provavelmente outras tantas

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vezes de um pressuposto inverso (eigualmente infeliz) no que dizrespeito à dimensão sociocultural, ousócio-económica, ou ético-filosófica,dos factos e das práticas jurídicasque irá aprender a gerir. É muitasvezes habitual que comece os seusestudos com alguma ignorância quantoà natureza (senão mesmo quanto àexistência) de sistemas jurídicosdiferentes, histórica, geográfica ouculturalmente.

O seu natural (e facilmentecompreensível) desconhecimento poderárelevar de mera falta de informação(justificável dadas as limitações bemconhecidas do nosso regime deeducação pré-universitária,nomeadamente de Ensino Secundário),ou, mais elaboradamente, da muitomarcada predilecção por perspectivasetnocêntricas e/ou evolucionistas quesecundarizem, minimizando-os,quaisquer outros sistemas. Aprogressão (em perda) das ex-colóniasafricanas, as imagens quotidianas dedescalabro generalizado no chamadoTerceiro-Mundo e a aparenteinoperância de quaisquer outrasordens jurídicas verdadeiramente

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eficazes, muito facilmente podem darazo a posturas reducionistas desdeoutro tipo.

24. A CONSCIÊNCIA PROGRESSIVA DAALTERIDADE

Em pouco tempo, no entanto, oestudante-tipo que delineei, à medidaque vai recebendo alguma educaçãojurídica, começa a perder confiançanas virtudes heurísticas dessesprimeiros modelos “políticos” e“sócio-históricos” lineares, pormuito que os oiça ecoados pelaopinião pública geral. A mesma dúvidade fundo se irá em princípioinstalando no que diz respeito asimples considerandos sociais,económicos ou culturais. Porque, àmedida que vai acumulandoinformações, o estudante verificaráque as práticas judiciais (ejurídicas em geral) muitas vezesalternam entre o cravo e a ferradura,entre o progressivo, o liberal e oconservador, entre uma aparentedefesa dos poderosos e do statu quo e o

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fervor militante em lhes tirar otapete debaixo dos pés.

Ao mesmo tempo, o estudante vaitomando consciência de que para alémde haver “outros” sistemas(nomeadamente os anglo-saxónicos),diferentes e respeitáveis, também estesistema já foi ele próprio diferente.Não seria exagerada a asserção de quequanto mais afincado for o estudantenas suas tentativas de boa-fé detentar apreender o sentido dofuncionamento do sistema cujosmeandros aprende e vai apreendendo,em termos de teorizações (hegemónicasou homogenizantes), mais se firmará asua (nova) convicção de queconsiderações políticas ou sociaisnão explicam nem fácil nemlinearmente a operação da ordemjurídica portuguesa sobre a qual sedebruça.

Em resultado, ameaça o nossoestudante o perigo precisamenteoposto daquele que atrás referi: ode, em consequência, pura esimplesmente vir a desistir da opiniãoinicial de que haveria, por exemplo,uma ligação forte entre o jurídico eo político, ou o social em sentido

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lato, refugiando-se na posiçãoreducionista de que não haveránenhuma conexão (casual ou afim)entre estes domínios agora por ele(ou ela) tendencialmente reificadoscomo autónomos. Pior, a sua percepçãofacilmente poderia ser a de que osProfessores responsáveis pelascadeiras jurídicas que frequenta, aotomar a decisão pedagógica assazcompreensível de pôr a tónica napossibilidade de uma “reconstruçãoracional” autónoma das suas matérias,e portanto de usufruir da coerênciainterna dos sistemas que ensinam (ou,pelo contrário ao nestes apontar ecriticar incoerências flagrantes),lhes estariam também a sinalizar comênfase a inexistência (ou os perigospara a integridade formal do sistema)de quaisquer eventuais conexões.

Por outras palavras, o risco queem tal caso se corre é o de oestudante propender a elevar a umestatuto de universalidade o que nãoé mais do que uma ficção particularutilizada num determinado contextocomo simples táctica pedagógicamanuseada com um pragmatismo nemsempre como tal assumido para lograr

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certos objectivos de compreensão. Operigo que agora o espreita é o deque possa confundir um mecanismo dereconstrução racional de detecção deuma hipotética lógica subjacente coma natureza essencial, ela mesma, daquelasformulações jurídicas.

Note-se que, nesta fase, o nossoaluno-tipo começa com certeza a servítima de uma dissonância cognitivaaguda. Uma desorientação a queporventura estarão inevitavelmentevotados todos os jovens estudantes deDireito, mas neste caso agravada pelaopção institucional de Faculdade (nocaso, a FDUNL) que fez. A estruturapluridisciplinar e inovadora do Cursode Direito que escolheu enfatizaligações288 que os imperativoslogísticos da exigente práticapedagógica de muitas das disciplinasjurídicas que frequenta podem parecerdesafiar.

288 Fazem-no, por exemplo, disciplinas como aHistória do Direito e as disciplinas de Economia quesão obrigatórias no currículo, como o fazem aHistória do Estado, a Ciência Política, as RelaçõesInternacionais e muitas outras das disciplinas “não-jurídicas” de opção que felizmente tem podidofrequentar na FDUNL.

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A situação (tanto a sua como a daFaculdade) facilmente lhe podeparecer ser contraditória (ou“experimentalista”).

25. A BOA FRUIÇÃO ESTRATÉGICA DO ENSINO DAANTROPOLOGIA JURÍDICA

É precisamente aqui que, a meuver, se torna aparente o papeltáctico e didáctico que efectivamentetem sido preenchido (nalguns casosmelhor que noutros) pelas váriasdisciplinas não-jurídicas que sãoministradas na Faculdade de Direitoda Universidade Nova de Lisboa. Emminha opinião, a sua virtude crucial,a este nível, é a de mostrar (ou,talvez melhor a de “desvendar”) aosestudantes que a estrutura, anatureza e o funcionamento de umqualquer sistema jurídico concreto émelhor e mais facilmentecompreensível se forem abandonadosmodelos mais reducionistas e maissimplistas, quando forem adoptadasinterpretações mais “densas”, edecerto mais sofisticadas, que oarticulem com maior realismo nos

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contextos empíricos que partilha como resto da vida social, ou que delescom nitidez o separem naquilo queesse sistema tem de relativamente“autónomo”.

Ou, por outras palavras, uma vezque se assuma frontalmente aimportância que tem o papel de tornarclaro que a tentativa de compreensãodo significado de um sistemajurídico289, não pode prescindir de umreconhecimento da importância dessasdimensões e distâncias, sob pena deum enorme empobrecimento intelectuale funcional (com todos os riscos queisso acarreta).

Por outras palavras ainda (oumelhor, de outro ponto de vista):esse efeito é produzido porque asdisciplinas não-jurídicas do Curso deDireito da UNL são disciplinas que289 Logo tanto as condições para a suainteligibilidade, como para o seu aperfeiçoamento,ambas estas dando corpo a papéis que uma boaformação de futuros juristas não deve descurar.Pierre Bourdieu (1986: 4), pensando num universoconceptual não muito diferente do nosso, denunciouem termos semelhantes “l’alternative qui domine, le débatscientifique à propos du droit, celle du formalisme, qui affirmel’autonomie absolue de la forme juridique par rapport au mondesocial, et de l’instrumentalisme qui conçoit le droit comme un reflet ouun outil au sevice des dominants”.

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para além de ensinar conteúdos comméritos e utilidades próprias,preenchem funções fundamentais naaquisição de conhecimentos úteis para oestudo das próprias disciplinas jurídicas. Asaulas ministradas logram-no, emtermos muito mediatos, aodisponibilizar dados e raciocíniosque melhor permitem aos estudantesverdadeiramente compreender o Direitoformal sobre que se debruçam, e que,em simultâneo, lhes garantem umamelhor preparação formativa para omundo profissional. E fazem-notambém, em termos mais imediatos,possibilitando uma reduçãoprogressiva do que chamei adissonância cognitiva que o(a)aflige, sem no entanto o levem adeixar de usufruir do que estapermite __ ou exige __ no que dizrespeito à sua experiência deaprendizagem. Papéis imprescindíveis,sem sombra de dúvida.

E papéis que os estudantes nãodeixarão de sentir com algumaagudeza. O lugar da AntropologiaJurídica e Política parece-meprimordial precisamente ao níveldesta conjuntura de articulação. E,

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sem dúvida, em paralelo (e empotencial consonância didáctica, deresto) com o papel “táctico” que, notexto que acima citei, foi (repito, ameu ver bem) atribuído à História doDireito. Ou com aqueles que meparecem dar corpo (apesar de ofazerem de forma mais particular)outras disciplinas como aCriminologia, o Direito Comparado (naFDUNL intitulado Sistemas JurídicosComparados dado o acento tónico estarpreferencialmente posto emmacrocomparações), a Filosofia doDireito, a Economia, a CiênciaPolítica, as Relações Internacionais,ou a(s) História(s).

Trata-se de disciplinas que, paraalém dos benefícios substanciais queoferecem, dada a importânciacrescente dos seus conteúdossubstantivos no Mundo contemporâneopara o qual o curso visa prepararfuturos profissionais, assumemademais a função, técnica epedagogicamente crítica, de induzirredimensionamentos empíricos (eteóricos) que encaminham a bom porto(ou pelo menos a portos de abrigoúteis) as reperspectivações de fundo

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que creio necessárias ao estudocientífico do domínio jurídico.

Nisso, a Antropologia, dada avocação incorrigivelmentecomparativista (em geral e muitasvezes com um impacto bastantesurpreendente porque porventuramuitas vezes inesperado) que temdesde início feito a sua, é decertouma disciplina fulcral. E é-o tantomais quanto mais amplo for o lequeetnográfico dos exemplos que aduz eutiliza para fundamentar asgeneralizações que enuncia.

