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Verônica de Freitas Rolandi ESTEREÓTIPOS: UMA PORTA DE ENTRADA NO PROCESSO DE AQUISIÇÃO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA Os estereótipos veiculados pela mídia e o seu papel na aquisição do Espanhol/Língua Estrangeira no Brasil Relatório Final de Iniciação Científica Apresentado à FAPESP Instituição: Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Início da bolsa de IC: 01dez03 Término: 30out05 Orientadora: Profª Drª Neide T. Maia González Orientanda: Verônica de Freitas Rolandi São Paulo 10 de setembro de 2005

Estereótipos uma porta de entrada para aquisição do Espanhol Língua Estrangeira

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Verônica de Freitas Rolandi

ESTEREÓTIPOS: UMA PORTA DE ENTRADA NO

PROCESSO DE AQUISIÇÃO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA

Os estereótipos veiculados pela mídia e o seu papel na

aquisição do Espanhol/Língua Estrangeira no Brasil

Relatório Final de Iniciação Científica

Apresentado à FAPESP

Instituição: Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas

Início da bolsa de IC: 01dez03 Término: 30out05

Orientadora: Profª Drª Neide T. Maia González

Orientanda: Verônica de Freitas Rolandi

São Paulo

10 de setembro de 2005

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Pois bem, Kósta, há quem aprecie o exótico, disse Kriska. Exótico?

Como, exótico? É que o poema não parece húngaro, Kósta.

O que dizes? Parece que não é húngaro o poema, Kósta.

Não me ofenderam tanto as palavras, quanto a cândida maneira com que

Kriska as pronunciou.

E disse mais: é como se fosse pronunciado com acento estrangeiro,

Kósta.

Chico Buarque, Budapeste.

Demasiadas palavras

pra que impulso de vida

travadamente na ideologia...

Caetano Veloso, Prenda Minha.

3

Sumário

1 Introdução .........................................................................................................................5

1.1 Resumo do plano inicial.............................................................................................5

1.1.1 Histórico da pesquisa ..........................................................................................6

1.1.2 Resumo do que foi realizado até o presente momento .......................................6

2 Problematização dos termos .............................................................................................9

2.1 A acepção comum do termo estereótipo ....................................................................9

2.1.1 O início do questionamento do caráter pejorativo do estereótipo.......................9

2.1.2 A bivalência constitutiva da noção de estereótipo ............................................12

2.1.3 O uso indiscriminado de estereótipo e clichê ...................................................15

3 Ideologias e não teorias ...................................................................................................16

3.1 Por que ideologia?....................................................................................................16

3.1.1 A noção de ideologia ........................................................................................18

3.1.2 As determinações ideológicas ...........................................................................22

4 Análise do discurso .........................................................................................................24

4.1 Breve introdução sobre a Análise do Discurso ........................................................24

4.1.1 Ideologia e Análise do Discurso: mais uma vez o conceito de ideologia .........28

4.1.2 Althusser e os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE)....................................32

4.1.3 O professor à luz da Análise do Discurso .........................................................34

5 Considerações sobre a L1 e a L2 ....................................................................................36

5.1 Vigotski: do social para o individual .......................................................................37

5.1.1 Bakhtin: tudo o que é ideológico é um signo ....................................................39

5.1.2 Blikstein: a fabricação da realidade ..................................................................41

5.1.3 As etapas de aquisição de uma língua estrangeira ............................................46

5.1.4 Existiria uma porta de chegada? .......................................................................53

6 Análise do corpus ............................................................................................................56

6.1 Hipérbole em Los 3 Amigos ....................................................................................56

6.1.1 Latin lover: uma visão americana .....................................................................62

6.1.2 A Telenovela e seus tipos sociais......................................................................66

6.1.3 Novela Kubanacan: estereótipo de desorganização política .............................74

6.1.4 Carmen Miranda: símbolo de um continente ....................................................78

6.1.5 Os estereótipos vão se “descristalizando” historicamente ................................85

6.1.6 Português do Brasil língua vernácula. Espanhol língua veicular. .....................88

7 À guisa de conclusão .....................................................................................................94

8 Bibliografia .....................................................................................................................99

8.1 Referências bibliográficas ........................................................................................99

8.2 Bibliografia consultada ..........................................................................................101

9 Anexos ..........................................................................................................................104

4

Índice das ilustrações

Gráfico 1 - interação língua/práxis. (Blikstein 1985:81). ..................................................45

Gráfico 2 - duplicação do corredor de percepção/cognição, onde L1 exerce o papel de

filtro do corredor de L2. .....................................................................................................48

Gráfico 3 - outra possibilidade para a duplicação do corredor de percepção-cognição. O

filtro L1, no entanto, entra em ação no momento em que já houve fabricação da realidade.49

Gráfico 4 - substituição do corredor de L2 pelo corredor de L1. ......................................50

Capa de “Los 3 Amigos: sexo, drogas y guacamoles.” Edição especial que reúne

quadrinhos publicados na Folha de SP. .............................................................................57

Quadrinho “Donde fica Mirasales.” ..................................................................................59

Atlético de Marisales X Miguelitos sport club. .................................................................61

O gato de botas, sua inicial feita com sua espada numa árvore e saindo com duas

mulheres, no final do filme, representando assim o seu final feliz. ...................................63

El Vampiro Vingador .........................................................................................................67

El Vampiro Vingador e a Srta, Amelie ..............................................................................68

Eulália e a mãe. ..................................................................................................................71

(a) Santinha com o povo e (b) Santinha, Coronel e a Senhora. .........................................76

Militares. ............................................................................................................................77

Aurora Miranda, irmã de Carmen Miranda, no filme “Você já foi à Bahia. The Three

Caballeros”. ........................................................................................................................79

Cenas do filme “Você já foi a Bahia?” ..............................................................................80

Cartaz do filme “The Three Caballeros”. ..........................................................................80

(a) Pateta como texano. (b) e (c) Pateta como gaucho argentino. ......................................81

Donald no México..............................................................................................................83

Aquarela inspirada no Rio de Janeiro ...............................................................................84

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1 Introdução

1.1 Resumo do plano inicial

O objetivo deste trabalho consiste basicamente em refletir sobre a função

dos estereótipos na aquisição de línguas estrangeiras, sendo, neste caso

específico, a aquisição da língua espanhola por alunos brasileiros a base para a

pesquisa. Considerando a noção de “Bivalência Constitutiva da Noção de

Estereótipo”, nascida com Walter Lippmann em 1922 e retomada pelos

Psicólogos Sociais norte-americanos na década de 50, vemos os estereótipos

como imagens, representações cristalizadas, sistemas pré-existentes através

dos quais cada um filtra a realidade ao redor. Portanto, este estudo considera

que os estereótipos cumprem um papel fundamental nos processos de cognição

dos signos, sendo, desse modo, indispensáveis e benéficos nesse processo.

Admitimos, no entanto, que pode haver nocividade em algumas imagens

estereotipadas, porém preferimos relacionar tais imagens à noção de ideologia.

A nossa intenção é, a partir do gráfico de fabricação da realidade de Blikstein

(1985), estabelecer possibilidades de etapas percorridas pelo indivíduo aprendiz

na aquisição de uma língua estrangeira, porém, fixando-nos em duas etapas em

particular: em primeiro, na etapa da estereotipia, em segundo, na etapa da

ideologização. De modo prático, o nosso estudo consiste em, a partir das

imagens estereotipadas veiculadas pela mídia brasileira acerca da língua

espanhola e dos seus falantes, observar possibilidades de estabelecer os

estereótipos como aliados do professor de espanhol como língua estrangeira,

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assim como possibilidades de os mesmos passarem a trabalhar na contramão

do objetivo de desfazer o “efeito de indistinção histórica” (Celada, 2002) a que as

línguas espanhola e portuguesa estiveram submetidas durante muitas décadas.

Palavras-chaves: aquisição/aprendizagem, espanhol língua estrangeira,

estereótipos, ideologia.

1.1.1 Histórico da pesquisa

Esta pesquisa teve início no dia primeiro de dezembro de 2003, tendo

como data marcada para o seu término o dia trinta e um de maio de 2005. Em

um ano de pesquisa, foram entregues à FAPESP três relatórios, o primeiro no

dia dez de maio de 2004, o segundo no dia 10 de setembro de 2004 e o terceiro

no dia 10 de março de 2005. Todos aprovados com parecer muito favorável da

assessoria, que concedeu inclusive uma extensão de prazo para a sua

conclusão.

O caminho que viemos percorrendo não foi linear e logo na definição de

termos e de teorias empregadas é possível observar as oscilações pelas quais

passamos na busca de um caminho melhor para entender o nosso objeto.

Durante a pesquisa procuramos deixar claro desde as dificuldades encontradas

até as novas inquietações dela resultantes. Neste relatório final, mantivemos

todo esse percurso e acrescentamos, finalmente, as conclusões obtidas

chegado este ponto determinado da pesquisa. O que significa dizer que,

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considerando as limitações próprias de uma iniciação científica, vamos arriscar

pequenas hipóteses acerca dos estereótipos e da aquisição/aprendizagem do

Espanhol língua estrangeira por indivíduos brasileiros.

1.1.2 Resumo do que foi realizado até o presente momento

O primeiro relatório, entregue no dia 10 de maio de 2004, foi basicamente

uma justificação dos termos e das bases teóricas escolhidas. Foram

apresentados, com este fim, dois capítulos, nos quais problematizamos os

termos – estereótipo, ideologia e clichê – levando em consideração várias

correntes e definições e, finalmente, defendemos a corrente e os termos que

passamos a assumir a partir daqui. Em seguida, fizemos considerações com

relação à aquisição de língua materna (L1) para reforçar, então, as diferenças

que a aquisição de língua estrangeira guarda em relação àquela primeira.

Escolhemos a teoria sócio-interacionista do psicólogo Vigotski (1998) 1. por

acreditarmos que esta seja uma teoria que corrobora a tese que estamos

propondo, já que defende a relação indivíduo-sociedade, além do caráter

lingüístico e social da consciência. Além disso, estamos nos apoiando nos

estudos de cognição e fabricação da realidade de Blikstein (1985). Finalmente,

levantamos a possibilidade de trazer para nossa discussão a Análise do

Discurso de linha francesa, nos termos de Orlandi (2000), que também dão

1 A obra de Vigotski à qual nos referimos é Pensamento e Linguagem, publicada postumamente,

em 1934, na URSS. A edição traduzida ao português, da editora Martins Fontes, de 1998, que estamos

utilizando neste trabalho, foi feita a partir da versão reduzida Thought and Language, editada nos EUA em

1962.

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suporte aos trabalhos de Celada (2000,2002), nos quais nos apoiamos para

algumas de nossas hipóteses de partida.

Os estudos de Análise do Discurso, o aprofundamento da teoria sócio-

interacionista de Vigotski, o estudo da teoria enunciativa de Bakhtin, o

questionamento que nos foi colocado pela Análise do Discurso com relação ao

que defendemos por ideologia e, por último, a leitura de artigos de

pesquisadores que fazem uso da Análise do Discurso com o fim de interpretar

estereótipos diversos foram de fato os assuntos nos quais nos detivemos nesses

últimos quatro meses.

Foram aprofundados, sobretudo na fase do penúltimo relatório, os

seguintes pontos: como pretendemos trabalhar com a Análise do Discurso;

algumas considerações sobre a ideologia em particular; reflexões sobre a

aquisição de língua materna, bem como três propostas de gráficos que,

baseados nos estudos de Blikstein (1985), representarão visualmente a hipótese

de etapas de aquisição de língua estrangeira.

Também, para que melhor seja entendido o nosso dispositivo analítico,

iremos analisar tipos distintos do corpus multimídia que selecionamos. O terceiro

relatório foi, basicamente, a análise de diferentes formas de estereótipos. Sendo

assim, foram analisadas: histórias em quadrinhos, cenas de telenovelas, notícias

de jornal e propagandas. Essas analises têm o caráter qualitativo, sem nenhum

objetivo quantitativo.

O nosso objetivo final é submeter parte desse corpus qualitativo aos

gráficos de aquisição de língua estrangeira. Nesse sentido, optamos por nos

9

deter em significados que possam estar guardados nas hipóteses de gráficos

que levantamos, como por exemplo a imagem do filtro ou da transferência de L1

para L2. No caso do corpus, ocorreu que, muitas vezes, esses exemplos não

puderam demonstrar, em si mesmos, as etapas, no entanto, cada estereótipo

analisado seria, diante da perspectiva que estamos propondo, uma porta de

entrada para uma nova cultura, um novo saber, ou, por outro lado, uma redução

tão sedimentada que, em lugar de abrir uma porta, nos distancia desta.

É importante esclarecer que não temos a intenção de sugerir análises

sensacionalistas acerca dos estereótipos, pelo contrário, é nossa intenção

sugerir uma naturalização da forma de ver o estereótipo, assim como tratar da

sua obrigatoriedade e, finalmente, destacar a possibilidade de abalar os

estereótipos historicamente.

2 Problematização dos termos

2.1 A acepção comum do termo estereótipo

Conforme relatam Amossy & Pierrot em seu livro Estereotipos y clichés

(2001)2, faz parte de um saber popular compartilhado a relação entre

estereótipo, frases feitas, lugar comum e clichê, não existindo uma linha divisória

entre esses termos. É, inevitável, portanto, a impressão negativa que esses

termos produzem.

2 O original francês Stéréotypes et Clichés, editado pela Nathan, é de 1997, mas estamos usando a

tradução ao espanhol Estereótipos y Clichés, lançada em 2001 na coleção Enciclopedia Semiológica pela

editora argentina Eudeba.

10

Inicialmente, estereótipo se referia às obras artísticas – “obra estereótipo”

– que eram impressas com ferros cujos caracteres não são móveis e que se

conservam para novas tiragens. Se nos remetemos à própria etimologia da

palavra estereótipo, podemos ver que estereos em grego significa sólido.

Durante todo o século XIX, este sentido se manteve, só posteriormente surgiu o

sentido metafórico ligado à arte, não mais em relação à forma de produção, mas

com valor estilístico. Larousse (1869, apud Amossy & Pierrot, 2001)

recomendava evitar frases estereotipadas na literatura, pois estas eram a sua

desgraça. Foi dessa forma que a palavra estereótipo foi usada, pela primeira

vez, com caráter pejorativo.

2.1.1 O início do questionamento do caráter pejorativo do estereótipo

O uso pejorativo se manteve durante todo o século XIX, até o início do

século XX, quando Walter Lippmann, em 1922, definiu o termo tomado da

linguagem corrente como as imagens da nossa mente que mediam a nossa

relação com o real. Segundo Lippmann (1922, apud Amossy & Pierrot, 2001), os

estereótipos são indispensáveis para a vida em sociedade, isso porque pensar

cada ser em sua especificidade, sem generalizar, seria algo esgotante e

praticamente impensável. Cada ser humano, quando apreende, de acordo com

essa visão, um novo objeto, faz uso dos estereótipos, isto é, interpreta traços a

partir de algum outro objeto já conhecido, que obviamente não é igual ao novo

objeto e, finalmente, completa esse processo com estereótipos que a sua práxis

permitiu que estivessem em sua mente.

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Essa definição foi logo criticada por psicólogos sociais norte-americanos

que, fiéis à acepção comum do termo, acreditavam que o estereótipo, à medida

que generaliza e categoriza, simplifica e recorta o real, tende a levar ao

preconceito. John Harding (1969: 259, apud Amossy & Pierrot, 2001: 33) na

Encyclopédie Internationale des Sciences Sociales, define o termo

pejorativamente: “mais simples que complexo, mais errôneo que correto,

adquirido de segunda mão e que resiste a mudanças”.

A situação voltou a mudar nos anos 50, quando outra corrente de

psicólogos sociais norte-americanos questionou os critérios de desvalorização

do estereótipo. Para estes, sem dúvida, o estereótipo constitui um juízo não

crítico sobre algo, um saber de segunda mão, mas, ao mesmo tempo, apontam

que esse mesmo processo permeia um conjunto importante de conhecimentos e

crenças de nossa cultura, como, por exemplo, que Cristóvão Colombo descobriu

a América. As autoras (ibid: 33) lançam, então, a seguinte questão:

“El estereotipo está cristalizado y es rígido, pero la mayoría de los

conceptos y de las creencias compartidas, ¿no dan muestras de una gran

estabilidad que les impide ser fácilmente modificadas?”

Na década de 70, a cognição social passa a fazer parte de forma

categórica da psicologia social. Os estudiosos cognitivos consideram que

recorrer aos estereótipos é um procedimento “normal” e se propõem, então, a

explorar o papel dos estereótipos no processo cognitivo habitual, em particular

na aquisição, na elaboração e armazenamento das informações.

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Blikstein (1985) pega emprestado de Adam Schaff o termo “óculos

sociais” e classifico os estereótipos de padrões perceptivos ou “óculos sociais”,

com os quais “vemos” a realidade. Em seu livro Kaspar Hauser ou a Fabricação

da Realidade (1983), o autor também cita o pensamento de Hall (1977, apud

Blikstein 1983: 75) “(...), segundo o qual pessoas de culturas diferentes não

apenas falam línguas diversas, mas, o que é talvez mais importante, habitam em

diferentes mundos sensoriais (...)”.

Por tudo isso, o autor defende que conhecer o processo de estereotipia

na aquisição de línguas estrangeiras seria por si só apreender/adquirir.

No entanto, ainda que estudiosos como Blikstein alertem para a

necessidade de se quebrar o paradigma positivo/negativo e exista hoje uma

corrente que trate o estereótipo apenas como fenômeno do processo de

conhecimento, isto é, obrigatório e inevitável no processo de cognição; essa

reavaliação nunca substituiu completamente a visão pejorativa do estereótipo.

Curiosamente, coexistem hoje os dois pontos de vista, o que, segundo Amossy

& Pierrot (2001: 34), corresponderia ao que as autoras classificam de bivalência

constitutiva da noção de estereótipo no pensamento contemporâneo.

2.1.2 A bivalência constitutiva da noção de estereótipo

Ecléa Bosi, em A Opinião e o Estereótipo (1977), afirma que, para haver o

desejo de “habitar plenamente”, é preciso haver “uma recusa do que já foi

reconhecido sem a nossa aquiescência e experiência”; a estereotipia passa a

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ser, assim, um processo de “facilitação e inércia” e, vistos desse modo, os

estereótipos são aquilo que nos leva, inevitavelmente, às ideologias.

Porém, não pensamos exatamente dessa forma. Diferentemente da

concepção da Psicologia Social, fiel à acepção comum do termo, acreditamos

que sem o estereótipo permaneceríamos eternamente no “fluxo nebuloso” que é

o real.

E. Bosi (ibid: 97-8) descreve o novo assim:

“Quando entramos em um ambiente novo, estimulação complexa,

passamos por instantes de atordoamento. Tudo é uma mancha confusa

que hostiliza os sentidos. Aos poucos, as coisas se destacam desse

borrão e começam a nos entregar um significado, à medida da nossa

atenção. É o trabalho perceptivo, que colhe as determinações do real, as

quais se tornam estáveis para o nosso reconhecimento, durante algum

tempo. Essa colheita perceptiva, relação de trabalho e de escolha entre o

sujeito e o seu objeto, pode sofrer um processo de facilitação e de

inércia. Isto é, colhem-se aspectos do real já recortados e

confeccionados pela cultura. O processo de estereotipia se apodera da

nossa vida mental”.