25.1. A DIVERSIDADE NA UNIDADE

A sua eficácia opera a variadosníveis. Deslocando agora a atençãopara o particular, parece indubitáveldepararmos nesse outro plano, dealgum modo mais comezinho, com omesmo tipo de mecanismos e vantagens.Para os cartografar, é útil recomeçarpelos papéis mais genéricos que oensino da Antropologia Jurídicapreenche numa Faculdade de Direito,descendo depois às minudências depormenor. Um simples relancear do

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programa apresentado, a par com umaponderação (por mais breve que seja)de algumas razões que aduzi para ostópicos das sessões, para asbibliografias que os suportam (e parao seu encadeamento) tornam evidentestais benefícios.

Comecemos pelo topo. Por um lado,o conhecimento e um contacto directocom outras realidades sociais muitodiferentes constitui uma maneirasubtil (e talvez por isso maiseficaz) de despertar nos alunos umamaior tolerância (pelo menosconceptual), e porventura um maiorrespeito (logo uma maior atenção),por outras ordens jurídicas. O quenão será decerto inútil num futuro(um tempo que, para o bem ou para omal, parece iminente) que aglobalização e o crescente pluralismojurídico tornam cada vez mais “densoe opaco”. Para além de,evidentemente, pôr à disposição dosestudantes conhecimentos empíricosdetalhados, tanto sobre o Mundo ondevivem e em que irão operar e sobre,por exemplo, mecanismos alternativospara questões cada dia maisimportantes, como o são,

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designadamente, a justiçaintercultural ou resolução extra-judicial de conflitos, para só dardois exemplos muitas vezesinterligados.

Por outro lado, e em termos muitogenéricos, a alusão explícita aoutros contextos socioculturais tornaexequível introduzir a ponderação dedimensões culturais e sociológicas(muitas vezes ignoradas) sobre ofuncionamento concreto e empírico desistemas jurídicos, sem que para issoseja preciso acusar os seusfuncionários e agentes de qualquerinstrumentalismo ou má-fé. Ou seja,reinsere os sistemas jurídicos nosseus verdadeiros contextos histórico-sociais. O que não é de maneiranenhuma nem pedagógica nemsocialmente despiciendo: trata-se deum expediente (que creio inteligentee prudente) que permite trazer osocial e a política de volta àponderação das actividadeslegislativas e judiciais (porexemplo) sem relativismosinfundamentados e sem reduçõespartisannes a quaisquer pontos de vistapolítico-ideológicos apriorísticos.

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Para dar mais conteúdo concretoàs vantagens que isso acarreta,bastará aludir ao facto de (porrazões de ressonância pedagógica queme foram sugeridas quando foiponderado convidar-me a reger adisciplina de Antropologia Jurídica ePolítica nesta Faculdade) o programado curso dever incluir sessõesdedicadas a temas afins do DireitoPúblico como do Privado, deinstituições judiciais como deprocessos administrativos, e dequestões sucessórias como sócio-jurídicas (em vários sentidos). Damesma maneira, foi-me também pedida aintegração de tópicos relativos àrealidade nacional portuguesa,encarada de um ponto jurídico-antropológico; o que tentei fazer.Aventei ainda conseguir, sobretudo aoreformular o programa do curso paraestes últimos anos lectivos (ebeneficiando da experiência acumuladaem resultado do primeiro semestre defuncionamento de disciplina nova emPortugal), pôr em evidência temas comactualidade como dispositivosalternativos para a resolução dedisputas e conflitos, progressão e

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afirmação de minorias étnicas ealgumas questões ligadas aopluralismo jurídico.

A finalidade das recomendações,ao que julgo, tal como de resto a dasreformulações que “negociei”, foinestes como noutros casos dupla: porum lado, tratava-se de dar voz àpreocupação, sentida, de fornecer aosestudantes algum contacto com frentesrecentes da evolução das práticas edo pensamento jurídico; e por outrolado, e ainda, a de lhes demonstrar apossibilidade de as compreender (e deo fazer num sentido o mais amplopossível) e de mostrar a existência(logo o significado e alcance) demodelos teóricos inovadores para olevar a cabo; tinha-se em vista, a umtempo uma recontextualização alargadae uma reformulação estratégica dadidáctica tradicionalmente seguidanas Faculdades de Direito emPortugal.

25.2. A UNIDADE NA DIVERSIDADE

Sem sombra de dúvida que oimpacto do ensino da Antropologia

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Jurídica sobre estudantes de Direito(estudantes cujo ponto focal deaplicação tende a ser a aprendizagemde doutrinas quase inevitavelmenteministradas de forma dogmática e porvezes até apologética) é forte. Masestá longe, creio, de impedir odesejável progresso de uma sólida esegura capacidade de formulação deabstracções conceptuais que distingueum real processo de compreensão. Jáque seria erro óbvio esquecer (ousecundarizar) o facto de queexperiências, mesmo se (ou, talvez,sobretudo se) “exóticas”, tambémpodem ser racionalmente reconstruídaspor formulações abstractas.

A presunção de que tal seriaimpossível resulta de um engano comeficácia torneado, penso eu, pelaAntropologia Jurídica, devidoprecisamente ao facto de estasimultaneamente construir abstracçõesteóricas tão gerais quanto consegue ede lançar a rede da diversidadeetnográfica no arco mais amplopossível. Este forma o núcleo duro deum outro ponto que, creio, nãodevermos subestimar: a disciplinalogra assim disponibilizar um

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discurso intelectual particularmenteunificador (mas não totalizador), umdiscurso que permite aos estudantesde Direito descrever aquilo que estãoa absorver ao mesmo tempo que o estãoa aprender.

E a Antropologia Jurídica ePolítica permite fazê-lo bem. Militamem favor disso tanto a variedadeempírica existente de tipos deorganização jurídico-política como apersistência de diversos métodos eobjectivos nos estudosantropológicos. O programa queescolhi visa potenciar essacomplexidade. A diversidadeetnográfica e temática do que éabordado nas aulas, ao oferecer umarica multiplicidade de perspectivas eargumentos, efectivamente desencorajaquaisquer propensões iniciais quepudessem vingar de que alguma vezpossamos com honestidade advogarsignificados simples, ouenganadoramente unos e unívocos,quanto a realidades tão complexascomo são as ideias ou as práticasjurídicas; torna difícil aos alunossequer admitir que as últimas (as

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práticas) se possam reduzir àsprimeiras (as ideias).

Ou seja, instala nos estudantesum saudável espírito crítico. Aomesmo tempo que torna os estudantespelo menos lucidamente conscientes deque é sem dúvida possível articularexplicações inteligíveis esatisfatórias para essa não-intuitivacomplexidade multidimensionada. Poroutras palavras, disponibiliza-lhesuma saída racional para oredimensionamento de perspectivas(muitas vezes “radical”) que emsimultâneo propende a induzir290.

Talvez valha a pena esmiuçar umpouco mais este ponto no âmbito do

290 Não resisto a aqui citar Cliford Geertz (1984, op.cit.: 275), e a sua descrição algo maximalista daeficácia da Antropologia na indução desteredimensionamento: “looking into dragons, not domesticating orabominating them, nor drowning them in vats of theory, is whatanthropology has been all about. At least, that is what it has been allabout, as I, no nihilist, no subjectivist, and possessed, as you can see,of some strong views as to what is real and what is not, what iscommensurable and what is not, what is reasonable and what is not,understand it. We have, with no little success, sought to keep the worldoff balance: pulling out rugs, upsetting tea tables, setting offfirecrackers. It has been the office of others to reassure; ours tounsettle. Australopithecines, Tricksters, Clicks, Megaliths – we hawk theanomalous, peddle the strange. Merchants of astonishment”. Ocontexto desta declaração de Geertz é o de umacrítica às críticas formulads ao “relativismo”.

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presente trabalho. Longe de estimularum qualquer niilismo ou umdistanciamento destrutivamentecrítico em relação às suasexperiências sociais, o objectivoprimeiro da disciplina deAntropologia Jurídica é o de lhesfornecer aos estudantes quadros queas tornem mais próximas, tornando-asfamiliares (ou pelo menosdisponibilizando-lhes instrumentosque lhes possibilitem fazê-lo). Semdúvida que dados etnográficosdesligados da experiência dosestudantes, se fossem fornecidos numvácuo, seriam de pouca utilidade etalvez pudessem instalar confusões.Mas a disciplina (tal como as outrasopções) não existe num vazio. Bempelo contrário, sobressai como figuracontra um fundo de disciplinasjurídicas “puras e duras”, emcontrastes que como é óbvio a ninguémpassam despercebidos.

Nesse meio, longe de se tornarnum obstáculo à aprendizagem, adisciplina e o seu programa tornam-seem condição de uma compreensãoacrescida. Produzindo, nomeadamente,aquilo a que chamei um “efeito de

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revelação”. Um ponto que, a par epasso, tento pôr em evidência aolongo do curso e que ainteractividade das aulas, esobretudo a formatação deliberada quelhes tento imprimir com sessõesparticipadas, em que os estudantessão responsabilizados pelaapresentação (pública) de trabalhosinterpretativos, me parece potenciamainda mais291.291 Neste ponto, a minha experiência na FDUNLcorrobora integralmente aquilo que acabe de afirmar.Os dois tipos de alunos que por norma melhor reagemà Antropologia Jurídica são, por um lado, aquelesque obtêm mais elevadas classificações médias nosseus cursos de Direito e/ou que mais atentos semostram face a questões “ontológicas” e, por outro,os oriundos de países onde é mais fraco oenraízamento das formas jurídicas que aqui aprendema utilizar: em ambos os casos, aqueles discentesmais propensos a reflectir sobre aquilo que estudame em tentar integrá-lo nos domínios alargados da suaexperiência global. Os alunos em que menos efeitosurte o “efeito de revelação” a que aludo são oraaqueles dotados de menos capacidades e curiosidadeintelectual, e por isso menos atreitos aexperiências intelectuais integrativas, ora aquelesoutros que tratam a aprendizagem de maneirasobretudo instrumental, vendo a sua presença aquicomo a frequência de uma espécie de um curso deformação profissional dedicado a produzir futurosoperadores jurídicos. Noto, todavia, que a escolhada frequência desta disciplina opcional (comodecerto de muitas outras) se aputa essencialmentepor considerações ligadas a propinquidades dehorários, expectativas de clssificações finais

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O que também resulta, a meu ver,repito, do facto de a bibliografiaconstante de muitas das sessõesincluir tomadas de posição teóricaalternativas relativamente àsquestões nelas abordadas. Este pontoparece-me ser fundamental. O formatoescolhido para as sessões, comefeito, tem o intuito de convidar osalunos a abordar todos e cada um dostemas do programa da cadeira devários ângulos e de maneiradidacticamente comprometida. O que,pelo menos nos anos lectivospassados, me parece ter surtido algumdo efeito ambicionado. A altíssimaqualidade média dos estudantes daFaculdade de Direito da UniversidadeNova de Lisboa, e o bom clima derelacionamento por via de regraexistente entre professores e alunos,tem-no sem sombra de dúvidafavorecido.

Uma derradeira consideração defundo. As alterações previsíveisinduzidas pela Declaração de Bolonhavantajosas, ou com simpatias pessoais. Um estudocuidado da avaliação das disciplinas levada a cabopelos alunos permitiria seguramente uma mais bemfundamentada separação entre o trigo e o joio,nestes como noutros domínios pedagógicos.

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na estrutura e composição do Curso deDireito criam uma janela deoportunidade dificilmente repetívelpara que venham a ser potenciadas asvantagens da presença, no currículodos cursos ministrados na Faculdade,de uma disciplina como a deAntropologia Jurídica. Cabe ao nossoConselho Científico assegurar que, natransição, não se percam, para alémdas vantagens táctico-didácticas deuma disciplina como esta(designadamente aquelas a que fizalusão), a continuada valorização deuma das diferenças específicas demaior impacto, de entre as muitas quepermitiram à FDUNL uma tão rápidaafirmação no panorama académiconacional: a interdisciplinaridade,uma escolha que tão eficazmente nosfaz convergir com o espíritodelineado em Bolonha e de maneira tãoenxuta nos distancia de modelos poucosintonizados com as realidadesacadémicas e sociais contemporâneas,fazendo-nos avançar numa direcçãosemelhante às dos sistemas de ensinoem relação aos quais deliberámos serdo nosso interesse uma maiorproximidade.

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Na única série de simulações atéagora (Maio de 2005) apresentadas ediscutidas de uma re-organização decurricula (em três anos mais dois,prevendo, como parece serinteiramente consensual, que estesúltimos dois anos correspondam avários Mestrados “sectoriais” e“especializados”), à AntropologiaJurídica foi reconhecido um papelimportante num grande número devariantes. O que é de bom agoiro.Esperemos que o plenário do Conselhomostre, quando for caso disso, asabedoria necessária para aprovarmodelos com as característicaspluridisciplinares de tão fortetradição na nossa Faculdade.

Não é, porém, esse o únicoenquadramento de mudança em queimporta manter vivo um legado deindubitável valor. Será seguramentevantajoso garantir que o papelinovador da Antropologia Jurídicavenha a ser também assegurado nareformulação paralela dasLicenciaturas da Universidade Nova deLisboa em majores e minors, um processoque foi já desencadeado.

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Voltemo-nos, agora, para umaexposição e para uma fundamentação depormenor do meu programa para adisciplina de Antropologia Jurídica ePolítica.

VIII

ENSINO, PROGRAMA E BIBLIOGRAFIA

Legal history deals with the past of thelaw.[…] Legal anthropology covers amuch wider realm. But legalanthropology is usually beyond thescope of lawyers. Lawyers accept legalhistory and normally ignore legalanthropology.Rodolfo Sacco (1995), “MuteLaw”, The American Journal ofComparative Law 43 (3): 455.

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Começo esta última partesubstancial do presente estudo comduas curtas subsecções relativas,respectivamente, ao ensino e estudoda Antropologia Jurídica noestrangeiro e em Portugal. Segue-se-lhes uma exposição-discussãojustificativa do Programa que adopteie da bibliografia que disponibilizoaos alunos que frequentam adisciplina.

26. O ENSINO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA NOESTRANGEIRO

Antes porém de passar ao programapropriamente dito, importa sublinharque o ensino da Antropologia Jurídicano estrangeiro é levado a cabo emmoldes bastante semelhantes ao queescolhi, pelo menos naqueles casos emque o que está em causa é o seuensino e a aprendizagem sistemáticono quadro de Faculdades, ouDepartamentos, de Direito. A situaçãoé muitas vezes algo diferente quando,pelo contrário (e como algumas vezesse verifica), o estudo deAntropologia Jurídica tem lugar no

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contexto de cursos gerais deAntropologia Social ou Cultural, oude quaisquer outras Ciências Sociais.

Na maior parte das instituiçõesbritânicas, francesas, holandesas,escandinavas ou norte-americanas deEnsino Superior que albergam comregularidade nos seus quadrosantropólogos jurídicos (para merestringir aos exemplos mais óbvios emais significativos) o ensino daAntropologia Jurídica tende a serconformado como se se tratasse de umcomplemento alargado ao estudo daSociologia Jurídica, ao da Históriado Direito, ou ao do DireitoComparado; assim é a norma em Oxford,Cambridge, ou na Universidade deLondres, em Paris, Frankfurt, Yale ouHarvard, tal como em numerosasuniversidades canadianas eaustralianas. Mas nem sempre esse é ocaso. Em muitas outras instituiçõesonde a perspectivação jurídico-antroplógica é ensinada, como porexemplo no School of Oriental and AfricanStudies (SOAS) de Londres, no LondonSchool of Economics (LSE), em váriasUniversidades de Bruxelas, naSorbonne (Paris I) e na Université de

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Paris X (Nanterre), , Leiden (e aítanto no van Vollenhofen Institute daFaculdade de Direito como no AfricanStudies Center), ou na Universidade deOslo, na Noruega, é antes assumidauma postura histórico-político-sociológica muito mais explícita comoquadro analítico de eleição292.

292 É curioso notar que esta distribuição e estasdistinções correspondem, grosso modo, àquelas que severificam no que diz respeito ao estudo dos Direitosafricanos (ver Armando Marques Guedes, 2004, op. cit.:182-183. A coincidência de tónicas e inflexões deixade constituir uma surpresa uma vez que recordemosque, numa enorme percentagem dos casos, o estudo daAntropologia Jurídica e o dos Direitos africanos sejustapõem. Esse tende a ser o caso, designadamente,nas instituições universitárias e de investigaçãodos países europeus que mantiveram colónias emÁfrica. As excepções, como seria de esperar, são noessencial holandesas, escandinavas e norte-americanas, em que o padrão seguido pelaAntropologia Jurídica e aqueloutro seguido pelosDireitos africanos não coincidem tanto. Caso aparteé o de muitas instituições norte-americanas, ondeessa sobreposição também ocorre, porventura emresultado das afinidades de fundo (ora no plano daorgânica académica, ora no do recrutamento depessoal docente) que ostentam vis à vis as suascongéneres britânicas; e ainda os das instituiçõesuniversitárias nórdicas, canadianas, e australianas,que por norma tendem a favorecer os estudosantropológico-jurídicos das suas próprias minoriasétnicas: lapões, ameríndios e esquimós, ouaborígenes, respectivamente.

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A título meramente indicativo, etendo em mente a natureza do presentetrabalho, vale a pena aprofundar umpouco a diferença que acabei desublinhar, no sentido de tentarapurar algo mais quanto à razão de umcontraste destes. A diferença, ao quejulgo, tende a ser sobretudo de tónica,e não tanto de substância. Enquantono ensino-aprendizagem presentes nasFaculdades ou Departamentos deDireito a atenção tende a deter-sesobre formas normativas, e são pornorma realçados os benefícios dascontextualizações socioculturais e deuma alargamento de âmbito empírico(“etnográfico”) que a AntropologiaJurídica e que a perpectivação jus-antropológica sabem providenciar,quando o enquadramento é ao invés odisponibilizado pelas CiênciasSociais a tendência dos antropólogosjurídicos parece ser antes a deinsistir na importância de encararsempre o “jurídico” tão-só como umadas várias formas de normatividadesocial, e perspectivar estas nocontexto das estruturas e daorganização “política” das sociedadesenvolvidas.

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O que não deixa de serinteressante. Sem querer entrar empormenores quanto a esta distinção(que de qualquer maneira émanifestamente nuns casos mais clarae enxuta do que noutros293), talveznão seja abusiva a convicção que estacuriosa distribuição de preferências293 Mas sempre significativa e em sentidos paralelos.A quebra do ascendente da Jurisprudence anglo-saxónicasobre as formulações teórico-metodológicasantropológico-jurídicas foi correlativa com umareentrada em força de teorizações provindas deoutros quadrantes geográficos, designadamente daFrança e da Bélgica, como vimos. É curioso verificarque, também nesses “novos tabuleiros” questões decolaboração disciplinar depressa assumiram posiçõescentrais, numa espécie de réplicas locais de tensãofundacional que abordei. Um só exemplo: numinteressante artigo de François Ost (1997) éequacionado um contraste de pormenor entre“multidiciplinarité”, “interdisciplinarité”, e a mais forte“transdisciplinarité”. Utilizando exemplos tirados doDireito, Ost defendeu que apenas ainterdisciplinaridade constituirá um modelo viávelpara o diálogo interdisciplinar no estádio actual,se se quiser evitar seja uma “Babel científica”marcada pela inviabilidade de uma comunicaçãoeficaz, sejam generalidades ocas que se saldam peloque F. Ost apelida de “uma simples sobreposição dediferenças que confina com a indiferença”. Osmotivos do autor ao redigir este artigo sãoexplícitos e no essencial “deontológicos”: Ostmostra-se favorável a seminários e publicaçõesinterdisciplinares focadas em temas jurídicosespecíficos, encarando-os como o que chama um“antecipação ética” de um futuro iminente.