Diferentemente de Ecléa Bosi (ibid.), na linha que escolhemos, nascida

com Walter Lippmann em 1922 e retomada pelos Psicólogos Sociais norte-

americanos na década de 50; os estereótipos são vistos como imagens,

representações cristalizadas, sistemas pré-existentes através dos quais cada um

filtra a realidade ao redor.

Os estereótipos, dessa forma, representam um momento de luz diante do

fluxo embaçado do real novo. Para nós, no momento em que as imagens se

vero
vero

14

tornam estáticas, isto é, momento em que se tornam universais, é que

chegamos indiscutivelmente a uma interpretação que se impõe como final,

fechada; ao que tudo indica, este é o momento em que o estereótipo passa a ser

uma ideologia.

A noção de Bivalência Constitutiva parte da idéia de que os estereótipos

têm duas facetas: uma útil e outra nociva, nas palavras de Leyens (1996: 30,

apud Amossy & Pierrot, 2001: 54). Nesse sentido, defendemos que os

estereótipos são úteis, não só porque fazem parte da cognição, mas também

porque sem eles esta seria impossível. Por outro lado, são nocivos no momento

em que se tornam estáticos, isto é, no momento em que passam a ser uma

ideologia. De qualquer modo, será necessário também ponderar se é possível

ou não evitarmos que isso ocorra. A Análise do Discurso, no entanto, próximo

modelo teórico que vamos passar a considerar como uma ferramenta para a

nossa análise, certamente nos levará, num momento posterior, a colocar em

cheque essa possibilidade que temos ou não de intervir nesses processos. A

noção de formação discursiva será, posteriormente, desenvolvida para dar conta

desta questão.

O que temos claro neste momento é a necessidade de generalização

para que haja recorte do real. Vigotski (2003: 6-8) afirma o seguinte sobre a

necessidade de generalização:

“(...) no pensamento está presente um reflexo generalizado da realidade,

que é também a essência do significado da palavra (...). De acordo com a

descrição perspicaz de Edward Sapir, o mundo da experiência precisa

15

ser extremamente simplificado e generalizado antes que possa ser

traduzido em símbolos.”

Se no pensamento e nos signos está presente a generalização, então o

recorte do real só é possível se antes houver uma generalização do real. Tendo

o estereótipo, por excelência, a função de generalizar o real desconhecido,

poderíamos pensar que é ele que cumpre essa função. Assim, as imagens

fragmentadas e reduzidas do outro são o início de um processo de

reconhecimento. De um reconhecimento que, na verdade, é antes uma

interpretação, igual à estabelecida diante de qualquer objeto real. Como afirma

Blikstein (1983: 48), “(...) é o ponto de vista que cria o referente. A semiose

irrompe entre a realidade e o referente.”

Por tudo isso, o estereótipo, ainda que sendo uma imagem cristalizada,

quando explorado como uma etapa no processo de aquisição, pode ter um efeito

positivo, pode representar um ponto de apoio para desencadear o processo.

Mas quando esta imagem cristalizada torna-se ponto de chegada, resposta final

e absoluta, não submetida a interpretações, análises, crítica, passamos para o

campo da ideologia e esta pode chegar a ser nociva. O estereótipo, portanto,

pode cumprir duas funções: a de porta de entrada para a cognição e a de porta

de chegada desta e seu fechamento para um outro tipo de relação com o objeto

de nosso conhecimento.

Em síntese, tendemos a aceitar a “bivalência constitutiva da noção de

estereótipo” e, portanto, o caráter complexo da noção de estereótipo, que nasce

no pensamento contemporâneo com os psicólogos sociais norte-americanos. E

16

apoiando-nos em Lippmann (ibid.), acreditamos, sim, que os estereótipos são

indispensáveis para a aquisição do signo.

2.1.3 O uso indiscriminado de estereótipo e clichê

A literatura que emprega os termos estereótipo e clichê faz, na maioria

das vezes, um uso indiscriminado desses dois termos. Quando não o faz,

escolhe apenas um deles, o estereótipo, para discorrer sobre imagens pré-

estabelecidas e reduções. Isto porque “el estereotipo comparte con el cliché su

origen tipográfico” (Amossy & Pierrot 2001: 30). Não há exatamente uma

fronteira clara que separe de modo prático esses dois termos.

O cliclê é usado, preferencialmente, para fazer referência a obras de arte.

Amossy & Pierrot (ibid.) citam exemplos canônicos de metáforas, como “vida

tempestuosa” e “mais branco que a neve”, encontradas em Fontanier, Les

Figures du Discours (apud, Amossy & Pierrot, 2001); e concluem: “lo que en la

retórica clásica era un modelo de tropo se transformó para nosotros en el colmo

del cliché” (ibid.: 13).

No século XIX, a imprensa inventa um novo procedimento de reprodução

em massa de um modelo fixo, chamado procedimento do clichê ou do

estereótipo. Em 1865, a palavra clichê passa a ser utilizada no campo da

fotografia para designar o negativo a partir do qual se pode tirar um número

indefinido de copias. Logo, por extensão, em 1869, a palavra já passou a

denominar “familiarmente” uma frase feita, um pensamento trivial.

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Com efeito, não é difícil encontrar autores que usem os termos clichê e

estereótipo como sinônimos, sendo a identificação tão grande a ponto de

concepções contemporâneas acerca dos estereótipos terem sido transferidas

aos clichês.

É possível perceber, como já foi dito, minúcias que diferenciariam clichês

e estereótipos, tais como temas a que costumam estar relacionados, que é o

caso da literatura com relação ao clichê. Porém, tais minúcias são

constantemente eliminadas devido à “nítida zona de intersecção” que existe

entre esses termos, nas palavras de Leandro Ferreira (1993: 70):

“De uma forma de impressão o termo passa a significar, por extensão,

aquilo que parece chapa, que é sempre igual, fixo, inalterável e, portanto,

estereotipado. Daí, pois, a aproximação com o conceito de estereótipo,

originariamente uma forma compacta obtida através do processo de

estereotipia. Pelo que se viu neste breve histórico, clichê e estereótipo

convivem harmoniosamente no mesmo campo semântico, apresentando

nítidas zonas de intersecção”.

Nesta pesquisa, em particular, preferimos abandonar o termo clichê, por

serem os objetivos da pesquisa as etapas da cognição e aquisição dos signos

em geral. Acreditamos que esta decisão nos será favorável, no sentido de que

estaremos, assim, nos referindo mais especificamente ao papel cognitivo da

noção de estereótipo.

3 Ideologias e não teorias

18

3.1 Por que ideologia?

Com base na definição bivalente de estereótipo, coloca-se diante de nós

a necessidade de refletir a função dos estereótipos na aquisição/aprendizagem

do Espanhol como língua estrangeira, já que admitimos que os estereótipos

cumprem um papel fundamental nos processos de cognição dos signos, sendo,

portanto, indispensáveis e benéficos nesse processo. Isso, no entanto, não

exclui, ao nosso ver, que algumas imagens estereotipadas possam cumprir um

papel mais nocivo na prática. Nesse sentido, admitimos que os estereótipos

possam, em determinados casos, assumir a sua faceta nociva, em outras

palavras, a sua acepção comum.

Observamos, tendo em mente esse ponto em específico, que a língua

espanhola tem passado historicamente por um processo de ampliação do seu

espaço de destaque, nos últimos anos, devido a motivos políticos e econômicos.

Constata-se, sobre essa língua e seus muitos falantes, a experiência de

inúmeros exemplos de generalizações e reducionismos conseqüentes da

ignorância mútua que, durante décadas, caracterizou a relação entre os

brasileiros e os hispanofalantes, com suas respectivas línguas e culturas.

Os questionamentos que trazemos aqui, isto é, os questionamentos

acerca da nocividade ou não do estereótipo, nascem do texto de Celada &

González Los Estudios de Lengua Española em Brasil (2000). Segundo

González, responsável pela primeira parte do texto (2000: 37),

19

“(...) gran parte de los trabajos sobre el español en el Brasil se han

apoyado –más que sobre teorías – sobre creencias raramente

cuestionadas, lo que en los términos de Bosi (1995) sería lo mismo que

decir ideologías, o sea predefiniciones, presunciones, prejuicios de varios

tipos acerca del carácter de esa lengua y de sus relaciones con la que se

por aquí se habla (...).”

Não podemos ignorar, portanto, que pode haver certa natureza pejorativa

em determinadas imagens estereotipadas, porém preferimos introduzir o

conceito de ideologia e relacionar essas imagens à noção de ideologia marxista

que González empresta de A. Bosi.

As imagens exploradas pelos meios de comunicação de massa veiculam

e fixam, muitas vezes, casos de “predefiniciones, presunciones, prejuicios de

varios tipos” acerca do universo hispânico. Sendo assim, pretendemos observar

de que forma esses estereótipos podem ser usados como aliados do professor

de espanhol como língua estrangeira e quando estes trabalham na contramão

do objetivo de desfazer o “efeito de indistinção histórica” (Celada, 2002) a que as

línguas espanhola e portuguesa estiveram submetidas durante muitas décadas,

que levou a que durante muito tempo aquela não fosse merecedora de estudos

mais profundos e nem de ensino formal no Brasil.

Já que a mídia é um difusor de imagens em potencial, pretendemos

pensar se há possibilidade de manter as imagens no processo de estereotipia

evitando, assim, o processo de ideologização. Nesse sentido, caberia nos

perguntarmos qual seria o papel do professor, já que este também é um possível

difusor de ideologias.

20

É nossa intenção estabelecer possibilidades de etapas percorridas pelo

indivíduo aprendiz na aquisição de uma língua estrangeira. A partir de algumas

idéias de Blikstein (1985), pensamos em tais etapas, porém, fixando-nos em

duas delas em particular: em primeiro lugar na etapa da estereotipia e em

segundo na etapa da ideologização.

3.1.1 A noção de ideologia

Para A. Bosi (1995: 9), “A ideologia reduz, uniformiza os segmentos que

reduziu, generaliza, oculta as diferenças, preenche as lacunas, as pausas, os

momentos descontínuos ou contraditórios da subjetividade”. Esse é um ponto

comum entre o pensamento de A. Bosi e o de Chauí (1990: 87-8), que a partir

das reflexões de Marx e Engels sobre ideologia, afirma que

“(...) a ideologia simplesmente cristaliza em ‘verdades’ a visão invertida

do real. Seu papel é fazer com que no lugar dos dominantes apareçam

idéias ‘verdadeiras’. Seu papel também é o de fazer com que os homens

creiam que essas idéias são autônomas e que representam realidades

autônomas.”

Chauí (ibid.: 114-5) ainda afirma que

“(...) ela [a ideologia] é coerente (...) apenas porque não diz tudo e não

pode dizer tudo. Se dissesse tudo se quebraria por dentro. Assim, uma

ideologia que fosse plena ou que não tivesse ‘vazios’ e ‘brancos’, isto é,

que dissesse tudo, já não seria ideologia.”

21

A partir dessa perspectiva, o ponto chave no qual nos baseamos para

diferenciar ideologia de estereótipo – dois fenômenos distintos que, no entanto,

fazem uso das mesmas imagens – é o caráter que assume a primeira, de

verdade absoluta que preenche todos os espaços vazios de um signo a ser

adquirido e que em seguida se congela, não permitindo questionamentos

capazes de iluminar o todo nebuloso do real. Sendo assim, a ideologia é capaz

de nos manter num todo absoluto; a ideologia nos mantém constantes e

estáticos, por isso é, também, reponsável por silêncios sociais imprescindíveis

para uma economia nas comunicações e nas relações humanas.

Resumindo, se por um lado o estereótipo auxilia no processo de

percepção/cognição sem nos prender dentro dele próprio, faz parte do saber

popular reconhecer no estereótipo o seu caráter reducionista e simplificador,

indentificamos no estereótipo, quase que facilmente, uma faceta que o torna não

merecedor de uma confiança livre de questionamentos. Essa falta de

ingenuidade que temos diante das imagens estereotipadas talvez seja fruto da

acepção comum de estereótipo determinada historicamente (tratada no capítulo

2.1). Em outras palavras, acreditamos que o estereótipo permite movimentação,

visto que é comum lançarmos mão dele com a certeza de que não é o ideal.

No caso da ideologia, uma grande inquietude nascida das nossas

reflexões acerca das etapas de aquisição do signo, tem se tornado cada vez

mais perturbadora: será que o mesmo que ocorre com o estereótipo ocorreria

também com ideologia, uma vez que a própria possibilidade de pensar-se fora

22

da ideologia vê-se dificultada se pensarmos na tese de Bakhtin de que o signo

por si só é um produto ideológico.

Ainda segundo Chauí (ibid.: 31),

“(...) a ideologia não é sinônimo de subjetividade oposta à objetividade,

que não é pré-conceito nem pré-noção, mas que é um ‘fato’ social

justamente porque é produzida pelas relações sociais, possui razões

muito determinadas para surgir e se conservar, não sendo um

amontoado de idéias falsas que prejudicam a ciência, mas uma certa

maneira da produção das idéias pela sociedade, ou melhor, por formas

históricas determinadas das relações sociais.”

É por tudo isso que as ideologias são tão difíceis de serem percebidas e

questionadas, justamente por serem “fatos sociais” responsáveis por nossa

inserção num determinado grupo social. É por isso que as ideologias fazem

parte da nossa práxis, conhecidas por ideologias hegemônicas. Chauí define

ideologia hegemônica como,

“(...) fenômeno da conservação da validade das idéias e valores dos

dominantes, mesmo quando se percebe a dominação e mesmo quando

se luta contra a classe dominante mantendo sua ideologia, é o que

Gramsci denomina hegemonia.” (Chauí, 1990: 110).

A hegemonia não é um aspecto positivo ou negativo, também não é

facilmente identificável, porém o conhecimento de novas culturas ou línguas

significa subtrair-se de anteriores juízos de valor para atirar-se ao novo. Isso

significa desconfiar de qualquer idéia que reduz e estar sempre apto a ampliar

23

as interpretações, para constante e gradativamente ir se aproximando o máximo

possível do real, o que não significa que esta seja uma atitude de fato possível.

A ideologia está presente em muitos aspectos da vida social e o fenômeno da

hegemonia é prova de como a ideologia pode dominar as relações sociais.

Temos claro, no entanto, que esse conceito de ideologia não é compartilhado

por outros modelos teóricos aos quais pretendemos submeter nossas análises.

Para a Análise do Discurso AD , sabemos que uma avaliação negativa do

conceito de ideologia é questionável, como também o é a possibilidade de a

evitarmos e de, assim, nos aproximarmos do “real”. Afinal, o que é o “real”?

Bakhtin (2001: 78, apud González Nieto, 2001) afirma que há uma

estreita relação entre a filosofia da linguagem e a base da teoria marxista da

criação ideológica. Para ele,

“El signo, efecto de las relaciones sociales, es un producto ideológico

que, como todo objeto físico – instrumento de producción o producto de

consumo – pertenece a una realidad natural o social, pero además tiene

una referencia a ‘otra cosa’; es decir, refleja y refracta la ideología.”

Podemos concluir, dessa forma, que a ideologia, como quer que a

vejamos, é inseparável da aquisição do signo, já que o significado, por si próprio,

“(...) es inseparable siempre de un contexto de la enunciación que se

compone de la situación social inmediata y de un medio social más

amplio, el horizonte social – las creencias, los valores – del grupo y de la

época”. (Bakhtin, 2001: 81-2).

24

O que significa dizer que o real também é, por sua vez, constituído

ideologicamente e, portanto, não existiria fora da ideologia.

3.1.2 As determinações ideológicas

Uma determinada classe, devido a determinados processos históricos,

desenvolve uma determinada ideologia. Estamos, então, tratando do objeto que

nos ocupa neste projeto, isto é, ideologias determinadas por processos

históricos brasileiros e por falantes de língua materna Português do Brasil; o que

faz dessas ideologias “fatos sociais” em princípio apenas para nós brasileiros.

O caminho aqui sugerido é não ignorar esses “fatos sociais” e se possível

tê-los na porta da estereotipia e sempre que possível destacar o caráter

reducionista de algumas imagens, ainda que sejam fatos sociais. Talvez uma

certa desconfiança acerca de imagens extremamente reducionistas e

constantemente reforçadas pelos meios de massa seja um passo menos

pretensioso do que imaginamos.

Acreditamos, então, que os estereótipos não são passíveis de serem

subtraídos do processo de cognição, uma vez que, de acordo com a teoria que

estamos defendendo, estes fazem parte da percepção/cognição e, por isso, a

obrigatoriedade destes, nas palavras de Blikstein (1983). A idéia dos

estereótipos como “fatos sociais” também deve ser levada em consideração, não

podemos ignorar o fato de que os estereótipos são determinados histórica e

socialmente. Considerando-os, primeiro, indispensáveis à cognição, ou,

25

segundo, fatores histórico-sociais relevantes, entendemos o quão pertinentes

são os estudos acerca dos estereótipos e a necessidade de trazê-los à sala de

aula.

Segundo A. Bosi (1995), é necessário reconhecer a ideologia e, do nosso

ponto de vista, no momento em que assumimos a noção de A. Bosi,

mencionamos a necessidade reconhecê-la, sem esquecer a que grupo social

essa ideologia representa, para então reconhecê-la enquanto estereótipo e

afastá-la enquanto ideologia, sempre que possível, do processo de aquisição de

uma língua. Porém essa atitude, aos poucos, foi sendo revista, à luz da AD e

das demais teorias que trouxemos no decorrer da investigação.

O que motivou tal processo foi não podermos dimensionar, sequer, se um

falante de uma determinada língua é capaz de perceber que certas imagens

acerca de uma cultura estrangeira se mostram extremamente reduzidas. O que

é fato é que, ainda assim, isto é possível. É comum escutarmos um falante

qualquer dizendo, sobre uma interpretação dada de algo novo e desconhecido,

“isso é um estereótipo”, o que significa dizer, que houve uma certa desconfiança

diante do reduzido.

No entanto, no que tange a nossa própria formação social, o

distanciamento pode, muitas vezes, ser-nos favorável. Quem sabe a

complexidade do todo no qual estamos inseridos nos torne menos capazes de

visualizar aquilo que já nos constituiu e determinou. Talvez, nesse sentido, o

todo seja o que chamamos anteriormente de práxis e esta, por sua vez, esteja

26

diretamente relacionada à ideologia, como podemos ver em seguida, no capítulo

5.1.2., intitulado “Blikstein: a fabricação da realidade”.

Neste caso particular da aquisição de uma Língua 2, acreditamos serem

os estereótipos que cumprem o papel de tirar o indivíduo do fluxo nebuloso em

que a falta de “idéias” costuma deixá-lo. Além do mais, a possibilidade que

acreditamos que exista de o falante aprendiz transitar entre as imagens-

estereótipo reforça o seu caráter extremamente funcional. No caso da ideologia,

não sabemos se, em primeiro lugar, o falante de uma L1 tem acesso à ideologia

que permeia uma L2 e, conseqüentemente, não podemos dizer se numa língua

estrangeira recebemos de forma pronta o que é ideológico via signo, por

exemplo, e se, deste modo, as possibilidades de transitar entre ideologias de

diversas culturas seriam consideravelmente restringidas.

4 Análise do discurso

4.1 Breve introdução sobre a Análise do Discurso

Como precisávamos de uma ferramenta que nos auxiliasse na análise do

corpus, optamos pela a Análise do Discurso (AD), primeiro por ser esta uma

disciplina que teoriza a interpretação, segundo porque reúne regiões de

conhecimento que acreditamos serem compatíveis com o estudo que estamos

propondo, apesar das questões que se colocam para nós em relação ao

conceito de ideologia.

Segundo Brandão (1998: 32),

27

“(...) a Análise do Discurso engloba três áreas do conhecimento, são elas:

O materialismo histórico, como teoria das formações sociais e suas transformações.

A lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação.

A teoria do discurso, como a teoria da determinação histórica dos processos semânticos.”

Essas três regiões, que têm como conceito básico formação social, língua

e discurso, são ainda atravessadas por uma teoria da subjetividade de natureza

psicanalítica. Contudo, neste trabalho, não vamos fazer uso da teoria da

subjetividade porque esta, ao nos colocar diante da psicanálise, seguramente

tornará o objeto muito mais complexo e talvez, neste momento específico,

disperse um pouco o assunto que propomos tratar aqui.

Na verdade, buscamos a Análise do Discurso justamente por

problematizar o que defendemos até este ponto. No que diz respeita à Análise

do Discurso, esta teoria será, resumindo, nos termos de Orlandi (2000: 27), o

nosso “dispositivo analítico”, isto é, “o dispositivo teórico já individualizado pelo

analista em uma análise específica”.

Diante das teorias que formam tal dispositivo teórico, pudemos observar

que a AD tem como enfoque primordial a posição sócio-histórica dos

enunciadores, em outras palavras, a relação entre o locutor, seu enunciado e o

mundo. Este dispositivo se coaduna com o que defendemos sobre a aquisição

do signo, ou seja, que a relação do aprendiz com o seu meio social é não só

relevante como inseparável do processo de aquisição de uma língua

estrangeira, que vamos passar a abreviar como L2.

28

Além do meio social, para Bakhtin, que depois é retomado e reformulado

pela AD, o outro (o interlocutor) também exerce um papel fundamental, assim

como o outro, por si próprio, revela as relações entre o que é lingüístico e o que

é social. Nas palavras de Brandão (ibid.: 10),

“(...) o Outro desempenha [um] papel fundamental na constituição do

significado, integra todo o ato de enunciação individual num contexto

mais amplo, revelando as relações intrínsecas entre o lingüístico e o

social.”

Diante disso, podemos então propor a seguinte analogia entre as regiões

que formam o dispositivo analítico da AD e o nosso objeto de estudo: o

estereótipo acerca da língua espanhola e de seus falantes seria o outro, e as

determinações dos processos históricos brasileiros sobre os falantes de língua

materna português do Brasil seriam o lingüístico e o social.

Orlandi (2000: 26) explica que a “AD não estaciona na interpretação,

[mas] trabalha seus limites, seus mecanismos, como parte dos processos de

significação. Também não procura um sentido verdadeiro através de uma

‘chave’ de interpretação”. Esses mecanismos são os que na prática cumprem o

papel de ferramentas de interpretação. São, segundo a síntese da autora (ibid.:

39), três os mecanismos a serem trabalhados. O primeiro é o mecanismo de

antecipação, que permite que todo sujeito tenha capacidade de colocar-se no

lugar em que seu interlocutor ‘ouve’ suas palavras, este mecanismo é inclusive

responsável por dirigir o processo de argumentação; o segundo são as relações

de sentidos, o que significa dizer que não há discurso que não se relacione com

29

outros, isto é, um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados

ou possíveis; e, finalmente o terceiro, as relações de força, que são aquelas

relações que se dão quando ocupamos uma posição no discurso que, por sua

vez, projetará um lugar nesse discurso.

Valendo-nos, portanto, desses mesmos mecanismos procuraremos

observar as condições de produção dos textos que vamos analisar. As

condições de produção compreendem as circunstâncias da enunciação (o

contexto imediato), além do contexto sócio-histórico e ideológico (o contexto

amplo). Todos esses mecanismos atuam no inconsciente e é por isso que

vemos problematizada a idéia de que podemos dominar o nosso discurso.

Estamos falando de esquecimento ideológico,

“(...) ele é da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual

somos afetados pela ideologia. Por esse esquecimento temos a ilusão de

sermos a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos

sentidos preexistentes.” (Orlandi, 2000: 35)

O esquecimento é fruto, por sua vez, da “organização de posições

políticas ideológicas que constituem as Formações Ideológicas FI” que “se

relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito umas

em relação às outras” (Brandão 1995: 38).

Brandão (ibid.: 38) afirma que “as formações ideológicas FI têm

necessariamente como um de seus componentes uma ou várias formações

discursivas FD interligadas. Isso significa que os discursos são governados por

FI”. As FD representam no discurso as FI. O que quer dizer que os sentidos

30

sempre são determinados ideologicamente. Também é necessário observar que

são várias as FD, já que, numa FI dada, as FD serão as condições de produção,

que determinarão aquilo que pode e deve ser dito. Sendo assim, tudo que o

sujeito diz se inscreve numa FD. “As palavras não têm sentido nelas mesmas,

elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem.”

(Orlandi, 2000: 43)

Assim se explica por que a AD é apropriada para a análise do corpus que

escolhemos, mesmo nos obrigando a rever o conceito de ideologia que

adotamos. Coerente, ainda, com o caminho que optamos de ver na aquisição de

língua estrangeira uma determinação sócio-histórica, a AD, mais que isso,

problematizará a questão do domínio que podemos ter sobre o nosso discurso e

submeterá os estereótipos que vamos trazer a questões de determinações

ideológicas e histórico-sociais.

4.1.1 Ideologia e Análise do Discurso: mais uma vez o conceito de ideologia

Pudemos ver que o conceito de ideologia é determinante na AD. Como

afirma Brandão (1995: 38) “os discursos são governados por Formações

Ideológicas”.

Porém, o que parecia simples, vincular o conceito de ideologia de base

marxista à AD, já que esta tem como uma de suas regiões de conhecimento o

materialismo histórico, acabou se mostrando, neste momento da pesquisa, um

pouco problemático, por tudo o que pretendíamos defender neste trabalho

acerca do conceito de ideologia.

31

Orlandi (2000: 45) afirma que “um dos pontos fortes da Análise do

Discurso é re-significar a noção de ideologia a partir da consideração da

linguagem.” O que significa dizer que se encontra na linguagem o mecanismo

de estereotipia.

Até um determinado momento da pesquisa, o conceito de ideologia

estava revestido de uma carga negativa, em função dos termos que

relacionamos a ele. Isto é, por defendermos que a ideologia é o que se separa

da realidade e, portanto, está ligada às noções de erro, ilusão e mentira, a

mesma recebe a carga negativa que atribuímos a tais termos. Essa definição

que vínhamos adotando até aqui é compatível com o que Alfredo Bosi (1995)

distingue como sendo ideologia. Segundo esse autor, como já vimos antes,

“A ideologia reduz, uniformiza os segmentos que reduziu, generaliza,

oculta as diferenças, preenche as lacunas, as pausas, os momentos

descontínuos ou contraditórios da subjetividade.” (ibid.: 9)

Justamente essa noção de ideologia, antagônica ao que entendemos por

teoria, como esclarece A. Bosi em Aula inaugural (1995), foi o estopim desta

pesquisa, quando citada por González (2000: 37) no trecho em que a autora

manifesta sua preocupação em relação ao fato de que os trabalhos sobre a

língua espanhola no Brasil têm se apoiado não em teorias, mas em crenças

raramente questionadas, que nas palavras de A. Bosi seriam o mesmo que

ideologias.

Essa carga negativa, também a encontramos em O que é Ideologia da

filósofa Marilena Chauí (1990). Chauí, a partir das reflexões de Marx e Engels

32

acerca do fenômeno e do conceito da ideologia, leva adiante essa noção

negativa a que estamos nos referindo ao dizer que “a ideologia simplesmente

cristaliza em ‘verdades’ a visão invertida do real” (ibid.: 87).

Nos textos que lemos até o presente momento encontramos duas noções

de ideologia, uma fiel a Marx, como no caso de A. Bosi e de Chauí, a outra

tributária de Marx, como no caso de pensadores como Althusser e Ricoeur, que

tentaram expandir o conceito marxista de ideologia, mas que, ainda assim, têm

como base sólida desse conceito mais amplo o materialismo histórico.

Sendo assim, qual a questão que se coloca aqui? Por que se faz

necessário retomar tudo o que já havíamos dito acerca da ideologia?

Desde o início percebemos que, apesar de possuir um caráter negativo, a

ideologia representava algo maior, já que admitíamos que a ideologia era

inseparável do signo. Com Bakhtin, trouxemos para a discussão uma questão

importante para as nossas hipóteses sobre a aquisição do signo. Nas palavras

de Bakhtin (2001: 78, apud González Nieto, 2001),

“El signo, efecto de las relaciones sociales, es un producto ideológico

que, como todo objeto físico – instrumento de producción o producto de

consumo – pertenece a una realidad natural o social, pero además tiene

una referencia a ‘otra cosa’; es decir, refleja y refracta la ideología.”

No entanto, também nos questionamos sobre o seguinte: ainda que

levemos em consideração uma tendência que “naturalizaria” os efeitos da

ideologia, isto é, ainda que a ideologia seja inseparável do processo de cognição

e indispensável, por que podemos observar, nos meios de massa, por exemplo,

33

o uso da ideologia de forma redutora e negativa? Existiria mais de uma

ideologia, uma maior e hegemônica, que nos constitui falantes de uma

determinada língua, pertencentes a uma determinada classe social, e outra,

talvez, que se estabelece como mantenedora da “ordem vigente”, isto é, que

gera mecanismos de perpetuação?

Como vimos com a AD, as Formações Ideológicas (FI) governam os

discursos e são, portanto, responsáveis por “fenômenos” que permitem a

comunicação entre os seres humanos. Nesse sentido, a proposta de examinar e

recusar “o que foi estabelecido sem a nossa aquiescência e experiência” (E.

Bosi, 1977: 104) de modo que assim possamos, então, evitar ideologias que são

claramente preconceitos com relação ao desconhecido, torna-se complicada

quando colocada diante da AD. Essa é, portanto, a problematização que

estamos identificando: podemos de fato questionar o que é colocado sem a

nossa aquiescência, se a língua, por si só, é formada ideologicamente? Foi por

isso que levantamos, em outros relatórios, a possibilidade de uma nova reflexão.

Nesta estabeleceríamos relações entre a noção de ideologia com a qual

vínhamos trabalhando e a noção de preconceito. O que na prática não se fez

pertinente neste momento da pesquisa.

Porém, a ideologia, como explica Fiorin em Linguagem e Ideologia

(2000), é um fenômeno da divisão da realidade em dois níveis, o da aparência e

o da essência (nível superficial e profundo, respectivamente, para a Semiótica).

Fiorin defende que a partir do nível fenomênico da realidade é que se constroem

as idéias dominantes de uma dada formação social e que a esse conjunto de

34

idéias, que justificam e explicam a ordem social, é que comumente chamamos

de ideologia.

No entanto, somos capazes de pensar a linguagem e de pensar os níveis

da realidade e, sendo assim, muitas vezes somos capazes de nos colocar no

nível profundo da realidade. Portanto, somos capazes de pensar a ideologia. E

não é isso que estamos fazendo agora? Não é essa a proposta da Análise do

Discurso, pensar o nível profundo da linguagem? As determinações ideológicas

não são imutáveis, podemos perceber com uma análise histórica que as

determinações sociais sofrem alterações, mesmo que ínfimas, é fato que há

transformação social.

Portanto,

“Comunicar é também agir num sentido mais amplo. Quando um

enunciador reproduz em seu discurso elementos da formação discursiva

dominante, de certa forma, contribui para reforçar as estruturas de

dominação. Se se vale de outras formações discursivas, ajuda a colocar

em cheque as estruturas sociais. No entanto, pode-se estar em oposição

às estruturas econômico-sociais de uma maneira reacionária, em que se

sonha fazer voltar o mundo que não mais existe, ou de uma maneira

progressista, em que se deseja criar um mundo novo. Sem pretender que

o discurso possa transformar o mundo, pode-se dizer que a linguagem

pode ser instrumento de libertação ou de opressão, de mudança ou de

conservação.” (Fiorin, 2002: 74)

Apontando, analisando, compreendendo a ideologia que permeia as

imagens que vamos estudar em nosso corpus, poderíamos nós contribuir para

35

uma transformação ou pelo menos apontar para a necessidade de que esta se

dê, de alguma forma?

4.1.2 Althusser e os Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE)

Como pudemos observar, a ideologia é capaz de gerar mecanismos de

perpetuação da ideologia dominante. Considerando isso, acreditamos pertinente

a nossa discussão acerca da noção de ideologia tratar dos Aparelhos

Ideológicos do Estado.

Althusser, em Ideologia em Geral (1970, apud Brandão, 1995: 22-3)

afirma que a ideologia tem uma existência porque existe sempre num aparelho e

na sua prática ou suas práticas. O que leva a concluir que a prática só existe

numa ideologia e através de uma ideologia. Com essa objetivação, a ideologia

passa a adquirir, mais uma vez, um caráter moldador das ações. Antes

identificávamos este caráter num eixo mais amplo, a ideologia é moldadora da

linguagem, agora parece que, de modo mais objetivo, a identificamos em

aparelhos do Estado. Althusser (apud Brandão, ibid.: pág 23), afirma que a

classe dominante, para manter-se nesse estado, gera mecanismos de

perpetuação; são eles: os Aparelhos Repressores do Estado (ARE) (o governo,

a administração, o exército, a política, os tribunais e etc.) e os Aparelhos

Ideológicos do Estado (AIE) (que compreendem instituições como a religião, a

escola, a família, a cultura, a informação e etc.). Tais aparelhos, que intervêm

via repressão ou ideologia, forçam a classe dominada a manter-se sob

dominação.

36

Dentro desse raciocínio, a escola, a televisão, a arte, o cinema e muitos

outros agem predominantemente pela ideologia. É um paradoxo pensar que os

meios que supostamente teriam o maior poder de desequilibrar a ideologia

dominante, diferentemente dos meios de repressão os (ARE), são usados na

maior parte para exercer a hegemonia ideológica.

Por que a insistência no termo hegemônica? Talvez pelo fato de esses

meios terem a possibilidade de exercer uma dominação imperceptível que os

ARE (s) não têm, já que seu poder é exercido de forma clara e evidente.

Com isso, retomamos tudo o que já dissemos, que o professor e os

veículos de comunicação de massas são difusores de ideologia em potencial.

Ainda que o poder que possamos exercer sobre a ideologia seja relativo, é

positivo ter a oportunidade de pensar sobre tais questões e, talvez, dessa forma,

possamos não ser apenas perpetuadores da ordem vigente. Na verdade, a

disposição que vemos hoje nos estudos que consideram o caráter social da

linguagem de refletir acerca dos seus processos só têm a contribuir nesse

sentido.

4.1.3 O professor à luz da Análise do Discurso

De acordo com os mecanismos da AD – as relações de força, a de

sentidos e a de antecipação – e pensando nas condições de produção do

discurso de um professor hipotético diante de seus alunos; queremos interpretar

a afirmação de E. Bosi (1977: 104) no sentido de que ela identifica esse

37

interlocutor como figura na qual confiamos e, portanto, em cuja autoridade

acreditamos.

Se pensarmos nas relações de força, cabe dizer que na nossa formação

social, a fala do professor diante do aluno projeta uma posição no discurso que o

coloca num patamar, de certo modo, de autoridade em relação aos alunos.

Contudo, cabe dizer que o momento histórico do qual falamos é distinto daquele

de que falava E. Bosi em 1977. Hoje, uma questão crucial para a pedagogia é a

desvalorização que têm sofrido os espaços escolares como um todo e neles a

própria figura do professor. Hoje, a fronteira entre professor e aluno é mais tênue

e o aluno é mais capaz, talvez, de questionar o professor ou, pelo menos, hoje,

a figura degradada do professor, sobretudo em certos níveis e espaços de

ensino, é mais objeto de descaso, quando não de desprezo, o que certamente

mina sua autoridade.

Porém, ainda assim, o lugar do professor diante do aluno, pensando em

relações de força, pode estar e é possível que esteja, na maior parte das vezes,

num patamar mais alto numa escala hierárquica, apesar de ele estar mais

próximo do que possivelmente estava na década de 70.

Além do mais, não podemos nos esquecer que poder e fatos históricos

estão ligados. Diante de tudo o que colocamos anteriormente acerca do ensino

do Espanhol como língua estrangeira no Brasil, vamos nos remeter ao lugar

deste professor de Espanhol antes da década de noventa, ano do boom do

Espanhol língua estrangeira no Brasil devido ao MERCOSUL. Ou seja, o poder

desta língua, devido ao fato histórico MERCOSUL, alterou consideravelmente as

38

imagens referentes a ela e às comunidades hispanofarlantes da América

Latina3. Agora, outro fato histórico, possivelmente, alterará mais uma vez esta

relação: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acaba de sancionar a

obrigatoriedade da oferta de língua espanhola nas escolas públicas e privadas

de ensino médio. Com a possível entrada desta matéria nos vestibulares, por

exemplo, a relação de poder deste professor poderá ver-se, de alguma forma,

alterada.

Sendo o nosso interesse a sala de aula de língua estrangeira, coloca-se

outra questão: a de que nesse contexto é impossível não se trabalhar os

estereótipos que circulam nos nossos meios. Sobre isso, Zink Bolognini &

Schumm (2002: 147) dizem:

“Na sala de aula de língua estrangeira, professores e alunos trabalham

constantemente com estereótipos a respeito tanto do país de origem dos

alunos, como do país alvo. W. Sauer (1991) afirma, inclusive, que é

impossível não trabalhar com estereotipias nesse contexto. Fala-se do

país-alvo e de seus falantes como se eles formassem um bloco único,

regido por comportamentos padrões.”

Essa afirmação, diante da análise da figura do professor que estamos

fazendo nesse momento – a de que o professor é uma figura na qual confiamos

e, sendo assim, poucas vezes questionamos –, aponta para a necessidade de

que o professor de língua estrangeira, talvez mais que outro professor, esteja

ciente de que o lugar do qual ele fala faz dele um difusor de preconceitos,

3 Esse tema é tratado na análise no capítulo 6.1.4, Os estereótipos vão se “descristalizando”

historicamente.

39

crenças raramente questionadas e estereótipos de todo tipo. O professor precisa

ter, por pequena que seja, consciência de alguns discursos que pode estar

reproduzindo sem maior reflexão sobre o seu sentido e os efeitos que provocam.

A oportunidade que a aula de língua estrangeira é capaz de dar – a de

levantar questões de reconhecimento de si próprio como pertencente a uma

determinada formação social e aceitar o outro no seu todo, com as diferenças

histórico-sociais que o constituíram diferente de nós – é rica e interessante em

tempos de “intolerância”.

Para Serrani-Infante (ibid.: 256), o processo de inscrição em segundas

línguas – expressão que usa no lugar de aquisição de segundas línguas –

“sempre comportará formulações nas quais haverá representações

intradiscursivas da diversidade, e elas poderão assumir, no discurso, forma de

estereótipos, etnocentrismos, idealizações, exotismos, etc.” E, prossegue,

“(...) para aprofundar-se a compreensão dos processos nos quais a

dimensão do conflito com a alteridade ganha em espessura e nos quais

se constitui a tomada da palavra em L2, é preciso que essas

representações sejam analisadas como meios imaginários nos quais se

imbricam as questões simbólica (do sujeito do inconsciente) e ideológica

(do interdiscurso).”