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ao nível do acento tónico parecesugerir que aquilo que está em causa,num como no outro dos dois “pólos”que identifiquei, é uma preocupaçãomarcada com a salvaguarda deautonomias disciplinares e umaassunção, pelos antropólogosjurídicos, de uma coloraçãoprotectora que melhor permita a suafácil integração em diferentes“ecosistemas académicos”. O que,aliás, é inteiramente compatível coma interpretação que proponho nesteestudo quanto à progressão de umrelacionamento disciplinar difícil.

No primeiro caso, o da integraçãoda Antropologia Jurídica emDepartamentos ou Faculdades deDireito, o que parece ser favorecidoé a especificidade e autonomia dodomínio das Ciências Jurídicas; nosegundo, em que a AntropologiaJurídica aparece como umasubdisciplina integrada numa formaçãoem Ciências Sociais, são antes aautonomia e a especificidade destas oque constitui domínio “reservado”sujeito a uma especial “protecção”294.294 Noto que a actuação de tanto o primeiro como osegundo destes constrangimentos denota com veemência

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Também no plano dos conteúdos oensino-aprendizagem da AntropologiaJurídica apresenta regularidades, masnão uma homogeneidade. Em muitíssimosdos casos, estão apenas sobescrutínio parcelas dasrepresentações e práticas sobre osquais os antropólogos jurídicos sedebruçam, a maioria das vezes aquelasligadas a áreas económicas, político-administrativas, ou à família e àpropriedade: Na última dúzia de anos,como tive já o ensejo de notar,tópicos vários relativos aos DireitosHumanos têm vindo (de formacrescente) a chamar a atenção dosanalistas.

Noutros casos, porém (porventuraa maioria), a Antropologia Jurídica é

a convicção de que estaremos perante, senão um fossodisciplinar intransponível, pelo menos frente a duasperspectivas de difícil compatibilizaçãoprogramática. Não posso, no entanto, deixar desublinhar que em contextos universitários tãofluidos como os contemporâneos é muito difícilaventar generalizações úteis cuja obsolescência nãoseja rapidíssima. As complexas situações demulticulturalidade que os processos de globalizaçãotêm vindo a intensificar depressa poderão alterareste panorama. As renovações curriculares de fundo aque o ensino tem estado sujeito constituem uma outraprevisível fonte de mudança.

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encarada num sentido amplo emuitíssimo inclusivo e abrangente,quantas vezes como uma disciplina aquem é atribuído a prerrogativa dedelinear um quadro teórico geral dereperspectivação do “jurídico”: umpapel que, aliás, enquanto estudosociológico genérico, reparteterritórios com a História doDireito, a Filosofia do Direito, ou(pelo menos potencialmente) com oestudo dos Sistemas JurídicosComparados. Ao contrário do que foi ocaso no que tocava às diferençasanteriores, as razões para esteúltimo tipo de variações parecem-mevariadas: a disseminação correspondeseguramente mais a escolhas ao nívelda ambição, ou da “filosofia”, doensino ministrado, e porventura adisponibilidade de mão-de-obraintelectual numa área em que há aindapoucos especialistas.

Mesmo no que toca às escolhas deconteúdo no ensino-aprendizagem daAntropologia Jurídica no Mundo não meparece que estejamos, no entanto,perante variações casuais efortuitas, ou face uma disseminaçãointeiramente arbitrária ou

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contingente, por assim dizer. Algumaspreferências económico-geográficas, eoutras de natureza histórica, têm umsentido manifesto.

Assim, por exemplo, tanto oensino desta disciplina como ainvestigação jurídico-antropológicalevada a cabo tendem a colocar osseus principais pontos de aplicaçãonos aspectos “jurídicos” patentes nocontexto dos Estados pós-coloniaiscom os quais os Estados ocidentais emque se estão implantadas asinstituições mantiveram no passado(ou mantém ou retêm no presente)relacionamentos particularmenteintensos: nas instituições francesasestuda-se, por conseguinte, sobretudoo “jurídico” manifestado nos Estadosafricanos francófonos, na Grã-Bretanha são privilegiadas asexpressões de law nos Estados daCommonwealth britânica, enquanto queholandeses, belgas e alemães sededicam preferencialmente ao ensinodos Direitos em vigor nas suasrespectivas áreas de influênciahistórica295.295 Sem pretender no que se segue uma qualquercobertura exaustiva, vale a pena sublinhar que têm

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Em minha opinião, é também esteum dos quadros em que, mutatis mutandis,devemos ver as escolhas geográfico-nacionais das Universidades norte-americanas em que são empreendidosestudos jurídico-antropológicos: sãonelas ensinados os Direitos dos

sido porta-vozes das posturas analíticasantropológico-jurídicas contemporâneas, para só daralguns exemplos, os já referidos Sally Falk-Moore(1986.) até 2002, no em que se jubilou, da Law Schoolde Harvard, John Comaroff e Simon Roberts (1981) daFaculty of Law da Universidade de Chicago e do LawDepartment do London School of Economics, bem comoJune Starr e Jane F. Collier (1989) em Stanford;para além das preocupações teóricas de fundo queestes autores têm manifestado (e em que têm vindo aassumir uma posição de alguma preponderância,enquanto uma “segunda geração” da AntropologiaJurídica moderna), estes investigadores têmconstituído equipas viradas sobretudo paraetnografias focadas em grupos da África anglófona.Na Europa continental, são de realçar os nomes deJacques Vanderlinden em Bruxelas, ou Norbert Roulande do extenso Laboratoire d’Anthropologie Juridique da Faculté deDroit da Sorbonne (Paris I), dirigido primeiro por M.Alliot e hoje por E. Le Roy, ou ainda o Centre Droit etCultures da Université de Paris X, em Nanterre, essefundado por A. Verdier. Vários investigadoresholandeses (mais focados, no entanto no Sudesteasiático e, cada vez mais, na África Austral),sediados sobretudo nas Universidades de Amesterdão eLeiden, têm tido preocupações semelhantes e, de parcom investigadores britânicos do Law Department doSchool of Oriental and African Studies têm-se vindo a afirmarcomo os mais produtivos e promissores centroseuropeus temática e regionalmente especializados,virados ora para o estudo do adat (a “tradição”)

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Estados que instrumentalmente seapresentam como sendo maisimportantes para os Estados Unidos,para a Universidade em causa, para oregente da cadeira ministrada, oupara os alunos que potencialmente afrequentam296.

Casos especiais são, mais umavez, aqueles que resultam dascompreensíveis “predilecçõestemáticas endógenas”, por assimdizer, de algum modocomprensivelmente endémicas eminstituições universitárias depaíses, como os escandinavos, oCanadá (e nalgumas regiões dos EUA),indonésio, ora para a investigação sobre temasligados à propriedade da terra em áreas tradicionaisafricanas.

296 De novo ecoando, aliás, o que se verifica no quediz respeito ao ensino-aprendizagem dos Direitosafricanos. Repito aqui aquilo que antes escrevi emrelação ao estudo dos Direitos africanos pós-coloniais fora de África: menos relevância meparecem ter invocações de motivos como eventuais“responsabilidades históricas” (que em todo o casome parecem versões modernizadas da velha “missãocivilizacional” ocidental) face às ex-colónias,quaisquer que sejam as boas intenções de quem asadvoga. As instituições ocidentais, pelo menos nestecaso, parecem pautar-se por considerações menosidealizadas nas escolhas que fazem quanto àscadeiras ministradas.

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ou a Austrália, em que estãopresentes minorias étnicas queconstituem forças politicamentesignificativas.

27. O ESTUDO DA ANTROPOLOGIA JURÍDICA EMPORTUGAL

Em diversas notas de rodapé fuifazendo referência aos poucostrabalhos produzidos em Portugal quese possam com alguma propriedadeconsiderar como dando corpo ainvestigações antropológico-jurídicas. Para além de Jorge Dias,aludi assim a Maria Manuel LeitãoMarques e Fernando Ruivo (1982), bemcomo a J. de Oliveira Ascensão(1982), João Pina-Cabral (2003) e,finalmente a Armando Marques Guedes(1994, 1999a, 2000, 2001, 2002,2003a, 2003b, 2003c e 2004).

Não posso deixar de tambémincluir nesta lista estudos como osde Susana Pereira Bastos (1997), daFCSH da UNL, Brian O’Neill (1987,1989, 1990) do ISCTE e Maria IvoneCunha (1997, 2002) do ICS da

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Universidade do Minho . É certo quenenhum destes textos ancoradirectamente na tradição científicada Antropologia Jurídica. E, apesarde residente e docente em Portugal,B. O’Neill é cidadão norte-americano.Mas quaisquer das investigações quearrolei têm uma óbvia dimensãoantropológico-jurídica que cabevalorizar297.

Para além deste grupo, importa noentanto igualmente pôr em evidênciaos estudos antropológico-jurídicosempreendidos in illo tempore porespecialistas portugueses a trabalharnas ex-Colónias e, nessas, sobretudonas africanas298. Sem que se possa297 Como poderá ser verificado, todos eles constam daBibliografia obrigatória do Programa de AntropologiaJurídica que apresento aos meus alunos na FDUNL.