Como já dissemos, nossa análise se deterá na segunda, a questão

ideológica.

5 Considerações sobre a L1 e a L2

40

5.1 Vigotski: do social para o individual

O que há de mais interessante nos estudos de Vigotski, tendo em vista

onde queremos chegar, é o “princípio da gênese social da consciência

individual, formulando a palavra como origem da conduta social e da consciência

(...)” (Freitas, 2000: 84). Entendendo que o pensamento e a consciência não são

determinados por características internas e estruturais tem-se a idéia da gênese

social do pensamento. O processo de surgimento do pensamento consciente

faz-se pela internalização progressiva do que era primeiramente inteiramente

social, a fala. Sendo assim, esse movimento vai do social para o individual. Isto

é, o pensamento consciente nasce no momento em que passamos a internalizar

a palavra.

A teoria de Vigotski sobre o surgimento do pensamento verbal e,

conseqüentemente, da consciência, defende, resumidamente, que pensamento

e linguagem têm raízes genéticas diferentes e se desenvolvem ao longo de

trajetórias independentes; porém, em um dado momento, pensamento e fala se

encontram e, então, o pensamento torna-se verbal e a fala racional.

Vigotski demonstra, ao citar outros estudos, que o que diferencia a nós,

seres-humanos, dos animais como os antropóides é que somos capazes de

desenvolver um pensamento verbal. Este mesmo pensamento vai ocupando a

maior parte dos nossos pensamentos ao longo do processo evolutivo, o que faz

com que em um determinado momento seja impossível dissociar pensamento e

fala.

41

Podemos concluir, dessa forma, que o pensamento consciente é verbal e,

portanto, a unidade do pensamento verbal é o significado da palavra. Palavra e

pensamento dependem de um “reflexo generalizado da realidade” (Vigotski,

2003: 6). A forma com que uma sociedade simplifica e generaliza o mundo da

experiência será traduzida por símbolos que serão também a base da

consciência de cada individuo da mesma sociedade. Podemos ver, então, que a

linguagem constitui os sujeitos.

Diante dessa perspectiva, acreditamos que o processo de aquisição e

aprendizagem de uma L2 significa aprender a recortar, generalizar de acordo

com outra cultura e sociedade; a Análise do Discurso dirá: constituir-se sujeito

numa outra língua. Isso ocorre de modo distinto na aquisição de língua materna,

na qual as determinações sócio-históricas são adquiridas via signo sem a

necessidade de racionalizar os processos, pois ainda que o aprendiz de L2 não

tenha consciência dos processos em si, faz parte do aprendizado de línguas

estrangeiras sentir que a L2 “não recorta como o faz a língua materna” (Revuz

1998: 223). Sentimento esse que de um modo geral resume todo o processo de

surgimento da consciência que Vigotski teoriza.

Em outras palavras, o que eu falo e penso não é exclusivamente meu,

mas é constituído pelo que sou socialmente, isto é, pelo meio social ao qual

pertenço. As demais “falas” pensam e falam de modo diferente porque não são

desse meio social. Conclusão: a minha forma de pensar não é única, o que

significa dizer que não há uma realidade única e universal. Tampouco sou,

portanto, dono do meu dizer, ainda que tenha essa ilusão.

42

Nesse sentido, toda a teoria sócio-interacionista vem a ser um estudo que

nos serve de base para reforçar tudo o que viemos defendendo até aqui, isto é,

que a aquisição de uma língua passa por determinações de práxis, ideologia e

estereotipia e que, portanto, a aquisição de língua estrangeira põe em jogo

essas determinações.

Também precisamos considerar que, assim como todas as teorias que

temos trazido para a pesquisa até o presente momento, Vigotski coloca seus

estudos dentro de uma perspectiva marxista. O seu trabalho integra estudos

acerca da linguagem e do conhecimento de um pensamento dialético.

5.1.1 Bakhtin: tudo o que é ideológico é um signo

A teoria enunciativa de Bakhtin está na base teórica da AD e, mais que

isso, as suas considerações acerca do vinculo entre linguagem e ideologia,

fazem dele um estudioso essencial para esta pesquisa.

As idéias de Bakhtin e de Vigotski são complementares; apesar do fato de

que até hoje não se sabe com segurança se um conhecia o trabalho do outro, o

pensamento de ambos se coaduna em muitos pontos, principalmente no que

diz respeito a uma nova visão da linguagem como fenômeno social e da

consciência como reflexo desta linguagem social.

Interessa-nos, do trabalho complexo de Bakhtin, a relação que este autor

defende entre a filosofia da linguagem e as bases da teoria marxista da criação

ideológica, o que podemos observar quando Bakhtin (2001: 78, apud González

Nieto) afirma que,

43

“El signo, efecto de las relaciones sociales, es un producto ideológico

que, como todo objeto físico – instrumento de producción o producto de

consumo – pertenece a una realidad natural o social, pero además tiene

una referencia a ‘otra cosa’; es decir, refleja y refracta la ideología.”

A ideologia é colocada como inseparável à aquisição do signo, como

pudemos ver em outros autores também, e o signo é fruto das determinações

ideológicas. Porém autores como Brandão e Freitas afirmam que a

compreensão de ideologia de Bakhtin, apesar de tributária do marxismo

dialético, era mais abrangente que a ideologia vista por Marx. Freitas (2000:

127) diz que Bakhtin

“Via ideologia como espaço de contradição e não apenas de

ocultamento. Um produto ideológico faz parte de uma realidade, portanto,

a ideologia é uma forma de representação do real.”

Porém, além da discussão acerca da noção de ideologia de que já

tratamos no capitulo três, são de rica contribuição para os nossos estudos as

considerações sobre os signos.

Os signos, para Bakhtin, são fenômenos do exterior criados pelo homem,

o que é o mesmo que dizer que os signos só emergem da interação social de

um determinado grupo social.

“Bakhtin compreendia que tudo o que é ideológico possui um determinado

sentido e remete a algo situado fora de si mesmo. Tudo que é ideológico,

44

portanto é um signo, não existindo ideologias sem signos.” (Freitas 2000:

128)

Tudo isso nos coloca mais uma vez diante da necessidade de considerar

a etapa da ideologização na aquisição do signo como fundamental, ou melhor,

como indissociável do processo de aquisição. Também nos faz voltar nosso

olhar para mais uma das etapas do gráfico de Blikstein (1985: 81), a etapa da

práxis.

45

5.1.2 Blikstein: a fabricação da realidade

Blikstein em seu livro Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade (1985)

volta-se para a seguinte questão: de que seria o signo uma representação da

realidade (algo que substitui ou representa as coisas) ou seria o signo uma

representação extralingüística? A fim de defender a segunda possibilidade, o

autor faz uma busca em variadas correntes lingüísticas e semiológicas.

O primeiro passo de avanço, nesse sentido, foi lançar-se a figura do

referente, comumente deixado de lado por tratar-se da “coisa extralingüística”.

Blikstein acredita que tal “abandono” ocorre devido às dificuldades promovidas

pela influência da linguagem sobre o signo. Por isso, então, é que a relação

referente e signo é comumente deixada de lado.

Nessa busca que passa pelo pensamento dos estóicos, escolásticos,

lógicos, entre outros, foi possível encontrar uma relação entre:

referente/referência/símbolo, porém, ainda assim, a situação do objeto

extralingüístico sempre esteve nebulosa.

Blikstein (1985: 39) quer demonstrar que “seria na percepção-cognição,

portanto antes mesmo da própria linguagem, que se desenhariam as raízes da

significação.” Por isso, a importância das etapas que o autor chama de não-

verbais ou pré-verbais. A necessidade de estabelecer-se nesse momento pré-

verbal se deve ao fato de que talvez nele seja possível observar que estruturas

são impostas à realidade pela interpretação humana para que se crie o referente

que, por sua vez, geraria o signo.

46

Diversos teóricos, entre eles Chomsky, Coseriu, Saussure e Greimas,

estão, segundo afirma Blikstein, de acordo em que a percepção e a cognição

juntas formam a etapa que se coloca entre a realidade e o referente. Contudo,

seguida a essa constatação, ao analisar mais detidamente a tese clássica do

inatismo de Chomsky, Blikstein questiona as possibilidades de a percepção-

cognição resultar apenas de estruturas biológicas inatas, e, devido a isso, passa

a defender a existência de mais uma etapa da qual a percepção seria

dependente; nas palavras de Blikstein (ibid.: 52), “a percepção depende

sobretudo de uma construção e de uma prática social.”

A prática social ou a práxis seriam, assim, a etapa geradora do sistema

perceptual que, por sua vez, vai gerar o referente ou “fabricar a realidade”.

Sobre prática social Blikstein (ibid.: 54) explica que “(...) a expressão prática

social funciona, em nosso esquema, com o sentido já consagrado no marxismo,

ou seja, o de práxis: conjunto de atividades humanas que engendram não só as

condições de produção, mas de um modo geral, as condições de existência de

uma sociedade.”

Diante dessa perspectiva, Blikstein (ibid.: 54) verifica que “em última

análise, sem práxis não há significação.” Os elementos com que a páxis modela

a percepção-cognição são identificados, no caminho apontado por Shaff

(1974,apud Blikstein, ibid.: 60), na relação dialética entre práxis, percepção e

cognição, que partiu do conceito marxista de homem cognoscente, isto é, o

homem conhece a realidade na medida em que age sobre ela, transformando-a.

47

O homem cognoscente desenvolveria, sendo assim, mecanismos não-

verbais de diferenciação e de identificação, com os quais passa a discriminar,

reconhecer, selecionar, por entre os estímulos do “universo amorfo e contínuo

do ‘real’.” (ibid.: 60). Tais mecanismos são, no contexto da práxis, impregnados

de valores como meliorativos/pejorativos, por exemplo, transformando-se, dessa

forma, em traços ideológicos. Nesse momento é que ocorre a semiose, pois,

nessa etapa os traços ideológicos vão desencadear “corredores” semânticos,

por onde vão fluir as linhas básicas de significação ou, usando outro termo, as

isotopias da cultura de uma dada comunidade.

Esses corredores isotópicos vão determinar a percepção/cognição, pois

tais corredores criam modelos ou padrões perceptivos que serão os “óculos

sociais” que, em última instância, são os estereótipos de percepção. Blikstein

(ibid.: 61-2) conclui que “com os estereótipos gerados pelos corredores

isotópicos é que ‘vemos’ a realidade e fabricamos o referente (...) verificamos,

pois, que, fabricado pelos estereótipos, o referente se interpõe entre nós e a

‘realidade’, fingindo ser o ‘real’.”

Não podemos esquecer, no entanto, que o autor defende que todo esse

processo – da práxis ao referente – desenvolve-se, em princípio, numa

dimensão não-verbal, isto é, sem a intervenção obrigatória da língua. O que

significa dizer que em todo esse processo que vai estabelecer como “vemos” o

mundo com os “óculos sociais” podem ser gerados conteúdos visuais,

sensitivos, gustativos, olfativos, tudo isso, ainda, colocado na dimensão cinésica

48

e na dimensão proxêmica, sem que necessariamente haja ocorrido a

intervenção do recorte da linguagem.

Entretanto, Blikstein (ibid.: 68), considera que, “(...) de fato, a nossa

percepção/cognição vai se amoldando em geral, à lógica linear-discursiva e é

muito difícil pensar o mundo de outra maneira.”

Em suma, “(...) a práxis cria a estereotipia de que depende a língua e

esta, por sua vez, materializa e reitera a práxis.” (ibid.: 80). Segundo esse autor

(ibid.: 82), “(...) quando não compreendemos a realidade, utilizamos os

estereótipos verbais para reiterar o referente ou a realidade fabricada por nossos

corredores isotópicos.”

Com efeito, é comum que, quanto mais socializados nos tornamos, mais

difícil torna-se capturar os processos não-verbais, desencadeados na dimensão

oculta entre a práxis e o referente, de criação do referente extralingüístico. O

que obriga, portanto, o indivíduo a recorrer ao sistema verbal para, assim,

materializar e compreender a significação escondida. E (ibid.: 79-80)

“Assim, a língua passa a atuar sobre a práxis, os corredores isotópicos e

os estereótipos perceptuais; estabelece-se uma interação entre língua e

práxis, a tal ponto que, quanto mais avançamos no processo de

socialização, mais difícil se torna separar as fronteiras entre ambas.

Agindo sobre a práxis, a língua pode modelar o referente e ‘fabricar’ a

realidade.”

Assim se explica o gráfico de Blikstein. Esse gráfico é um dos

motivadores de estarmos estudando as etapas da estereotipia e da

49

ideologização na aquisição/aprendizagem de línguas estrangeiras. Deve-se,

então, aos estudos de Blikstein o nosso enfoque aos efeitos e etapas da

percepção/cognição. A idéia de que na “fabricação da realidade” ou, em outras

palavras, nos “referentes” habitam mundos sensoriais fez com que nos

questionássemos sobre se é possível que um aprendiz de uma determinada L2,

no decorrer de seu aprendizado/aquisição, tenha acesso aos referentes dessa

L2. Essa dúvida ganha força quando lemos o texto de Revuz (1998: 215), que

mostra que a língua estrangeira, ao contrário da L1, é objeto de saber, objeto de

uma aprendizagem raciocinada.

Erro! Indicador não definido.Figura Erro! Indicador não definido.1: Gráfico 1 - interação língua/práxis. (Blikstein 1985:81).

5 LÍNGUA

4 REFERENTE

2 PRÁXIS 2.1 TRAÇOS

2.2 TRAÇOS IDEOLÓGICOS

2.3 CORREDORES

ISOTÓPICOS

(“fôrmas” semânticas)

ESTEREÓTIPOS

(“óculos sociais”)

3 PERCEPÇÃO/

COGNIÇÃO

SEMIOSE

(processo da

significação)

1 REALIDADE

diferenciação

identificação

50

5.1.3 As etapas de aquisição de uma língua estrangeira

Considerando o que expusemos no capítulo 3.3, passamos a levantar a

hipótese de que, sendo as etapas de aquisição da língua materna essas

defendidas por Blikstein (ibid.), quais seriam, portanto, as etapas de aquisição

de línguas estrangeiras? Percebemos com isso, que, identificando na aquisição

de línguas uma determinação social, todas as etapas do gráfico de Blikstein que

intervêm na fabricação do referente, etapas de 2 a 3, devem sofrer processos

particulares na aquisição/aprendizagem de línguas estrangeiras.

Duas são as possibilidades que vamos propor aqui, no entanto, para que

a hipótese que vamos levantar seja mais bem fundamentada precisamos nos

esforçar para conhecer melhor o tema aquisição.

Não temos possibilidade, neste trabalho, de tomar posições fechadas a

respeito do processo de aquisição de uma língua segunda ou estrangeira, já que

não fizemos sequer testes que nos permitam extrair alguma conclusão a

respeito. Tampouco esse era o objetivo deste trabalho. No entanto, vamos

apresentar a seguir algumas hipóteses que surgiram ao longo da pesquisa, que

colocaremos em três gráficos. embora seja difícil afirmar aqui qualquer coisa, é

possível que cada um deles se dê, dependendo das condições em que se

processe a aquisição e em sujeitos distintos, mas essa é uma afirmação a ser

testada em outros trabalhos, numa etapa posterior a esta.

51

Na primeira possibilidade, o corredor de percepção/cognição se duplica,

já que a L1 atravessa o processo, servindo como filtro4 de cognição da L2; em

outras palavras, durante o processo de aprendizagem, é possível que o recorte

da realidade, resulte num referente distinto do gerado pela práxis quando

moldada pela L1, e diferente, também, do gerado pela práxis moldada pela a

língua que o aprendiz se propôs a adquirir. Na segunda possibilidade, o corredor

da L2 é substituído pelo corredor da L1, pode-se dizer, então, que é possível

que o aprendiz viva a ilusão de que há correspondência entre o referente da sua

L1 e o referente da L2, o que faz com que este faça uso dos recortes do

corredor de percepção da sua L15.

Dessa maneira, para uma melhor visualização dos processos de

aquisição/aprendizagem de línguas estrangeiras, baseando-nos no gráfico de

Blikstein, pensamos em três gráficos que representariam as situações descritas

acima.

4 De outras perspectivas teóricas a L1 também já foi vista como uma espécie de mediadora do

contato e da aquisição da L2. González (1994, 1998) fala desse papel da L1, usando o termo filtro, ao tratar

da aquisição de construções com pronomes pessoais na aquisição do espanhol por brasileiros adultos, uma

aquisição que interpreta como seletiva, sendo que a L1 justamente determina o que se seleciona, isto é, o

que se incorpora, o que se descarta. 5 Também de outro ponto de vista teórico, o do gerativismo, observa-se essa controvérsia a respeito

do papel da L1, que para uns intermediaria a aquisição da L2 e para outros ocuparia o lugar da gramática

universal.

52

Figure 2: Gráfico 2 - duplicação do corredor de percepção/cognição, onde L1 exerce o papel de filtro do corredor de L2.

Lembrando, o referente (6) (representado pelo gráfico) não é o mesmo

que geraria a L1 por si só, isto é, a língua materna, recortando a sua própria

realidade, como também nos questionamos se seria o mesmo referente (6) que

fabricaria a L2 se não houvesse intervenção da L1; trata-se, então, de uma

fabricação da realidade que é fruto da intervenção natural da língua materna na

aquisição da língua estrangeira, portanto, o referente (6) aí representado na

7 LÍNGUA

ESTRANGEIRA

6 REFERENTE

L1

2 PRÁXIS

2.1 TRAÇOS (DIF/IND)

2.2 TRAÇOS IDEOLÓGICOS

SEMIOSE

2.3 CORRED. ISOTÓPICOS

3 PERC/COGN. ESTEREÓTIPO

1 REALIDADE

L2

4 PRÁXIS

4.1 TRAÇOS (DIF/IND)

4.2 TRAÇOS IDEOLÓGICOS

SEMIOSE

4.3 CORRED. ISOTÓPICOS

5 PERC/COGN. ESTEREÓTIPO

FILTRO

53

figura, é resultado do choque de dois recortes socioculturais: o de uma L1 e o de

uma L2.

Figure 3: Gráfico 3 - outra possibilidade para a duplicação do corredor de percepção-cognição. O filtro L1, no entanto, entra em ação no momento em que já houve fabricação da realidade.

O falante recebe um referente (4) já pronto, um signo, por exemplo, que já

está determinado pelos processos de fabricação da realidade da L2. No entanto,

a L1 desse indivíduo aprendiz passa a agir sobre esse referente (4), com todas

as suas etapas, de (5) a (6), e filtra o referente, dando origem a uma língua que

não é a L1 e nem mesmo a L2, é uma língua estrangeira determinada por dois

processos distintos de fabricação do referente.

7 LÍNGUA

ESTRANGEIRA

4 REFERENTE

L2

2 PRÁXIS

2.1 TRAÇOS (DIF/IND)

2.2 TRAÇOS IDEOLÓGICOS

SEMIOSE

2.3 CORRED. ISOTÓPICOS

3 PERC/COGN. ESTEREÓTIPO

1 REALIDADE

L1

5 PRÁXIS

5.1 TRAÇOS (DIF/IND)

5.2 TRAÇOS IDEOLÓGICOS

SEMIOSE

5.3 CORRED. ISOTÓPICOS

6 PERC/COGN. ESTEREÓTIPO

FILTRO

54

Figure 4: Gráfico 4 - substituição do corredor de L2 pelo corredor de L1.

Neste caso, o referente (4) é, sim, o mesmo referente fabricado pela L1,

ou seja, não há qualquer tentativa de fabricar uma nova relidade mais próxima

do real imaginário daquela língua estrangeira.

Muitos são os argumentos que nos levam a aceitar tais possibilidades,

ainda que estejamos apoiados em poucas teorias de fato. De modo geral, no

artigo “A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco do exílio”

de Christine Revuz (1998), pudemos encontrar muitos desses argumentos. A

5 LÍNGUA

ESTRANGEIRA

4 REFERENTE

L1

2 PRÁXIS

2.1 TRAÇOS (DIF/IND)

2.2 TRAÇOS IDEOLÓGICOS

SEMIOSE

2.3 CORRED. ISOTÓPICOS

3 PERC/COGN. ESTEREÓTIPO

1 REALIDADE

FILTRO

55

autora, ao tentar entender os motivos que fazem com que a aprendizagem de

línguas estrangeiras se destaque pela sua taxa de insucesso, levanta, entre

outras possibilidades, a constatação de que a língua não é um instrumento,

portanto, não é possível aprender a servir-se da língua como um instrumento

que se aprende a manipular progressivamente; outra constatação é a de que só

é possível adquirir uma L2 porque já houve a aquisição de uma L1.

Sobre esse segundo aspecto, Revuz (1998: 215) afirma o seguinte:

“Esse estar-já-aí da primeira língua é um dado ineludível, mas essa

língua é tão onipresente na vida do sujeito, que se tem o sentimento de

jamais tê-la aprendido, e o encontro com uma outra língua aparece

efetivamente como uma experiência totalmente nova.”

A partir, sobretudo, da perspectiva que se coloca com a segunda

constatação, isto é, de que só se aprende uma L2 porque já existe uma L1,

entendemos que boa parte da angústia de se aprender uma língua estrangeira

está no fato de que esse aprendizado exige uma racionabilidade que não nos foi

exigida na aquisição da língua materna. Há, de fato, um confronto entre L1 e L2,

“o encontro com a língua estrangeira faz vir à consciência alguma coisa do laço

específico que mantemos com a nossa língua.” (ibid.: 215)

Percebemos, com isso, que é impraticável a separação da língua materna

do processo de aquisição de uma L2. Em resumo, “pode-se aprender uma

língua estrangeira somente porque já se teve acesso à linguagem através de

uma outra língua”.(ibid.: 215)

56

Retomamos, assim, o que viemos defendendo até aqui, que no ensino de

línguas estrangeiras deve-se levar em consideração a bagagem que o aprendiz

leva para a sala de aula, isto é, a sua língua materna, conhecimentos de

diversas ordens e experiências sócio culturais, no mínimo. Nas palavras de

Revuz (ibid.: 215), “esse confronto entre primeira e segunda língua nunca é

anódino.” (ibid.: 215)

E assim, finalmente, retomamos a primeira constatação, ou seja, a de que

a língua não é um instrumento. Revuz (ibid.) explica que essa visão está

presente na maior parte dos métodos de ensino de língua estrangeira e nasce,

na verdade, da lógica da criança aprendendo a falar, isto é, a criança aprende a

servir-se da língua na medida em que mergulha num ambiente já imerso nessa

língua. Daí é que surge a idéia de que é preciso reproduzir esse ambiente de

“aprendizagem primitiva da primeira língua”, o que conseqüentemente

pressupõe outra idéia, a de que é necessário uma tomada de distância da língua

materna.

Porém, por tudo o que viemos observando, esse aprendizado é

complexo, é mais uma situação de confronto que se instaura na relação entre “o

sujeito e a sua língua, (...) com ele mesmo, com os outros, com o saber” (ibid.:

220), o que faz, sendo assim, que a experiência do processo de

aquisição/aprendizagem seja diferente para cada pessoa.

A partir dos gráficos, é nosso objetivo, portanto, demonstrar esse

deslocamento a que se refere Revuz (ibid.). Acreditamos que as alterações no

corredor de percepção/cognição que acarretam uma alteração, em última

57

instância, do referente, é que fazem surgir, muitas vezes, esse deslocamento.

Também, os gráficos demonstram visualmente essa presença obrigatória da

língua materna no processo de aquisição de língua estrangeira. No entanto, é

importante ressaltar que são inúmeras as possibilidades de interpretação da

aquisição/aprendizagem de língua estrangeira, o que quer dizer, que estamos

trazendo neste trabalho duas possibilidades que acreditamos que sejam, de

certa forma, comuns, pois, como explica Revuz (ibid.), a experiência de

aprendizagem de uma L2 é vivida de formas diferentes por diferentes indivíduos.

5.1.4 Existiria uma porta de chegada?

Faz-se necessário, neste momento, retornarmos ao que havíamos dito

acerca dos estereótipos anteriormente, visto que a noção de ideologia foi

recuperada, assim como os gráficos das etapas do processo de

aquisição/aprendizagem de língua estrangeira, com isso, as imagens que

relacionamos a essas noções, a porta de entrada e uma possível porta de

chegada, precisam ser interpretadas diante desse novo contexto.

Defendemos em algum momento que, sendo o nosso interesse as etapas

de cognição e aquisição de signos em geral, o termo clichê seria abandonado,

ficando assim, o termo estereótipo, por estar mais relacionado à cognição. Além

disso, decidimos também que a noção de estereótipo seria a bivalente, isto é,

neste estudo coexistem, a noção pejorativa, comumente identificada a esse

termo, e por outro lado, a noção que entende que o uso dos estereótipos no

processo cognitivo habitual é “normal”.

58

Sendo assim, a “bivalência constitutiva da noção de estereótipo”, para o

estudo que estamos propondo, é suficientemente satisfatória. Cabe dizer

também, que tendo em vista o capítulo acerca dos estudos da “fabricação da

realidade” de Blikstein (1985), os estereótipos continuam a ser vistos como

fundamentais no processo de “percepção/cognição” e, portanto, podem seguir

sendo relacionados à imagem de “porta de entrada” do processo de cognição.

Uma vez que, “os estereótipos são os ‘óculos sociais’ (Blikstein ibid.: 61-2) com

os quais ‘vemos’ a realidade e fabricamos o referente.”

Também no gráfico de Blikstein (ibid.), podemos observar que os

estereótipos, por serem a última etapa do corredor de percepção/cognição,

abrem “a porta” para o referente. Contudo, ainda no mesmo gráfico, a etapa de

ideologização, ou melhor, as etapas de 2.1. até 2.3., para o autor são as etapas

que dão início ao processo de semiose, pois é nelas que desencadeiam as

linhas básicas da significação, ou, em outras palavras, as isotopias da cultura de

uma dada comunidade. De modo prático, Blikstein explica que, a práxis, ao

estabelecer valores de diferenciação/identificação, meliorativo/pejorativo,

transforma-se em ideologia. Dessa forma, a ideologia constitui o signo, constitui

os valores de uma comunidade e, ainda, cria os “óculos social” da sociedade;

portanto, os corredores isotópicos, que foram gerados por “traços ideológicos”,

determinarão o processo de percepção-cognição.

Diante dessa perspectiva, relacionar a ideologia à imagem de “porta de

chegada”, no sentido de que ela, diferentemente da estereotipia, não é uma

etapa obrigatória para que possa haver cognição, como pensávamos no início, é

59

problemático. Também, tudo o que retomamos aqui acerca da noção de

ideologia, da mesma forma, nos leva a crer que ela nos constitui como

pertencentes a uma classe social, falantes de uma determinada língua; nesse

sentido, a ideologia é inseparável da percepção-cognição.

Por outro lado, levantamos anteriormente a possibilidade de separar a

ideologia em dois contextos: no primeiro, a ideologia presente no processo de

cognição seria hegemônica; no segundo, a ideologia como o contrário da teoria,

isto é, aquilo que fecha as possibilidades de alteração ou questionamento, que é

usada para permitir a perpetuação da ordem vigente.

Todavia, mais uma reflexão desestrutura a imagem de “porta de

chegada”. Existiria um fim, uma porta de chegada, do processo de aquisição de

uma língua, de uma cultura? Não seria esse um processo que não termina

nunca, contínuo, ainda que não seja linear? Estudos os mais variados, inclusive

com perspectivas teórico-epistemológicas muito diferentes, vêm apontando essa

não linearidade do processo de aquisição.

Como ocorreu com o termo clichê, talvez seja o caso de abandonar a

imagem de ‘porta de chegada’, por tudo o que andamos discutindo até aqui.

Diferentemente, a imagem de “porta de entrada”, relacionada ao estereótipo,

tem se mostrado produtiva. Muitos estudiosos consagram o caráter inevitável e

indispensável do estereótipo nas relações sociais. Ferreira (1993: 73) diz que “a

especificidade própria do estereótipo propicia um funcionamento estratégico

rico”; podemos dizer, sendo assim, que o uso dos estereótipos é uma ferramenta

de identificação, isto é, possibilita o apagamento de individualidades e recorta

60

traços comuns, do ponto de vista de quem recorta, traços esses que

provavelmente fazem eco no meio social do interpretante.

Na prática pedagógica, o uso de um estereótipo pode ser de extrema

vantagem, o “professor” captura o aluno do fluxo de sensações do real e o

insere no processo de interpretação, isto é, o professor abre a “porta de entrada”

da percepção-cognição, ganha a atenção do aluno, que se identifica. Nas

palavras de Ferreira (ibid.: 74), “o que comumente se percebe nesses

enunciados estereotipados é a eficácia comunicativa da fórmula e a economia

de linguagem por ela representada.”

Porém mais que isso, o estereótipo pode ser desestabilizado pela própria

prática do discurso pedagógico: a discussão diante dos estereótipos é saudável

e pode promover no ambiente de sala um início de abalo dessas imagens

estereotipadas, é como se todo o tempo essas imagens fossem tomadas como

transitórias e questionáveis, sobretudo quando elas estão marcadas pelo senso

comum e pelo preconceito. Já vimos com Zink Bolognini & Schumm (2002) que

é impossível não trabalhar com estereótipos no contexto de salas de línguas.

Tendo em vista essa “obrigação”, queremos, com a análise do corpus, discutir o

nosso ponto de vista de que é possível que as práticas pedagógicas nas aulas

de línguas estabeleçam um exercício de contínua análise dos estereótipos

trazidos pelos próprios alunos, pelos materiais didáticos, pela mídia e que,

portanto, essa possa ser uma atividade muito positiva e rica para o processo que

está se iniciando.

61

6 Análise do corpus

Estamos cientes de que haveria muito mais a acrescentar a este corpus,

no entanto, em parte pelas dificuldades de todo tipo encontradas para a sua

constituição, relatadas em relatórios de pesquisa anteriores, em parte porque o

trabalho seria interminável, tivemos que nos ater a estes dados, que tomamos

como representativos de tudo o que quisemos afirmar neste trabalho.

6.1 Hipérbole em Los 3 Amigos

As histórias em quadrinhos Los 3 Amigos: sexo, drogas y guacamoles

dos cartunistas Angeli, Glauco e Laerte, são excessivamente fantasiosas e

exageradas. Esses cartunistas reuniram estereótipos acerca do mundo

hispânico como um todo, sintetizando traços variados, juntando fragmentos de

várias procedências, e reorganizaram o senso comum,

62

Figure 5: Capa de “Los 3 Amigos: sexo, drogas y guacamoles.” Edição especial que reúne quadrinhos publicados na Folha de SP.

levando-nos ao exagero. Começando pelo título mesmo da revista, a conhecida

frase ‘sexo, drogas e rock and roll’ foi emprestada e reformulada em ‘sexo,

drogas, y guacamoles’, sendo este último item, uma comida típica mexicana. O

título, por si só, já evidencia os referentes trazidos para o humor, ou seja, todo o

universo do cinema americano, mais as imagens fortes do universo histórico-

social em que estão inseridos os cartunistas e uma proliferação de imagens

recorrentemente relacionadas ao universo hispânico como um todo.

Neste sentido, a roupa dos personagens já traz à tona toda uma gama de

estereótipos sobre o hispânico e coloca o leitor totalmente situado, isto é, dentro

do assunto das histórias; em outras palavras, o estereótipo por si mesmo, sem

compromisso com juízo de valores, trata-se de exagerar e fantasiar ao máximo

esse universo hispânico e fazer piada de tudo o que torna esse mundo e os seus

personagens diferentes de nós, brasileiros.

Nessa capa, já podemos observar do que exatamente se trata essa

reorganização a que nos referimos. Parece que a história ocorre no “Velho

63

México” correlato do “Velho Oeste”, esse México em parte inventado pelo

cinema norte-americano de faroeste; como de fato podemos ver na figura cinco,

os personagens principais, ao centro, estão com roupas tradicionais mexicanas,

essa vestimenta é freqüentemente explorada em muitos contextos de mídia que

fazem alguma referência ao universo hispânico do ponto de vista do brasileiro.

Muito provavelmente essas imagens - da roupa mexicana, dos músicos

mexicanos, das maracas (aliás, não mexicanas, o que constitui uma mostra de

como se juntam nesses quadrinhos fragmentos de várias culturas) e dos

sombreros - sejam alguns dos estereótipos mais fortes que circulam no Brasil

acerca do universo hispânico como um todo.

Esses estereótipos, incluindo a sua mescla heterogênea, foram e ainda

são muito veiculados, como vimos, pelo cinema e outros meios de comunicação

(quadrinhos, por exemplo) norte-americanos, cuja influência sobre a nossa

forma de ver esse mundo deveria ser bastante analisada, porque povoa há

muito nosso imaginário e em grande parte tem contribuído para estimular um

certo desprezo por esse mundo de identidades mescladas, com marcas de

subdesenvolvimento e até de certo primitivismo.

É possível supor, a partir dessas imagens, neste caso paródicas, o efeito

negativo que a apresentação reiterada de um mundo hispânico em que tudo se

mistura, é feio, desorganizado, cruel, teve, ao longo da história, sobre o

desprestígio da língua espanhola, das culturas hispânicas e de seus falantes.

Serrani-Infante (1998: 241), referindo-se ao que Dabène (1994, apud Serrani-

Infante), pensa sobre as atitudes em relação às línguas, afirma: “Outro

64

componente da atitude em relação a uma língua diz respeito à importância dada

a ela, no quadro dos imaginários sociais, e que é justificada pela representação,

construída socialmente, de sua utilidade.” Nesse sentido, o modelo

tetralingüístico de Deleuze e Guatari (apud. Celada 2002: 23-84), também, faz

referência às funções da linguagem que se manifestam para um mesmo grupo

através de línguas diferentes.

Figure 6: Quadrinho “Donde fica Mirasales.”

Outros personagens de animação, seja dos quadrinhos ou da televisão,

são caricaturas hispânicas. Na Disney ou em desenhos mais contemporâneos

como os do canal cartoon network, talvez possamos encontrar os mesmos

estereótipos, só que nesses casos recortados do ponto de vista de outros

países. Seria interessante observar, nesse sentido, a influência, por exemplo, do

recorte norte-americano sobre o nosso.

Se nos remetermos ao gráfico 3 de aquisição de L2, podemos dizer, em

relação à influência norte-americana sobre os nossos recortes da realidade, que

o filtro da L1 agiria sobre um referente fabricado por um outro contexto

65

sociocultural, que neste caso, por exemplo, não é o mesmo nem da L1,

Português do Brasil, nem da L2, Espanhol língua estrangeira.

Na capa, ainda podemos ver: um cacto, que representa o deserto

mexicano; depois uma personagem que se veste com uma roupa tradicional

espanhola, usada também em países americanos nos tempos da colônia, porém

a peineta na cabeça da personagem restringe, de certa forma, as possibilidades

e nos remete mais à Espanha. Vemos também alguns índios e a própria cena

dos heróis presos, a fogueira e os “nativos” rodeando-os é uma cena típica de

filmes de faroeste, o que confirma o que afirmávamos antes sobre a influência

do cinema norte-americano sobre essas imagens, neste caso paródicas, porém

nem sempre assim em outros. Ou seja, os autores aglutinaram estereótipos de

diversas ordens numa imagem do “Velho México”, toda a hipérbole trabalha

gozando do senso comum, isto é, dos estereótipos dos brasileiros, ou engolidos

pelos brasileiros que os recebem por outras vias, acerca do hispânico.

Tal aglutinação de estereótipos de diversas ordens, toma outro caráter,

mais extremo e generalizador ainda, no mapa de ‘Mirasales’, figura 6, no qual o

território pertencente ao ‘Viejo México’ está entre ‘Tchecoslováquia’,

‘Madagascar’, ‘Estados Unidos’ e ‘Cuba’.

Possenti (2002) trata do uso dos estereótipos nas piadas, seu corpus está

constituído de piadas acerca do outro que ele trata de analisar: piadas de loira,

gaúcho, argentino. Este pesquisador faz uso da acepção comum do termo

estereótipo, isto é, como sendo uma imagem supersimplificada do outro e sem

considerar a função cognitiva do mesmo, porém, admite que os estereótipos

66

ajudam a reconhecer e a traçar a identidade, visto que ainda que esta sejam

uma representação imaginária, não significa que não tenham amparo no real.

Portanto, a análise de estereótipos nas piadas, para Possenti, é um objeto de

estudo válido e interessante.

Figura 7: Atlético de Marisales X Miguelitos sport club.

Em Los 3 Amigos, um dos aspectos que mais nos chamam a atenção,

são os estereótipos com relação à língua castelhana. Um traço da língua

espanhola que se destaca é a ditongação, diga-se de passagem, uma

característica muito presente também na produção de estudantes brasileiros de

espanhol língua estrangeira, algo que, portanto, está presente nas

representações que os brasileiros fazem dessa língua, registrado por diversos

trabalhos. Esse é um estereótipo, presente nas várias versões do “portunhol”

veiculadas de distintas maneiras, talvez pelo fato de muitas palavras que não

67

ditongam no português ditongarem no castelhano, em função dos diferentes

ritmos e caminhos evolutivos dessas duas línguas. Por extensão, passa-se a

ditongar palavras que não ditongariam, que é o caso da palavra ‘goêlo’ e

‘parabiênes’, que aparecem, ademais, com um acento circunflexo que

representa as vogais fechadas do espanhol, além da ditongação. Também é

interessante observar nesse quadro a palavra ‘mátalo’, que recolhe um dos

pontos de maior distância entre essas duas línguas, representada pelo emprego

dos pronomes, neste caso átonos, tema da tese de Doutorado de González

(1994), na qual ela analisa e interpreta a dificuldade dos alunos de espanhol

língua estrangeira, brasileiros e adultos, em adquirir as estruturas com pronomes

pessoais, sobretudo átonos.

O “sotaque” espanhol – a forma de falar essa língua, que, aliás, também

se constrói de retalhos de diversas de suas variantes – é representado, assim,

nessas histórias, pela ditongação de inúmeras palavras de que não se conhece

a tradução, pela pronuncia fechada das vogais e, enfim, pela utilização de

pronomes átonos. Esse estereótipo acerca da língua pode ser bem trabalhado

na sala como identificação, já que muito provavelmente ressoará nos alunos.