298 É curioso verificar que, apesar da situação suigeneris dos liurais timornses, e pese embora numerosostrabalhos antropológico-jurídicos sobre grupossudeste asiáticos tenham sido produzidos porholandeses, norte-americanos, britânicos e franceses(todos estabelecidos colonialmente nessa região),poucas ou nenhumas reflexões tenham sido produzidasem relação a Timor. Com efeito, durante muito tempoo “controlo” dos timorenses pelo Estado portuguêsassumiu um formato de uma quasi-“indirect rule” quedecerto teria beneficiado de análises jurídico-antropológicas. Num famoso Decreto, datado de 17 deJunho de 1909, a Coroa portuguesa decidiu sedimentar

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afirmar estarmos perante linhassustidas de investigação, caberealçar que o panorama, nessedomínio, é pelo menos tão rico como odas outras pesquisas (como vimos,muito poucas) levadas a cabo noâmbito da Antropologia Jurídicaportuguesa. Sem pretender serexaustivo, cumpre referir aqui nomescomo o de António de Almeida, o deAdriano Moreira, o de Narana

o controlo indirecto que vinha estabelecendo emTimor, criando para o efeito uma série decorrespondências formais: o Decreto traduziu lurahancomo “reinos”, pô-los a par de “concelhos” eequiparou os liurai como “coronéis”. Traduziu suku como“grupos de aldeias”, os sucos, e de acordo com atradição administrativa portuguesa entreviu-os como“distritos”, equiparando em paralelo os dato locaisrespectivos a “majores”. A um nível mais baixo,enfim, chamou “aldeias” aos leo, viu-os enquanto“paróquias”, e atribuiu aos dato menores que aschefiavam a patente honorífica de “capitães”. umaco-optação bastante completa, para dizer um mínimo;e uma espécie de “anexação nocional” que não podiasenão desembocar na transmissão de ideias quesubtendiam a então baixa integração políticasupralocal dos timorenses. Porventura em ligação como suplemento de poder e legitimidade logrados porarticulações deste tipo, muitos foram os membros daselites tradicionais locais que ingressaram nasForças Armadas portuguesas. É curioso que numcontexto como este não tenha ocorrido uma explosãoparalela à dos estudos holandeses sobre os adatrechtsindonésios.

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Coissoró, o de Jorge e Margot Dias,ou o de Carlos Laranjo Medeiros, parasó citar (por ordem cronológica dasrespectivas produções) alguns nomes.Nuns casos, tratou-se de estudos doque talvez não seja abusivo apelidarde Antropologia Jurídica Aplicada299.Noutros, o que foi feito redunda empouco mais do que estudos comparadossobre Direitos consuetudinários300.Alguns destes estudos, no entanto,deram corpo a trabalhos deinvestigação de feição (pelo menosparcial) clara e indubitavelmentejurídico-antropológica.

Limitar-me-ei a um curto exemplo,o do último autor que referi, CarlosL. Medeiros, e a um curto artigo aque já antes fiz alusão. Os Kwandu

299 Porventura o exemplo de maior qualidade eextensão seja o interessante estudo de AdrianoMoreira (1955), sobre A Administração da Justiça aosIndígenas, uma parte não-despicienda do qual poderiaser assim classificada sem grandes distorções.

300 Penso aqui, designadamente, na tese dedoutoramento, apresentada à Universidade de Londres,por Narana Coissoró, publicada em 1966, em Lisboa,sobre The Customary Laws of Succession in Central Africa, ou oseu curto artigo de 1984, “African Customary Law inthe Former Portuguese Territories, 1954-1974”, nomuito prestigiado Journal of African Law do SOAS.

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são um pequeno agrupamento depastores Herero de cerca de 2000pessoas, que vivem nos arredores doMonte da Neve, perto do deserto deMoçamedes, no Namibe, Angola. CarlosL. Medeiros focou a sua análise noconceito de tempo dos Kwandu, queinsistem em reviver o passado nopresente, os homens do grupo re-encenando sem cessar, pelas tradiçõesorais constantemente repetidas nostempos verbais do presente, pelaprática reiterada de actividadessimbólicas e rituais, e “pelaafirmação do seu sistema de valores”,o estilo de vida dos antepassados. Aanálise de Medeiros301 éparticularmente rica quando o A. tocao período histórico, no intervalo quedurou de finais do século XVIII atéaos anos 40 do século XX, e em que osKwando, então uma sociedade acéfala,exibiam302 “a double system of [conflict]resolution, by consensus and compromise”: oprimeiro formato era utilizado,segundo Medeiros, “quando a área dedecisão reflectia as relações de

301 C. L. Medeiros, op. cit.: 83-89.

302 Vd. e.g., op. cit.: 86.

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posse e poder”; o segundo formato, odo compromisso, seria ao invés outilizado “quando a área de decisãonão coincidia com o contextoeconómico ou com a autoridadeenvolvida”.

Com a imposição de umaadministração e de um controlopolítico a partir de 1942-1943(momentos de intervenção violenta dasautoridades coloniais portuguesas,que Medeiros descreveu a traçogrosso) a situação sofreu profundasalterações. Um novo sistema, dotadode uma “nova lógica cultural” foiimplantado, bem como novos “meioscoercivos”, num todo alternativodificilmente inteligível para osKwandu, e no qual nem feiticeiros(“witch-doctors”) nem antepassados(“ancestors”) continuaram a preencheros papéis relevantes que até entãotinham sido o seus. InfelizmenteMedeiros, pelo menos no curto artigoa que aludo, não providenciouexemplos de casos concretos(incluindo porventura histórias decaso que viabilizassem tomar o pulsoàs flutuações conjunturais que seriamde esperar na operação dos modelos

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abstractos de resolução de litígiosque delineia) no que prometia ser oesboço de uma etnografiaantropológico-jurídica fascinante eque o autor se revelou comoindubitavelmente apto a redigir empormenor.

Com as independências ocorridasem meados dos anos 70, mesmo ospoucos trabalhos antropológico-jurídicos empreendidos porinvestigadores portugueses sofreramde início uma paragem. Uma geraçãodepois recomeçaram, agora em maiornúmero e mais sintonizados com aprodução científica internacionalneste domínio científico.

Fizeram-no com os estudos sobreex-colónias levados a cabo na âmbitoFaculdade de Economia da Universidadede Coimbra, a cargo de equipaslideradas por Boaventura de SousaSantos e, no âmbito da Faculdade deDireito da Universidade Nova deLisboa, por meio dos trabalhosproduzidos em equipas conduzidas porArmando Marques Guedes. Também namesma Faculdade de Direito e noInstituto de Ciências Sociais daUniversidade Clássica, António M.

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Hespanha coordenou projectos deinvestigação com uma marcada inflexãojurídico-antropológica sobre Macau.

28. O ENQUADRAMENTO DO PROGRAMA

Tendo em conta tudo aquilo queprecede, e respeitando e situando-sesempre nos termos da progressãohistórico-cronológica da produção dosantropólogos jurídicos303, esta

303 Não só no Programa como um todo e em cada uma dassessões deste, mas também na BibliografiaSuplementar que disponibilizo aos estudantes dadisciplina de Antropologia Jurídica (e que aquiincluo em Anexo), arrolo muitas das principaisreferências bibliográficas pertinentes para estudosmais aprofundados sobre a evolução-progressão históricada Antropologia Jurídica. Repito que, no presenteEstudo, mais não pretendo que traçar algumas dasprincipais linhas de força da sua genealogia. Uma análisehistórica “integral”, por assim dizer, teria nodecerto um enorme interesse. Sem querer ser mais quemeramente indicativo: depois de uma primeira fase(que decorreu no essencial durante os períodoscoloniais), em que os estudos comparativos dosDireitos não-Ocidentais em conjunto com os dosOcidentais tendiam a ser conduzidos segundo umaperspectiva antropológica pura (tratou-se dosprimórdios da Antropologia Jurídica, como indiquei)e a restringir-se, no último caso, à investigaçãosobre os “usos e costumes tribais”, estas duasposições têm emergido uma a seguir à outra, naevolução mais recente dos estudos levados a cabo noâmbito da Antropologia Jurídica. A subdivisão, em

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disciplina do Curso visa doisobjectivos principais: em primeirolugar, tenta demonstrar a utilidadede uma abordagem que utilizeconceitos e métodos antropológicospara uma melhor compreensão e umamelhor circunscrição dos “sistemasjurídicos” e das “estruturaspolíticas” que os sustentam.fases, desta “segunda época”, parece corresponder,by and large, à lógica das conjunturas políticas que sesucederam com as independências generalizadas queocorreram no Mundo após o fim da 2ª Guerra Mundial:passou-se, assim, de um primeiro momento, em que oEstado se tornou no centro de todas as atençõesanalíticas, para um segundo, de um renascimento“nativista” bastante generalizado [para umadiscussão iluminada sobre a progressão jurídica pós-colonial verificada em África, ver o esplêndidotexto de R. David, de 1984: 97-110, no Capítulo 3 doII Volume de (ed.) V. Knapp, 1984] . A última fasedesta progressão parece ter coincidido,temporalmente, com as mudanças políticas ocorridasem muitas sociedades pós-coloniais (nomeadamente asafricanas) nos finais dos anos 80 e inícios dos 90(época em que ocorreram as célebres “transiçõesdemocráticas” da Terceira Vaga, a pós-bipolar), quetanta força vieram dar às sociedades civis urbanasno chamado Terceiro-Mundo, bem como com asalterações dos palcos internacionais, que tiveramcomo resultado uma enorme aceleração de processos deintegração global (cujas consequências foram tãoprofundas quanto são mal conhecidas). O estudohistórico-sociológico desta progressão das análisesde Antropologia Jurídica (que no presente Estudotento esboçar de maneira indicativa) é um temafascinante e seriamente sub-investigado.

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Em segundo lugar, e sobretudo, adisciplina propõe-se ilustrar, pormeio de casos seleccionados(relativos a tópicos por regra deinteresse para a formação dejuristas, mas naturalmente segundocritérios de relevância sociológica)em contextos etnográficos tãodistintos quanto possível, tanto avariabilidade dos dispositivos e“sistemas políticos e jurídicos”existentes, como algumas dascoordenadas (sociológicas) por que sepode aferir a diversidade verificada.

28.1. O DESIGN DO PROGRAMA

Em termos mais genéricos, eem consonância com as perspectivasmais recentes nas Ciências Sociais, esobretudo na Antropologia (e, espera-se, em ressonância óbvia do levado acabo noutras cadeiras da licenciaturaem Direito), o programa que elaboreipretende realçar, com um intuito noessencial didáctico, a importância dereferências sistemáticas aoscontextos sociais e culturais e àutilização de métodos e conceitos

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comparativos para uma maiorcompreensão tanto dos nexos sociaisjurídicos como dos políticos. Como éevidente, sem qualquer pretensão deexaustividade; mas lançando a redenum arco tão amplo quanto o possívelpara um ensino restrito a duas aulassemanais durante apenas um semestre. Em termos maisdeliberadamente pedagógicos, uma dasfinalidades é a de problematizar,pondo-os em perspectiva implícita,alguns dos pressupostos tácitos tãotípicos das disciplinas jurídicasmais dogmáticas. Espero assimconcorrer para uma aprendizagem e umacompreensão mais ampla e criativa doâmbito jurídico no sentido lato.