Não cabe aqui, talvez, levantarmos as hipóteses das etapas de cognição, pois

como dissemos, esses quadrinhos são excessivamente fantasiosos, porém, será

interessante observar que muitas das imagens usadas aqui com a intenção clara

de humor aparecerão em outros tipos de corpora, inclusive de produção de

aprendizes.

68

6.1.1 Latin lover: uma visão americana

Em paralelo à análise do personagem El Vampiro Vingador, introduzimos

aqui uma digressão, para tratar de um outro exemplo – já não de novelas

produzidas no Brasil, mas que ilustra, de certa forma, o quanto a imagem do

herói sedutor espanhol, mesclada à do legendário herói mexicano, é difundida -.

O personagem Gato de Botas, do filme Sherek 2, dos estúdios Walt Disney

Pictures & Pixar Animation Studios, exibido recentemente nos cinemas, pode ser

facilmente identificado com a figura desse latin lover. Esse personagem, dublado

pelo ator Antonio Banderas - que por sua vez também reitera o estereótipo do

sensual, caliente - é um gato e forma seu ethos6 a partir da soma entre as

características do personagem da fábula O Gato de Botas e do legendário Zorro,

sendo que tudo isso, ainda é transpassado pelo estereótipo de que os

espanhóis, e por extensão todo latino americano, são sedutores, como podemos

ver nas imagens a seguir:

Figura 8: O gato de botas, sua inicial feita com sua espada numa árvore e saindo com duas mulheres, no final do filme, representando assim o seu final feliz.

6 Ethos para Dominique Maingueneau (2002) é o que o locutor fala de si pelo modo de dizer, isto é,

como ele se coloca no discurso.

69

Lippmann, em seu artigo Estereótipos, de 19227, observa uma

transferência de lugar de origem dos estereótipos e alerta para a necessidade

de se ter certa noção de onde estes estereótipos partem. Nas palavras de

Lippmann (ibid.:153),

“Se não podemos compreender plenamente os atos de outras pessoas

enquanto não sabemos o que elas acham que sabem, precisamos, para

ser justos, apreciar não só as informações de que elas dispuseram mas

também as mentes através das quais as filtraram. Pois os tipos aceitos,

os padrões correntes, as versões padronizadas, interceptam a

informação no trajeto ruma à consciência. A americanização, por

exemplo, pelo menos superficialmente, é a substituição dos estereótipos

europeus pelos norte-americanos.”

Já dissemos antes que muitos dos estereótipos que nós, brasileiros,

difundimos nos multimeios são recortes vindos do cinema americano, sobretudo.

Assim ocorre com muitas das imagens de Los Tres Amigos e com o

personagem El Vampiro Vingador da novela O Beijo do Vampiro. Também sobre

a função do cinema como propagador de imagens estereótipos, Lippmann (ibid.:

157) diz que: “Em toda a experiência da raça ainda não houve ajuda à

visualização comparável à do cinema”. Este jornalista reforça ainda que Platão

já sentia que “os tipos adquiridos através da ficção tendem a ser impostos à

realidade” (id. ibid.).

7 Este artigo de Walter Lippmann foi publicado originariamente em 1922, a versão que utilizamos

foi reproduzida em Mass Media and Comunication, publicada em 1966 nos EUA. Este livro, organizado

por Charles S. Steinberg, foi traduzido para o português pela Editora Cultrix e editado em 1972.

70

Assim, o latino sedutor é figura recorrente no cinema norte-americano;

seja associado à figura masculina ou à feminina, o aspecto caliente está com

freqüência presente. A origem dessa imagem é difícil de estabelecer, no entanto,

sabemos que a música - seja o flamenco, o tango, a salsa ou até mesmo o

samba - está intimamente ligada a esta figura sedutora.

Sobre a importância de trazermos aqui a discussão acerca do latin lover,

não só a recorrência foi determinante, mas também o fato de que é comum

identificar essa associação com a sedução no discurso de um número

considerável de alunos que decidem pelo espanhol como língua estrangeira,

assim como é forte essa imagem usada na publicidade de escolas de língua.

Enquanto o cinema continuar investindo nessa imagem, não podemos

ignorar esse estereótipo na sala de língua estrangeira, as conseqüências podem

ser observadas desde uma entonação do aprendiz, um gesto, um olhar, até na

decepção que pode significar deparar-se com aulas distantes do clima sensual.

Por outro lado, voltando ao que dizíamos sobre o fato de o cinema

exercer um papel determinante na fabricação das imagens estereótipos, o que,

dessa forma, confere a este veículo certo poder. Lippmann (ibid.: 158), também

sobre esse aspecto, diz:

“As fotografias têm hoje sobre a imaginação a espécie de autoridade que

a palavra impressa tinha ontem e, antes dela, a palavra falada. Parecem

absolutamente reais. Cuidamos que nos chegam diretamente, sem

intervenção humana, e são, para o espírito, o alimento mais fácil que se

pode imaginar. Qualquer descrição verbal ou mesmo qualquer imagem

inerte requer um esforço de memória para que a imagem comece a

71

existir no espírito. Na tela, porém, todo o processo de observar,

descrever, relatar e depois imaginar já foi realizado para nós. Sem outro

trabalho que o necessário para nos mantermos acordados, o resultado a

que nossa imaginação visa sempre se desenrola na tela.”

O uso do cinema para desenvolver imagens a favor de uma concepção

política, ou seja, o uso dos estereótipos a favor de uma ideologia, como

mantenedora do poder norte-americano, foi desde muito cedo incentivado pelos

governos americanos. Neste relatório, no próximo capítulo, iremos observar

como os americanos irão fazer uso desses estereótipos para criar uma imagem

de homogeneidade em toda a América Latina. Devido a intenções

mercadológicas, os americanos criaram o que é hoje um símbolo da cultura

brasileira, a Carmen Miranda, e, assim, venderam o chamado South American

Way8. Também na ocasião da Segunda Grande Guerra, a imagem da Carmen

Miranda e outras imagens, como a dos Tres Caballeros, foram muito bem

exploradas pelos estúdios Walt Disney com a intenção de reforçar nossa

condição de aliados na guerra.

6.1.2 A Telenovela e seus tipos sociais

“Todos vêem telenovelas. Deixou de ser assunto só para mulheres. É

assunto cotidiano e faz parte da vida dos brasileiros”, diz Campedelli (1985: 16)

8 A cantora Marisa Monte gravou um CD em 1994, que leva o seu nome, Marisa Monte, e numa

das faixas a cantora interpreta uma canção de Carmen Miranda. Em nota, Marisa Monte escreve: “criação

maravilhosa de Carmen Miranda (...)”. A música se chama South American Way, composição de Al Dubin

e Jimmy McHugh. A segunda estrofe diz: “Ai, ai, ai, ai / E o que traz em seu tabuleiro / Vende pra ioiô / E

vende pra iaiá / In South American Way.”

72

A televisão é considerada o meio de comunicação de massas mais poderoso

desse último século. Talvez por essa razão a telenovela seja uma das maiores

propagadoras de estereótipos. Por meio das telenovelas, os estereótipos são

veiculados como se não o fossem, afinal, a telenovela faz crer que retrata a vida

real, com raras exceções de novelas mais fantasiosas, como é o caso de O

Beijo do Vampiro.

Essa novela da Rede Globo de Televisão foi veiculada com o propósito

de alcançar um público, de fato, nada específico. Usando palavras de

Campedelli num trabalho muito anterior ao da emissão dessa novela, é possível

afirmar que ela “deixou de ser assunto só para mulheres”, seu público era

formado por todas as faixas etárias e, é claro, de ambos os sexos. Dessa forma,

o forte impacto social que esse veículo tem, junto aos brasileiros, talvez ainda

seja um tanto subestimado.

O Beijo do Vampiro9

(A vampira Amelie procura pelo seu “namorado” Bartozinho quando entra o

Vampiro Vingador, vestido com uma roupa roxa, máscara, capa, e uma espada igual a do

Zorro)

Amelie: Bartozinho! Bartozinho, onde é que você se escondeu da sua Ameliazinha,

hein? Droga, droga. É mais fácil encontrar um vampiro vegetariano do que o meu Batorzinho.

9 As falas serão transcritas tentando reproduzir a pronuncia dos personagens. No trabalho final

pensamos usar o alfabeto fonético, para assim usarmos os termos adequados para falar desses sons.

73

Figure 9: El Vampiro Vingador

Vampiro Vingador: Bom dia, belessura!

A: (gritando) Ah! El Bampiro Bingador!

VV: Olê!

A: Por favor, não me faça mal, el Bampiro Bingador, ah, sou uma podre Vampira

inocente.

VV: Eu jamais faria maL a uma doce bampira como você. Na verdade eu estou aqui por

sua causa, Senhorita Amelie.

A: Por minha causa! Como assim?

VV: Eu, tenho uma grande adimiraçón por você.

A: Jura! Mas você não quer acabar com todos os vampiros?

VV: Não, só quero acabar com os bampiros do mal e esse não é o seu casso.

(começa a tocar um tango e ele a segura para dançar)

VV: Bocê é uma bampira boassinha, gostossinha e muito cheitossinha.

A: Ual! El Bampiro Bingadooooor... Ai...

Figure 10: El Vampiro Vingador e a Srta, Amelie

74

Em O Beijo do Vampiro, o estereótipo que está relacionado ao

personagem Vampiro Vingador é um “misto” de Don Juan, com um toque de

Zorro (assim como o Zorro, o personagem deixa a sua inicial feita com a espada

no lugar do crime). Vemos reforçado o estereótipo de sedução, que

acompanhado ao tango, que nada tem a ver com o Zorro original, é claro, deixa

evidente que é inútil tentar se conter. Não se trata de estabelecer qualquer

vinculo com a realidade. Trata-se de um simulacro, no sentido de reprodução

grosseira da imagem do herói sedutor espanhol, mesclada à do legendário herói

mexicano, esse também um estereótipo muito difundido. Também se explora

muito a imagem do dito latin lover, que provavelmente incidirá sobre falas de

alunos que revelam resultar-lhes a língua espanhola sensual, caliente,

romântica, etc.

Quanto ao “portunhol”, o que mais podemos perceber na fala dessa

personagem é a ênfase na troca da letra /B/ por /V/, depois a troca do /S/ com

som de /Z/ (/S/ sonoro) pelo /S/ com som de /SS/ (/S/ surdo, único existente no

espanhol). Também vemos aparecerem desinências como –çon no lugar das

nossas nasais –ção, como em “admiraçon” e algumas marcas de yeísmo

(identificação dos fonemas representados por /LL/ e pela semivogal /Y/) próprias

de algumas variantes do espanhol, como em “cheitossinha”. Repete-se, neste

caso, como se vê, essa espécie de síntese em que muitos “fragmentos” de

diferentes partes do mundo hispânico se juntam num só: El Bampiro Bingador é

um Don Juan, com características e comportamento do Zorro, aparece com

75

fundo musical de tango e sua pronúncia é marcada por um yeísmo rehilado10,

como a de um portenho.

Praticamente o mesmo fenômeno é possível observar na atual novela

global, América, mais especificamente na fala dos chamados coyotes, homens

que fazem a travessia de estrangeiros sem visto de entrada para os Estados

Unidos na região da fronteira entre México e Texas. Na fala desses

personagens, que representariam teoricamente mexicanos, encontramos traços

muito particulares de um “acento” hispânico específico, mais uma vez do

argentino e, em geral, da região de Buenos Aires, o porto. Primeiro o uso do

pronome sujeito vos, encontrado em toda a América Espanhola, mas que guarda

um uso particular, mais homogêneo e, principalmente, generalizado, apenas na

Argentina. Depois o já falado yeísmo, isto é, a pronuncia igual dos fonemas: /LL/

e /Y/, nesse caso particular, a pronuncia destes dois fonemas como um x, esta

pronuncia é encontrada, de modo mais intenso, na região do porto argentino e,

com ligeiras diferenças, na região de Montevidéu, Uruguai. Isto é, há um

estereótipo freqüente em relação aos sotaques desse idioma, o Espanhol, que é

o de aglomerar numa mesma fala diversas variantes lingüísticas, mais

especificamente as de maior ressonância, por um lado na mídia brasileira e por

outro, por destacar-se das demais variantes, como é o caso de Buenos Aires e

Madri, por exemplo.

10 O yeísmo é um fenômeno fonológico que ocorre na maior parte das variantes da língua espanhola.

Pronuncia-se o /ll/ como /y/. Na sua variante rehilada ambas são pronunciadas com certo “zumbido” ou

vibração. É comum na variante rio-platense, sobretudo nas áreas mais diretamente afetadas pelo falar

bonaerense.

76

Como temos observado constantemente na análise deste corpus, nos

meios de comunicação de massa, dificilmente há o cuidado de separar

diferentes regiões lingüísticas, como se o imenso território que ocupam

hispanofalantes, seja na América Espanhola ou mesmo na Espanha, fosse o

retrato da homogeneidade lingüística, homogeneidade essa que não existe em

nenhuma língua. Nessas situações, as línguas são representadas de um modo

fragmentário, como uma espécie de colcha de retalhos na qual pedaços de

variedades diferentes, com culturas e histórias diferentes, constituem um novo

todo, que não tem amparo no real. Por vezes isso tem um tom paródico, porém

em certos casos chama mais a atenção pelo tom “realista” que se quer dar às

situações representadas. As diversas regiões brasileiras também são

representadas lingüisticamente nessas mesmas telenovelas, com uma

adequação por vezes duvidosa e algo ridícula, geralmente com recortes cariocas

e, mais recentemente, com recortes paulistanos e de outras regiões também.

Nesse sentido, também na novela América, usou-se como desculpa para

justificar o uso generalizado do português numa novela que em grande parte se

passa em Miami, com personagens norte-americanos, mexicanos e cubanos,

um suposto estudo por parte deles da cultura brasileira ou de “línguas latinas”,

assim como parentes brasileiros; todos falam perfeitamente o português do

Brasil e, ainda, com um sotaque carioca perfeito, sem falar no seu próprio modo

de ser, num tipo de humor que dificilmente é incorporado dessa forma pelo

estrangeiro, menos ainda quando este não vive no país em que se fala essa

língua. Esses personagens, nem sempre de áreas afins, isto é, policiais,

77

professores, advogados, pesquisadores acadêmicos, donos e empregados de

pensão para imigrantes, cantores de música cubana, todos falam perfeitamente

o nosso idioma.

A necessidade de que esses personagens falem português se justifica

pela descaracterização que poderia significar uma novela legendada ou, talvez,

quem sabe, principalmente, pelo número de analfabetos e semi-analfabetos que

há em nosso país. Contudo, ainda considerando esses aspectos, reduções

acerca de novas culturas são mais uma vez justificados sob esse pretexto.

Esperança

(mãe e filha estão de trajes de dormir, a mãe pega a filha no quarto do hóspede e a

tira de lá puxando-a pelo braço)

Mãe: Venga, venga. Lo que você foi fazer no quarto dele, Eulália?

Filha: Só fui levar um cobertor pra ele se cobrir, madre.

M: Mentira!

F: Eu juro!

M: Si tu padre fica sabendo, mata a ti y mata aquele italiano também.

F: Não aconteceu nada, madre. Até porque ele já tem alguém que está esperando por

ele na Itália.

(a mãe sente pena da filha e perde a postura de mãe severa instantaneamente)

F: Ay madre, não aconteceu nada porque ele não quis. Madre, eu amo o Tony, eu amo.

M: Entonces esquece aquele moço, esquece porque mañana ele vai embora daqui.

Ahora volta para tu cuarto. Anda!... Por Dios!

78

Figure 11: Eulália e a mãe.

Diferentemente de O Beijo do Vampiro, as novelas América e Esperança

não têm o propósito de serem um simulacro, a configuração destas novelas,

como um todo, é bem diferente.

No caso da novela do “horário nobre” Esperança, seu enredo conta a

história dos imigrantes, espanhóis, judeus e italianos, sobretudo. Sendo assim,

seu relato é histórico e está situado no início do século XX, os personagens são

representações de imigrantes reais daquele momento histórico da cidade de São

Paulo, pretende-se um certo realismo, muita verossimilhança.

A família de espanhóis que integra o núcleo de personagens imigrantes

dessa novela ficou logo conhecida, rapidamente “caiu na boca do povo”, por

dizer para tudo ‘Vale’, assim como o fazia a jovem e bela filha do casal o tempo

todo. Imagens como a de que os espanhóis são grosseiros, os homens são

machistas mal sucedidos, severos com suas filhas, as mulheres são fogosas ou

calientes e mandonas em relação aos maridos, foram relacionadas a esses

personagens. As mesmas representações, agora, na atual novela do “horário

nobre”, são relacionadas aos mexicanos. A mãe mexicana é tida como

extremamente conservadora, as filhas são mantidas sob controle rígido, a

educação é extremamente religiosa, as roupas fantasiosas, como flores no

cabelo e certos xales, por exemplo, os hispânicos em geral são vistos como

79

festeiros, enquanto os americanos são estudiosos e trabalhadores e, por fim, os

idiomas são representados, basicamente, pelo uso de uma ou outra palavra

como 'madrecita' ou 'virgen de Guadalupe', 'hy' ou 'honey'.

Claramente, a novela faz uso dessas imagens estereotipadas, só não

podemos saber exatamente com que intuito, se é que se pode falar em intuito ou

se simplesmente fica claro que ela recolheu o que já estava no senso comum e

simplesmente reforçou o estereótipo, interpretação mais provável, já que se trata

de uma estratégia garantida de conquista do espectador. Os personagens

espanhóis são construídos tal como os brasileiros, muito provavelmente, os

vêem, reforçando os estereótipos que já circulam. Assim, se estabeleceria uma

certa economia entre o que a novela se propõe a dizer e o que o público precisa

interpretar; talvez, por esse motivo, são criados tipos sociais, tipos porque lhes

falta profundidade psicológica, são quase fórmulas previamente estabelecidas,

como no caso dos enredos. Campedelli (1985: 27) explica que, “percorrem a

história [das telenovelas] os clichês que consagram o gênero, graças à utilização

sistemática de plots encrontráveis nos grandes clássicos do romance-folhetim.”

Os plots são elementos que, somados, formam toda a trama da novela,

um exemplo de plot é ‘irmãos gêmeos que trocam de lugar um com o outro’.

Assim como esses plots, talvez haja uma forma fixa para os tipos sociais, formas

fixas que fazem uso dos estereótipos com uma espécie de objetivo econômico.

Outra possibilidade, muito improvável, seria a de uma fantasia coletiva

que acomete até os roteiristas, isto é, quem escreve a novela, de fato, que crê

80

que os espanhóis sejam assim como está sendo representado. Apesar, do fato

de que a própria representação dos atores revela o quanto essa imagem é forte.

Portanto, são generalizações, imagens, sem dúvida, supersimplificadas e

convencionais de um grupo, em outras palavras, encaixam-se, perfeitamente, na

definição de estereótipo defendida por Possenti (2002: 156).

Em todo caso, nosso objetivo é sugerir a possibilidade de, em sala de

aula, o professor de língua estrangeira fazer uso dessas imagens estereotipadas

para trabalhá-las de modo que esses estereótipos sejam pouco a pouco

abalados.