No prosseguimento destesobjectivos interrelacionados e deacordo com o que foi dito, o programada disciplina dá forte relevo àimbricação entre “o político”, “ojurídico” e a economia, “o político”,“o jurídico” e a religião, oparentesco, etc., no âmbito genéricode uma reflexão sobre a articulaçãoestreita entre a organização social,a cultura e o normativo; ou asociedade, a cultura e o poder.

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Simultaneamente no geral e nos maisdiversos contextos geográficos ehistóricos.

28.2. O CONTEÚDO DO PROGRAMA

O programa aqui proposto para adisciplina semestral de AntropologiaJurídica e Política como disciplinade opção para os alunos dalicenciatura em Direito corresponde,sem quaisquer alterações, àquele quevenho ministrando desde o ano lectivode 1999-2000. Em relação ao seguidoem 1998-1999, algumas alteraçõeshouve, como resultado, sobretudo, daslições aprendidas com essaexperiência, então inovadora. Desde oprimeiro ano, o tempo lectivodisponível tem-se mantido, com duassessões semanais de uma hora e umquarto cada, durante esse semestre.

O programa está dividido nummódulo introdutório e quatro partessubstanciais, cada uma delas com umtítulo genérico. Por sua vez, cadauma dessas quatro partes foisubdividida em sessões temáticas (porvia de regra três ou quatro por

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parte), de que se apresenta um resumoe para cada uma das quais é indicadoum conjunto de referênciasbibliográficas.

Como poderá facilmente serverificado, tanto o conteúdo dassessões propostas como a sua selecçãoenquanto tópicos substantivos e como,ainda, o seu encadeamento, respondema muitas das condicionanteshistórico-metodológicas e daspreocupações pedagógicas atrásexpostas.

A preocupação foi, primeiro, a dedisponibilizar aos alunos umapassagem (inevitavelmente à vol d’oiseau,dada a duração semestral ser exígua)sucinta mas tão exaustiva quantopossível por alguns dos textosfundamentais da AntropologiaJurídica. Segundo, o lograr levá-lo acabo sem nunca perder de vista tantoa natureza do curso que frequentam(em termos de currículo e deobjectivos), quanto a dimensão“táctica” e “cosmopolita” que umadisciplina como esta sempre tem. Aquie ali, o programa proposto potenciaainda, expondo-as, algumas dasarticulações transdisciplinares que a

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investigação antropológico-jurídicaexige e tem vindo a ajudar aconcretizar.

Assim, o programa abre por umabreve panorâmica sobre algumas dasproblemáticas fundadoras dasAntropologias Jurídica e Política e aconstituição dos respectivos corposteóricos tradicionais, de H. S.Maine, a K. Marx, a E. Durkheim, M.Weber, B. Malinowski e A. Radcliffe-Brown. Numa segunda sessãointrodutória, que imediatamente selhe segue, são discutidos váriostipos de abordagem relativamente auma mesma manifestação etnográfica(v.g. a caça às cabeças e ossubsequentes pactos de paz, nosudeste asiático), o que fornecerá aoportunidade de enunciar e ilustrardiversos estilos de interpretação eexplicação antropológica de fenómenosjurídicos e políticos. Uma terceiraaula recapitula, em detalhe, uma daspolémicas centrais fundadoras edelimitadoras dos campos teóricos emque se têm vindo a mover e adesenvolver os estudosantropológicos: a discussão, acesa,de Max Gluckman e de Paul Bohannan

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sobre a aplicabilidade geral deconceitos ocidentais a sociedades eculturas que tradicionalmente os nãoutilizam. Numa quarta e última sessãointrodutória, são esmiuçadas algumasformulações teóricas recentes compertinência no campo (relativamenteunificado) da Antropologia Jurídica ePolítica.

O plano do resto da cadeira estáorganizado segundo o mesmo tipo detraves mestras de sustentação,juntando, nalguns casos para cadatema (e por ordem cronológica), umconjunto de referênciasbibliográficas que exprimem posturasinterpretativas alternativas (e/ourealidades etnográficas diferentes)quanto aos mesmos assuntos. Noutroscasos limitando-se a uma, duas outrês alusões a trabalhos publicados.O programa põe em evidência, sempreque possível, algumas das polémicasque têm dado vida à AntropologiaJurídica e Política, sem nunca perderde vista a preocupação comparativistade tentar uma cobertura tãoabrangente quanto possível de tiposde sociedade, de áreas culturais, demodos de representação, e de

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modalidades de acção jurídico-política. E, naturalmente, fá-lo deforma tão coerente e sistemática304

quanto possível. São assim abordadas numerosas

sociedades: em termos quantitativos,em cinco das catorzes sessõessubstantivas, sociedades “complexas”(na maioria dos casos, europeias). Emsete outras sessões, afloradassociedades “simples”. Quatro dassessões são mistas deste ponto devista. O objectivo é o de obter umaamostra representativa, que não caiano reducionismo de que têm padecidomuitos dos estudos jurídicoscomparados, por regra apenas atidos a

304 Uma palavra de cautela. Duas das principaisfrentes de intervenção da Antropologia Jurídica têmsido, nos últimos anos, a investigação sobre oschamados indigenous rights (que nos finais dos anos 80beneficiou de uma dita “explosão bibliográfica”) eaquela sobre o pluralismo jurídico (que asdescolonizações, a imigração e a globalizaçãopuseram na agenda). Salvo em casos avulsosexcepcionais, o programa deste curso semestral nãose desdobra porém nessas tão importantes direcções.A título indicativo, e aproveitando a oportunidadepara fornecer alguma bibliografia acessória aeventuais interessados em aprofundar temas, decidi,no entanto, anexar a este programa algumas direcçõesbibliográficas básicas que alargam a sua base desustentação.

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sociedades “com Estado” e, dessas, às“ocidentais”. Mas sem também e aoinvés cair no excesso oposto, queredundaria numa “exotização”descabida das generalizaçõescomparativas sugeridas. Quanto à primeira parte doprograma, estão no seu cerne diversosdos tipos de dispositivos culturais esociais do “jurídico” e do“político”. Tenta-se nela pôr emevidência algumas das regularidadesmais notáveis que exibem, as suasparticularidades, respeitando noentanto e dando sempre relevo àsvariações etnográficas e temáticas aque estão sujeitas. São assimabordados temas relativos às lógicasclassificatórias características deculturas e modos de representaçãodiferentes, e ao papel simbólicocrucial que, independentemente dastaxonomias usadas, sempre cabe aentidades e figuras “anómalas”.Vários dispositivos de construçãosociocultural de hierarquias sociaise do igualitarismo são investigadosnuma segunda sessão. Um terceiro temaaborda a importância daperformatividade nas expressões

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normativas (designadamente nasjurídicas), e esforça-se pordemonstrar as insuficiências dequaisquer análises semiológicas quenão atribuam a centralidade devidaaos contextos empíricos concretos(“locais”) de execução derepresentações simbólicas. A segunda parte substantivado programa da disciplina, construídasobre o acquis logrado pelo esmiuçarda primeira trata algumas dasvariadíssimas classes de conflitosque ocorrem em vários tipos desociedades e os diversos mecanismosutilizados para esbater, encaminhar,ou resolver o seu impacto: afinalidade é a de esboçar umaprimeira delimitação (espera-se quede alcance mais que local, mas semprenos termos de uma tipologia aberta)das condições sociais de ocorrênciadas muitas configurações empíricasexistentes. Neste enquadramento, sãoassim investigados sistemas“judiciários” como o dos Lozi,descritos por M. Gluckman, as formasde atribuição colectiva deresponsabilidade em agrupamentosfilipinos das terras-altas e,

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recapitulando o estudo de J. Comaroffe S. Roberts, as especificidadesculturais tanto da composição ecaracterísticas de “litígios” entreos Kgatla Tswana como as formas doseu encaminhamento e resolução noquadro das formas locais deorganização social e segundo asideias locais de “justiça”.

A parte terceira do programa,retomando estas questões de outroângulo, debruça-se sobre odimensionamento discursivo esemiológico geral de algumas práticase “sistemas” jurídicos e políticos,sublinhando o potencial heurísticodeste tipo de perspectivaçãoanalítica. As duas primeiras sessõesdesta terceira parte tomam como tem,respectivamente, a monografia de P.Bohannan sobre os Tiv e a de L. Rosensobre os tribunais cádi marroquinos.Segue-se-lhes uma sessão, ancoradanuma monografia de C: Geertz, sobre aforma do Estado em Bali e as ideiasdecorrentes sobre organizaçãoadministrativa do reino. A terceiraparte do programa termina com umasessão em que são postos em evidênciaos contributos da Antropologia

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Jurídica para uma melhor compreensãodas estratégias em curso deuniversalização dos Direitos Humanos.

Finalmente, a quarta e últimaparte do programa trata de questõesparticulares suscitadas em estudosantropológicos da realidadeetnográfica nacional, o que iráfornecer a oportunidade de melhorcalibrar a capacidade de resoluçãodas análises da Antropologia Jurídicae Política no que diz respeito tantoàs estruturas socioculturaistradicionais como às transformaçõesmais profundas a este nívelverificadas na sociedade portuguesacontemporânea. Nela são abordadostrês estudos: um, de José Cutileiro,sobre o Alentejo; outro, de BrianO’Neill, sobre Trás-os-Montes; e umúltimo, de Susana Pereira Bastos,relativo aos mecanismos de construçãosocial de uma “marginalidade” duranteos quarenta e oito anos de vigênciado Estado Novo. Se bem que nenhum dosestudos analisados utilize a panópliade métodos disponibilizados pelaAntropologia Jurídica, é tentadamestas sessões uma reinterpretaçãodos dados etnográficos nestes termos.

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29. UM PROGRAMA E UM EXAME

O programa que se seguecorresponde àquele que foi entregueaos alunos na sessão inicial deapresentação da disciplina (nosegundo semestre do ano lectivo de2003-2004). Cada aula tem um título,dela consta um resumo e, ainda, umabibliografia. Logo no primeiro dia deaulas, a cada sessão foi atribuídauma data concreta.

INTRODUÇÂO

DEFINIÇÃO DE ÂMBITOS NO ESTUDOANTROPOLÓGICO DA POLÍTICA E DAS LEIS: ATRADIÇÃO “CLÁSSICA” (1)

Uma introdução geral a algumas das coordenadas debase das heurísticas fundadoras da perspectivaçãoantropológica sobre as leis e a política. O papel criativo e o

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papel repressivo das regras. A lei e a evolução social. Opapel social dos conflitos.

Maine, H. (1861), Ancient Law, London.Durkheim, E., (1902), De la division du travailsocial, Paris.Malinowski, B. (1982, original 1926), Crimeand Custom in Savage Society,Rowman &Littlefield, New York.Radcliffe-Brown, A. R. (1933), “Law,Primitive”, em Encyclopaedia of the Social Sciences,vol. 9: 202-206, New York.Weber, M. (1968, original 1921), Economy andSociety, Berkeley and Los Angeles.Gluckman, M. (1965), Politics, Law and Religion inTribal Society, London.Pospisil, L. (1967). “Legal levels andmultiplicity of legal systems in humansocieties”, The Journal of Conflict Resolution 9(1):2-26.___________ (1974), Anthropology of Law: a comparativetheory, Yale University Press.Roberts, S. (1979), Order and dispute: anintroduction to legal anthropology, Penguin, London.

A CAÇA ÀS CABEÇAS E OS PACTOS DE PAZ:ALGUMAS DIMENSÕES DA INTERPRETAÇÃO E DAEXPLICAÇÃO EM ANTROPOLOGIA (2)

No contexto de uma prática endémica numa área cultural(a caça às cabeças no sudeste asiático), nesta sessão sãoesmiuçadas várias correntes analíticas que convergempara a sua inteligibilidade. O papel da interpretação e a

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estrutura das explicações antropológicas. O lugar socialdo jurídico e do político. O observador, o observado e aobservação.

Vayda, A. P. (1969), The study of thecauses of war, with special reference toheadhunting raids in Borneo”, Ethnohistory16:221-224.McKinley, R. (1976), “Human and proud ofit! A structural treatment of headhuntingrites and the social definition ofennemies”, em Studies in Borneo Societies, (ed) G.N. Appell, I. Dekalb: CSEAS, NTU: 92-126.Needham, R. (1976), “Skulls and causality”,Man: 71-88.Freedman, D. (1979), “Severed heads thatgerminate”, em Fantasy and Symbol. Studies inAnthropological Interpretation, (ed.) R. H. Hook,233-246: Academic Press.Rosaldo, M. (1980), Knowledge and Passion. Ilongotnotions of self and social life, conclusão, 221-234:Cambridge University Press.Metcalf, P. (1982), A Borneo Journey into Death.Berawan eschatology from its rituals, cap. 7, 112-126: University of Pennsylvania Press.Hoskins, J. (1996), “Introduction:headhunting as practice and as trope”, emHeadhunting and the Social Imagination in SoutheastAsia, (ed.) J. Hoskins, 1-50: StandfordUniversity Press.McWilliam (1996), “Severed heads thatgerminate the State: history, politics andheadhunting in southwest Timor”, ibid: 127-167.

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O “JURÍDICO” E O “POLÍTICO”: UMA POLÉMICASOBRE OS FUNDAMENTOS DO MÉTODO COMPARATIVO(3)

Uma controvérsia clássica na Antropologia Jurídica.Extrapolação pura e simples dos conceitos jurídicosocidentais como grelha a utilizar noutras sociedades?Eventuais conceitos e sistemas jurisprudenciais locais. Oslimites da formalização imposta pelo analista. Os modelosno que toca ao respeito pelos dados.

Bohannan, P. (1965), “The differing realmsof the law”, em (ed.) L. Nader, The Ethnographyof Law, American Anthropologist, specialpublication 67(6) part 2: 33:42.Gluckman, M. (1964) “Concepts in thecomparative study of tribal law”, em (ed.)L. Nader Law in Culture and Society: 349-374,University of California Press.Bohannan, P. (1969), “Ethnography andComparison in Legal Anthropology”, ibid:401-419.

DA NATUREZA DO JURÍDICO E DO POLÍTICO.PERSPECTIVAS ANTROPOLÓGICAS RECENTES (4)

Pela discussão de alguns trabalhos recentes deinvestigação, uma ilustração inicial de algumasperspectivas antropológicas contemporâneas quanto ànatureza e características dos factos jurídicos e políticosem termos comparativos. A tónica é posta na sua

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circunscrição destes e na especificidade da Antropologiaem gerar análises inovadoras.

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PARTE 1 DISPOSITIVOS CULTURAIS E SOCIAIS

COMPARATIVOS

ORDEM, CLASSES TAXONÓMICAS, ANOMALIAS: OSTABUS E AS PROIBIÇÕES COMO CONSEQUÊNCIAS DOCLASSIFICAR (5)

Uma primeira sessão sobre a imbricação entre a forma e asubstância das regulamentações e os quadros sociais eculturais que as situam e em que elas se exprimem. Asprescrições e as proscrições, encaradas como um efeitosecundário dos sistemas socioculturais de classificação. Opapel das chamadas anomalias classificatórias.

Douglas, M. (1957) - “Animals in LeleReligious Symbolism”, Africa 27 (1): 46-58.Leach, E. R. (1964) - “Anthropologicalaspects of language: animal categories andverbal abuse”, in New Directions in Study ofLanguage (ed.) Lenneberg, E., HarvardUniversity Press: 23-63.

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HIERARQUIAS, IGUALITARISMOS E TROCAS: ACONSTRUÇÃO DE ESTRATIFICAÇÕES SOCIAIS; OSMODOS DE EXPRESSÃO DA AUTORIDADE, E ASELABORAÇÕES COSMOLÓGICAS (6)

O papel das formas políticas, sociais e cosmológicas quesubentendem as construções simbólicas que cadasociedade leva a cabo sobre a estratificação social.Variações na mecânica social da construção de igualdadese de hierarquias.

Bloch, M. (1989), “Symbols, song, dance andfeatures of articulation: is religion anextreme form of traditional authority?”,Ritual, History and Power: 19-46, The AthlonePress, London.Marques Guedes, A. (1997), “Representaçõesreligiosas e igualitarismo político entre

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os caçadores e recolectores Atta deKalinga-Apayao, Filipinas, in O conceito deRepresentação, Revista da Faculdade de Ciências Sociais eHumanas da Universidade Nova de Lisboa, 10:123-155, Lisboa.______________(1999), “Sonhos Políticos:obliquidade e poder na interpretaçãopública e colectiva de sonhos entre os Attado norte de Luzon, Filipinas”, Etnográfica3(1): 157-193; ISCTE, Lisboa.

A PERFORMATIVIDADE DAS EXPRESSÕESNORMATIVAS: DO INFORMAL AO FORMALIZADO (7)

A dimensão semiótica das expressões jurídicas: o sentidoque inere à realização. A proximidade entre as expressõeslegais e as estéticas. Leis e comunicação. Modelosdinâmicos e metáforas multidimensionais paramecanismos complexos de acção social.

Levinson, S. e Balkin, J. M. (1991), “Law,Music and other performing arts”, 139University of Pennsylvania Law Review 1597.Hibbits, B. (1992), “Coming to our senses:Communication and legal expression inperformance cultures”, 41 Emory Law Journal 2.Petersen, H. (1998), “On Law and Music.From song duels to rhytmic legal orders?”,Journal of Legal Pluralism 41:75-88.

657

PARTE 2ACTOS E PROCESSOS JURÍDICOS E POLÍTICOS

O ESTADO, AS INSTITUIÇÕES JUDICIAIS E AFORMALIZAÇÃO: UM EXEMPLO DA ZÂMBIA, ÁFRICACENTRAL (8)

As configurações e a mecânica dos processos de resoluçãode disputas. A utilidade dos conceitos jurídicos ocidentais eos seus limites. O Estado tradicional e a justiça.Jurisprudência e práticas concretas. Os papéis dosfuncionários.

Gluckman, M. (1955), The Judicial Process amongthe Barotse of northern Rhodesia, ManchesterUniversity Press.

DIMENSÕES SOCIAIS E ESTRATÉGIAS POLÍTICAS:RESPONSABILIDADES E SOLUÇÕES COLECTIVASENTRE OS ILONGOT, FILIPINAS (9)

Numa terceira sessão são exploradas em detalhe tanto alógica (segmentária e atida a conceitos deresponsabilidade colectiva) de um tipo particular deconflitos, como a mecânica social dos processos queemergem para os resolver. A caça às cabeças e os pactosperiódicos de paz como formas processuais, segundo asquais os Ilongot constroem e mantêm a sua unidade eintegridade sociais enquanto grupos acéfalos.

658

Rosaldo, R. (1980), Ilongot Headhunting, 1883-1974. A study in society and history, StanfordUniversity Press.

FORMALIDADE, INFORMALIDADE E FORMASJUDICIAIS: UM EXEMPLO DO BOTSWANA, ÁFRICAAUSTRAL (10)

Numa última sessão são abordadas disputasculturalmente específicas e as mecânicas dos princípiosutilizados para a sua resolução, nos seus próprioscontextos sociais. As regras e os processos regulares, naausência de “leis” formalizadas. O papel daconceptualização do observador e dos conceitos locais.