No que se refere à língua usada pelos personagens, supostamente seria

resultado já de uma espécie de contaminação de sua língua materna pelo

português. No entanto, o que se observa é, na realidade, uma espécie de

representação do espanhol a partir do português, representação essa não

apoiada num bom conhecimento da língua que se quer tentar reproduzir. Seria

possível afirmar que, ao contrário do que se esperaria – um falante que tem

como base o espanhol e tenta falar o idioma português, estrangeiro para ele -,

temos um falante brasileiro tentando reproduzir, sem nenhuma base, o

espanhol, como se este, na verdade, fosse a língua estrangeira para ele. Uma

situação invertida em relação ao que seria de esperar, com um resultado no

mínimo desastroso lingüisticamente falando. Talvez mesmo um tipo de

“portunhol” e não, como se poderia esperar, um “espanguês” (Lo que você foi

fazer // fica sabendo // mata a ti // mañana ele vai embora). Se pensarmos na

intenção mais realista da novela, pode-se dizer, sem dúvida, que o resultado

81

aqui é sumamente mais desastroso do que no caso da novela anteriormente

analisada, como quer que se focalize a questão.

6.1.3 Novela Kubanacan: estereótipo de desorganização política

“Romance, política e muito humor” é o título da matéria de Rodrigo

Teixeira no caderno TV mais, do Diário do Grande ABC, que fala da estréia da

novela Kubanacan de Carlos Lombardi. O jornalista explica:

“Kubanacan se passa na década de 50 numa fictícia ilha do Caribe. A

temperatura raramente é menor do que 30ºC, a língua é o espanhol11 e o

principal produto local, a banana (...) A história, na verdade, é uma

versão bem humorada dos últimos 50 anos da América Latina, com seus

governos ditatoriais, escândalos de corrupção e muita sensualidade, a

marca do povo que vive abaixo da linha do Equador.”

Sendo assim, a novela reorganiza estereótipos da América Latina como

um todo, sobretudo de Cuba, mas não deixa de lado os night clubs americanos,

com Shows estilo Hollywood – uma vez mais fonte de propagação e

consolidação de grande parte dos estereótipos sobre o universo hispânico; a

“Casa Amarilla” no lugar da “Casa Rosada” da Argentina; uma primeira dama

que é venerada e até considerada santa pelos pobres, claramente no lugar de

Evita Perón; um general, seu marido, presidente; um herói cabeludo, muito culto,

educado, com boas maneiras e principalmente bem intencionado no lugar de

11 Os personagens falam português todo o tempo, mas os nomes dos lugares, produtos, os jornais

locais, as músicas são todas em Castelhano, o que nos faz deduzir que o idioma do “país Kubanacan” é o

espanhol.

82

Che Guevara e, o que é principal, a situação política caótica, nada democrática,

com golpes políticos seguidos.

Kubanacan

(A primeira dama está cercada pelo seu povo em frente a “Casa Amarilla”,

verdadeira confusão de pessoas, bandeiras e jornalistas)

Povo: Santinha! Santinha! Santinha...

Uma Senhora: A Santinha dos pobres!

Santinha: O que o nosso povo precisa não é de caridade, eles precisam de

estudo para poderem decidir as próprias vidas, não é?!

Uma jornalista: Mas essa escola da esquina já foi inaugurada no ano passado.

Santinha: Ah! Foi?

J: É, pelo próprio presidente, ele só mandou pintar com uma outra cor agora.

General Camacho: Já falei que ninguém toca na primeira dama.

S: Capitão, por favor. Imagina capitão, o meu povo não me ameaça.

P: Santinha...

Sra.: Santinha, pelo amor de Deus, a minha filha tá com tanta febre vem pelo

menos por a mão na testa dela.

S: Ai, minha senhora, eu não tenho esse poder!

Figure 12: (a) Santinha com o povo e (b) Santinha, Coronel e a Senhora.

83

Realmente, o estereótipo de caos político é constante, o cenário dos

sucessivos golpes ressoa no telespectador como motivo óbvio de ser esse país

pobre e, por conseguinte, justifica o seu subdesenvolvimento. Como já

dissemos, a imagem negativa que carregamos de que nosso país e, por

extensão, toda a América Latina é tão desorganizada e cruel na medida em que

se relaciona a governos ditatoriais e a perseguição política, tem reiterado um

estereótipo, que tem contribuído em grande parte para estimular um certo

des

pre

zo

por

esse mundo de identidades mescladas.

Kubanacan

(Militares do alto escalão conversam enquanto bebem num bordel, um dos

militares acabou de reclamar do fósforo da fábrica de um amigo do presidente)

Militar 1: Para um homem arrogante e antipático é inacreditável a quantidade de

amigos que tem o presidente.

Militar 2: A associação de comércio americana já avisou: assim não dá mais.

Militar 1: Temos que substituir esse infeliz, não dá para esperar três anos pela

eleição, chegou a hora de agir.

(muitos soldados marcham pela rua e chove bastante)

84

Militar 3 (pelo telefone) : 70% das tropas do país estão aqui comigo. O destino

do país está em jogo, quem liga pra um ventinho.

Figure 13: Militares.

O autor da novela, Lombardi, afirma na matéria: “pensei no Caribe, na

república das bananas e fui parar nos anos 50. Quando vi, a idéia estava

cristalizada”. De fato, pode-se afirmar que essa idéia já estava cristalizada antes

mesmo de que o autor a transformasse em novela, na verdade, a novela recolhe

um imaginário que já circulava há muito e continua circulando no senso comum.

Mas até que ponto essa idéia de desorganização política/subdesenvolvimento

continua mesmo cristalizada? A generalização no recorte político da América

Latina, no caso desta novela, para a época em que foi exibida, em 2003, foi

muito reducionista. Mais uma vez, assim como nas demais novelas da Globo,

não há grandes críticas políticas e, muito menos, profundidade e contradições,

só apenas um apanhado de estereótipos. Representações fechadas que, de um

modo geral, consolidam preconceitos e levam a poucas discussões e revisões,

sobretudo porque apelam quase sempre para o humor grosseiro. De qualquer

forma, é importante nos perguntarmos até que ponto é ou não é bom que esses

estereótipos se explicitem, de modo a suscitar alguma discussão que seja, em

algum âmbito, de modo a provocar deslocamentos, ainda que pequenos.

85

6.1.4 Carmen Miranda: símbolo de um continente

Um exemplo de reorganização de estereótipos de toda América Latina é a

interpretação que faz Souza (2001) da figura altamente estereotipada de

Carmen Miranda, outra representante da estereotipia norte-americana e

hollywoodiana de uma América Latina que, neste caso, inclui um Brasil que toca

maracas e dança rumba, entre outras coisas. A artista, que participou de vários

filmes de sucesso de Hollywood, uma figura híbrida, poderíamos dizer, é vista,

no artigo Nem Samba Nem Rumba de Eneida Maria de Souza (2001), como

representante dos interesses políticos dos Estados Unidos em toda a América

do Sul, ou em outras palavras, “a América para os americanos”. Segundo

Souza:

“Os interesses políticos se sobrepunham aos culturais, transformando a

artista no estereótipo da mulher latino-americana, que se expressava

musicalmente no ritmo de samba, rumba e bolero. A construção estilizada de

sua imagem guardava um pouco de cada lugar da América, o que dificulta vê-la

hoje como representante de uma ‘autêntica cultura brasileira’” (Souza, 2001: 42).

Figure 14: Aurora Miranda,

86

irmã de Carmen Miranda, no filme “Você já foi à Bahia. The Three Caballeros”.

Dois filmes da Walt Disney Pictures representam bem esse contexto,

essa figura; são dois filmes da década de 40, que têm como enredo geral a

apresentação de aspectos da cultura latino-americana. No primeiro deles, Você

já foi à Bahia? The three caballeros, de 1945, Donald, o famoso pato

personagem de tantas histórias, ganha de presente de aniversário dos seus

amigos latino-americanos, José Carioca12 e Galo Patito, um passeio pela Bahia

e pelo México. No outro, Alô Amigos. Saludos Amigos, de 1943, conta como os

roteiristas da Walt Disney se inspiraram para fazer aquele primeiro filme de que

falamos. Dentro dessas duas situações, a Walt Disney consegue nos convencer

de que a América do Sul é exótica, tem mulheres bonitas, sensuais, comida

exótica, deliciosa, e, principalmente, não é tão diferente assim da América do

Norte, por isso, todos nos entendemos perfeitamente. Por um lado, reitera-se a

imagem de exotismo que sempre marcou o mundo ibero-americano, tanto o de

língua portuguesa quanto o de língua espanhola. Por outro, a aproximação com

os estados Unidos servia bem aos propósitos políticos norte-americanos num

momento crucial da 2.ª Grande Guerra.

12 José Carioca foi o nome dado por seus criadores, mas nas histórias em quadrinhos brasileiras o

personagem foi chamado de Zé Carioca.

87

Figure 15: Cenas do filme “Você já foi a Bahia?”

O Jornal O Estado de São Paulo tem uma página na Internet13 que traz

muitas informações sobre a Disney e esses dois filmes são tema do capítulo

“Disney no Brasil”; lá encontramos muitas informações, entre elas, o Estadão diz

claramente que a vinda de representantes da Disney ao Brasil e aos demais

países da América Latina representa ideais que nascem durante a Segunda

Guerra Mundial: “a Disney criou então três personagens representando a

América como colaboração ao esforço de guerra americano e a política de boa

vizinhança que os norte-americanos apoiavam.” (Magazine – estadao.com.br,

consulta feita no dia 29/11/04).

Figure 16: Cartaz do filme “The Three Caballeros”.

No filme Saludo Amigos o pateta se transforma num gaucho argentino e,

nesse momento, o narrador diz:

13 A página se chama Magazine – Estadão.com.br, e o endereço da matéria Disney no Brasil é:

http://www.estadao.com.br/ext/disney/indice.htm

88

“No Texas, numa região de montanhas e planaltos, ainda não tocada ou

explorada pela mão mercenária da civilização, encontramos um tipo de homem:

é o vaqueiro norte americano, queimado de sol e batido pelo vento, calado,

pensativo, contemplando. Um tipo interessante do cawboy do velho oeste que

assemelha muito ao do gaúcho argentino (...) Os vaqueiros de ambas Américas

têm muita coisa em comum, apesar de que o vestuário de um e de outro varie

ligeiramente”.

Então, o pateta se transforma de um cawboy texano num gaucho

argentino.

Figure 17: (a) Pateta como texano. (b) e (c) Pateta como gaucho argentino.

A história, de fato, é cheia de informações sobre o folclore de quatro

países da imensa América Latina, sobretudo a Argentina, o Brasil, a Bolívia e o

México; sendo que o Brasil e a Argentina parecem ser os dois países mais

representados, já que aparecem nos dois filmes, enquanto os outros países

aparecem em apenas um deles. Porém, ainda assim, é possível perceber que

há algo maior por trás dessas representações, não se trata apenas de descrever

o folclore de países Latinos, mas agem, em filmes como estes da Disney,

Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE). Como afirma Althusser (1970, apud

Brandão, 1995: 22-3), o cinema pode ser usado como aparelho que intervém via

89

ideologia e, desse modo, este ajuda a manter a ordem social e a gerar

mecanismos de perpetuação do poder.

Diante dessa perspectiva, a América fala a partir do lugar de país da

liberdade e da democracia e prepara para si um discurso que reforça tal ethos;

então, na sua fala nos querem fazer ver uma nação que não só aceita as

diferenças, mas que, acima de tudo, sabe admirá-las. Em plena guerra mundial,

a América elimina todas as desigualdades existentes entre nós, da América do

Sul, e eles, da América do Norte, as diferenças econômicas são ignoradas, as

culturais são atenuadas, e o que prevalece é a condição de Aliados, imagem

perfeitamente concretizada na figura dos três amigos e no lema, vária vezes

repetido, “um por todos e todos por um”. Nessa perspectiva, o gaucho não pode

ser visto como um bárbaro e se a Argentina tem uma figura rústica, eles também

têm, mais ainda, porque não dizer que o gaucho, assim como o cawboy, são na

verdade “bons selvagens”.

Os estereótipos são os mesmos que viemos comentando até aqui, a

sensualidade e o exotismo relacionados às figuras femininas; a receptividade

desses povos; a bravura e o heroísmo, mais uma vez, na figura do mexicano,

que no caso do personagem Galo Patito está sempre armado, dando tiros para o

alto; e, finalmente, a malandragem do carioca na figura do papagaio Zé Carioca,

que na sua versão brasileira para revistas em quadrinhos foi bastante

acentuada, somando-se, assim, à malandragem as características de folgado,

golpista, tipo que se sente bem ao enganar os outros, que passa cheque sem

fundos, sempre bancando o vivo e paquerando muitas mulheres.

90

Interessante observar que muitos desses estereótipos são tão bem

aceitos por nós, que invocamos constantemente tais imagens, como se fossem

parte de nossa identidade. Isso é visível quando observamos que o personagem

ZÉ Carioca, no momento em que foi abrasileirado, teve todos os estereótipos,

interpretados primeiramente pelos americanos, acentuados consideravelmente.

Figure 18: Donald no México.

“A série de aquarelas, de teses e sugestões provam o que pode

acontecer a uma cidade indefesa quando se vê invadida por um grupo de

desenhistas”, diz o narrador enquanto a câmera mostra os desenhos que os

artistas fizeram enquanto estavam no Rio de Janeiro. Cada aquarela é uma

releitura das frutas, pássaros e folclore brasileiros. Os termos verdejantes,

intocáveis, belíssimos são constantemente reforçados para idealizar esse

espaço que chega tão próximo do paraíso terrestre. Sobre essa releitura dos

espaços e de personagens tradicionais, como: “os verdejantes pampas

argentinos”, “o corcovado”, “a região do lago Titicaca”, “a Bahia”, “a praia de

Acapulco”, e seus respectivos personagens, todos romantizados, como mostra

Souza (2001), no melhor estilo ocidental, como já dissemos, são bons

selvagens. Dessa forma, impõe-se o modelo racionalista ocidental que tem

91

como objetivo apagar as diferenças de cultura e práxis, sobre isso, Souza (2001:

44) explica,

“Criam-se espaços que se mesclam às virtualidades globais e às

regionalidades enunciativas, atendendo não só ao apelo de instâncias subjetivas

dos discursos, mas ao desejo de releitura dos tradicionais espaços de

enunciação. Esses espaços, calcados nos modelos racionalistas ocidentais e

impostos com o objetivo de apagar diferenças, vêem-se ameaçados pelos

discursos pós-colonialistas e pela posição singular da crítica frente à

dependência cultural.”

Figure 19: Aquarela inspirada no Rio de Janeiro

Portanto, o mesmo projeto que Eneida Maria de Souza encontra em

Carmen Miranda, pudemos observar em dois filmes da Walt Disney Pictures.

Muitos desses estereótipos estão presentes hoje no modo como nos vemos e

como vemos o resto da América Latina, isto é, esses estereótipos de pessoas

amigáveis, receptivas, pertencentes a uma cultura exótica, divulgadores do

folclore nacional, ao mesmo tempo desorganizados, pobres, marcados por

problemas políticos, pelo poder autoritário, pela corrupção; hoje constroem, de

certa forma, muito do que acreditamos ser a nossa identidade e a identidade

desses povos de língua espanhola cuja heterogeneidade é, de certa forma,

92

apagada nessas imagens em que tudo se junta num negativo que por vezes se

passa com ares de positivo, porque é original, exótico.

Aliás, a imagem do exótico também passa pela Espanha, sobretudo

aquela Espanha anterior à sua integração na Comunidade Européia. O lema

Spain is different foi altamente explorado, ao lado do sol de seu verão, de suas

praias, de seu folclore, costumes típicos e de seu subdesenvolvimento,

especialmente no período franquista. O cinema americano explora também tudo

isso: touros, peinetas, castanholas, panderetas, flamenco, etc. são tópicos que

circularam e ainda circulam, muitas vezes, contaminando, inclusive os

estereótipos sobre países hispano-americanos, como vimos no caso de Los tres

amigos

.

6.1.5 Os estereótipos vão se “descristalizando” historicamente

No Jornal da USP, 17 a 23 de julho de 2000, na página de Cultura, foi

publicada uma matéria cujo título era “Espanhol, mas com qualidade”14. A

matéria foi feita durante um encontro virtual realizado no USP Oficina, que tinha

como objetivo discutir a atualidade da língua espanhola e o papel do idioma no

presente e no futuro.

No que diz respeito ao nosso objeto de estudo, isto é, os estereótipos

acerca do universo hispânico, o contexto amplo em que se insere essa matéria

já demonstra uma desestabilização do estereótipo que durante décadas fez com

que se manifestasse em nosso país o seguinte enunciado: “Estudar

14 Todas as matérias citadas estão em anexo.

93

espanhol...?! Precisa mesmo?” (Celada & González, 2000: 42). Em outros

trabalhos seus, as autoras apontam com veemência que o espanhol não foi,

durante muito tempo entre nós, objeto de estudo, de saber, de investigação, algo

que vem mudando a duras penas.

Celada (2002: 19) explica que “na década de 90, a assinatura do Tratado

do Mercosul e uma série de fatos ligados ao processo de globalização, que se

encontra de forma vertiginosa no século XX, incidem diretamente sobre a

relação do brasileiro com o espanhol”. Devido a esses fatos históricos, o

brasileiro passa a admitir a necessidade de estudar o Espanhol, ainda que o

binômio semelhança/facilidade esteja, até certo ponto, cristalizado, um lugar

comum recolhido por Antenor Nascentes, na década de 30, na introdução de

sua Gramática da língua espanhola para uso dos brasileiros. Nascentes

desenvolve suas reflexões na área da filologia comparada, uma linha que

também incluía preocupações pedagógicas, e suas idéias se refletirão,

consolidarão e repercutirão mais ainda no primeiro manual para o ensino do

espanhol feito no Brasil, na década de 40, de autoria de Idel Becker, manual

esse que foi utilizado durante décadas para o ensino dessa língua e que ainda

hoje deixa marcas na forma de trabalhá-la.

A matéria afirma claramente que está havendo um aumento na procura

por aulas de espanhol língua estrangeira no Brasil. O que podemos observar na

citação: “o espanhol já está se impondo sem decreto. Se vira lei, a mudança

pode até vir a ser negativa, explica a professora Neide.”

94

Essa afirmação demonstra que o primeiro estereótipo “Estudar

espanhol...?! Precisa mesmo?” tem se desestabilizado nas últimas décadas.

Ora, o Mercosul e a globalização são motivos econômicos que colocaram em

cheque esse estereótipo. Por isso a demanda cresceu tanto no mesmo período

histórico. No entanto, o par semelhança/facilidade passa por um processo de

“descristalização” um pouco mais lento e até mesmo doloroso – já que ele se dá,

na verdade, na experiência prática dos alunos que vivenciam o processo de

aquisição de uma língua, cujas expectativas, sempre tão estimuladas, de

facilidade se quebram muito rapidamente.