Comaroff, J., Roberts, S. (1981), Rules andProcesses. The cultural logic of dispute in an Africancontext, The University of Chicago Pre

PARTE 3DISCURSOS E PRÁTICAS POLÍTICO-JURÍDICOS

A ALTERIDADE DAS PRÁTICAS: CRIME ECASTIGO NA NIGÉRIA, ÁFRICA OCIDENTAL(11)

Um exemplo etnográfico de regras, processos e formasjudiciais diversas. A discricionariedade e dimensionaçãopolítica na resolução de disputas. O público e o privado. O

659

papel dos conceitos locais. As limitações de um dosestudos clássicos. Uma prática da justiça.

Bohannan, P. (1957), Justice and Judgement amongthe Tiv, Oxford University Press.

A DIMENSÃO POLÍTICA DE UM DISCURSOJUDICIAL: OS TRIBUNAIS CÁDI EM MARROCOS(12)

Os pressupostos políticos nos processos judiciais detomada de decisão: o exemplo clássico dos tribunaistradicionais marroquinos. Arbitrariedade ou a imposiçãode formas culturais em processos com finalidades político-sociais ostensivas? Um sistema aberto ou um sistemaincompleto? Uma teoria da justiça.

Rosen, L. (1991), The Anthropology of Justice: law asculture in Islamic society, Cambridge UniversityPress.

ASPECTOS RITUAIS DA DEFINIÇÃO DECONJUNTURAS, DA LEGITIMAÇÃO, DA AUTORIDADEE DA CIRCUNSCRIÇÃO DA IDENTIDADE COLECTIVA:A GUERRILHA NO ZIMBABWE (13)

No seguimento das duas sessões anteriores, um terceiroexemplo, etnograficamente ilustrado, da importância dosdiscursos práticos na definição que cada sociedade faz dassuas coordenadas situacionais. O exemplo focado nestasessão versa os critérios formais adaptados nos anos 70 e

660

80 pelos Korekore Shona nas suas decisões sobre ascondutas a adoptar perante os guerrilheiros da Zanu e oexército governamental.

Lan, D. (1985), Guns and Rain: Guerrillas and spiritmediums in Zimbabwe, James Currey, London &University of California Press.

A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO GESTÃOCÓSMICA: O ESPECTÁCULO, A CERIMÓNIA E OPROTOCOLO REAL EM BALI, INDONÉSIA (14)

Uma instância etnográfica paradigmática, o caso do reinooitocentista de Bali manifesta bem o enquadramentocosmológico da organização política e jurídica do Estado edo estatuto real. O exercício do poder encarado como umaexpressão semiológica desta imbricação estrutural. Oslimites das interpretações clássicas postos em evidência.

Geertz, C. (1980), Negara: the theatre State innineteenth-century Bali, Princeton UniversityPress.

OS DIREITOS HUMANOS COMO FORMA DE ACÇÃOSOCIAL E NUMA PERSPECTIVA CULTURALCOMPARATIVA (15)

O estudo cultural comparativo do crescente movimento decriação-estabilização de um regime internacional dedefesa dos Direitos Humanos tidos como fundamentais. O

661

relativismo perspectivado. A importância das coordenadassocio-culturais.

(ed.) An Na’im, A. A. (1992), Human Rights inCross-Cultural Perspective. A quest for consensus,University of Pennsylvania Press.Falk, Richard (1992), “The culturalfoundations for the internationalprotection of human rights”, in (ed) A. A.An Na’im, Human Rights in Cross-Cultural Perspective.A quest for consensus: 44-65, University ofPennsylvania Press.

PARTE 4DESCRIÇÕES E ANÁLISES ANTROPOLÓGICAS DOJURÍDICO E DO POLÍTICO EM PORTUGAL

TROCAS E DEPENDÊNCIAS: PARENTES, VIZINHOS,ECONOMIA E HIERARQUIAS NO ALENTEJO (16)

A quarta e última parte do programa do curso é dedicadaa estudos antropológicos em Portugal que abordamalguns dos enquadramentos, dispositivos e processosacima analisados. Um primeiro exemplo privilegia o temada interpretação rural do parentesco, das relações depadrinho-afilhado e da economia nos relacionamentospolíticos e sociais internos e externos de uma vilaalentejana.

Cutileiro, J. (1977), Ricos e Pobres no Alentejo,Sá da Costa, Lisboa.

662

HERANÇAS, FAMÍLIAS E GRUPOS SOCIAIS:ESTRATIFICAÇÃO EM TRÁS-OS-MONTES (17)

Uma segunda sessão, debruçada sobre uma comunidadetransmontana, foca vários dos dimensionamentosestruturais e históricos de uma sociedade e economiaagrárias. O trabalho, a família e as herançasperspectivados e estudados nestes contextos. Aimportância destes para a elucidação das práticastradicionais nesses âmbitos. A legislação e o seu poder.

O’Neill, B. (1987), “Pul Eliya in theportuguese mountains. A comparative essayon kinship practices and family ideology”,Sociologia Ruralis 27 (4):278-303_________ (1989), “Célibat, bâtardise ethiérarchie sociale dans un hameauportugais”, Études Rurales 113-114:37-86._________ (1997), “Práticas de sucessão emPortugal: panorama preliminar”, Trabalhos deAntropologia e Etnologia 37(1-2):121-148.

OS CONTEXTOS JURÍDICOS DA POLÍTICA E OSCONTEXTOS POLÍTICOS DAS LEIS: AMARGINALIDADE E O ESTADO NOVO (18)

Num último exemplo, é discutida a dimensão política dasdisposições legislativas e das instituições que o regime doEstado Novo foi criando para os “marginais” e “vadios”. Asfunções criativa e repressiva da lei e da política. Adefinição de imagens de um comportamento social ideal

663

por intermédio da formulação pública de comportamentosa excluir. A dimensão formal e jurídica dos actos políticosnuma sociedade particular: a portuguesa durante metadedeste século. Os limites do modelo utilizado.

Pereira Bastos, S. (1997), O Estado Novo e osseus Vadios, Contribuição para o estudo das identidadesmarginais e da sua repressão, D. Quixote, Lisboa.

BIBLIOGRAFIA SUPLEMENTAR

Para um melhor enquadramento e uma maisdetalhada contextualização da disciplina,serão porventura úteis outras referênciasbibliográficas gerais. Assim, e aparte ostextos clássicos listados na primeirasessão sugiro (como pode ser verificado, ostextos estão aqui ordenadoscronologicamente) a consulta de:Llewellyn, K. e Hoebel, E. A. (1942), TheCheyenne Way. A study in primitive jurisprudence,University of Oklahoma Press.Hoebel, E. A. (1954), The Law of Primitive Man. Astudy of legal dynamics, Harvard UniversityPress.Gulliver, P. H. (1963), Social Control in anAfrican Society. A study of the Arusha: agricultural Masai ofnorthern Tanganyka, Routedge, London.Gluckman, M. (1965), Ideas in Barotse Jurisprudence,Manchester University Press.

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Várias colectâneas (para além da já citadade P. Bohannan), têm agregado, noutrostantos momentos da história da AntropologiaJurídica, artigos e contribuições dediversos investigadores. Foram também sendopublicados muitíssimos artigos avulsosimportantes para uma melhor compreensão daprogressão da disciplina. Aconselham-se,alinhados por ordem cronológica depublicação e como pano de fundo para osdesenvolvimentos contemporâneos,Barnes, J. A. (1961), “Law as politicallyactive: an anthropological view”, em (ed.)J. Sawer, Studies in the Sociology of Law: 167-196,Canberra.Nader, L. (1965), “The anthropologicalstudy of law”, American Anthropologist 67: 3-32.

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De acordo com o Regulamento da FDUNL,a nota final de uma disciplina nuncapode ser inferior à classificaçãoobtida num exame escrito como o quese segue. Apesar de o mesmoRegulamento não permitir qualquerformas de controlo da assiduidade dosalunos às aulas, convido por normatodos os discentes a preparar aapresentar durante o semestre, atítulo voluntário, um trabalho sobreuma das sessões previstas; e émuitíssimo raro alunos decidirem nãoo fazer – nunca mais de um discentepor ano encontra para tanto0 umaexcusa. Estes trabalhos (em cujaprepação colaboro muitas vezesintensamente) formam a base desessões participadas em que os temassão discutidos pelo colectivo dealunos: A preparação dos trabalhos(em que colaboro), a apresentação e a

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discussão deles formam três momentossuplementares que me permitemconseguir uma melhor avaliação deconjunto de cada um dos discentes queescolhem a minha disciplina.A título de exemplo, incluo nesteEstudo uma transcrição do enunciadodo exame apresentado aos alunos nofinal do 2º semestre do ano lectivode 2000-2001.

Escolha duas das seguintes questões edesenvolva-as como tema:

1."As etnografias relativas àresolução de conflitos publicadasnos anos 50 e 60 estão de talmaneira permeadas de “modelos deadvogados” [lawyer’s models] sobrelitígios, que acabam por seriamentedistorcer os processos quepretendem descrever” (SimonRoberts). Desenvolva o tema,ilustrando-o com pelo menos doisexemplos etnográficos.

2.“Um conhecimento detalhado dascategorias culturais e dos quadros

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discursivos locais que subtendem umqualquer sistema jurídico éimprescindível para uma plenacompreensão deste”. Discuta,aludindo a pelo menos dois exemplos.

3.“As práticas jurídicas são tantomais compreensíveis quanto maistomarmos em linha de conta os seuscontextos sociopolíticos”. Concordeou discorde, utilizando ilustraçõesrelativas a pelo menos dois casosportugueses.

4.“As formas concretas assumidastanto pelas instituições quantopelas formulações ‘jurídicas’ e‘políticas’ variam, em Portugal, depar com os quadros socioculturaislocais específicos em que seintegram”. Argumente contra ou afavor desta asserção, iluminando asua posição com pelo menos doisexemplos empíricos, relativos aopresente ou ao passado.

Lisboa, 28 de Junho de 2001

670

IX

BIBLIOGRAFIA GERAL DESTE ESTUDOPara além de todas as referênciasbibliográficas que constam doPrograma que apresentei, utilizei osseguintes textos no presentetrabalho:

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