No título já percebemos tal desestabilização: “Espanhol, mas com

qualidade”. A conjunção adversativa orienta a frase para um oposto que está

subentendido, isto é, queremos que o Espanhol seja ensinado, mas por

professores habilitados, que sejam submetidos a uma intensa reflexão sobre

essa língua, em todas as suas dimensões, e que não reproduzam estereótipos e

lugares comuns; essa frase poderia estar no texto, afinal, quando a professora

Neide Maia González é entrevistada e diz: ‘o espanhol que se ensina no Brasil é

uma língua precária, telegráfica, com problemas de referencialidade e

inteligibilidade’ (...) ‘a baixa qualidade é inevitável enquanto o ensino de línguas

for tratado como tradução de palavras. As línguas são transpassadas por

culturas e sociedades. Fora deste contexto não existe ensino de línguas. Para

isso, só a boa formação de professores e trabalhos de pesquisa servem de

solução.’

95

É um fato que o ensino do espanhol tem conquistado um maior espaço no

Brasil, mas a consciência da qualidade desse ensino ainda deixa a desejar,

afinal, muitas instituições brasileiras permitem, talvez por uma ignorância

conseqüente do “efeito de indistinção histórico” a que essa língua foi submetida

em relação ao português (Celada: 2002), que um espanhol ‘precário, telegráfico,

com problemas de referencialidade e inteligibilidade’ seja ensinado e se

reproduza. Isso tudo demonstra, na prática, que o estereótipo

semelhança/facilidade, que é refletido no fato de que essas instituições não se

preocupem em buscar profissionais devidamente qualificados, ainda não sofreu

um abalo suficientemente forte, talvez até porque ainda não tenha havido tempo

suficiente para que a pesquisa que vem sendo construída sobre essa língua e

sobre a sua aprendizagem por parte dos brasileiros exerça seus efeitos práticos.

Contudo, mais um ponto nessas mesmas citações pode ser explorado.

Do ponto de vista da professora de língua espanhola da USP, o ensino de

línguas de um modo geral, guardadas exceções que não se referem à língua

que é ensinada, mas à instituição que o faz, é tratado muitas vezes como uma

questão de tradução de palavras. É a ilusão da correspondência termo a termo

de que falamos anteriormente, a partir da qual se pensa nas línguas como

nomenclaturas para referir-se a um mundo sempre igual, não afetada pela

história e pela ideologia; nesse contexto, o aluno, muito provavelmente, terá um

processo de cognição semelhante ao do gráfico nº 03.

Portanto, na análise deste texto do corpus em particular, pudemos

observar que os estereótipos são desestabilizados historicamente, a própria

96

história, política e econômica, brasileira tem balançado as estruturas de alguns

estereótipos acerca do ensino de língua espanhola no Brasil. Esse abalo, como

vemos, só pode ser efetivamente afetado pela pesquisa de qualidade, que por

sua vez precisa deixar suas marcas na formação do professorado que vai levar

adiante esse ensino.

6.1.6 Português do Brasil língua vernácula. Espanhol língua veicular.

A partir da perspectiva lingüística do “modelo tetralingüístico” de Deleuze e

Guatari usado por Celada (2002: 23-84) na Parte I da sua tese de doutorado15

vamos procurar analisar as relações dos brasileiros com sua língua oficial – ou

seja, brasileiros/ PB – e, conseqüentemente a relação do brasileiro com o ensino

de línguas estrangeiras, em especial o ensino do espanhol como língua

estrangeira.

Celada (ibid.) afirma que o “modelo tetralingüístico”, ao explicar o

bilingüismo e o multilingüismo, passa a entender as funções da linguagem que

se manifestam para um mesmo grupo através de línguas diferentes. Desse

modo, dizer que uma língua é vernácula significa dizer que esta língua é

materna ou territorial, que pertence a uma comunidade rural, ocupa o lugar do

aqui e da comunicação familiar. Já quando uma língua passa a ocupar o lugar

do veicular, o espaço deixa de ser o rural e passa a ser o urbano ou até mesmo

o mundial quando esta língua está em toda parte devido a sua função comercial

15 CELADA, María Teresa (2002): “Parte I: A memória do Espanhol no Brasil”, pp. 23-84. In: O

Español para o brasileiro. Uma língua singularmente estrangeira. Tese de doutorado defendida no

Departamento de Lingüística da UNICAMP, Campinas, SP, inédita.

97

e de instrumento de comunicação entre diferentes povos, é a língua da ação. No

âmbito da cultura, a língua referencial ocupa um lugar de saber, dos sentidos e

da inteligência. A quarta é última língua é a mítica, esta ocupa o lugar do

espiritual, do religioso.

Levando o modelo em consideração queremos observar que o PB ocupa

com bastante freqüência o lugar de veicular, de língua do aqui – e só do aqui –

no imaginário de seus falantes. Um fenômeno que contribui para essa afirmação

é o seguinte comentário, freqüente na voz popular: “Nós brasileiros temos a

obrigação de aprender uma língua estrangeira já que ninguém mais, a não ser o

próprio brasileiro e o português, sabem falar português. Até mesmo para

situações de turismo, em lugar algum do mundo vamos encontrar placas em

português”. E nesse sentido, a existência de Portugal, país europeu pertencente

à União Européia, não facilitaria tal situação até porque nem o português

europeu tem o estatuto de língua internacional; e, uma vez que o português do

Brasil é com freqüência dito incorreto e vulgar, estamos incomunicáveis e

sozinhos no mundo.

Devido a manifestações como essas, a revista Veja, nas páginas

amarelas, publicou a seguinte matéria: “O Fim do Português”16. Nessa página de

entrevistas, o lingüista Steven Fischer, mundialmente conhecido por descobrir as

inscrições da Ilha de Páscoa nos anos 90, Doutor pela Universidade da

Califórnia e Diretor do Instituto de Línguas e Literatura Polinésias na Nova

Zelândia; divulgou sua hipótese de que o português do Brasil, em 300 anos, vai

16 Revista Veja SP, páginas amarelas. São Paulo, 5 de abril de 2000, p.15.

98

desaparecer e em seu lugar vai se falar uma espécie de portunhol, muito

diferente do português atual17.

O jornalista, Eduardo Salgado, em certo momento da entrevista, faz uma

intervenção que demonstra bem quão absurda tal afirmativa pode parecer nos

dias de hoje: “O Brasil tem cerca de 40% da população latino-americana, um

poder econômico sem similar e mais exporta do importa mercadorias culturais.

Além disso, vive cercado de países de língua castelhana há 500 anos. Por que

justamente o português daria lugar ao portunhol?”. Porém, Fischer segue

defendendo sua hipótese e diz crer que o mesmo vai ocorrer com os Estados

Unidos, ainda que em escala menor. Para o lingüista, em cerca de 300 anos,

apenas 24 idiomas serão falados no mundo, dentre estes, o inglês, o espanhol e

o mandarim serão os mais falados.

Dois pontos podemos observar com esta reportagem: primeiro, que há

uma imagem de separação que provoca o estereótipo de que seria melhor que

todos falássemos espanhol: segundo, que cresce cada vez mais a aceitação do

espanhol como língua veicular, visto que antes da década de 90 esta língua era

mais bem vista como referencial, ou seja, língua que dá acesso à cultura, já que

era comum o contato com os clássicos literários mundiais nas traduções em

espanhol.

O não reconhecimento do PB como língua veicular impõe a seus falantes

a necessidade de aquisição de uma língua estrangeira. Sobre este aspecto,

17 Curiosamente, há pouco o Ministro da Cultura, o cantor e compositor Gilberto Gil, defendeu o

uso do portunhol. No entanto, também caberia perguntar-lhe e perguntar-nos o que é exatamente esse

portunhol, não seria apenas uma imagem muito pessoal de uma tentativa de falar pela metade, como se

pode, uma língua que se desconhece suprindo as lacunas com aquela que se conhece?

99

observamos que em um dos jornais mais importantes da cidade de São Paulo, A

Folha de São Paulo, é comum encontrarmos suplementos especiais18 que

tratam de afirmar esta necessidade. Uma chamada que encontramos em um

suplemento recente, de 200419, ilustra tal preocupação: “Inglês vira obrigação, e

só terceira língua dá destaque”. Nesse sentido, línguas como o francês, o

alemão, o inglês e, agora, mais recentemente, o espanhol e o chinês, ocupam

lugares que são incapazes de serem ocupados pelo português. Claramente o

MERCOSUL e o crescimento de investimentos do capital espanhol no Brasil são

os fatos históricos mais relevantes para o boom do ensino do espanhol como

língua estrangeira no nosso país.”

Hoje podemos falar do espanhol como língua veicular, ainda que o par

semelhança/facilidade de que fala Celada (2002) ainda tenha um papel

importante na seleção desse idioma para estudo.

A necessidade de se falar uma língua estrangeira ficou demonstrada,

neste mesmo suplemento, como independente de classe social, raça ou idade20.

As estatísticas apresentadas em todas as páginas do suplemento só não

calculam o quanto a imagem forjada ideologicamente de que “o português que

falamos não é o verdadeiro” é responsável por esse fenômeno. É como se

houvesse uma língua padrão, ideal, talvez algo mais próximo do português

18 Em anexo trouxemos dois suplementos do jornal A Folha de SP. O primeiro, de 18 de junho de

2000, está no caderno Folha Classificados: especial empregos, e tem como chamada “Escolha o seu 3º

idioma”. O segundo suplemento é mais recente, 12 de dezembro de 2004, e a chamada é “Em busca do

tempo perdido”. Caderno Especial 1: Idiomas. 19 Folha de SP, Especial 1. São Paulo, domingo, 12 de dezembro de 2004. Capítulo 3, p. 6. 20 Neste Especial 1, todas as páginas trazem uma série de pesquisas realizadas pelo Datafolha. Na

página 3, uma estatística chama a atenção, o número de pessoas que gostariam de aprender uma terceira

língua diferencia-se muito pouco de uma faixa etária para outra, apesar de os jovens, de 16 a 25 anos, terem

mais disposição.

100

europeu, que precisa ser adquirida na escola, sem o que o crescimento social

ficaria comprometido. As crianças brasileiras, portanto, vão às escolas não só

para aprender a escrever, mas também para “aprender a falar direito”.

Por tudo isso, talvez não seja um exagero dizer que a nossa língua

materna não ocupa nenhum outro lugar no nosso imaginário, a não ser o de

língua vernácula, seja no que se refere a nós mesmos em relação a esta língua

ou ao outro, o estrangeiro, em relação ao português do Brasil como língua

estrangeira.

A ilusão de complementaridade de que fala Fanjul (apud Celada, ibid.:

28), em outras palavras, o lugar que ocupam todas as outras línguas em relação

à vernácula promete algo que esta não nos oferece, e é por isso que se

complementam. Por isso, quando vários lugares precisam ser ocupados, um

sentimento de desvantagem passa a dominar o falante, o que permite, por sua

vez, que os meios de comunicação manifestem coisas como “O Fim do

Português” (Veja SP: 5 de abril de 2000) ou a insistência de que para competir

no mercado seja necessário saber mais que três idiomas.

Sendo assim, é possível identificar uma diglossia que reparte o português

entre PB/língua vernácula, variedade baixa e sem prestígio, e PE ou algo mais

próximo dele, variedade alta e de prestígio, inatingível e fantástica, já que quase

não está mais presente nem mesmo nas gramáticas brasileiras, uma vez que o

PB, na sua variedade culta, vem se institucionalizando cada vez mais. Assim se

constrói o sentimento de incapacidade que faz com que os brasileiros acreditem

101

ser importante - independentemente de classe social, raça, idade ou poder

aquisitivo – o aprendizado de mais de uma língua estrangeira.

Por tudo isso, talvez esteja reservado ao professor de línguas

estrangeiras o papel de estimular a pensar nas relações que podem existir entre

o seu próprio idioma e aquele que se deseja adquirir. Sem maiores reflexões

que possam sustentar a afirmação a seguir: quem sabe o vazio deixado pela

língua materna sujeite a língua estrangeira a uma expectativa às vezes muito

grande.

102

7 À guisa de conclusão

Nesta pesquisa, tentamos trazer exemplos de estereótipos que poderiam

auxiliar o aprendiz de língua estrangeira a se identificar e a iniciar um processo

de reconhecimento do outro, assim como alguns exemplos, como no caso das

telenovelas, de estereótipos que se mostraram extremamente pobres em

profundidade. Contudo, tanto no primeiro quanto no segundo caso, acreditamos

que é impossível evitar os estereótipos, isto é, são, por um lado, indispensáveis

à cognição e, por outro, são inseparáveis do contexto de sala de aula de línguas,

na qual podem deixar seus vestígios, ressoar, produzir efeitos e trazer

conseqüências para o ensino e aprendizagem da língua estrangeira –

lembremos que, segundo Serrani-Infante (1998), trata-se de um momento de

“encontro” entre duas línguas, num sentido amplo, no qual deveria ocorrer um

processo de identificação -, razão pela qual precisam ser explicitados,

trabalhados, analisados. Segundo Serrani-Infante (1998:256),

“O processo de inscrição em segundas línguas sempre comportará

formulações nas quais haverá representações intradiscursivas da

diversidade, e elas poderão assumir, no discurso, forma de estereótipos,

etnocentrismos, idealizações, exotismos, etc. Mas, para aprofundar-se a

compreensão dos processos nos quais a dimensão do conflito com a

alteridade ganha em espessura e nos quais se constitui a tomada de

palavra em L2, é preciso que essas representações sejam analisadas

como meios imaginários nos quais se imbricam as questões simbólica

(do sujeito do inconsciente) e ideológica (do interdiscurso).”

103

Como o processo de aquisição de L2, para a autora, é um processo

basicamente identificatório, é fundamental considerar as identificações em jogo,

fatores não coginitivos que podem explicar os movimentos, ora de aproximação,

ora de rechaço, por parte dos aprendizes.

Por isso, defendemos que o professor, como possível difusor de

ideologias, precisa reconhecer-se como tal e buscar, nas palavras de González

(1999: 44),

“(...) una práctica teóricamente fundamentada, que a su vez pueda

(re)alimentar las teorías, es condición para el ejercicio de la crítica y por

lo tanto de la libertad, de la autonomía. Éste es quizá, uno de los

componentes fundamentales de la formación del profesor de lengua

extranjera (...)”

Observamos alguns estereótipos que foram desestabilizados

historicamente e esse abalo, como vimos, pode ser proporcionado pela pesquisa

de qualidade, porém, é de fundamental importância, que esta deixe suas marcas

no ensino.

Nesse sentido, o nosso interesse com relação às etapas de aquisição de

uma língua estrangeira surgiu diante de uma inquietação que nasce da noção de

estereótipo, isto é: se o estereótipo é determinado socialmente e se a

estereotipia é fundamental no processo de cognição, então, como um indivíduo

aprendiz percebe e procura se aproximar desse recorte? Qual a função do

recorte da realidade da língua materna na aquisição/aprendizagem de línguas

104

estrangeiras? E finalmente, qual a função dos estereótipos nesse processo de

aquisição/aprendizagem?

Até o presente momento, tivemos avanços positivos no que diz respeito à

imagem que criamos para o estereótipo, isto é, a imagem de “porta de entrada”

do processo de aquisição/aprendizagem. O estereótipo, como pudemos ver,

mostrou-se, apesar de um simplificador da realidade, um importante

desencadeador da aquisição, impossível de ser separado da sala de aula de

língua estrangeira e, por outro lado, possível de ser abalado, o que faz com que

a sua faceta nociva não neutralize totalmente as suas vantagens.

No entanto, concordamos que muitas imagens estereotipadas podem ser,

sim, preconceitos, presunções, antecipações carregadas de menosprezo acerca

do outro e, nesse momento, relacionamos essa faceta dos estereótipos à noção

de ideologia no sentido de contrário a teoria. O conceito pareceu muito fértil

enquanto nos detivemos em estudiosos fiéis à noção de ideologia marxista. Com

a entrada da teoria da Análise do Discurso, tal definição de ideologia ficou, em

parte, abalada, já que a Análise do Discurso buscou redefinir o conceito de

ideologia e, ainda que tributária do marxismo, buscou ampliar o conceito de

ideologia, ligando esta ao inconsciente e, ainda, dando-lhe o caráter de

governante das Formações Discursivas.

Mesmo admitindo, desde o início, as determinações ideológicas e

histórico-sociais, o sentido de ideologia como inverso da teoria, ou seja, prática

que dispensa os questionamentos e que gera mecanismos de perpetuação,

105

mostrava-se passível de ser evitado, na medida em que poderíamos buscar

sempre uma atitude científica e teórica diante do novo desconhecido.

Durante todo o trabalho, fica evidente que muitas vezes vacilamos com

relação à imagem de “porta de chegada” que relacionamos à etapa da

ideologização e, no entanto, nem mesmo agora, no momento da entrega do

relatório final, temos muito claro como se dão as determinações ideológicas

durante o processo de aquisição/aprendizagem de uma língua estrangeira.

Por tudo isso, a noção de ideologia tem se mostrado bastante complexa,

como dissemos. Não sabemos, ainda, se a vemos, apenas, como indispensável

na aquisição do signo, já que nos constitui falantes de uma língua e

pertencentes a um determinado grupo social, ou, se por outro lado, passamos a

admitir a perspectiva nociva que a redução e a generalização podem vir a ter.

Entretanto, a noção de poder, ainda que imatura até o presente momento,

tem demonstrado estar fortemente relacionada à noção de ideologia. Seja na

teoria de Althusser (1970, apud Brandão, 1995: 22-3) como visto na seção 4.1.2,

ou no mecanismo de força da AD, visto na seção 4.1., ou ainda no modelo

tetralingüístico, discutido na seção 6.1.4; o que pudemos observar é que as

línguas sempre ocupam um lugar de poder determinado socialmente. Vimos,

também, que os fatos históricos são capazes de alterar a configuração e a

medida desse poder; são exemplos de fatores de alteração de poder na relação

dos brasileiros com a língua espanhola: o MERCOSUL, a presença da Espanha

no Mercado Comum Europeu, a compra de estatais por empresas espanholas e,

106

até mesmo, o crescimento no uso e o aumento da importância desse idioma nos

Estados Unidos e até mesmo na Europa.

Ou seja, as determinações ideológicas, porque são político-sociais, como

vimos, muito provavelmente serão levadas em consideração já desde a escolha

ou não do espanhol como língua merecedora de estudo em nosso país. Somado

a isso, as mesmas determinações são responsáveis pelo surgimento, criação e

proliferação dos estereótipos e ideologias.

O que chamamos, então, de etapas da ideologização e estereotipia,

desse modo, auxiliam, uma vez que os estereótipos são a “porta de entrada” no

processo de cognição por nos auxiliarem e nos tirarem do fluxo nebuloso do real

e, ainda, muitas vezes, determinarem a aquisição/aprendizagem, como é o caso

da ideologização.

Diante disso, defendemos que é responsável pelo recorte do real a práxis

da língua materna e não a da língua a ser adquirida/aprendida. Todas essas

considerações têm dois motivos. Primeiro, pensamos a aquisição/aprendizagem

como um processo determinado socialmente. E, segundo, sendo o social, para

nós, determinado pela língua materna, como será o processo de aquisição de

uma língua estrangeira, quando já temos o social da língua materna

determinando o processo?

Dessa pergunta é que surgem os gráficos da seção 5.1.3. Neles podemos

ver que acreditamos que a língua materna tem um papel importante na

aquisição de línguas estrangeiras e que, sendo assim, esse processo tem

107

peculiaridades, características próprias, e não pode ser igual ao da aquisição de

língua materna.

108

8 Bibliografia

8.1 Referências bibliográficas

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113

114

9 Anexos